CIÊNCIA. FILOSOFIA MORAL E DIREITO

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CIÊNCIA, FILOSOFIA MORAL E DIREITO


Atahualpa Fernandez(






«Una filosofía al margen de la ciencia es
la cosa más aburrida y menos sexy que uno pueda
imaginar.» J. Mosterín





Que as ciências sociais têm vivido os últimos decênios de costas aos
espetaculares logros dos recentes estudos procedentes das ciências que
buscam entender em que consiste nossa natureza como espécie é algo tão
óbvio, que somente a prova do contrário resultaria relevante. Ainda
surpreende a muitos que alguém pretenda estabelecer algum vínculo forte
entre as ciências sociais normativas, a psicologia evolucionista, a
antropologia e biologia evolutiva, a primatologia e a neurociência, sendo
tão comum como é a aceitação de que o social e o natural percorrem por
caminhos de desencontro, mais ainda se cabe em uma era de perversa e
demencial (super) especialização que aparentemente torna impossível não já
salvar o hiato entre âmbitos tão distintos senão, inclusive, a tentativa de
evitar a crescente compartimentalização em ilhas autárquicas de disciplinas
tradicionalmente unificadas.
Não é menor a influência que exerceu sobre esta concepção separatista
da ciência o auge insólito do chamado pós-modernismo e do construtivismo
social. Hoje em dia, a defesa teórica de que aquilo que é o conhecimento –
e nomeadamente o conhecimento propriamente científico – é uma representação
que não provém diretamente da realidade, nem corresponde necessariamente
com esta, senão que está socialmente construído, se atreveu a transpassar
os âmbitos da sociologia, do direito e da psicologia para adentrar-se sem
cuidados, e com não pouca arrogância, nos da física, da química e da
biologia.
Assim, não só a autoridade, a segurança, a hermenêutica, a
enfermidade, o incesto, a desigualdade social, a pobreza ou a liberdade
estão socialmente construídos, senão que também o são a realidade, as
emoções, os fatos, o gênero, o conhecimento, a natureza e a própria
natureza humana. O que não deveria ser mais que propostas marginais, ao
menos por sua inconsistência lógica, transformou-se em um mainstream do
pensamento (pseudo) científico atual.
Nada obstante, a extraordinária proliferação de investigações e
publicações que nas duas últimas décadas dirigem seus interesses a
reflexionar sobre as relações entre a ciência cognitiva e a sociologia, a
ciência cognitiva e a filosofia social normativa, a ciência cognitiva e a
evolução cultural, ou a neurociência e a biologia evolutiva com todas elas,
tem posto em um sério aperto a defesa teórica de uma inexorável
fragmentação do território da Ciência, assim como da delirante ideia de que
não existe uma realidade independente de causas sociais, isto é, que toda
ela está socialmente construída.
Desgraçadamente, boa parte da filosofia moral (e jurídica)
contemporânea, por muito venerada que seja no âmbito acadêmico, continua
desinteressada em adquirir uma compreensão mais profunda do por que os
seres humanos são seres sociais e morais e do que nos predispõe a abordar
os problemas de nossos vínculos comunitários, quer dizer, insiste em
rejeitar qualquer aproximação científica com o naturalismo para entender a
base da moralidade humana (P. Churchland). A maioria dos filósofos
permanece crítica e hostil em relação às evidências que procedem do estudo
da natureza humana, pese a que, de maneira óbvia, os resultados obtidos
supõem uma nova fonte de conhecimento relacionada de uma forma muito direta
com as questões que sempre interessaram ao mundo da filosofia desde Platão
e Aristóteles a John Rawls e Noam Chomsky.
Parece que há uma deliberada ignorância acerca do fato de que, nos
últimos anos, a moralidade se transformou em uma zona de convergência para
diversos pesquisadores no âmbito das Ciências e Humanidades. A quantidade
de investigação experimental destinada a entender o comportamento moral se
incrementou rapidamente, ao igual que a diversidade de métodos empregados.
Por primeira vez, os avanços dos estudos científicos sobre a origem e o
valor das normas morais nas sociedades humanas oferecem propostas capazes
de situar a reflexão humanística e científico-social sobre uma concepção da
natureza humana como objeto de investigação empírico-científica e não mais
fundada ou construída a partir da mera especulação abstração metafísica.
Desde um ponto de vista científico, este (ainda tímido) câmbio de
perspectiva implica que para compreender os fundamentos da moralidade e do
direito é necessário dilucidar em que consiste a natureza do ser humano:
quem somos, o que nos motiva, por que nos comportamos da forma como o
fazemos, por que desenvolvemos as estruturas sociais em que nos movemos, o
que significa para o animal humano "atuar como agente moral", de onde vem
nossa predisposição natural para produzir juízos morais e a forte
inclinação para construir sistemas normativos sociais e legais.
Particularmente com relação ao direito, embora não exista a menor
dúvida acerca do fato de que este pode ser apreciado de diferentes formas,
é provável que no último degrau da aceitação dos estudos científicos da
natureza humana se encontrem os juristas. De fato, uma das vias possíveis
para analisar o fenômeno jurídico consiste em analisar o objeto, a função e
o propósito do direito moderno sob uma perspectiva naturalista, convertendo
em viável a proposta (e inclusive a exigência) de novos critérios para que
os setores do conhecimento no direito sejam revisados à luz dos estudos e
investigações que continuamente emergem das ciências que tratam de dar uma
explicação mais empírica, diligente e robusta acerca da natureza humana.
Por esta via, e somente por esta, a pergunta sobre a origem, o sentido e a
finalidade da justiça e do direito conduz inexoravelmente à busca dos
fundamentos naturais da conduta moral humana.
Que dúvida cabe que o sujeito moral kantiano já deixou seu lugar ao ser
humano produto da evolução por seleção natural? Não somos seres
exclusivamente morais ou portadores de uma racionalidade absoluta que se
nos impõe e converte nossas vidas e agrupações em realização de um fim
predeterminado, senão uma espécie que descobriu que determinados
comportamentos e vínculos sociais são necessários para resolver problemas
adaptativos relativos à sobrevivência, ao êxito reprodutivo e à vida em
comunidade, e aceitou a necessidade de assegurá-los e controlá-los mediante
um conjunto de normas e regras de conduta. Longe de ser um processo
descendente em que formulamos os princípios e valores e logo os impomos à
conduta humana, nossos valores e imperativos morais/jurídicos emergem de um
processo ascendente, uma parte da história natural da espécie humana e
fruto de nossas interações sociais diárias.
É certo que os juristas ainda não conseguiram superar o grande problema
da tradição jurídica filosófica e da ciência do direito: pensar como se os
seres humanos somente tivessem cultura (uma variedade significativa),
nenhuma história evolutiva ou cérebro. Ainda há uma forma dominante de
pensar que produz resistência, inclusive fobia ou rechaço, ante o fato de
que o ser humano é uma espécie biológica. Daí que no âmbito do jurídico
quase sempre se relega a um segundo plano – ou simplesmente se ignora - a
devida atenção à natureza humana e, muito especialmente, ao fato de que
para compreender o que somos e como atuamos, devemos compreender o cérebro
e seu funcionamento. (R. Llinás & P. S. Churchland)
Mas não somente isso. Quando abordam o estudo do comportamento humano
e do direito, os juristas têm o costume de sustentar a presença de diversos
tipos de explicações – como as sociológicas, antropológicas, normativas ou
axiológicas – limitadas e ajustadas às perspectivas de cada uma das
respectivas disciplinas e áreas de conhecimento; quer dizer, sem sequer
considerar a possibilidade de que exista somente uma classe de explicação
para a compreensão do fenômeno jurídico e de sua projeção fenomenológica. O
problema é que tal explicação unitária de base existe, sempre e quando se
parta de um cenário mais crível da emergência do direito e que esteja
devidamente sustentado em um modelo darwiniano sensato sobre a natureza
humana. (M. Rose)

Por fortuna, alguns juristas começam a entender que lhes convêm
inteirar-se do que oferecem os conhecimentos científicos acerca da natureza
humana. Pouco a pouco, a filosofia jurídica começa a indagar sobre o
sentido, a validez e a função do direito desde uma perspectiva
antropológica e naturalista em relação aos dados existenciais do ser do
homem, como os problemas do livre-arbítrio, da racionalidade, da
responsabilidade, do bem e do mal, da alteridade, da igualdade, etc...etc.
Já há indícios de alguma disposição para estabelecer um debate entre as
ciências que se ocupam da natureza e da conduta humana e a tradição dos
filósofos e teóricos do direito, no sentido de admitir que a partir da
aceitação dos melhores dados disponíveis acerca de como são os seres
humanos será possível reconstruir, sobre bases empiricamente mais sólidas e
seguras, os fundamentos do direito e da justiça.

Destaca-se cada vez mais a consciência de que como o direito e a ética
carecem das bases de conhecimento verificável acerca da condição humana -
indispensável para obter predições de causa e efeito e juízos justos
baseados nelas -, é necessário, para compor o conteúdo e a função do
direito e da justiça, tratar de descobrir como podemos fazê-lo a partir do
estabelecimento de vínculos com a natureza humana que, de forma direta ou
indireta, condiciona e limita nossa conduta, nossos juízos morais e os
vínculos sociais relacionais que estabelecemos.
Embora não haja uma resposta simples à pergunta de se a moralidade, o
direito e a justiça são um fenômeno cultural ou um fenômeno biológico, o
certo é que a importância da mútua relação entre evolução biológica e a
emergência de uma conduta moral e jurídica mais complexa, nos momentos em
que a espécie humana estava desenvolvendo suas capacidades cognitivas e a
linguagem articulada, parece estar fora de toda dúvida razoável. O processo
evolutivo proporcionou ao ser humano a habilidade e os requisitos para
desenvolver uma moralidade (que por sua vez deu origem a juridicidade),
assim como um conjunto de necessidades, de emoções e de desejos básicos
que, com o passo do tempo e graças a maleabilidade do cérebro humano, a
epigenética e o papel regulador que jogam as experiências na conectividade
sináptica, deram lugar a nossa atual e aparentemente mais ampla riqueza
moral e jurídico-normativa.
Este parece ser o ponto fundamental a partir do qual já não mais parece
razoável tentar dissimular ou negar a necessidade de se estabelecer um
diálogo interdisciplinar que nos permita sair dos limites de nossas
próprias disciplinas para aprender das ciências vizinhas, ainda que
assumindo os riscos e as dificuldades teóricas e metodológicas de qualquer
programa de investigação integrador.
A importância da pergunta pela condição humana é um problema
fundamental da Filosofia em general e, especialmente, da Filosofia
Jurídica. Hoje, mais que nunca, se impõe a convicção de que nenhuma
filosofia ou teoria social normativa, por pouco séria que seja, pode
permanecer distanciada ou isolada fingindo desconhecer os resultados dos
descobrimentos procedentes dos novos campos de investigação científica que
trabalham para estender uma ponte entre o natural e o social, o biológico e
o cultural, o inato e o adquirido, em forma de uma explicação científica da
mente, do cérebro e da conduta humana. Nenhum filósofo ou teórico do
direito consciente das implicações práticas que sua atividade provoca
deveria desconsiderar esta emergente e inovadora proposta de estabelecer
determinadas implicações jurídicas a partir de uma compreensão realista da
natureza humana.
Isto não significa, sobra dizer, nenhum intento de substituir a
condição social humana por sua condição biológica, senão, e tão somente,
admitir que o direito ainda não teve sequer um êxito relativo como ciência
e que segue à deriva do verdadeiro conhecimento científico, vagando «por
una selva oscura» com sua enorme massa de observações e construções mal
digeridas, com um espantosamente imponente corpo de parafernália filosófica
barroca e com um superlativamente avultado número de teorias de nível médio
entrelaçadas que se expressam em léxicos (técnicos ou não) delirantemente
babélicos. E quanto mais tempo nos resistamos a aceitar que isto é certo,
mais difícil será (re) construir um direito que funcione para os seres
humanos e mais tenderá a converter-se em um mito continuo de justiça,
normas e postulados separado da realidade e corrompido em uma ilusão.

( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.
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