Ciência, território e fronteiras: expedições e relatos de viagem ao rio Purus (1903-1905)

Share Embed


Descrição do Produto

Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos Universidade Federal do Pará Belém, 15 a 18 de junho de 2015

A map of Terra Firma Peru, Amazoneland…, 1732

Volume 5 Intelectuais & discurso

PPHIST/Universidade Federal do Pará PPGHIS/Universidade Federal do Maranhão PPGH/Universidade Federal do Amazonas ISBN 978-85-61586-88-1

Ficha Catalográfica

Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos / Intelectuais e discurso. Rafael Chambouleyron (Org.). Belém: Editora Açaí, volume 5, 2015. 98 p. ISBN: 978-85-61586-88-1 1. História – Cultura política. 2. Intelectuais – Discurso. 3. Poder - Amazônia – Educação. 4. História.

CDD. 23. Ed. 348.9977

Apresentação Apresentamos os Anais do II Seminário de História em Estudos Amazônicos, realizado em Belém, de 15 a 18 de junho de 2015. O primeiro Seminário foi realizado em São Luís, em 2013, fruto do esforço conjunto dos programas de pós-graduação em História da Universidade Federal do Maranhão e da Universidade Federal do Pará, aos quais se junta agora o da Universidade Federal do Amazonas. Neste ano, o SHEA congregou docentes e discentes das três instituições, resultando na apresentação de mais de cem trabalhos, aqui publicados, organizados em sete volumes, cada um referente a um Simpósio Temático. O objetivo é reforçar os laços entre as pós-graduações de instituições amazônicas, que historicamente, compartilham trajetórias comuns.

Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos

Sumário “MAIS DIFICULTOSO EDUCAR DO QUE INSTRUIR”: EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO PARA A NAÇÃO NAS PÁGINAS DA REVISTA A SEMANA (BELÉM, ANOS 1920) Adnê Jefferson Moura Rodrigues ..............................................................................3 INTERFACES ARTÍSTICO-CULTURAIS: ETTORE BOSIO E O DEBATE SOBRE A PRODUÇÃO DA MÚSICA BRASILEIRA DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA (1892-1936) Amanda Brito Paracampo ........................................................................................ 14 “MISSÃO DE PESQUISAS FOLCLÓRICAS”: MÁRIO DE ANDRADE E O FOLCLORISMO MUSICAL SOBRE A REGIÃO AMAZÔNICA (1938) Edilson Mateus Costa da Silva ................................................................................ 23 IMPRENSA, HEGEMONIA E SANEAMENTO RURAL NO PARÁ (1916-1921) Elis Regina Corrêa Vieira ......................................................................................... 31 NO PINCEL E PARA A HISTÓRIA: REPRESENTAÇÃO E MEMÓRIA NA ARTE DE THEODORO BRAGA Igor Gonçalves Chaves ............................................................................................ 42 A INFLUÊNCIA DE JOAQUIM NABUCO E ANSELMO DA FONSECA NA CRÍTICA À IGREJA CATÓLICA EM FINS DO SÉCULO XIX (1880-1888) Jerusa Barros Miranda .............................................................................................. 50 A HISTÓRIA PROFISSIONAL: APONTAMENTOS PARA UMA ANÁLISE DA HISTORIOGRAFIA MARANHENSE DO FINAL DO SÉCULO XX João Batista Bitencourt ............................................................................................. 60 CIÊNCIA, TERRITÓRIO E FRONTEIRAS: EXPEDIÇÕES E RELATOS DE VIAGEM AO RIO PURUS (1903-1905) Nelson Sanjad ............................................................................................................ 67

1

Intelectuais e discurso

FROM BASEL TO THE AMAZON: THE TRANSNATIONAL CAREER OF JACQUES HUBER (1867-1914) AND HIS WORK ON THE AMAZONIAN RAINFOREST Nelson Sanjad ............................................................................................................ 76 EDUCAÇÃO, MANUAIS DIDÁTICOS E HISTÓRIA PÁTRIA NO PARÁ REPUBLICANO (1900-1920) Wanessa Carla Rodrigues Cardoso ......................................................................... 86

2

Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos

CIÊNCIA, TERRITÓRIO E FRONTEIRAS: EXPEDIÇÕES E RELATOS DE VIAGEM AO RIO PURUS (1903-1905) Nelson Sanjad1 Resumo No início do século XX, o rio Purus era um dos menos conhecidos da bacia amazônica, embora fosse regularmente percorrido por coletores de drogas do sertão, caucheiros peruanos e seringueiros brasileiros. Estes, embarcados em Manaus, passaram a ocupar, no final do século XIX, uma extensa região disputada pelo Brasil, Peru e Bolívia, e habitada por inúmeras etnias indígenas. Somente em março de 1903 uma expedição científica adentrou o rio, enviada pelo Museu Goeldi, no mesmo período em que o governo peruano instalava postos militares e aduaneiros no mesmo rio e também no Juruá, ampliando os conflitos entre seringueiros e caucheiros. Em março de 1904, uma segunda expedição do Museu Goeldi chegava ao Purus, pouco antes de graves conflitos armados que levaram os governos do Brasil e do Peru a assinar um acordo para a demarcação da fronteira. Foram, então, instaladas duas comissões técnicas binacionais, uma destinada a fazer o reconhecimento do Juruá e a outra do Purus, até as suas cabeceiras. A exploração do Purus foi chefiada por Euclides da Cunha e executada entre abril e dezembro de 1905. Ela resultou em um relatório ilustrado com fotografias e mapas, publicado em 1906, mesmo ano em que Huber lançou o mais importante entre os sete trabalhos científicos publicados pelos pesquisadores do Museu Goeldi sobre o rio Purus. Apresento aqui uma análise comparada do relatório de Euclides da Cunha, e de outros escritos de sua autoria sobre o Purus e a Amazônia, e os trabalhos de Jacques Huber, particularmente os que analisavam a geomorfologia e a fitogeografia do vale do Purus e do baixo Amazonas. Creio ser possível estabelecer relações e aproximações entre esses autores, uma vez que o próprio Euclides reconheceu a influência de Huber na construção de um olhar ou de uma percepção do mundo amazônico, mediada pela ciência, após encontrar pessoalmente com o botânico em Belém, em 1905. Cabe analisar como essas intertextualidades contribuíram para a construção de relatos edênicos sobre a região, tal como o fez Euclides, e como estimularam a intervenção política na região com fins de exploração ou conservação de recursos naturais.

Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI. Programa de Pós-Graduação em História/UFPA. 1

67

Intelectuais e discurso

Uma das tendências mais interessantes na história da ciência é a relação entre espaço e conhecimento, isto é, o estudo do conhecimento científico no local onde ele floresce. A literatura anglo-saxã tem denominado essa linha de pesquisa como geografia histórica da ciência. Recusando uma concepção de ciência como conhecimento sem-lugar ou des-locado, David Livingstone a definiu como “uma formação cultural, definida por uma ampla rede de relações sociais e pelo poder político, e moldada pelo ambiente local no qual seus praticantes desempenham suas tarefas”. Steven Shapin, por sua vez, considera a geografia como um dos fatores que podem influenciar o desenvolvimento da ciência, assim como os valores culturais, o gênero e a identidade nacional. Mais ainda, Shapin vê na geografia um pré-requisito necessário à existência da ciência, tanto quanto a temporalidade e a corporalidade. Simon Naylor, finalmente, demonstrou que uma concepção geográfica da ciência não se resume a entender esse ramo do conhecimento de maneira espacializada, mas também que a própria ciência pode criar espaços e lugares para suas próprias atividades. Segundo Naylor, há três distintas maneiras de estudar a geografia da ciência: 1) considerando as microgeografias, isto é, os espaços onde os cientistas têm desenvolvido seu trabalho (aqui entram as etnografias de laboratórios e os estudos institucionais); 2) considerando a ciência em seu contexto, incluindo a cidade, a região e a nação – ou as forças políticas, religiosas, sociais, econômicas que incentivam ou impedem o desenvolvimento da ciência em determinado espaço-tempo; 3) considerando as “cartografias da ciência”, ou seja, não apenas o espaço onde a ciência ocorre, e sim a maneira como a ciência produz conhecimento sobre o espaço, reinventando-o, e como o espaço influencia a formulação de teorias científicas. É nesse último aspecto que quero situar minhas reflexões. O que vou apresentar aqui são os resultados preliminares de um estudo comparado de duas narrativas sobre determinado espaço – o rio Purus – ambas mediadas pela ciência e conectadas pelo esforço em qualificar o mundo natural, tornando possível o controle político desse mesmo espaço. O rio Purus tornou-se conhecido nacionalmente no final do século XIX em razão de sua navegabilidade (é um dos poucos rios amazônicos sem cachoeiras, navegável em toda a sua extensão), em razão dos extensos seringais ali existentes, que propiciaram a fixação de milhares de nordestinos fugidos da seca, e das possibilidades de conexão, a partir de suas nascentes, com as bacias dos rios Madeira, Juruá e Ucayalli. Esta questão, de ordem geográfica e geopolítica, torna-se de importância capital na década de 1860. Os governos central e provinciais preparavam-se, então, para a abertura do rio Amazonas à navegação internacional, demandada pelos países vizinhos do Brasil e pelos países europeus. O que estava em jogo era o acesso a uma extensa área do Peru e do

68

Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos

Brasil, que já se sabia rica em seringa e caucho – ou seja, o controle e a exploração desses recursos. Naquele momento, destaca-se a atuação de Manuel Urbano da Encarnação, caboclo de conhecimentos práticos, considerado o melhor conhecedor do rio, reconhecido líder dos moradores, capaz de intermediar as relações entre o poder constituído e as populações indígenas. Capaz, inclusive, de definir o local onde as povoações deveriam ser criadas pelos imigrantes recém-chegados. Em 1861, Manual Urbano foi comissionado pela Província do Amazonas para proceder a um levantamento geográfico, solucionando dúvidas existentes sobre varadouros que ligavam o Purus e o Juruá. No ano seguinte, o engenheiro João Martins da Silva Coutinho, também comissionado pela província e acompanhado de Manuel Urbano, percorreu o mesmo rio, explorando seu potencial como via de circulação. João Martins produziu um relatório de grande utilidade para a diplomacia brasileira no momento em que esta lidava com questões fronteiriças. Assim que a bacia do Amazonas foi aberta às nações amigas, a Royal Geographic Society enviou um explorador para localizar o divisor de águas de três grandes tributários, o Madeira, o Purus e o Juruá. Sabia-se que os três rios, e também o Ucayalli, nasciam no mesmo divisor. Era muito provável, portanto, que houvesse conexões interiores entre essas bacias, os conhecidos varadouros, que propiciariam o acesso mais rápido e alternativo àquela região (imaginem o que seria acessar o Ucayalli através do Madeira, sem necessidade navegar pelo Amazonas) e também a conexão com a bacia do Prata. William Chandless realizou sua famosa viagem pelo Purus em 1867, tendo como guia o inestimável Manuel Urbano. Chandless, contudo, entrou no afluente errado e não conseguiu localizar o divisor de fundamental importância para a distinção daquele complexo sistema hídrico. Essa questão permaneceu aberta e inconclusa até o início do século XX. E o rio continuou como local de trânsito da população indígena, dos coletores de drogas do sertão, de caucheiros peruanos e seringueiros brasileiros. Em 1903, milhares de brasileiros habitavam a calha do Purus, convivendo e em conflito com índios e caucheiros que desciam o rio vindo do Peru. Os povoados do Purus produziam a maior quantidade de seringa exportada pelo Amazonas e as taxas recolhidas pelo estado eram bastante significativas. Nesse mesmo ano, o governo peruano decidiu instalar postos militares e aduaneiros nos rios Juruá e Purus, exigindo o recolhimento de taxas e passando a controlar o acesso aos recursos naturais. Ampliaram-se os conflitos entre seringueiros e caucheiros. Em março, chega ao rio uma primeira expedição científica do Museu Goeldi, na qual embarcaram Andreas Goeldi, inspetor do horto botânico e primo do então diretor, Emílio Goeldi, dois preparadores e o fotógrafo Ernst Lohse. Eles 69

Intelectuais e discurso

coletam principalmente mamíferos, aves e plantas. Lohse faz, provavelmente, o primeiro levantamento fotográfico do rio, de rara sensibilidade, registrando a vegetação e a paisagem, os povoados, os habitantes, as atividades econômicas, as condições de navegação e as transformações ambientais já visíveis naquela época, como o desmatamento, a abertura de clareiras na floresta, a introdução do gado e a plantação de roças. Em março de 1904, logo após graves conflitos armados, uma segunda expedição do Museu Goeldi adentrou o Purus, desta vez com a participação do botânico Jacques Huber e novamente de Andreas Goeldi. Novas coletas, fotografias e observações foram realizadas, sobretudo na confluência do rio Acre. Retornaram em maio, mês em que os governos do Brasil e do Peru assinaram um acordo para a demarcação da fronteira, do qual fazia parte a instalação de duas comissões técnicas binacionais, uma destinada a fazer o reconhecimento do Juruá e a outra do Purus, até as suas cabeceiras. Euclides da Cunha foi nomeado para chefiar a comissão do Purus. Ao rumar para Manaus, o barco parou no porto de Belém e Euclides foi ter com Emílio Goeldi e Jacques Huber no Museu Paraense. Segundo seu próprio relato, ali passou duas horas inolvidáveis, em companhia, sobretudo, de Huber, a quem Euclides não poupou elogios. Retornando ao barco, a comissão seguiu viagem. A expedição ao Purus foi executada entre abril e dezembro de 1905. Ela resultou em um relatório encaminhado ao governo brasileiro, de autoria de Euclides e publicado pela Imprensa Nacional em 1906, com tabelas e uma valiosa carta das nascentes do Purus e dos varadouros que as ligam com as do Madre de Dios (afluente do Madeira) e do Ucayalli – carta esta que respondia a décadas de dúvidas sobre a formação desses rios. Nesse mesmo ano, 1906, em março, Jacques Huber publica em francês “A vegetação do vale do rio Purus”, no Bulletin de l’Herbier Boissier, revista suíça, com fotografias e desenhos. Esse é o mais importante entre os sete trabalhos científicos publicados pelos pesquisadores do Museu Goeldi sobre o rio Purus, entre 1904 e 1910. Temos, portanto, no mesmo ano, dois relatos, duas visões sobre o rio, ambas mediadas pela ciência, como já mencionei, uma originada das observações de um engenheiro em missão diplomática, outra originada de um botânico com sensibilidade para perceber o dinamismo da paisagem. Contudo, antes de fazer algumas reflexões sobre esses relatos, cabe um preâmbulo da maior importância: Euclides da Cunha, em célebre passagem, confessou-se decepcionado com a monotonia da paisagem amazônica. Ao adentrar o rio Pará, não conseguiu ver senão a imensidão do espaço, não encontrando em si mesmo as emoções que lera em relatos de alguns naturalistas viajantes. Essa sensação só teve fim depois do encontro com Goeldi e Huber. Euclides afirmou ter lido durante a noite uma monografia de Huber, que lhe

70

Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos

preparou a visão para o que se descortinaria no dia seguinte, ao entrar no rio Amazonas. Esta passagem é referida pelos estudiosos e comentadores da obra euclidiana, mas não conheço um único trabalho que tenha investigado qual foi a monografia que Euclides leu, nem o porquê do momento epifânico que lhe sucedeu ao amanhecer do dia seguinte. José Carlos Barreto de Santana faz a pergunta, lembrando que a obra deve ter sido capital para a percepção do espaço amazônico, mas não avança na resposta. Outros estudiosos, sobretudo os que se preocuparam com o conteúdo científico da obra de Euclides, tampouco chegaram perto de uma possível formulação. Ao investigar a obra de Huber, deparei-me com o texto “Contribuição à geografia física dos furos de Breves e da parte ocidental de Marajó”, publicado em 1902 no Boletim do Museu Paraense. Acredito que tenha sido esta a monografia lida por Euclides, por duas razões: o fato de ser o único trabalho até então publicado por Huber que teria um interesse direto para Euclides; e o fato do conteúdo deste artigo ter sido apropriado por Euclides e reutilizado em vários de seus escritos amazônicos. Os comentadores de Euclides, como Walnice Galvão, Nicolau Sevcenko, Roberto Ventura, Luiz Costa Lima e o próprio Santana já haviam chamado a atenção para essa característica: Euclides utilizou muitas ideias e até mesmo expressões e trechos de relatos de viagem, cartas e textos científicos, sem dar os créditos para os respectivos autores. Assim procedeu no livro “Os Sertões” e também nos escritos amazônicos. Entre estes, o principal exemplo dado por Santana pode ser observado no seguinte trecho: Infelizmente, a natureza da nossa missão, senão a nossa própria incompetência, não nos permitiu indagações geognósticas capazes de elucidarem melhor o assunto, de acordo com a íntima relação entre as formas topográficas e a estrutura dos terrenos. Apenas conseguimos notar como fator preponderante desde a confluência do Solimões, até a foz do Chandless, o mesmo grés limonítico que sob o nome cientificamente consagrado de Parasandstein forma a base dos terrenos amazônicos. É a mesma rocha, já finamente granulada, já com seixos conglomerados pelo óxido de ferro – e uma disposição estratigráfica idêntica. E, como ela, francamente sedimentária, se originou no seio de vastas massas de água doce, conclui-se com segurança que o Purus até quase às suas cabeceiras, a exemplo da maioria dos tributários do Amazonas, se traduz como um resto de amplíssimo lago que na época terciária, após a sublevação dos Andes, cobria tão desmedidas superfícies.

Este trecho, publicado nas páginas 45 e 46 da quarta parte do “Relatório da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus”, foi parafraseado de uma carta que Euclides recebeu de Emilio Goeldi, datada de 28 de outubro de 1905 e enviada em resposta a um pedido do engenheiro. Euclides pedira ao diretor do Museu Paraense ajuda na identificação e 71

Intelectuais e discurso

interpretação das amostras de solo coletadas na calha do Purus. Goeldi, em determinado trecho, escreveu: Impressiona-me principalmente de encontrar lá, como fator geológico integrante de feição predominante, outra vez o elemento, como aqui no baixo Amazonas – o grés limonítico, o “Pará-Sandstein”, como ele ficou batizado pelos nossos geologistas no Museu. É a mesma pedra, ora com grão de areia fina, ora com seixos pequenos e maiores, reunidos em conglomerado, ligado e cimentado por óxido de ferro, que na superfície e pela ação da água e dos atmosféricos se transforma em limonite (“Brauneisen”). Fica agora por saber se a disposição estratigráfica lá em cima é a mesma, como aqui no Pará. (...) O “grés limonítico” deve a sua origem / tanto quanto me lembro das minhas conversas com os nossos geologistas / a vastas inundações por dilatado tempo, de água doce. Evidentemente sofreu quase por toda a parte numerosas transformações, até que se efetuasse o peneiramento atualmente visível quanto ao calibre dos elementos constituintes nos perfis e cortes que por aqui se podem examinar.

Quanto à monografia de Huber, é o resultado de uma expedição realizada em fevereiro e março de 1900 em companhia de Karl von Kraatz-Koschlau e Gottfried Hagmann. Posicionando-se contra os autores que viram no soerguimento da ilha de Marajó o fenômeno que dividiu a foz do Amazonas, um braço seguindo para o norte e outro indo encontrar as águas do Tocantins para formar o rio Pará, Huber defende uma hipótese formulada por Herbert Smith na década de 1870, segundo a qual a parte sul do arquipélago de Marajó teria sido formada pela deposição de sedimentos carreados pela correnteza do Amazonas, pelas marés diárias e pelos fluxos de água sazonais. Faltava descrever, segundo Huber, o complexo sistema hídrico da região, identificando os principais canais e os divisores de águas. Faltava, ainda, descrever os processos ecológicos responsáveis pela formação das ilhas – as tidelowlands de Herbert Smith – e identificar a linha que distinguia a geografia botânica da foz e do baixo curso do rio. É isto o que Huber faz nas 52 páginas do trabalho, ilustrado com dois mapas e cinco fotografias. Localiza os principais canais e seus tributários, bem como os divisores de águas, chamados de zonas de neutralização dos fluxos e refluxos. Em seguida, propõe duas categorias de ilhas, conforme a origem geológica: as mais antigas, cuja constituição era semelhante ao litoral oceânico do Pará, e as recentes, formadas por aluviões – “e que ainda se formam sob os nossos olhos”. Finalmente, Huber descreve pormenorizadamente o papel da vegetação na formação e consolidação das ilhas, desde as colônias pioneiras de aningas ou aturiás, seguidas da instalação e expansão do mangal e finalmente o desenvolvimento da vegetação arbustiva, com destaque para o papel das palmeiras na fisionomia da paisagem. Huber distingue, ainda, a vegetação dos 72

Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos

furos daquela que era possível observar nas margens do baixo Amazonas, caracterizando, dessa maneira, ecossistemas em todo distintos. Euclides da Cunha reproduziu diversas vezes essas informações. O melhor exemplo pode ser lido no discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras, incluído no livro “Contrastes e confrontos” em 1907. As três primeiras páginas contêm paráfrases e elaborações retóricas baseadas no trabalho de Huber, incluindo a reprodução quase literal da forma como Huber percebeu a paisagem. Também em “Terra sem História”, publicado postumamente em 1909, Euclides faz várias referências ao texto de Huber, chegando a tomar os furos como metáforas da incompletude, assim como a vegetação simbolizaria a “imperfeita grandeza”. O que quero destacar não é apenas o uso de informações sobre a formação das ilhas e a vegetação local, e sim a imagem da Amazônia como um mundo em formação, inacabado, jovem, a página do Gênesis que faltava escrever. Esta mesma imagem, mais austera e desprovida do encanto literário, está presente também no texto de Huber, que destaca por diversas vezes o dinamismo da geologia local, a ação transformadora das águas fluviais e do clima, o papel da vegetação na composição da paisagem, e sobretudo a inconstância e irregularidade da topografia, que se transformava a cada enchente, com ilhas aparecendo e desaparecendo, com cursos d’água sendo modificados, com sedimentos transportados de uma praia a outra, fazendo com que mapas e roteiros logo ficassem desatualizados. Movimento e transformação, construção e ruínas são topos articulados por Euclides para construir uma chave interpretativa da paisagem e da sociedade amazônica – e parece, um minha opinião, ser este o quadro ou a moldura com a qual o escritor passa a ver a paisagem quando acorda naquele glorious day, exatamente quando seu barco singrava os furos de Breves em direção ao Amazonas. A monótona paisagem tornou-se compreensível em seus processos ecológicos – e foi recriada pelo escritor. A proximidade entre o discurso racional de Huber e a retórica literária de Euclides é impressionante. Ela volta a aparecer nos relatos sobre o rio Purus, escritos de maneira independente e publicados no mesmo ano. O relatório de Euclides foi organizado em sete partes: a organização da comissão; as instruções de viagem; o diário da viagem; a descrição da paisagem, da rede hidrográfica e das coordenadas geográficas; o clima; os caracteres físicos da região e os povoadores, finalizando com a correspondência oficial anexa. Quero destacar a refinada percepção de Euclides quanto às forças físicas que agem na transformação da calha do rio, fazendo e refazendo as voltas sinuosas que o caracterizam, bem como a distinção da vegetação ao longo do curso e conforme a qualidade do terreno, não em sua composição florística (que julgava incapaz de identificar, além de desnecessária para o relatório), e sim em sua fisionomia 73

Intelectuais e discurso

ou aspecto geral. Parece-me particularmente interessante a tentativa de justificar as características dos grupos sociais locais a partir da distribuição geográfica de algumas espécies: naquele rincão, Euclides observou a espacialização da ocorrência de seringueiras e da castilloa, chegando à conclusão que a maneira de extrair o látex e o caucho, respectivamente, havia determinado os “atributos” das duas novas e originais sociedades que se gestavam no alto Purus. Enquanto o caucheiro seria nômade, errante, desbravador, o seringueiro era sedentário, preso ao local em que se fixava e teria papel superior no povoamento definitivo da região. Huber, por sua vez, apresenta duas características únicas do Purus: a enorme diferença na altura das águas durante cheia e estiagem, e a excessiva sinuosidade do rio. Ambas tinham reflexos diretos na vegetação, que Huber segue caracterizando conforme o terreno: a várzea, com suas praias e barrancos de vegetação completamente diferente; os lagos e igapós, originados no processo de modificação do curso do rio, e cuja vegetação também era específica, quando não completamente arruinada; e a terra firme, com vegetação arbustiva alta e densa, que Huber imaginava ser o desenvolvimento de antigas várzeas ou igapós. Huber também distingue a vegetação do baixo, médio e alto curso do rio, chamando a atenção para a distribuição da seringueira, do caucho e de algumas espécies de palmeiras, bambus e de Theobroma, defendendo que aquela região provavelmente era a pátria do gênero. A análise de Huber concorda e complementa em todos os aspectos o relatório de Euclides. Não há dissonâncias ou contrastes. Ambos selecionaram e observaram os mesmos fenômenos e procuraram explicá-los. Euclides ocupou-se da geografia física, enquanto Huber a extrapolou para explicar também a geografia botânica e caracterizar os ecossistemas locais. Mesmo sem se considerar apto a desenvolvê-lo, Euclides reconheceu a importância desse conhecimento, com uma finalidade: a partir da geografia botânica, queria definir o quadro social, o comportamento dos habitantes, as possibilidades de povoamento. À primeira vista, poderíamos imaginar que ambos acertaram os passos que cada um daria, mas certamente não foi isso o que aconteceu. Euclides, assim que recebeu o trabalho de Huber, em 17 de setembro de 1906, escreveu ao botânico a seguinte carta: (...) envio-lhe os mais vivos agradecimentos pela remessa da sua bela monografia (...) – que li e reli, sentindo, como brasileiro, o maior reconhecimento pelo naturalista que com tanto brilho sabe desvendar os primores da nossa flora. Eu, infelizmente, passei por ali, a correr e a braços com outras coisas. Vi as árvores, de relance, na marcha fatigada das canoas. Mas do que vi, concluo que o Senhor define, como ninguém ainda, a vegetação do grande rio. Faltou-me apenas ver, confirmada

74

Anais do II Simpósio de História em Estudos Amazônicos pela sua, uma observação de conjunto, que me impressionou no altíssimo Purus (...): uma diminuição qualquer no aspecto imponente da mata. (...) Vou mandar para a biblioteca do Museu Goeldi o meu relatório, onde palidamente me referi àquela flora.

Huber respondeu somente em 5 de julho de 1907, iniciando com muitos pedidos de desculpas pela demora, justificando-a em razão de “circunstâncias extraordinárias” (eram de fato, provocadas pela saída de Goeldi da direção do museu). Mais adiante, Huber comenta: Li com muito prazer o substancioso Relatório, que é um documento geográfico de grande importância e completa em muitos pontos as realizações clássicas de Chandless. O que me interessava principalmente era a descrição do divortium aquarium, que levou para sempre o mito de uma cadeia de montanhas entre o Ucayalli e as nascentes do Purus, Juruá e Javary. (...) No que tem respeito à flora do último trecho do Purus, parece com [ilegível] que lhe seja essencial diferenciá-la da do curso médio e inferior do rio, o que claramente está indicado pelo aparecimento da Calliandra [ilegível], que faz prever um conjunto de espécies todo especial, que aparece outra vez no curso médio dos afluentes ocidentais do baixo Ucayalli e do Huallaga. O mapa do Purus é para mim uma grande preciosidade e felizmente achei um meio de mandar montá-lo, de forma que ele pode ser consultado com facilidade (...). Muito me honra o conceito que V. Sa. Faz de minha modesta nota sobre a vegetação do rio Purus.

Para finalizar, volto à cartografia da ciência mencionada por Naylor. Em 1906, o rio Purus surge recriado no discurso do diplomata-engenheiro e do cientista, incorporado ao território nacional, objeto de intervenções governamentais destinadas ao povoamento e à navegabilidade, espaço aberto à coleta de fragmentos do mundo natural, ao teste de hipóteses e à formulação de teorias científicas. Nesse sentido, as expedições do Museu Paraense e da Comissão Mista Brasileiro-Peruana, com seus respectivos cientistas-intelectuais, podem não apenas ser vinculadas às demandas políticas da Primeira República, como a demarcação de fronteiras e a exploração do território, mas também a um processo mais amplo de construção de uma imagem edênica da Amazônia, fundamental para a própria consolidação das ciências naturais e para os projetos de intervenção do poder político.

75

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.