Cidade Subjetiva

September 14, 2017 | Autor: Vitor Gonçalves | Categoria: Urbanism, Architectural Theory, Arquitetura e Urbanismo
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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANSIMO

VITOR MARTINS GONÇALVES

CIDADE SUBJETIVA

São Paulo 2010

VITOR MARTINS GONÇALVES

CIDADE SUBJETIVA

Trabalho Final de Graduação apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie como exigência parcial à obtenção do grau de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo.

Orientador: Prof. Dr. Celso Lomonte Minozzi

São Paulo 2010

Como diria Jack Kerouac: À cidade de São Paulo, seja lá o que isso for.

AGRADECIMENTOS

À minha família, pelo incomensurável apoio durante toda essa jornada.

Aos

meus

amigos

e

amigas

pela

extraordinária

companhia e sinceridade.

Ao meu orientador Prof. Dr. Celso Lomonte Minozzi por sua paciência e dedicação.

RESUMO

Este trabalho analisa as relações entre uma determinada área de estudo – a região das indústrias e galpões abandonados da Mooca, distrito da Zona Leste do município de São Paulo, proximidades da estação Mooca da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) – e seus habitantes. Baseado na análise de Ignasi Solà-Morales sobre os terrain vague, pesquisa como, nesses espaços, os conceitos derridianos de espectralidade e Mal de Arquivo (Archive Fever), e os freudianos estranhamente familiar (Unheimlich) e Bloco Mágico (Wunderblock), podem abrir novas leituras da cidade e influenciar os processos de subjetivação. A pesquisa se desenvolve com base nos textos de Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Sigmund Freud, Ignasi de Solà-Morales, Peter Eisenman e Anthony Vidler.

ABSTRACT

This work examines the relationships between people with a certain field of study: the region of industries and abandoned warehouses Mooca district of Eastern Zone of São Paulo (near the station Mooca CPTM – Paulista Company of Metropolitan Trains). Based on analysis of Ignasi Solà-Morales about the terrain vague, research how, in these spaces, the Derrida concepts of spectrality and Archive Fever, and those of Freud, Uncanny (Unheimlich) and Magic Block (Wunderblock), could open new lectures of the city and influence the processes of subjectivity. The research develops based in the texts of Jacques Derrida, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Sigmund Freud, Ignasi de Solà-Morales, Peter Eisenman and Anthony Vidler.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 01 – Vista aérea da área de estudo.......................................................07 Figura 02 – Splitting, 1974. Gordon Matta-Clark...............................................10 Figura 03 – Vista da rua Borges de Figueiredo................................................14 Figura 04 – Antiga fábrica da União antes de sua demolição, rua Borges de Figueiredo..........................................................................................................21 Figura 05 – Independente do que aconteça.....................................................28 Figura 06 – Stand de vendas de apartamentos em edifícios residenciais de alto padrão,

no

terreno

onde,

antes,

existia

a

fábrica

da

União..................................................................................................................35 Figura 07 – Conical intersect, 1975. Matta-Clark..............................................44 Figura 08 – Spiral Jetty, 1970. Robert Smithson. A Terra e suas dinâmicas próprias..............................................................................................................53 Figura 09 – Spiral Jetty, 1970. Robert Smithson..............................................56

SUMÁRIO

PRÓLOGO.........................................................................................................07 INTRODUÇÃO...................................................................................................10 CAPÍTULO 1 – TERRAIN VAGUE, ALTERIDADE E ÉTICA...........................14 CAPÍTULO 2 – O UNHEIMLICH E O BLOCO MÁGICO..................................21 CAPÍTULO 3 – ESPECTROS E MAL DE ARQUIVO.......................................28 CAPÍTULO 4 – INVENÇÃO DA CIDADE SUBJETIVA....................................44 CONCLUSÃO POSSÍVEL.................................................................................53 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA......................................................................57 BIBLIOGRAFIA.................................................................................................60

PRÓLOGO

Figura 01 – Vista aérea da área de estudo Fonte: Google Earth. Acesso em: 07 mar. 2010.

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PRÓLOGO

A dinâmica de uma metrópole como São Paulo, com seus grandes e rápidos deslocamentos populacionais, tem alterado significativamente sua paisagem e a relação de seus habitantes com os espaços edificados. Tal instabilidade deixa rastros na cidade, como, por exemplo, regiões centrais e grandes áreas industriais praticamente abandonadas, espraiamento urbano (urban sprawl), centenas de quilômetros de congestionamentos diários, maciços investimentos em vias arteriais, hiper-valorização de terrenos urbanos, novos bairros genéricos e construções genéricas em bairros de tipologias consideradas tradicionais. Como conseqüência dessa dinâmica, além é claro de outros fatores, é comum que habitantes e usuários desenvolvam uma relação de estranhamento com sua cidade, ao menos com partes dela, uma vez que as grandes dimensões metropolitanas também limitam uma maior apreensão da cidade. Esta não é mais vista pelo indivíduo como uma habitação, mas como lugar estranho e conflitante.

Alguns bairros de São Paulo como a Mooca, o Brás, a Barra Funda, o Ipiranga e o Belém foram, no fim do século XIX e início do século XX, os principais palcos da industrialização da cidade. Habitados em sua maioria por imigrantes europeus, especialmente italianos, desenvolveram, cada um à sua maneira, forte identidade local através da cultura. Apesar do desenvolvimento relativamente recente dessas identidades – cerca de um século – estas foram e ainda são consideradas tradicionais; símbolos da cidade. Quando boa parte das indústrias transferiu suas sedes e fábricas para subúrbios, periferias e cidades interioranas, seus antigos edifícios ficaram em desuso. Com isso, enormes áreas foram abandonadas e perderam seus significados: a vida cotidiana dos habitantes desses bairros alterou-se drasticamente.

Tais áreas industriais praticamente abandonadas e em ruínas, além de estranhas ao funcionamento da cidade, têm a capacidade de provocar sensações de estranhamento naqueles que entram em contato com elas. Os 8

motivos? Talvez devido à sensação “do silêncio, da escuridão e da solidão” (FREUD, 1996, p.263), ou talvez a sensação de que não são áreas de fato abandonadas, mas antes assombradas por espectros, marcadas por presenças de ausências. Locais com “memória de presenças anteriores e imanências de uma presença possível” (EISENMAN, in NESBITT, 2008, p.198). Veremos à frente que essas duas percepções não são necessariamente opostas ou excludentes.

A relação do indivíduo com aquilo que lhe é estranho e inquietante, porém

não

somente

estranho,

mas

também

estranhamente

familiar

(Unheimlich), estudada na psicanálise por Sigmund Freud, e posteriormente aplicada ao estudo da arquitetura por Anthony Vidler e Peter Eisenman, abriu um campo de possibilidades para além dos estudos acerca do Belo. Este, entendido por Peter Eisenman como: “uma condição singular e monovalente ligado ao bom, ao natural, ao racional e ao verdadeiro” (in NESBITT, 2008, p.613). Valores estes incapazes de explicarem por si só as complexidades e à descrença no progresso eterno da sociedade contemporânea.

Não só as cidades, mas o próprio indivíduo contemporâneo sofre (não necessariamente em sentido negativo) com a ausência de identidade. O fim das certezas absolutas em todas as áreas do conhecimento humano – desde a filosofia de Friederich Nietzsche com sua célebre frase “Deus está morto” (2010, p. 181), passando pela arte de Pablo Picasso, Salvador Dalí, Francis Bacon e Gordon Matta-Clark, até a física de Albert Einstein, Werner Heisenberg e Niels Bohr – exige que o indivíduo invente sua relação com o mundo. Não basta mais somente aprender/apreender o mundo como objeto, é necessário inventá-lo.

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INTRODUÇÃO

Figura 02 – Splitting, 1974. Gordon Matta-Clark. Fonte: Internet. Disponível em: http://artobserved.com/. Acesso em: 04 nov. 2010.

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“A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras.” Italo Calvino – “As (CALVINO, 2003, p.9)

Cidades

Invisíveis”

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INTRODUÇÃO

O enredo deste estudo poderia, sem dificuldades, ser considerado banal: um passeio pela região das indústrias e galpões abandonados da Mooca. Mas as possibilidades de relação entre indivíduos e espaços urbanos, tal como este se apresenta agora, “abandonado” (discorro mais adiante sobre o motivo de estar entre aspas) não são banais ou genéricas; muito pelo contrário. Essa falta de harmonia abre caminho para novos processos de subjetivação através de novas leituras do espaço e do tempo. Trata-se de um Trabalho de Final de Graduação, uma monografia, um: “item não seriado, isto é, item completo, constituído de uma só parte, ou que se pretende completar em um número preestabelecido de partes separadas” (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 2002, p.2).

Pode-se entender que, de acordo com a norma vigente, há uma vontade de fechamento e conclusão, do que é aqui exposto; uma tendência à unidade da obra. Mas, em sentido contrário, para ser legítima, uma monografia deve conter referências. Em outras palavras, devo escrever citando, convocando outras vozes, sendo mais de um: sempre abrindo caminho para fora deste texto. Se levada ao extremo, essa alteridade deixará uma possível conclusão sempre suspensa. Começo, portanto, com uma citação de Italo Calvino, retirada do livro “As Cidades Invisíveis”. Livro que inventa novas leituras de cidades, partindo algumas vezes dos espaços edificados, mas indo além deles, uma leitura subjetiva que é parte de um processo de subjetivação. Essa citação introduz também a questão da memória de uma cidade e como ela pode se apresentar. A memória mostra-se apenas nas marcas físicas? Mostra apenas o passado, se é que o mostra? Voltando à questão da citação: Segundo Jacques Derrida: “Citar antes de começar é dar o tom deixando ressoar algumas palavras cujo sentido ou forma deveria dominar a cena” (DERRIDA, 2001, p.17).

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Portanto, algo dessa citação voltará vez ou outra para, senão dominar, ao menos participar da cena. Não se poderia dizer que esta estará plenamente presente nas páginas a seguir, mas também não se poderia dizer que está de todo ausente. Assim, a citação é da ordem do espectral em relação ao texto. E é justamente sobre essas questões – e sobre as possibilidades de novas questões – que esse trabalho se desenvolve, levando-as para a arquitetura. Como a história e a relação que o indivíduo tem com os esses espaços marcados podem interferir nos processos de subjetivação?

Com vistas a uma análise mais ampla, este trabalho desenvolve-se sobre textos de diferentes áreas do conhecimento: filosofia, psicologia, arquitetura e urbanismo. Quatro capítulos comunicam-se constantemente. O primeiro faz uma análise da área de estudo com base no conceito de terrain vague desenvolvido por Ignasi Solà-Morales e sobre a ética na relação com esses espaços outros. O segundo aborda os conceitos freudianos de Estranhamente Familiar (Unheimlich) e Bloco Mágico (Wunderblock) e suas relações com a espectralidade (aparição, retorno do morto). No terceiro, os conceitos derridianos do Espectro e do Mal de Arquivo (Archive Fever) que passam, assim como o terrain vague pela presença da ausência e seus potenciais. No quarto e último, analiso os processos de subjetivação estudados por Gilles Deleuze e Félix Guattari com especial interesse no texto “Restauração da Cidade Subjetiva” (GUATTARI, 2008) que abrange os três capítulos anteriores.

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CAPÍTULO 1 – TERRAIN VAGUE, ALTERIDADE E ÉTICA

Figura 03 – Vista da Rua Borges de Figueiredo. Fonte: Própria

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TERRAIN VAGUE, ALTERIDADE E ÉTICA

Primeiramente, o que falar sobre a área de estudo: uma área abandonada, terreno(s) baldio(s), patrimônio arquitetônico, sítio arqueológico, lugar subutilizado? Todos esses termos só comportam ou a valorização ou a desvalorização da área. Mas novamente a pergunta, feita de outro modo: o que nesses espaços tanto atrai o olhar? Utilizo-me do conceito de terrain vague desenvolvido por Ignasi de Solà-Morales, de amplo significado, para estudar a área, pois este conceito contempla o potencial do passado, do porvir e das incertezas e indefinições desses espaços. Saskia Sassen, na introdução que faz ao livro Territorios, define os terrain vagues como: “[...] espacios infrautilizados com más significado passado que presente, partes del interior de uma ciudad que todavía yacen fuera de las lógicas organizativas utilitárias” (SOLA-MORALES, 2003, p.8).

É esse o caso da área de estudo, porém, não nos deixemos seduzir por uma breve definição. Como supracitado esse é um amplo conceito. SolàMorales já alertava sobre a impossibilidade de traduzir com precisão a expressão francesa terrain vague. Segundo Solà-Morales, Terrain, em francês refere-se a uma porção de terra contida na cidade, determinável e edificável, mas também a porções maiores e menos definidas potencialmente utilizáveis. Já vague refere-se à oscilação e instabilidade, ondulações (do inglês: wave), também a algo vago, desocupado, livre. Solà-Morales: “Vacío, por tanto, como ausência, pero también como promessa, como encuentro, como espacio de lo possible, expectación.” (SOLA-MORALES, 2003, p.187)

Essa dupla condição permeia outros conceitos investigados nesse trabalho, como por exemplo, unheimlich e espectralidade. Dupla condição também para alguns habitantes, que “estranjeros em nuestra própria pátria, extraños em nuestra ciudad” (SOLA-MORALES, 2003, p.188) identificam nos terrain vagues seus medos e ao mesmo tempo esperanças, um lugar além da 15

falsa liberdade sob vigilância cotidiana. Daí talvez, segundo Solà-Morales, o interesse de artistas plásticos, dramaturgos, fotógrafos e cineastas. Exemplo disso: algumas das obras do artista plástico Gordon Matta-Clark realizadas nesses espaços. Este abriu verdadeiros rasgos em diversas edificações abandonas ou subutilizadas de modo a recriar a leitura destes, levantando questões sobre superfícies, estruturas (não apenas no sentido arquitetônico dessas palavras) e utilização dos espaços urbanos. Ainda segundo SolàMorales: “[...] la reacción del arte es la de preservar estos espacios alternativos, extraños a la eficacia productiva de la ciudad” (SOLA-MORALES, 2003, p.191). Velhos locais para o novo. Quão velhos, porém? É curioso que ao caminhar por esses espaços, assim configurados à aproximadamente um século tenha-se a sensação de percorrer cidades-fantasma, de antigas civilizações. O passado mais recente inscrito nos livros de história e na imaginação das pessoas.

Uma belíssima citação de Henri-Pierre Jeudy ilustra brilhantemente essas sensações e, de certa forma, justifica o interesse deste trabalho: “Quem não sente ainda grande emoção ao passear por áreas industriais abandonadas, fábricas desocupadas, ou portos onde gruas enferrujam, ou por estações desativadas? Uma emoção estranha, uma vez que não está relacionada, como freqüentemente se acredita, à nostalgia de uma outra época. [...] O silêncio desses territórios abandonados, dessas construções desmoronadas, nos coloca, contudo, em um estado de alucinação, uma vez que podemos ver os corpos, escutar as vozes e gritos, ter a sensação de uma atmosfera de vida comum que a literatura e o cinema nos sugerem o tempo todo. Um estado visionário, retrospectivo, que nos incomoda. Nenhuma sombra de inquietação, apenas a irrupção de imagens de uma infância sempre sonhada, em meio à doçura de seus sofrimentos” (JEUDY, 2005, p.25).

A citação supracitada traz novamente às questões do “silêncio desses territórios abandonados, dessas construções desmoronadas [eu sublinho]” e de “um estado de alucinação, uma vez que podemos ver os corpos, escutar as vozes e gritos [eu sublinho]”. Simultaneamente sensação de silêncio e de ouvir vozes. O que dizer desta aparente contradição? Uma característica interessante dos terrain vague é que, em geral, não são simplesmente locais 16

sem identidade. Estes já tiveram o que se poderia chamar de identidade, porém perderam parte das características que sustentavam seus significados, deixando mais que um vazio, deixando um rastro do que foi, do que seria, do que poderia ser, do que pode ser. O aparente silêncio nos põe em estado de alerta. Esse estado de alerta nos possibilita “ver os corpos, escutar as vozes e gritos”, através de uma leitura atenta que não faríamos em um simples caminhar por locais seguros e conhecidos.

Não ousaria, aqui, sustentar a hipótese levantada por Solà-Morales de que esses espaços “[...] se hán convertido em areas de las puede decirse que la ciudad ya no encuentra ali.” (SOLA-MORALES, 2003, p.187-188). Ao contrário, é justamente o modo como a cidade ali se apresenta, marcando sua presença enquanto ausência nesses locais, que interessa a esse estudo.

Locais não mais inseridos na vida urbana atual, esvaziados de seus significados, “extraños al sistema urbano, exteriores mentales en el interior fisico de la ciudad” (SOLA-MORALES, 2003, p.188), os terrain vague mantém uma relação de conflito com o restante da cidade. Simultaneamente vítimas e críticas, colocam questões e abrem novas possibilidades através do conflito. Entre estas, questões éticas relativas à alteridade, uma vez que esses espaços não mais fazem parte do sistema produtivo da cidade, tornam-se eles mesmos estranhos a ela; abre-se um vazio no centro, uma margem localizada no coração da cidade. Esses locais outros exigem a hospitalidade afinal são estranhos, quem diria, estrangeiros vindos de dentro. Não haveria como expulsá-los, ou barrar-lhes o acesso, já estão na cidade, são parte dela. Acontece de, por vezes, serem então suprimidos ou ignorados, como os fantasmas na psicanálise. Caso recorrente na cidade de São Paulo, que sofre com um processo de pasteurização estética e cultural (ver figura 03). É justamente aí que falta a ética, na visão ensimesmada da cidade institucional e institucionalizante que não se relaciona com o outro ou não o vê como um outro, mesmo que um outro em si, um outro eu dentro de um eu que pensa ser total. Segundo Emmanuel Lévinas: “[...] perceber-se do interior – produzir-se como eu – é perceber-se pelo mesmo gesto que já se volta para o exterior

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para extraverter e manifestar – para responder pelo que ele percebe.” (in DERRIDA, 2004, p.26)

Ao falar em cidades falo também de seus habitantes. Não à toa pessoas socialmente marginais ou marginalizadas demonstram interesse por esses territórios, também marginais ou marginalizados. Usuários de drogas ilícitas, skatistas, moradores de rua, criminosos e outros que são também vagues, indeterminados e indetermináveis. E ao falar da cidade institucionalizada institucionalizante, falo dos cidadãos do Estado que - assim como eu, trabalham, estudam pagam impostos - giram os parafusos da cidade máquina.

Não se trata de defender um ou outro através de uma visão romântica, mas antes de exigir o reconhecimento de um outro como necessário para a abertura de novos caminhos. Do outro, que vai além do que eu já tenho e do que eu espero, vem a possibilidade de um infinito, infinito enquanto toda possibilidade do novo. Na relação com o outro - seja dos indivíduos que entram em contato com esses espaços e os têm como estranhos, seja da relação entre a cidade, enquanto administração pública e mercado imobiliário, e seus espaços sem uso ou significado – é que se recebe algo. Mas não se recebe algo do outro que já se espera, do outro que já se conhece ou concebe, recebesse de um outro que é desconhecido. Somente através desse outro é que posso ir além, do conhecido e do estrangeiro: “’Desconhecido’ nada diz do limite negativo de um conhecimento. Esse não-saber é o elemento da amizade ou da hospitalidade para a transcendência do estrangeiro, a distância infinita do outro”. (DERRIDA, 2004, p. 23)

Portanto, é preciso ser hospitaleiro àquele que bate à porta. O outro que bate à porta, segundo Lévinas e Derrida, seria a primeira ação, o primeiro sim, sim incondicional, que exige resposta, nos restando sempre responder abrindo ou não a porta. A primeira ação vem do outro: “A porta aberta, maneira de falar, designa a abertura de uma exterioridade ou de uma transcendência da idéia de infinito. [...] Esta porta aberta é tudo, menos uma simples passividade [...]” (DERRIDA, 2004, p. 44)

Poderia ser dito que há aí a suposta possibilidade se barrar-lhe o acesso, como dito acima, ser impossível uma vez que este já se encontra na 18

cidade. Porém não abrir a porta não impediria que este lá ficasse, seria apenas uma forma de ignorá-lo. Posição declarada então, de abertura ao desconhecido como relação ética. Derrida questiona: “A hospitalidade não é uma interrupção de si?“ (DERRIDA, 2004, p. 68). Questiona e sugere: “Não compreenderemos nada da hospitalidade se não entendermos o que pode querer dizer ‘interromper-se a si mesmo’, e a interpretação de si só si-mesmo como outro” (DERRIDA, 2004, p. 69)

O indivíduo, uma vez confrontado por um espaço que lhe é estranho, habitado por estranhos, ou mesmo des-habitado, como os terrain vagues, tem a possibilidade de criar. Criar novas relações com os espaços construídos, mas também recriar-se: re-singularização. Espaços que abrigam o passado e também o porvir. Neste ponto é importante ressaltar, ao menos brevemente, a diferença que Derrida confere a futuro e porvir. Sendo o futuro previsível, visto como outros momentos presentes, puros presentes, outros presentes no futuro; enquanto que porvir é imprevisível, aquilo pode vir a qualquer instante e encontra-se também no presente, como toda a possibilidade do desconhecido que todo instante contém. Ao falar de outros, falo também de outros “corpos”, “vozes” e “gritos”. Falo também dos espectros. Quanto a todas as ausências que se poderia falar dos terrain vagues, ausência de uso, de identidade, de limites claros, da cidade – como diz Solà-Morales: “[...] la ciudad ya no encuentra ali” – por todas elas deve-se assumir à responsabilidade. Diz Derrida, acerca da obra do amigo Lévinas: “[...] uma análise do ‘rosto como traço’ [para Lévinas, o outro se apresenta na forma de um rosto] que ‘indica sua própria ausência sob minha responsabilidade’ e ‘exige uma descrição que só toma forma numa linguagem ética’ “. (DERRIDA, 2004, p. 70)

Retomando a frase de Solà-Morales: “[...] se hán convertido em áreas de lãs puede decirse que la ciudad ya no encuentra ali.”. O traço, então, indica sua própria ausência e nos deixa a responsabilidade de responder pelos que já não estão mais aí. Mais adiante, no capítulo III discorro sobre essa questão.

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Os bairros que, diz-se, terem perdido ou estarem perdendo a identidade abriram-se também ao outro. Passaram por uma “interrupção de si”. De outro modo ainda se poderia dizer que são os mesmos. Outros usos às vezes sob a aparência de uso algum, outros habitantes, outras relações, enfim outras possibilidades. Agora os “mesmos” bairros como outros batem à porta.

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CAPÍTULO 2 – O UNHEIMLICH E O BLOCO MÁGICO

Figura 04 – Antiga fábrica da União antes de sua demolição, rua Borges de Figueiredo. Casa assombrada. Fonte: Pâmela Escolástico.

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O UNHEIMLICH E O BLOCO MÁGICO

Considerando a área de estudo como um terrain vague e a assumindo como um espaço outro, um espaço desconhecido e do desconhecido, porém um desconhecido que um dia já foi conhecido, parto para o conceito de Unheimlich, exposto por Sigmund Freud em texto de 1919 (FREUD, 2009, Vol. XVII). Assim como terrain vague, a palavra alemã Unheimlich também oferece forte resistência à tradução e definição, tendo inclusive Freud que desenrolar dezenas de exemplos em que tal palavra foi aplicada em alemão e de que modo esta foi traduzida tantas outras vezes, para poder direcioná-la um estudo. Após o longo estudo, Freud dá uma breve definição: “[...] o estranho [unheimlich] é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar.” (FREUD, 2009, Vol. XVII, p.238). Ainda: “[...] heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência, até que finalmente coincide com o seu oposto, unheimlich. Unheimlich é, de um modo ou de outro, uma subespécie de heimlich.” (FREUD, 2009, Vol. XVII, p.244).

Os paralelos entre unheimlich e terrain vague ficam, assim, bastante claros. Familiar, porém estranho, estranhamente familiar, unheimlich refere-se também a uma vinda, mas à algo que vem de novo, um retorno. Para que algo que já era conhecido, ou seja, já me apareceu ao menos uma vez, retorne é preciso que antes tenha sido afastado. Freud o diz: “[...] o estranho [unheimlich] provém de algo familiar que foi reprimido” (FREUD, 2009, Vol. XVII, p.264). Se estamos falando, direta ou indiretamente, sobre a memória esse retorno nunca é o mesmo, nunca é retorno do mesmo se esse mesmo já é um outro, uma vez que a memória recria-se à cada retorno. Não haveria de ser estranho, mesmo que estranhamente familiar, se fosse o mesmo que antes, idêntico.

A esse retorno, relacionam-se diversas vezes o retorno dos mortos, ou o retorno daquilo que se acreditava estar morto. Retorno esse que não deixa que o trabalho de luto tenha um fim. Não deixa nunca que o morto venha a deixar de ser e se transforme em nada. “A morte aparente e a reanimação dos mortos têm sido representados como temas dos mais estranhos.” (FREUD, 2009, Vol. XVII, p.263). Vale ressaltar, não é apenas a morte que é tida como estranha, e 22

sim o retorno. O retorno do mesmo como outro exige uma re-singularização da relação com este. Na área de estudo, o que retorna? Retornam “os corpos”, “as vozes e gritos”, “a sensação de uma atmosfera de vida”, as “imagens de uma infância sempre sonhada”, a “doçura de seus sofrimentos”. Retornam também perguntas: como esses locais teriam sido de fato? Como era a vida aí? O que poderia ser? O que pode ainda ser? O que aconteceu? O que acontecerá nessa área? Algumas questões fazem reviver outras que já se poderiam dizer inexistentes. Não somente perguntas, mas também retornam respostas evidentemente. Uma longa citação de Freud exemplifica: “Tomemos o estranho ligado à onipotência de pensamentos, à pronta realização de desejos, a maléficos poderes secretos e ao retorno dos mortos. A condição sob a qual se origina, aqui, a sensação de estranheza, é inequívoca. Nós – ou nossos primitivos antepassados – acreditamos um dia que essas possibilidades eram realidades, e estávamos convictos de que realmente aconteciam. Hoje em dia não acreditamos mais nelas, superamos esses modos de pensamento; mas não nos sentimos muito seguros de nossas novas crenças, e as antigas existem ainda dentro de nós, prontas para se apoderarem de qualquer confirmação. Tão logo acontece realmente em nossas vidas algo que parece confirmar as velhas e rejeitadas crenças, sentimos a sensação do estranho; é como se estivéssemos raciocinando mais ou menos assim: ‘Então, afinal de contas é verdade que se pode matar uma pessoa com o mero desejo de sua morte!’ ou ‘Então os mortos continuam mesmo a viver e aparecem no palco de suas antigas atividades!’, e assim por diante. (FREUD, 2009, Vol. XVII, p.264)

Unheimlich, estranho e inquietante aí não é somente o retorno dos mortos propriamente dito, mas o retorno de crenças, dúvidas que haviam sido rejeitadas. Questões rejeitadas, porém que ainda existem, mesmo que não de maneira visível ou clara. Não visível para nós, mas “existem ainda dentro de nós, prontas para se apoderarem de qualquer confirmação.”, ou seja, parecem estar sempre à espreita, prontos para dominar a cena na primeira oportunidade. Efeito de viseira, trabalho de luto sem fim, retorno inquietante: percepções da ordem do espectro. Não falo somente de fábricas abandonadas, ruas pouco movimentadas ou vilas descaracterizadas. Mas para utilizar-se da expressão de Freud, chamarei todos esses espaços de “casas assombradas”: “Muitas pessoas experimentam a sensação, em seu mais alto grau, em relação à morte e aos cadáveres, ao retorno dos mortos e a espíritos e fantasmas. Como vimos, algumas línguas em uso atualmente só podem traduzir a expressão em

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alemão ‘uma casa unheimlich’ por ‘uma casa assombrada’.” (FREUD, 2009, Vol. XVII, p.258)

Essas “casas assombradas” nos fazem questionar o progresso das cidades, a lógica imobiliária, o planejamento urbano (ou atestar a ausência deste), enfim nos mostram de que nem tudo está definido, que talvez as coisas não vão tão bem quanto as propagandas em panfletos de construtoras nos informam. Nesse sentido, são também unheimlich, inquietantes. Inquietação necessária. Anthony Vidler, que estudou o unheimlich na arquitetura, expõe a importância deste na leitura das cidades contemporâneas: “Desde o romantismo, a arquitetura tem um vínculo muito forte com a idéia do estranhamente familiar (the uncanny – das unheimlich). Em um plano mais imediato, a arquitetura tornouse o locus de indetermináveis explorações de situações de assombração, duplicidade, mutilações e outros horrores na literatura e na arte. Ela abriu seus espaços labirínticos ao olhar do detetive moderno empenhado em decifrar os incontáveis mistérios da vida urbana.” (VIDLER, in NESBITT, p. 619)

Importante ressaltar o potencial do unheimlich para abrir novas leituras do espaço, através da exposição de problemas na relação dos indivíduos com o espaço e com o tempo. O retorno daquilo, ou daqueles, que já se considerava morto(s) há de perturbar, não há dúvidas. Levanta questões também quanto a marcas invisíveis que a vivência das pessoas poderia deixar nos espaços. Pois, se é neles que as coisas retornam, porque não haveriam de estar relacionados? E já não se pode garantir a presença ou ausência efetiva do que se percebe, questiona-se a realidade mesma: “Em sua dimensão estética, o estranhamente familiar é uma representação de um estado mental de projeção que justamente elimina as fronteiras do real e do irreal a fim de provocar uma ambigüidade perturbadora, um deslizamento entre a vigília e o sono.” (VIDLER, in NESBITT, p. 261) “enraizado pela etimologia e pelo uso no ambiente particularmente instável da vida doméstica, é inevitável que o estranhamente familiar exponha os angustiantes problemas de identidade do eu, do outro, do corpo e de sua ausência: daí o poder de interpretar as relações entre a psique e a habitação, o corpo e a casa, o indivíduo e a metrópole.” (VIDLER, in NESBITT, p. 620)

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O unheimlich dá a pensar, ele nos instiga a pensar além do belo, ou seja, do “bom, do “natural”, do “racional” e do “verdadeiro”. Mas por que essa presença perdura, marcando sua ausência? Por que esses traços são percebidos aí? Curiosa capacidade essa, de memória. Memória dos espaços, memória nos espaços. “[...] uma das propriedades principais do tecido nervoso é a memória, isto é, de uma maneira muito geral, a aptidão para ser alterado de um modo duradouro por acontecimentos que só se produzem uma vez.” (FREUD, in DERRIDA, 2002, p. 184)

Derrida, em seu texto Freud e a cena da escritura, fala da importância da memória para o aparelho psíquico. Em suas tentativas de entender como funciona o aparelho psíquico, Freud busca entender a sua capacidade de dar conta “da permanência do traço e da virgindade da superfície receptiva ou perceptiva: aqui os neurônios” (DERRIDA, 2002, p. 184). Curiosa capacidade. Para Freud, seriam necessários, portanto ao menos dois tipos de neurônios: os neurônios de percepção (φ) e os neurônios da memória (ψ). Derrida o explica: “Ora, haveria duas espécies de neurônios: os neurônios permeáveis (φ), não oferecendo nenhuma resistência e não retendo portanto nenhum traço das impressões, seriam os neurônios da percepção; outros neurônios (ψ) oporiam grades de contato à quantidade de excitação e conservariam assim o seu traço impresso [...]. Freud só concebe a qualidade psíquica a estes últimos neurônios. São os ‘carregadores da memória, e portanto provavelmente dos acontecimentos psíquicos em geral’. A memória não é portanto uma propriedade do psiquismo entre as outras, é a própria essência do psiquismo.” (DERRIDA, 2002, p. 184-185)

Essência do psiquismo, pois é ela que possibilita a “preferência da via”, ou seja, permite uma relação subjetiva com o mundo uma vez que este não se desenrola como algo completamente novo, sempre remete a outros tempos, outros espaços: memórias. Retomando a alteridade, é “a diferença entre as explorações” [eu sublinho] que “é a verdadeira origem da memória e portanto do psiquismo” (DERRIDA, 2002, p. 185). Freud irá buscar explicar esse aparelho psíquico através de diversos outros aparelhos - a folha de papel, a lousa, máquina fotográfica, telescópio e microscópio – mas é somente com o Bloco Mágico (Wunderblock) que ele conseguirá unir as duas habilidades (φ e ψ). Será necessário utilizar-me, aqui, da longa descrição que Freud faz do aparelho: 25

“O Bloco Mágico é uma prancha de resina ou cera castanhaescura, com uma borda de papel; sobre a prancha está colocada uma folha fina e transparente, da qual a extremidade superior se encontra firmemente presa à prancha e a inferior repousa sobre ela sem estar nela fixada. Essa folha transparente constitui a parte mais interessante do pequeno dispositivo. Ela própria consiste em duas camadas capazes de ser desligadas uma da outra salvo em suas duas extremidades. A camada superior é um pedaço transparente de celulóide; e a inferior é feita de papel encerado fino e transparente. Quando o aparelho não está em uso, a superfície inferior do papel encerado adere ligeiramente à superfície superior da prancha de cera. Para utilizar o Bloco Mágico, escreve-se sobre a parte de celulóide da folha de cobertura que repousa sobre a prancha de cera. Para esse fim não é necessário lápis ou giz, visto a escrita não depender de material que seja depositado sobre a superfície receptiva. Constitui um retorno ao antigo método de escrever sobre pranchas de gesso ou cera: um estilete pontiagudo calca a superfície, cujas depressões nela feitas constituem a ‘escrita’. No caso do Bloco Mágico esse calcar não é efetuado diretamente, mas mediante o veículo de uma folha de cobertura. Nos pontos em que o estilete toca, ele pressiona a superfície inferior do papel encerado sobre a prancha de cera, e os sulcos são visíveis como escrita preta sobre a superfície cinzento-esbranquiçada do celulóide, antes lisa. Querendo-se destruir o que foi escrito, necessário é só levantar a folha de cobertura dupla da prancha de cera com um puxão leve pela parte inferior livre. O estreito contato entre o papel encerado e a prancha de cera nos lugares que foram calcados (do qual dependeu a visibilidade da escrita) assim acaba, e não torna a suceder ao se reunirem novamente as duas superfícies. O Bloco Mágico está agora limpo de escrita e pronto para receber novas notas [...]. No entanto, é fácil descobrir que o traço permanente do que foi escrito está retido sobre a própria prancha de cera e, sob luz apropriada, é legível.” (2009, Vol. XIX, p.256-257)

Deste modo, nosso aparelho psíquico retém traços permanentes, inscrições que são visíveis “sob luz apropriada”. Neste caso, nos terrain vagues, a luz apropriada poderia ser proporcionada pelos estímulos advindos da percepção unheimlich ou do unheimlich. A memória é, portanto retorno, repetição, mas nunca retorno do mesmo. A cada retorno – das inscrições no inconsciente ao consciente - a memória é recriada, uma vez que as impressões não são transmitidas de uma camada à outra do aparelho sem que ocorram alterações, como em todo processo de tradução e transcrição nunca que é puro. O indivíduo recria novamente a memória, portanto, resingulariza-se novamente na relação com os espaços. Essas inscrições registradas no inconsciente, não identificáveis na superfície consciente, comportam sempre a 26

possibilidade de, por meio de algum estímulo, re-aparecerem. Elas estão sempre porvir. Reaparecendo recriam-se, recriando, ao menos parcialmente, o mundo subjetivo.

Mas não se trata somente de inscrições no aparelho psíquico como também de inscrições no espaço físico, traços permanentes visíveis “sob luz apropriada” inscritos “nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras”. A memória do espaço, a memória no espaço. Os espaços porém, não possuem consciente ou inconsciente. O retorno de seus espectros é, na verdade, retorno dos espectros do(s) indivíduo(s); dependem de uma leitura dos espaços e das atividades lá realizadas.

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CAPÍTULO 3 – ESPECTROS E MAL DE ARQUIVO

Figura 05 – Independente do que aconteça. Fonte: Própria

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ESPECTROS E MAL DE ARQUIVO

“Mas o balcão de mármore é antigo, está rachado, marcado, entalhado, e embaixo dele está o velho balcão de madeira do fim dos anos vinte, início dos trinta, que acabou parecido com o assento dos velhos bancos dos tribunais, só que com inscrições à faca e cicatrizes e algo que sugeria décadas de comida gorda e deliciosa. Ah!”. Jack Kerouac – Visões de Cody (KEROUAC, 2009, p.19)

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“Independente do que aconteça” anuncia uma das inscrições, ao lado da figura de uma menina dançando, na parede de uma casa abandonada na rua do hipódromo (ver figura 05). Não haveria como ter certeza o que o autor da inscrição quis expressar que, “independente do que aconteça” irá continuar existindo, acontecendo, ou aparecendo. Mas ela dá-nos a pensar: o que continuará,

independentemente

do

que

aconteça?

Deixa-nos

a

responsabilidade de ao menos tentar respondê-la.

Poderia ser: independentemente da pasteurização de edifícios e cultura que vem sendo implantada na região, independentemente do que dizem os panfletos de construtoras, independentemente do quanto se ignore o grito desses

cenários

“abandonados”

e

sua

disparidade

econômica,

independentemente da comercialização de sua história – independentemente do que aconteça, ainda restará, entre infinitas outras, a possibilidade de que as coisas não sejam como são ou não tenham acontecido como dizem. Independentemente do que acontecer, esses espaços serão assombrados por seus espectros.

Conceito central para a filosofia da desconstrução de Jacques Derrida, o espectro desajusta o tempo presente, a presença. Não se pode dizer do espectro que ele está presente, nem que está ausente. Não é presente, nem futuro ou passado, caso se entenda o tempo como uma sucessão de presentes, presente-passado, presente-presente, e presente-futuro. O espectro exige outro entendimento do tempo, pois ele comporta em um instante o passado - com seus traços sem que uma genealogia seja possível, sempre traços de traços que nunca remetem a uma única origem – e as infinitas possibilidades do porvir.

Desenvolvida a partir de estudos sobre a escritura, a filosofia de Jacques Derrida exerceu influência sobre a obra de teóricos importantes para a arquitetura contemporânea, entre eles, Peter Eisenman, Bernard Tschumi e Ignasi Solà-Morales. Sua filosofia não tem a arquitetura e o urbanismo como foco, mas isso não diminui em nada a importância desse pensamento 30

desenvolvido sobre a linguagem, o nosso universo simbólico. Solà-Morales aponta para a importância destes: “Jacques Derrida, desde la desconstrucción desarrolada por la crítica literária, há podido elaborar uma serie de nociones ligadas a la memória, la reproducción del significado y su transmisión que tienen um valor evidente también em la discontinuidad com la que la experiência espacial y comunicacional se produce em la metropoli.” (SOLAMORALES, 2003, p. 71-72)

É, portanto, parte fundamental desse estudo, por problematizar a presença da memória e do significado nas leituras, sejam elas de textos ou de espaços. Peter Eisenman investe na possibilidade de a arquitetura ser vista também, como texto. Por meio de estudos de diagramas, Eisenman tenta inserir os traços de memória do terreno no projeto, este sendo também memória, mesmo que ainda inexistente. Esse processo rompe com a idéia de traço original, ao qual remetem muitos projetos da arquitetura moderna. O sítio não é mais um objeto inanimado à espera da intervenção de um sujeito, ele também possui sua própria dinâmica e sua memória: “[...] a arquitetura não é mais vista como composta de elementos meramente estéticos ou funcionais, mas como um outro contraponto gramatical, que propõe uma leitura alternativa da idéia de sítio e de objeto. Nesse sentido, uma figura retórica passará a ser vista como intrinsecamente contextual, porque o sítio é tratado como um palimpsesto pleno de registros.” (EISENMAN, in NESBITT, 2009, p.197)

Retomando a questão da alteridade, para Eisenman a alteridade na arquitetura é o traço, o duplo que ela produz. Nele está a possibilidade de produção de uma invenção na leitura da arquitetura, pois é o que, produzindose a partir dos espaços, vai além deles. Sem relacionar-se com os traços não haveria, portanto, ética: “O textual ou a textualidade é aquele aspecto do texto que constitui uma condição de alteridade ou de coisa segunda. Um exemplo dessa condição de alteridade na arquitetura é um traço ou um vestígio. Se a arquitetura é primordialmente presença – materialidade, tijolos e argamassa – então a alteridade ou a condição de coisa segunda seria o traço, uma espécie de presença da ausência. O traço nunca pode ser original, porque sempre sugere a possibilidade de um outro como original, como algo que lhe precede.” (EISENMAN, in NESBITT, 2009, p.615)

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Se “cada lugar consiste, na realidade, em muitos lugares a uma só vez” (EISENMAN, in NESBITT, 2009, p.615), e cada tempo consiste de muitos outros tempos simultaneamente, a relação com o outro é sempre possível.

A idéia de disjunção na arquitetura, desenvolvida por Bernard Tschumi, também faz referência aos traços de memória presentes nos sítios. Além de traços de construções e outras configurações espaciais presentes nos espaços, os eventos neles ocorridos também deixam impressões, inscrições. Nesse sentido, toda rua, toda casa, enfim toda arquitetura seria assombrada, como anuncia a citação: independente do que aconteça. Não haveria presença plena, presente puro, este já comportaria sempre os traços de outras configurações espaciais e de outros eventos além de todas as possibilidades do que ainda está porvir: “Na arquitetura, a disjunção implica que nenhuma das partes, em momento algum, pode transformar-se em uma síntese ou totalidade auto-suficiente, mas que cada parte leva à outra e toda construção é desestabilizada pelos vestígios, nela, de uma outra construção. A disjunção também pode ser constituída por vestígios de um evento, de um programa e pode levar a novos conceitos, pois um de seus objetivos é compreender um novo conceito de cidade, de arquitetura.” (TSCHUMI, in NESBITT, 2009, p.191)

Tschumi fala da disjunção da arquitetura, disjunção do espaço o que pode dar a entender um espaço fragmentário, uma união que fora quebrada, explodida. Derrida também fala da disjunção, porém de uma disjunção do tempo. A disjunção, porém não seria fragmentação, mas sim indeterminação. A julgar pela importância do pensamento de Derrida para Tschumi, seria possível que na disjunção da arquitetura ocorra o mesmo que na disjunção temporal que fala Derrida: “Manter junto o que não se mantém junto, e o disparate mesmo, o mesmo disparate, isso não se pode pensar, voltaremos incessantemente a referir-nos a isso como à espectralidade do espectro, senão em um tempo presente deslocado, na junção de um tempo radicalmente dis-junto, sem conjunção assegurada. Não em um tempo de junções negadas, quebradas maltratadas, disfuncionantes, desajustadas, segundo um dis de oposição negativa e de disjunção dialética, mas em um tempo sem junção assegurada nem conjunção determinável. O que se diz aqui do tempo é

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válido também, por conseguinte, ou por isso mesmo, para a história, mesmo se esta última pode consistir em consertar, nos efeitos de conjuntura, e se trata aqui do mundo, a disjunção temporal: ‘The time is out of joint’, o tempo está desarticulado, demitido, desconjuntado deslocado, o tempo está desconcertado, concertado, desconcertado, desordenado, ao mesmo tempo desregrado e louco. O mundo está fora dos eixos, o mundo se encontra deportado, fora de si mesmo, desajustado. Diz Hamlet. Que abriu deste modo uma dessas fendas, muitas vezes seteiras poéticas e pensantes [...]. [Derrida sublinha]” (DERRIDA, 1994, p. 34-35)

Interessante notar que, para Bernard Tschumi, os corpos em movimento não somente relacionam-se com os espaços como os produzem. Sempre para além de si, além da relação pacífica entre sujeito e objeto. Para Tschumi essa relação é uma violência: “Os corpos não somente se movem para seu interior, mas produzem espaços por meio e através de seus movimentos. Movimento – de dança, esporte, guerra – são a intromissão dos eventos nos espaços arquitetônicos.” (TSCHUMI, in NESBITT, 2009, p.181)

O próprio prazer na arquitetura está relacionado a uma leitura desconstrutiva do espaço, na sua exploração, relacionando-se com suas presenças de ausências, entrando na dança de seus espectros: “O prazer do espaço: é impossível exprimi-lo em palavras, é indizível. De maneira aproximativa, pode-se dizer que é uma forma de experiência – ‘a presença da ausência’; diferenças inebriantes entre a superfície e a caverna [...]. levado ao extremo, o prazer do espaço inclina-se para a poética do inconsciente, para o limiar da loucura.” (TSCHUMI, in NESBITT, 2009, p.576).

Mesmo não havendo possibilidade de descobrir as intenções do autor da primeira citação deste capítulo, esta nos conduz, ao menos, à uma resposta: Independentemente do que aconteça a memória desse grito, dessa inscrição, mesmo se destruída, poderá sempre retornar. Mesmo que não retorne nunca, neste instante sempre haverá essa possibilidade. Segundo Derrida, é preciso dançar com os espectros para aprender a viver, mas aprender a viver por si só,

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portanto, em certo sentido, inventar. Dança que quase levou o príncipe Hamlet à loucura. Loucura que é abertura de si ao outro, a relação ética e nãoalérgica. Os espectros são sempre alteridade: “Nada mais necessário, no entanto, do que esta sabedoria. Trata-se da ética mesma: aprender a viver – por si só, por si mesmo” (DERRIDA, 1994, p. 10) “O tempo do ‘aprender a viver’, um tempo sem presente tutor, consistiria nisto, o exórdio nos encaminha para isso: aprender a viver com os fantasmas [...]. E este estar-com os espectros seria também, não somente, mas também, uma política da memória, da herança e das gerações” (DERRIDA, 1994, p. 11)

Aprender, aprender a viver, segundo a concepção de Emmanuel Lévinas. Não um aprendizado dócil, mas em certo sentido violento. Só se pode aprender na dissimetria. O ensinamento sempre vem do outro, outro que é mais do que eu tenho até então: “Só se pode apreender ou perceber o que receber quer dizer a partir do acolhimento hospitaleiro, do acolhimento oferecido ao outro” (DERRIDA, 2004, p.43)

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Figura 06 – Stand de vendas de apartamentos em edifícios residenciais de alto padrão, no terreno onde, antes, existiu a fábrica da União - rua Borges de Figueiredo. De toda a construção, só sobrou a chaminé. Fonte: Própria

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Será que nós, de um modo geral (enquanto cidadãos contribuintes, parte da administração pública) estamos sendo éticos com os terrain vagues? Estamos nos relacionando e respeitando os espaços outros, os espaços de outros? Ou estamos colonizando-os, enterrando-os sobre uma visão hegemônica da classe média e classe média-alta? A chaminé e as inscrições sobre ela – incluindo o “a” de anarquia que, mesmo banalizado, aí pode nos dizer algo – que restou do antigo edifício da união (ver figura 06), em detrimento de todo o restante do conjunto, nos diz o que sobre isso?

As histórias da região (sempre mais que uma), das pessoas que lá vivem ou viveram é domesticada, transformada em símbolos (a chaminé e o revestimento da parede dos stands de venda - imitando os tijolos das antigas fábricas) que visam transmitir estabilidade e cultura, que agregam valor comercial ao produto. São também espectros, resquícios das inscrições no espaço, mas são tratados como mercadoria, partindo de uma visão dócil do tempo que não oferece resistência à lógica do mercado imobiliário. Mas o espectro não é dócil. Não se consegue nunca controlá-lo, prever o momento de sua aparição e seus efeitos, caso contrário não seria espectral, estaria já dado: “Mas ninguém pode nem controlar nem limitar os movimentos do traço fantasmático ou do espectral.” (WOLFREYS, 2009, p. 199)

Os efeitos do espectro não podendo ser calculados, domesticados, podem fazer surgir pensamentos outros, que caminhem na contramão dos esperados por marqueteiros e publicitários das construtoras que se valem deles. Ao invés de estabilidade e cultura, os espectros desestabilizam. Desestabilizam até o próprio tempo: “Momento espectral, um momento que não pertence mais ao tempo, caso se compreenda de baixo desse nome o encadeamento das modalidades do presente (presente passado, presente atual: agora; presente futuro). Estamos questionando neste instante, estamos nos questionando sobre este instante que não é dócil ao tempo, pelo menos ao que assim chamamos. Furtivo e intempestivo, o aparecimento do espectro não pertence a esse tempo [...]” (DERRIDA, 1994, p. 11)

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Novamente: haveria ética na relação que venho observando das construtoras com esses terrain vagues? Eu digo que não. Sugerem-nos a existência de um único fio condutor para essas leituras/explorações. A paisagem histórica não se oferece passiva à pura contemplação. Exige uma responsabilidade que vai além de um passar adiante, ou de um passar por cima. Exige que seja interpretada. Mesmo por que, como veremos adiante, não se trata somente do passado. Esses espaços da memória relacionam-se com o futuro, com a promessa. Dupla responsabilidade, portanto: “O que o olho da mente é capaz de decodificar do meramente real ou material é simultaneamente uma questão de recepção e [Wolfreys sublinha] deciframento, de receber a citação encriptada do outro. Além disso, não é uma questão unicamente de se abrir a padrões ocultos, mas também aos ecos, de outro modo, invisíveis do passado, cuja visão distorce e desproporciona o presente da contemplação.” (WOLFREYS, 2009, p. 203)

Não só a(s) história(s) do que tais espaços já foram, mas também o próprio esvaziamento desse sentido é espectral. Ao perderem àquilo que sustentava a aparente identidade da região inscreveu-se a ausência desta. Mas mesmo a identidade não resistiria à aparição do espectro, se este “vem a perturbar a identidade ou identificação” (WOLFREYS, 2009, p. 199-200). A identidade, assim como o sentido, são construções e não propriedades naturais. As percepções deste espaço evidentemente alteram-se. Tschumi já havia nos alertado para a capacidade dos eventos deixarem inscrições na memória dos espaços. Derrida: “Deste modo, o relevo e o desenho das estruturas tornam-se mais visíveis quando o conteúdo, que é a energia viva do sentido, se encontra neutralizado. Um pouco com a arquitetura de uma cidade desabitada ou destruída, reduzida ao esqueleto por uma catástrofe da natureza ou da arte. Cidade não mais habitada mas também não simplesmente abandonada; antes assombrada pelo sentido e pela cultura. Este assombramento que a impede aqui de voltar a ser natureza [...]” (DERRIDA, 2002, p. 15-16)

Para além da paisagem meramente contemplativa, Derrida fala ainda de outra característica dos espectros: eles nos olham sem que possamos vê-los diretamente. Têm-se a sensação de ser olhado por algo ali, na paisagem, mas 37

um ali indefinível. Novamente questão de responsabilidade, uma vez que estamos sendo observados sempre estaremos nos reportando aos espectros. Observados pelas gerações anteriores e por elas convocados a responder por elas, que já não o podem mais responder ao que é feito de suas histórias. A isso Derrida dá o nome de “efeito de viseira” (1994), em comparação à viseira do espectro do pai do príncipe Hamlet: “Este algum outro espectral que nos olha; sentimo-nos olhados por ele, fora de toda sincronia, antes mesmo e para além de qualquer olhar de nossa parte, segundo uma anterioridade (que pode ser da ordem da geração, de mais de uma geração) e uma dissimetria absolutas, segundo uma desproporção absolutamente incontrolável. A anacronia faz a lei aqui. Que nos sintamos vistos por um olhar com que sempre será impossível cruzar, aí está o efeito de viseira.” (DERRIDA, 1994, p. 23)

A aparição do espectro é sempre retorno, sempre repetição, mas nunca do mesmo. Não se encontra uma origem, porque a primeira aparição já retorno. E, como a memória, a cada aparição é recriado.

Mas não há somente uma tendência ao esquecimento ou da imposição de um modelo pasteurizado sobre os edifícios ou conjuntos arquitetônicos da industrialização

atualmente

abandonados, ou

em

precário

estado

de

conservação. Mesmo que com certa demora, estes foram reconhecidos com patrimônios culturais por órgãos de proteção ao patrimônio, para o bem e para o mal. Para o mal em casos, diga-se de passagem, recorrentes, de museificação dos espaços urbanos mantidos congelados. Nesses casos a traição consistiria em não interpretar a herança, em acatá-la pura e simplesmente. O “filho por demais filial e um mau filho”, pois um “filho dócil escuta seu pai, copia-o, mas não entende nada dele [...]” (DERRIDA, 1994, p.165). Não muito diferente da domesticação da história nos slogans e panfletos dos novos condomínios residenciais.

Algumas manifestações preocupadas com a preservação dos edifícios da industrialização surgem na França do final do Século XVIII, como reação ao “vandalismo revolucionário”, ganhando alguma projeção em outros países da 38

Europa no século XIX (KÜHL, 2008, P. 37). Surge também a expressão “arqueologia industrial”, que aparece primeiramente em Portugal no título de um texto de 1896 de Francisco de Souza Viterbo. Esta retornará em um artigo de Michael Rix na Inglaterra de 1955, também decorrente da preocupação com edifícios ameaçados de demolição. Segundo Beatriz Mugayar Kühl: “O tema [preservação do patrimônio da industrialização] ganhou maior vigor e atraiu a atenção de público mais amplo sobretudo a partir dos anos 1960, quando importantes testemunhos arquitetônicos do processo de industrialização foram demolidos (...)” (2008, P. 38).

Nota-se uma maior valorização destes espaços sempre que correm perigo iminente de desaparecerem, ou quando alguns exemplares mais chamativos são demolidos. Quando: “Esses edifícios, ou inteiros complexos, estavam (e estão) sob constante ameaça pela sua obsolescência funcional, pelo crescimento das cidades e pela pressão especulativa imobiliária.” (KÜHL, 2008, P. 38)

Curiosa apreensão, pois esses espaços só vêm a tomar lugar na sua própria ausência. Praticamente inexistem para a cidade “comum” enquanto estão lá, em seus lugares, disponíveis para visitação, como um museu mesmo – não importando muito o estilo e condições de vida daqueles que lá moram. Porém, a ameaça de sua desaparição nos coloca em estado de alerta. Ela indica que as coisas podem desaparecer. Mas se fosse algo inútil, indesejado e indesejável não haveria por que se preocupar. Mas essa ameaça de desaparição vem nos falar da morte. Anunciam que o que um dia foi próspero, pode enfim desaparecer. Não desaparecer por completo, como vimos, deixaria rastros de sua presença. Mas perderia muito de sua capacidade de arquivo. Esses espaços outros, espaços onde mora o passado, vem nos falar do futuro, não somente deles, mas do nosso (enquanto estrangeiros a esses espaços). Eles nos anunciam: “Paradoxalmente, a permanência dessas paisagens evidenciase quando se anuncia sua próxima desaparição. Pois é aí que se confirma seu destino: tornar-se ruína. A majestade da grande cidade se acompanha de sua decrepitude. É a medida que se destrói que a cidade se aflora como permanência, As paisagens urbanas estão sempre em devir.

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A modernidade – na sua relação com a morte – remete à antiguidade porque esta revela uma propriedade comum a ambas: fragilidade. É porque o antigo nos aparece como ruína que o aproximamos do moderno, igualmente fadado à destruição. A cidade moderna é o palco de transformações incessantes, que revelam sua precariedade. Ruínas e obras se confundem. A morte já se apoderou dos edifícios que estamos construindo. O antigo se aproxima do moderno pela manifestação da caducidade do presente.” (PEIXOTO, 2009, p. 274-275)

Não somente esquecidos, mas também rejeitados, recalcados o retorno dos terrain vagues, paradoxalmente devido à sua desaparição é unheimlich. E como tal, expõe “os angustiantes problemas de identidade do eu, do outro, do corpo e de sua ausência” (VIDLER, in NESBITT, p. 620). Estes espaços passam a serem então, arquivos necessários para que possamos estudar nossa história. E é assim que serão considerados pelas mais diversas correntes teóricas de restauro. Não só os espaços, mas também costumes que de um modo ou de outro ainda podem ser percebidos no dia-a-dia dos habitantes um pouco mais “afastados” da cultura atual: museificação do imaterial. Festas e manifestações culturais são tombadas como bens públicos. Ganha-se o medo de perder aquilo que nem sequer interessaria se não estivesse prestes a desaparecer. Questão de necessidade, “pois não há arquivo sem o espaço instituído de um lugar de impressão” (DERRIDA, 2001, p. 8). Como arquivo, são os locais da memória, mas não são a memória em si. Se eles ganham esse valor é justamente devido a ausência dessa memória, devido a impossibilidade de se recorrer à ela sem examinar o arquivo. Derrida: “Pois o arquivo, se esta palavra ou esta figura se estabiliza em alguma significação, não será jamais a memória, nem a anamnese em sua experiência espontânea, viva e interior. Bem ao contrário: o arquivo tem lugar em lugar da falta originária e estrutural da chamada memória.” (2001, p.22)

Mas se o arquivo é repetição, Derrida alerta-nos para a relação da repetição com a pulsão de morte. Isso é o que Derrida irá chamar mais adiante de Mal de Arquivo (Archive Fever), pois este trabalha contra-si: “O arquivo é hipomnésico. E notemos de passagem um paradoxo decisivo [...]: se não há arquivo sem consignação em algum lugar exterior que assegure a possibilidade da memorização, da repetição, da reprodução ou da reimpressão, então lembremo-nos também que a própria repetição, a lógica

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da repetição, e até mesmo a compulsão à repetição é, segundo Freud, indissociável da pulsão de morte. Portanto, da destruição. Conseqüência: diretamente naquilo que permite e condiciona o arquivamento só encontraremos aquilo que o expõe à destruição e, na verdade, ameaça de destruição, introduzindo a priori o esquecimento e a arquiviolítica no coração do monumento. No próprio ‘sabe de cor’. O arquivo trabalha sempre a priori contra si mesmo. [Derrida sublinha]” (DERRIDA, 2001, p.22-23)

Espaços e vidas museificadas, separadas por temas, isso é que não pode pretender a relação com os terrain vagues. Não por poderem ser considerados arquivos que estes espaços e vidas são objetos à disposição de nossa eterna curiosidade. Mas mal de arquivo, não é só o mal do arquivo, mal pro arquivo. Não o arquivo que está com mal de arquivo, mas se alguém estiver com esse mal (fever), seremos nós: “Estamos com mal de arquivo (en mal d’archive). Escutando o idioma francês e nele, o atributo “en mal de”, estar com mal de arquivo, pode significar outra coisa que não sofrer de um mal, de uma perturbação ou disso que o nome ‘mal’ poderia nomear. É arder de paixão. É não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde.” [Derrida sublinha] (DERRIDA, 2001, p.118)

O que se lê do arquivo é sempre um retorno, uma revenânce. Pode-se ler que uma inscrição em uma parede: “independente do que aconteça” e dela podem retornar fantasmas. Incansavelmente insisto ainda nessa característica fundamental do retorno: não retorna o mesmo, não se retorna ao mesmo. Como toda memória, recria-se quando retorna. A tradução não é pura. O arquivo também produz memória: “[...] a estrutura técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável em seu próprio surgimento e em sua relação com o futuro. O arquivamento tanto produz quanto registra o evento.” (DERRIDA, 2001, p.29)

Imensa responsabilidade legada aos restauradores, administradores públicos e proprietários legais desses espaços, que exercem a função de arcontes, administradores ou guardiões desses arquivos. Simultaneamente guardiões e produtores de arquivo, pois “o arquivista produz arquivo, e é por isso que o arquivo não se fecha jamais. Abre-se a partir do futuro” (DERRIDA, 2001, p.110). Há, nesse ponto, três paralelos com a Teoria da Restauração de Cesare Brandi. Um deles: a responsabilidade legada ao indivíduo no momento 41

em que percebe algo como obra de arte. Entende-se, aqui, obra de arte como “produto especial da produção humana” (BRANDI, 2008, p.27). Para Brandi: “[...] apesar de o reconhecimento dar-se sempre na consciência singular, naquele mesmo momento pertence à consciência universal, e o indivíduo que frui daquela revelação imediata, impõe a si próprio o imperativo categórico como imperativo moral, da conservação.” (BRANDI, 2008, p.31)

O segundo é a recriação da obra de arte, enquanto tal, a cada vez que é experimentada; e também que “até que essa recriação ou reconhecimento ocorra, a obra de arte é obra de arte só potencialmente [Brandi sublinha]”.

O terceiro paralelo com a interpretação derridiana sobre arquivo e a idéia brandiana de restauro: para os dois, o arquivo trata do futuro, do porvir; da responsabilidade legada ser transmitida ao futuro, ter “continuidade”, ser recriada. Brandi define a restauração: “[...] a restauração constitui o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão para o futuro.” (BRANDI, 2008, p.29)

Para Derrida, o arquivo, assim como o próprio conceito de arquivo, está ligado não só ao porvir, como inesperado, desconhecido, mas também como promessa: “Num sentido enigmático que se esclarecerá talvez (talvez, porque ninguém deve ter certeza aqui, por razões essenciais), a questão do arquivo não é, repetimos, uma questão do passado. Não se trata de um conceito do qual nós disporíamos ou não disporíamos já sobre o tema do passado, um conceito arquivável de arquivo. Trata-se do futuro, a própria questão do futuro, a questão de uma resposta, de uma promessa e de uma responsabilidade para o amanhã. O arquivo, se queremos saber o que isto teria querido dizer, nós só o saberemos num tempo por vir, daqui a pouco ou talvez nunca. Uma Messianidade espectral atravessa o conceito de arquivo e o liga como a religião, como a história, como a própria ciência, a uma experiência muito singular da promessa. [Derrida sublinha]” (DERRIDA, 2001, p.50-51)

O arquivo seria, assim, indissociável da espectralidade. Necessário para a relação subjetiva entre indivíduo e memória – dos espaços, das civilizações, e também suas próprias. Desejo de memória como vontade de invenção:

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“Porque não haveria futuro algum, nenhum futuro enquanto tal, nenhuma novidade [ou invenção] de qualquer modo, sem algum tipo de vínculo histórico, memória, retenção ou tradição, assim, sem algum tipo de síntese’.” (WOLFREYS, 2009, p. 166-167)

Se é verdade que, como diz Derrida, “toda época tem sua cenografia – temos nossos fantasmas” (1994, p.162), quais seriam (sempre mais de um) nossos fantasmas? Claro é que essa resposta exige mais do que este estudo comporta, mas ouso aqui especular ao menos uma. Nossas cidades, estilos de vida, confortos e problemas, assentam-se sobre as condições de vida à que nossos antepassados foram submetidos, para que a industrialização se desenvolvesse. Vender sua (nossa também) história – excluindo tudo que poderia vir a nos incomodar e angustiar – deve trair algo.

Devemos falar com os espectros então, não somente deles, mas com eles. Aprender à, assim como Gordon Matta-Clark, abrir fendas nas leituras dos espaços construídos que nos legam a responsabilidade de sua memória e nos convocam à resposta – aprender a viver, inventar – se vivemos nessa espera: “infinita, fora de proporção, sempre em curso, [...] a espera sem horizonte acessível, a impaciência absoluta de um desejo de memória.” (DERRIDA, 2001, p.9)

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CAPÍTULO 4 – INVENÇÃO DA CIDADE SUBJETIVA

Figura 07 – Conical intersect, 1975. Matta-Clark. Fonte: Internet. Disponível em: http://artobserved.com/. Acesso em: 04 nov. 2010.

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INVENÇÃO DA CIDADE SUBJETIVA

“Eis-me na praia provinciana. Que as cidades se acendam de noite. Minha jornada terminou, abandono a Europa. O ar marinho queimará meus pulmões, climas ignotos me curtirão. Nadar, desbastar verdes, caçar, sobretudo fumar; tomar bebidas fortes como metal fundido, como faziam nossos caros ancestrais em volta do fogo. Voltarei, com membros de ferro, a pele sombria, olhar furioso; pela máscara, me julgarão raça forte.”. Arthur Rimbaud – Uma temporada no inferno (RIMBAUD, 2008, p.27)

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Eis aqui, para onde todos os conceitos estudados neste trabalho levam: os processos de subjetivação. Retomando a questão anunciada no prólogo – com o fim das certezas absolutas em todas as áreas do conhecimento e da hegemonia das crenças na religião e no progresso científico – ao ser humano contemporâneo não basta mais somente aprender/apreender o mundo como objeto, é necessário inventá-lo; inventar também formas de aprendê-lo e apreende-lo. Se Julian Wolfreys – em sua obra de introdução ao pensamento de Jacques Derrida – diz que nenhuma novidade ou invenção é possível sem história, sem memória é por que a idéia de criação, enquanto dom, concessão divina transcendental, também é posta em cheque. Ao invés de criação, invenção. Inventa-se sobre o mundo, sobre a história, inventa-se a si-mesmo no mundo. A invenção impossível sem o mundo, impossível sem os espectros. Ainda Wolfreys: “Uma suspeita surge de que invenção não possa ser criativa. Ela produz nada a partir do nada. Em vez disso, invenção é o signo de uma resposta. Ela é uma reação, ou uma descoberta daquilo que já está aí. Ela é um descobrimento que é também um encobrimento. Alguma coisa vem, para parafrasear Freud, vem à luz, que foi esquecida ou enterrada. [Wolfreys sublinha]” (WOLFREYS, 2009, p.168)

Mas o que seria essa invenção, senão uma invenção de si, invenção de uma leitura do mundo, portanto a própria subjetividade. Gilles Deleuze, ao comentar a obra do amigo Michel Foucault, dá-nos uma breve, definição (definição que não é o fim, mas uma definição necessária para se continuar a pensar o tema) da subjetivação: “[...] quando Foucault chega ao tema final da ‘subjetivação’, essa consiste essencialmente na invenção de novas possibilidades de vida, como diz Nietzsche, na constituição de verdadeiros estilos de vida [...]” (DELEUZE, 1998, p.114)

Inventar não é mais privilégio dos artistas, ao menos não na concepção costumeira de artistas como aquele que confecciona objetos com uma plástica de especial caráter simbólico. É questão de sobrevivência, então todos os têm a necessidade de serem artistas para inventarem sua própria vida. “Criam-se novas modalidades de subjetivação do mesmo modo que um artista plástico cria novas formas a partir da palheta de que dispões.” (GUATTARI, 2006, p.17). Contudo, utilizar-me-ei, aqui, do exemplo de um artista plástico: Gordon 46

Matta-Clark. Às fendas que este inseriu em diversos edifícios assemelham-se à concepção derridiana de invenção. Contam histórias e descobrem estruturas escondidas fazendo passar ecos de outros tempos e outros lugares, deslocam paisagens e obrigam quem as contempla a repensar, a olhar com mais cuidado, a andar em volta; as primeiras máscaras dão lugar a outras máscaras e assim por diante. Uma arte que desconstrói os espaços. Conveniente chamar a atenção aqui para o estudo de Wolfreys sobre a desconstrução: essa, resistente a toda de-finição. Para Wolfreys não se trata de uma desmontagem de algo construído, mas de um des-construe. Contrue que, em inglês, significa interpretar, interpretação. Des, mais próximo ao sentido de deslocamento que de destruição e desmontagem. Portanto um deslocamento das interpretações, dos discursos. Wolfreys, sobre o pensamento derridiano: “De fora daquela configuração pela qual a invenção toma lugar vem a possibilidade que ela ‘origine um evento, conte uma história ficcional e produza uma máquina ao introduzir uma disparidade ou fenda no uso costumeiro do discurso’.” (WOLFREYS, 2009, p.168-169)

A invenção tem lugar no mundo, e sempre com uma promessa do porvir. Traz as possibilidades do futuro para o agora, nesse sentido é de fato inventiva, aí está o novo da invenção. “A invenção é, portanto, marcada por aquilo que vem não somente do passado, mas também do futuro, tornando-se visível.” (WOLFREYS, 2009, p.175-176). Mas a invenção não se dá somente nesse instante do descobrimento, ela é o processo, afinal “[...] não se está mais diante de uma subjetividade dada como um em si, mas face à processos de autonominação, ou de autopoiese [...]” (GUATTARI, 2006, p.18).

Guattari, em seu livro Caosmose (2006), dedica especial atenção a essas questões em um capítulo intitulado Restauração da cidade subjetiva. Ora, se esta deve ser restaurada, significa que foi perdida? Seu texto como visto até agora, insiste que os espaços construídos são máquinas que não cessam de engendrarem-se em processos de subjetivação. Mesmo que essa restauração indique para uma constante perda e conseqüente restauração da subjetividade, e isso se assemelhe ao processo de desterritorialização e

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territorialização, não encaixará no pensamento que subjetividade é o processo em si. Por este motivo, intitulei este capítulo de invenção da cidade subjetiva.

Como a cidade com seus espaços construídos e seus fluxos – de pessoas, automóveis, pássaros e ratos – intervém nos processos de subjetivação? Essa é a questão central para a arquitetura e para o urbanismo neste trabalho. Ora, o que vimos de um modo geral, até agora, é que os espaços não cessam de produzir e reproduzir significados para nós. Nem o espaço, nem o tempo estão à disposição para pura contemplação, estes nos interpelam com sensações, questões, possibilidades. Exigem que nossa interpretação, e não param de exigi-la um só instante, preciosos instantes. Para Félix Guattari a cidade é uma máquina que produz incessantemente, dentre outras coisas, subjetividade: “Quer tenhamos consciência ou não, o espaço construído nos interpela de diferentes pontos de vista: estilístico, histórico, funcional, afetivo... Os edifícios e construções de todos os tipos são máquinas enunciadoras. Elas produzem uma subjetivação parcial que se aglomera com outros agenciamentos de subjetivação.” (GUATTARI, 2006, p.157-158)

Não é que nesse espaço-tempo vivos é impossível que nós consigamos “estar em casa”, sentir-nos em casa. Mas somos postos fora de casa constantemente, retornamos a casa (sensação de estar em casa), mas nunca à mesma, nunca retorno do mesmo ao mesmo. Não se trata, também, de uma inversão na relação sujeito-objeto, onde o tempo e o espaço tornam-se sujeitos e nós objetos, jogados de um lado para o outro por eles – o que ocorre são sempre processos de subjetivação. O corpo, o nosso corpo é também uma máquina. Não metáforas de máquinas, mas máquinas mesmo, como advertem Deleuze e Guattari “[...] sente algo, produz algo, e é capaz de fazer teoria disso. Algo se produz: efeitos de máquina e não metáforas” (2010, p.11). Portanto: “Há em toda parte máquinas produtoras ou desejantes, as máquinas esquizofrênicas, toda vida genérica: eu e não eu, exterior e interior nada mais querem dizer” (DELEUZE, GUATTARI, 2010, p.12)

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Grandes avenidas, pequenas vilas, edifícios comerciais, fábricas abandonadas, ciclistas, automóveis, trens se locomovendo, trens apodrecendo; diferentes enunciados, diferentes temporalidades: a cidade é polifônica. Assim como a subjetividade mesma, como diz Guattari: “A subjetividade, de fato, é plural, polifônica [...]” (2006, p.11). O indivíduo não se relaciona apenas com um outro, mas com a alteridade mesma, todo o infinito em um só instante. É no agenciamento desses incomensuráveis enunciados que se dão os complexos processos de subjetivação. Essa alteridade como mais de um outro, infinitos outro, o outro infinito não seria aquilo que possibilita a genialidade? A genialidade segundo o pensamento Derridiano. Assim como a invenção, não mais a genialidade como dom divino, mesmo que essa rompa com toda genealogia, todo gênero. Genialidade na invenção, mesmo que de si-mesmo ou do mundo todo. Portanto a genialidade como re-singularização, como invenção de possibilidades de vida: “[...] uma genialidade consiste talvez sempre em se encontrar, não encontrar a si mesmo, descobrir-se ou inventar-se, cair sobre si mesmo, mas se encontrar entre tantos acontecimentos, de modo aleatório aqui ou lá, em lugar do outro como outro [...]” [eu sublinho] (DERRIDA, 2005, p.12)

Este estudo não aprofunda a questão, mas é importante notar que há paralelos desse pensamento da subjetividade com o projeto da Internacional Situacionista, com os conceitos de jogo e deriva, deveriam possibilitar uma participação verdadeiramente ativa de todos os indivíduos na sociedade (BERENSTEIN, 2003). Se os situacionistas confeccionavam mapas subjetivos das relações dos indivíduos com as cidades, Guattari e Suely Rolnik estudam a cartografia subjetiva, também, do corpo e no próprio corpo.

À toda instante, alteridade como possibilidade. Assim como para Lévinas e Derrida, para Félix Guattari a alteridade também é condição sine qua non para a ética: “Existe uma escolha ética em favor da riqueza do possível, uma ética e uma política virtual que descorporifica, desterritorializa a contingência, a causalidade linear, o peso dos estados de coisas e de significações que nos assediam. Uma escolha da processualidade, da irreversibilidade e da resingularização” [eu sublinho] (GUATTARI, 2006, p.42)

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Irreversibilidade, eu sublinho, pois uma vez lançando-se para “fora de casa” não se poderá mais retroceder. Restará construir outra casa. Eterno jogo de territorialização e desterritorialização. Àquilo que deixamos quando saímos de casa, a antiga casa também, não desaparecerá; Continuará existindo imersa em camadas não superficiais da psique e sempre existirá a possibilidade de, sob a influência de um impulso perceptivo, retornar. Em uma de suas vindas à cidade de São Paulo, à qual dedico este trabalho – interpelado por uma paisagem com pontos de estranhas proporções que o remeteram a sensações tidas na infância, quando às pontes comuns ainda enormes do seu ângulo de visão – Félix Guattari experimentou um desses retornos em um agenciamento espaço-temporal subjetivo: “Um dia, quando eu caminhava com um grupo de amigos em uma grande avenida de São Paulo, senti-me interpelado, ao atravessar uma determinada ponte, por um locutor nãolocalizável. Uma das características dessa cidade que me parece estranha em vários aspectos, consiste no fato de que as intersecções de suas ruas procedem freqüentemente por níveis separados com grandes alturas. Enquanto meu olhar se dirigia de cima para abaixo, para uma circulação densa que caminhava rapidamente, formando uma mancha cinza infinita, uma impressão intensa, fugaz e indefinível invadiu-me bruscamente. Pedi então que meus amigos continuassem sua caminhada sem mim e, como em um eco das paradas de Proust em seus “momentos fecundos” (o sabor da madalena, a dança dos sinos de Martinville, a pequena frase musical de Vinteuil, o chão desnivelado do pátio do hotel de Guermante...), imobilizei-me em um esforço para esclarecer o que acabava de acontecer comigo. Ao fim de um certo tempo, a resposta me veio naturalmente, algo da minha primeira infância me falava do âmago dessa paisagem desolada, algo de ordem principalmente perceptiva.” (2006, p.154)

Um conceito desenvolvido por Deleuze e Guattari ilustra bem os processos de desterritorialização e reterritorialização pelo quais o indivíduo recria sua subjetividade: o ritornelo. O ritornelo é um processo de três tempos. De início não temos um território, estamos imerso no caos, no mundo: “[...] Não temos ainda um território, que não é um meio, nem mesmo um meio a mais, nem um ritmo ou passagem entre meios, o território é de fato um ato, que afeta os meios e os ritmos, que os ‘territorializa’. O território é o produto de uma territorialização dos meios e dos ritmos.” (DELEUZE, GUATTARI, 2010, p.126)

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Depois, constituir um território. Traça-se uma delimitação segura, protege-se do caos exterior: “É muito importante, quando o caos ameaça, traçar um território transportável e pneumático. Se for preciso, tomarei meu território em meu próprio corpo, territorializo meu corpo: a casa da tartaruga, o eremitério do crustáceo, mas também todas as tatuagens que fazem do corpo um território.” (DELEUZE, GUATTARI, 2010, p.128)

Por último, re-abertura do território, desterritorialização, mas não se abre na mesma região, abre-se a outros mundos: “Pensava-se estar no porto, e de novo se é lançado ao alto mar, como diz Leibniz” (DELEUZE, 1998, p.118).

Ora, essas áreas estranhas da cidade, essas pessoas que não aparecem nos cartazes e anúncios de todo tipo, não nos obrigam a levar o pensamento para fora de casa? Desde o início disse que o objeto deste estudo é

um

passeio

Desterritorialização

por do

esses

terrain

pensamento

vagues, provocada

portanto por

sair

de

casa.

desterritorializações

espaciais, visuais, sonoras, temporais. Como os passeios do esquizo de Deleuze e Guattari, não esquizo como entidade médica, mas como processos constantes de subjetivação.

O conceito de ritornelo, não seria a flecha lançada por Friederich Nietzsche ao anunciar o eterno retorno, relançada por Gilles Deleuze e Félix Guattari para outras direções? Esse que é um dos seus mais obscuros conceitos, diversas vezes tido como eterno retorno do mesmo. Justificável, afinal se em Assim falou Zaratustra o eterno retorno anuncia-se deste modo. Porém, Deleuze o interpreta de outro modo: identifica que este é anunciado pelo anão (homem menor) e pelos animais de Zaratustra, deixando-o doente. Zaratustra recuperasse quando compreende o eterno retorno de outro modo; quando compreende que o eterno retorno é seletivo, é afirmação, nunca retorno do mesmo, nunca retorno ao mesmo (MACHADO, 2009): “Não é o mesmo que volta, já que o voltar é a forma original do mesmo, que apenas se diz do diverso, do devir. O mesmo não

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volta, é o voltar que é o mesmo daquilo que devém. Trata-se da essência do eterno Retorno” (1994, p.30)

O eterno retorno, na leitura que Roberto Machado faz, em obra sobre o pensamento deleuziano (2009), não é apenas diferença. O eterno retorno produz diferença: “O eterno retorno é o objeto, o instrumento, ou a expressão da vontade de potência. No eterno retorno, a repetição não é repetição do mesmo, mas do diferente, e a diferença tem como objetivo a repetição. No eterno retorno, a repetição é a potência da diferença. (MACHADO, 2009, p.109)

E ora, se o objetivo de todos esses processos é a invenção de novos estilos de vida; da vida como obra arte, é necessário pensar a obra. E não deixando esse estudo de ser obra, obra literária, retorna aqui, para abrir caminho a uma possível conclusão, uma citação de Emmanuel Lévinas sobra a obra em si: “A obra pensada radicalmente é efetivamente um movimento em direção ao outro que não retorna jamais ao mesmo.” (LÉVINAS, in DERRIDA, 2004, p.18)

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CONCLUSÃO POSSÍVEL

Figura 08 – Spiral Jetty, 1970. Robert Smithson. A Terra e suas dinâmicas próprias. Fonte: Internet – Disponível em: http://trendstrends.blog.com/. Acesso em: 04 nov. 2010.

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CONCLUSÃO POSSÍVEL

Face às complexidades da vida nos grandes centros urbanos – hipervelocidades, desigualdades sócio-econômicos gritantes, explosão demográfica nos guetos, índices elevados de stress, banalização da violência física e psicológica,

desaparecimento

ou

iminência

de

desaparecimento

das

referências históricas e culturais, importação e exportação de [pastiches de] modelos culturais revisados por lógicas estatais e mercadológicas – os arquitetos e urbanistas precisam, urgentemente, debruçar-se sobre a questão da subjetividade se almejam colaborar na construção e transformação de “lugares onde o desejo se pode reconhecer e habitar” (DERRIDA, in NESBITT, 2009, p. 172).

O international style se mostrou utópico e cruel, o conceito de cidade genérica de Rem Koolhaas não o é em menor intensidade. Compreendendo que as cidades vão além do valor de seu solo, da altura de seus arranha-céus, da quantidade de quilômetros de suas avenidas, não se pode mais crer que estudos puramente sócio-econômicos sejam suficientes para analisar a qualidade de vida de seus habitantes.

Por estes motivos fui buscar na filosofia e na psicologia conceitos que contemplem a complexidade da subjetividade – além é claro, dos estudos de arquitetos e urbanistas que já tenham os se debruçado sobre estes.

Busquei pontos de convergência entre todos os pensamentos aqui expostos. Alguns deles extremamente conflitantes como, por exemplo, às disparidades de Gilles Deleuze e Félix Guattari com o pensamento freudiano. Diferença, Ética, e Subjetividade são, para mim, as palavras chave desse trabalho. Trabalho esse que, desenvolvido sobre muitas e longas citações, concluo com mais uma. Mas não uma citação a mais, mas uma citação que não me permitirá concluir, de-finir:

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“Mas tínhamos parado justamente diante de um portal. ‘Olha esse portal, anão’, prossegui; ‘ele tem duas faces. Dois caminhos se juntam aqui; ninguém ainda os percorreu até o fim. Esse longo caminho que vai para trás dura uma eternidade. E aquele longo caminho que vai para a frente é outra eternidade. Esses caminhos se contradizem; encontramse de frente; e é aqui nesse portal que eles se juntam. O nome do portal está escrito no alto: instante. Mas se alguém seguisse por um desses caminhos sem parar e cada vez mais longe, você pensa anão, que eles sempre iriam se opor? [...] Olha esse instante. A partir desse portal chamado instante um longo, eterno caminho se estende para trás: há uma eternidade às nossas costas. Tudo o que pode caminhar não deve necessariamente ter percorrido esse caminho? Tudo o que pode, entre as coisas, acontecer não deve uma vez já ter acontecido, passado, transcorrido? E se tudo já existiu, que acha você, anão, desse instante? Esse portal também não deve já ter existido? E todas as coisas não estão tão firmemente encadeadas que esse momento arrasta consigo todas as coisas futuras? Portanto – também a si mesmo?

Porque tudo aquilo que pode caminhar deverá ainda percorrer uma vez também esse longo caminho que leva para a frente!" (NIETZSCHE, in MACHADO, 2009, p.90)

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Figura 09 – Spiral Jetty, 1970. Robert Smithson. Fonte: Internet – disponível em: http://nikhilm.posterous.com/. Acesso em: 04 nov. 2010.

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