VII Congresso Ibérico de Urbanismo, Paisagem, Frentes de Água e Território – Apreender com os Casos de Sucesso, 11-13 de Outubro de 2007, Ponta Delgada, Açores, Portugal - "Cidades e rios frente a frente – alguns princípios de integração e coerência", Jorge Batista e Silva, Pedro Pinto
RiProCiTy
Cidades e rios frente a frente – alguns princípios de integração e coerência Jorge Batista e Silva1 Pedro Pinto2
Resumo As cidades e os rios sempre desenvolveram ao longo da história uma relação de proximidade e de mútuo respeito e interdependência. A presença da água evoluiu de um valor essencialmente material, ligado à sua utilização económica para a sustentação da actividade humana, para um valor imaterial e quase sensorial, onde se sobrevaloriza o apelo da paisagem, as perspectivas sobre o plano de água ribeirinho, as potencialidades de desenvolvimento do lazer e, também, a proximidade da natureza, que o elemento água tão bem representa, num contexto em que a cidade se vai tornando cada vez menos “natural”. A relação de integração entre rios e cidades apresenta vários cambiantes que decorrem, em grande medida, do seu mútuo posicionamento geográfico. No âmbito do projecto de investigação “Rio e Cidade: oportunidades para a sustentabilidade urbana” (1ª fase), apoiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e desenvolvido no CESUR, foram identificados alguns tipos de relação envolvendo um universo de 75 cidades com frentes de rio em Portugal Continental: cidades com rio diametral, assimétrica, tangencial; cidades de estuário; cidades de foz; cidades de curso médio; cidades de cunha. É nas frentes de água em cidades com rio, entendidas como elementos de interface entre o sistema rio e o sistema urbano, que frequentemente se protagonizam os vários dilemas que se colocam ao desenvolvimento sustentável das cidades: o natural e o artificial, o rio como barreira ou elemento integrador, homogeneização ou defesa da complexidade, controlo ou adaptação, etc. Revisitando a “Pattern Language” de Christopher Alexander e outros autores determinantes na compreensão da complexidade e da sustentabilidade urbana, propõem-se alguns princípios que podem promover uma boa relação de integração entre cidades e rios e defender a coerência das intervenções nas suas frentes. Palavras-chave:
frentes
de
rio,
integração,
tipo-morfologias,
cidades,
rios,
complexidade, integração
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Engº Civil, Professor do IST, membro investigador do CESUR,
Av. Rovisco Pais, 1049-001 Lisboa,
[email protected], TM: 96 265 90 76 2
Engº do Território, Bolseiro de Investigação, CESUR
Av. Rovisco Pais, 1049-001 Lisboa,
[email protected], Tel: 21 841 83 11
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1. Introdução Os rios desempenharam um papel primordial na emergência da Sociedade Humana, marcando presença em praticamente todas as etapas da sua evolução e, em particular, no processo de sedentarização. A cidade surgiu de forma aparentemente espontânea e autónoma em diferentes civilizações e épocas, sendo um dos factores comuns a todos estes processos a presença física de rios. No território português esta relação foi evidente e forte em diversos períodos. O sistema de centros urbanos resultante foi profundamente marcado pelo estabelecimento de sinergias com o sistema hidrológico. Em resultado disto, 77 das 134 cidades de Portugal Continental podem ser consideradas cidades fluviais, conjunto a que se retiraram aquelas que possuíam cursos de água de menor dimensão. Tendo em conta a significância do fenómeno, poderá parecer surpreendente a reduzida relevância que as questões da relação entre cidade e rio parecem ter tido até muito recentemente. Parece assistir-se actualmente a uma mudança de paradigma3, tendente a um muito superior reconhecimento da necessidade de salvaguarda ambiental e a valorização do corredor fluvial e suas margens como elemento fundamental para a melhoria da qualidade de vida das cidades. A melhoria significativa da qualidade da água em alguns rios nacionais terá contribuído decisivamente para uma maior receptividade desta reaproximação de cidade e rio – influindo particularmente na recuperação da imagem dos rios e na mentalidade das populações ribeirinhas. Um conjunto de projectos de grande relevância económica e social, muitos deles enquadrados pelo Programa Polis, vieram acelerar a assimilação de tipologias de intervenção inovadoras, onde se destaca uma progressiva adopção de soluções de engenharia natural, com consequências na melhoria da gestão hidráulica. Desta forma, é possível resolver episódios recorrentes de cheias, com manutenção da função ecológica dos corredores ripícolas. A abordagem necessária a uma intervenção que seja capaz de assegurar a compatibilização de actividades humanas e contínuos naturais requer, no entanto, o recurso a novas práticas de planeamento e gestão, com abordagens mais holísticas, capazes de interpretar o comportamento sistémico de rio e cidade e de optimizar o benefício para a qualidade de vida urbana destas intervenções.
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SARAIVA, M.G. (1999), pp.24.
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2. Tipo-morfologia da relação rio-cidade em Portugal Continental Na sequência da investigação realizada pela equipa do projecto RiProCity e no âmbito da elaboração da dissertação de mestrado “A Cidade Fluvial em Portugal” (Pinto,2007), procedeu-se ao estudo das 75 cidades fluviais de Portugal Continental. Este universo de análise amplo permitiu realizar uma análise das características tipo-morfológicas destas cidades, por forma a caracterizá-las e desenvolver metodologias e princípios de intervenção promotores de uma maior integração entre cidade e rio, dirigidas a cidades fluviais com diferentes características. A forte litoralização do fenómeno urbano repercute-se, naturalmente, numa idêntica concentração das cidades fluviais na faixa litoral, com destaque para as concentrações do Noroeste/Área Metropolitana do Porto e Área Metropolitana de Lisboa, onde se situam mais de 35 cidades fluviais. Ainda assim, cidades como Moura, na bacia do Guadiana, ou Miranda do Douro e Bragança, na bacia do Douro, configuram situações de excepcional interioridade, mas nem por isso menos interessantes como casos de estudo. Partindo de um vasto conjunto de parâmetros de análise das características de cidade, rio, e relação rio-cidade, medidos para cada uma das 75 cidades, foi possível efectuar uma análise estatística multi-variada dos parâmetros de análise, conduzindo a um conjunto de agrupamentos segundo as características das cidades fluviais. Deste modo, concluiu-se pela criação de 3 critérios de classificação das cidades fluviais: Posição da cidade no curso do rio
Figura 1 – Tipologias de cidades fluviais: 1. Cidade Estuarina; 2. Cidade de Foz; 3. Cidade de Curso Médio; Cidade de Curso Superior
1. Cidades Estuarinas: cidades situadas diante de estuários, tipicamente com largura superior a 2 km. Neste caso, a relação directa com a margem oposta é fortemente restringida, mas em compensação é possível estabelecer formas de ocupação da frente ribeirinha comparáveis com as de uma frente marítima.
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2. Cidades de Foz: cidades situadas no curso inferior do rio, próximo ou na sua foz, onde a largura do rio ultrapassa frequentemente os 200-300m. 3. Cidades de Curso Médio: agrupam-se, aqui, todas as cidades que não apresentem características excepcionais relacionadas com o vale, situadas nos médios ou inferiores dos rios, mas não na sua foz. Trata-se do conjunto que agrupa a grande maioria das cidades fluviais portuguesas. 4. Cidades de Curso Superior: são aquelas cujas características relacionadas com a amplitude altimétrica, o declive das encostas o afastamento à costa ou o reduzido caudal produzem situações de peculiar relação entre rio e cidade. A existência de barreiras físicas tende a implicar soluções diferenciadas para promover a integração de rio e cidade. Consoante a situação da cidade no curso do rio, as características do vale e a relação que tenderá a estabelecer-se entre cidade e rio alteram-se dramaticamente. Numa cidade de curso superior, a largura do rio tende a ser muito reduzida, mas a amplitude altimétrica pode representar um obstáculo intransponível. Já numa cidade estuarina, colocar-se-ão questões como a dificuldade do estabelecimento de uma franca ligação à margem oposta, ou a necessidade de encontrar outra escala para as intervenções na frente ribeirinha. Relação morfológica cidade-rio
Figura 2 – Tipos de relação cidade-rio: a. Cidade de Colina; b. Cidade de Esporão; c. Cidade de Vale
a. Cidade de Colina: aquela onde as características orográficas produzem algum tipo de barreira ao acesso directo ao rio, com a existência de um desnível acentuado entre o núcleo central da cidade e as margens do rio. b. Cidade de Esporão: situações particulares do caso anterior onde a cidade, ou o seu núcleo central, se situa num esporão situado na confluência de dois rios, formando um promontório envolvido por dois cursos de água.
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c. Cidade de Vale ou de Planície: os restantes casos, onde a amplitude altimétrica não provoca qualquer impedimento no acesso directo à água.
Figura 3 – Tipos de relação cidade-rio: d. Cidade de Porto; e. Cidade de Albufeira
d. Cidade de Porto: nestas cidades, a existência de instalações portuárias na primeira frente de água provoca restrições ao acesso directo ao plano de água. e. Cidade de Albufeira: o represamento do rio a jusante destas cidades cria um plano de água (albufeira) com características singulares. Nas cidades de colina e de esporão, o acesso directo ao plano de água é fortemente condicionado. No entanto, o sistema de vistas para o rio pode, e deve, constituir um factor de valorização paisagística e modelador da imagem destas cidades, que poderão ainda contar com as encostas sobranceiras como elemento fundamental da estrutura verde das cidades. Já nas cidades de vale, ou de planície, o plano de água deverá estar plenaemnte acessível, permitindo o seu usufruto e a criação de uma grande variedade de espaços nas suas margens. As cidades de porto ou de albufeira são situações particulares dos 3 casos anteriores, onde a introdução de elementos artificiais gera um tipo de uso de solo de elevada importância económica e cultural, mas fortemente restritiva do acesso directo ao rio (porto), ou cria um plano de água permanente que viabiliza usos singulares (albufeira). Posição do rio relativamente à cidade
Figura 4 – Posição do atravessamento da cidade pelo rio: i. Diametral; ii. Assimétrico; iii. Tangencial
i.
Atravessamento Diametral: o rio cruza a cidade seccionando-a em duas margens de áreas e características comparáveis, isto é, cruza o centro da
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cidade. É nestas cidades que a ligação cultural e física se faz sentir de forma mais intensa, ou seja, onde a “presença do rio na cidade” é mais evidente. ii.
Atravessamento Assimétrico: o rio divide a cidade em duas margens, mas em posição excêntrica, sendo uma das margens dominante, em dimensão e funções, sobre a outra. Dependendo das formas de integração do rio, e dos próprios instrumentos de gestão urbanística, poderá haver uma certa tendência para negligenciar a expansão, tipicamente mais acelerada e desordenada, na “margem oposta”, que poderá ser em parte influenciada pela promoção de um número superior de atravessamentos.
iii.
Atravessamento Tangencial: a cidade desenvolve-se apenas numa das margens do rio. Nestes casos, não se colocarão grandes questões relacionadas com o “atravessamento” do rio, mas sim com o “acesso” ao rio. A possibilidade de o centro da cidade tender a afastar-se das margens do rio, com a expansão da cidade, poderá ser contrariada com a recuperação de usos e criação de espaços atraentes na frente ribeirinha. Tipicamente, a cidade fluvial portuguesa é uma cidade de médio curso, de vale e
assimétrica. É também nestas cidades que as soluções que promovam uma superior integração entre cidade e rio tenderão a ser mais diversificadas, dado que existe um mínimo de obstáculos geomorfológicos ou urbanísticos a impedir que tal aconteça. Isto não significa, no entanto, que a concretização de intervenções sobre a frente ribeirinha, ou sobre a própria estrutura urbana, conducentes a uma aproximação de cidade e rio se limite a este tipo de cidades. Bem pelo contrário, a adopção de soluções inovadoras, ajustadas a situações de excepção, como a existência de um grande desnível ou a presença de um porto, tenderão a resultar em espaços singulares, que poderão ser atractivos e úteis precisamente pela diferença que marcam relativamente à norma. Não haverá nenhuma cidade onde as relações de acesso, atravessamento, ou apropriação das margens por parte das populações ribeirinhas, ou onde a salvaguarda e beneficiação dos sistemas ambientais, dos quais o corredor fluvial forma uma componente fundamental, não possam ser alvo de intervenções que produzam melhorias significativas, quer a nível sócio-urbanístico, quer a nível do ambiente físico. A classificação das 75 cidades fluviais segundo os três critérios apresentados, designada de classificação tipo-morfológica, é apresentada no Quadro 1.
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Posição da Cidade no Curso do Rio: 1. Estuário 2. Foz 3. Curso Médio 4. Curso Superior
Abrantes Águeda Alcácer do Sal Alcobaça Almada Almeirim Amarante Amora Aveiro Barcelos Barreiro Braga Bragança Chaves Coimbra Entroncamento Ermesinde Esposende Fafe Figueira da Foz Gafanha da Nazaré Guimarães Ílhavo Lagos Lamego Leiria Lisboa Lordelo Loures Maia Marco de Canaveses Matosinhos Mealhada Miranda do Douro Mirandela Montemor-o-Novo
3. 3. 2. 3. 3. 1. 3. 3. 1. 2. 4.* 3. 1. 4. 4. 3. 3. 4. 4. 2. 4. 2. 2. 4. 2. 2. 4. 3. 1. 3. 4. 3. 4. 3. 4. 3. 4. 2. 3. 4. 3. 4. 3. 3.
Tipo de Relação Cidade-Rio: a. Colina b. Esporão c. Vale d. Porto e. Albufeira a. e. c. c. c. a. c. a. c. c. c. c. c. c. a. c. c. a. c. c. c. c. a. b. c. d. c. d. c. c. c. a. c. c. d. a. c. c. b. e. c. d. c. a. b. e. c. e. a.
Posição do Rio Relativamente à Cidade: i. Diametral ii. Assimétrica iii. Tangencial
ii. ii. ii. ii. iii. iii. ii. iii. i. ii. iii. ii. ii. ii. ii. iii. ii. iii. iii. iii. iii. iii. iii. iii. iii. i. ii. iii. ii. iii. i. iii. iii. i. iii. iii. ii. iii.
Posição da Cidade no Curso do Rio: Montijo Moura Odivelas Oliveira de Azeméis Ourém Ovar Paços de Ferreira Paredes Peso da Régua Pombal Ponte de Sôr Portimão Porto Póvoa de Santa Iria Rebordosa Rio Maior Sacavém Santa Comba Dão Santarém Santo Tirso São Mamede de Infesta Seixal Setúbal Silves Tavira Tomar Tondela Torres Novas Torres Vedras Trofa Vale de Cambra Viana do Castelo Vila do Conde Vila Franca de Xira Vila Nova de Famalicão Vila Nova de Gaia Vila Real Vila Real de Santo António Vizela
Tipo de Relação Cidade-Rio:
1. 4. 4. 4. 4. 2. 3. 4. 3. 4. 3. 3. 4. 3. 2. 2. 1. 2. 4. 4. 3. 3. 4. 3. 3. 3. 4. 1. 1. 3. 4. 2. 3. 3. 3. 3. 4. 3. 4. 3. 3. 4. 2. 2. 1. 2. 4. 2. 3. 4. 2. 3. * Canais junto à Ria de Aveiro
c. a. c. c. c. c. c. c. c. e. c. c. c. a. c. c. a. c. c. a. e. a. c. c. c. c. d. c. c. c. c. c. c. c. b. c. c. d. c. c. c. a. b. c. c.
Posição do Rio Relativamente à Cidade: iii. iii. i. ii. iii. ii. i. ii. iii. iii. iii. i. iii. iii. iii. iii. iii. ii. iii. iii. ii. iii. ii. iii. iii. iii. iii. i. i. iii. i. ii. iii. iii. ii. iii. iii. iii. ii. iii. i. ii. iii. ii.
Quadro 1 – Classificação tipo-morfológica das cidades fluviais portuguesas
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É nossa convicção que as relações tipo-morfológicas enunciadas estão na essência da explicação de muitos tipos de interacção entre as cidades e os seus respectivos rios. Não esgotam portanto a multiplicidade de interdependências possíveis que, sem preocupação de exaustividade, aqui se enunciam: Relação funcional / económica Estabelece-se por via das funções que o rio tem para a cidade e vice-versa como sejam: as actividades de lazer que tiram partido da presença da água e do seu plano de água; a possibilidade de devolução muito próxima das águas recolhidas ou utilizadas em meio urbano ao meio natural; a viabilização de actividades industriais consumidoras de água; a possibilidade de desenvolver actividade piscatória; a função portuária tirando partido do rio como meio de transporte ou como infra-estrutura de transporte. Relação ecológica / ambiental Estabelece-se por ser o rio, naturalmente, uma fonte imensa de biodiversidade permitindo que a cidade e seus utilizadores possa beneficiar com a proximidade dos ecossistemas ribeirinhos. Os rios são também verdadeiros corredores ambientais influenciando o clima urbano e a qualidade de depuração ambiental. A qualidade da água dos rios (incluindo a dimensão biológica) é, neste sentido, um indicador importante da qualidade da relação entre rio e cidade. Relação paisagística / sensorial A relação paisagística é interdependente da relação morfológica/orográfica entre cidade e rio, da própria largura do rio e da forma/estrutura da cidade. Algumas souberam organizar-se proporcionando pontos de vista sobre os planos de água, outras, muitas vezes pela densidade e reduzida permeabilidade do tecido construído, só conseguem ter uma relação paisagística com o rio na própria frente ribeirinha. A relação paisagística é eminentemente sensorial e subjectiva. O seu valor colectivo é influenciado por múltiplos factores, nomeadamente a raridade ou abundância de pontos de vista, o significado histórico e social do rio, etc. Relação histórica / emotiva A história das interrelações entre cidade e rio, quer as que se relacionam com vivências positivas quer as que ficaram marcadas por cheias, inundações e outros acidentes naturais ou artificiais negativos, marcam inexoravelmente o ADN do sistema orgânico cidade-rio. Em consequência, os significados e os ecos desta relação histórica entre rio e cidade, influencia a multiplicidade de emoções e sentimentos que os indivíduos experimentam ao longo do tempo e o valor social atribuído à presença de um rio na cidade. 8
2. Dinâmica e escala da relação O que se expôs anteriormente evidencia que, para além da multiplicidade de relações e interacções, há também uma dinâmica da própria relação entre rio e cidade que deve ser levada em conta e que se vai revelando em diferentes tempos – o curto prazo, o médio e longo prazo e o muito longo prazo. Isto deve-se, por um lado, à própria dinâmica hidrológica e geomorfológica da qual decorrem múltiplas transformações do rio, do seu caudal, das suas margens, do seu perfil, do sistema ecológico do qual faz parte e, consequentemente, a maior ou menor estabilidade das interacções com a própria área urbana, em certos casos com evidente risco para pessoas e bens como no caso das cheias e inundações. Por outro lado à dinâmica de transformação da cidade: seja no que respeita ao continuado crescimento da área urbanizada, sobretudo a partir do século XIX, com a consequente ocupação das margens e em certos casos por efeito do próprio “galgamento” do rio por via da construção de atravessamentos; seja por via das alterações de uso como é bom exemplo a reestruturação que sofreu a zona oriental de Lisboa na zona da Expo. Um aspecto importante das interacções rio-cidade tem também a ver com a escala da relação, ou a amplitude espacial das interacções, havendo que distinguir pelo menos três níveis:
III
- as relações que implicam apenas a interface riocidade (I), ou seja, as zonas ribeirinhas da cidade mais
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em contacto com os limites do plano de água, onde se estabelece um contacto mais directo das pessoas e
I
actividades com a água e onde o sistema ecológico mais se evidencia; - as relações que implicam toda a cidade (II) e, não raras as vezes, a sua estrutura física e social e a sua economia. - as relações que implicam a região em que se insere o sistema rio-cidade (III) que deve abarcar a própria bacia hidrográfica, nomeadamente as que decorrem da geomorfologia em que se insere a cidade e do regime hídrico do próprio rio. Arriscaríamos aqui dizer, que nem sempre a 2ª escala de análise é suficientemente levada em linha de conta nas intervenções de reabilitação de zonas ribeirinhas, porquanto estas se centram preponderantemente em programas de acção e de redesenho físico e
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funcional, eminentemente locais, sem considerar de modo apropriado as implicações mais globais em toda a estrutura da cidade.
3. As “frentes” de todos os dilemas a) Natural – artificial As intervenções em zonas de interface rio-cidade como são as frentes ribeirinhas, ou de rio, conduzem frequentemente a uma clivagem do pensamento e da argumentação, quantas vezes cega e fundamentalista. Por um lado os que se acham defensores da conservação da natureza a todo o custo e que defendem exacerbadamente a necessidade de manter e preservar o carácter natural da frente de rio, de modo a evitar a interferência das pessoas no funcionamento dos ecossistemas. Por outro os que acreditam na capacidade do Homem em domar a natureza e os rios e que entendem que as frentes de rio devem servir sobretudo os interesses da cidade, das suas actividades e funções em prol das pessoas e da sua vivência. Se é verdade que os primeiros podem não ver a especificidade de certas zonas que, por razões históricas ou até funcionais e culturais, terão de ter sempre um carácter mais artificial e humanizado/construído (havendo que aceitar e compensar o prejuízo para a ecologia do rio), também é verdade que os segundos nem sempre valorizaram o carácter mais natural das frentes de rio, (a exigir mais respeito pelas suas próprias dinâmicas) e a mais valia que isso poderia representar para os próprios aproveitamentos urbanos e vivência social dessas frentes. b) O rio como barreira ao natural crescimento da cidade – a cidade como barreira à dinâmica natural do rio O rio é frequentemente visto como barreira à expansão “natural” da cidade. Cria, naturalmente, uma descontinuidade no território só parcialmente superável por via do transporte fluvial e da construção de atravessamentos (pontes, túneis). Os atravessamentos que puderem ser criados permitem o restabelecimento de interacções com a outra margem, podendo originar novo crescimento urbano na margem oposta mas, quase sempre, num tempo diferido do crescimento na margem principal que será tanto maior quanto for a largura da transposição. Para larguras inferiores a cerca de 20 metros é de crer que a descontinuidade não é suficientemente forte para conseguir diferir a força usual da expansão urbana. A cidade, no entanto, também pode ser vista como barreira à dinâmica natural do rio e nem sempre o urbanismo soube lidar com essa dinâmica, quer no sentido de acautelar 10
riscos e imprevisibilidades, quer no sentido de tirar partido disso em proveito da riqueza de ambientes e de maneiras de estar e de lidar com o rio. d) Controlo – adaptação A relação do rio com a cidade, nas margens de cada um, sempre padeceu deste dilema: controlar o curso do rio, quase sempre à custa de uma engenharia hidráulica muito dura e normalizadora, originando margens completamente artificiais (no extremo encontramos vários exemplos de rios que atravessam cidades que são meros canais rectilíneos de betão) para bem de uma aparente securização das pessoas (minimizando os riscos de cheia e de queda à água) mas sem lhes salvaguardar o valor ecológico que o rio lhes retribuia; alternativamente, é possível intervir aceitando alguma maleabilidade e capacidade de adaptação do rio ao território marginal percorrido (por exemplo pela meandrização e sinuosidade), salvaguardando o funcionamento ecológico e a qualidade biológica apesar de, em certos casos, poder existir um maior risco para as pessoas na utilização das frentes de rio. c) Normalização – diversidade O ponto anterior é bom exemplo do que não há muitos anos se designava por “normalização do rio”, expressão última da capacidade de domínio que se traduzia por margens estereotipadas, recorrendo quase sempre a muros de betão ou enrocamentos que linearizaram as margens de rio das nossas cidades, sobretudo as que ao longo do tempo mais se aproximaram do plano de água. Sabe-se hoje da conveniência em preservar, sempre que possível, alguma alternância de ambientes e de modos de estar acautelando, sobretudo, alguma diversidade (Jacobs, 1965) nas novas frentes ribeirinhas em áreas de expansão urbana.
4. Sete princípios na intervenção em frentes ribeirinhas
As frentes de rio devem ser facilitadoras das múltiplas interacções entre rio e cidade Os sistemas cidade-rio são sistemas muito complexos. Para preservarmos a sua coerência, devemos procurar manter a variedade e a quantidade de interacções que se estabelecem entre rio e cidade e em particular na sua frente. Uma estrutura que possa ser facilmente separada em constituintes não interactuantes não é um sistema complexo mas sim uma agregação de unidades.
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A vocação das frentes de rio não é certamente a de actuarem como elementos de separação ou de segregação das interacções, i.e., as relações de rio, no rio e as relações urbanas, na cidade. As frentes de rio devem por isso proporcionar, com critério, acessos diversos, conectividades, zonas de contacto com a água, navegabilidade e acostagem, devendo balancear-se o carácter natural, mais propício à defesa da relação ecológica, com o carácter mais humanizado e eventualmente mais artificial, mais adstrito às actividades urbanas. Potenciar a utilização dos cinco sentidos na relação das pessoas com a água dos rios “We came from the water; our bodies are largely water; and water plays a fundamental role in our psychology. We need constant access to water, all around us… But everywhere in cities water is out of reach. (…) water has a positive therapeutic effect. (…) Preserve natural pools and streams and allow them to run through the city; make paths for people to walk along them and footbridges to cross them. Let the streams form natural barriers in the city, with traffic crossing them only infrequently on bridges.” (Alexander, 1977: 326)
Nas frentes de rio deve proporcionar-se, sempre que possível, zonas de contacto directo com o plano de água, salvaguardando a segurança das pessoas. A escolha de morfologias que proporcionem conectividades entre as zonas interiores da cidade e a frente de rio é também essencial, ou seja, deve garantir-se alguma permeabilidade das frentes urbanas de rio. A criação de acessos longitudinais, particularmente para o uso de modos suaves, em espaço público permite activar os cinco sentidos e maximizar as experiências sensoriais. A cidade deve tratar os seus rios com respeito “Natural streams in their original streambeds, together with their surrounding vegetation, can be preserved and maintained. (…) And in those cities where streams have been buried, it may even be possible to unravel them again. (…) Sometimes, here and there, give the place immediately around the water the atmosphere of contemplation; perhaps with arcades, perhaps some special common land, perhaps one end of a promenade.” (Alexander, 1977:327)
As frentes de rio são locais de máxima interacção com o rio. Por essa razão é importante que as intervenções em frentes de rio respeitem a sua dinâmica própria, o seu metabolismo. É essencial a integração do rio, das suas características e valores, no planeamento urbano das frentes de rio. A criação de locais de contemplação, de restabelecimento das pessoas, com valor simbólico, pode preservar e promover o “espírito próprio de cada lugar” (CEU, 2003) que nestas frentes muito deve à presença do rio.
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Distanciar as estradas da frente de rio e conter fortemente, em pequenas bolsas, o parqueamento automóvel As estradas/marginais são elementos fortemente fragmentadores e com efeito disruptivo na relação entre cidade e rio. Sempre que possível deve fazer-se recuar o seu traçado da linha da margem de uma distância significativa. O parqueamento é um elemento indutor de tráfego automóvel. O parqueamento a ser aceite deve ser delimitado, contido em pequenas bolsas de capacidade limitada. Integrar os elementos naturais do rio no desenho e na composição urbana “O desenho urbano e a composição urbana são elementos essenciais para o renascimento das cidades (…) Ter em conta os ecossistemas é uma preocupação que deve estar integrada na gestão da cidade” (CEU, 2003: 21)
As frentes de rio são zonas de transição e de interface. Se é desejável a manutenção da coerência entre rio e cidade, uma coerência explicada pela continuidade da evolução no tempo, feita de identidades e de valores específicos, as intervenções nas frentes de rio devem procurar integrar os elementos naturais existentes, ou a recriar, nas propostas de desenho e de composição urbana. As frentes de rio devem facultar o máximo de perspectivas da cidade com o rio Uma certa tendência para a massificação das frentes urbanas ribeirinhas, em certa medida impulsionadas pelos pesados investimentos aplicados, seja na aquisição de solo, seja na infraestruturação do mesmo, pode acentuar o efeito de barreira e de “tampão” motivado pela construção em altura o que deve ser evitado a todo o custo. As tipo-morfologias a adoptar devem ser escolhidas de modo a maximizar a visualização do rio pela restante cidade e a equidade no desfrutar da paisagem, a permitir a máxima permeabilidade visual e a garantir acessos e conectividades urbanas. Garantir espaço público diversificando ambientes e evitando a normalização “Without common land no social system can survive” (Alexander, 1977: 337)
O espaço público permite que as pessoas se sintam bem fora das suas casas e do seu território privado possibilitando que se sintam conectadas ao mais abrangente sistema social. Por outro lado, o espaço público é um local de encontro e isso é relevante em termos sociais. A privatização de solo em frentes ribeirinhas, como parte de logradouros ou de condomínios deve ser evitado. De certo modo pode dizer-se que a quantidade de espaço público existente nas frentes de rio espelha o valor que a sociedade atribui à presença do rio na cidade e à utilização que dele faz e exige fazer. Será este um reflexo do conceito de “vitalidade” do espaço urbano (Lynch, 1999). 13
As intervenções a realizar devem levar também em conta a posição relativa da frente ribeirinha face aos elementos estruturantes da cidade e em particular face às suas centralidades. Sempre que possível devem evitar-se intervenções excessivamente normalizadas, devendo optar-se por uma recreação de vários tipos de ambientes e de ambiências que contribuam para a maximização de experiências de relação que as pessoas estabelecem neste tipo de locais e que em muito podem contribuir para a valorização e especificidade das frentes de água.
5. Conclusão “A História demonstrou que o futuro é largamente determinado pelo passado” (CEU, 2003). A Teoria da Complexidade designa este mecanismo por Path dependence o que significa que as intervenções nas actuais frentes de rio das nossa cidades em muito vão determinar o futuro da relação cidade-rio e, consequentemente, a sua sustentabilidade. A sustentabilidade urbana só pode ser assegurada se for bem compreendida a sua complexidade. Para lidar com a incerteza que lhe está associada, será fundamental a compreensão das interacções que se estabelecem entre meio urbano e corredores ecológicos, nas áreas de interface (margens). A sustentabilidade das cidades com rio e, particularmente, das suas frentes de água implica a defesa e manutenção da complexidade das relações que ali se estabelecem e da preservação dos mecanismos que sustentam essa complexidade.
O cap.2 tirou partido de parte dos resultados da investigação realizada no âmbito do projecto RiProCity “Rios e Cidades – oportunidades para a sustentabilidade urbana”, projecto financiado pela FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia -, desenvolvido no CESUR (Instituto Superior Técnico), com a participação da Universidade de Évora e por uma equipa pluridisciplinar constituída pelos autores desta comunicação e ainda por Graça Saraiva, Francisco Serdoura, Clara Landeiro, Isabel Ramos, Fátima Bernardo, Lígia Vaz, Tiago Trigueiros, Ana Sá, Maria José Castro e Beatriz Condessa.
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Referências Bibliográficas
CEU. (2003) A Nova Carta de Atenas – a Visão do Conselho Europeu dos Urbanistas. Editado pelo Conselho Europeu dos Urbanistas. Alexander, C.; Ishikawa, S.; Silverstein, M. (1977) A Pattern Language. Oxford University Press. New York. Jacobs, J. (1965) The Death and Life of Great American Cities, Pelican Books Ltd, Harmondsworth, Middlesex. Lynch, K. (1999) A Boa Forma da Cidade, Edições 70, Lisboa. Pinto, Pedro (2007) A Cidade Fluvial em Portugal – contributos para a integração de cidade e rio. Tese do Mestrado em Urbanística e Gestão do Território. Instituto Superior Técnico. Lisboa. Salingaros, N. (2005) Principles of Urban Structure. Techne Press, Amsterdam. ULI – the Urban Land Institute (2004) Remaking the Urban Waterfront, ULI – the Urban Land Institute, Washington.
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