Ciências da Comunicação - Marcelo Bulhões

June 7, 2017 | Autor: Janine Seus | Categoria: Sociology of Communication
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Descrição do Produto

Direção Editorial Osvando J. de Morais – UNESP Presidência Jerônimo Carlos Santos Braga Osvando J. de Morais – UNESP

Conselho Editorial

Afrânio Mendes Catani – USP Ana Sílvia Davi Lopes Médola – UNESP António Fidalgo – UBI-PT Antonio Hohlfeldt – PUC-RS Jane Marques - EACH – USP Jerônimo Carlos Santos Braga José Esteves Rei – UTAD-PT e UNICV-CV José Marques de Melo – Cátedra UNESCO Marcelo Bulhões – UNESP Maria Ataíde Malcher – UFPA Maria Cristina Gobbi – UNESP Maria Érica de Oliveira Lima – UFC Mauro de Souza Ventura – UNESP Norval Baitello – PUC-SP Osvando J. de Morais – UNESP Paulo B. C. Shettino Paulo Serra – UBI-PT Ricardo Iannace – FATECSP Simone Antoniaci Tuzzo – UFG Sylvia Furegatti – UNICAMP

© 2015 OJM CASA EDITORIAL Editor Osvando J. de Morais Projeto Gráfico e Diagramação Mariana Real e Marina Real Capa Mariana Real e Marina Real Revisão Carlos Parreira

FichaCatalográfica Catalográfica Ficha

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas / Organizadores, Marcelo Bulhões, Osvando J. de Morais. – Sarapuí, SP: OJM Casa Editorial, 2015. 768 p. E-book. ISBN: 978-85-68371-03-9 1. Comunicação-Teoria. 2. Comunicação-Pesquisa. 3. Comunicação-Processo. 4. Comunicação de massa. 5. Meios de comunicação. I. Bulhões, Marcelo. II. Morais, Osvando J. de. III. Título. CDD-302.2

Todos os direitos desta edição reservados à OJM – Casa Editorial Loteamento Cruzeiro do Sul, Quadra 1 – São João CEP: 18225-000 Sarapuí – SP www.ojmeditora.com.br

Ciências da Comunicação Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

Marcelo Bulhões Osvando J. de Morais organizadores

Sarapuí - SP OJM Casa Editorial 2015

Sumário

Apresentação.........................................................................15 Marcelo Bulhões Osvando J. de Morais

1ª Parte – Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas Capítulo 1 APRECIADOR OU CONSUMIDOR: ­reflexões acerca da massificação da Arte na contemporaneidade ........................... 28 Ana Beatriz Buoso Marcelino

Capítulo 2 Conflitos Construtivos: Desafios ­introdutórios da pesquisa em comunicação.......................................................... 61 Ana Heloiza Vita Pessotto Capítulo 3 Lei de Acesso à Informação: ­fortalecimento da comunicação p­ ública na visão da esfera pública habermasiana...........................................................................101 Bruna Silvestre Innocenti Giorgi Capítulo 4 A indústria cultural no contexto da sociedade do conhecimento.......................................................................137 Camila Silva Ferreira Capítulo 5 O Agendamento no ­Jornalismo Popularesco: Considerações teórico-empíricas sobre os televisivos Documento Especial e Aqui Agora............................................153 Carlos Alberto Garcia Biernath Capítulo 6 Espiral do silêncio, opinião pública e representação da mulher na mídia...................................................................179 Daniele Ferreira Seridório Laís Modelli Rodrigues

Capítulo 7 Comunicação: Inquietações da Área........................................211 Emanuelly Silva Falqueto 2ª Parte – A Comunicação, Meios e Interações Capítulo 8 Jornalismo e história: o jornal como fonte e objeto dos estudos históricos...............................................................237 Aline Ferreira Pádua Capítulo 9 Henry Jenkins e Andrew Keen: A Cibercultura sob diferentes olhares..............................................................273 Felipe de Oliveira Mateus Capítulo 10 Hiperlocal como um elemento de ­convergência entre a digitalização e o reforço de identidades.....................300 Giovani Vieira Miranda Capítulo 11 Jornalismo de dados: influência da construção narrativa no agendamento midiático......................................................328 Kelly De Conti Rodrigues

Capítulo 12 A construção da notícia: ­correlacionando conceitos de Rodrigo Alsina e Wolf...........................................................352 Renan Milanez Vieira Capítulo 13 Memória: de reminiscências p­ articulares a instrumento de c­ omunicação organizacional...............................................375 Wanessa Valeze Ferrari Bighetti 3ª Parte – Críticas e Processos Comunicacionais Capítulo 14 As Jornadas de Junho e as abordagens de Gohn e Traquina: uma revisão bibliográfica........................................405 Ana Cristina Consalter Amôr Capítulo 15 Aves que não cantam: paralelos entre a ornitologia e a comunicação........................................................................461 Guilherme Sementili Cardoso Capítulo 16 O cenário globalizado no jornalismo internacional: expectativas, desafios e influências.........................................491 Maria Carolina Vieira

Capítulo 17 Estudos culturais e comunicacionais como forma de auxiliar na inclusão do homossexual masculino no ambiente organizacional..........................................................520 Matheus José Prestes Capítulo 18 Intertexto da literatura para o cinema: um estudo sobre Bakhtin e a adaptação cinematográfica do gênero noir ..........................................................................546 Natália de Oliveira Conte Delboni Capítulo 19 Seriados fora do fluxo: possibilidades e recursos narrativos na criação de ficções seriadas televisivas distribuídas por serviços sob demanda....................................571 Octavio Nascimento Neto

4ª Parte – Dinâmica das Práticas Acadêmicas Capítulo 20 O futebol como cultura no Brasil: da paixão à profissionalização..................................................................598 Bárbara Bressan Belan

Capítulo 21 A cultura de fãs e fandom como perspectiva das práticas participativas de consumo de mídia..........................630 Camila Fernandes de Oliveira Capítulo 22 Distorções da modernidade: o não lugar da imagem pictórica de fausto em Murnau e Sokúrov...............................656 Fabrício Mesquita de Aro Capítulo 23 Representações Sociais da Profissão de Relações Públicas no Cinema: Análise sobre o Filme Thank you for smoking .............................................................674 Lucas Sant’Ana Nunes Capítulo 24 O desafio da publicidade na pós-modernidade.......................704 Natália Azevedo Coquemala Capítulo 25 Futebol “arte” x futebol acadêmico: uma análise foucaultiana a respeito da ordem dos discursos.....................723 Nathaly Barbieri Marcondes

Capítulo 26 Fotografia, comunicação e linguagem: O desafio da pesquisa imagética..............................................................749 Neide Maria Carlos

Apresentação

Apresentação Ciências da Comunicação

As Ciências da Comunicação no Brasil sempre foram ancilas das teorias europeias, canadenses e estadunidenses, apreendidas em seus centros de origem e trazidas como novidades pelos estudantes brasileiros que, após serem transformados em professores-doutores, tornam-se delas vetores ao se incumbirem da tarefa de sua disseminação no país. Este é o ponto de partida nevrálgico de nossa pesquisa na área de comunicação. Até agora, ainda não tivemos propostas teóricas capazes de retornar às nossas origens, à nossa história e aos antecedentes de nossa construção como sociedade com justificativas aprofundadas capazes de mostrar o que somos e em quê nos tornamos, mais ainda diante das ideias em rotação e da espiral tecnológica aceleradamente ascendente. E, este será o nosso grande desafio.

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Organizamos neste livro, os textos produzidos pelos alunos que cursaram a disciplina Teorias da Comunicação da UNESP-Bauru no primeiro semestre escolar de 2015, a partir dos debates provocados pelas leituras destas mesmas teorias já consideradas como clássicas, com o intuito não somente de construir uma base teórica para os seus projetos de pesquisa, mas para pensar criticamente as potencialidades de uma nova teoria. Para tanto, percorremos juntos os sequenciados esforços empreendidos para consolidar o espaço da prática de pesquisa e reflexões acadêmicas teóricas do campo da Comunicação. Pretendendo ainda, demarcar o espaço de seu estudo dentro da grande área do Conhecimento que constituem as Ciências em nossa área. Por exemplo, no Brasil, para que as Ciências da Comunicação obtivessem o reconhecimento de sua unidade e de sua organicidade sistêmica da complexidade científica, norteadora de um segmento importante como o da comunicação, não basta o desejo inato de buscar o conhecimento que se encontra enraizado em todo exemplar de ser humano. Seria mais que tudo necessário retornar às ideias, obras e autores, no contexto de nosso passado histórico, voltado agora para o século XXI, avaliando as contribuições ao pensamento comunicacional que vem em movimento contínuo e em amplificação desde os meados do século passado, caracterizado por usos servis de teorias importadas de outros continentes, que não falam obviamente de nossa experiência, de nós mesmos e de nossa identidade. O objetivo geral deste livro é também abordar as Teorias da Comunicação, situando as comunicações no 16

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Brasil em um conjunto de textos clássicos que discutem as práticas brasileiras, não somente do ponto de vista da formação do pensamento crítico, desenvolvido em nosso país, mas também empreender uma tentativa de avaliar as influências advindas destes autores, bem como os modos específicos de amalgamar e deglutir as ideias que aqui chegaram e perceber a evolução destes mesmos pensamentos, em um processo de amadurecimento até os nossos dias. O evidente caráter mestiço da cultura brasileira forjada nos tempos primeiros da colonização que se formou a princípio no convívio com a cultura europeia, e ainda enfrenta obstáculos observáveis quando se compara com o pensamento dos autores de hoje, analisados e debatidos, no contexto da cultura brasileira, que em suas raízes e convívio com instituições, em suas explicações teóricas, não aprofundam as análises das causas socioculturais, sem refletir no plano das ideias uma sociedade em constante mutação. Neste momento da história da cultura no Brasil as características subservientes ainda persistem: por exemplo, na carência de orgulho nacional e racial – sentimentos de nativismo e identificações de origem têm recebido aceitação e repúdio (este em maior grau), alternadamente, conforme sopram os ventos dos modismos. Desvios de olhares aprovadores ora para a próxima e própria circunstância ora para a ubiquidade atenta e atraída pelo global. É no interior desta formação paradoxal que elementos importantes podem ser observados ainda hoje, nos 17

Apresentação

modos de ser, diante de pouca teoria e ainda na tensão entre sociedade e instituições com paradigmas e ­problemas estranhos, ardilosamente servis para discussões sobre o estágio que se encontram as ciências sociais e humanas no país. Os teóricos que fundamentam as ideias que são discutidas na área das Ciências de Comunicação formam um corpo substancial com pouco pensamento novo, embora muita produção, traduzindo as variadas dimensões da diversidade de pensamentos reciclados e que são aplicados à comunicação, em um processo continuo sem mudanças, que não ajudam a perceber como essas mesmas mudanças influenciaram as novas gerações a repetir comportamentos que definem politicamente, de maneira marcante, no desenvolvimento de uma área complexa como a da Comunicação. E eis que surge uma nova realidade no contexto da comunicação no novo século: desenvolvimento vertiginoso dos mass media, reféns da aceleração das pesquisas científicas de base que alimentam as Ciências Sociais Aplicadas – Tecnologias, voltadas para o incremento e produção de instrumentos e artefatos utilizados nos processos comunicacionais com rapidez de obsolescência, em razão de curto período de uso e já suplantado por um mais ‘novo’ e atual modelo. E, neste contexto, as instituições de mídia ganham força e assumem papéis importantes (normativo e na formação do ‘juízo’ público), a confirmar sua condição de poder junto aos poderes do estado já antevisto pelo historiador inglês, Thomas Carlyle, desde os meados do 18

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séc. XIX – notadamente na área de telecomunicação com suas qualidades atuais de portabilidade, ­simultaneidade e ubiquidades refletidas nas intercomunicações individuais e de grupo viabilizadas pela Internet. Quase todas as grandes teorias não conseguiram consolidar o campo acadêmico da Comunicação no Brasil, pois em seus usos estão contidos imposição de ideias, de valores e de discursos como consequência da divisão desigual do mundo. O propósito de tais imposições é subsidiar as novas gerações de pesquisadores com elementos que inibam as resistências. A estratégia é mostrar que os espaços não se fortalecem criticamente na área por meio dos modelos de pensamento comunicacional local, pois, quando demandados pelas transformações e práticas locais, principalmente as de cunho cultural e comunicacional, são inúteis pois é o global que predomina. A Comunicação em nosso país mudou no que diz respeito aos media, a indústria cultural, a pesquisa e ao ensino. No entanto, as teorias não refletem essa mesma mudança. Pode-se afirmar que à Comunicação no Brasil competiria refletir e debater essa visão alienígena; deveria registrar a ausência, o esquecimento e o desprestígio das teorias dos pesquisadores locais, e também do continente Latino Americano. Pouco se vê nas pesquisas das grandes instituições nacionais trabalhos centrados e fundamentados por autores que participaram ou participam dos grandes embates sobre a construção do universo multifacetado da Comunicação e as causas desta fragmentação. O que se oberva é uma repetição de citações e usos dos mesmos autores e ideias, reutilizando ­conceitos, 19

Apresentação

dispensando reconceituações que deveriam levar em conta elementos e valores das “realidades” locais. Os trabalhos aqui apresentados refletem a cisão observada no meio acadêmico entre os puramente teóricos de um lado e do outro, os tecnólogos, enfatizando a prática; percebe-se ainda a mesma cisão entre Universidade e Mercado frente às diferentes habilitações profissionais ofertadas àqueles que buscam o aprendizado na área. Tais discussões, em latência nos projetos acadêmicos de jovens-pesquisadores, afloram por meio de temas presentes neste livro, especificamente, documentados aqui nos artigos, como resultantes dos trabalhos reflexivos desta nova geração de estudantes da UNESP. Em nosso projeto para a disciplina Teorias da Comunicação, o propósito constante é buscar referências, principalmente em textos clássicos de pensadores nacionais e também àqueles universais que influenciaram a comunicação no Brasil. Este foi o caminho encontrado para fazer a passagem inaugurada no século passado para o atual, mas indo mais além, voltar no tempo e situar os nossos autores ante às influências fundamentais para se entender, pelo viés epistemológico, a Comunicação nos Séculos XX e XXI. Neste sentido, somos conduzidos a voltar nossa atenção para a Comunicação em seu estágio atual de existência, embora ainda no começo do novo século, demandando primeiramente associá-la ao poder das novas plataformas, ou ainda aos que se apropriaram da Comunicação, exercendo o poder econômico de forma tanto concreta quanto simbólica, para depois empreender a 20

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complexa tarefa de entender a sociedade mediatizada de massa, assim como os produtores de conteúdo que veiculam seus trabalhos nos meios de difusão coletiva com grande peso ideológico. No entanto, pensar mais e ver mais longe, poder-se-ia dizer que, sem sombra nenhuma de dúvida e nenhum medo de errar, tratar-se de buscar as grandes referências para projetos que queiram se vincular às práticas atuais, mas que necessitam, acima de tudo, de justificativas teóricas que deem conta de um sentimento impreciso que ainda se encontra em construção. É nítida a presença dessa mistura ambígua nos artigos que traduz opções e ênfases colocadas nas disciplinas dos cursos de graduação em comunicação. Acredita-se na necessidade de mapear o Campo no Brasil, em constante mutação, cheio de armadilhas e contradições. Neste território, há cruzamentos que colocam à mostra os movimentos da academia, os questionamentos e discussões sobre as dificuldades de se ler e lidar com nossos autores, pois os pesos e medidas recaem sempre positivamente nos autores internacionais. São empecilhos aos avanços necessários, envolvendo tanto os teóricos quanto os técnicos, que por sua vez também participam autores da moda em um mercado de ideias em rotação, estimulados, principalmente, por uma visão não muito clara, e mais ainda, como nação recém-nascida que aceita e recebe com fervor as concessões. A cultura de massa tal como é praticada no Brasil, merece uma abordagem especial, dado que, vivemos e sofremos influências provenientes da Europa, EUA e 21

Apresentação

­ anadá, de visíveis consequências. O Cinema, a TeleviC são, o Jornalismo são o resultado da interação entre teorias e práticas importadas em processos contínuos sem aclimatação, amadurecimentos e adequação à nossa realidade. A antropofagia tão decantada cedeu seu lugar a uma subserviência sem crítica, predatória e dominadora. Por isso mesmo, Ciro Marcondes Filho alerta ironicamente, sem perder o rigor científico, que a Academia não gosta de comunicar e de comunicação, preferindo os discursos técnicos e vazios sobre as parafernálias. É neste sentido que as ideias marcondesianas da Nova Teoria da Comunicação ocupam importante espaço em nossas reflexões. Diversas teorias que constam do catálogo, assumidas como matrizes seminais não conseguem justificar um pensamento que tenha sido desenvolvido no Brasil e na América Latina. As consequências e os resultados dos usos políticos das teorias da comunicação em quase todas as instituições de ensino público e privado geram sentidos perversos no ensino e na pesquisa em comunicação. Não se trata aqui de retomar a velha divisão proposta por Umberto Eco, entre apocalípticos e integrados, mas de uma sequência de projetos políticos implantados no Brasil cujos resultados são perceptíveis na formação de pesquisadores e docentes cujas identidades e consciência de suas raízes, oscilam. Faz parte da luta reconhecer o trabalho daqueles que palmearam cada espaço, demarcando territórios, como os bandeirantes. Por outro lado, reabilitar os pensadores brasileiros, é um dever em função não somente da 22

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importância de suas ideias, mas também dos desdobramentos da comunicação nos dias atuais. À construção do Campo da Comunicação também faz emergir implicações políticas e influências de ideias dominantes que chegaram até aqui, mudando os modos de pensar e praticar a comunicação no Brasil, maquiando as especificidades locais, substituindo o processo de vivência e amadurecimento lento que redundaria, no mínimo, na reconstrução dos conceitos. Por isso, a comunidade acadêmica da área de Comunicação, representada pelos livros e ideias dos autores analisados ainda briga por estabelecer conceitos como o de comunicação, fazendo valer aqueles outros que nos chegam prontos, tarefa segura e facilitadora em todo o processo de ensino e pesquisa. E o resultado, como se constata tanto no Brasil como em toda a América Latina, é o mesmo sentimento da atração vertiginosa, diante do conquistador, como o Moctezuma suicida ao receber historicamente, de maneira hospitaleira e cordial, os espanhóis. A Comunicação é um verdadeiro mercado de ideias que circulam na academia sendo essa como locus hipoteticamente apropriado de reflexão, inclusive sobre o próprio mercado. São polos antagônicos que, por um lado, desvelam uma aquiescência ao pragmatismo, e por outro, uma tentativa de conjugar uma consciência crítica com conhecimento profundo que acabaria garantindo trabalho duradouro, independente das ondas tecnológicas.

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Apresentação

As distorções curriculares, neste sentido, sempre existirão, pois as universidades ainda não aprenderam uma maneira de conviver com a tradição do país confrontada com a universal, com um acurado cotejamento frente às novidades. Por isso mesmo, dá-se o clichê da aparição de forças de ação e reação que traduzem as tentativas de ingerências do mercado na academia. Busca-se preservar, porém, em concomitância ao convívio com o novo, com o sempre novo, sem cair nas armadilhas ideológicas oriundas da crença de que a tecnologia resolve todos os problemas e traz soluções infalíveis, inclusive da qualidade de ensino e pesquisa. No contexto geográfico continental que habitamos, a consciência do gigantismo nacional traz discussões que exigem que não se deixe de ressaltar que os diálogos são necessários entre as regiões do país, com enfrentamento das suas diferenças e semelhanças nas abordagens da comunicação, seja do ponto de vista dos conglomerados comunicacionais, ou da academia, representando o ensino e a pesquisa. Pensa-se, sobretudo, em uma resistência crítica, necessária à inserção do pensamento universitário e também à convivência pacífica e utopicamente construtiva com o mercado. E justo nessa problemática é que se localiza um distanciamento entre Graduação e Pós-Graduação. As quase sempre sutis diferenças entre as teorias das matrizes comunicacionais estadunidenses, europeias e canadenses produzem seus efeitos e influências de modo também diferenciado e de acordo com cada realidade da 24

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América Latina. Neste contexto, as habilitações profissionais em Comunicação de cada país latino-americano ganham contornos que não deixam de se manifestar não somente em diversidade de cores, mas também nas vozes encarregadas de misturar diferentemente. São as culturas que, multiplicadas em comunidades se alimentam paradoxalmente de aparatos midiáticos, ao mesmo tempo em que tentam resistir a seu domínio e, elas próprias, porém, já se sentindo melhor aparelhadas e preparadas para o enfrentamento da ameaça que representa a força cada vez maior do poder político e econômico. São os choques culturais provocados pelas diferentes realidades socioeconômicas mostradas pelos meios de comunicação de massa, contrastando com aquela vivida na prática cotidiana. O século XXI, diante dos avanços tecnológicos e do acesso cada vez maior dos produtores/consumidores de informação e de ideologias, demanda por teorias que abarquem não somente a comunicação por meio de redes sociais, mas também incluir as novas práticas que estes usos implicam. As consequências desta grande mudança, começada no final do século passado e que continua de maneira aprofundada e muito mais acelerada no atual, ainda não foram sequer imaginadas em sua totalidade, muito menos configuradas, no que se refere a conceitos e teorias. Assim, diante das dificuldades naturais de se trabalhar com a contemporaneidade, entendida como fenômeno ainda em processo, a realidade brasileira e a 25

Apresentação

c­ omunicação podem se constituir em um grande laboratório, fornecendo elementos históricos, funcionando como guia aos pesquisadores iniciantes, justo no intuito de lhes instigar a prosseguirem em sua árdua e ao mesmo tempo prazerosa viagem. Os organizadores

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1ª Parte Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

Capítulo 1 APRECIADOR OU CONSUMIDOR: ­reflexões acerca da massificação da Arte na contemporaneidade. Ana Beatriz Buoso Marcelino1

Introdução A Comunicação resume-se em trocas simbólicas de relações entre os seres humanos, nos mais diversos níveis. Entender estes processos torna-se, contudo, de suma importância à sobrevivência, e inteirar-se com os diversos meios de comunicação significa participar da vida ativa e crescer junto à sociedade. No atual mundo contemporâneo, convivemos com os mais diversos Meios de Comunicação (MC) eliciados 1. Mestranda em Comunicação Midiática (Faac / Unesp). Especialista em Educomunicação (USC), em Arte-educação (IA/ Unesp) e em Educação Especial (FJB). Graduada em Artes Visuais (Faac/Unesp) e em Pedagogia (Uninove). Atua como arte-educadora no ensino público da rede estadual e municipal da cidade de Bauru. E-mail: [email protected]. 28

pelo Homem, ao longo de sua evolução histórica, sejam eles impressos, interativos, imagéticos, sonoros, etc. Permeando o processo comunicativo, podemos perceber as influências a serem digeridas por seu público alvo, em várias dimensões. Moran (1990) argumenta sobre este apontamento, relatando a importância da compreensão dos MC para se passar de uma consciência ingênua para a crítica, superando-se preconceitos de modo a captar a complexidade das dimensões envolvidas. Dessa forma, educar para a Comunicação tornou-se evidente ao longo das décadas, a partir de uma necessidade advinda do contexto sistematizado, da qual se insere o indivíduo na sociedade atual. Neste aspecto, entretanto, destaca-se o suntuoso recurso paradigmático de ação dos MC na formação cultural dos sujeitos. Daí a pertinência do termo Cultura de Massa, oriundo das pautas dos críticos modernos do século XX, que aparece entrelaçado à ideia de Indústria Cultural – ainda que alguns teóricos se esquivem de separá-los. Ambos, contudo, permeiam significações voltadas aos diversos fenômenos decorridos dos amplos avanços tecnológicos da sociedade moderna, em particular dos diversos modos de produção em sintonia com a sociedade industrial e o Sistema Capitalista, que realçados pelos Meios de Comunicação de Massa (MCM), inferem diretamente no ser social, a questão da individualidade, a ética, a política, os próprios sistemas de comunicação, a cultura, a arte e a estética (ADORNO e HORKHEIMER, 1985). 29

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Entre tantos efeitos causados pelos MCM, destaca-se o uso abusivo de recursos culturais como estratégia de persuasão, conforme já apontava Adorno (apud COHN, 1971), para justificar a Indústria Cultural. Assim, temos a arte como eleita, gerando uma série de entremeios a serem estudados com destaque para a questão de sua essencialidade e supremacia. Benjamin (1975) a coloca como fenômeno supra entre tantos outros designados pelo ser humano, proferindo sobre a perda da aura da obra de arte justificando sua complexa inserção na sociedade moderna, face aos meios tecnológicos de reprodução em série. Jauss (1979) reflete sobre as ideias de Benjamin ao explanar sobre a Estética da Recepção, concebendo aos MCM o resultante da sujeição da estética artística em sua essência primeira conforme o processo fruitivo, o que denomina “efeitos da arte”. Dessa forma, considera que a experiência estética não se estabiliza através de um debate tradicional, e volta-se a discussões teórico-histórico-filosóficas da arte, ao apontar a influência da estética hegeliana que define o belo como o aparecimento sensível da ideia. Assim, a arte apresenta-se passível de estudo e análise crítica, e também como peça de ação para o caminho da Educomunicação. Contudo destaca-se o Ensino de Arte como sistematização do processo de educação do olhar dos sujeitos, investindo, contudo, na formação de cidadãos mais perceptivos, perspicazes e críticos ante aos subsídios intrincados pelos MCM. BUORO (2002) evidencia soluções no Ensino de Arte para solucionar a formação do olhar crítico do 30

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l­eitor, através da leitura de textos visuais, apoiando-se na semiótica greimasiana e na metodologia pedagógica da Proposta Triangular do Ensino da Arte: o apreciar, o fazer, o contextualizar (BARBOSA, 2001): A presença da obra de arte possui, na vida do sujeito leitor, várias possibilidades e manifestação. Um olhar sensível e aberto, [...] é capaz de captar ainda que intuitivamente os sentidos que a obra de arte lhe disponibiliza. Ante aos processos de massificação que as culturas imprimem ao homem urbano contemporâneo, vetando-lhe a capacidade de ver o mundo com nitidez, a construção de um leitor dependerá do resgate realizado no contexto de um trabalho sistemático e embasado de educação do olhar. (BUORO, 2002, p. 237)

Hernández (2000) complementa o posicionamento de Buoro, acrescentando soluções práticas do Ensino de Arte em ação transdisciplinar e íntegra na escola, como disciplina fundamental para a formação de sujeitos críticos perante a Cultura Visual e seu universo de significações. Moran (1990), entretanto nos aponta a importância da inserção e participação dos Meios de Comunicação na escola como pauta de estudo e análise, o qual propõe reflexões e argumentos sobre esta problemática, além de apontar soluções pragmáticas de ação, através de uma série de estratégias embasadas na Arte-Educação como peça norteadora das ações educomunicativas, a fim do desenvolvimento de um olhar c­ rítico 31

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

de mundo à formação de cidadãos mais conscientes, sensíveis e perceptivos.

A Arte e a Indústria Cultural O termo Indústria Cultural é considerado hoje por alguns estudiosos como ultrapassado, no entanto, é curioso como há mais de meio século ele ainda permanece legítimo, tendo seu patriarca como uma espécie de visionário. Quando Adorno (apud COHN, 1971) apontou sobre Indústria Cultural em um discurso proferido durante uma conferência radiofônica na Alemanha em 1964, levantou a suspeita de que a ideologia da Indústria Cultural havia anestesiado a atitude de ação e persuasão dos sujeitos, que indefesos às “artimanhas midiáticas” haviam se tornado o objeto de sua ação, rebaixando sua posição de consumidor como o sujeito da ação (“o rei”) para objeto – embora todas as providências fossem tomadas para que se fosse entendido o contrário. Em mesmo discurso, o autor descreveu que os mecanismos de manipulação eliciados pela Indústria Cultural conferem efeitos de imediatismo calculado à autonomia dos produtos, que por sua vez possuem eficácia comprovada, concluindo que o sujeito/objeto coagido é peça de confiança à mercê dos detentores do poder, que via processual tornam a distância social cada vez maior entre as classes. Adorno questionou estes mecanismos para com a questão da autonomia dos produtos gerados pela In-

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dústria Cultural, apontando não só questões de relevância política e social, mas também cultural, exprimindo o problema da arte em sua legitimidade, afirmando que a obra de arte nunca havia existido de forma pura “sempre foi marcada por conexões de efeito, [e agora] vê-se no limite abolida pela Indústria Cultural” (apud COHN, 1971, p. 288). Ao elucidar a Indústria Cultural, Adorno explana sobre o aspecto da sujeição da arte, afirmando que a mesma distingue-se radicalmente da arte popular produzida pela Cultura de Massa que a define, através de produtos adaptados para o consumo das massas que por sua vez, é determinado: A indústria cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores. Ela força a união dos domínios, separados há milênios da arte superior e da arte inferior. Com o prejuízo de ambos. A arte superior se vê frustrada de sua seriedade pela especulação sobre o efeito; a inferior perde, através de sua domesticação civilizadora, o elemento de natureza resistente e rude, que lhe era inerente enquanto o controle social não era total. (in COHN, 1971, p. 287-288)

Adorno continua sua crítica, reiterando a questão da mercadoria cultural, que é motivada pela Indústria Cultural através da práxis do lucro às criações do espírito, que acabam por se contaminar ao assegurar a vida de tais produtos no mercado:

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A autonomia das obras de arte que, é verdade, quase nunca existiu de forma pura e que sempre foi marcada por conexões de efeito, vê-se no limite abolida pela indústria cultural. [...] As produções do espírito no estilo da indústria cultural não são mais também mercadorias, mas o são integralmente. (in COHN, 1971, p. 288-289)

O autor explana sobre a questão da aura da obra de arte, ao relatar as ideias de Benjamin (1975), confirmando que a Indústria Cultural “serve dessa aura em estado de decomposição como um círculo de névoa. Assim, ela própria se convence imediatamente pela sua monstruosidade ideológica.” (apud COHN, 1971, p. 290), numa posição extremamente apocalíptica. O que para o autor já não era novidade, assim como a arte, tudo se tornara mercadoria e objeto de consumo, unicamente um produto gerador de lucro, detento de um poder sutil e sedutor de induzir os indivíduos. O progresso promíscuo e a geração do “insistentemente novo” estandartizado havia se tornado o elixir do consumo, do qual a sociedade não hesitava de se embriagar. O individualismo havia se fortificado com os modos de produção, norteados pela divisão do trabalho e o autor, não obstante, condenou-o argumentando que “a individualidade mesma contribui para o fortalecimento da ideologia, na medida em que se desperta a ilusão de que o que é coisificado e mediatizado é um refúgio de imediatismo e de vida.” (apud COHN, 1971, p 289). Adorno considera a informação gerida pela Indústria Cultural como pobre e fútil e, segundo afirma, dá a falsa 34

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sensação de abastamento, repercutindo em comportamentos conformistas e a ilusão de uma vida verdadeira, gerando o processo de uma dialética negada, onde o indivíduo aceita sem defesa o “imperativo categórico” da Indústria Cultural, negando a sua própria liberdade de ação. O autor argumenta citando Platão: “quando ele diz que o que é objetivamente, em si, falso, não pode ser verdadeiro e bom subjetivamente, para os homens” (apud COHN, 1971, p 293), em anteparo aos defensores da mesma. Adorno, afirma que não há certezas concretas passíveis de salientar o efeito regressivo da Indústria Cultural, porém, a “gota d’água” conforme coloca, estaria no fato que “o sistema da indústria cultural reorienta as massas, não permite quase a evasão e impõe sem cessar os esquemas de seu comportamento” (apud COHN, 1971, p 294), “furando” dessa forma a pedra da consciência. Ainda conclui que “a dominação técnica e progressiva, se transforma em engodo das massas, isto é, um meio de tolher a sua consciência. Ela impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente” (apud COHN, 1971, p. 295). Todavia, o pensamento de Adorno beira a um negativismo extremo. Pensar na apatia como uma fragilidade para fisgar os sujeitos é deveras depressivo. No entanto, o autor não estava equivocado ao proferir sobre as maquiavélicas artimanhas de persuasão utilizadas pelos MCM. O que entra em discussão, entretanto, é a questão dos sujeitos como seres subjugados e de fácil encantamento. Segundo a Retórica de ARISTÓTELES (2006) a 35

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denominação pathos2 pode elucidar tal pressuposto, já que coloca o indivíduo na posição daquele que recebe livremente a informação, sem imposições forçadas, porém, que acaba sendo abduzido por sua própria emoção. Daí a ideia de que o ser humano deve aprender a lançar o seu olhar sobre os objetos de forma a desenvolver seu senso crítico e então saber discernir o que é bom ou nefasto para si. Eco (2004) nos mostra um lado mais ponderado, apontando tanto argumentos positivos quanto negativos da Indústria Cultural, o que chama de “defesa” e “acusação” da Cultura de Massa, colocando outro ponto de vista sobre o fenômeno, apontando não só os efeitos negativos que os frankfurtianos defendiam, mas também os positivos. A defesa, conforme supõe, coloca pontos de relevância para a análise do fenômeno. Inicia afirmando que a Indústria Cultural não é típica do Sistema Capitalista, ela nasce de qualquer sociedade do tipo industrial, da qual toda a massa de cidadãos se vê participando, com

2. Dos estudos de Aristóteles, Ethos, Pathos e Logos; Pathos se refere à sensibilidade do auditório (aquele que recebe a informação), a variável em função das características do mesmo. A ideia é que o orador deve selecionar as estratégias adequadas para provocar em seu receptor as emoções e as paixões necessárias para suscitar sua adesão e assim, induzi-lo a mudar de atitude e comportamento. Para tanto é necessário que o orador use de argumentos racionais sem deixar de usar o seu carisma e a sua habilidade oratória. (ARISTÓTELES, 2006) 36

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direitos iguais da vida pública, dos consumos e da fruição das comunicações, portanto, considera a Cultura de Massa como uma parte integrante da cultura, por isso não pode ser unificada. Aponta também que os MCM em sua natureza podem incitar estímulos à inteligência (mentes mais críticas), o que denomina “mutação qualitativa”. A cultura local, segundo Eco, seria valorizada a partir da premissa que “a homogeneização do gosto [...] contribuiria para unificar as sensibilidades nacionais, e desenvolveria funções de descongestionamento anticolonialista em muitas partes do globo” (ECO, 2004, p. 47). Também a divulgação de conceitos seria estimulada e passível de aquisição, por valores mais acessíveis, ampliando os repertórios de valores estéticos e culturais, explicitados em “dimensões macroscópicas”. A sensibilização do homem contemporâneo, segundo o autor, seria elucidada pelo acervo de informações e o seu nível de acesso, tornando-o mais participativo e sensível da vida associada. Por fim, coloca o fenômeno da intensa renovação estilística, precursora de novas linguagens, promovendo o desenvolvimento. Já em acusações conclui que a questão da originalidade é afetada pelas “médias de gostos”, repercutindo em uma “cultura de tipo homogênea” interferindo por sua vez nas características culturais de cada etnia, originando o fenômeno da massificação. Em sintonia com essa premissa, afirma que o processo de “embotação” denota ao indivíduo a falsa sensação de aprendizagem e abastamento, que incônscio de si “sofre as propostas 37

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sem saber que as sofre” (ECO, 2004, p. 40). A secularização do gosto e a sensibilização promíscua também seriam afetadas pela Indústria Cultural, totalizando e homogeneizando a cultura. Influindo também no sentir, no pensar, segundo um processo de fruição profundamente afetado por sensações prontas e premeditadas. Os MCM, então, sujeitos ao lucro, direcionam seus produtos ao “gosto” do consumidor, sugerindo ao público o que ele deve gostar. A cultura superior aparece assim, inferiorizada pelas restrições de pequenas pinceladas que resumem o pensamento em fórmulas, desviando a atenção para outras informações menos esclarecedoras. Eco (2004) afirma que “Por isso, os MCM encorajariam uma visão passiva e acrítica do mundo. Desencoraja-se o esforço pessoal pela dose de uma nova experiência” (p. 41), além de, segundo o autor, entorpecer a consciência histórica informando somente o presente, às vezes exumando o passado por um nível superficial que subjuga a aura dos objetos, prejudicando assim, sua fruição. A criação de tipos através da imposição de símbolos e “mitos de fácil universalidade” fere, segundo aponta, o processo empírico do desenvolvimento do ser humano. A Indústria Cultural, segundo Eco é prolixa, reafirma o pensamento em opiniões comuns, gerindo uma “ação socialmente conservadora”. Impõe o conformismo no campo dos costumes, introduzindo preconceitos, favorecendo assim “projeções orientadas para modelos oficiais”. E conclui que os MCM apresentam-se

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[...] como o instrumento educativo típico de uma sociedade de fundo paternalista mas, na superfície individualista e democrática, e substancialmente tendente a produzir modelos humanos heterodirigidos. Vistos em maior profundidade, surgem como uma típica “superestrutura do regime capitalista”, usada para fins de controle e planificação das consciências. Com efeito, aparentemente, eles põem à disposição os frutos da cultura superior, mas esvaziados de ideologia e da crítica que os animava. Assumem os modos exteriores de uma cultura popular mas, ao invés de crescerem espontaneamente de baixo, são impostos de cima (e, da cultura genuinamente popular, não possuem nem o sal nem o humor, nem a vitalíssima e sã vulgaridade). Como controle das massas, desenvolvem uma função que, em certas circunstâncias históricas, tem cabido às ideologias religiosas. Mascaram, porém, essa função de classe, manifestando-se sob o aspecto positivo da cultura típica de uma sociedade do bem-estar, onde todos têm as mesmas oportunidades de acesso à cultura, em condições de perfeita igualdade. (Eco, 2004, p. 42-43)

Em vista das proposições proferidas pelo autor, somando-se às ideias destacadas pelos frankfurtianos temos então um quadro bastante complexo, caracterizado por um poder invisível que atinge as mentes ingênuas das massas, sobretudo as camadas menos abastadas da sociedade. Assim, levando-se em conta o grande contingente populacional que se encontra suscetível a esta

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ameaça, tem-se a educação como um recurso paradigmático de ação e, entre tantos efeitos causados pelos MCM, elicia-se a arte como disciplina possível de se trabalhar ativamente, gerando uma série de entremeios a serem estudados com destaques para a questão de sua essencialidade e supremacia, como fenômeno supra entre tantos outros designados pelo ser humano. Benjamin (1975) argumenta sobre a autenticidade da obra de arte, em consonância aos efeitos de reprodução dos MCM, questionando a presença da aura (instância de primeira natureza da obra de arte) nas reproduções técnicas da Indústria Cultural. O autor afirma que a arte em sua legitimidade torna-se ameaçada pelos efeitos massificadores, sendo passível de uma fruição promíscua, permissiva do desenlace histórico-cultural: [...] as técnicas de reprodução destacam o objeto reproduzido do domínio da tradição [e] substituem por um fenômeno de massa um evento que não se produziu senão uma vez [levando ao] abalo da tradição, o que é a contraface da crise que atravessa atualmente a humanidade e de sua atual renovação [que] se mostra em estreita correlação com os movimentos de massa, que hoje se produzem. (BENJAMIN, 1975, pp. 211-212)

Ao explanar sobre o caráter de reprodução da arte, cronologicamente, aponta anteparos aos meios de reprodução tecnológicos que surgiram junto a constante do século XX e suas radicais mudanças que resultaram em

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consideráveis divergências no cenário artístico da época salvo as antigas técnicas de reprodução de obras de arte, assim “... liberada de suas bases culturais pelas técnicas de reprodução, a arte já não mais podia sustentar suas pretensões de independência” (BENJAMIN, 1975, p. 219), convergindo para uma mudança de atitude das massas perante a obra de arte, onde o espectador conjuga o prazer da apreciação a uma experiência vivida correspondente, surtindo desta ligação uma importância social: À medida em que diminui a significação social de uma arte, assiste-se no público a um divórcio crescente entre o espírito crítico e a fruição da obra. Fruir-se, sem criticar, aquilo que é convencional; o que é verdadeiramente novo, é criticado com repugnância. (BENJAMIN, 1975, p. 229)

Ao descrever sobre autenticidade da obra de arte e o fenômeno da unicidade e sua relação entre espaço e tempo afirma que a mesma depende do contexto histórico que a define, tornando-a autêntica, ratificando tudo o que ela tem de “originalmente transmissível, desde sua duração material até seu poder de testemunho histórico.” (BENJAMIN, 1975, pp. 210-211). À aura define como a “única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima que ela possa estar” (p. 214) e argumenta com a fórmula espaço e tempo como “valor cultual da obra de arte”, conforme explana sobre a problemática da perda da obra de arte e seus efeitos para com as massas:

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Despojar o objeto de seu véu, destruir sua aura, eis um sintoma que logo assinala a presença de uma percepção tão atenta ao que “se repete identicamente no mundo”, que, graças à reprodução, ela chega a estandartizar o que não existe mais que uma só vez. Afirma-se assim, no domínio intuitivo, um fenômeno análogo àquele que, no plano da teoria, é representado pela crescente importância da estatística. A adequação da realidade às massas, bem como a conexa adequação das massas à realidade, constitui um processo de eficácia ilimitada, tanto para o pensamento quanto para a intuição. (BENJAMIN, 1975, pp. 213-214)

Em anteparo à natureza da arte ressalta a característica das massas em investir na perda da aura, ao tender para o consumo de proximidade conforme relação espacial e humana, acolhendo às reproduções propostas e depreciando “o caráter daquilo que só é dado uma vez”. Optam pela quantidade à qualidade. Entretanto, o autor coloca que a arte em sua natureza é hábil de uma renovação constante, pois “toda vez que aparece uma exigência radicalmente nova, abrindo caminho para o futuro, ela ultrapassa seus propósitos.” (BENJAMIN, 1975, p. 233). Analisando-se o pensamento do autor à luz contemporânea surgem alguns apontamentos, no que diz respeito à arte enquanto representação da realidade. Nesse aspecto podemos então definir seu caráter de totalidade, já que tudo se trata de uma representação da realidade,

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então, tudo supostamente seria arte? - remetendo-nos ao Mito da Caverna de Platão (2002)3. Assim, como seres acorrentados por nossas próprias decisões, estaríamos todos condenados à castidade pelo simulacro? Benjamin nos faz refletir através de questionamentos inquietantes, sobretudo no que diz respeito ao seu pressuposto de unicidade e à perda da aura. Nos dias de hoje, em meio a uma revolução tecnológica constante, nos cabe repensar tais conceitos para definir até que ponto eles ainda poderiam persistir. Todavia, o senso profético de Benjamin ainda reforça uma das principais funções da obra de arte: a educação, daí a necessidade de 3. Alegoria que explica como, através do conhecimento, é possível se captar a existência do mundo sensível (conhecido através dos sentidos) e do mundo inteligível (conhecido somente através da razão).  O mito aborda sobre as representações de sombras de estátuas projetadas nas paredes de uma caverna por uma fogueira vistas por prisioneiros acorrentados desde o nascimento. Os simulacros da realidade impressos pelas imagens com temática cotidiana, instigam a interpretação de tais indivíduos que analisam e julgam tais situações. Uma suposta fuga faria com que o sujeito entrasse em contato com a realidade e então descobriria a farsa. Ao voltar à caverna, ávido em relatar seu novo conhecimento adquirido, seria questionado já que os demais prisioneiros somente teriam como modelo de realidade a crença absorvida por seus sentidos. Platão (2002) nos concebe a ideia de que os seres humanos têm uma visão distorcida da realidade, e que segundo o mito, os prisioneiros na realidade poderiam ser nós mesmos, já que enxergamos e acreditamos apenas em imagens criadas pela cultura, conceitos e informações que recebemos durante a vida. A caverna simbolizaria o mundo, pois nos apresenta imagens que não representam a realidade. Só sendo possível conhecer a realidade, quando nos libertamos destas influências culturais e sociais, ou seja, quando saímos da caverna. 43

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se investir na alfabetização visual, para se ver melhor o que já não se pode detectar na ingenuidade da primeira vista. Torna-se necessário afastar-se do objeto para poder interpretá-lo criticamente. Revolução Cultural é o termo que MARCUSE (1973) utiliza para elucidar a necessidade de uma transformação total da cultura tradicional, com vista para seu potencial político, cujo objetivo geral estaria na denúncia da realidade e na libertação, de modo a “... romper o domínio opressivo da linguagem e imagens que há muito se converteram num meio de dominação, doutrinação e impostura.” (MARCUSE, 1973, p. 81). Tal caráter revolucionário que marca seu diálogo parte da necessidade de se valorizar a arte local, vinda de baixo, rompendo com a autonomia de uma “estética burguesa”: [...] uma linguagem que atinja uma população que introjetou as necessidades e valores dos seus amos e gerentes e os tornou seus, assim reproduzindo o sistema estabelecido em seus espíritos, suas consciências, seus sentidos e instintos. (MARCUSE, 1973, p. 81)

Tal pressuposto inconformista ecoa também em nossos dias representado através da arte contemporânea e sua complexidade de recepção, que contém muitas vezes em seu corpo o caráter subversivo tão almejado pelo autor, como um dos recursos possíveis para a revolução

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cultural - que ele chamou de processo de dessublimação da cultura, marca do divórcio entre a arte e a realidade, que colocara em conflito a cultura intelectual à cultura material (burguesa). No entanto, essa complexidade de compreensão da arte contemporânea vai além de uma simples apreciação. O que ocorre é que muitas vezes esta arte é pejorada pela ludicidade ou como uma mera atividade de lazer, além de muitas vezes estar sujeita a críticas negativas infundadas. Fazer pensar, provocar e propiciar reflexões é sua marca principal entrando diretamente em conflito com suas relações de preterimento. O alerta de Marcuse chama a atenção para a necessidade de se desenvolver o discernimento em seus receptores, não como meros consumidores, mas como legítimos apreciadores da arte, valorizando não apenas a cultura oriunda de seu meio, mas como agentes revolucionários e construtores culturais e, para que tal fato não caia nas garras da ideologia torna-se necessário investir com seriedade nesta proposição, tendo a educação como uma importante esfera de ação. Entretanto, a visão apocalíptica traçada pelos pensadores da Escola de Frankfurt nos faz pensar em soluções extremistas, todavia, considerando-se a complexidade individual dos sujeitos da contemporaneidade, seus processos cognitivos, intelectuais e sensíveis, podemos então falar, de um ser que é pensante, ativo e pertencente a uma esfera social. Daí o pressuposto de que o mesmo pode construir-se criticamente e pragmaticamente.

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Receptores ativos, construtores culturais Mesmo que seja considerada por alguns como antiquada, a Teoria Crítica enraíza os pressupostos que ainda conseguimos identificar na contemporaneidade, ecoando questionamentos ainda em voga. Contudo, voltando-se à questão da recepção da informação pelos sujeitos, em anteparo às artimanhas utilizadas pela Indústria Cultural, podemos apontar as ideias dos pensadores dos Estudos Culturais Ingleses. Sob fundamentação marxista não ortodoxa, tais autores concebem a cultura também como uma intervenção ativa por meio dos discursos que ela profere, com foco nas produções de sentido. Seu caráter pluralista aborda temas transdisciplinares que vão desde posturas ideológicas até o interesse pelas subculturas, conforme os paradigmas da antropologia interpretativa e da sociossemiótica. Segundo um eixo de observação que engloba as esferas da cultura, história e sociedade, a teoria elucida o surgimento de uma cultura pop nitidamente influenciada pelos MCM, sob a análise de múltiplos objetos, confrontando com a cultura genuinamente popular, elevando e destacando a mediação da classe trabalhadora, como sujeitos que pensam e questionam, mesmo com pouca erudição. Tal vertente teórica, coloca em cheque o modelo de pensamento marxista quanto à organização da sociedade. A cultura passa então, a assumir o papel de destaque, torna-se centralizada (diferentemente da perspectiva crítica que a considera horizontalizada). 46

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Por considerar e valorizar a cultura popular, rompe com o pensamento hegemônico de erudição. Williams (1969) mapeia a cultura e seus sentidos segundo uma gama de elementos que a compõe, considerando a esfera individual de cada ser e o meio que o cerca. Já Thompson (1998) elenca o poder simbólico como um dos poderes que ponderam as ações sociais dos indivíduos. O autor nos propõe, então, a ideia de uma cultura mediada pelos MCM, no entanto, sem subjugar a consciência de classe dos trabalhadores, já que, segundo o autor, os indivíduos seriam capazes de absorver a cultura em anteparo à passividade ou imposição, conforme coloca: [...] esta perspectiva crítica é também impregnada de um conjunto de pressuposições que são insustentáveis e que podem obstaculizar a compreensão da mídia e de seu impacto no mundo moderno. Devemos abandonar a ideia de que os destinatários dos produtos da mídia são espectadores passivos cujos sentidos foram permanentemente embotados pela contínua recepção de mensagens similares. Devemos também descartar a suposição de que a recepção em si mesma seja um processo sem problemas, acrítico, e que os produtos são absorvidos pelos indivíduos como uma esponja de água. (THOMPSON, 1998, pp. 30-31)

O autor parece aliviar nossos sentidos em anteparo ao peso instaurado pela Teoria Crítica. Porém não

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­ evemos nos esquecer de que ainda tais pesares são cond cretos e estão impregnados em comportamentos do dia a dia que são reforçados por uma suposta força atuante e invisível da hegemonia cultural. A questão é: como podemos identificar e ponderar tais efeitos massificadores, sem sermos negativistas ou otimistas demais? A solução poderia estar numa mediação cultural que valorizasse a pluralidade cultural, a diversidade e a formação dos indivíduos, mais uma vez apontando a esfera da educação como uma das possíveis soluções mais pragmáticas. Estudos contemporâneos realizados por Hall (2006) consideram a teoria da recepção focada da ação ativa dos sujeitos, da qual afirma que o significado depende da interpretação de quem recebe a informação, não somente de quem a transmite. Essa posição ativa do sujeito também foi considerada por uma falange dos Estudos Culturais que investigou as questões estéticas, representada por Jauss, Iser e Costa Lima (1979) que esclareceram alguns pontos através de suas hipóteses sobre a recepção dos sentidos produzidos pelos MCM. Os autores argumentam sobre a Teoria Estética da Recepção inserindo considerações sobre o que define “efeitos da arte” discursados pelos MCM, afirmando que a experiência estética ainda não se estabilizou com um debate tradicional, voltando-se às discussões teóricas histórico-filosóficas da arte. Segundo Jauss (1979), a obra de arte como produto é objetivado, hábil através do espaço e tempo produzido, de desenvolver in actu a práxis histórica e social. 48

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Jauss aponta para o problema de como fruir um produto da arte em momentos históricos distintos, consolidando a experiência estética como particular do repertório de cada espectador e não apenas privilégio dos especialistas. Voltando-se a Adorno como o sujeito de desligitimação da arte moderna e contemporânea, Jauss posiciona-se como apologista da experiência estética (desacreditada pelo teórico da Indústria Cultural), argumentando que a teoria de Adorno teria despertado o preconceito de que a arte de uma elite cultural cada vez maior, diante da multidão crescente de consumidores da Indústria Cultural, não teria mais salvação. Assim, considera que o contraste entre uma arte de vanguarda, apenas voltada para a reflexão, e uma produção dos MCM apenas voltada para o consumo, de modo algum faria justiça à situação atual. Tampouco estaria provado que a experiência estética, tanto da arte contemporânea quanto da arte do passado – que pelos MCM já não só atingiria a uma camada culta, mas se abriria para um círculo de destinatários até hoje nunca alcançados; aumentaria cada vez mais a distância cultural entre as classes. Jauss analisa a sujeição da arte a produtos mercadológicos apontando para o questionamento de sua essência, conforme os processos de produção e reprodução, mesmo sob as condições da sociedade industrial, resultando num processo de recepção passivo, um mero exercício de atividade estética, pendente da aprovação e da recusa. Segundo do autor, para sair do suposto “contexto de enfeitiçamento” total da práxis estética ­contemporânea, 49

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­everia ser restaurada a aura e sua contemplação d ­solitária, como medidas estéticas de uma essencialidade perdida. Ao justificar a recepção estética, Jauss coloca a tríade criação-comunicação-recepção como funções da linguagem e aponta o controle por parte do receptor que vai permitir a possibilidade de viver a experiência estética, passando pela sensação de domínio da situação, justificando sua teoria da prática consensual da qual irá proferir o espectador, ao determinar uma escala de valores que filtra e define a práxis da experimentação, permitindo adesão ou rejeição estética. Também entidades da pragmática da comunicação humana, movidas por um processo contínuo incluindo o subconsciente, de classificação humana, atitudes como dedução, indução e analogia seriam segundo o autor, mecanismos adotados pelos sujeitos a todo o momento, sem que se possa refreá-los. Dessa forma, diferentemente dos apontamentos de Adorno e Benjamin, Jauss acredita em um ser que á ativo e capaz de se defender.

O PAPEL DA ARTE EDUCAÇÃO E DA EDUCOMUNICAÇÃO A arte se apresenta não apenas como passível de estudo e análise crítica, mas também como peça de ação para o caminho da educomunicação e sistematização do processo de educação do olhar dos sujeitos investindo, contudo, na formação de cidadãos mais perceptivos,

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perspicazes e críticos ante aos subsídios intrincados ­pelos Meios de Comunicação (MC). Moran (1990) aborda sobre a intrínseca inserção e participação dos Meios de Comunicação na escola como pauta de estudo e análise, propondo reflexões e argumentos sobre a problemática da educomunicação. Ao colocar o que considera “poderosa influência” dos MC na cultura, o autor exprime o caráter de reflexão, recriação e atuação dos mesmos “que se tornam importantes socialmente tanto ao nível dos acontecimentos (processo de informação) como do imaginário (são os grandes contadores de estórias)” (MORAN, 1990, p. 21), e afirma que desempenham também um importante papel educativo, considerando-os, na prática, uma segunda escola, paralela à convencional: “Os Meios são processos eficientes de educação informal, porque ensinam de forma atraente e voluntária” (Ibidem. p. 21). O autor argumenta que cabe à escola “repensar urgentemente” sua relação com os MC, procurando evidenciá-los de maneira pedagógica, apostando em uma educação diversificada, pautada no senso crítico do aluno. Reitera que não deve haver a intenção de imitação, salvo o caráter lúdico que os cabe, cuidando de não substituir a “organização da compreensão do mundo e das atitudes” por entretenimento, usurpando de seu usufruto a motivação como ponto de partida mais dinâmico rumo ao conhecimento. Aponta também a proposta pedagógica da qual a instituição de ensino deve valorizar a comunicação como um processo mais amplo entre todos os entes do processo, de forma a promover 51

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uma consolidação mais participativa entre os mesmos, visando a construção de uma sociedade respaldada em democracia. Coloca também, a possibilidade da escola em abraçar uma disciplina específica em Comunicação, sugerindo um profissional competente da área, capaz de assessorar todas as ações comunicativas interna e externamente, gerando um elo entre a instituição e a comunidade. Como “meios de motivação” o autor aborda propostas e soluções práticas para o uso dos MC em sala de aula, inerentes à construção do saber, sugerindo como instrumentos pedagógicos meios impressos, o rádio, a televisão, o cinema, etc., que acoplados a uma fundamentação escrita e explicativa, resultam em atividades práticas como: confecção de programas audiovisuais, slides, gravações sonoras, ou qualquer outro produto que recrie os próprios Meios: Essas novas formas de pesquisa, de produção, de expressão conferem um novo dinamismo à relação Escola – Meios de Comunicação, superando a dicotomia escrita-audiovisual, pois ambos são antagônicos, devem ser praticados. Os alunos se motivam muito mais, sem dúvida, com qualquer proposta de expressão audiovisual. (­MORAN, 1990, p. 23)

Também como conteúdo de ensino, os MC segundo o autor, são passíveis da educomunicação, como peça chave do professor para ajudá-lo no desenvolvimento da

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tarefa de se obter uma visão totalitária do conjunto, e se educar para uma visão mais crítica. Aqui entra a disciplina de arte, como componente curricular importantíssimo para superação de tal situação. Buoro (2002) traça algumas soluções na Arte Educação para solucionar a formação do olhar crítico do leitor, através da leitura de textos visuais dos quais apresentam as imagens artísticas, conforme argumenta: A presença da obra de arte possui, na vida do sujeito leitor, várias possibilidades e manifestação. Um olhar sensível e aberto, [...] é capaz de captar ainda que intuitivamente os sentidos que a obra de arte lhe disponibilizam. Ante aos processos de massificação que as culturas imprimem ao homem urbano contemporâneo, vetando-lhe a capacidade de ver o mundo com nitidez, a construção de um leitor dependerá do resgate realizado no contexto de um trabalho sistemático e embasado de educação do olhar. (BUORO, 2002, p. 237)

A autora afirma que a educação do olhar é permissiva de uma interação mais satisfatória do indivíduo com o meio o qual está inserido, e norteada por um trabalho pedagógico respaldado em leitura de obras de arte, é passível de aguçar o olhar do educando e sua percepção visual, confluindo maior capacitação para o desenvolvimento do senso crítico e sensível, inerentes ao ser humano, conforme as condições do atual contexto político-sócio-cultural. 53

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Ressalta também a importância da construção de leitores da imagem visual, operando no campo da sensibilização para aquisição de competências, em busca da mobilização de um olhar mais significativo sobre imagens da pintura e sobre o mundo como imagem. Dessa forma, aponta a necessidade de se educar o olhar desde a educação infantil, possibilitando atividades de leitura, para que além do fascínio das cores, das formas, dos ritmos, possa-se compreender o modo como a gramática visual se estrutura, e pensar criticamente sobre as imagens, que não deve ser associada à simples ação pedagógica, estratégia prevista em planejamentos e inserida no quadro de ensino da arte de forma quase mecânica e burocrática. Também nos chama a atenção para a necessidade de uma reciclagem contínua do profissional, eliciando ações não permissivas de transgressões quanto à atitude pedagógica, o que chama de “processo de conscientização e formação do professor”. Já Hernández (2000) explana sobre a Cultura Visual acrescentando soluções práticas do Ensino de Arte em ação transdisciplinar e íntegra na escola, como disciplina fundamental para a formação de sujeitos críticos perante a mesma e seu universo de significações. O autor justifica a arte na educação como instrumento de formação da percepção crítica ante aos mecanismos de manipulação dos MC, assim como meta a ser superada enquanto conteúdo disciplinar, apoiando-se à constante que determina as ideias em renovação e à mudança das representações que atingem os indivíduos, sugerindo uma proposta que ultrapasse o domínio da 54

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disciplina como mera provedora de “habilidades manuais ou tecnológicas, aproximações formalistas de caráter essencialista, ou propostas didáticas baseadas num conhecimento sem contexto” (HERNÁNDEZ, 2000, p. 10), complementando: O universo do visual é, na atualidade, como sempre foi, mediador de valores culturais (não nos esqueçamos [...] que as referências estéticas e artísticas também são construídas socialmente). Mas o visual é hoje mais plural, onipresente e persuasivo que nunca. As relações dos indivíduos, de maneira especial dos meninos, das meninas e dos adolescentes, com esse universo não conhece limites disciplinares e institucionais. (HERNÁNDEZ, 2000, pp. 10-11)

Assim, eleva a arte ao caráter de “múltiplas direções”, posicionando o artista como eliciador de “histórias compartilhadas”, à medida que “move a coisa latente” ao contar sua história, dialogando com a experiência do espectador. Dessa forma, como disciplina repensada e reformulada é passível de direcionar atitudes “superativistas”. O autor elege os Meios de Comunicação – em ressalvo à televisão - como educadores privilegiados pelo público, ilustrando o cinema como mediadores das representações da realidade “jogando” com o universo do sensível; a publicidade como vendedora das “representações ideais do eu”, amplificando identidades inexistentes; e a Internet permissiva da substituição do real pelo virtual “possibilitando a construção de identidades 55

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inventadas e ocasionais e aproximando-se de lugares que expandem ou dispersam a própria ideia de informação e de conhecimento” (HERNÁNDEZ, 2000, p. 11). Contudo, reafirma a necessidade de uma resposta educativa à altura, passível não só de introduzir uma “noção de cultura visual”, mas também incitando uma atitude por parte da educação, elevando os projetos como solução superativa, salvo a despretensão de se limitar aos “interesses corporativistas dos especialistas, em que as relações entre ideologia, valores e práticas sociais, propostas educativas e construções da identidade (individual, de grupo e nacional) estão presentes de maneira meridiana” (HERNÁNDEZ, 2000, p. 9), conforme elucida a arte na educação em anteparo ao problema de sua “posição de relevante marginalizada” como: Um campo digno onde é possível organizar sem excessivas pressões, propostas transdisciplinares, a partir de problemas que vão além de uma disciplina e que são reflexos das mudanças que se estão produzindo na sociedade. Mas que, sobretudo, permitem interpretar o presente a partir do conhecimento do passado e vincular as experiências educativas com as representações da realidade que constroem de si mesmos e do meio, com a pressão dos meios e da indústria do consumo na maioria dos casos, os meninos, as meninas e os adolescentes. (HERNÁNDEZ, 2000, p. 9)

Coloca a proposta como norteadora de caminhos que podem solucionar a situação, permissiva da quebra 56

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de paradigmas impostos, consolidando a arte como instrumento legitimador do processo em educação para a Cultura Visual, embora assuma que: [...] a dúvida, a incerteza e a curiosidade são necessárias para continuar enfrentando os desafios que a educação apresenta hoje àqueles que consideram que a escola (desde a primeira infância à universidade) pode oferecer uma potência de emancipação e de melhor conhecimento de si mesmo e de transformação do mundo. (HERNÁNDEZ, 2000, p. 13)

Concluindo que “a compreensão da cultura visual pode contribuir para realizá-lo.” (p. 13). O processo de superação desta realidade pode ser respaldado por tentativas de ações e inferências ante ao duto fenomenológico do qual compõe seu corpo através de estudos que apostem num método mais participativo de pesquisa, investindo na resolução não só de dados ou resultados, mas, sobretudo de um entendimento no que compete ao processo como superação, para assim, investir numa possível transformação do social.

Considerações Finais Perpassando pela perspectiva crítica aos estudos culturais podemos traçar um itinerário que elucida parte do complexo processo de recepção da arte nos

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dias de hoje. Através dos apontamentos frankfurtianos conseguimos identificar as ações perniciosas da Indústria Cultural e dos Meios de Comunicação de Massa sobre a arte, passíveis de nos resumir a meros consumidores. Já à luz dos estudos culturais revelou-se a possibilidade de se agir sobre tais inferências como sujeitos ativos do processo, transformando em nós mesmos a capacidade de nos tornarmos legítimos apreciadores da arte. Assim, educar para a comunicação e superar as causas e efeitos midiáticos nocivos aos sujeitos aparecem como necessidades pertinentes de serem estudadas, como já nos alertara tais teóricos. Do mesmo modo, educar o olhar para a comunicação à mente crítica, evidencia-se como consequência mesma de um trabalho estruturado com os próprios Meios de Comunicação, assim como, aliado à arte educação, através de ações educativas concretas que subvertam os automatismos da civilização, que privilegiem o exercício da leitura de imagens, e capazes de desenvolver, além da perspicácia, a sensibilidade essencial ao ser humano, por um olhar mais perceptivo e crítico, para que o mesmo não corra o risco de ser massificado e devorado pela Indústria Cultural. Dessa forma, ficam aqui tais apontamentos, passíveis de serem repensados, assim como abertos para reformulações e direções, já que, como afirma Buoro (2002): “O caminho continua a desdobrar-se em rotas e atalhos ao infinito” (p. 238), concluindo a sugestão.

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Referências ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. ARISTÓTELES. Retórica. Trad. Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. 3ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2006. (Col. Biblioteca de autores clássicos). BARBOSA, Ana Mae. John Dewey e o Ensino de arte no Brasil. São Paulo: Cortez, 2001. BENJAMIN, W. A obra de Arte na época de suas técnicas de reprodução. São Paulo: Abril Cultural, 1975. (Col. Os Pensadores) BUORO, Anamelia B. Olhos que Pintam. São Paulo: Cortez, 2002. COHN, Gabriel. Comunicação e Indústria Cultural. São Paulo: Edusp, 1971. ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 2004. HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. HERNÁNDEZ, Fernando. Cultura Visual, Mudança Educativa e Projeto de trabalho. Porto Alegre: Artmed, 2000. JAUSS, Hans Robert; ISER, Wolfgang; COSTA LIMA, Luiz (Org. e Trad.). A literatura e o leitor: textos de ­Estética da Recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. 59

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Capítulo 2 Conflitos Construtivos: Desafios ­introdutórios da pesquisa em comunicação1 Ana Heloiza Vita Pessotto2

Introdução A Comunicação vive uma incessante busca pela sua legitimação como campo científico. Elementos essenciais, dentro desse processo, são: o conceito de comunicação, que permite a integração do campo; o reconhecimento das suas teorias e metodologias, sendo elas originais do 1. Artigo apresentado para a conclusão da disciplina Teorias da Comunicação, ministrada pelo docente Prof. Dr. Osvando Morais. Disciplina disponibilizada pelo Programa de pós-graduação em Comunicação UNESP – Bauru. 2. Mestranda do programa de pós-graduação em Comunicação UNESP. Orientadora: Dra. Maria Teresa Kerbauy. Bolsista ­CAPES. E-mail: [email protected] 61

campo ou incorporadas; e a delimitação dos objetos e da centralidade dos processos comunicacionais. Permeiam essa discussão o desenvolvimento do pensamento científico, a crise dos paradigmas das ciências em geral (incluindo as exatas e as naturais), e o papel do pesquisador como ator da evolução da Comunicação. Nos Estados Unidos, o Journal of Communication de tempos em tempos retoma a questão da legitimação da comunicação como centro de suas discussões. Nos anos 1980 os debates circulavam em torno do que ficou conhecido como “crise do paradigma”, com base na ideia de uma fragmentação do campo que seria impossível de ser revertida, o que incentivou estudos que buscavam a história da evolução do próprio campo, como forma de compreender a fragmentação. Depois de 10 anos, em 1990 o tema discutido foi o futuro do campo, influenciado pela investigação do passado, no futuro estariam as possibilidades de vencer o que tornara o campo frágil. A publicação defendia a retomada da busca por um campo legitimado da comunicação, pois o pluralismo teórico e as concepções vindas de outros campos estavam impedindo esse procedimento, mantendo a comunicação fragmentada e sem disciplina (NAVARRO, 2003, p. 2223). O que a publicação demostra, além do foco de cada edição, é a complexidade desse campo que tem uma dinâmica conflituosa e que seus conflitos são contínuos e cíclicos, o que permitiu vastos diálogos sobre a epistemologia da comunicação e sua legitimação como ciência, instigando muitos pesquisadores a se debruçarem sobre o tema. 62

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A evolução dos meios de comunicação tem trazido à tona mais uma vez o questionamento dos paradigmas, mas vale destacar que os paradigmas já estavam sendo questionados na década de oitenta, quando a internet e os dispositivos móveis ainda não haviam se tornado populares. A crise de identidade e a busca por legitimação como ciência parecem fazer parte da natureza da Comunicação como campo. Os conflitos constantes acabam sendo ocasionados principalmente pelo fato dos estudos se pautarem em uma relação em que se tem duas caixas-pretas: o “eu” e o “outro”. São duas grandes lacunas dentro das investigações em comunicação, já que o “outro” nunca pode ser conhecido por inteiro, e o “eu” interno nunca poderá ser exprimido pelos meios de forma integral. “Mas não posso aprisionar a mente do outro, pois ela é livre, pensa o que quiser e eu jamais terei acesso às coisas que o outro sente, deseja, quer.” (MARCONDES FILHO, 2008, p.32). Marcondes Filho incentiva uma reflexão racional e de lógica direta, em que nos leva a pensar em como estudar a comunicação sendo que há um importante ponto cego dentro das abordagens, o outro. O eu, contudo, não se torna mais facilmente decifrável e compreensível dentro do sistema, considerando que “as palavras reduzem nossos sentidos a expressões convencionais.” (MARCONDES FILHO, 2008, p.81). O estudo do processo comunicacional torna-se tão complexo quanto o processo em si. Não há a pretensão aqui de elaborar a construção de um olhar panorâmico desse quadro, principalmente considerando as pontuações de Eco quanto aos perigos 63

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dessa ampla abordagem, como o perigo de o autor ser “acusado de imperdoáveis omissões” (ECO, 2002, p. 7). Todas estas questões foram investigadas e discutidas por diversos autores que propuseram mudanças em diferentes direções, em sua maioria pesquisadores experientes, com alta titulação e vasto repertório científico. O presente artigo pretende elencar alguns pontos cruciais dos conflitos internos da comunicação, por meio de conexões que permitem reflexões críticas baseadas em uma análise do campo e do atual paradigma da ciência, com um recorte pautado nos desafios encontrados no momento da introdução do pesquisador no campo da Comunicação. Tendo na centralidade da visão, o olhar do pesquisador iniciante e as problemáticas com as quais terá de se relacionar durante o fazer acadêmico no campo. Buscando demonstrar a existência do conflito interno com a apresentação de algumas linhas de raciocínio parcialmente convergentes ou divergentes, com a intenção de comprovar a dinâmica intrínseca da Comunicação e a forma como a relação do pesquisador com esses conflitos podem ser construtivos dentro do fazer científico em Comunicação, incentivando-o a entrar em conflito com seu objeto, seu método e a teoria que acredita ser a base de sua pesquisa.

Comunicação: O conceito O conceito de comunicação é amplo, dando um vasto leque de interpretações ao seu significado. Reconhecer

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qual a ação à que se remete quando fazemos comunicação é um passo que, para alguns autores, se mostra importante para o reconhecimento e o entendimento da comunicação como ciência e campo de pesquisa. A multiplicidade de leituras do termo gerou olhares distintos quanto o funcionamento do processo comunicacional. Os possíveis usos de comunicação apresentados pela Encyclopédie são o ponto de partida da análise de Giorgio De Michelis (2003). Os significados primordiais delimitados pela Encyclopédie se concentram na ideia de “transmitir ao outro”, dando pouquíssimo destaque ao significado de comunicação como processo de “tornar comum”, que pode ser extraído da etimologia da expressão comunicar. A palavra comunicação deriva do latim communis, que quer dizer “pertencente a todos ou a muitos”, o termo se desdobra em comunicare, referente a comunicar ou comungar, e em comunicationis, tornar comum (DUARTE, 2003, p.42). A concepção da comunicação com foco na transmissão e não no conceito mais amplo de “tornar comum” possibilitou a evolução das teorias matemáticas, nas quais se focava no processo de transmissão da mensagem e nos elementos “objetivos” que estão presentes nesse processo. Claude Shannon e Warren Weaver articularam o esquema em que a comunicação se resume a uma fonte que emite, por um canal, um sinal que será decodificado pelo destinatário. A mensagem sendo recebida na íntegra, a comunicação é considerada efetivada com sucesso. (GIORGIO DE MICHELIS, 2003). Transmissão pressupõe a passagem de algo de um ponto 65

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a outro, como acontece nos sistemas elétricos, por exemplo, ou nas ondas de rádio. A questão principal quanto à centralidade dessa concepção é o fato de o esquema desconsiderar que os envolvidos no sistema comunicacional são seres humanos dotados de subjetividade. O olhar direto e objetivo, que pressupõe que a mensagem emitida é a mesma que a recebida, tem influência do campo das ciências exatas, algo a se contestar, já que todos os sistemas de transmissão possuem perdas, não sendo a mensagem emitida equivalente à mensagem recebida. O exemplo pode ser utilizado, contanto que seja dada a devida proporção a cada caso. Os elementos físicos e eletromagnéticos têm possibilidades restritas, enquanto o ser humano tem uma multiplicidade individual de significações para cada mensagem. O modelo matemático foi proposto para ser voltado ao processo físico da comunicação e o uso do modelo fora do âmbito tecnológico causou, segundo Siegfried Schmidt, equívocos teóricos (SAMPAIO, 2001). A desmistificação do esquema matemático de comunicação dá-se principalmente com a retomada do conceito de comunicação como “tornar comum”, que prevê a comunhão, mas não pressupõe decodificações. Michelis elenca Barnett Pearce e o sociólogo Niklas Luhmann como alguns dos teóricos responsáveis pela ascensão do olhar para a comunicação de forma integrada com a vida social e não como um sistema isolado, em contrapartida à concepção de transmissão.

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A comunicação é para Pearce a modalidade por intermédio do qual os seres humanos realizam a construção social da realidade. É, de fato, na comunicação que eles podem entrar em acordo sobre os valores que presidem suas ações e interações (coordenação), construir história sobre si mesmos e sobre o mundo (coerência) e encontrar uma identificação comum daquilo que parece fugir do seu conhecimento (mistério). Estas atividades comunicativas ou dimensões da comunicação definem um sistema complexo de relações entre pessoas e práticas. (MICHELIS, 2003, p. 117)

O receptor é um ser subjetivo e a sua criatividade, identidade cultural e contexto social têm influência na forma como recebe e interpreta a mensagem. Pearce fortalece a comunicação como formação de comunidades. Quanto à Niklas Luhmann, seu olhar sobre a comunicação está voltado à recepção seletiva e a constituição de comunidades, criando um elo entre os elementos pertencentes a elas. Para o autor, a comunicação é um processo seletivo, no qual cada indivíduo observa diferentes elementos de forma destacada dentro de um texto (seja verbal ou não verbal), uma das características que possibilita multiplicidade de escutas. A mensagem não chegará ao receptor da mesma forma que foi emitia pelo emissor. [...] a comunicação inventa sua própria memória num pulsar constante em que o sistema se

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expande e se contrai com cada redundância e com cada nova seleção. Nada que ver com “peças concretas” que precisassem ser reunidas por alguém: a comunicação em Niklas Luhmann, é a própria seletividade que se constrói na própria comunicação. ( MARCONDES FILHO, 2005, p.8).

O sociólogo “elegeu a comunicação como o operador central de todos os sistemas sociais”. (MARCONDES FILHO, 2005, p.7), é a comunicação que permite a formação de comunidades, já que coloca em comum indivíduos e proporciona a eles uma identidade coletiva, por meio do compartilhamento de sentidos e limites (MICHELIS, 2003, p. 121). A questão nesta concepção de Luhmann está exatamente na coexistência do ato singular, do fazer comunicacional de cada indivíduo, e da constituição do sistema social por meio da comunicação, pressupondo o “tornar comum”, o compartilhamento de sentidos. Para Michaelis, aí está o segredo do processo. Ele se baseia nesse paradoxo individual-seletivo/ coletivo-compartilhado. “O processo comunicativo converge para além da divergência de cada ato comunicativo singular.” (MICHELIS, 2003 p. 126). Luhmann é reconhecido pela elaboração do conceito de sistemas. A comunicação como transferência parece dar espaço a uma ideia de tornar comum, comunhão, contudo não há unanimidade quanto a essa concepção, principalmente por posicionar a comunicação como um ­campo

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de interação com outras ciências, como a sociologia, a filosofia e a psicologia e considerar a influência social dentro do aspecto comunicacional. Os conceitos acima citados não dão espaço para a importância do meio dentro do processo. O canadense Marshall McLuhan defende a concepção de que o meio é a mensagem, buscando comprovar a importância do suporte dentro do arranjo comunicacional. Jürgen Habermans, filósofo, considera a comunicação “concebida como um processo dialógico, através do qual sujeitos, capazes de linguagem e ação, interagem com fins de obter um entendimento.” (SAMPAIO, 2001), conceito no qual baseou sua teoria da ação comunicativa, que pressupõe a chegada de um consenso, da intenção de que chegar ao entendimento. O filósofo Pierre Bourdieu elaborou uma concepção de comunicação, na qual ela é vista como disputa. Bourdieu tem seu legado baseado na focalização do poder dentro das relações sociais e suas influências. A comunicação se torna, nesse panorama, um campo de conflito, “onde o processo de comunicação é compreendido como uma disputa simbólica pelas nomeações legítimas.” (SAMPAIO, 2001). Os posicionamentos de Bourdieu e Habermans se distinguem quanto à finalidade da comunicação. Habermans acredita na busca pelo entendimento, que indica uma forma pacífica, pelo menos a intenção da ação, enquanto Bourdieu direciona o fazer comunicativo mais voltado à dominação, ao poder e, portanto da manipulação, já que o discurso se torna arma de dominação. Marcondes Filho dialoga com as 69

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proposições de Bourdieu ao afirmar que “Todos os discursos são necessariamente vontades de manipulação.” (MARCONDES FILHO, 2008, p.32). Estes foram apenas exemplos de concepções de comunicação por diversos autores. Sejam focando na etimologia do termo, sejam voltadas a comunicação como processo, as afirmações divergem e constituem um quadro complexo, com convergências, divergências e pontos de intersecção. Muitas são as visões quanto ao conceito de comunicação e apesar das evoluções tecnológicas permitirem o acesso a grande parte das informações sobre esses conceitos, o pesquisador que acaba de ser introduzido no campo acadêmico pode não ter tempo de acessá-las de forma integral, considerando o sistema político-acadêmico atual, e isso pode gerar um conhecimento sobre a comunicação que se reduz a percepções superficiais dos conceitos, podendo ocasionar confusões teórico-conceituais.

Reflexões sobre uma tal Comunicação: a epistemologia da Comunicação e a interdisciplinaridade Quando entram em pauta a discussão e o desenvolvimento da comunicação, vem também à tona a questão da sua legitimação, gerando agitação tanto dentro quanto fora do campo. Epistemologia da Comunicação é um tema corriqueiro e tem papel central nos conflitos comunicacionais, principalmente como forma argumentativa de reforçar a legitimidade.

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Etimologicamente, epistemologia é a ciência que estuda a ciência, Duarte descreve com mais clareza o funcionamento e a função da disciplina: [...] podemos dizer que epistemologia é um conjunto de conhecimentos teórico-metodológicos ligados simbolicamente que permitem elaborar uma forma de investigar um objeto. Epistemologia é o estudo dos princípios de investigação que direcionam um olhar para um tema. (DUARTE, 2003 p.42)

Levando em consideração a delimitação citada de epistemologia, pode-se entender que a raiz da problemática está: na fragilidade do conceito de comunicação causada pela multiplicidade e pela ausência de unanimidade, como já foi apresentado no tópico anterior; a dificuldade de um enquadramento dos objetos no campo; e os questionamentos dos conhecimentos teórico-metodológicos dentro dos estudos em comunicação, que serão apresentadas a posteriori; fortalecendo um panorama conflituoso da epistemologia da comunicação. Contudo, enquanto autores como Eduardo Duarte direcionam as discussões para as peculiaridades e instabilidade dos conceitos base do campo, Navarro (2003), usando como exemplo a mudança do paradigma da validação do conhecimento científico, desconectado do empirismo lógico, considera a questão da epistemologia distante das problemáticas tão pontuadas, ponto no centro da discussão o fato de a legitimação estar indissociável dos conflitos políticos.

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Quizá no sobra recordar que una vez que fue desplazado el projecto del empírismo lógico del centro de la discussíon filosófica sobre el conocimiento científico, con las certezas dogmaticas que proporcionaba a sus adherentes, la espistemologia de las ciencias, comenzando por las naturales, se ve tensionada por la conviccion de el conocimiento debe referirse válidamente a alguna realidad, como sostenía Popper, y de que es un conocimiento histórica y socialmente construido, como la propos Kuhn. El “critério de demarcación”, la distinción entre el conocimiento cientifcio y el no científico, es ahora, en vez de norma de unificación, un objeto más de discusión, sometido tanto a las condiciones de la racionalidad como a las del poder. Por ello en el campo científico los conflictos epistemológicos son siempre, inseparablemente conflictos políticos3. (NAVARRO, 2003, p. 20)

3. “Talvez valha a pena lembrar que uma vez que foi deslocado do centro do projeto do empirismo lógico o centro da discussão filosófica sobre o conhecimento científico, com as certezas os dogmas que fornecidos aos seus membros, a epistemologia da ciência, começando com as ciências naturais, teve fragilizada a convicção de que o conhecimento para ser validado deve se referir a qualquer realidade, como Popper argumentou, e é uma construída histórica e socialmente, como o conhecimento, propôs Kuhn. O “critério de demarcação”, a distinção entre o científico e o conhecimento não científico e, agora, em vez de unificação padrão, um novo objeto de discussão, tanto nas condições de racionalidade quanto ao poder. Portanto, na ciência conflitos epistemológicos estão sempre inseparavelmente conflitos políticos.” (Tradução livre). 72

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A base conceitual da leitura de Navarro quanto às problemáticas é a visão de Bourdieu de comunicação como disputa e poder. O conhecimento estaria dentro desse quadro comunicacional. A legitimidade é dada pelo grupo de domínio segundo seus interesses, estando o problema vinculado tanto a instituições de dentro quanto de fora do campo científico, em um círculo de interesses. A concepção incorporada por Navarro dialoga com Adorno quanto suas percepções relativas à epistemologia. Adorno alega que os conflitos sociais determinam as escolhas e os desdobramentos da ciência. (MARTINO, 2003, p. 70). Tal concepção pode ser compreendida por meio das escolhas de linhas de pesquisa dentro de instituições acadêmicas e até mesmo as preferências dentro das instituições de financiamento de pesquisas. As bases de imposição para a legitimação da Comunicação teriam um forte traço político, assim como as relações humanas. Eduardo Duarte não necessariamente discorda da visão de Navarro, mas ainda crê que os problemas com os elementos formuladores da ciência são um problema ainda mais complexo que os desdobramentos políticos da questão. Mas o que é comunicação? Voltamos à mesma questão. É possível chegar a uma definição única de comunicação que inclua todas as outras? Como pesquisadores da comunicação podem desenhar suas possibilidades epistemológicas estando longe de um conceito que unifique? Uma

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possibilidade de responder a essas questões seria a tentativa de formular um conceito que sirva de referencial científico para os pesquisadores em comunicação, independente das formas como o termo surja no uso cotidiano e em outras disciplinas científicas, como os conceitos de Energia e Força que são específicos na Física. Esbarramos aí em um novo problema que é ainda mais complexo que seus desdobramentos políticos: devido à grande quantidade de aplicação do uso da palavra comunicação entre os próprios pesquisadores, como circunscrever esse objeto? (DUARTE, 2003, p.42)

Posiciona como sendo o principal problema a multiplicidade de conceitos de comunicação e do processo comunicacional, impedindo uma integração da comunicação como campo científico. Martino (2003) também tem o olhar mais direcionado às questões que articulam a ciência como ciência. Entende que para discutir a epistemologia é preciso aceitar certos pressupostos nos quais se fundamentam a ciência, centralizando pontos mais próximos com as concepções de Duarte, nesse caso. Propõe um diálogo entre os dois posicionamentos, mas não abre mão da necessidade de uma tomada de posição e a defesa dos pressupostos científicos. A discussão epistemológica começa a partir da problematização dessa investigação objetiva do real, mas não pode recuar nestes pressupostos

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sem colocar em risco a própria condição de possibilidade de um saber científico, ou sem que haja uma dissolução da questão epistemológica no universo mais vasto da filosofia. Sem se posicionar em relação a este engajamento, todo debate epistemológico se vê privado de sentido e, de antemão, condenado a recuar a seus pressupostos elementares, sem realmente poder avançar em nosso objetivo: a fundamentação de um saber comunicacional. (MARTINO, 2003, p.71)

Para Martino, o posicionamento radical de Adorno, e o que o autor chama de “impossibilidade de levar as últimas consequências a sua [Adorno] posição” dificulta de forma argumentativa uma epistemologia que seja baseada no fazer científico com ponto de partida do olhar voltado as influências e o poder político e social. A essência da ciência bem fundamentada e objetiva também tem fragilidades dentro de suas delimitações, mas não poderia ser desqualificada. O autor propõe direcionar os diálogos sobre a epistemologia para debates possíveis. Porque, antes de mais nada, discutir epistemologia é necessariamente uma tomada de posição. Significa aceitar certos pressupostos que são aqueles mesmos sobre os quais se funda a ciência: a possibilidade de conhecer o real a partir de certos critérios de investigação, entre os quais a reflexão crítica, a objetividade, a produção da verdade pela argumentação e comprovação. (MARTINO, 2003, p.70) 75

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As questões da epistemologia da comunicação ainda não foram resolvidas nem no interior da disciplina. A própria delimitação de correntes representativas do trabalho epistemológico ainda é um desafio. Martino destaca essa dificuldade, como reflexo dos conflitos e de uma certa ausência do que chama de tomada de posição. Um elemento que está diretamente ligado às problemáticas da epistemologia é a da autonomia do campo científico. O fato de a comunicação ser um processo que media as relações humanas, faz com que ela produza um vasto leque de opções temáticas e de recortes de investigação, que podem estar dentro de campos distintos do conhecimento, principalmente no que tange as ciências sociais. Tal dinâmica pode ocasionar um conflito quanto aos objetos, às teorias e aos métodos. As relações envolvem homens, seus comportamentos, suas reflexões sobre o mundo e também envolvem a sociedade na qual estão inseridos, o que pode permitir uma confusão quanto à distinção das ciências que se focam em cada um desses âmbitos que rodeiam o processo comunicacional. Duarte, tomando como referência o pensamento de Merleau-Ponty com a conceituação de comunicação como sendo o encontro entre fronteiras defende a interdisciplinaridade. O encontro de fronteiras perceptivas se pontua como a forma de o “eu” ter consciência do “outro”, por meio de compartilhamento. Ou seja, o “eu”, em seu interior, só tem consciência do outro quando se relaciona com algum “rastro” do “outro”, podendo ser por meio de objetos ou discursos e textos. Para que 76

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haja o encontro dos limites de suas fronteiras é preciso partilhar algum elemento. Direcionando o conceito para a discussão sobre a autonomia, a interdisciplinaridade e o fazer científico, Duarte propõe que Essa ideia pode ser entendida também para outros planos cognitivos que se encontram, como as disciplinas do saber que aproximam suas fronteiras de pensamento e “promiscuamente” trocam referências teóricas e metodológicas sobre temas comuns. A aproximação de campos como a Antropologia, a Biologia, a Psicologia, a Linguística entre outros, que investigam fenômenos comunicativos amplia não apenas os horizontes dessas disciplinas, como permite o surgimento de novas disciplinas, códigos emergentes de um encontro. (DUARTE, 2003, p. 49).

Duarte defende a “troca” entre os campos, sem que haja o questionamento quanto a sua integridade. O panorama dos âmbitos que envolvem o processo comunicacional, como um todo, faz parte de um quadro complexo. Complexidade que deriva do latim complexus com significado de “tear em conjunto” (DUARTE, 2003, p.50). Com base nessa significação, as ciências dadas como complexas tendem a olhares de diferentes pontos para a construção do saber. Raymond Williams (1958), pesquisador membro dos estudos culturais ingleses também endossa essa concepção menos fragmentada e pontual. Questiona os estudos isolados da comunicação e da cultura deslocados de 77

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seu contexto social. Como poderia ser possível pegar o objeto cultural, isolá-lo e construir ao seu redor muros, que impedem sua relação com os âmbitos com os quais coexiste? Mas existem muitas possíveis interpretações da intenção do “não isolamento” do objeto, e nem todas direcionam ao mesmo caminho. Martino tece afirmações quanto à interdisciplinaridade como não sendo um processo válido no fazer científico, quando é resultado de um paradigma do quebra-cabeça, impossibilitando a delimitação da Comunicação como disciplina. Nesse caso, a interdisciplinaridade acaba sendo tomada de forma inconsciente, com a intenção de justificar a dispersão teórica e epistemológica da comunicação. Como se a interdisciplinaridade fosse uma desculpa para desconsiderar, o que o autor delimita como sendo, os problemas do campo. Enquanto Martino critica a interdisciplinaridade como é posta na comunicação, Duarte defende a ideia, mais uma vez pautado em comunicação como encontro de fronteiras. A questão a ser discutida e observada, neste caso, é qual procedimento está sendo considerado como interdisciplinaridade. As teorias da comunicação (problemática a ser apresentada mais detalhadamente mais adiante) vão trazer essa discussão à tona, tendo em sua constituição muitas influências e até mesmo teorias consideradas da comunicação, vindas de outros campos, como a sociologia, a filosofia e a psicologia. A crise se mantém e os pesquisadores sempre à busca de provar a legitimidade de uma pesquisa em ­Comunicação, 78

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seja ela com a sua autonomia estrita e fixada pautada na essência dos elementos científicos, seja ela na forma de uma ciência que se estabelece unificada com base nas suas características peculiares, que fazem dela uma ciência legitimada e autônoma mesmo com a contribuição de outros campos ao seu repertório investigativo. Ao pesquisador recém-introduzido no campo da comunicação, as problemáticas da epistemologia e da interdisciplinaridade são importantes para a compreensão da dimensão dinâmica e conflituosa do fazer científico dentro do campo, permitindo a construção de um olhar sob o campo, e não a imposição de pressupostos. Cabe a cada um a identificação com os argumentos de algumas correntes e a produção de conexões que permitam ao pesquisador uma concepção crítica da comunicação como ciência. Pois é a partir dessa concepção que o pesquisador aguçará seu olhar e pela qual a investigação será pautada. Cabem reflexões, nesse processo, sobre como o procedimento constante de inquietação e de contestação do campo da comunicação impede um congelamento de paradigmas forjados que possam se solidificar em dogmas dentro do fazer investigativo. O ato se discutir constantemente a comunicação faz com que haja uma evolução. Essa problemática, entretanto, corre o risco de se manter restrita em discussões centradas entre pesquisadores altamente titulados, caso não seja estimulada em aulas e programas de pós-graduação. A necessidade de unificação convive com o medo de fazer com que a pesquisa em comunicação acabe ­caindo 79

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e esbarrando em outros campos, contudo, pensando que o processo comunicacional é a base das relações, torna-se plausível ela se envolver com outros campos. A evolução dos estudos psicanalíticos foi essencial para uma compreensão dos processos conscientes e inconscientes, influenciando as concepções anteriores de comportamentos sociais, portanto influenciando a forma de entendimento de comunicação e sua interpretação, além das formações de conexões e grupos, muito importantes para o entendimento de cultura e sua veiculação e compartilhamento. Será que obter informações válidas vindas de outros campos enfraquece a Comunicação ou apenas a inclui em uma rede de fluxo de informação? Como a Comunicação, que torna comum, poderia ficar isolada em sua redoma científica? Quando a questão é identidade, muitos pesquisadores como Umberto Eco (1976) e Renato Ortz (1994) usam a delimitação lacaniana do conceito, um com a intenção de comparar a identidade e o funcionamento do inconsciente com o funcionamento interno da linguagem, outro buscando compreender as composições de identidade cultural e nacional. Lacan defendia que o estabelecimento da identidade é uma dialética entre a inclusão e a exclusão. O “eu” se estabelece ao criar elos e se relacionar com grupo a que pertence, com o qual compartilha a cultura, e o “eu” só pode ser desenhado em um quadro em que existe o “outro”, o qual o “eu” não é. A Comunicação encontra-se nesse impasse. A necessidade da legitimação é a procura de um grupo com o qual compartilhar concepções. A concentração dessa 80

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busca está mais na questão da inclusão, do que da exclusão. Não estaria a Comunicação buscando os elementos errados para se incluir, remodelando os elementos que na verdade estão relacionados à sua exclusão? Seria uma problemática dos paradigmas da comunicação ou do paradigma da ciência?

A caça do objeto O objeto é outro tópico importante dentro das discussões na área. Marcondes Filho e Duarte acabam dialogando quanto à busca de trazer a ideia de comunicação de dentro do universo do ideal, conceitual, para uma reflexão de objetos reais em um campo possível e científico. Pensar em comunicação requer um investimento vasto de tempo buscando distinguir o objeto da comunicação, do objeto da psicologia, do objeto da sociologia, o objeto da história, do objeto da linguística. Como englobar de alguma forma elementos desses campos e na verdade não ser nenhum desses? Na caça ao objeto da comunicação houve uma comparação de como as ciências naturais e exatas se relacionavam como seus objetos e como o selecionavam. Mas é preciso compreender a comunicação dentro de seus próprios limites. “Pensava-se que a comunicação era coisa, um objeto. Quem trouxe essa confusão foram as ciências físicas e da natureza, pois para elas, a comunicação é isso. Mas nós não somos pedras, fios elétricos

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nem líquidos. Somos seres humanos.” (MARCONDES FILHO, 2008, p.15). Tal constatação não esclarece, pelo contrário, abre precedentes para mais perguntas. Com a intenção de solucionar o problema do objeto em comunicação, alguns caminhos foram traçados. Lopes (2005) delimita o objeto da comunicação como sendo “o estudo dos fenômenos da comunicação dentro da cultura industrializada” (LOPES, 2005, p.14). A relação dos estudos em comunicação com o conceito de indústria cultural é muito próxima, tendo entre as primeiras teorias da comunicação teorias que se voltavam a esse propósito a investigação dos produtos culturais veiculados pela indústria cultural. Bourdieu também reconhecia tal posicionamento do objeto. Coloca a comunicação como campo da indústria cultural, ou seja, dentro desse campo encontra-se o objeto. Tal delimitação ainda mantém uma grande gama de possibilidades. Marshall McLuhan propõe o olhar aos meios como forma de investigação. Com a afirmação o meio é mensagem e com o repertório que inclui a obra Galáxia de Gutenberg, o autor traça um raciocínio em que defende a importância da tecnologia e do meio como elemento de transformação da sociedade. (MARCONDES FILHO, 2002, p.163). Outros autores colocaram no centro da investigação o discurso e a linguagem, focando no conteúdo. Muitos são os possíveis objetos da comunicação. A delimitação quanto a produtos da indústria cultural apenas pode não ser mais um recorte decretado como o objeto da comunicação, mesmo que em diferentes 82

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âmbitos do processo. As comunicações independentes, com base em relações não pautadas no poder fora dos meios e discursos hegemônicos também têm espaço nas pesquisas em comunicação. As indústrias criativas e ao folkcomunicação tendem a esse olhar fora da concepção da indústria cultural, que talvez também mereça uma revisão mais apurada dentro das atuais percepções comunicacionais com a introdução das dinâmicas dos novos processos, como as interações sociais por meio de dispositivos móveis e o consumo cultural no sistema por demanda. Mais do que tentar entender qual é o objeto da comunicação, já que pode parecer a tentativa de formular um universo imensurável, talvez a pergunta mais objetiva seja como observar um objeto das relações sociais com o olhar da comunicação, elaborando um recorte adequado. A diferenciação entre a comunicação, a sociologia e as ciências humanas em geral está no foco da investigação. Muitos temas podem ser abordados por mais de um campo, vale delimitar o tema transformando-o em objeto pondo o processo comunicacional como o centro da observação. A comunicação consiste em um processo de mediação entre seres humanos por isso vai influenciar e ser influenciada pelos âmbitos da vida cotidiana, impreterivelmente. Como lidar com objetos tridimensionais como os da comunicação? As amplas possibilidades de objetos e enquadramentos do mesmo não são apenas problemas da comunicação, são uma questão da ciência como um todo. Mas a comunicação adiciona um obstáculo a mais: a 83

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i­nstantaneidade do objeto. A comunicação acontece aqui e agora. Um processo não se repete. Pode ser um processo que aconteça todos os dias, mas todos os dias ele vai ser diferente. Investigar um processo comunicacional ocorrido há um determinado período e sem estar incluso no fenômeno é uma das formas de observação, contudo, permite consideráveis perdas. No polo oposto, estar no momento do acontecimento e participar da rede comunicativa também gera diferentes resultados, mas seria preciso desconsiderar a distância do pesquisador quanto a seu objeto. Ou o pesquisador olha de fora, com um olhar de “estranho”, impedindo a compreensão de alguns signos referentes apenas aos participantes do processo ou pode estar extremamente envolvido e a proximidade com o objeto pode impedir que o analise com objetividade. Talvez haja a necessidade da escolha ou elaboração de estruturas teórico-metodológicas que permitam a observação desse objeto considerando sua instantaneidade e também a sua rápida mudança como significação. A escolha do objeto é um difícil desafio ao pesquisador iniciante. Ter de escolher um tema com o qual vai se relacionar por um longo período. Entretanto, como afirma Eco, todos os temas têm grande potencial de se tornarem grandes investigações, por isso o que vale mais é a experiência de trabalho que a pesquisa comporta. Vendo assim, um dos grandes enigmas, a escolha do objeto, torna-se mais leve. A delimitação de um objeto que lhe gere inquietações e a observação e interpretação dessas inquietações com base em um repertório único, 84

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i­ndividual e intransferível é a chave para um plano de trabalho possivelmente satisfatório. É preciso o amadurecimento das ideias para que o objeto possa ser escolhido e sua observação seja centralizada no processo comunicacional sem que esse procedimento pareça uma imposição ao objeto, que como é instável e instantâneo pode escapar por dentre os dedos. O recorte permite um posicionamento mais claro quanto a que momento se está discutindo o objeto, mas é preciso ficar claro que ele não ficará estável a espera da investigação, por isso torna-se interessante acompanhar os movimentos posteriores do seu objeto, sem se perder entre as infinitas mutações do mesmo nos anos de duração da elaboração da sua pesquisa.

Teorias e Metodologias: formulação e crítica Como se já não bastasse uma incerteza rondando o conceito básico de Comunicação, os desafios não param por aí. Pelo contrário, se iniciam se desenvolvem e retornam ao ponto de saída. As discussões sobre o tema se tornam cíclicas e o sistema começa e termina no conceito de comunicação. As teorias de comunicação existem porque existe Comunicação e a Comunicação só existe porque existem teorias da Comunicação. Mas como saber ao certo se elas existem? Para Martino, elas existem porque simplesmente acredita-se que sim. “As teorias da ­comunicação

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existem a despeito de todo e qualquer obstáculo colocado à sua definição. Cremos em sua existência e isso parece nos bastar.” (MARTINO, 2007, p. 18). O autor baseia sua crítica na forma como essa “crença” se dá dentro do campo científico. A comunicação se desenvolveu sem uma ordenação e ao ser “descoberta” não foram investigadas as grandes questões que envolvem a área e os elementos que a introduzem ao universo científico. Dentre os manuais e coletâneas de Teorias da Comunicação, poucos são os que elaboram discussões e questionamentos quanto ao conceito de comunicação, apenas crendo na sua existência como algo dado. Outro fato estranho dessas produções é não terem coesão interna como conjunto dentro campo, já que seus conteúdos não são convergentes, não sendo possível encontrar coletâneas em que são citadas as mesmas teorias. Ao mesmo tempo, as obras não esclarecem quais os parâmetros considerados para a escolha de determinadas teorias e como e por que as escolhidas estão “inseridas” no campo da Comunicação (idem, p. 19). Martino propõe uma forma de distinguir quando uma teoria é a da Comunicação: “[...] uma teoria somente pode ser considerada teoria da comunicação se respeitar o preceito da centralidade do fenômeno comunicacional. Isto significa dizer que a realidade humana deve ser explicada (entendida, descrita) tomando-se a comunicação como fator privilegiado.” (idem, p. 28). O panorama conflituoso do campo inicia com uma problemática que Berger (2007) aponta como sendo a falta de desenvolvimento de teorias originais dentro da 86

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comunicação e a grande apropriação de teorias direcionadas de outras áreas para o campo comunicacional. Observa-se que um grande número de pesquisas desenvolvidas em pós-graduação usa como teoria de fundamento teorias criadas por profissionais e pesquisadores de outra área, abrindo precedente para o questionamento da comunicação e da autonomia da ciência. O autor defende, como uma possível solução, os cursos darem maior ênfase ao fazer teórico, com cursos voltados à produção teórica. Trata-se de uma crítica ao modo como os programas de pós-graduação dividem e concentram seu curto período de duração, dando uma excessiva ênfase ao método. As disciplinas voltadas às teorias tendem a elaborar resumos de teorias já consagradas na área, mas não abre espaço para uma discussão questionadora da construção da teórica. [...] a obsessão nos métodos não apenas tende a deslocar a importância do trabalho de elaboração de teorias, ela também cria uma mentalidade do tipo ‘tendo um método, nós trabalhamos’, que impele aqueles que se preocupam com isso a usar sua competência metodológica para pesquisar qualquer problema, contanto que a pesquisa seja financiada. (BERGER, 2007, p.58-59)

Berger reforça sua crítica a algo que pode ser considerado um “fetiche pelo método”, incluindo nessa problemática, a questão política envolvendo a ciência, abordada no tópico anterior.

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A crítica ao foco nos métodos também é um posicionamento de Umberto Eco, um entusiasta da exposição do pesquisador e crítico dos investigadores simplistas que fazem o uso do método como uma “bengala”. A estrutura, que está pautada na linha de evolução e de direcionamento da investigação, é um “instrumento operacional visando ao discurso sobre o campo concreto dos fenômenos” (ECO, 2007). E essa utilização é uma escolha consciente por um determinado ponto de vista com o qual o objeto analisado será observado, já com a intenção de comprovar determinado discurso. Escolher uma estrutura definida e fechada parte da escolha de uma abordagem prévia, que acaba por buscar encaixar o objeto em seus moldes para comprovar a hipótese. Em casos como este, a estrutura não se torna uma ferramenta interessante, pois descola o objeto de estudo e o encaixa em um modelo pré-determinado, não respeitando sua natureza, permitindo um olhar incompleto. Eco propõe um olhar que vá além das estruturas, o que ele chama de ausência, que seria o local onde verdadeiramente se desenvolvem as pesquisas e críticas relevantes. Trata-se de um incentivo à desconstrução das estruturas teórico-metodológicas com a intenção de analisar a ausência, observando seu objeto e sua pesquisa com olhar inconformado. Outra crítica de Eco ao uso rígido e até mesmo mecanizado da estrutura é o fato de que as pesquisas realizadas nesses moldes se tornam até mesmo inúteis. [...] toda pesquisa, se conduzida com rigor, deve dar-me sempre e de qualquer modo, sob as 88

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v­ ariações sobre as quais atua, o mesmo resultado; e reduzir todo o discurso aos mecanismos do outro que o profere. Ora, visto que esses mecanismos já são de antemão conhecidos, a função de toda a pesquisa resume-se em verificar a Hipótese por excelência. Concluindo: toda pesquisa revelar-se-á verdadeira e frutífera na medida em que disser aquilo que já sabíamos. (ECO, 2007)

A investigação realizada de forma mecânica, com um molde que se direciona a validação de métodos e teorias limita a descoberta. Idealmente, toda pesquisa é inédita por causa do olhar único do pesquisador, ao limitar as possibilidades desse olhar, a pesquisa só tende a perder profundidade. As teorias e metodologia são uma questão a ser discutida dentro do campo. O “fetiche do método” precisa ser superado, e as críticas de Eco e Berger são válidas dentro do processo de construção coletiva do conhecimento. O estudante ingressa no universo científico e seu ingresso não deveria ser apenas para testar e confirmar deduções teóricas já elaboradas. A participação daquele novo membro da comunidade deve ser entendida como um novo ator dentro da rede de conhecimentos. Suas capacidades permitem um processo mais frutífero do que a reprodução banal de ideias, como construção de novas visões, mesmo que baseadas em ideias já elaboradas, uma elaboração única por meio de uma conexão de repertórios diferenciada e única. A necessidade de novas teorias e novos métodos também está atrelada às inovações do próprio campo. As 89

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novas tecnologias modificaram as formas de interação e surgem novos atores e elementos comunicacionais dentro do processo. A sociedade também sofre modificações e as teorias precisam acompanhar essa evolução. Dispositivos móveis de conexão digital, interatividade, novas formas de interação social. A simples incorporação de antigos conceitos a novas formulações não basta. É necessário um envolvimento na reelaboração e análise crítica do que já foi produzido, pois simplesmente começar do zero também não parece uma opção coerente, considerando que os elementos apresentados atualmente são resultado da transformação de outros anteriormente conhecidos, e a ciência depende de uma investigação das transformações. O conhecimento anterior não pode ser utilizado como se ainda fosse totalmente válido no atual contexto e também não deve ser esquecido e ignorado, dando lugar para algo completamente novo. A internet e as novas possibilidades de interação abriram um novo leque de possibilidades para as pesquisas e suas interpretações em comunicação. Atualmente, as mudanças têm ocorrido mais rapidamente e o tempo de adaptação, consequentemente, diminuiu. As instantaneidades do objeto somadas à rapidez das atuais mudanças dos meios tecnológicos transformando os comportamentos desenham um novo panorama das comunicações e para ele é necessário um esforço para a elaboração de novas teorias que contemplem seus traços únicos. Acreditamos não existir uma única teoria da comunicação capaz de abarcar todos os ­fenômenos 90

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interativos em virtude das experiências ainda estarem por se dar. Do mesmo modo que a TV Digital é classificada como um mix de mídias convergentes, é possível talvez que haja a necessidade de um mix de atuais para darmos conta da multiplicidade de fenômenos provocados pela interatividade, necessitando buscar as intersecções entre as teorias em um diálogo constante. Por outro lado, a natureza interdisciplinar da comunicação aponta para alguns caminhos na superação dos obstáculos presentes nesse seu começo de existência. (MORAIS, 2010, p.92)

Como propõe Morais, a mescla das teorias é uma possibilidade que deve ser aberta aos pesquisadores em comunicação. O olhar do pesquisador pode gerar novas leituras e uma ampliação às possibilidades de interpretação dos objetos estudados. Contudo, exigir que os estudantes elaborem teorias, considerando o sistema e a burocracia dos programas de pós-graduação no Brasil e a política envolvendo a titulação necessária para a docência, pode parecer extremamente pretencioso e inclusive utópico. Considerando que muitos nem ao mesmo tiveram contato com o conceito de teorias, produzi-las pode parecer um desafio assustador. A mudança para que esse modelo seja alcançado deve ser contínua e gradual. As intenções de Berger de incentivar discussões mais elaboradas sobre o fazer teórico são válidas, e com um olhar mais humilde e menos pretensioso, permitiria um maior contato do pesquisador inexperiente com os conflitos dos conceitos 91

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no campo e desenvolveria um olhar crítico em relação às teorias nas quais pretende basear suas pesquisas. Talvez a união de uma concepção mais real e possível do que Berger pretende com a visão de Eco do fazer investigativo, que se constitui da ausência, seja um caminho interessante para a evolução das pesquisas em comunicação. Com pesquisadores que têm repertório e compreendem o fazer teórico e que lidam de forma conflitante com o objeto. Acima das questões dos novos investigadores, há de se lembrar de que a própria concepção de teoria se modifica, assim como toda a sociedade, em um processo contínuo, que faz com que se depare com momentos chave para mudanças de paradigmas. As definições convencionais de teoria estão atrasadas em relação à prática: elas não refletem mais a atual gama dos trabalhos teóricos do campo. Este é o nosso presente estado de confusão. Carecemos até mesmo de um vocabulário coerente, com o qual possamos discutir a grande variedade de ideias que atualmente anunciam a si próprias como teorias da comunicação. (CRAIG, 2007, p. 86).

Como o novo pesquisador consegue lidar com todos esses conflitos trançados em uma rede de conhecimento complexa? Há ausência de experiência, de repertório e maturidade para lidar com as principais questões. O fato de a Comunicação ser classificada como ciência social aplicada gerou um olhar mais prático à mesma. 92

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Como a comunicação rege as relações, o campo inicia suas questões na vida social ou mesmo no mercado de trabalho, principalmente com o jornalismo e posteriormente publicidade, e migraram posteriormente para a academia. Esse processo acaba gerando um ideal de que “os pesquisadores em ciências sociais aplicadas estão interessados em descobrir soluções para questões práticas” (BERGER, 2007, p. 53), o que pode enfraquecer o interesse teórico no campo. Muitos fatores podem direcionar o pesquisador novato a determinado caminho, mas a rota e o rumo podem ser modificados. Estaria mesmo ocorrendo o enfraquecimento das discussões quanto às teorias? Esse processo favorece uma aceitação integral e sem critérios das mesmas e enfraquece o fazer científico? Não está sendo aqui defendida a negação das teorias da comunicação, pelo contrário, é com base nelas que todo o repertório do campo se desenvolveu e elas foram e são muito importantes, não apenas em seus contextos, mas como materiais a serem consultados e abordados para uma compreensão da existência da crise do campo e das possíveis atuais respostas. Um aprofundamento quanto ao processo do “fazer teórico” poderia ser vantajoso, não para que sejam criadas mil teorias que substituam as clássicas, mas que o conhecimento do processo de produção permita uma leitura crítica das teorias existentes. Como utilizar-se a teoria crítica sem um olhar crítico para as qualidades e fragilidades da teoria, por exemplo? Seria dissimular a base da elaboração do próprio constructo teórico em pauta. 93

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Entretanto, a criação de teorias também pode ser uma cilada. Disfarçando-se de novas respostas, essa opção pode ser tão perigosa quanto a leitura e utilização acrítica das teorias já existentes. Marcondes Filho destaca uma situação em que o novo é o antigo repaginado, outro processo que mantém o saber na inércia, contudo, com um falso sentimento de movimento. Naturalmente, nem todos são assim, mas se encontram inevitavelmente situações em que o novo pode servir para revitalizar o velho, para dotar os modelos de intervenção social ou de controle de um equipamento teórico mais moderno. Especialmente se a ótica permanecer utilitarista, no sentido de mobilizar o aparato científico para “resolver pequenos problemas práticos”. (MARCONDES FILHO, 2002, 283)

Marcondes Filho, em sua obra O Espelho e a Máscara (2002), traça uma linha temporal da evolução do pensamento científico e dentre as suas conclusões está a de que o pensamento científico se constitui como “Uma forma de retórica que aspirava à objetividade, a verdade acima das opiniões particulares e subjetivas. Uma outra forma, portanto, de fazer prevalecer às próprias posições.” (MARCONDES FILHO, 2002, p.219). Essa forma se fortalece como uma muralha que reprime o novo e tudo que se estabeleça com outra visão que não siga a ordem lógica. As afirmações de Marcondes Filho levam à observação dos possíveis obstáculos ao fazer investigativo. 94

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No tópico sobre a epistemologia, foi discutido o caráter político dos posicionamentos e a sua participação na evolução das ciências. Torna-se, portanto, interessante a um olhar sobre sistema político e burocrático no qual as universidades estão inseridas no Brasil.

Imposições e a burocracia acadêmica: o sistema Para a obtenção do título de mestre e de doutor em comunicação no Brasil, há a necessidade de a elaboração de uma dissertação e uma tese, respectivamente. O processo para essa produção varia entre uma média de dois anos para o nível mestrado e quatro para o nível doutorado. O ideal seria uma sociedade mais justa, onde estudar fosse trabalho pago pelo Estado àqueles que verdadeiramente tivessem vocação para o estudo e em que não fosse necessário ter a todo custo o ‘canudo’ para se arranjar emprego, obter promoção ou passar à frente dos outros num concurso. (ECO, 2002, p.3).

Longe do ideal, a realidade com que o campo se depara é a burocratização do diploma, fatores econômicos e políticos influenciando em escolhas acadêmicas, teóricas e metodológicas, principalmente com o poder das agências de financiamento científico, impelindo, muitas vezes, uma evolução diferente do campo, em direção a uma renovação e evolução de olhares. 95

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As exigências de produção, com base em quantidade, somadas a formatação dos congressos científicos podem ser um atraso para esse processo de novo olhar para o campo. As agências exigem um número considerável de publicações e participações em eventos, a dificuldade de controlar as exigências de produtividade acaba introduzindo essa questão e reduzindo a números as contribuições e produções do pesquisador.

Conflitos iniciais e contínuos A legitimação da Comunicação sempre esteve presente na sua existência e provavelmente é uma questão que se manterá. Ainda não existe um conceito unificado de comunicação, muitos menos uma unanimidade quanto aos objetos que podem ser investigados por ela. As teorias e os métodos são questionados e alvos das principais críticas. Os conflitos internos são produtivos no campo científico, pois a existência de olhares críticos e a discussão contínua sobre o fazer investigativo impedem o campo de solidificar concepções e paradigmas que se constituam como dogmas. Um pesquisador iniciante tem que se deparar com todas essas questões tendo um repertório, na maioria das vezes, infinitamente menor do que o dos pesquisadores titulados da área. Como lidar com esses pontos de vista tão distintos que o pesquisador vai se deparando durante sua pesquisa? Como ter acesso a essas informações todas e pensar sobre o fazer comunicacional? Uma pos-

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sibilidade para suprir as fragilidades e incentivar novas construções acadêmicas é as disciplinas dos programas de pós-graduação tornarem-se grandes grupos de discussão, trazendo à tona os conflitos da área. Os problemas podem não ser solucionados com essa atitude, mas não serão esquecidos ou deixados de lado e o risco de um pesquisador em comunicação não conhecer a crise de identidade de seu próprio campo torna-se consideravelmente menor. Um pesquisador em comunicação precisa, acima de tudo, ser um crítico. O campo da Comunicação evolui continuamente, e agora, o pesquisador iniciante faz parte desse processo, é um ator cuja produção vai contribuir para esses conflitos. São conflitos iniciais e contínuos, que devem acompanhar os pesquisadores dentro do fazer investigativo, estimulando o movimento da ciência e a não estagnação. É preciso entender e aceitar que fazer comunicação é estar dentro do furação, é fazer parte, é ser um agente de construção do conhecimento. A ciência se exaure quando todas as perguntas são respondidas. É no paradoxal que a observação do objeto se constrói. A dialética da construção por meio da desconstrução. Da Ausência dentro da presença, como propõe Eco.

Referências BERGER, Charles R. Por que existem tão poucas t­ eorias da Comunicação? In. MARTINO, Luiz C. (org.). Teorias da Comunicação: Muitas ou poucas? Cotia: Ateliê Editorial, 2007. 97

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Capítulo 3 Lei de Acesso à Informação: ­fortalecimento da comunicação ­pública na visão da esfera pública habermasiana Bruna Silvestre Innocenti Giorgi 1

Introdução No Brasil, comunicação pública é um termo relativamente jovem e, por isso, possibilita várias interpretações e conceitos. Diante da diversidade, Brandão (2009) alinha todas as concepções resumindo que a comunicação pública é um processo que ocorre entre Estado, governo e a sociedade com a intenção de estabelecer informações que auxiliem na construção de uma cidadania. Conforme a autora, esses setores mencionados formam uma esfera pública, sendo um espaço privilegiado de negociação entre os interesses públicos diversos. Assim, 1. E-mail: [email protected] 101

percebe-se que a comunicação pública compõe o contexto político da sociedade, porém “não é um poder em si, mas o resultado do poder do cidadão quando organizado e constituído como sociedade civil” (BRANDÃO, 2009, p. 9). Fica claro, portanto, que o diálogo entre Estado, governo e sociedade deve proporcionar informações relevantes de serviços e de divulgação de políticas públicas e de órgãos do governo. Entretanto, a comunicação abarca mais que disponibilizar informações, pois a intenção é gerar um debate sobre assuntos de interesse público (ZÉMOR, 2009). Kunsh (2012) compartilha da ideia de Zémor (2009) e destaca que o interesse público é a orientação da comunicação pública, já que ela faz parte de um serviço público, e a discussão ocasionada por ela é um substrato para o desenvolvimento da cidadania. Essa discussão é associada à participação ativa dos cidadãos. Conforme Duarte (2009) esse é o resultado da comunicação pública que deve focar nos interesses coletivos e na transparência. O cidadão deve ter “a possibilidade de expressar suas posições com a certeza de que será ouvido com interesse e a perspectiva de participar ativamente como protagonista naquilo que lhe diz respeito”, (DUARTE, 2009, p. 64). Por isso é um processo que demanda tempo, pois a informação é apenas uma intenção, é preciso também “qualificar o cidadão para exercer seu poder de voz, de voto e de veto nas questões que dizem respeito à coletividade” (MONTEIRO, 2009, p. 40). Faz-se, então, necessário especificar que a comunicação pública discutida no presente artigo tem o viés de 102

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comunicação estatal, que é aquela praticada pelo governo e pela administração pública, “visando à prestação de contas, ao estímulo para o engajamento da população nas políticas adotadas e ao reconhecimento das ações promovidas no campo político, econômico e social”, (MONTEIRO, 2009, p. 38). Mas, segundo Monteiro (2009), movimentos sociais e organizações não governamentais também podem exercer essa comunicação, já que ela também objetiva o interesse público e o diálogo. De acordo com Duarte (2009), os instrumentos de comunicação pública são divididos em informações e diálogo. As informações advindas da comunicação pública, ainda conforme o autor, podem ser de ordem: institucional, de gestão, de utilidade pública, de interesse privado, mercadológica, de prestação de contas e dados públicos. Assim, é importante desenvolver mídias que reúnam ferramentas que possibilitem a publicização de informações relevantes e que ainda hospedem um espaço para interação e participação. Com o desenvolvimento de tecnologias da informação houve a possibilidade de construção de canais e sites que disponibilizam a participação, ouvidoria, consulta pública, pesquisa e outros sistemas dialógicos. Nesse momento não será aprofundada a crítica ideologia tecnicista, mas o artigo não tem a intenção, conforme Wolton (2010, p. 29), de “subordinar o progresso da comunicação humana e social ao progresso das tecnologias”. O que será entendido é que as novas tecnologias contribuem para a democratização da comunicação e pela realidade de meios que proporcionem processos 103

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deliberativos. Habermas (2008) acredita que apesar da mediação feita por meios de comunicação não ter todas as características necessárias para o desenvolvimento da deliberação, é inegável o papel importante da mídia nesse objetivo. Como é possível perceber, a comunicação pública tem um papel relevante na democracia e, assim, na vida social e política das pessoas nas esferas em que elas fazem parte. A informação acessível e o diálogo são o centro desse processo. Esta pesquisa se vale da metodologia bibliográfica e pretende legitimar a Lei de Acesso a Informação (Lei 12.527/11) como ferramenta formal para a garantia e o fortalecimento de uma esfera pública e, assim, da consubstanciação de uma comunicação pública como processo interativo e dialógico. Além disso, é uma forma de consolidar o conceito de comunicação pública e, assim, fortalecer essa área da pesquisa em comunicação. Por isso, é válido expor os conceitos de esfera pública e do agir comunicativo discutidos pelo filósofo Habermas, com a intenção de situar o contexto da comunicação pública. Portanto, o item a seguir traz uma leitura sobre esses temas, desde a década de 1960 até sua reformulação com o capitalismo latente. No item 3, a Lei de Acesso à Informação brasileira (LAI) será descrita criticamente com a tentativa de unir os conceitos habermasianos. Em seguida, as considerações finais sobre o objetivo do artigo e a tentativa de observar desmembramentos da atual pesquisa.

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Esfera pública e outros conceitos de Habermas O conceito de esfera pública está em constante transformação e aprimoramento, por causa de sua relevância temática, complexidade e frequência nas discussões. Isso ocorre, principalmente, porque esfera pública está estritamente relacionada a outras definições também profundas, como público, opinião pública e sociedade civil2. De forma simplificada, a esfera pública atual se caracteriza pela interação e comunicação constante entre os atores sociais com temas privados que têm a relevância pública. Nesse sentido, então, a esfera pública é capaz de interferir direta ou indiretamente nas decisões políticas do Estado. Para discorrer sobre essa ideia, o filósofo, sociólogo e neomarxista3 alemão Jürgen Habermas oferece uma vasta bibliografia sobre o tema.  Na obra  A Mudança Estrutural da Esfera Pública, da década de 1960, Habermas conceitua a esfera pública com um viés identificável do mundo ideal, propondo

2. O centro da sociedade civil é formado por “associações e organizações livres, não estatais e não econômicas, as quais ancoram as estruturas de comunicação da esfera pública nos componentes sociais do mundo da vida”, (HABERMAS, 2003c, p. 99). 3. Ele faz parte da segunda fase da Escola De Frankfurt e é considerado neomarxista por se opor ao positivismo presente nessa corrente. Embora Habermas concorde com Horkheimer que o papel da Teoria Crítica é examinar a ideologia. Ele também acha que a Teoria Critica deve animar a luta política capaz de revolucionar o existente, e nos libertar da opressão do poder do sistema. 105

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ser um espaço em que os indivíduos desenvolvem a opinião pública a partir de assuntos de interesse coletivo e de maneira racional. Essa racionalidade, para o filósofo, era compositora fundamental da lógica comunicativa e argumentativa que fomentaria a opinião pública. Além disso, despia os interesses particulares, levando em conta apenas o relevante coletivo (HABERMAS, 2003a). Ou seja, havia uma diferença consubstancial entre esfera pública e privada. A diferenciação entre  público e privado  foi fundamental para o desenvolvimento da esfera pública  habermasiana. O filósofo alemão, de acordo com Barros (2008), partiu da polis da Grécia Antiga, como espaço comunitário de partilha, valorização e transformação da cultura, esporte e opiniões entre os cidadãos. Essa definição é clara porque a ideia de público acontecia na ágora, a praça principal das cidades. “Nesse ambiente, a liberdade e a igualdade entre os integrantes eram os pressupostos básicos, condições para a realização da política em seu sentido mais amplo, de discussão e de disputa” (BARROS, 2008. p.24).  O debate, a interação física e a formação de uma opinião pública caracterizam esse conceito de esfera que, conforme Habermas (2003a), era literária e também denominada de burguesa – porque floresceu a partir dessa classe e por restringir a participação de pessoas intelectuais e com posse – e tinha sua origem em instituições cotidianas e sem estrutura formal, como cafés e salões. Observava  nos países centrais da Europa (Inglaterra, França e Alemanha) do século XVIII, a esfera pública 106

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burguesa se originou como oposição dessa classe ao Estado para requerer direitos, majoritariamente, referentes à regulação do comércio e do trabalho social. Seu esquema inicial compreendia a esfera privada composta pelo espaço íntimo da família e pela sociedade civil burguesa, atrelada ao trabalho e a troca de mercadorias; a esfera pública, que era composta por uma esfera pública política e uma esfera pública literária da qual a primeira se originava. Sendo assim, a esfera pública política teria a função fundamental de, através da opinião pública, intermediar as relações entre o Estado e as necessidades da sociedade. (LOSEKANN, 2009, p. 40). 

As conclusões dos debates na esfera pública eram voltadas a jornais e folhetins com a intenção de despertar o interesse dos formadores de opiniões e interferir nas escolhas do poder público. Esse modelo sofreu várias críticas e trinta anos depois, Habermas revisou o conceito. A perspectiva histórica e mediada entre Estado e Sociedade Civil da esfera pública burguesa é desenvolvida com elementos normativos e  socioteóricos. Esses elementos adicionais apontam para uma sociedade seccionada em Mundo da Vida e Mundo do Sistema e são intrínsecos ao contexto capitalista avançado, que está relacionado com o progresso técnico e a redução de tarefas prático-políticas (HABERMAS, 2003c). Assim, esse conceito reformulado é direcionado para a fomentação de uma esfera pública comunicativa que atue entre essas duas esferas. 107

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Na obra Direito e Democracia, de Habermas, a esfera pública é constituída amplamente pela comunicação, como uma rede propícia para a disseminação de conteúdos e a criação de opiniões e posições. “Nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas”, (HABERMAS, 2003b, p.92).  Mais  adiante, neste item,  será visto que a linguagem é a base do agir comunicativo que comporta a esfera pública. Uma linguagem comum promove a “compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana.” (HABERMAS, 2003c, p. 92)  Na reconstrução do conceito de esfera pública, as mudanças são observadas como um todo, principalmente pelas consequências do sistema capitalista avançado, mas, principalmente, é alterada a forma de entender a  espacialidade, sua estrutura social e a multiplicidade de esferas públicas.  A espacialidade compreendida na esfera pública moderna é bastante visível na atualidade, por causa do avanço das tecnologias da informação (TICs) que acessam a rede mundial de computadores. Ou seja, para discutir-se uma temática, não é necessário estabelecer uma relação física com outros indivíduos. Muitas vezes, o emissor e receptor de uma mensagem estão distantes, mediados por tecnologias ou mídias. E essa possibilidade, portanto, não é recente, é comum desde que surgiu a imprensa moderna, mas muito mais consolidada e acionada nos dias atuais. Habermas (2003b) entende a esfera pública moderna como uma estrutura flexível, com limites não 108

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i­dentificáveis, diferentemente da esfera pública burguesa, em que os cafés, salões e comunidades de burgueses eram os antros do desenvolvimento da opinião pública. Desse modo, é possível observar a mudança estrutural da esfera pública na participação de todos os indivíduos, leigos ou entendidos, com posse ou sem terra. A opinião, então, pode ser emitida de forma individual, sem a necessidade do apoio da sociedade civil organizada ou de classes sociais. Além disso, a esfera pública é composta não somente pela esfera pública política e literária. Habermas (2003b e 2003c) inicia essa discussão com outra sobre o público e o privado no viés político. Desenvolvendo os temas já mencionados, a esfera da vida privada é a ambiência de maior vivência dos indivíduos, o seio familiar, em que se desenvolvem laços fraternos, os quais se depreendem questões inócuas à sociedade e encaminhadas para o debate público no sistema político para  serem  resolvidas. Essas demandas são manejadas para exercer pressão na esfera normativa política e apenas será legitimada, caso os argumentos se mostrem de relevância pública (HABERMAS, 2003c), possibilitando a influência de decisão na esfera pública. Ou seja, há um fluxo que vai do privado ao público. Dentro de uma mesma temática, assim, é possível encontrar grupos que se diferem, reafirmem ou se contradigam, tornando a esfera pública composta por uma multiplicidade de outras esferas. Essa composição também é facilmente observável na mídia e, principalmente, na Internet, em que site, blogues e sites de redes sociais emergem diversas opiniões. Mas, nesse aspecto da nova 109

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forma de observar a esfera pública, a Internet tem o potencial de aproximar as múltiplas opiniões, como também segmentar as esferas. É conveniente mencionar que associações da sociedade civil admitem importância na sociedade, já que os cidadãos buscam nelas perspectivas relevantes no âmbito político e particular. Assim, acabam influenciando de alguma forma a opinião e a vontade da sociedade. São nessas organizações que se institucionalizam os discursos da esfera privada, tornando-os relevantes à esfera pública política. Habermas (2003a) aponta esse processo livre, junto com a liberdade de imprensa, como a base da comunicação pública. Porém, de acordo com Habermas (2003a, p. 88), essas associações são componentes de uma “esfera pública dominada pelos meios de comunicação de massa, a qual, através de seus fluxos comunicacionais diferenciados e interligados, forma o verdadeiro contexto periférico”. A mudança conceitual feita por Habermas da esfera pública possibilita o entendimento de que a esfera pública é regida e rege o discurso da comunicação pública. “A sociedade civil pode, em certas circunstâncias, dotada de uma lógica racional legítima, ter opiniões públicas próprias, capazes de influenciar o complexo parlamentar (e os tribunais), obrigando o sistema político a modificar o rumo do poder oficial”, (HABERMAS, 2003b, p. 106). Por isso, a comunicação pública deve ser concebida facultando o fluxo comunicacional de interação e que agregue vários – ou todos, de forma mais ingênua – setores da sociedade. Por isso, faz-se necessário ­explanar 110

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sucintamente a Teoria do Agir Comunicativo, muito presente na obra  Consciência moral e agir comunicativo, Habermas (2003c), que é a base para o entendimento da comunicação pública na ótica de um beneficiamento do fluxo comunicacional entre sociedade e Estado.  Na década de 1980, a teoria da ação comunicativa é exposta por Habermas e é resultado de outra discussão muito marcante nos estudos habermasianos: a racionalidade, reconhecida como base para qualquer estudo e ação humana social. Para Habermas (1987), a racionalidade é propulsora do processo comunicativo-discursivo por meio da linguagem, que é vista como um código exato. Habermas se aproxima, então, da Teoria da Informação ao entender a informação como um código, a ser aprendido e compreendido por todos (GLEICK, 2013). Além disso, essa Teoria advinda dos trabalhos de Alan Turing e Claude Shannon propõe o princípio da incerteza que admite que a informação é formada por informação e, por isso, não é possível conhecer toda a informação. Além do subjetivismo, os usuários de uma linguagem comum recebem e emitem informações e opiniões políticas, mas são atingidos pelas ações políticas. Ou seja, ao necessitarem de um serviço, muito possivelmente há uma mudança de discurso. “Os problemas tematizados na esfera pública política transparecem inicialmente na pressão social exercida pelo sofrimento que se reflete no espelho de experiências pessoais de vida”, (HABERMAS, 2003c, p. 97). A teoria da ação comunicativa se resume pela ideia de que os  indivíduos agem de forma comunicativa e, 111

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por trás desse agir, baseia-se a racionalidade, que pode ser pensada de duas formas: razão comunicativa e razão  instrumental. Desses aspectos é  possível  perceber diferentes formas de ação social na interação entre os indivíduos: a ação direcionada para a compreensão mútua ou ação comunicativa (razão comunicativa) e a ação voltada ao êxito individual ou ação estratégica (razão instrumental). Essas razões se expressam, na ordem,  pelo mundo da vida e pelo mundo sistêmico. Neste momento, serão privilegiadas as noções de Agir Comunicativo e Agir Estratégico, pois os conceitos se aproximam com a práxis da comunicação pública, no viés de processo que objetiva a aproximação entre Estado, governo e sociedade. Nesse sentido, a comunicação pública deve ser desenvolvida dialogicamente, preocupada com o desenvolvimento do diálogo entre as esferas e na elaboração de fluxos de comunicação que proporcionem resultados interessantes, típicos de uma democracia, e que solucionem temas de interesse público. De acordo com Habermas (2003c), o agir comunicativo é o discurso destinado à cognição recíproca entre indivíduos que conhecem a linguagem e têm possibilidade de ação. A fala, em si, é vista como uma integração social. “Falo em agir comunicativo quando os atores tratam de harmonizar internamente seus planos de ação e de só perseguir suas respectivas metas sob condição de um acordo existente ou a se negociar sobre a situação e as consequências esperadas” (HABERMAS, 2003c, p. 164-165). Ou seja, é necessário um diálogo para que, após um consenso, seja possível tomar decisões. 112

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A ­dimensão comunicativa,  desse modo, é condicionada por processos de entendimento mútuo que objetiva um compromisso que depende da aprovação racional derivada de um conteúdo articulado e dialogado. “O acordo não pode ser imposto à outra parte, não pode ser extorquido ao adversário por meio de manipulações: o que manifestamente advém graças a uma intervenção externa não pode ser tido na conta de um acordo. Este assenta-se sempre em convicções comuns”, (HABERMAS, 2003c, p. 165).   Numa  atitude orientada para o entendimento mútuo, o falante diz de forma inteligível as pretensões: que o enunciado formulado é verdadeiro ou, compreende aquilo sobre o que se entende como algo em um mundo, como algo que se desprendeu do pano de fundo do mundo da vida para se ressaltar em face dele, o que é explicitamente sabido separa-se das certezas que permanecem implícitas, os conteúdos comunicados assumem o caráter de um saber que vincula a um potencial de razões, pretende validade e pode ser criticado, isto é, contestado com base em razões (HABERMAS, 2003c). O termo habermasiano mundo da vida é a ambiência de interações entre os indivíduos, sendo estruturada pela cultura, sociedade e personalidade. As situações de ação se contextualizam no mundo da vida, que fornece condições para o desenvolvimento interpretativo individual, anulando a dificuldade do entendimento mútuo originado em cada situação de ação (HABERMAS, 2003c). Essa contextualização desenvolve a comunidade da fala ou também entendido como práticas sociais 113

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cotidianas, suas regras e normas, pareando com a identidade cultural dos sujeitos participantes. O mundo da vida se refere a uma esfera de intersubjetivismos, da vida privada, em que naturalmente as pessoas vivem. Em contrapartida, o mundo intersubjetivo da vida é frequentemente ameaçado por uma razão instrumental que, muitas vezes, debilita a criticidade dos indivíduos, abalando, em consequência, os processos de entendimento. Essa ação baseada na razão instrumental é denominada por Habermas (2003c) como ação estratégica, que também prejudica a integração da ação na esfera da vida privada, visando desarticular o viés de problematização do modo de vida dentro da esfera. O agir estratégico, diferentemente do agir comunicativo, é orientado para estabelecer o sucesso individual. Os interesses particulares são sustentados, usando o discurso para persuadir os outros agentes a favor do próprio benefício, por meio de ameaças, seduções e promessas. “O resultado da ação depende também de outros atores, cada um dos quais se orienta pela consecução de seu próprio êxito, e só se comporta cooperativamente à medida que este resultado se encaixa em seu cálculo egocêntrico de utilidades” (HABERMAS, 1987, p. 127). Para Rüdiger, “neste caso, os processos de coordenação da ação são de fatos assumidos por meios sistêmicos, como o poder e o dinheiro” (2011, p. 109). O consenso é omitido, e os processos de interação são direcionados para um viés estratégico, egocêntrico, em que o interesse particular é imposto, distorcendo a comunicação. Ou seja, a comunicação é usada de forma instrumental e 114

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estratégica, destinada a um determinado objetivo, que não o consenso ou o fortalecimento de culturas. Assim, o mundo da vida passa a ser controlado por sistemas particulares, pertencentes ao mundo do sistema, em uma esfera sistêmica (HABERMAS, 2003c).  Nesse mundo  sistêmico,  as elites passam a  dominar  o Estado, que se deixa influenciar e se desinteressar pelos problemas sociais das grandes massas. Mundo Sistêmico ou Sistema é  a esfera em que se procede  trocas sociais formais, conduzidas por regras, leis e normas advindas da cognição do homem. É caracterizado pelos aspectos das organizacionais e corporativos, econômicos, pela lógica de mercado, política e burocracia, em uma ordem capitalista – e não propriamente racional – e emanada do poder político e administrativo, promovendo o controle social ou, sob a ótica da civilidade, a organização social. Para tudo o que foi comentado, a globalização ditada pelo estágio avançado do capitalismo, o mundo do sistema – composto pela ação estratégica e razão instrumental – tenta “colonizar do mundo da vida”. Assim, a produção da vida material domina o processo da vida social, pois “a prática comunicativa cotidiana é racionalizada de forma unilateral num estilo de vida utilitário” (1987, p. 325). Sendo assim, a esfera privada é guiada pelas regras econômicas e a esfera pública, pelo sistema administrativo. O capitalismo sistêmico se embrenha na estrutura social-ideológica, penetrando na esfera pública do Estado e, perigosamente, nas práticas sociais do cotidiano 115

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da vida privada, provocando manipulação e a influência das consciências, gerando o individualismo exagerado. Para Habermas (1987, p. 325), essas condições quebram os caminhos feitos para a promoção do agir comunicativo, manipulando a “lealdade das massas” e, assim, facilitando as ações unilaterais de decisões políticas e assuntos de interesse público e cultural por quem está no poder. Assim, o mundo sistêmico está acima do mundo da vida, deixando de lado os interesses públicos pelos individuais. Essa ideia se estende, muitas vezes, a concepção de comunicação pública. Pela lógica capitalista, esse tipo de comunicação tem o foco em ser estratégica, assim como na maioria das empresas. Entretanto, a comunicação pública deveria ser pensada para estabelecer uma comunicação que gere informação, conhecimento e discussões sobre assuntos de congregação plural. A educação política e bem-estar social são temas amplos e que deveriam ser a base para um bom diálogo entre sociedade, Estado e governo.  Neuman (1977) como estudiosa da demoscopia também discute sobre a opinião pública e sua hipótese da Espiral do Silêncio é bem-vinda neste momento. Seu pensamento é iniciado pela ideia de controle social que parte da conceituação de opinião pública. Ela usa o conceito de Speier (1950), que concebe a opinião pública como opiniões de assuntos de interesse nacional expressadas livre e publicamente por pessoas não pertencentes ao governo que acreditam que a sua opinião influenciem nas ações, no pessoal e na estrutura do governo. Mas, depois, esse 116

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conceito perde a força de pressão e passa ter a conotação de tribunal, em que os indivíduos que têm outras opiniões que não as dos líderes ou da maioria são forçados a ficarem calados, para se manterem em sociedade. Por isso, a comunicação pública deve pertencer a uma esfera pública moderna e plural. A informação é o substrato para que argumentos se arranjem e, em outra perspectiva, promover a aceitação à diversidade de opinião, escolhas e modos de vida. Como uma democracia pode fomentar tal aspecto informativo? Dificilmente a resposta se dará em um âmbito natural. No caso do Brasil, por exemplo, marcado por uma cultura do segredo e pela corrupção, a dificuldade da transparência é notória, acarretando em desconfiança e descrédito político dos cidadãos. Dessa forma, como em muitos outros países, foi regulamentado um direito já presente na Constituição de 1988 e em outras leis, o direito de acesso à informação. Em 2011, foi sancionada a Lei 12.527/11, conhecida por Lei de Acesso à Informação Pública ou LAI. Sendo assim é válido descrevê-la e mostrar os principais aspectos para que seja possível concluir e diagnosticar a vantagem dessa lei no fortalecimento de uma esfera pública política e de uma comunicação pública dialógica e transparente no mundo da vida e sistêmico.

Aspectos relevantes da lei de acesso à informação A comunicação pública digital, dentro do agir comunicativo, tem a potencialidade de desenvolver ou 117

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c­ onsolidar a democracia deliberativa, em que os cidadãos dispõem de total possibilidade de participar das decisões. Os sites governamentais de secretarias e outros órgãos específicos, conforme Rothberg (2014), têm dois propósitos: disseminar informações sobre o desempenho de políticas públicas para que a sociedade exerça controle e fiscalização; e tornar públicas “as estratégias que devem orientar a mobilização dos diversos atores sociais em torno de objetivos comuns, decididos em espaços de interação e negociação mantidos por conselhos de políticas, secretarias de governo, órgãos gestores etc.”, (p. 8). A esfera pública política é composta por Estado, governo e cidadãos promovendo debates e discussões proveitosas. Entende-se, portanto, que a informação é o substrato para uma comunicação pública que objetiva a interação com a sociedade. A informação pode ser analisada como base do poder. Permitir ou restringir o acesso a dados organizados que dizem respeito ao interesse público é uma questão há muito tempo discutida em vários âmbitos disciplinares e temáticos. Na presente pesquisa, essa discussão orbitará em termos sociais e políticos com a intenção de aclarar a importância da consolidação de leis de acesso à informação em prol de uma sociedade mais justa, transparente e participativa. Organizações governamentais ou privadas geram impactos de várias ordens na sociedade e, desse modo, deveriam disponibilizar dados em que influenciem diretamente na vida dos cidadãos e comunidades. A partir da definição de informação pública que apresenta o público 118

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como oposto ao privado é possível pensar essa antinomia desde a Roma Antiga, quando havia a divisão de coisas divinas e coisas humanas. As divinas se referiam às questões de ordem religiosa, já as humanas eram segmentadas em: bens particulares, coisas comuns e coisas universais. As coisas comuns eram destinadas ao uso indiscriminado de qualquer pessoa; as coisas públicas eram as que pertenciam ao povo romano, embora pudessem estar facultadas ao uso de todos, como os portos, os rios e os caminhos públicos; as coisas ‘universitatum’ pertenciam às cidades e compreendiam duas classes: a das que tinham natureza patrimonial, como dinheiro, os bosques, as pastagens, as vinhas e as casas; e a das atribuídas pelo poder público ao uso dos habitantes, como os teatros, os estádios etc. (MASAGÃO, 1977, p. 127-8).

É possível imaginar que durante a Idade Média, as concepções de público passaram para a dominação do monarca. Conforme Masagão (1977), doutrinas jurídicas surgiram e prediziam que as coisas de interesse comum eram de dominação do rei e que o cidadão poderia usufruir, sem privilégios e com igualdade. Nesse momento histórico, o monarca regulava e fiscalizava o que era comum. Essa concepção perdurou até a Era Moderna, quando dominou a ideia de república como um sistema em que o poder é público e o segredo de Estado se torna uma exceção amparada por leis. Diante desse quadro, a informação pública se torna aquela que 119

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é divulgada, publicizada, se assemelhando ao contexto contemporâneo. De acordo com Michener (2011, p. 7): “Quase metade das leis de acesso do mundo foram promulgadas nos últimos dez anos e apenas uma lei foi formalizada antes de 1950 (Suécia, em 1766)”. E foi no século XX que o assunto passou para a esfera internacional. Organizações e grupos de países passaram a discutir sobre o tema, principalmente com o viés de direitos humanos. De acordo com Mendel (2008), isso se deve às transições políticas para a democracia desde o início de 1990; os avanços tecnológicos que mudaram as relações sociais e a informação; e a forma como a informação é usada. “A tecnologia da informação melhorou, em termos gerais, a capacidade do cidadão comum de controlar a corrupção, de cobrar dos líderes e de contribuir para os processos decisórios” (MENDEL, 2008, p.4). O autor aponta para esse fato o aumento da demanda pelo acesso à informação. Entretanto, os aparatos tecnológicos estão economicamente disponíveis para um grupo restrito de cidadãos, marginalizando muitas classes sociais que não têm acesso. Na década de 1940, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu o direito à informação como um direito humano (Carta das Nações Unidas), reforçando a ideia da liberdade de informação, com a previsão de solicitação nas organizações públicas internacionais. Em 1948, com a Declaração dos Direitos Humanos, esse reconhecimento foi reforçado, e está presente no artigo 19: “Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e 120

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expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”. O direito à informação, no Brasil, é garantido pela constituição de 1988, mas, até 2011, não havia uma legislação reguladora. “XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado” (artigo 5º da Constituição Federal). Essa regulação é preponderante haja vista que o país é marcado pela cultura do segredo, burocracia e por uma História de ditadura militar, e foi estimulada por pressões internacionais, já que o Brasil foi a 89ª nação a sancionar uma lei. Desse modo, a Lei 12.527/11, também conhecida como Lei de Acesso a Informação Pública ou LAI, é um reforço para que a comunicação pública brasileira se situe nos conceitos de esfera pública e agir comunicativo habermasiano. Por isso, neste momento, será descrito criticamente os pontos mais relevantes da LAI no contexto discutido até aqui. Em novembro de 2011, a presidente da República Dilma Rousseff sancionou a LAI, que entrou em vigor no dia 16 de maio de 2012. Essa lei regulamenta o acesso dos cidadãos às informações públicas de todos os órgãos do governo, aplicáveis aos três Poderes da União, Estados, Municípios e Distrito Federal. A informação nos parâmetros da lei pode ser entendida, de acordo com 121

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Batista (2010, p. 40), como “um bem público, tangível ou intangível, como forma de expressão gráfica, sonora e/ou iconográfica, que consiste num patrimônio cultural de uso comum da sociedade e de propriedades das entidades/instituições públicas”. Essa informação pode ser originada da administração pública, como dados das políticas públicas, ou estar sob domínio dela, sendo classificadas em ultrassecretas, secretas e reservadas ou ainda como dados pessoais. As informações restritas são advindas da ideia de Habermas da esfera privada, entretanto, diferentemente, assuntos da vida privada, atualmente, não devem ser revelados para um debate e possível solução do problema. Além disso, em geral, as ultrassecretas são classificadas dessa forma, principalmente, quando há uma ameaça a segurança de grupos específicos ou de toda a nação. A LAI prevê prazos para que a comissão criada especificamente para isso revise classificação das informações. A Unesco (MENDEL, 2008) divulgou uma pesquisa comparativa entre os países que têm a regulação e propôs nove princípios: 1. Máxima divulgação: a legislação deve ser fundada no princípio de abertura máxima das informações públicas. As restrições devem estar contidas na lei e baseadas em segurança e privacidade; 2. Obrigação de publicar: além da demanda, os órgãos públicos devem publicar informações voluntariamente. Esses registros incluem temas como

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informação sobre a maneira em que o organismo público opera (custos, objetivos, prestação de contas, normas, obras em andamento, entre outros), ações diretas (requerimentos e reclamações) que o cidadão possa fazer sobre o organismo público; orientações de eventos para o cidadão poder participar e atuar; os tipos de documentos em posse do governo que tenham caráter sigiloso; e decisões que afetem os cidadãos de alguma forma. 3. Promoção de um Governo Aberto: é composto por dois aspectos: divulgar os direitos dos cidadãos e promover uma cultura de abertura. O primeiro refere-se ao cerne do direito à informação, no sentido de promover outros direitos, como o direito à educação, à saúde. Já o segundo, é a atuação do Estado em estimular os cidadãos e funcionários a receber e ofertar, respectivamente, as informações necessárias. 4. Limitação da abrangência das exceções: na lei deve estar claramente especificada quais são as exceções, medidas na equação interesse público e danos sociais. Tendo ciência de que o interesse público se sobrepõe ao dano. 5. Procedimentos facilitadores: as informações solicitadas devem ser retornadas ao pedinte de forma rápida, com imparcialidade e compreensível, ou seja, atender as necessidades de analfabetos e de pessoas que não entendem a língua original do 123

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documento. As recusas devem ser revisadas em três níveis, de forma clara: no próprio órgão de solicitação, em um órgão administrativo independente e aos tribunais. “De forma geral, os órgãos públicos devem designar funcionários para processar solicitações de informação e garantir que os termos da lei sejam cumpridos”, (CANELA e NASCIMENTO, 2009, p. 23). 6. Acesso econômico possível: não deve ser empecilho para a garantia de solicitações de informações. Ou seja, a disponibilização de informações em impresso, áudio, vídeo ou outro formato não deve ter custo alto. 7. Divulgação de reuniões abertas: os cidadãos têm o direito de saber o que os seus representantes estão fazendo, por isso é importante constar nas legislações um prazo mínimo de divulgação de eventos de interesse público. 8. Princípio de divulgação tem prioridade, estabelecendo que “as leis que não estejam de acordo com o princípio da máxima divulgação devem ser revisadas ou revogadas”, (MENDEL, 2008, p. 41); 9. Proteção aos denunciantes que revelem publicamente irregularidades e ilicitudes governamentais. Conforme Rothberg, Napolitano e Resende (2013), a LAI atende o primeiro, quarto e oitavo princípios apontados por Mendel (2009). Em relação ao primeiro, 124

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­ áxima divulgação, os pesquisadores pontuam que o m Brasil “se equipara às melhores práticas internacionais, que não fazem distinção entre informação e sua presença em documentos específicos, e não permitem o questionamento do motivo do solicitante, que, no entanto, deve ser identificado”, (ROTHBERG, NAPOLITANO, RESENDE, 2013, p. 114). A lei 12.527 consubstancia dois tipos de transparências: a ativa e a passiva. Na ativa, os órgãos públicos governamentais são obrigados a manter atualizadas informações, principalmente em seus sites (artigo 8 da LAI), que sejam claras, objetivas, acessíveis, possível de reproduzir e, principalmente, verídicas. Além disso, os endereços eletrônicos devem disponibilizar dados como: “endereços e telefones das unidades e horários de atendimento ao público, dados gerais para acompanhamento de programas, ações, projetos e obras; respostas e perguntas mais frequentes da sociedade” (CGU, 2012, p. 15). Na transparência passiva, os cidadãos podem fazer solicitações de informações específicas. Para isso, foi criado o Serviço de Informação ao Cidadão (SIC), uma plataforma digital, disponível na Internet, que serve para fazer esses requerimentos. Desse modo, a LAI prevê, além das já mencionadas na ativa, um prazo para o retorno dessas informações, gratuidade no fornecimento e a não necessidade de justificativa para um pedido. Na LAI, o órgão responsável pela fiscalização da legislação é a Controladoria-Geral da União (CGU). A Controladoria foi criada em 2001, ligada à estrutura da Presidência da República, cuja competência – definida 125

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pela Lei 10.683/2003 – é prevenir e combater a corrupção; fomentar auditorias públicas; fiscalizar como corregedor; estar atento às ouvidorias e o desenvolvimento de transparência da gestão. É um órgão estritamente ligado ao bom funcionamento do acesso a informação. “No entanto, a CGU não é, até o momento, um órgão com competências e servidores especializados na gestão da informação, como ocorre em agências de informação especializadas” (JARDIM, 2012, p. 14). Além disso, é um órgão vinculado ao Poder Executivo, o que demonstra a tendência de um monitoramento menos rígido a esse poder. Assim como os direitos humanos e constitucionais, a Lei de Acesso à Informação deveria ser fiscalizada pelo Poder Judiciário, o que asseguraria com mais efetividade o direito em todos os níveis de poder. Batista (2012) acredita que a democracia só existe com a participação dos cidadãos. “E sem acesso e apropriação social da informação pública não existe participação pública” (p. 208). Entretanto, vale destacar que a informação é um dispositivo da comunicação pública, que incentiva diálogos, troca de experiência e discussões para a construção de uma sociedade mais justa socialmente. A informação é baseada em um código linguístico e quando usada dentro de um contexto para benefício de interesses públicos, se torna a base para a edificação de uma esfera pública abrangente. A transparência é uma meta para dissolver a corrupção, um problema que assola o Brasil, prejudicando o crédito político e investimentos internacionais. Prestar contas detalhadas e periódicas à população p ­ roporciona 126

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a abertura de poder, o diálogo com a sociedade e contribui para uma sociedade mais engajada sociopoliticamente. Nesse âmbito, a transparência advinda da liberdade de informação ajuda a divulgar políticas sociais, podendo atender melhor as pessoas ignoradas e alvos desses programas, não as deixando vulneráveis as trocas de voto e como vítimas do coronelismo (MARTINS, 2011). Conforme Angélico e Teixeira (2012), esse contexto de abertura de informação reduz a assimetria informacional, caracterizando uma “situação comunicacional em que os interlocutores relacionam-se no mesmo nível” (p. 9). A Lei de Acesso à Informação (12.527/11), apesar de ser um mecanismo formal, característico do mundo sistêmico, reflete no mundo da vida e proporciona substratos para promoção do agir comunicativo. A LAI oferece o alicerce para a sociedade componente da esfera política pressionar a esfera política formal a agir e exercer a representatividade da democracia brasileira com o poder e a honestidade que a sociedade ofertou. Nesse sentido, se verá indivíduos participativos e engajados com problemas cotidianos, como a discriminação da mulher no mercado de trabalho.

Considerações Finais Após a breve explanação sobre alguns conceitos, observamos que a comunicação pública deve ser vista como um processo que também dispõe de mecanismos 127

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

para o incentivo de ações que gerem atitudes cidadãs, a informação e o diálogo. Ela não deve ser fechada de forma funcionalista, mecanicista ou positivista. Em sua evolução conceitual, Habermas demonstra que a comunicação é intrínseca à sociedade humana, de forma subjetiva e também racionalizada e institucionalizada. Diante do leque de princípios atribuídos à Comunicação Pública, observa-se na dimensão comunicativa da ação social de Habermas (2003c) a união para essa pluralidade de significados. A comunicação pública está presente na esfera pública e visa à compreensão generalizada entre Estado, Governo e Sociedade. O entendimento mútuo é qualificado por Habermas (2003c), como ação social comunicativa que, a partir do debate, pretende chegar a um consenso que ajuda a resolver um problema de interesse público. Para esse entendimento mútuo é necessário haver informação. No contexto cultural político brasileiro, a omissão de dados é recorrente na esfera pública, principalmente no que diz respeito à prestação de contas. Por isso, a Lei de Acesso à Informação – apesar de fazer parte do mundo sistêmico – é uma regulamentação importante para o fortalecimento e ampliação de uma esfera pública e privada. Principalmente, porque a LAI também prevê um espaço público na Internet. As mídias presentes nessa esfera têm a capacidade interativa e de integrar pessoas de culturas diferentes para debater e defender um mesmo assunto. Assim, a comunicação pública deve ser enraizada como fonte de informação, diálogo e interatividade com 128

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

o cidadão. O papel fiscalizador do cidadão em busca de uma prestação de serviço e administração pública ideal é importante, mas a comunicação pública tem o papel adicional de publicizar esses serviços e outras ações, como a LAI que padece de falta de divulgação, para o conhecimento público. Uma comunicação pública baseada no agir comunicativo corrobora com a relação dialógica, o entendimento mútuo, a independência opinativa dos indivíduos e o conhecimento acionado no desenvolvimento de uma sociedade mais plural e engajada. Rüdiger (2011, p. 99-100) apreende que “a ação comunicativa baseia-se em um processo cooperativo de interpretação, no qual os participantes se referem simultaneamente a ações no mundo objetivo, no mundo social e no mundo subjetivo”. A interação advinda da comunicação pública está mais amparada na esfera pública política. Entretanto, com a inserção e democratização do acesso à Internet, abre possibilidades de o público se tornar ainda mais dissolvido ao privado. O fluxo dialógico, que parte do privado em direção ao público, terá um sentido reverso. Essa concepção é uma lógica plausível para o envolvimento dos cidadãos na causa pública. A Lei de Acesso à Informação é uma ferramenta que tem o potencial consolidador para que assuntos de ordem pública sejam levados ao diálogo e a discussão entre família, colegas e amigos. Temas que refletem preconceitos e discriminação podem ser descaracterizados com esse fluxo desconstruído e de mão dupla. Nesse contexto estruturado no presente artigo, como a comunicação pública digital pode contribuir para uma 129

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

sociedade mais justa e nivelada socialmente e politicamente na imagem e pessoa da mulher? A esfera pública tem poder de influenciar decisões e programas políticos? Como a Internet é capaz de provocar essas mudanças? Questões que orbitam ao redor e dentro dos conceitos habermasianos e que pedem um estudo empírico, baseado em análise de informações dos portais eletrônicos, e a base conceitual exposta aqui, podem contribuir para a edificação de uma sociedade plural.

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Capítulo 4 A indústria cultural no contexto da sociedade do conhecimento Camila Silva Ferreira1

Introdução De acordo com Temer e Nery (2009), o paradigma crítico tem relação direta com as reflexões culturais promovidas pela filosofia clássica alemã, além disso, aproxima as pesquisas sociológicas às reflexões sobre temas como a cultura, a ética, a psicologia e a psicanálise de Freud. São estudados neste paradigma: a Escola de Frankfurt, a Espiral do Silêncio e a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas. As autoras destacam alguns conceitos como sendo os principais neste paradigma, são eles: marxismo, psicanálise, mercadoria, ideologia, público passivo, indústria 1. Mestranda em Comunicação Midiática pela Unesp/Bauru. ­E-mail: [email protected] 137

cultural, manipulação, espiral do silêncio, capitalismo, opinião, crítica, contexto histórico, comunicação e esfera pública. Ainda segundo as autoras, os mais importantes são os que refletem a questão da ideologia de quem detém os meios de comunicação, ou se utilizam deles para o seu próprio benefício. Além disso, aponta-se o uso intencional da manipulação, a questão dos conceitos marxistas (alienação, capital, força de trabalho), a comunicação e a esfera pública. O conceito de “Indústria Cultural” foi exposto pela primeira vez em 1947, por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, nos fragmentos filosóficos reunidos sob o título de “Dialética do Esclarecimento”, termo que viria contrapor o conceito “cultura de massa”, por tratar de um fenômeno distinto quanto a sua natureza. Essa oposição conceitual remete ao fato da cultura de massa se ater a uma cultura espontaneamente advinda da própria massa, da forma contemporânea chamada de arte popular. Assim, é importante destacar que enquanto a cultura popular teria um caráter mais espontâneo e nasceria internamente, numa dada comunidade, a indústria cultural constitui uma manifestação maquinal produzida exteriormente – de acordo com as vias do capital. As críticas feitas pelos filósofos de Frankfurt sobre a indústria cultural têm a intenção de mostrar, na atual sociedade, como a cultura transformou-se em uma grande força capaz de transmutar a arte em qualquer mercadoria. De acordo com Adorno, a Indústria Cultural se assemelha a uma indústria quando destaca a estandardização de determinado objeto e quando diz respeito à ­racionalização 138

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das técnicas de distribuição. Entretanto, ela não se reduz ao termo indústria, pois não se refere apenas ao processo de produção. Cada objeto carrega em si a marca de sua individualidade (ADORNO, 1986, p. 94). E se tal objeto, ao portar algum traço característico que o faz distinguir-se dos demais, permite ao sujeito alguma forma de intervenção na sociedade, fazendo crer que a hegemonia da indústria sobre a cultura não seja tão determinante, a ilusão se esfacela quando as particularidades enrustidas nada mais são do que mercadorias padronizadas que podem ser trocadas e que cobram suas dívidas na consolidação da sua individualidade danificada. De acordo com Lemos e Fuks (1999 e 2003), a sociedade contemporânea, conhecida como sociedade do conhecimento, é compreendida como aquela na qual o conhecimento é o principal fator estratégico de riqueza e poder, tanto para as organizações quanto para os países. Nessa nova sociedade, a inovação tecnológica ou novo conhecimento, passa a ser um fator importante para a produtividade e para o desenvolvimento econômico dos países. É constatado também que entre inovação e pesquisa científica, existe uma relação positiva. Elementos como criatividade, sustentam a inovação, mas, além disso, é necessária uma base de conhecimento prévio principalmente tácito, e da pesquisa científica, que vai atuar como um catalisador para ampliar os horizontes e quebrar paradigmas estabelecidos. Assim, este artigo pretende apresentar uma compreensão da lógica da Indústria Cultural, proposta por 139

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

Adorno e Horkheimer, no contexto da sociedade atual, também chamada “sociedade do conhecimento”. Para tanto, a proposta é seguir um referencial teórico crítico que consiga dar suporte para as reflexões sobre a problemática em questão: como a indústria cultural se posiciona no cenário atual de grandes transformações tecnológicas, onde o acesso à informação é cada vez mais facilitado pelos meios de comunicação? Assim, optou-se por seguir as diretrizes do Prof. Antonio Hohlfeldt, que, ao buscar os estudos à Teoria da Comunicação, teve como base a Escola de Frankfurt, com uma visão crítica e de esquerda sobre os meios de comunicação como fortes influenciadores das pessoas. Com o decorrer do tempo, após mais vinte anos, há uma mudança: o professor passa a refletir sobre o direito de escolha dos receptores sobre os emissores, tendo uma visão sobre os estudos de recepção e audiência. Além disso, Hohlfeldt levanta uma reflexão sobre as teorias da comunicação em um texto no livro “O campo da Comunicação no Brasil”, organizado pelo Prof. José Marques de Melo (2008). Em seu texto, Hohlfeldt indica uma obra como sendo o mais novo livro sobre o assunto publicado por Ana Carolina Rocha Pessoa Temer e Vanda Cunha Albieri Nery (2009). De acordo com o professor, a obra faz uma leitura abrangente das diversas teorias da comunicação dentro de paradigmas definidos pelas autoras (HOLFELDT, 2008, p. 31). Diante dessas considerações, além de Hohlfeldt, optou-se por escolher essa obra também como uma referência. Temer e Nery (2009) são atuais e inovadoras na maneira de agrupar as 140

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teorias em determinados paradigmas. Dentre os outros autores do referencial também estão: Schumpeter, Mattelart e Lipovetsky.

Panorama do paradigma crítico da comunicação De maneira geral, o paradigma crítico visa explicar os acontecimentos com base em situações histórico-sociais específicas, de modo a estabelecer relações entre os fenômenos e as forças sociais que lhes sirvam de mola propulsora. A questão da ideologia é um dos temas cruciais desse paradigma, particularmente no que diz respeito à interpretação dos processos comunicacionais. De acordo com Coelho: Adorno e Horkheimer situam a ideologia com base nas suas articulações com a dimensão econômica. O ideológico e o econômico não são realidades autônomas. Só se pode compreender a ideologia a partir de uma investigação da dimensão econômica. O pleno desenvolvimento do capitalismo monopolista, com a existência do consumo de massas e da mercantilização da cultura, mudou a configuração da ideologia, mas não gerou o seu fim, e sim o predomínio da publicidade como o seu principal componente. (COELHO, 2008, p.79)

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Assim, tem-se que, existe uma articulação entre a dimensão política com a ideológica e econômica. Coelho (2008) afirma que, para Adorno e Horkheimer, assim como para Marcuse, o triunfo do pensamento operacional, que aconteceu com a plena disseminação da lógica mercantil por intermédio da linguagem publicitária da indústria cultural, é a forma da dominação no capitalismo monopolista completamente desenvolvido. É a dimensão dialética do esclarecimento. De acordo com os filósofos de Frankfurt, a razão burguesa perdeu a sua dimensão crítico-transformadora, reduzindo-se a uma dimensão instrumental e mantenedora da exploração econômica. O paradigma crítico confirma, então, sua tendência para a crítica dialética da economia política, tendo como ponto de partida a análise do sistema de economia de mercado, baseando-se em relações produtivas já não adequadas à situação atual. Temer e Nery (2009) apontam que são estudados dentro do paradigma crítico: a Escola de Frankfurt, a Espiral do Silêncio e a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas.

A indústria cultural sob a ótica de reflexões ­contemporâneas Indústria cultural é o termo referido por Adorno, Horkheimer, Marcuse e outros, para tratar da ­“conversão

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da cultura em mercadoria, ao processo de subordinação da consciência à racionalidade capitalista ocorrido nas primeiras décadas do século XX” (RÜDIGER, 2001, p.138). É uma expressão que designa uma prática social, pois por meio dessa prática percebe-se a possibilidade de consumo no mercado da produção cultural e intelectual. Segundo Rüdiger (2001), o fenômeno da indústria cultural, no princípio, consiste na produção ou adaptação de obras de arte de acordo com padrões de gostos pré-estabelecidos por já terem sido bem-sucedidos e, a partir disso, desenvolver as técnicas necessárias para colocá-las no mercado. Numa outra fase, mais atual, senão contemporânea, acontece a conversão da prática da indústria cultural em um sistema que “tudo abarca e em todos os setores se harmonizam reciprocamente” (RÜDIGER, 2001, p.138). Isso porque a produção cultural começa a passar pelo filtro da mídia enquanto máquina de publicidade, devido ao aparecimento de inúmeras empresas multimídia que conferem cada vez mais poder às tecnologias de reprodução e difusão de bens culturais. O problema não é apenas o fato de o conhecimento, a literatura e a arte, senão os próprios seres humanos, se tornarem produtos de consumo. No limite, acontece uma fusão entre esses conceitos. As obras de arte e as próprias ideias, senão as pessoas, são criadas, negociadas, e consumidas como bens cada vez mais descartáveis, ao mesmo tempo em que estes são produzidos e vendidos levando em conta princípios de 143

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

c­ onstrução e difusão estética e intelectual que, antes, eram reservados apenas às artes, às pessoas e ao pensamento. (RÜDIGER, 2001, p. 139)

Os pensadores de Frankfurt, com questões amplamente ideológicas, afirmam que a prática da indústria cultural não tem a intenção de mudar as pessoas necessariamente. O que acontece é que ela se desenvolve a partir de mecanismos de oferta e procura, explorando predisposições individuais que são criadas pelo processo histórico global da sociedade capitalista. O que acontece, porém, é que essas ideias passaram a ser vistas como produto de um enfoque bastante pessimista sobre o homem atual. Por isso, a partir do desejo de mudar a situação vigente, verifica-se um processo de reavaliação, baseado em estudos mais profundos, da teoria crítica. Isso significa uma reconfiguração do paradigma de acordo com ideias mais críticas ainda, que percebem as teses dos filósofos de Frankfurt muito mais valiosas para os dias atuais do que na época em que foram formuladas, porém existe essa importância em revisá-las e atualizá-las em vários aspectos. Diante disso, Rüdiger (2001) afirma que “o entendimento simplista de suas ideias como expressão de um pensamento apocalíptico vai passando”. Assim, ao refletirmos sobre as questões amplamente ideológicas discutidas pelos frankfurtianos, devemos nos ater que as linhas gerais de suas críticas datam de 1940, isto é, durante a Segunda Guerra Mundial. De lá para cá, houve mudanças geopolíticas muito ­importantes. 144

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

­ rimeiro o Pós-Guerra, depois a Guerra Fria, em seguiP da a queda do muro de Berlim, e mais recentemente o advento da globalização. Por outro lado, houve também uma inimaginável evolução tecnológica nos meios de produção e difusão audiovisual. Vivemos a ruptura da passagem do cinema preto e branco e mudo para o colorido e sonoro, a passagem do cinema para a televisão, o advento do home vídeo, fazendo com que a interatividade se tornasse cada vez mais importante. Esses dispositivos tecnológicos modificaram a relação da indústria cultural com o seu público. Seguindo essa linha de raciocínio, devemos dialogar com a essência do conceito de indústria cultural para que seja possível uma compreensão da sua lógica no contexto da sociedade atual. Essa “essência” parte do princípio de que a indústria cultural exerce uma apropriação de meios tecnológicos para garantir um tipo específico de dominação política e econômica que coexista com democracias liberais. E isso, apesar das mudanças tecnológicas e geopolíticas que aconteceram, não mudou de lá para cá. Todas as mudanças foram sendo capitalizadas como mais um elemento para a apropriação das demandas do público. Assim, mesmo que a indústria cultural tenha se fortalecido com o advento das tecnologias, já que a internet se configurou como um meio de tornar contínua essa pesquisa da indústria cultural em relação à demanda de seu público, é de suma importância uma reflexão sobre as mudanças na sociedade. 145

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

Tendo em vista o contexto em transformação e a necessidade de compreender e investigar as mudanças que se apresentam, cabe refletir sobre inovação e sociedade do conhecimento.

Inovação e sociedade do conhecimento A inovação pode ser conceituada de várias maneiras e sob a ótica de diversos autores. Schumpeter (1983, p. 112), considera a inovação como o impulso fundamental que inicia e mantém o movimento da máquina capitalista, do qual decorrem “novos bens de consumo, novos métodos de produção ou transporte, novos mercados, novas formas de organização industrial que a empresa capitalista cria”. Segundo o autor, a inovação tem o intuito de provocar transformações a partir das mudanças. Isso acontece desde a interação entre os atores sociais até os processos próprios da estrutura organizacional, e vai além, atingindo a esfera dos ambientes econômicos, políticos e sociais. Schumpeter (1983), denomina “Destruição Criativa” o processo no qual há uma busca contínua pela criação de algo novo que destrói velhas regras, estabelecendo novas, característica que o autor considera como fato essencial acerca do capitalismo. Por isso, a inovação adquire uma enorme importância à medida que se configura como processo criador de valor, pois passa a ser uma vantagem competitiva, sendo

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que na atualidade existem melhores condições para inovar devido às novas formas de disseminação de conhecimento proporcionadas pelas novas tecnologias. Assim, o termo “sociedade do conhecimento” tem sido, nos últimos anos, empregado em diversos contextos e setores da sociedade para indicar o progresso intelectual e a sua rápida disseminação, bem como uma pretensa e aparente universalização do conhecimento na sociedade. A sociedade de conhecimento é então posterior à sociedade industrial moderna, na qual matérias primas e o capital eram considerados como os principais fatores de produção. Essa nova sociedade é impulsionada também por contínuas mudanças, algumas tecnológicas como a Internet e a digitalização, e outras econômico-sociais como a globalização. Segundo Fuks (2003), existe um conjunto de fatos sociais que se relaciona com a sociedade do conhecimento. Entre estes fatos estão: a ampliação da exclusão, a entrada da mulher no mundo do trabalho e o enfraquecimento do Estado pela globalização. Fuks apresenta uma abordagem mais otimista em relação aos fluxos de comunicação e informação. De acordo com este autor, na sociedade do conhecimento, a informação sobre ciência e tecnologia é transmitida imediatamente produzindo uma democratização do conhecimento. Já Mattelart (2002, p.74) considera que “monopólios de informação” são produzidos pelas desigualdades na velocidade das comunicações, constituindo ao mesmo tempo um instrumento e o resultado da dominação política. 147

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

Além disso, na experiência atual, ainda que a transmissão e a disseminação do conhecimento possam ocorrer facilmente, com rapidez e a baixo custo, nos países subdesenvolvidos, grande parte da população não tem um nível de letramento adequado, nem uma base de conhecimento capaz de assimilar o conhecimento inovador. Portanto, no curto prazo, a democratização do conhecimento é quase impossível nesse aspecto.

Mídia e comunicação Em 1940, década de publicação da obra “Dialética do Esclarecimento”, Adorno e Horkheimer refletiam sobre a tendência da publicidade tornar-se o principal veículo ideológico da sociedade capitalista. Atualmente, isso é um fato: com a total transformação da cultura e dos processos comunicacionais em mercadorias, a cultura e a comunicação passaram a ser dominadas pela linguagem criada para a venda das mercadorias, a publicidade. Além disso, de acordo com o que já foi abordado sobre indústria cultural, a ideia era que os meios de comunicação de massa submeteriam os indivíduos aos interesses de consumo da indústria capitalista, transformando-os em seres passivos. A mídia não os conduziria a uma reflexão crítica acerca de suas condições de existência e trabalho. As comunicações são importantes não porque veiculem ideologias, mas sim porque, se de um lado fornecem as informações que colaboram 148

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para seu esclarecimento, de outro proporcionam o entretenimento que elas procuram com avidez e sem o qual talvez não pudessem suportar o crescente desencantamento da existência (RÜDIGER, 2001, p. 142).

O filósofo francês Lipovetsky (1989) é inovador à medida que discorda da visão segundo a qual os telespectadores apresentam uma posição totalmente passiva no tocante aos produtos veiculados na mídia. De acordo com ele, a cultura da mídia está em constante renovação e questiona a visão da mídia como instrumento de alienação e passividade. A mídia teria desempenhado um papel histórico no sentido de difundir novos padrões de comportamento (LIPOVETSKY, 1989, p.222), tendo acelerado, sobretudo, o declínio de valores tradicionalistas. Por exaltar o lazer, a felicidade e o bem-estar através de uma ética consumista, a cultura de massa teria propiciado a autonomia privada na modernidade. Ainda de acordo com o autor, A mídia substituiu a Igreja, a escola, a família, e outras instituições, como forma de socialização e meio de transmissão do saber. É importante considerarmos o contexto atual da sociedade do conhecimento, ainda assim, apesar de trazer uma perspectiva que inova as teorias da comunicação ao enfatizar o papel ativo dos consumidores em suas relações com a mídia, questionando, sobretudo, as abordagens de Adorno, Horkheimer, Lipovetsky exagera ao considerar que a mídia democratiza a cultura. Isso porque mesmo considerando a relevância da mídia para

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Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

informar as pessoas, a maioria das intenções é direcionada para o consumo, confirmando a lógica da indústria cultural.

Considerações finais A atualidade do conceito de indústria cultural não pode ser reconhecida se não levar em consideração que este conceito foi elaborado visando a compreensão de um fenômeno social, que não para de se desenvolver acompanhando o desenvolvimento do capitalismo. É no contexto da sociedade atual, também conhecida como sociedade do conhecimento - devido às transformações nos espaços sociais, econômicos e produtivos, tornando-se o conhecimento o principal fator de produção - que as tecnologias digitais propiciaram inovações nos modos de produção e difusão da cultura. É preciso reconhecer que, mesmo diante da impossibilidade de generalização, o indivíduo da sociedade do conhecimento é um ser dotado de vontade que não possui uma relação passiva com os meios de comunicação. Isto não quer dizer que a mídia seja democrática ou siga a trajetória do século das luzes, como pensa Lipovetsky. Nem todos têm o mesmo acesso aos bens culturais difundidos pela mídia. Há uma diferença drástica entre as programações e as informações veiculadas pelas emissoras de TV pagas e os canais abertos, assim como o acesso à internet. Entretanto, é preciso reconhecer que

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a mídia potencializa o acesso à cultura. O que é certo, é que a compreensão da cultura como um lugar de disputa permite enxergar a importância de uma abordagem que leve em conta os aspectos industrializados da produção midiática contemporânea.

Referências ADORNO, Theodor. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. COELHO, Cláudio Novaes Pinto. Teoria crítica e ideologia na comunicação contemporânea: atualidade da Escola de Frankfurt e de Gramsci. Líbero - Ano XI - nº 21 - Jun 2008 DEMO, Pedro. Metodologia científica em ciências sociais. 3.ed. São Paulo: Atlas, 1995. FUKS, Saul. A Sociedade do Conhecimento. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n.152, p.75- 101, jan./mar. 2003. LEMOS, Cristina. Inovação na era do conhecimento. In: LASTRES, Helena M. M;. ALBAGLI, Sarita . (Org.). Informação e globalização na era do conhecimento. Rio de Janeiro : Campus, 1999. p. 122-144. Disponível em: < 151

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Capítulo 5 O Agendamento no ­Jornalismo Popularesco: ­Considerações teórico-empíricas sobre os televisivos ­Documento Especial e Aqui Agora Carlos Alberto Garcia Biernath1

Introdução Ciro Marcondes Filho (1994), citando Marshall McLuhan, ressalta que a televisão tem a capacidade de unir todos os sentidos do homem, algo único a todos os meios de comunicação que existiam na época de seu nascedouro. Bem antes da televisão, no século XIX, as pessoas buscavam entretenimento através de romances ­populares, que eram amplamente negociados às famílias de baixa renda. Com esses livretos em mão, as pessoas 1. Graduado em jornalismo pela Universidade Sagrado Coração – USC; Mestrando em Comunicação Midiática pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Bolsista FAPESP. 153

­ ermitiam-se sonhar, fantasiar e exprimir verdadeiras p sensações de ansiedade e prazer, algo que antes só era possível dessa forma. Isso mostra o quanto o homem sempre valorizou e buscou a fantasia. De tal modo, sua influência junto à audiência é inegável, pois a televisão, quando de seu surgimento, passou a ser “um algo a mais” em relação à voz que vinha das ondas sonoras transmitidas pelo rádio: a imagem apresentada ali parecia ser uma companhia ao telespectador, que muitas vezes estava sozinho no ambiente, mas sentia-se acompanhado enquanto assistia a seus programas pela TV. Documentários e telejornais são programas que fazem parte do gênero jornalístico. Todavia, não é essa a única função dos programas de cunho jornalístico. Há que se considerar que, por vezes – ou talvez muitas vezes – esses programas abusam de elementos que inferem diretamente no imaginário das pessoas, influenciando a percepção de desigualdades discursivas, como o imagético. Para Marcondes Filho (1988, p. 54), no jornalismo televisivo é possível observar dois ingredientes que constam na produção dos programas: a fragmentação e a personalização ou personificação, pontos estes que também atuam diretamente nessa relação entre o telespectador e o veículo televisivo.

Transmissora de notícias e fonte de entretenimento O fato de estar assistindo televisão indica que o telespectador está em busca de alguma maneira de encontrar 154

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entretenimento, conhecimento ou algum meio de interação proporcionada por este veículo de comunicação. Isto está intrinsecamente ligado ao fato da experiência do homem ao olhar objetos, cenas e natureza, buscando por meio delas – das cenas – esses sentimentos que poderá encontrar na televisão. Como lembra Marcondes Filho (1994), a televisão não trouxe somente mudanças na maneira de transmitir acontecimentos e relatos, mas também foi responsável por uma verdadeira transformação no ‘fazer’, sobretudo na narrativa, na qual é possível observar uma sensível mudança naquilo que estávamos habituados a ver no cinema. Hoje, possivelmente, a grande diferença entre a televisão e o cinema, como meios de comunicação, esteja relacionada à publicidade: enquanto na televisão essas taxas publicitárias são cobradas por minuto, no cinema elas são cobradas em taxas inteiras, pois, neste, é garantida a presença do público por pelo menos o tempo do filme, enquanto na televisão o telespectador tem o poder de mudar de canal a hora que quiser, o que poderá levar a emissora a eventuais prejuízos. Assim, quando transmitidos pela televisão, os filmes contam com intervalos, já que essa pausa estratégica nas emoções trazidas pode ajudar as mensagens publicitárias na venda de mercadorias, de acordo com Marcondes Filho (1994). Com todas essas características que a tornaram ímpar, a televisão atingiu grande ascensão desde o seu surgimento, superando o cinema – até então monopolizador do público noturno – e o rádio – que detinha o maior poder de penetração no dia-a-dia dos 155

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lares –, ­convertendo-se no maior veículo de comunicação de massas, exercendo grande fascínio junto aos ­telespectadores. Por sua aptidão em trabalhar imagens como representações, a televisão pode gerar dois tipos de olhar, de acordo com Charaudeau (2012): o olhar de transparência e outro de opacidade. O primeiro, embora chamado assim, trata-se de uma ilusão de transparência, pois é com este olhar que o telespectador entenderá que o veículo televisivo pretende exibir o oculto, adentrar um lado desconhecido pela audiência até então. O segundo olhar, por sua vez, impõe, conforme assevera Charaudeau (2012, p. 112), “sua própria semiologização do mundo, sua própria intriga, sua própria dramatização”. Estes olhares determinam a excelência da televisão, como veículo de comunicação, em (re)tratar os dramas do mundo – como os objetos deste trabalho faziam/fazem –, e mesmo os conflitos ente o poder político e o poder civil – através de debates. Dentre os produtos televisivos que mais conquistam identificação do público, os jornalísticos se destacam nesse cenário.

Os jornalísticos televisivos Documentários e telejornais são programas que fazem parte do gênero jornalístico. Dessa forma, entendemos que sua função diz respeito unicamente ao ato 156

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de informar, sem qualquer interferência nesse processo. Todavia, não é essa a única função dos programas de cunho jornalístico. Há que se considerar que, por vezes, esses programas abusam de elementos que inferem diretamente no imaginário das pessoas, influenciando a percepção de desigualdades discursivas, como o imagético. A junção desses componentes caracteriza o que é popularmente chamado de “sensacionalismo” nesses tipos de programas televisivos.

Entre o noticioso e o sensacionalista Não há uma definição concreta sobre este termo. Comumente, ele é empregado com o propósito de conotar, de maneira pejorativa, um programa de cunho jornalístico que exiba algum conteúdo demasiadamente voltado para a violência, por exemplo. O porquê de isso acontecer pode estar relacionado, para o telespectador, com o contato com o drama alheio. Na imbricação que faz entre o jornalismo e essa dramaticidade, J. S. R. Goodlad, citado por Marcondes Filho (1988, p. 52), assevera que “o jornalismo e o telejornalismo são parentes muito próximos dos dramas. Em questão de preferência popular, os noticiários ocupam, aliás, o segundo lugar, logo após o drama”. Tal constatação nos leva a imaginar que a junção desses dois elementos atrai audiência e chama ainda mais a atenção do telespectador. Quando são mostradas notícias sobre um acontecimento que envolve, por exemplo, um ­movimento social 157

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de reinvindicação, possivelmente será criado um verdadeiro ‘espetáculo’ na notícia, pois isso será mostrado ao público como se fosse um acontecimento social, algo como um produto de circo, dado o ‘show’ criado. Por seu caráter festivo, esses fatos, sem quaisquer vínculos com a realidade imediata do telespectador, são politicamente esvaziados. A TV, portanto, pode apresentar até matérias sobre movimentos e partidos revolucionários, guerrilheiros e comunistas, pois a sua descaracterização como fatos críticos e explosivos já foi feita anteriormente – não direta e formalmente, mas na sua apresentação. O cenário, o apresentador, as cores e todas as ‘informações paralelas’ neutralizam as notícias (MARCONDES FILHO, 1988, p. 52).

A essa ‘descaracterização’ do fato, sobrepujado pelo ‘espetáculo’ criado, entendemos ser a essência do sensacionalismo. No exemplo anterior, o enfoque centrado na movimentação – e nos consequentes conflitos ocorridos entre manifestantes e a instituição responsável por manter a ‘ordem’ –, ao invés de uma breve explicação das causas daquele protesto, é um elemento pregnante do “sensacionalismo”. O discurso inerente a um produto jornalístico considerado “sensacionalista” é bem peculiar quando comparado ao conteúdo discursivo de outras atrações. Com elementos que visam chamar a atenção do telespectador, esse gênero situa-se em: 158

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(Um) modo de produção discursivo da informação de atualidade, processado por critérios de intensificação e exagero gráfico, temático, linguístico e semântico, contendo em si valores e elementos desproporcionais, destacados, acrescentados ou subtraídos no contexto de representação ou reprodução de real social (PEDROSO, 1983 apud ANGRIAMI, 1995, p. 14).

E este efeito “sensacionalista” traz em seu bojo algumas marcas para a audiência, como a de alimentar um desligamento da própria realidade – o que caracteriza uma incongruência no âmago do ato de informar. Assim, o veículo que emprega o “sensacionalismo” em suas produções: Não se presta a informar, muito menos a formar. Presta-se básica e fundamentalmente a satisfazer as necessidades instintivas do público, por meio de formas sádica, caluniadora e ridicularizado das pessoas. Por isso, a imprensa sensacionalista, como a televisão, o papo no bar, o jogo de futebol, servem mais para desviar o público de sua realidade imediata do que para voltar-se a ela, mesmo que fosse para fazê-lo adaptar-se a ela (MARCONDES FILHO, 1986 apud ANGRIAMI, 1995, p. 15).

Os objetos de estudo deste trabalho – Documento Especial e Aqui Agora –, são programas tidos como popularescos por manterem em sua constituição certo modo

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sensacionalista, explorando temáticas como a violência, por exemplo, para buscar uma maior audiência.

O Documento Especial – Televisão Verdade O programa estreou em agosto de 1989, em uma quarta-feira, às 23h00, na já endividada TV Manchete. Trazia um formato jornalístico semelhante ao adotado no consagrado Globo Repórter, mas com temas polêmicos e imagens consideradas ‘fortes’ e uma linguagem peculiar investida de efeitos de sentido, o que o diferenciava de outros programas do mesmo gênero e formato. Por conta disto, não é exagero dizer que o Documento Especial – Televisão Verdade seja considerado um marco na televisão brasileira, por sua coragem em investigar e exibir temas relacionados ao sexo, tráfico de drogas, travestis, submundo dos guetos, o invisível social que não ia às telas. Em maio de 1992, em meio à grave crise que assolava a Manchete, culminando com a sua venda para o Grupo IBF, Hoineff e a equipe do Documento Especial eram contratados pelo SBT, mas sem a liberdade que possuíam na Manchete. Prova disto, foi a “censura” que o programa sofreu logo em sua primeira exibição no canal, quando a edição “O país da impunidade”, já mencionada neste trabalho, não pôde ir ao ar. Ficou no canal até 1995, quando saiu por desavenças entre Nelson Hoineff e Sílvio Santos. Voltou ao ar em 1997 pela Rede Bandeirantes, onde permanece até 1998, ano em que foi extinto. 160

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Nas palavras de Mattos (2010), “um dos melhores programas jornalísticos da TV Brasil. [...] Programa jornalístico explícito, abordava temas polêmicos e sensacionalistas como nenhuma outra emissora tinha conseguido produzir até então”. Embora tenha se apresentado em formato de telejornal, o Aqui Agora também manteve-se como representante do popularesco.

O Aqui Agora Aliando o formato “sensacionalista” do rádio ao telejornalismo, o Aqui Agora foi exibido inicialmente no ano de 1991 e trazia o impactante slogan: “um jornal vibrante, uma arma do povo, que mostra na TV a vida como ela é”. Contou com diversos apresentadores em sua 1ª fase, quando absorvera o formato dos famigerados “O Homem do Sapato Branco” e “O Povo na TV”, como Ivo Morganti, Christina Rocha (que já participara de “O Povo na TV”), Sérgio Ewerton, Liliane Ventura. Posteriormente, assumiu de vez o formato jornalístico, em 1996, centrado em pautas mais noticiosas e sem tanto requinte sensacionalista, quando passou a ser apresentado por Eliakim Araújo e Leila Cordeiro. Em sua equipe de repórteres, destacam-se César Tralli, Celso Russomano, Gil Gomes, Wagner Montes (que também já passou pelo “O Povo na TV”), Carlos Cavalcanti, dentre outros. 161

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Sérgio Mattos (2010) coloca o Aqui Agora como um “telejornal popular”, e discorre que a atração surgiu “copiando o modelo de jornalismo popular usado nas emissoras de rádios: sensacionalista, com notícias policiais e muito apelo sexual”. Em ambas atrações, que serão analisadas mais à frente, há que se ressaltar, também, a adequação da notícia à política das emissoras televisivas, que acabam moldando a produção noticiosa de acordo com suas ideologias. Este é um dos motivos que fazem com que algumas notícias ganhem uma importância maior do que deveriam, e outras acabem perdendo o espaço que mereciam. Isso é, de certa maneira, a essência dos estudos da hipótese do agendamento.

A hipótese do agendamento pelas mídias Inicialmente, ressalvamos que o termo “teoria do agendamento”, encontrado em algumas obras e ‘manuais’ de comunicação, será por nós trabalhado como hipótese do agendamento. Isto porque, de acordo com Hohlfeldt (1997), a hipótese de “agenda-setting” não pode ser considerada uma teoria por não ser um paradigma fechado, completamente calado a outras conjugações. Daí a diferença entre teoria e hipótese: Uma hipótese é sempre uma experiência, um caminho a ser comprovado e que, se eventualmente não “der certo” naquela situação ­específica, 162

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não invalida necessariamente a perspectiva teórica. Pelo contrário, levanta, automaticamente, o pressuposto alternativo de que uma outra variante, não presumida, cruzou pela hipótese empírica, fazendo com que, na experiência concretizada, ela não se confirmasse (HOHLFELDT, 1997, p. 2).

Na hipótese do agendamento há a ideia de que a mídia é quem impõe os assuntos que irão ao conhecimento das pessoas, algumas vezes ofuscando um determinado fato, mas, em contrapartida, omitindo muitos outros. Nesse raciocínio, a hipótese da agenda-setting esteia que: Em consequência da ação dos jornais, da televisão e dos outros meios de informação, o público é ciente ou ignora, dá atenção ou descuida, enfatiza ou negligencia elementos específicos dos cenários públicos. As pessoas tendem a incluir ou excluir dos próprios conhecimentos o que a mídia inclui ou exclui do próprio conteúdo. Além disso, o público tende a conferir ao que ele inclui uma importância que reflete de perto a ênfase atribuída pelos meios de comunicação de massa aos acontecimentos, aos problemas, às pessoas (SHAW, 1979, p. 96 apud WOLF, 2012, p. 143).

A ideia embrionária da hipótese surgiu em 1922, no livro Public Opinion, do jornalista e escritor norte-americano Walter Lippmann. Em suma, Lippmann coloca que em um governo que se diz democrático, o poder está, verdadeiramente, nas mãos dos grupos que c­ ontrolam a 163

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informação. Assim, para o autor a mídia atua indiretamente na maneira de criar estereótipos imagéticos no subconsciente da audiência, visando direcionar a opinião pública ao sabor de seus próprios interesses. Não devemos, pois, confundir notícia com verdade. Cabe a verdade iluminar fatos escondidos, relacionando-os com outros a fim de produzir uma imagem da realidade que permita às pessoas agirem. Ao jornalismo caberia simplesmente sinalizar os eventos (LIPPMANN, 2008, p. 15).

Posteriormente aos estudos de Lippmann, McCombs aprofundou a pesquisa quando observou, despretensiosamente, o papel das notícias na primeira página do Los Angeles Times, objetivando entender se o impacto de um evento é diminuído quando a história recebe um posicionamento menos proeminente. Já em 1968, uma pesquisa ‘definitiva’, que utilizava a hipótese como epicentro, fora realizada analisando a campanha presidencial dos EUA, com a aplicação de um questionário para eleitores indecisos. A pressuposição dessa pesquisa era que no meio público em geral, o grupo de eleitores indecisos estaria disponível à influência dos media. Realizada em 24 dias, o trabalho continha 100 (cem) questionários, que visavam cobrir um universo variado de posição econômico-financeira, social e racial. Aplicada a eleitores indecisos quanto ao voto em Hubert Humphrey ou em Richard Nixon, a pesquisa cobriu cinco jornais, dois canais de televisão e duas revistas semanais. 164

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Findada, a pesquisa, além de confirmar a ideia pressuposta de que os indecisos optariam por aquele candidato com mais influência midiática, também mostrou que os próprios candidatos influenciaram-se pela mídia, pois incluíram em suas agendas temas que foram largamente trabalhados pela própria mídia, em detrimento ao estabelecido inicialmente em suas campanhas2. Atualmente, as tendências da Communication Research voltam-se para questões concernentes aos efeitos da mídia a ao problema de como estes constroem a imagem da realidade social. Se antes as pesquisas detinham uma preocupação maior com os efeitos da mídia a curto prazo, hoje essas pesquisas atêm-se aos efeitos da mídia a longo prazo. De certa forma, a hipótese da agenda-setting também analisa a capacidade cognitiva da audiência, pois a mídia acaba determinando a forma com que o indivíduo encara a realidade e o compara com as representações colocadas nos meios de comunicação de massa, podendo levá-lo a distorcer sua própria imagem. No campo televisivo, ao que parece, o aumento de consumo não indica, necessariamente, um maior efeito da hipótese de agendamento. Wolf (2012) traz uma pesquisa de McClure e Patterson (1976) realizada na campanha presidencial americana de 1972 que apresenta a

2. Este pode ser considerado um exemplo de Contra-Agendamento, conforme veremos mais abaixo. 165

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ideia de que o público que acompanhou as campanhas pela televisão foi o que sofreu o menor efeito da agenda-setting. Em cada análise dos dados de 1972, a comparação entre a influência da informação televisiva e o poder de outros canais de comunicação política (jornais, spots publicitário) mostra que a exposição às notícias televisivas teve, invariavelmente, os menores efeitos sobre o público [...]. Há uma confirmação limitada à hipótese da agenda-setting. Em alguns temas, mas não todos, os níveis de exposição aos meios de comunicação de massa mostram uma influência direta exercida pela agenda-setting. De tal modo, normalmente o efeito direto correlaciona-se com o consumo de jornais locais, e não com os noticiários televisivos (MCCLURE-PATTERSON, 1976, pp. 24, 28 apud WOLF, 2012, p. 147).

Destarte, com base na pesquisa de McClure e Patterson (1976), é permissivo afiançar que cada meio de comunicação possui capacidade variada de gerar influência nos indivíduos. Portanto, os meios de comunicação acabam se ‘hierarquizando’ na relação entre a eficácia da agenda-setting e a influência que este gera. Por outro lado, pesquisas mais recentes trabalham com o agendamento no sentido oposto, ou seja, quando este efeito vem da sociedade – ou, no caso da pesquisa que versa sobre, do terceiro setor – para a própria mídia. Este fenômeno é chamado de contra-agendamento.

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O Contra-Agendamento Midiático Defendido por Silva (2006 APUD ROSSY, 2011), o contra-agendamento parte do pressuposto de que a sociedade pode, sim, agendar a mídia. Essencialmente, esta ideia relaciona a eficácia de determinadas medidas – como campanhas de ONGs, por exemplo – através de sua exposição na mídia. O contra-agendamento compreende um conjunto de atuações que passam estrategicamente pela publicação de conteúdos na mídia e depende, para seu êxito, da forma como o tema-objeto-de-advocacia foi tratado pela mídia, tanto em termos de espaço, quanto em termos de sentido produzido. Pode-se então afirmar que o contra-agendamento de um tema pode ser parte de uma mobilização social ou parte de um plano de enfrentamento de um problema, corporativo ou coletivo (SILVA, 2005, p. 2 APUD ROSSY, 2011, p. 7).

Como exemplo, a autora cita as campanhas de desarmamento propostas pela ONU, que acabam fazendo parte da agenda política e midiática dos países. No Brasil, talvez o maior exemplo, ainda de acordo com a autora, seja a comoção que a também campanha contra do desarmamento gerou em 2003, através de uma caminhada, na praia de Copacabana, que reuniu 50 mil pessoas, entre artistas, políticos e população em geral. Ainda em 2003, o tema foi altamente explorado na novela “Mulheres Apaixonadas”, da Rede Globo de Televisão. 167

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Com a abordagem da hipótese do agendamento em dois programas popularescos da televisão brasileira, que será objeto de análise deste estudo, abarcaremos também a Análise de Discurso de tradição francesa, que nos auxiliará como campo teórico-metodológico.

A análise do discurso como campo teórico-metodológico Essencialmente, a Análise de Discurso, como campo teórico-metodológico, buscará depreender sentidos de um discurso proferido por seu orador. Se um conteúdo textual é aquele que denotará uma interação linguística entre os interlocutores, o discurso será aquele que irá determinar a posição ideológica dos interlocutores, ou seja, o discurso pode ser entendido como o complemento de um texto. Orlandi (2012, p. 17) citando Pêcheux (1975) coloca que “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido”. Assim, para Orlandi (2012, p. 17): “[...] discurso é o lugar em que se pode observar essa relação entre língua e ideologia, compreendendo-se como a língua produz sentidos por/ para os sujeitos”. A vertente francesa da AD resulta na identificação dos discursos já instituídos – como o da publicidade ou o da medicina – que foram incorporados pelo sujeito. Ou seja, caracteriza-se pela ênfase no

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assujeitamento do emissor, que se expressaria mediante a incorporação desses discursos sociais já instituídos: o religioso, o filosófico, o jornalístico, o publicitário etc. Isto é, todo discurso acaba por ser entrecortado por diversos enunciados. Nesse processo de referir-se a que os interlocutores estão submetidos, analisá-los vai além da compreensão do processo comunicativo entre emissor e receptor, por meio da mensagem. É preciso entender como um objeto simbólico – que pode ser um enunciado, uma música, uma pintura etc. – lança sentidos e deixa outros apensos. Dessa forma, será possível compreender o que vai além da mensagem colocada pela língua, e aí é que a AD 3será fundamental, uma vez que ela “visa a compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido de significância para e por sujeitos” (ORLANDI, 2012, p. 26). Nos estudos da AD, a língua não é entendida como uma simples estrutura, mas sim como um acontecimento, assim como também não há uma separação entre forma e conteúdo discursivo. Deste modo, para a AD: a. a língua tem sua ordem própria mas só é relativamente autônoma (distinguindo-se da Linguística, ela reintroduz a noção de sujeito e de situação na análise da linguagem);

3. Doravante, utilizaremos o termo “AD” para nos referirmos à Análise de Discurso. 169

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b. a história tem seu real afetado pelo simbólico (os fatos reclamam sentidos); c. o sujeito de linguagem é descentrado pois é afetado pelo real da língua e também pelo real da história, não tendo o controle sobre o modo como elas o afetam. Isso redunda em dizer que o sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia (ORLANDI, 2012, p. 19-20).

Portanto, sob a égide da AD de tradição francesa e do conceito de agendamento, iniciaremos nossas análises em dois programas televisivos de cunho popularesco: Documento Especial e Aqui Agora, que marcaram época na televisão brasileira.

O (re)trato da impunidade no Documento Especial Em 1992, quando o Brasil atravessava uma crise no governo do então presidente Fernando Collor de Mello, o Documento Especial produziu uma edição chamada “O país da impunidade”. A edição deveria ir ao ar pelo SBT, naquele que seria o programa de estreia na emissora, mas acabou por ser censurada “por uma série de razões”, de acordo com Nélson Hoineff. Somente anos mais tarde, mais precisamente em 2007, o programa foi ao ar pelo “Canal Brasil”. Logo no início da edição, Roberto Maya, apresentador do programa, diz: O Brasil já foi palco de inúmeras tragédias na construção civil. Incêndios e desabamentos

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sempre resultam da falta de segurança e manutenção. Entre mortos e feridos, o que resta é a indignação e revolta de quem espera por punição aos culpados. A fala do apresentador já deixa clara a intenção do programa: mostrar punições que não foram aplicadas aos culpados. Conforme o país atravessava uma forte crise política na época, durante o governo Collor, escândalos de corrupção afloravam. Talvez o mais notório deles tenha sido o que ficou conhecido como “O Esquema PC Farias4” – principal motivo para o impeachment de Fernando Collor –, que envolveu o tesoureiro da campanha do presidente. As próximas cenas do programa apresentam populares protestando contra o presidente Fernando Collor e PC Farias, acompanhadas por uma trilha dramática que sonorizava imagens de tragédias ocorridas no país, como a queda do viaduto Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro, ocorrida em 1971 e que resultou na morte de 29 pessoas; o incêndio ocorrido no Edifício Joelma, em São Paulo, que vitimou 189 pessoas – as imagens mostram pessoas se atirando do alto do prédio para a morte certa; e o naufrágio da embarcação Bateau Mouche, que levou 55 pessoas a óbito. Em todas essas tragédias mostradas, a edição deixa claro que não houve condenações adequadas àqueles que seriam responsáveis pelas mortes; houve, sim, penas leves. 4. O esquema, após revelado, mostrou que o então tesoureiro, com o poder que tinha durante o governo, conseguiu manipular dinheiro público e desviá-lo para contas fantasmas. Fonte: . Acesso em: 08 jun 2015. 171

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Ficam apensas, durante a edição, a intenção dos produtores do programa em atrelar a ideia da impunidade ocorrida com os responsáveis pelas tragédias, com a impunidade que os membros do governo Collor poderiam receber. Dessa forma, é permissivo entender que o programa buscou agendar sua audiência à essa possível impunidade, visando chamar a atenção dos telespectadores. Isso porque, conforme afirmou Wolf (2012, p. 143 citando SHAW, 1979, p. 96): “o público tende a conferir ao que ele (o conteúdo midiático) inclui uma importância que reflete de perto a ênfase atribuída pelos meios de comunicação de massa aos acontecimentos, aos problemas, às pessoas”. Tal constatação vem ao encontro do que Charaudeau (2012) chama de “olhar de transparência”, pois a televisão, especialmente neste caso, pode(ria) ter buscado uma ilusão de transparência ao exibir o oculto – ou seja, a impunidade dos responsáveis pela tragédia que poderia atingir aos governantes –, desconhecido até então. Nas cenas em que exibe corpos de pessoas vitimadas pelas tragédias, como no caso do Bateau Mouche e daqueles que se jogavam do alto do edifício Joelma para a morte certa, o Documento Especial parece tentar se apropriar do elemento “sensacionalista” para atingir ainda mais sua audiência. Todavia, cabe a reflexão de Marcondes Filho (1986, APUD ANGRIAMI, 1995, p. 15), que questiona se o uso de tais elementos não acaba por “desviar o público de sua realidade imediata”. Outro programa telejornalístico que parecia se utilizar da dramaticidade para chamar a atenção dos telespectadores, talvez até agendando-os, foi o Aqui Agora. 172

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Os elementos de dramaticidade do Sujeito-Jornalista Indignado Na edição de 13/02/1995, a última reportagem exibida pelo Aqui Agora trazia o repórter Gil Gomes – conhecido jornalista que realizava coberturas policiais no rádio, com sua fala e trejeitos bem peculiares – indignado com a morte de um idoso, de 77 anos, que aguardava na fila do INSS pare receber o benefício da aposentadoria. Posicionado em um parque que aparenta estar vazio, Gil Gomes destoa seu discurso de indignação com o ocorrido: “O que se espera depois de 35, 40 anos de trabalho? É que a pessoa, pelo menos, tenha um pouco de dignidade no fim da vida. O aposentado, que possa sentar num banco, que possa desfrutar de uma vista bonita como essa. Mas é isso que acontece no Brasil? Os senhores tomaram conhecimento. O Aqui Agora noticiou, os jornais falaram. Mas ninguém gritou. Um velhinho, 77 anos de idade, obrigado a chegar às 4h da manhã numa fila do INAMPS5. 4 horas da manhã para que ele pudesse ter o direito dele. E de repente, nessa fila, o homem de 77 anos de idade começa a se sentir mal. Começa a passar mal. Mas não podia deixar a fila. Ele fica, até que suas forças o sustentem de pé. Mas, sentou. Chamaram uma 5. Autarquia criada pelo regime militar em 1974, foi um desmembramento do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e era responsável pelo atendimento médico aos contribuintes da Previdência Social. Fonte: . Acesso em: 23 mar 2015. 173

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a­ mbulância para atendê-lo. 1 hora! 1 hora foi a espera para a ambulância. E o velhinho, que contribuiu para a Previdência Social durante 35 anos, no mínimo, morreu nessa fila. Algo que é revoltante. Algo que dói, que machuca e que alguém precisa falar. De princípio, é possível entender que o sujeito-jornalista – aqui representado por Gil Gomes – se colocou em um parque cercado por natureza, em um ambiente bucólico, para mostrar que o idoso deveria estar neste parque, em descanso, usufruindo de sua retirada do mercado de trabalho. Para além, a fala do repórter é acompanhada, durante os 6’14” de duração da reportagem, por uma trilha sonora dramática. A imagem do repórter em um parque aparentemente vazio – dando a entender que o idoso de 77 anos não estava lá por ter falecido na noite anterior – aliada à trilha sonora, conferem uma imagem de teor dramático à reportagem. J. S. R. Goodlad, citado por Marcondes Filho (1988, p. 52), assimila o telejornalismo como um parente bem próximo dos dramas, sendo os dois tipos de programas preferidos pelos telespectadores. Este modo de jornalismo praticado pelo programa parece buscar identificação junto à audiência. Outrossim, Gil Gomes, fazendo uso dos elementos citados acima, busca chamar a atenção do público do Aqui Agora para o falecimento do idoso na fila no INAMPS, por conta do mau atendimento da instituição. Essa seria uma maneira de buscar agendar o descaso com a saúde em sua audiência. A junção do ‘dramático’, colocado pelo apresentador, ao jornalismo – a notícia da morte do idoso – parece criar uma certa verdade jornalística. No 174

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esteio de Lippmann (2008, p. 15), essa ‘verdade’ traria à tona fatos escondidos, produzindo uma imagem de real, e no jornalismo é que estes eventos seriam sinalizados. O sentido dramático do sujeito-jornalista também pode ser assimilado em seu discurso. Além dos elementos que compõem este sentido, como a trilha sonora e o ambiente em que o repórter se encontra, a fala do repórter traz à baila certas questões. Quando diz que “o Aqui Agora noticiou, os jornais falaram. Mas ninguém gritou”, referindo-se às condições do sistema de saúde no país, Gil Gomes afirma que os veículos de comunicação mostraram essas condições ruins, mas que não houve nenhum grito. De tal modo, se é na língua que observamos os sentidos, conforme pontou Orlandi (2012), é possível perpetrar que há uma tentativa de chamar a atenção da audiência para este problema.

À guisa de considerações Por serem veiculados em um meio de comunicação que une os sentidos da visão e audição por excelência, os jornalísticos popularescos parecem obter ainda boa identificação junto à audiência. Programas que se utilizam de um formato que explora a tragédia alheia para chamar a atenção da audiência existem há décadas, e se mantiveram com a mesma intensidade. Não obstante, Documento Especial e Aqui Agora – atrações estudadas por este trabalho –, mesmo se ­apoderando de elementos do popularesco, quando 175

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a­ bordam temáticas envoltas à violência, buscam trazer à tona alguns assuntos pré-determinados. Isso pode ser considerado um exemplo de agendamento. A edição País da impunidade, gravada em 1992, mas que não chegou a ir ao ar, buscava resgatar algumas tragédias que causaram comoção nacional com o intuito de mostrar que os responsáveis por tais tragédias nada ou pouco sofreram. No ano de sua gravação, o país atravessava uma séria crise política no governo Fernando Collor, com acusações de desvio de dinheiro público. De certa forma, o programa pareceu ter a intenção de enxertar na audiência a ideia de que no Brasil a impunidade imperava. Isto, talvez, com o propósito de engendrar a sociedade para o que acontecia. Todavia, o programa acabou censurado e não foi ao ar. Já o Aqui Agora, em uma edição de fevereiro de 1995, teve no repórter Gil Gomes um sujeito-jornalista indignado que se apropriou de uma narrativa envolta em elementos dramáticos para sinalizar as más condições do sistema de saúde da época. Através do falecimento de um idoso de 77, que perdeu a vida esperando na fila do atendimento, a reportagem explorou o elemento sensacionalista para chamar a atenção de um tema que já era trazido pelas mídias naquele ano – de acordo com o próprio Gil Gomes. Assim, buscando criar certa verdade jornalística, a reportagem se utilizou do alcance da televisão, da carga dramática e do jornalismo para ressaltar sua própria indignação com aquele fato. Isso pode, de certa forma, ter agendado a audiência para este problema. 176

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Referências ANGRIMANI, Danilo. Espreme que sai sangue: um estudo do sensacionalismo na imprensa. São Paulo: Summus, 1995. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2012. HOHLFELDT, Antonio. Os estudos sobre a hipótese de agendamento. In: Revista Famecos, n. 7, 1997. Disponível em: . Acesso em: 09 fev. 2015. LIPPMANN, Walter. Opinião Pública. Tradução e Prefácio: Jacques A. Wainberg. Editora Vozes: Petrópolis, 2008 MARCONDES FILHO, Ciro. Televisão. São Paulo: ­Scipione, 1994 ______.  Televisão: a vida pelo vídeo.  São Paulo: Moderna, 1988 ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes Editores, 2012. ROSSY, Elizena. Contra-agendamento: o Terceiro Setor pautando a mídia. In: Anais do II Encontro Compolítica, Belo Horizonte, 2011. Disponível em: . Acesso em: 09 fev. 2015. 177

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TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo: tribo jornalística: uma comunidade interpretativa transnacional. Florianópolis: Insular, 2005. WOLF, Mauro. Teorias das comunicações de massa. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

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Capítulo 6 Espiral do silêncio, opinião pública e representação da mulher na mídia Daniele Ferreira Seridório Laís Modelli Rodrigues

Introdução No percurso do Mestrado, o professor da disciplina de Teorias da Comunicação convidou-nos para escrever um artigo e-book como resultado dos ricos debates em sala de aula. Na obra, cada aluno deveria apoiar-se em alguma teoria discutida em classe, nós, contudo, escolhemos duas hipóteses, a Espiral do silêncio e o Agendamento. Claro que não negamos o apego científico das teorias, mas hipóteses nos parecem mais provocativas e discutíveis. Quando trabalhamos com hipóteses construímos o conhecimento inacabado e, como mestrandas, damos a nossa – pequena - contribuição à academia. uma teoria, como enfatizei anteriormente, é um paradigma fechado, um modo “acabado” e, neste sentido, infenso a complementações ou 179

conjugações, pela qual “traduzimos” uma determinada realidade segundo um certo “modelo”. Uma “hipótese”, ao contrário, é um sistema aberto, sempre inacabado, infenso ao conceito de “erro” característico de uma teoria. Assim, a uma hipótese não se pode jamais agregar um adjetivo que caracterize uma falha: uma hipótese é sempre uma experiência, um caminho a ser comprovado e que, se eventualmente não “der certo” naquela situação específica, não invalida necessariamente a perspectiva teórica (HOHLFELDT, 1999, p. 43).

Neste artigo partimos da concepção da opinião pública e das suas relações com as hipóteses do Agendamento e da Espiral do Silêncio. Enxergamos esses três conceitos como construtores uns dos outros. Enquanto o Agendamento molda a opinião pública, essa coloca a Espiral do Silêncio em movimento. No trabalho, utilizaremos os estudos da alemã Elisabeth Noelle-Neumann para conceituar a opinião pública e a Espiral do Silêncio. A pesquisadora desenvolveu suas observações entre as décadas de 1960 e 1980, em um contexto nacional da Alemanha dividida pelo Muro de Berlim e em um contexto internacional de Guerra Fria. É espantoso, então, que uma hipótese que surgiu em meio ao caos geopolítico e social continue a explicar as relações comunicacionais da nossa sociedade atualmente. Esperávamos que com as nossas reflexões fossemos nos distanciar cada vez mais da hipótese proposta por Noelle-Neumann, contudo, isso não foi observado. 180

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É inevitável relacionar esses temas aos movimentos sociais, e no nosso caso, ao feminismo. A mídia é excepcionalmente cruel ao retratar e representar as mulheres, tem importante papel na disseminação da cultura do estupro e não torna agenda pública a discussão de temas fundamentais às mulheres, como a legalização do aborto, por exemplo. A intensificação do uso dos meios digitais e o novo conceito de comunicação de todos para todos, com possibilidades interativas e de desconcentração do fluxo comunicacional, deram novas esperanças aos teóricos entusiastas, que veem na internet a possibilidade de modificar o parâmetro oligopolizado e homogeneizado da comunicação de massas. Pensamos que as Ciências da Comunicação avançam de maneira peculiar a cada passo dos entusiastas e dos pessimistas. Parece-nos que essas posições divergentes são essenciais para a reflexão e posicionamento crítico frente aos fenômenos comunicacionais. Aqui, nos colocamos com uma visão cética frente à contribuição da internet para o incremento da pluralidade da opinião pública, dos efeitos do Agendamento e da Espiral do Silêncio. É inegável, contudo, reconhecer as suas contribuições, mas, por enquanto, a mídia digital parece ter reproduzido as mensagens do oligopólio da mídia tradicional. E, embora, crie espaço de visibilidade para movimentos sociais, como a luta das mulheres, ainda obedece aos interesses de corporações capitalistas norte-americanas. Portanto, a nossa exposição buscará relacionar os conceitos de opinião pública, Agendamento e Espiral do 181

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Silêncio aplicados a percepção da mulher sobre a sua representação na grande mídia e na sociedade.

Opinião Pública Noelle-Neumann ilustra a opinião pública em sua obra pela história de um balé que assistiu quando era professora na Universidade de Chicago. No espetáculo, os habitantes de uma pequena cidade sempre se escandalizam com as atitudes de um poeta que vivia um pouco afastado do centro urbano. Porém, quando o conde e a condessa da cidade também tomavam as mesmas atitudes, logo o ato se tornava comum e os habitantes habituavam-se a isso. Para a autora, o nome do balé também poderia ser “A opinião pública”, pois o conde e a condessa são os líderes e formadores de opinião. Ela ainda coloca que se apoiássemos as ideias e atitudes do poeta enquanto essas eram escandalizadas, estaríamos negando a nossa natureza social. Ademais, a autora (p.5) se coloca em defesa do conde e da condessa, pois os caracteriza como os moderadores, como “los lideres de opinión que la sociedad necesita”. Ni siquiera pensamos em el esfuerzo que realizan lãs personas que vivem em uma unidad social parar amntener unida La comunidad. Actuamos como si la posesión de uma rica tradicion histórica y cultural y de instituciones protegidas por la ley no exigiera n constante

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esfuerzo de adaptación de incluso conformidad (NOELLE-NEUMANN, p.4).

Noelle-Neumann coloca a opinião pública como fundamentadora das atitudes dos indivíduos de uma comunidade. A fim de investigar o que vem a ser a opinião pública, parte essencial em seus estudos sobre a teoria da espiral do silêncio, Noelle-Neumann dedica todo um capítulo de seu trabalho a essa discussão. Voltando às origens da Espiral do Silêncio, vemos que a cientista política é impulsionada a teorizar sobre o “silêncio” na Alemanha de 1965, quando estudos apontaram que, durante as eleições, mesmo que crescesse a expectativa de vitória de um dos grupos, as intenções de voto da população não necessariamente mudavam. Desde o primeiro parágrafo, a teórica aponta que não é tarefa fácil definir de maneira clara o conceito, uma vez que nas décadas de 50 e 60 houve um movimento entre os acadêmicos para que o termo fosse colocado no esquecimento. “Se decía que la opinión pública era una ficción que pertenecía al museo de la historia de las ideas” (NOELLE-NEUMANN, p.1). Somente na década de 60, aponta a autora, foram identificadas 50 literaturas que definiam a opinião pública, porém sempre de maneira não objetiva, como “Algo que flota y fluye” (ONCKEN, 1914, apud NOELLE-NEUMANN), ou como “no es el nombre de ninguna cosa, sino una clasificación de un conjunto de cosas” (DAVISON, 1968, apud NOELLE-NEUMANN). Sem uma resposta concreta e objetiva sobre o que vem a ser a opinião pública, Noelle-Neumann, ao ­pensar 183

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no porque as intenções de voto não mudaram em 1965, chega a uma primeira conclusão sobre o termo, e ainda que não fosse uma definição de opinião pública, relacionava esse conceito com a hipótese da Espiral do Silêncio. “La espiral del silencio podría ser unas de las formas de aparición de la opinión pública. Podría ser un proceso por el que creciera una opinión pública nueva, joven, o por el que se propagara el significado transformado de una opinión antigua” (NOELLE-NEUMANN, p.2). Ao refletir sobre o termo “opinião”, a alemã busca a definição de David Hume, de 1739, que o chama de “common opinion”, em que este teria um sentido de acordo e de comunidade. Assim, a cientista entende a “opinião” como “algo considerado aceptable, teniendo en cuenta, pues, el elemento de consenso o acuerdo” (NOELLE-NEUMANN, p.2). Ao refletir sobre “público”, dentre as várias definições que o termo pode assumir, Noelle-Neumann conclui que, quando associado à opinião, é algo que se refere a todos, associado ao bem-estar geral, que difere da esfera privada e que denota alguma participação do Estado. A opinião pública é algo, pois, que lembra ao indivíduo que ele não está isolado na sociedade. O medo de “aislamiento, a la mala fama, a la impopularidade; es la necesidad de consenso” (NOELLE-NEUMANN, p.4) é o que edifica a opinião pública, ou, “opiniones sobre temas controvertidos que pueden expresarse en público sin aislarse” (NOELLE-NEUMANN, p.5). O julgamento do público, segundo Noelle-Neumann, tem o peso de um tribunal. Seguir a opinião adotada pela 184

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maioria é, portanto, uma estratégia individual para não ser colocado no isolamento pelo grupo. Mesmo diante de uma definição tão dura e impositiva, a cientista reconhece que nesse espaço também podem surgir novas ideias emergentes capazes de desmoronar as concepções existentes. A Espiral do Silêncio, neste contexto, seria uma reação a aprovação ou desaprovação dessas opiniões cambiantes de valores, “ese silencio que tanto influye en la construcción de la opinión pública” (NOELLE-NEUMANN, p.21). Ainda sobre opinião pública, a autora reflete sobre os diferentes momentos de uma sociedade e a sua relação com a vigente opinião pública. Em épocas revolucionárias, a opinião pública e seu julgamento dos indivíduos se torna mais forte, uma vez que ela também funciona como uma “guardiana de la moralidad y de las tradiciones” (NOELLE-NEUMANN, p.25). Romper o consenso geral é o mesmo que se expor publicamente, em qualquer momento histórico, mas em momentos revolucionários ou instáveis socialmente, a exposição pública é percebida como uma ameaça pelos indivíduos do grupo. Saber como a maioria se porta e se adequar a esses comportamentos e opiniões é, pois, estratégia de convivência.

A hipótese do agendamento O Agendamento é na comunicação a força dos meios para moldar a opinião pública. Esse processo ocorre,

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principalmente, pelas ferramentas do jornalista de critério de noticiabilidade, definição da pauta, das fontes e edição. Trata-se de um efeito não-intencional do processo de construção da actualidade informativa na configuração do ambiente político em que se forma a opinião pública. Ao excluírem, incluírem e hierarquizarem os acontecimentos diários, os jornalistas orientam a atenção do público para os assuntos destacados: a agenda dos media torna-se a agenda pública (BORGES, 2010, p. 137).

O conceito do Agendamento nasceu das pesquisas em comunicação política. Contudo, pode ser estendido para outros estudos dos efeitos dos meios de comunicação. O conceito foi formulado por Maxwell McCombs e Daniel Shaw, em 1972, no artigo da Public Opinion Quarterly sobre o estudo realizado durante a campanha presidencial de 1968, em Chapel Hill, na Carolina do Norte. O cruzamento da cobertura noticiosa com as opiniões de eleitores indecisos sobre os temas prioritários na eleição revelou como os media moldam o ambiente político da audiência (BORGES, 2010, p. 137).

É complicado afirmar, contudo, que os efeitos do Agendamento não são intencionais. Os efeitos dos meios de comunicação na opinião pública são ­ inevitáveis,

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­ orém a escolha dos assuntos e o enquadramento parp tem de escolhas conscientes dos editores ou dos donos dos meios. O uso de ferramentas jornalísticas é necessário, porém, os profissionais e, principalmente, as empresas, sabem que é a partir do Agendamento que vão moldar não só a opinião pública, mas o seu posicionamento editorial. A reunião de pauta é um momento racional e consciente em que profissionais decidem qual assunto entrará na pauta. E qual assunto não entrará. Hohlfeldt (1997) coloca três pressupostos para a hipótese do Agendamento. Primeiramente, o fluxo de informações é contínuo, ou seja, a todo o momento os indivíduos recebem um grande volume de informações gerando um efeito enciclopédia (MCCOMS apud HOHLFELDT, 1997), então a recepção não é um ciclo fechado. E por consequência disso, os meios de comunicação influenciam não em curto prazo, mas a médio e longo prazo. Já o terceiro pressuposto afirma que os meios de comunicação não são capazes de impor uma agenda pública, mas influenciam os assuntos debatidos pela opinião pública. Ou seja, dependendo dos assuntos que venham a ser abordados – agendados – pela mídia, o público termina, a médio e longo prazos, por incluí-los igualmente em suas preocupações. Assim, a agenda da mídia termina por se constituir também na agenda individual e mesmo na agenda social (HOHFELDT, 1997, p. 44).

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Borges (2010) define cinco fases para o desenvolvimento dos estudos do Agendamento. No primeiro momento residiu na redescoberta dos efeitos dos meios de comunicação, já que a os estudos pairam sobre o paradigma dos efeitos limitados. Depois, os autores começaram a pesquisar as condições para o efeito do Agendamento, como a agenda interpessoal, as audiências e o tempo de cobertura de cada assunto. A terceira fase é fundamentada nos estudos de enquadramento, que são “esquemas interpretativos que organizam o pensamento, apresentam uma perspectiva dominante sobre um objecto que condiciona a sua interpretação” (BORGES, 2010, p. 140). A quarta e quinta fase desenvolvem-se amparadas na luta simbólica pelo espaço midiático. Na quarta fase, Borges (2010) coloca os estudos pela luta dos atores sociais por espaço de visibilidade na mídia, seja para fins de personalização ou de lutas e reivindicações. A outra vê a quinta fase como ampliação nos estudos, pois nesse momento os pesquisadores passaram a considerar a existências de múltiplas agendas. A quinta fase de evolução do agendamento amplia o seu campo de estudo à diversidade de agendas que coexistem na sociedade, em áreas como a educação, a religião, o desporto ou os negócios, e aprofunda a sua sustentação teórica, elaborando o conceito de necessidade de orientação (BORGES, 2010, p.141).

A popularização das mídias digitais pode inaugurar uma sexta fase nos estudos de Agendamento. Já que com essas 188

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ferramentas, além de receptores, os cidadãos passam também a produzir e a interagir com o conteúdo (JENKINS, 2009). As mídias digitas e a internet seriam, então, a plataforma que os excluídos, ou os silenciados, poderiam utilizar para alcançar a visibilidade na opinião pública. A crescente acessibilidade a múltiplas fontes de informação alternativas, que tem acompanhado a fragmentação do público, representa um desafio à função de agendamento dos media, mas pode também constituir uma oportunidade para a reconfiguração das complexas relações de influência inter-agendas, contribuindo para um processo de agendamento público mais inclusivo e democrático (BORGES, 2010, p. 143).

O que queremos discutir, contudo, não é como o agendamento constrói a agenda pública, mas sim, como esse efeito deixa de fora da sua cobertura alguns temas e grupos importantes. Para compreendermos melhor esse silêncio imposto a esses grupos e personagens, temos a hipótese da Espiral do Silêncio. Se por um lado temos o Agendamento determinando a opinião pública, por outro, temos a opinião pública colocando em ação a Espiral do Silêncio.

A hipótese da espiral do silêncio Enquanto trabalhava em um instituto de pesquisa na Alemanha, em 1965, Noelle-Neumann percebia que a as intenções de voto modificavam muito próximo ao dia das 189

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eleições. A esse efeito ela deu o nome de “efecto del carro ganador”, como se as pessoas, sabendo que o seu candidato perderia as eleições – pela divulgação de pesquisas eleitorais - mudassem de opinião para não ficarem do lado perdedor da disputa. A autora percebia ainda com suas pesquisas, que após o resultado final, a porcentagem de eleitores que afirmavam ter votado no candidato vencedor era maior que os números atingidos por ele de fato. Noelle-Neumann atribuiu esses fenômenos ao medo do isolamento social – inclusive o subtítulo de seu livro é “Opinião Pública: a nossa pele social”. Então, para pertencer a um grupo ou a uma comunidade, as pessoas sentiriam a necessidade de estar em conformidade com a opinião pública em torno de determinado assunto. Nesse processo de inclusão e pertencimento esses indivíduos se silenciariam e seus posicionamentos entrariam em uma “espiral do silêncio” até a sua extinção. Las observaciones realizada en unos contextos se extendieron a otros e incitaron a la gente a proclamar sus opiniones o a tragárselas y mantenerse en silencio hasta que, en un proceso en espiral, un punto de vista llegó a dominar la escena pública y el otro desaparición de la conciencia pública al enmudecer sus partidarios. Éste es el proceso que podemos calificar como de espiral del silencio (NOELLE-NEUMANN, p.11).

Segundo a Espiral do Silêncio, os indivíduos têm tendência a expressarem suas opiniões, quando essas estão em conformidade com a opinião generalizada. Para isso, 190

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os indivíduos têm a capacidade de perceber o clima de opinião, ou seja, têm uma tendência a captá-lo. Noelle-Neumann fez diversos experimentos empíricos tentando comprovar sua hipótese, e segundo a autora, é essa capacidade de percepção que levaria as pessoas a atuarem em conformidade com o social. Cruzando variáveis aos níveis micro e macro, a TES é uma teoria sociopsicológica dinâmica que pretende explicar a formação, a continuidade e a alteração da opinião pública, bem como as suas funções e efeitos. Indirectamente, é pois uma teoria dos efeitos mediáticos. No seu cerne está a tese de que após sondarem o clima de opinião sobre um determinado tema (issue), o medo da exclusão social leva os indivíduos a não expressarem opiniões que os próprios percepcionam como sendo minoritárias ou tendencialmente minoritárias, o que leva, a termo, à afirmação, no espaço público, de uma opinião dominante (ROSAS, 2010, p.157).

Poderíamos entender, então, que o receptor percebe os assuntos tratados como a opinião pública e a partir daquilo vai moldar o seu comportamento. É nessa hipótese de percepção que os meios de comunicação “voltam a ser aqui muito importantes, como se depreende, já que constituem uma das fontes desse- meio- informacional global, a par da observação directa e da discussão interpessoal dos temas” (ROSAS, 2010, p. 160). Essa hipótese quando observada da perspectiva da Teoria do

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­ gendamento dá ainda mais força à Espiral do Silêncio, A já que o agendamento leva à priorização de determinados temas e o silenciamento de outros. Embora não sejam as únicas fontes do ambiente informacional, os media são essenciais à teoria a partir do momento em que estabelecem posições claras sobre temas cuja componente moral é elevada. A par da observação directa e da discussão interpessoal, os media produzem efeitos importantes nas percepções sensoriais dos indivíduos sobre o clima de opinião. Sem o apoio nos media, mesmo uma maioria não está disposta a expressar-se, passando a maioria silenciosa. Por outro lado, uma posição clear-cut dos media sobre um tema pode apoiar uma minoria e torná-la mais fortes no clima de opinião, pelo menos até os adversários serem reduzidos a um hard core de resistentes ou a uma vanguarda motivada que esteja mais motivada a expressar publicamente as suas posições (ROSAS, 2010, p. 162).

A Espiral do Silêncio repousa sobre a premissa fundamentalista e sobre os estudos de conformidade. E devemos reconhecer que as dinâmicas sociais se mostram demasiadamente complexas para se encaixarem no paradigma fundamentalista. Principalmente, se atuamos no campo da comunicação, por exemplo, o jornalismo teria a função de ser guardião do interesse público na sociedade, contudo, a configuração comercial e oligopolizada da mídia eletrônica é um dos fatores que não permite a instituição dessa função. 192

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A primeira premissa é uma hipótese retirada do funcionalismo clássico. Para garantir a coesão do todo, ou do sistema, a sociedade ameaça com o isolamento todos aqueles que violam o consenso de que aquela necessita para sobreviver. [...] A segunda premissa é uma hipótese baseada nos chamados estudos da conformidade. O medo do isolamento motiva os indivíduos a não formarem quaisquer opiniões, apenas aquelas que são conformes, ou estão alinhadas, com as dos restantes membros do grupo ou dos grupos aos quais pertencem (ROSAS, 2010, p. 159).

Quando alinhamos a Espiral do Silêncio ao Agendamento, chegamos a discussões interessantes, principalmente no que diz respeito a grupos periféricos e revindicações sociais. Se pensarmos, então, em como o conteúdo midiático molda a identidade dos indivíduos e aplicar essa ideia à Espiral do Silêncio, poderíamos tecer considerações a respeito das distorções de identidade e como a falta de pluralidade das abordagens midiáticas distorce a percepção das pessoas - não somente sobre o clima de opinião, mas também - a respeito do que elas são. Não podemos, no entanto, cair na falácia da hipótese da Agulha Hipodérmica e imaginar que os receptores interiorizam todas as informações sem criticidade. A Teoria dos Efeitos Limitados existe para nos lembrar que nem tudo que é recepcionado através da mídia é interiorizado sem resistência. Mas, é crucial preocupar-se com o silenciamento de opiniões e temas na sociedade, por isso, recorrer a essas hipóteses é fundamental para garantirmos a pluralidade desejada. 193

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A internet e seus efeitos comunicacionais A massificação dos meios digitais fez surgir novas pesquisas em torno do Agendamento e da opinião pública. A internet e outras ferramentas de comunicação digitais, que permite a criação interativa de conteúdo, representa, para alguns teóricos, um ambiente comunicacional mais plural na construção da opinião pública, já que mais vozes podem estar presentes no discurso. Isso teria também o efeito na Espiral do Silêncio, já que é a opinião pública que a constrói. Qual é a grande diferença entre a opinião pública das redes e a opinião pública das mídias de massa anteriores? É que a opinião pública das mídias de massa anteriores era a opinião publicada. Era a opinião criada por um líder de opiniões, por políticos, por jornais e jornalistas que escreviam – aqueles que a estipulavam (DI FELICI, 2014, p. 32).

Então, a internet possui um grande potencial de democratizar o fluxo de informação. Para Akutsu e Pinho (2002, p. 724) o crescente uso da internet, no âmbito público, cria “uma oportunidade ímpar para que o governo crie novos serviços, com melhor qualidade e menor custo, e para que a sociedade possa participar de uma forma mais efetiva na gestão governamental”. Mas esses mesmos autores também recordam que a informação não é somente um conceito, mas também um termo carregado de ideologia. Enquanto isso, 194

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S­ traubhaar e LaRose (2004, p.50) colocam que a informação pode estar sendo tratada somente como ­commodity de valor comercial, sem considerar o seu caráter de recurso público. Cabe a discutir se os fluxos de informação estão realmente descentralizados, ou se, assim como na mídia chamada tradicional ou grande mídia, ainda algumas empresas controlam a visibilidade do espaço midiático na internet. Google and Yahoo! agree on the top search result 90 percent of the time. The top10 websites receive 25 percent of all traffic. Traffic to political websites is relatively sparse, about one-tenth of one percent of all web traffic, a drop in the bucket compared to the 10 percent of all traffic that goes to porn sites. Moreover, the demographic for political sites is skewed toward older people. The internet has hardly proven to be the solution to political estrangement among young people. Additionally, traffic to political sites is also highly concentrated, with the top 50 of 773,000 political sites tracked receiving 41 percent of all political site visits, most of it concentrated among the top eight (MOSCO, 2009, p. 1397).

Ou seja, se estabelecemos o agendamento como um propulsor da opinião pública como ponto central da espiral do silêncio, percebemos que, na medida em que o mercado de mídia digital reproduz o modo concentrado dos meios tradicionais, essas hipóteses continuarão a surtir efeito na recepção da comunicação. 195

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Acho ingênuo acreditar que aquilo que se vê nas redes sociais representa a opinião pública, pois não representa. O que se vê no feed de notícias do Facebook é predefinido por um algoritmo cuja principal finalidade é maximizar os lucros da empresa. Então, aquele algoritmo é programado para entregar o conteúdo que é mais valioso para determinado usuários, que seja capaz de atrair sua atenção por mais tempo (LEMOS, 2014, p. 29).

A internet possui um papel fundamental na abertura de um canal mais rápido e interativo de comunicação entre emissor e receptor. Contudo, ela não quebra a lógica oligopolizada do mercado de meios de comunicação, e mesmo dentro do conteúdo produzido para mídia digital institui-se a figura do líder de opinião, mesmo que de maneira diferente e em menor nível de influência. Ainda assim, devemos considerar que agora os movimentos sociais e pautas até então silenciadas, por exemplo, têm mais espaço para compartilhar e divulgar suas reivindicações. A pauta da luta das mulheres, por exemplo, tem ganhado um novo fôlego no Brasil desde que a informação difundida por blogs e redes sociais na internet foi possibilitada. Se, por um lado, a imprensa apaga dizeres sobre o feminismo e evidencia discursos patriarcalistas, as redes sociais virtuais constituem-se, então, como um espaço de confronto a esses

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Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

discursos hegemônicos. A popularização da internet contribuiu para fazer circular massivamente discursos de valorização do feminismo (LIMA, p1, 2013)

O movimento Slut Walk, nascido no Canadá, em 2011, por universitárias que se recusaram a concordar com a fala de um policial que, durante uma palestra de prevenção ao estupro na Universidade de Toronto, afirmou que mulheres deveriam evitar se vestirem iguais a “putas” para não serem estupradas. No dia seguinte, foi postado no Facebook um evento público que convocava mulheres canadenses a marcharem nas ruas de Toronto em protesto às formas de repressão e violência contra o corpo feminino. O movimento se alastrou no mesmo ano para demais países da América e outros além do continente, como Suécia, Nova Zelândia, Inglaterra e Israel. No Brasil, chegou com o nome de Marcha das Vadias e atua, no online e off-line, até o momento. Enquanto a grande mídia e o próprio governo silenciam as pautas ligadas à legalização do aborto no Brasil, meninas e mulheres da Marcha das Vadias levam o tema para o blog e redes sociais do movimento e organizam, com a ajuda da internet, passeatas pelo país todo. No time dos entusiastas e otimistas, essa comunicação mediada pela internet tem surtido um efeito estrutural na sociedade conectada. Para Recuero (2009, p.16), “Esses fenômenos representam aquilo que está mudando profundamente as formas de organização, identidade, conversação e mobilização social: o advento da Comunicação Mediada pelo Computador.” 197

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

Mas, em um contexto em que a internet é uma esfera pública complementar, esses meios ainda dependem da mídia tradicional para alcançar visibilidade, e essa mídia nem sempre é amigável aos movimentos sociais, inclusive, no caso do movimento feminista. A própria internet, por sua vez, tem reproduzido os padrões de violência de gênero. Estas relações desiguais de poder se expressam não só na intimidade do casal ou em casa. Também se voltam para a esfera pública, no local de trabalho, nos espaços de participação política e cidadania, onde as mulheres devem seguir fazendo frente a velhos preconceitos, menosprezos e abusos pelo simples fato de ser. As relações desiguais não deixam nenhum lugar sem dominação. Os espaços digitais da comunicação e participação são novos âmbitos onde continuam ocorrendo essas questões, às vezes chegando a violência de gênero tal como ocorrem no espaço real. (PLOU, 2013, p.122)

Para Plou (2013), a violência praticada contra mulheres nas redes sociais virtuais, como “perseguição, assédio, o roubo de informações e a publicação de fotos e vídeos íntimos sem autorização ou a distorção dos seus conteúdos já resultam em algo usual”. A banalização da violência contra a mulher já atingiu, pois, a internet e sabemos que quase nunca as denúncias dessas violações resultam em alguma punição ao agressor.

198

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

Representação da mulher na mídia Conforme discutido na exposição teórica, a construção da mulher na mídia tem papel fundamental na construção da percepção da mulher sobre si mesma e no agendamento e silenciamento de temas com relação à mulher. Em 2013, o Instituto Patrícia Galvão e o Data Popular lançaram os resultados da pesquisa “Representações das mulheres nas propagandas na TV”. Na ocasião, 1.501 pessoas com mais de 18 anos e de 100 municípios brasileiros foram ouvidas em maio de 2013. Dos vários resultados obtidos sobre a representação da mulher na televisão, gostaríamos de destacar os seguintes dados organizados na tabela abaixo. Tabela 1. Representações das mulheres nas propagandas na TV

199

Mulheres

Homens

Não acreditam que as propagandas na TV mostram a mulher da vida real.

59%

52%

Propagandas na TV não mostram a mulher que, além de ser esposa e mãe, trabalha e estuda

62%

61%

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

Concordam que a mulher nunca é apresentada como uma pessoa inteligente em propagandas na TV

39%

30%

Concordam que o padrão de beleza nas propagandas na TV é muito distante da realidade da brasileira

67%

64%

Consideram que as mulheres ficam frustradas quando não têm o padrão de beleza das propagandas na TV

61%

60%

Concordam que o corpo da mulher é usado para promover a venda de produtos nas propagandas na TV

84%

84%

Defendem punição aos responsáveis por propagandas que mostram a mulher de modo ofensivo

72%

68%

Fonte: Instituto Patrícia Galvão, 2013.

200

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

Em pesquisa anterior, aplicada em 2010, a Fundação Perseu Abramo e o Serviço Social do Comércio – Sesc – divulgaram o resultado da pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado: uma década de mudança na opinião pública”, que entrevistou 2.365 mulheres e 1.181 homens nas 25 unidades federativas do país. A pesquisa aborda diversos temas relacionados à mulher desde relações de trabalho até participação política. Ela foi comparada aos dados de 2001. A pesquisa possui muitos dados, mas destacaremos aqui alguns nos quais é possível discutir as relações entre opinião pública, percepção e silenciamento. A tabela abaixo mostra o resultado para a seguinte questão “Opinião sobre a exposição do corpo da mulher na TV”. Tabela 2. Opinião sobre a exposição do corpo da mulher na TV

201

2001

2010

É ruim

77%

80%

Para as mulheres que se exibem assim, mas isso é problema delas.

21%

29%

Porque dá muita atenção só para o corpo e isso desvaloriza toas as mulheres.

56%

51%

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

É bom

21%

18%

Para as mulheres que aparecem, sorte delas que têm idade e corpo para se mostrar.

14%

12%

Para todas as mulheres porque isso valoriza a mulher brasileira.

7%

6%

NÃO SABE

1%

2%

Fonte: VENTURINI; GODINHO, 2013, p. 442. Pelos dados de ambas as pesquisas, é possível observar que a sociedade acredita ser ruim a exposição do corpo da mulher na TV. Na pesquisa do Instituto Patrícia Galvão, é gritante os dados de que 84% dos entrevistados homens e mulheres veem que o corpo da mulher é usado na TV para vender produtos e a média de 70% defendem punição aos responsáveis por propagandas ofensivas à representação da mulher na TV. Ainda sobre a pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado: uma década de mudança na opinião pública”, o trabalho investigou a opinião dos brasileiros sobre a pauta da luta das mulheres mais polêmica dos últimos anos no país e que vem sendo totalmente silenciada na mídia: Opinião sobre mudança na atual lei do aborto. 202

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

Tabela 3. Opinião sobre mudança na atual lei do aborto MULHERES

HOMENS

2011

2010

2010

A LEI DEVE FICAR COMO ESTÁ

59%

61%

69%

O ABORTO DEVERIA SER PERMITIDO EM TODOS/MAIS CASOS ALÉM DESSES

16%

20%

16%

Anencefalia

6%

4%

Miséria/pobreza/falta de condições materiais

5%

4%

Mãe muito jovem

2%

2%

Outras respostas

5%

3%

O ABORTO DEVERIA SER PROIBIDO POR LEI EM TODOS OS CASOS

22%

17%

12%

OUTRAS RESPOSTAS

2%

2%

1%

NÃO SABE

2%

1%

1%

Fonte: VENTURINI; GODINHO, 2013, p. 465. 203

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

Quanto ao potencial e rejeição de voto, 92% das mulheres e 91% dos homens afirmaram que votariam em algum candidato mulher. Esse índice cai para 63% das mulheres e 59% dos homens quando o candidato é homossexual. Contudo, quando discutimos políticas como a do aborto, por exemplo, 57% das mulheres e 56% dos homens afirmaram que nunca votariam em um candidato ou candidata que se colocasse a favor da legalização. 16% das mulheres e 20% dos homens dificilmente votariam. E 23% das mulheres e 21% dos homens poderiam votar. 4% das mulheres e 3% dos homens não sabem ou não responderam. Ao analisarmos os dados da pesquisa, vemos que poucos entrevistados acreditam que o aborto deveria ser proibido por lei em todos os casos (mulheres 17% e homens 12%), porém mais da metade dos homens e mulheres ouvidos afirmaram que nunca votariam em um candidato ou candidata que se colocasse a favor da legalização, demonstrando qual é a verdadeira opinião pública, aquela que regula a moral e os costumes dos brasileiros: o aborto não deve ser legalizado no Brasil. O caso acima pode ser exemplificado pelas Eleições Presidenciais 2014. Enquanto candidatos que defendiam a legalização do aborto e mais direitos ligados ao corpo da mulher na saúde pública, como Eduardo Jorge (PV) e Luciana Genro (PSol), eram tidos como excêntricos e fora dos padrões, os ditos candidatos sérios, aqueles que tinham chance de ganhar, como Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB), não podiam se pronunciar sobre 204

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

a questão. Mais que expressarem uma opinião negativa sobre a legalização do aborto no Brasil, eles silenciaram totalmente o tema em seus debates televisionados. Sabiam esses candidatos qual era o clima de opinião dos seus eleitores, pois, e não queria perder votos. Na metáfora da opinião pública de Noelle-Neumann, o atual momento de instabilidade social e política está deixando a opinião pública cada vez mais na condição de um tribunal inquisidor, guardião dos bons costumes. Com medo de serem julgados por esse tribunal e perderem as eleições, ou serem isolados pelo grupo, Dilma e Aécio fugiram de temas que fossem contra a opinião pública.

Considerações Ao abrir as considerações, é preciso retomar que, como foi dito no início deste artigo, é espantoso que a hipótese da Espiral do Silêncio, que surgiu em um contexto social conturbado e em guerra do século XX, possa explicar as relações comunicacionais da sociedade brasileira atuais sobre a condição da mulher na mídia. Foi apontado que o julgamento do público, segundo Noelle-Neumann, tem o peso de um tribunal, e que por isso, seguir a opinião adotada pela maioria é uma estratégia individual para não cair no isolamento. Se as pesquisas abordadas neste trabalho, a “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado: uma década de mudança na opinião pública” e a “Representações das

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Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

mulheres nas propagandas na TV”, apontam que a mulher brasileira não se sente representada pela publicidade nacional, por que essas publicidades continuam sendo realizadas e naturalizadas pela sociedade sem que nada seja feito para impedi-las ou até punir os seus idealizadores? Uma das respostas pode ser a Espiral do Silêncio: somos um país de opiniões machistas e por isso, mesmo que as pessoas reconheçam o machismo na TV e nas publicidades, não manifestam essas opiniões em outros meios e espaços que não os das pesquisas apresentadas. Por que se silenciam sobre esse assunto em outros espaços? Têm, eles, medo de serem julgados pelo tribunal da opinião pública no país? Tem, a grande mídia, o poder de silenciar opiniões que discordem dessas representações machistas da mulher e continuarem reproduzindo esses estereótipos sem medo de ser punida? Diante de tais questionamentos, podemos afirmar que fica claro que, conceitualmente, a construção da opinião pública é comprimida entre os efeitos do Agendamento e da Espiral do Silêncio. Se de um lado o agendamento vai determinar o que é discutido na opinião pública, do outro, a capacidade de percepção do clima de opinião vai silenciar vozes que não alcançaram a opinião pública. Afinal, conforme teorizou Noelle-Neumann, o silêncio tem grande influência na construção da opinião pública. Como já foi apontado, tal efeito do silêncio pôde ser visto nas últimas eleições presidenciais de 2014 no Brasil. Enquanto o movimento feminista nacional exigia o debate de propostas para a pauta da legalização do aborto no país, os principais candidatos presidenciáveis se 206

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

esquivavam do tema, sem emitir qualquer opinião sobre. Sabiam os candidatos que era preciso ignorar a pauta do aborto e silenciá-lo se quisessem ganhar a aprovação da opinião pública. Foi constatado que o silêncio de temas importantes ligados a luta das mulheres do Brasil são silenciados e mensagens machistas são agendadas, contudo, por outro lado, não estamos em uma sociedade funcionalista. Assim, felizmente, as vozes excluídas pelas mídias procuram outros meios para se expressarem, seja nas ruas, pelas mídias alternativas ou na internet. As mídias digitais, no entanto, ainda não alcançaram todo o seu potencial de dar pluralidade às vozes, já que os meios de comunicação ditos tradicionais ainda enxergam grande influência na construção da opinião pública. Apesar de quase não vermos, ouvirmos ou lermos opiniões que vão contra a representação atual da mulher na mídia, elas aparecem vez ou outra na própria grande mídia. Na internet e nas ruas também podemos ver a manifestação dessas opiniões. Segundo apontamos em Noelle-Neumann, a teórica considera que momentos de instabilidade política e social novas opiniões podem romper a barreira do silêncio e o medo de ser julgado e isolado pelo grupo. Assim, a instabilidade atual que vivemos nos permite fazer mais um ponto de contato com a Espiral do Silêncio, mas isso não quer dizer que a reação à essas opiniões diferentes não será forte e com o objetivo de silenciá-las. Uma das maiores reações contrárias às opiniões feministas têm sido expressadas pelos próprios ­congressistas 207

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

brasileiros, advindos ou apoiados pela bancada religiosa. Eles passaram a manifestar nos meios, opiniões preconceituosas contra mulheres e homossexuais para manter o voto do seu eleitorado, que se torna cada vez mais conservador toda a vez que uma opinião contra o machismo é manifestada em espaços públicos e midiáticos. Vide os casos de agressão verbal no Congresso contra as deputadas Maria do Rosário (PT), agredida pelo deputado Jair Messias Bolsonaro (PP) em 2014, que afirmou que mulher feia não “merece” ser estuprada, e a agressão do deputado Alberto Fraga (DEM) contra a deputada Jandira Feghali (PCdoB) afirmando que “Mulher que participa da política como homem, tem que apanhar como homem”. Como foi apontado anteriormente, em épocas revolucionárias e instáveis, a opinião pública vigente se comporta como uma guardiã da moralidade, sendo a moralidade nesse contexto a cultura do estupro e o rebaixamento da figura da mulher quando comparada à figura do homem. Sobre o novo contexto comunicacional inaugurado sobre a comunicação mediada pelo computador (RECUERO, 2009), as hipóteses do Agendamento e da Espiral do Silêncio continuam a surtir efeito na comunicação digital e, por isso, essas relações tornam-se um conceito fértil para pesquisas empíricas que continuam a corroborar as hipóteses e a tecer novas considerações. Acreditamos que a construção do conhecimento em torno dessas hipóteses ainda é frutífera e só tem a prosperar na internet.

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Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

Referências BORGES, Susana. Agendamento. In Conceitos de Comunicação Política. CORREIA, João Carlos; FERREIRA, Gil Baptista; ESPÍRITO SANTO, Paula do (Org.). Covilhã: LabCom Livros, 2010. Disponível em: http:// www.livroslabcom.ubi.pt/book/30. Acesso em 8 de maio 2015. HOHLFELDT, Antonio. Os estudos sobre a hipótese de agendamento. Revista FAMECOS, num. 7, 1997. JENKINS, Henry. Cultura da Convergência: Tradução Susana Alexandrina. 2 ed. São Paulo: Aleph, 2009 LEMOS, Ronaldo; DI FELICI, Massimo. A vide em rede. Campinas, SP: Papirus 7 Mares, 2014. LIMA, Quézia dos Santos. Blogueiras feministas e o discurso de divulgação do feminismo no ciberespaço. In: Seminário de estudos em análise do discurso. Rio Grande do Sul, 2013. Disponível em: http://www.ufrgs.br/analisedodiscurso/anaisdosead/6SEAD/SIMPOSIOS/BlogueirasFeministasEODiscurso.pdf. Acesso em 22 de março 2014. MOSCO, Vincent. Review Article: Approaching digital democracy: Gary Hall, New Media & Society, 11(8), pp. 1394–1400, 2009. Disponível em: http://doi. org/10.1177/1461444809344076. Acesso em 23 de abril 2015.

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Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

NOELLE-NEUMANN, Elisabeth. La Espiral Del Silencio: opinión pública – nuestra piel social. Tradução: Javier Ruiz Calderón. RECUERO, Raquel. Redes Sociais na Internet. Porto Alegre: Editora Sulina, 2009. ROSAS, António. A espiral do silêncio: uma teoria da opinião pública e dos media. In Conceitos de Comunicação Política. CORREIA, João Carlos; FERREIRA, Gil Baptista; ESPÍRITO SANTO, Paula do (Org.). Covilhã: LabCom Livros, 2010. Disponível em: http://www.livroslabcom.ubi.pt/book/30. Acesso em 8 de maio 2015. VENTURINI, Gustavo; GODINHO, Tatau (Orgs). Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado: uma década de mudanças na opinião pública. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo e Edições Sesc, 2013. PLOU, Dafne Sabanes. Novos cenários, velhas práticas de dominação: a violência contra as mulheres na era digital. In: Internet em código feminino: Teorias e práticas. NATANSOHN, Graciela (org.). Buenos Aires: La Crujía, 2013. Disponível em: http://gigaufba.net/internet-em-codigo-feminino/. Acesso em 23 junho 2014.

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Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

Capítulo 7 Comunicação: Inquietações da Área Emanuelly Silva Falqueto1

Introdução Realizar pesquisa sobre e em comunicação requer que tenhamos, mesmo que não esquematizada sistematicamente, alguma noção sobre o que seja a área. ­Teoricamente,

1. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita (FAAC-UNESP), na linha de “Processos Midiáticos e Práticas Socioculturais”. Possuo pós-graduação latu sensu em Comunicação e Semiótica (2014) pela Universidade Estácio. Graduação em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo (2011) pela Universidade Federal do Acre (UFAC). Participo do grupo de pesquisa “Mídia e Sociedade” da UNESP. Atuei profissionalmente nas áreas de produção televisiva, produção de matéria para impresso e web e organização de eventos. Email: [email protected] 211

o conhecimento científico produzido acerca de uma área deveria abordar e discutir conceitos e questões imanentes da própria área. Mas, tal ponto é nebuloso, contraditório e repleto de melindres ao tratar-se da Comunicação como área do saber. Pois, a Comunicação carece de uma base identitária compartilhada pelas várias frentes de pesquisa empreendidas em seu nome. Mas, diante do nosso cenário – as transformações nos processos comunicativos pela presença maciça dos meios e dispositivos tecnológicos que fazem a obsolescência ser certeza sobre o destino das questões que nos cercam – será que uma base compartilhada pelos pesquisadores não se tornaria uma camisa de força, que sufocaria a observação e análise apenas em procedimentos a serem seguidos? Diante do exposto, das dúvidas que nos rondam faz-se necessário discutirmos algumas questões que ainda assombram a área. Mesmo que tomemos como definição a indefinição. Mesmo que discordemos e desqualifiquemos essa reflexão como um labirinto sem saída que atrasa o desenvolvimento das pesquisas. Ou até que já partamos do pressuposto que é uma questão resolvida. É importante compreendermos que essa problematização ainda suscita debates e pesquisas e faz parte da composição histórica identitária da Comunicação como área do saber. Afinal, esta discussão nos permite conhecer as fragilidades, fronteiras e problemas que não podemos ignorar, para que não desemboquemos em uma construção científica anacrônica e tautológica. Então, apresentamos neste trabalho a discussão sobre tais questões. Antes, porém, explicitamos que não se 212

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

trata de definição ou enquadramento, mas apontamentos reflexivos sobre as dificuldades encontradas na área, a partir da exposição de alguns pensadores/pesquisadores, na tentativa de colaborar com a construção das problematizações comunicativas. O texto não pretende ser um tratado epistemológico da Comunicação, apesar de trazer alguns dos problemas epistemológicos da área. Mas, esforça-se por mostrar a discussão de maneira didática. Tecer uma breve sistematização, para pincelar os problemas sobre a consolidação da Comunicação como uma área do conhecimento. Procuramos, portanto, a compreensão didática das dificuldades que para alguns é considerada apenas fantasmagórica que nos deparamos quando propomos fazer pesquisa em comunicação. Como a delimitação de fronteiras da pesquisa comunicativa, diante dos nossos objetos imbricados nos contextos e processos sociais, culturais, econômicos e históricos. Existe objeto específico da Comunicação desprendido do escopo contextual que o cerca? Qual é o objeto de pesquisa dessa área? A Comunicação tem ou não uma estrutura teórico-metodológica própria? Ela deve manter a interdisciplinaridade? Mas, a interdisciplinaridade não pode enfraquecer a área como campo de pesquisa autônomo? Inquietações que permeiam todo o texto, não na pretensão de estabelecermos definições. Mas, no intuito de acrescentar ao debate acadêmico uma análise para integrar o conjunto das investigações acerca da comunicação enquanto área do saber científico. Fica cada vez mais evidente o quanto os meios de comunicação exercem 213

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

efeitos socializantes e o quanto estamos nos relacionando mediados pelos veículos de comunicação e dispositivos de informação (SODRÉ, 2002). Os meios de comunicação divulgam representações que chegam aos mais diversos cantos do globo. Desse potencial mediador e da capacidade de atingir milhões advêm a preocupação com o papel da comunicação na nossa vida.

Problemas na e da Comunicação Propomos debater sobre os questionamentos em torno da autonomia da Comunicação como área do saber através da observação dos seguintes pontos nevrálgicos: a interdisciplinaridade, o objeto de pesquisa comunicativo e a constituição metodológico-teórica da área. A Comunicação vivencia esta crise de identidade por não conseguir estabelecer um consenso entre aqueles que a pesquisam sobre as definições desses elementos. Pois, como não podemos apreender a Comunicação, devido a sua confluência e relação com outras áreas e também por sua imaterialidade acaba-se gerando múltiplas interpretações e definições. Um dos poucos consensos, se não o único, é de que a área é bastante variada: objetos de pesquisa, metodologias, domínios temáticos, abordagens, interpretações... tudo, no campo comunicacional, parece ir ao encontro da diversidade e da polêmica, salvo a própria constatação da diversidade mesma. (MARTINO, 2006, p.44)

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Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

Há diversidade de compreensão sobre a nossa área e de seu estatuto epistemológico. Martino (2006) chama a Comunicação de área do conhecimento em formação, mostrando que a dificuldade de caracterização e consolidação vem da própria abrangência existente nos processos comunicativos, que se relaciona com diversas outras disciplinas e âmbitos da nossa rotina. É natural, então, que tenham sido formadas compreensões muito variadas sobre as teorias e mesmo sobre a própria natureza do processo comunicacional, o que praticamente inviabiliza qualquer trabalho de síntese e deixa pouco espaço para afirmações categóricas. (MARTINO, 2006, p.34)

Interdisciplinaridade O debate da interdisciplinaridade na Comunicação trata-se de questionar em que medida as questões trabalhadas com a interdisciplinaridade são comunicativas ou pertencem a outras áreas do saber. É fácil compreender a interseção da Comunicação com a antropologia, sociologia, psicologia, mas desvencilhar, encontrar o objeto comunicativo é um processo que caminha na linha tênue, do isolamento dos contextos acrítico e o risco de se perder da Comunicação. Além de tentar compor teorias e metodologias que sejam próprias e deem conta dos problemas de pesquisa, pois, a maioria das teorias

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Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

da Comunicação e os procedimentos metodológicos que usamos são de outras áreas, ou seja, interdisciplinares. Muitos teóricos contemporâneos equivocadamente entendem a formulação do campo comunicacional como o somatório dessas iniciativas e suas correntes de estudo, tomando-as como peças de um impossível quebra-cabeças, cuja solução nos daria a unidade da “ciência da comunicação”, ou simplesmente, se contentam em denunciar essa impossibilidade de síntese, apelando para o plural (ciências da comunicação), de modo cômodo e irrefletido. (MARTINO, 2006, p.37)

José Luiz Braga (2001) critica o uso da interdisciplinaridade na Comunicação, quando os objetos e abordagens acabam sendo de outra área e disciplina. “É como se este fosse uma espécie de terreno vazio, sem outra existência senão pelo fato de que todas as disciplinas humanas e sociais tivessem alguma coisa a dizer sobre o tema” (BRAGA, 2001, p.13). Mas, afirmar que a solução seria o uso da interdisciplinaridade como uma interface para consolidação e consistência teórica das pesquisas.

Ser ou não ser: o objeto da comunicação O problema da interdisciplinaridade da comunicação permeia toda a composição dessa área, inclusive a definição do objeto comunicacional. Porque se não nos 216

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

a­ termos acabaremos tomando objetos de outras disciplinas, como estudos dos comportamentos, sociológicos, culturais. É uma questão de delimitação de fronteira, onde perdemos o objeto comunicacional e nos apropriamos de objetos de pesquisa de outras áreas. Mas, as pesquisas realizadas mostram uma multiplicidade de objetos e recortes. Portanto, é insensato taxarmos a comunicação estabelecida através da mediação técnica como único objeto. A velocidade de processamento, entre a descoberta do objeto e sua análise, é muito aquém do necessário, pois, o que era considerado processo comunicativo ontem, hoje já não é mais. Os objetos comunicativos aparecem/transformam-se mais rápido do que a capacidade acadêmica de acompanhar. Braga (2001) agrupa os objetos que são pesquisados em: os que se portam como holísticos, procurando dar conta de tudo e os objetos específicos. O pesquisador argumenta que o objeto holístico por considerar tudo como comunicação acaba não sendo nada, um objeto inapreensível de tão diluído que está o universo. “A comunicação, espalhando-se como objeto por todas as áreas, estando em todas as pautas, não está em nenhum lugar” (BRAGA, p.14). Enquanto a eleição de objetos específicos pode acarretar consequências tais como a exclusão de outras pesquisas que não compreendam como objeto aquilo que foi posto como certo. Por sua vez, isso gerará investigações setorizadas e que se opõem entre si, cada frente trará/desenvolverá sua concepção de comunicação. Além disso, temos que considerar as novas maneiras de pensar e discutir a comunicação. Objetos de pesquisa 217

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

que eram considerados periféricos ou até marginalizados, por exemplo o futebol, estão sendo incluídos nas pesquisas, na tentativa de abarcar as transformações nos meios tradicionais de comunicação. Baitello Junior ao expor os avanços do financiamento nas pesquisas em Comunicação pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, FAPESP, aponta para essa diversificação dos objetos, pelo menos no que se refere ao cenário das pesquisas financiadas pela FAPESP no Estado. Enquanto antes se falava quase exclusivamente de jornalismo impresso, hoje a diversidade temática, a quantidade de projetos que lidam com os novos meios de comunicação ao lado da televisão e rádio, também internet, websites, redes sociais, twitter, games, websites, blogs, animês, cosplay, - está crescendo exponencialmente. (BAITELLO JUNIOR, 2015, p.20-21)

Problema teórico-metodológico Ainda dentro dos desdobramentos ocasionados pela interdisciplinaridade nos deparamos com a constituição de modelos teóricos-metodológicos próprios da área. Pois, por recorrermos a outras disciplinas acabamos utilizando teorias e métodos que não foram desenvolvidos tendo como foco as questões pertinentes à Comunicação. França (2010) explica que da relação entre teoria e prática é que emerge o objeto a ser estudado. A r­ ealidade 218

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

nos apresenta os problemas/questões e somente a partir de uma organização sistemática, que siga estruturas de pensamentos pode-se fazer dos problemas advindos da realidade um objeto científico. Então, depois, da apreensão daquele objeto fazemos a compreensão, interpretação e geramos conhecimento que retorna para a realidade, no circulo que a pesquisa estabelece de retroalimentação. Ao servir-nos com material teórico alienígena, confeccionado em outra realidade, em contextos e tempo histórico diferentes, estamos contribuindo e fazendo pesquisa em Comunicação? Nossas pesquisas, por vezes, são amparadas em teorias aplicadas a objetos fora dos contextos temporais e espaciais originários daquele pensamento. Mas, se não recorrermos a outras visões nosso objeto não ficaria desconectado das relações sociais que o compõem, gerando um conhecimento isolado que não pode ser aplicado? Pois, foi montado em situações não compatíveis com a práxis. O pesquisador Martino (2006) enfatiza que a Comunicação carece de teoria própria. “Em nossa área estamos longe de ter um corpus teórico mínimo, reconhecido como constitutivos do saber comunicacional. A dispersão teórica é realmente notável e marcante” (MARTINO, 2006, p.47). Enquanto França (2010) elenca como as dificuldades para o estabelecimento de um aparato teórico-metodológico sólido para a área da comunicação; a predileção da atividade prática em vez do desenvolvimento da temática acadêmica, O próprio espaço acadêmico foi inaugurado ou estimulado por um investimento de ordem 219

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

pragmática: cursos profissionalizantes na área de comunicação – (o de jornalismo, sobretudo) – antecederam a criação das teorias, que vieram quase a reboque, complementando a formação técnica e abrindo-a para sua dimensão humanista e social. (FRANÇA, 2010, p.48)

Outra razão apontada por França (2010) é a diversidade empírica da comunicação, bem como a constante mutação das práticas comunicativas que geram um objeto em permanente mudança. Por fim, a heterogeneidade dos suportes teóricos usados em sua compreensão, De tal maneira que aquilo que chamamos “teoria da comunicação”, principalmente em seus primórdios, apresenta-se como um corpo heterogêneo, descontínuo e mesmo incipiente de proposições e enunciados sobre a comunicação, fruto de investigações oriundas das mais diversas filiações (sociologia, antropologia, psicologia, entre outras) – cada uma refletindo o olhar específico e o instrumental metodológico de sua disciplina de origem. Essa herança heteróclita tanto enriquece os olhares quanto dificulta a integração teórica e metodológica do campo. (FRANÇA, 2010, p.40-50)

A partir da concepção de comunicação como impalpável, Marcondes Filho (2008) também nota os objetos comunicativos em constante transformação. Observando que é preciso ter ferramentas teóricas metodológicas não engessadas que possam acompanhar esse dinamismo. 220

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

Para investigar o acontecimento comunicacional reconhecendo que a comunicação é um enigma, que não se materializa empiricamente, que não se constitui nenhum objeto que permita apreensão automática e duradoura, o procedimento de pesquisa deve ser tão ágil quanto seu objeto. Optamos, assim, por operar com um “quase-método”, que se propõe a capturar o transitório, a aceitar o desafio da apreensão daquilo que não se consolida. (MARCONDES FILHO, 2008, p.57)

Devido à falta de Teoria originalmente da Comunicação. Os manuais teóricos são todos elaborados com base em teorias de diversas áreas, com uma seleção arbitrária e pouco explicativa ou crítica quanto à seleção de uma ou outra corrente para composição da obra. Sodré (2012) apresenta as dificuldades teóricas de constituição do campo da comunicação, declarando que as argumentações teóricas sobre a comunicação foram construídas baseadas na abordagem dos efeitos dos meios de comunicação. Esta é de fato a via teórica trilhada pela maioria das pesquisas e obras reflexivas sobre a comunicação. Configura-se como um paradigma, no qual se encaixam desde as teorias mais antigas até as mais recentes como a da recepção ativa, a do contexto social, a do contexto institucional da comunicação, a do impacto das mensagens midiáticas na organização das opiniões e das crenças etc. Até mesmo as concepções politicamente ativistas ou praxiológicas da ­comunicação (ou seja, que concebem comunicação como

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Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

i­nstrumento para a consecução de fins sociais), orientadas para a esquerda ou para a direita, entram nesse paradigma. (SODRÉ, 2012, p.12)

Enquanto Rosana de Lima Soares (2007) Destaca que a maioria dos trabalhos em comunicação empregam teorias que de uma forma ou de outra acabam vinculadas ao modelo clássico de comunicação (emissor-mensagem-receptor), não condizente com o cenário atual de produção do conteúdo comunicativo. Lembrando-nos da declaração taxativa de Marcondes Filho (2008) de que “As teorias da comunicação estão cansadas” (p.51), e conjugando a isso as mudanças nos processos comunicativos ocasionadas pelas tecnologias e processos, jogamos mais uma incerteza no apanhado de problematizações postos até agora. Esse aporte teórico é capaz de compreender todo esse cenário? O mundo tecnológico deu saltos extraordinários e as teorias ficaram obsoletas. É hora de se pensar numa teoria que alcance seu objeto, que seja tão ágil quanto ele, que procure, pelo menos, caminhar segundo seu ritmo. É hora de refazer toda a teoria da comunicação. (MARCONDES FILHO, 2008, p.51)

Pesquisas em Comunicação no Brasil Compreendemos que tais desdobramentos não advêm puramente do debate e epifania científica, a 222

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

­ aneira como surge a formação acadêmica voltada para m a Comunicação contribui também. O cenário brasileiro apresenta-se como âmbito onde primeiro formou-se o mercado depois os centros de formação desses profissionais para então estabelecer as pesquisas. Marque de Melo (2011) elucida que as primeiras faculdades nascem no início do século XIX como centros de formação para o mercado onde se transmitia conteúdos de outros países. “Não foi tranquila a implantação dos estudos comunicacionais nas universidades brasileiras. Resistências corporativas impediram sua rápida evolução. Preconceitos intelectuais retardaram sua legitimação social” (MARQUES DE MELO, 2011, p.18). Com o desenvolvimento dos cursos de pós-graduação a “[...] comunicação deixa de ser um campo tipicamente profissional para se converter em área acadêmica, legitimada pelo sistema nacional de fomento à ciência e tecnologia” (MARQUES DE MELO, 2011, p.20). Atualmente acontece nas Universidades públicas do Brasil a implementação da mudança na grade curricular dos cursos de graduação para tornar os cursos mais atrativos, diminuir a evasão escolar e capacitar melhor o discente para os desafios que irá enfrentar na sua carreira profissional e/ou acadêmica. Contudo, apesar da proposta ambicionar dar mais identidade as faculdades e setores de atuação da Comunicação, como o jornalismo, a publicidade, a relações públicas, o cinema entre outras, a mudança tira a grande área, a Comunicação, deixando as graduações mais específicas. Mas, essa é a solução? Essa medida não vai gerar uma concentração 223

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

na ­ formação universitária voltada amplamente para a prática e ignorar as reflexões sobre a Comunicação? Correremos o risco que Sodré (2012) mostra da academia tornar-se lugar de reprodução e não produção. Em alguns casos, no ensino público, tenta-se romper com o campo dito comunicacional, priorizando o jornalismo como ciência centralizadora, mas sem dizer com clareza o que se entende por ciência, fora dos chavões positivistas. É igualmente comum que as disciplinas teóricas dos currículos espelhem simplesmente os particulares interesses acadêmicos dos docentes, às vezes sem um laivo qualquer de coerência epistemológica. (SODRÉ, 2012, p.25)

Enfim, comunicação Diante das questões e inquietações apresentadas, buscamos apresentar algumas formulações no sentido de instigar a reflexão crítica sobre a Comunicação como área do conhecimento. Para então, podermos lidar com nossos objetos e procurar estabelecer um caminho teórico-metodológico cientes de todos os obstáculos e brechas no percurso. A princípio, aderimos ideia da comunicação como impalpável, não é um objeto constituído de matéria física. França (2010) assim como Ciro Marcondes (2008) lançam a argumentação sobre a imaterialidade da comunicação e seus processos.

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Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

A comunicação derruba o estatuto da metafísica, a ideia historicamente consolidada de que no processo comunicacional estejamos diante de um fenômeno capturável, apreensível e compreensível, que através dos estudos de jornalismo, cinema, televisão e internet, cheguemos à natureza do fenômeno comunicacional, tenhamos “isolado seu objeto”, tenhamos apreendido efetivamente a coisa (MARCONDES FILHO, 2008, p.52).

Compreendemos que a comunicação não é mera transmissão de um polo ao outro. Essa visão carrega o reducionismo de pensar a área apenas em termos de transferência. Reducionismo superado na década de 30, com as pesquisas administrativas que revelaram, até para a pesquisa com objetivos mercadológicos, que não acontece uma simples transmissão nos processos de comunicação. Assim, consideramos a comunicação um processo, sujeito às intempéries que constituem a sociedade e as transformações, até as evoluções da técnica e tecnologia. Isso implique pensar no que o aparato técnico que media alguns processos de comunicação altera as dinâmicas e processos sociais. Outra premissa que pretendemos apontar é a de que a comunicação só é compreensível no interior da cultura. Ela é algo que produz sentido e está imbricada nos processos de socialização, e, consequentemente, de formação de identidades e conhecimento acerca do que consideramos como mundo e realidade. A comunicação tem “[...] reconhecidamente um lugar hegemônico no que concerne aos processos de socialização e de 225

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

c­ onformação de identidades coletivas” (RIBEIRO, 2004, p.6). Masi e Pepe (2003) ao abordarem o conceito da comunicação a enxergavam como parte existente nos processos sociais. Em particular, a comunicação veio a ocupar um papel central na caracterização dos fenômenos sociais, acompanhando, de um lado a difusão dos jornais, da rádio, da televisão, ou seja dos modernos sistemas de comunicação de massa, dos mass media, de outro, o desenvolvimento daquelas tecnologias de transmissão e elaboração de sinais contínuos e (sobretudo em tempos mais recentes) discretos, de base incialmente eletromecânica e, em seguida microeletrônica, que configuram os vários meios da comunicação (as disciplinas relevantes neste campo são a cibernética, com a teoria da comunicação e da informação, a informática, a engenharia de telecomunicações e a telemática, que absorve as duas últimas) (MASI, PEPE, 2003, p.111).

Edgar Morin (1997) já expunha no século passado que a cultura está ligada de maneira estrita com os meios de comunicação, esses por sua vez, realizam a industrialização do simbólico colonizando e interagindo com cada um para a estruturação das identidades, através das suas mensagens que estimulam relações de identificação e projeção. O pensador argumentava que as representações espetaculares incitam a identificação do espectador com o que está sendo mostrado como

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Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

modelo, seja o modelo de conduta, de romance, ou de parecer os personagens bem sucedidos das narrativas. Simultaneamente, as representações convidam a projeção nas imagens/representações que não podem ser concretizadas por ficarem no plano do imaginário. No meio de todas essas projeções funciona uma certa identificação; o leitor ou o espectador, ao mesmo tempo em que libera fora dele virtualidades psíquicas, fixando-as sobre os heróis em questão, identifica-se com personagens que, no entanto, lhe são estranhas, e se sente vivendo experiências que contudo não pratica. (MORIN, 1997, p.82)

Dialogando com tais ideias podemos confirmar a coerência no sentido de que a terceira cultura, como denominou Morin (1997), oriunda “[...] da imprensa do cinema, do rádio, da televisão, que surge, desenvolve-se, projeta-se, ao lado das culturas clássicas – religiosas ou humanistas – e nacionais. (p.14)” foi evoluindo, ou seja, transformando-se, intensificando-se e modernizando-se conforme ocorriam os avanços das técnicas dos processos sociais. Isso gerou uma ampliação vertiginosa nas formas de comunicação: aumentando velocidade, eliminando distâncias, colocando à disposição um caudal de plataformas, meios, técnicas para realização e transmissão de informações. Essa capacidade de alcance e potencialidade do discursivo dos meios de comunicação os convertem em ferramentas/formas influentes na viabilização das discussões, e o fornecimento de conteúdos diversos, dados e modelos de identidade. 227

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

Os sentidos veiculados pela comunicação são constituídos baseados na cultura e nas relações sociais, estabelecidas em conformidade com os costumes e normas vigentes do período histórico em que estão situados. Afinal, na configuração social atual do Brasil não teria relevância a circulação de informações sobre maneiras de controlar um escravo ou manter submissa sua mulher/esposa. Pois, a cultura evoluiu e os processos de comunicação não podem ater-se a coisas que já não fazem parte da vivência social. Se trouxerem representações que não dizem respeito ou não tenham ligação com a realidade na qual estão imersos seriam inúteis na função de mediar. As representações geradas dessa relação imbricada entre sentidos sociais, culturais, históricos e os meios de comunicação trazem noções sobre as identidades. “Uma concepção distributiva considera as representações mentais, os processos sociológicos e as representações mediáticas como instâncias que incidem umas sobre as outras e retroagem, de forma dinâmica” (SOARES, 2009, p.23). A Comunicação apresenta-se/expressa-se por meio das representações, feita através do discurso composto pela linguagem que também opera como representação, formação (no sentido de dar forma) ao pensamento. Mediante esses discursos representativos estabelecemos relações sociais e vice-versa. Os processos de comunicação mediados por técnicas, equipamentos, pessoas e empresas/instituições estabelecem, usando seus produtos representacionais, relações com as pessoas. Essas lidam com as mensagens transmitidas desvendando-as segundo suas práticas significantes construídas ao longo 228

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

dos discursos vivenciados historicamente, social, cultural como também os discursos midiáticos. Dessa forma, usando os sentidos gerados por meio de processos comunicativos, sejam eles convencionados culturalmente ou fornecidos pelos meios de comunicação, elaboramos pensamentos, concepções e ações, que por sua vez, vão tornar-se elementos culturais, que os meios de comunicação utilizam nas suas construções discursivas. Também para pensarmos e pesquisarmos a Comunicação temos que considerar o contexto atual de transformações, além dos obstáculos ou dependendo da perspectiva pontos de partida apresentados sobre a indefinição da área. Porém, apesar dessas transformações que podem ser interpretadas como estabelecimento de processos democráticos e participativos, a Comunicação ainda faz parte do capitalismo. Para começar, o capitalismo financeiro e comunicação formam hoje, no mundo globalizado, um par indissolúvel. O capitalismo contemporâneo é ao mesmo tempo financeiro e midiático: financeirização e mídia são as duas faces de uma moeda chamada sociedade avançada, essa mesma a que se vem apondo o prefixo pós (pós-industrialismo, pós-modernidade etc.). Se antes a comunicação e a informação, sob a égide da sociedade produtivista, podiam ser analisadas como despesa extra do capital, hoje elas têm lugar de destaque no processo de unidade do conjunto, com biombo da financeirização, isto é, de um novo modo de ser da riqueza. (SODRÉ, 2012, p.16) 229

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

Como afirma o pensador brasileiro “[...] ela tornou-se uma questão importante para o equilíbrio social, cultural e político da polis colocada sob o império das finanças” (SODRÉ, 2012, p.22-23). Masi e Pepe (2003) também observam essa configuração: Na sociedade da informação, em suma, as relações sociais parecem cada vez mais reduzidas a relações econômicas: cada coisa, cada serviço é caracterizado por seu custo (único reflexo de seu valor traduzido em termos econômicos) e por quem o paga, enquanto os outros valores, aqueles não redutíveis a termos econômicos, como os valores mais especialmente sociais e humanos, não apenas são registrados no plano institucional, mas tendem a assumir conotações distorcidas e regressivas. (MASI, PEPE, p.137)

Portanto, ao nos depararmos com o desafio de fazer pesquisa em Comunicação temos que nos questionar: qual nosso incômodo comunicativo? Considerando o papel central dos processos comunicativos nos fenômenos sociais. E, que ela só pode ser compreensível em seus contextos, sociais, culturais, econômicos e histórico.

(In) Conclusão O pensamento comunicacional ainda é questionado enquanto área autônoma do conhecimento científico. É uma área que carece de unidade, mas será? Um estatuto da área 230

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

comunicativa não deixaria a pesquisa engessada? Sem tais definições não somos levados a questionar os limites ou ausência deles e incentivar o pensamento crítico em relação a Comunicação como área? Ao nos propormos mergulhar no devir contínuo, corremos o risco crasso de perdermos de vista o objeto e a construção de conhecimento para a área. Contudo, ater-se a questão da falta de uma identidade delineada e usar isso como empecilho para encontrar a comunicação enquanto área do conhecimento é perder rumo da prosa na pesquisa, pelo menos, das realizadas no âmbito das pós-graduações em Comunicação. Pretendíamos ao delinear algumas inquietações da área da Comunicação nos conscientizar dos percalços e desafios inerentes da pesquisa a ser empreendida nessa área. Pois, por mais que não discutamos propriamente a definição da Comunicação como um conhecimento científico, nossos trabalhos serão avaliados a partir do que seja considerado Comunicação, enquanto saber próprio. Portanto, estando alertas sobre essas problematizações poderemos tentar construir objetos comunicacionais conscientes das suas limitações e diluições em outras áreas do conhecimento. No espectro de questões não respondidas nesse trabalho, o conselho acadêmico que recorremos é o p ­ roposto por José Luiz Braga (2001), é necessário um trabalho de desentranhamento do objeto da comunicação que tragam nossos incômodos comunicativos. Compreendendo que não se trata de um objeto interdisciplinar, mas entendermos que os processos comunicacionais são complexos em suas interações. 231

Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

Para a consolidação da Comunicação é preciso que pesquisadores façam uma reflexão continuada para demonstrar o objeto comunicacional dos demais conhecimentos sociais e/ou humanos. Buscando o que há de comunicacional no campo das diversas disciplinas humanas. Sendo que o movimento inverso já é feito pelas outras áreas do conhecimento. Essa não deve ser uma discussão estéril e monótona. Deve ter por resultado brechas para que possamos seguir instigando, questionando, pesquisando. Pois, quando tudo está dado e pronto não existe o movimento criativo que produz conhecimento. Se nossa inquietação surge de uma falta, desnecessário dizer que não pretendemos preenchê-la; ao tentar trazê-la para dentro das margens da comunicação, é como falta que queremos fazê-lo, mantendo seu sentido de brecha, abertura. Não pretendemos, portanto, trazer soluções mágicas ou uma fórmula definitiva para pensar a comunicação, mas nos atrevemos a interrogá-la a partir de um ausente: a linguagem e suas implicações no sujeito. (SOARES, 2007, p.130)

Claro que nesse texto não existem respostas, constitui-se muito mais de questionamentos do que definições e delimitações tanto por estarmos no início da caminhada acadêmica, quanto por nos lançarmos na pesquisa de um conhecimento sem uma corporificação material e atingido pela constante e veloz mudança e 232

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

transformação, mais rápido do que o tempo de aquisição e elaboração do conhecimento científico é capaz de acompanhar.

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Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

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Atualizações Conceituais e Circularidades Teóricas

2ª Parte A Comunicação, Meios e Interações

Capítulo 8 Jornalismo e história: o jornal como fonte e objeto dos estudos históricos Aline Ferreira Pádua1

Introdução O verbete fonte pode ser descrito como “Documento ou pessoa que fornece uma informação; Texto de autor considerado como uma referência; Texto ou documento original, usado como referência”, conforme as definições 7, 8 e 9 do Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. Já o termo objeto, entre outras características, aparece 1. Mestranda do Programa de Comunicação Midiática: Processos Midiáticos e Práticas Socioculturais da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP. Possui graduação em Comunicação Social - Jornalismo pela mesma instituição (2014). Desenvolve pesquisa na área de História da Imprensa interiorana, com foco para as publicações de São José do Rio Preto. (Bolsista FAPESP/CAPES). E-mail: [email protected] 237

como o “assunto, matéria, causa, motivo”, na definição 3. Em sentido mais específico encontramos, no Dicionário de Conceitos Históricos (SILVA e SILVA, 2009), o termo fonte, atrelado a palavra histórico, com a seguinte definição: fonte histórica, documento, registro, vestígio são todos termos correlatos para definir tudo aquilo produzido pela humanidade no tempo e no espaço; a herança material e imaterial deixada pelos antepassados que serve de base para a construção do conhecimento histórico. Também objeto, quando pensado como objeto de estudo, está definido, na Enciclopédia Intercom de Comunicação (2010), como aquilo que é utilizado, no campo comunicacional, como material de estudo de origens variadas “começando pelo telegrafo e os jornais, até a internet e a telefonia celular, para não falar do cinema, rádio e televisão”. O estudo desses objetos, segundo a Enciclopédia, deve manter “o foco no caráter mediador de todos esses meios em relação ao processo histórico mais amplo, sobretudo nos aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais”. Esses termos, fonte e objeto, mais especificamente, os papéis por eles desempenhados na relação entre os campos da história e da comunicação, no que concerne à construção da narrativa histórica, constituem a base da discussão que se pretende levantar no presente artigo. Partindo dessa relação, das definições de fonte e objeto e entendendo, como Ribeiro (2000), que o jornalismo exerce importante função na formação da ideia de história, de um lado, indicando os fatos cotidianos que devem ser recordados no futuro e, de outro, por constituir 238

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

em si mesmo um registro tido como “objetivo” de seu tempo, propormos aqui uma discussão acerca do lugar dos meios de comunicação de massa, sobretudo o jornal impresso, na pesquisa histórica. Nosso debate se inicia com uma revisão bibliográfica que situa o jornal impresso em dois polos da pesquisa acadêmica: o lugar de fonte; e o lugar de objeto. Para tanto, nos valemos das contribuições de Barbosa (2007, 2009, 2012), Alves e Guarnieri (2007), Hohlfeldt (2011) e Ribeiro (2000). Tais autores problematizaram a relação entre o campo da história e o campo da comunicação, tratam da ligação deles com o passado, das possibilidades de narrativa histórica, do lugar da mídia nessas narrativas e das perspectivas e desafios para a composição da história da imprensa. Posteriormente, deteremos nossa atenção ao uso dos jornais impressos enquanto objeto de estudo para a narrativa da história da mídia impressa e do jornalismo. Para a compreensão desses estudos, trazemos a análise dos trabalhos publicados nos Grupos Temáticos História do Jornalismo e História da Mídia Impressa no 9º Encontro Nacional de Pesquisadores de História da Mídia, da Rede Alcar, realizado na Universidade Federal de Ouro Preto, em 2013 e no XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, da Intercom, ocorrido em Foz do Iguaçu, em 2014. Para o estudo foram considerados os 65 artigos publicados no Grupo Temático (GT) História do Jornalismo da Rede Alcar, os 46 trabalhos do GT História da Mídia Impressa da Rede Alcar e os 30 papers do GT História do 239

A Comunicação, Meios e Interações

Jornalismo da Intercom. Nossa análise busca entender, quantitativa e qualitativamente, a presença dos jornais impressos como objeto nos estudos atuais de história da comunicação e do jornalismo. Para isso, tabulamos dados referentes ao objeto utilizado nos trabalhos publicados, temática abordada, período temporal da pesquisa e metodologia de estudo.

A imprensa e a escrita da história Ao abordar a relação entre história e comunicação, há que se considerar, inicialmente, como exprime Marialva Barbosa (2007), o “universo de possíveis” que a envolve. São múltiplas as formas de se fazer história, de se fazer comunicação, de considerar cada campo. Assim, múltiplas, são também as formas de visualizar história e comunicação em relação uma à outra. O olhar teórico e metodológico que cada campo faz dessa relação é o que Barbosa estabelece como um “universo de possíveis”. De um lado, a comunicação enxerga a história como possibilidade de adentrar o passado e nele recuperar fontes que possam trazer o passado para o presente, do outro, a história considera enfaticamente os meios de comunicação como ferramentas para a compreensão mais ampla do que está localizado no passado. Para Barbosa, esse olhar teórico e metodológico é que determina a forma como a pesquisa será realizada. Considerando o passado como algo que pode ser recuperado a partir de rastros, as fontes e os documentos que 240

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

chegam do passado até o presente serão privilegiados na análise. Por outro lado, se o que chega do passado é visualizado como vestígios de memória, permanentemente modificados e atualizados, o que ganhará destaque é a capacidade de narrativa ou invenção narrativa. Na relação entre os campos, como defende Barbosa, história é comunicação e comunicação é história. Assim, ao se fazer história do jornalismo e da comunicação produz-se, também, história, por meio da demarcação de temporalidades, definição de significados do passado da comunicação e da constituição de seu contexto (BARBPSA & RIBEIRO, 2009). É a partir de restos e vestígios, ou seja, de fontes históricas, que chegam até nosso tempo, que podemos recontar as histórias que envolvem particularmente os atos comunicacionais do passado. É assim que a história, que afinal é comunicação, se torna história da comunicação. Em sentido inverso, quando o objetivo é recuperar a historicidade dos meios de comunicação em determinado espaço e tempo, é preciso estabelecer sentidos a partir das narrativas próprias de outros tempos e que chegaram até nós sob a forma de rastros. No olhar que se lança para a história como comunicação, segundo Barbosa, duas noções teóricas são fundamentais: a questão da narrativa e a noção de rastro e vestígio. Por sua vez, na visão de comunicação enquanto história, ou mais especificamente, no olhar que se lança para a história dos meios, é fundamental a noção de vestígio. Assim, temos os meios de comunicação em dois polos de pesquisa: o jornal como fonte, como restos e vestígios para a construção da história; o jornal 241

A Comunicação, Meios e Interações

como objeto, como vestígios para narrativa da história dos meios. Foi na segunda metade do século XX que os meios de comunicação passaram a ser tomados como fonte histórica (ALVES e GUARNIERE, 2007; RIBEIRO, 2000). Desde os anos 1930, com os trabalhos iniciais da Escola de Annales, os estudos históricos vinham ganhando novos ares. A visão positivista do fato histórico, em que os jornais eram tidos apenas como porta-vozes de ideologias e interesses políticos, não compactuando com os estudos racionalistas e objetivos da época, perde força e a noção de fonte histórica se amplia. Nesse contexto, o documento deixa de ser apenas o registro político e administrativo, pois para a história interpretativa mais que a veracidade do documento, importam as questões que são remetidas pelo historiador. Como explica Ribeiro, se antes eram considerados válidos apenas os documentos escritos que o historiador pudesse, através da crítica interna e externa, certificar-se da sua autenticidade ou da sua sinceridade e exatidão, agora, qualquer documento – falso ou verdadeiro – é passível de tornar-se uma fonte histórica. Posteriormente, na década de 1960, os adeptos da Nova História modificariam ainda mais o conceito de documento. Essa corrente elegerá cada vez mais como fontes fragmentos do passado, podendo ser estes os mais diferentes objetos e escritos, desde que capazes de indicar acontecimentos específicos (ALVES e GUARNIERE, 2007). Hoje, o fato histórico é visto pelos historiadores não como um elemento objetivo, observável apenas a 242

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

partir dos documentos, mas como um produto de práticas sociais significantes (RIBEIRO, 2000). A mídia assume não somente o papel de fonte para o registro da história, ela passa também, segundo Ribeiro, a ser o principal lugar de memória e/ou de história das sociedades contemporâneas. Com a inserção das tecnologias de comunicação nas sociedades industriais, a história deixou de ter papel central na construção da memória oficial. Para a autora, a partir, sobretudo, do século XXI, os meios de comunicação ocuparam lugar institucionalizado de fala sobre a realidade social. Assim, a história passou a ser aquela que aparece nos jornais, revistas, rádio e televisão, órgãos de comunicação de massa que detêm o poder de elevar os acontecimentos cotidianos ao patamar de fatos históricos. O que fica de fora dos noticiários é visto, pelo consenso social, como sem importância. Tal fenômeno, como acredita Ribeiro, se deve ao desenvolvimento da ideia do jornalismo informativo, baseada nos conceitos/mitos de imparcialidade e neutralidade, surgidos nos Estados Unidos em meados do século XIX, e que se consolidaram no século XX. No Brasil, esses ideais se consolidaram mais tarde, na década de 1950, com as reformas editoriais dos grandes jornais nacionais e a introdução do modelo norte-americano de produção de notícias. Com as novas regras de redação, linguagem e apresentação das matérias, o jornalismo noticioso perdia, supostamente, seu caráter emotivo e participante. Citando Bahia (1990), Ribeiro coloca que “se antes, o ­jornalismo 243

A Comunicação, Meios e Interações

havia sido o lugar do comentário sobre as questões sociais, da polêmica de ideias, das críticas mundanas e da produção literária”, ele passa, a partir daí, a ser o “espelho” da realidade. Assim, o fato jornalístico aproxima-se do fato histórico tal como o definia a corrente histórica positivista: “Localizado em um tempo e em um espaço determinados, o fato é marcado pela unicidade. O acontecimento único revela-se, então, como o fator da transformação social, como o motor da história” (RIBEIRO, 2000). Ainda segundo expõe Ana Paula Goulart Ribeiro, o jornalismo exerce papel importante na formação da ideia de história. De um lado, porque ele indica dentre todos os fatos da realidade, da cotidianidade, aqueles que devem ser recordados no futuro, de outro, por se constituir em um dos principais registros “objetivos” do seu tempo, podendo ocupar também lugar de objeto. Ao tomar os meios de comunicação, mais precisamente a imprensa escrita, como fonte para a pesquisa, é preciso segundo Luca (2005), considerar algumas questões teórico-metodológicas. A autora apresenta, então, algumas indicações para o pesquisador que deseja se debruçar sobre arquivos periódicos. Como primeiro passo, para a autora, está a observação da materialidade do impresso. Deve-se ter em vista a variação na aparência das folhas, fator resultante dos métodos e técnicas de impressão disponíveis num dado momento e lugar em que se produziram tais periódicos. Luca expõe que “[...] Nas páginas dos exemplares, inscreve-se a própria história da indústria gráfica, dos prelos 244

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

simples às velozes rotativas até a impressão eletrônica. O mesmo poderia ser dito em relação ao percurso das imagens, que se insinua de forma tímida nos traços dos caricaturistas e desenhistas, e chega a açambarcar o espaço da escrita com a fotografia e o fotojornalismo” (LUCA, 2005).

O olhar para fonte requer, segundo a autora, ter em conta as condições técnicas de produção utilizadas à época de circulação do jornal, bem como os fatores sociais e históricos que propiciaram a seleção de um ou outro modo de produção entre os que se dispunha. O pesquisador que trabalha com a imprensa como fonte deve, também, investigar aspectos como: a forma que os impressos chegaram às mãos dos leitores; aparência física do impresso (formato, tipo de papel, qualidade de impressão, capa, presença/ausência de ilustrações); a estruturação e divisão do conteúdo; relações que manteve (ou não) com o mercado, a publicidade, o público. Esses fatores, ligados às condições materiais e técnicas, como ressalta Luca, se relacionam a contextos socioculturais determinados que permitem situar a fonte em um grupo ou série de fontes impressas com as mesmas características. Tendo em vista que o pesquisador que utiliza periódicos como fonte trabalha com aquilo que se tornou notícia/propaganda, Tânia Regina Luca aponta a necessidade de se observar os critérios de noticiabilidade que transformaram um fato em notícia e as motivações

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A Comunicação, Meios e Interações

que levaram a dar espaço a um e não a outro tema. Para tanto, deve-se observar que tipo de destaque se deu ao ocorrido, ou seja, em qual espaço do periódico foi publicado, já que o espaço ocupado pela notícia informa muito da intencionalidade dos agentes responsáveis por sua publicação. Ainda, segundo as indicações de Luca, é importante identificar cuidadosamente o grupo responsável pela linha editorial do veículo, suas relações políticas, econômicas e sociais, os ideais que defendem. Também as redações podem ser consideradas como espaços que reúnem diferentes posicionamentos políticos, estéticas e linguagens de redação, compondo redes que conferem estrutura ao campo intelectual e permitem refletir sua formação e estruturação. Por fim, a autora defende que a utilização da imprensa como fonte não se limita a pesquisa de um ou outro texto isolado, mas vai além, requer uma avalição minuciosa do seu lugar de inserção e delineia, assim, a imprensa em uma abordagem que a faz, ao mesmo tempo, fonte e objeto de pesquisa. Por sua vez, Antonio Hohlfeldt (2011), abordando mais especificamente o jornal como objeto, trata das perspectivas e dos desafios para compor uma história da imprensa e indica “o que o pesquisador precisa saber e a que deve se dispor”. Como primeira observação, o autor coloca que, se de modo geral, qualquer pesquisa implica uma grande articulação coletiva que ultrapassa tempo e espaço, na pesquisa histórica, isso se torna ainda mais necessário. Conhecer o chamado “estado 246

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

da tarde”, as “coisas primeiras” do campo de pesquisa, por meio de uma revisão aprofundada, é fundamental, sobretudo nesse tipo de pesquisa, para sabermos “onde nos encontramos, de onde vamos sair e, assim, melhor esboçar onde queremos chegar” (HOHLFELDT, 2011). Ter a consciência de que a pesquisa envolve estratégias materiais nem sempre claras, não se referindo apenas às questões intelectuais, é o segundo problema que o pesquisador deve ter em conta ao trabalhar na composição da história da imprensa. Esse problema, muitas vezes difícil de ser resolvido, deve-se à precariedade e deficiência, em geral, dos arquivos e museus brasileiros. O autor cita como exemplo, o “Museu de Imprensa Hipólito José da Costa”, em Porto Alegre (RS), fruto de fusões de diversas instituições culturais, que ao longo de décadas, armazenaram de formas variadas as publicações de imprensa. Como resultado, têm-se coleções em péssimo estado de conservação, com algumas já retiradas de consulta. Cada pesquisa exige infraestrutura própria, que varia conforme as condições de conservação e disponibilização do material que compõe o corpus do estudo. Isso significa, consequentemente, dinheiro, tempo, trabalho, por vezes em equipe, além de soluções técnicas nem sempre dominadas pelo pesquisador. Por outro lado, destaca Hohlfeldt, com o avanço da tecnologia, o maior desafio para o pesquisador deixou de ser o acesso aos antigos exemplares de jornal. Diferentes instituições, como exemplo, a Biblioteca Nacional, reuniram coleções ao longo do tempo e vem trabalhando em sua 247

A Comunicação, Meios e Interações

­ igitalização, fator que facilita e garante o acesso permad nente ao material. Outro fator importante é o cuidado necessário na leitura e interpretação dos jornais antigos. Para Hohlfeldt, ler jornais antigos nos obriga, a partir de nosso olhar contemporâneo, tentar compreender os princípios que nortearam aquelas publicações, não pretendendo aplicar padrões e conceitos do jornalismo do presente ao jornalismo do passado. No mesmo sentido, Alves e Guarniere indicam a relevância de se fazer críticas internas e externas aos documentos impressos, procurando observar o ambiente em que foram produzidos, a que tipo de sociedade estavam vinculados, quais os valores e circunstâncias da época. Esse cuidado, para os autores, evitaria o que consideram como “um dos piores pecados do historiador”, o anacronismo. Esse pensamento corrobora com o exposto por Thompson (2008), em Mídia e Modernidade: uma teoria social da mídia. O autor inglês afirma que a comunicação não pode ser entendida fora do seu contexto social, já que este se estrutura de diversas maneiras, influindo diretamente na comunicação de certo tempo e espaço. Considerar a comunicação como uma forma de ação requer analisá-la como tal e, assim, considerar seu caráter socialmente contextualizado, uma vez que por meio dessa ação não só relatamos ou descrevemos o estado das coisas, mas também estabelecemos e renovamos relações uns com os outros. Também como desafio a ser enfrentado temos o que Hohlfeldt chama de “conjunto de critérios de historicidade para escrever uma história da imprensa”, ou seja, 248

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

mecanismos próprios à imprensa, que estejam ligados à evolução do meio e não a acontecimentos externos a ele. Assim, como exemplifica o autor, a periodização da pesquisa não levaria em conta, estritamente, a Independência do Brasil, mas sim, o conjunto de decretos que suspenderam a censura no país, alterando o modo de fazer imprensa. Para o autor, é claro que existem relações e influências entre os fatos históricos, econômicos, tecnológicos, culturais e a história da imprensa em si. Porém, é apenas “enquanto deflagradores de mudanças” ou “enquanto refletindo-se em novas conquistas para a imprensa” que eles vão nos interessar. Fechando seus apontamentos para o pesquisador de história da imprensa, Antonio Hohlfeldt coloca que “Quem se dispuser, pois, a pesquisar a história da imprensa, deve se munir de paciência e tempo; saber que vai enfrentar problemas de localização de coleções; acessibilidade e condições de consulta; qualidade do material disponibilizado eventualmente ainda existente; necessidade de montar espaços e estratégias para documentação, guarda e reprodução do material encontrado; compromisso ético e profissional em se preocupar em dar acessibilidade máxima possível ao material encontrado; continuidade da pesquisa porque, a todo momento, estão sendo publicados novos materiais ou dados a respeito de uma publicação ou de uma época que nos ajudam a entender ou ler melhor determinado periódico ou período. Eu diria, pois, que um verdadeiro pesquisador de história da ­imprensa 249

A Comunicação, Meios e Interações

está dedicado full time a seu trabalho, mesmo quando não esteja diretamente envolvido com ele.” (HOHLFELDT, 2011, p.42)

Narrativas históricas sobre imprensa: trabalhos ­publicados nos eventos da Rede Alcar (2013) e I­ ntercom (2014) Antes de partir para análise dos 141 trabalhos que compõem nosso corpus de estudo, consideramos oportuno apontar o perfil de cada um dos Grupos Temáticos considerados na amostra (GT História do Jornalismo da Rede Alcar, GT História da Mídia Impressa da Rede Alcar e GT História do Jornalismo da Intercom). A Rede Alfredo de Carvalho – Rede Alcar foi fundada em cinco de abril de 2001, na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro. Dois anos mais tarde, em junho de 2003, a entidade realizaria seu primeiro Encontro Nacional, com o tema “Mídia Brasileira: 2 Séculos de História”. O GT História da Mídia Impressa (Jornal, Revista e Livro) figura entre os grupos de trabalhos desse primeiro encontro nacional. O GT História da Mídia Impressa apresenta, hoje, a seguinte ementa: Aborda a história da imprensa como mídia (massiva, erudita ou popular), valorizando sua relevância como mais antigo suporte industrial da informação no Brasil. O grupo tem recebido predominantemente 250

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

trabalhos sobre a produção, a edição e a leitura de jornais, mas está aberto aos estudos sobre revistas, livros, volantes, enfim sobre os processos comunicacionais que fluem através dos impressos brasileiros. No II Encontro Nacional da Rede Alcar, realizado em abril de 2004, aparece o grupo temático História do Jornalismo. Os trabalhos aceitos para publicações nesse GT devem abordar, segundo a ementa, os temas: História do jornalismo: aspectos teóricos e conceituais. Estudos de jornalismo: aspectos históricos. Os jornais como lugares de construção historiográfica. Os jornais como objeto de estudos históricos. Aspectos da conformação do campo profissional. A trajetória histórica do jornalismo e dos jornalistas no Brasil. Estudos de caso referentes a espaços sociais e veículos determinados. Os jornais como fonte historiográfica. A Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação foi criada em 12 de dezembro de 1977, em São Paulo, objetivando o fomento e troca de conhecimentos entre pesquisadores e profissionais da área. Na, entidade, o GT História do Jornalismo surgiu em 2009, com a divisão do Núcleo de Estudos em Jornalismo em áreas de investigação específicas de trabalho. Desde então, o grupo abarca: conceitos sobre história da comunicação e do jornalismo; conceitos e princípios de periodização para uma história do jornalismo; discussões sobre periodizações comparadas entre o jornalismo português, brasileiro e colonial português; estudos específicos sobre determinados períodos; diferentes possibilidades de histórias do jornalismo; discussões 251

A Comunicação, Meios e Interações

sobre os conceitos de imprensa e de jornalismo; personagens da história do jornalismo; publicações; conceitos sobre imprensa e jornalismo que circulam em cada momento; modos de produção do jornalismo em diferentes momentos; diferentes produtos de jornalismo, editorias, conceitos sobre o produto jornal, revista, etc.; desenvolvimento do jornalismo, desde o manuscrito até o ciberjornalismo; relações entre jornalismo, editoração e publicidade/propaganda; presença dos gêneros jornalísticos (sob a ótica histórica). Feito isto, passaremos agora para a apresentação e análise dos dados coletados. Como já exposto, foram tabulados 65 trabalhos do GT História do Jornalismo (Rede Alcar), 46 trabalhos do GT História da Mídia Impressa (Rede Alcar) e 30 trabalhos do GT História do Jornalismo (Intercom), com a observação dos seguintes itens: objeto, temática, metodologia e período. Para tanto, nos valemos da leitura de resumos e introduções dos artigos, bem como da observação das referências bibliográficas utilizadas, nos casos em que algum dos itens analisados, sobretudo, a metodologia, não estavam indicados no texto. O primeiro item observado refere-se ao objeto de estudo abordado pelos artigos. Foram encontrados 18 tipos de objetos nos 141 trabalhos analisados, sendo eles: jornal, revista, jornalismo, mídia, rádio, curso de jornalismo, livro-reportagem, agência de notícia, televisão, narrativa, fotografia, grade curricular, código de ética dos jornalistas, Imprensa, livro, mídia impressa, meios de comunicação e almanaques. O jornal figura como 252

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

objeto mais utilizado nas pesquisas, com 81 artigos. Na sequência, aparece revista, presente em 28 trabalhos, e jornalismo, com seis papers. O jornal figura como objeto mais utilizado nos três grupos temáticos analisados. No GT História do Jornalismo (Rede Alcar) aparece em 40 dos 65 artigos, com percentual de 61,5% de frequência. O GT História do Jornalismo (Intercom) é o que apresenta maior percentual de trabalhos com este objeto, sendo 63,3%, com 19 artigos entre os 30 publicados. Já no GT História da Mídia Impressa (Rede Alcar), jornal é indicado como objeto em 22 dos 46 trabalhos, com frequência de 47.82%. Nesse caso, há pouca diferença na incidência de trabalhos utilizando objeto jornal e revista. Esta aparece em 39,13% dos trabalhos. Nos outros dois grupos, História do Jornalismo (Rede Alcar e Intercom), a utilização da revista como objeto é menos expressiva, representando apenas 10,7% e 10% dos trabalhos, respectivamente. Neste caso, por possuir ementa mais abrangente, os grupos de História do Jornalismo, recebem trabalhos que utilizam objetos diversos, em abordagem mais ampla do universo do jornalismo, aparecendo enquanto objeto de estudo, inclusive, os cursos de jornalismo, a grade curricular, o código de ética profissional, entre outros, como já exposto anteriormente. Já o objeto jornalismo, que aparece como o terceiro mais utilizado nos trabalhos, está presente apenas nos GT História do Jornalismo (Rede Alcar e Intercom), com seis artigos.

253

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

Gráfico 1. Tipos de Objeto (GT História do Jornalismo – Rede Alcar)

Gráfico 2. Tipos de objeto. (GT História do Jornalismo – Intercom)

Gráfico 3. Tipos de objeto (GT História da Mídia Impressa – Rede Alcar)

No segundo eixo de análise, o item temática2, observamos os temas abordados nos trabalhos publicados nos dois grupos de trabalhos da Rede Alcar e um da Intercom que abordam história e jornalismo. Encontramos a ocorrência de 60 temáticas diferentes nos 141 artigos tabulados e analisados. Entre os temas mais frequentes, destacam-se: trajetória de personagem/empresa (14), cobertura de guerra, eleições, tragédias (11), ditadura (10), jornalismo regional e local (7), feminino (6), jornalismo e memória (6), jornalismo internacional (4) e pesquisa histórica (3). Apenas as temáticas “trajetória de personagem/empresa” e “feminino” aparecem nos três grupos de trabalhos. Ao observamos os grupos de trabalho individualmente notamos uma variação de temáticas mais recorrentes. No GT História do Jornalismo (Rede Alcar), que apresenta 65 papers, os temas trajetória de personagem/ empresa e cobertura de guerras, eleições, tragédias, juntos, estão presentes em 21,5% dos artigos, com sete trabalhos cada. Em segundo lugar está o tema ditatura, com cinco artigos e frequência de 7.69%. Na sequência, aparece o tema jornalismo internacional, com quatro artigos e frequência de 6,15%. É importante notar, ainda, 2. Deve-se ressaltar que as denominações das temáticas foram mantidas de acordo com os resumos ou introduções dos artigos podendo, por vezes, estarem próximas, em relação à abordagem de conteúdo, de temáticas que aparecem com outra nomenclatura. Opta-se, assim, por manter a classificação de temário escolhido pelos autores dos papers. 257

A Comunicação, Meios e Interações

que entre os 65 trabalhos apresentados, 19 trazem temática com única ocorrência, no total de 31 temas. Por sua vez, com 46 trabalhos, o GT História da Mídia Impressa (Rede Alcar), traz 20 papers com temática única, entre 20 temas diferentes. A maior frequência de temática, nesse grupo, foi de ditadura, que corresponde a 10,8% dos trabalhos. Na sequência, aparecem os temas jornalismo regional e cobertura de guerra, eleições, tragédias, com quatro artigos cada. Em terceiro lugar, com apenas três ocorrências, está o tema cultura/jornalismo cultural. Também o GT História do Jornalismo (Intercom) traz como principal temática a ditadura, com 5 trabalhos e 16,6% de frequência. Esse grupo temático é o que apresenta maior diversidade de percentual de temas, com 50% dos artigos apresentando temática de única ocorrência, 13,3% dos artigos com temática de dupla ocorrência e 3,3% dos artigos com temática de tripla ocorrência. No total, foram 28 temas diferentes abordados pelo GT. Temáticas

258

Ocorrências

Ditadura

5

Feminino (mulheres na Imprensa)

3

Cobertura (guerra, tragédias, eleições, etc.)

7

Trajetória de personagem/ empresa

7

Jornalismo, cidade e sociedade

2

Pesquisa Histórica

3

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

Jornalismo local e regional

3

Jornalismo internacional

4

Modernização jornalística

2

Jornalismo e Memória

3

Ética

2

Tabela 1. Temáticas. Frequência maior que um. (GT História do Jornalismo Rede Alcar)

Temática

Ocorrência

Trajetória de personagem/ empresa

5

Cidade e sociedade

2

Proposta didática

2

Jornalismo e literatura

2

Feminino (mulher na imprensa)

2

Memória e Jornalismo

3

Tabela 2. Temáticas. Frequência maior que um. (GT História do Jornalismo Intercom)

259

A Comunicação, Meios e Interações

Temática Cultura e Tecnologia Ditadura Jornalismo regional Cobertura (guerras, tragédias, eleições, etc.) Jornalismo e entrevista Publicidade Cultura/ Jornalismo Cultural Trajetória de personagem/ empresa Jornalismo popular

Ocorrências 2 5 4 4 2 2 3 2 2

Tabela 3. Temáticas. Frequência maior que um. (GT História da Mídia Impressa Rede Alcar)

O terceiro item analisado neste artigo foi a metodologia aplicada aos trabalhos dos GT’s. Foram encontradas 19 metodologias de estudo utilizadas nos 141 artigos dos três grupos temáticos. A metodologia mais recorrente é a Pesquisa Bibliográfica, que aparece em 96 artigos. Na sequência está o método da Análise de Conteúdo, com 57 trabalhos. Em terceiro lugar figura a Entrevista, com 10 ocorrências. Deve-se notar, também, que é comum a indicação de dois ou mais métodos de análise em um mesmo paper, sendo mais comum o uso de Pesquisa Bibliográfica em conjunto com Análise de Conteúdo. A metodologia Pesquisa Bibliográfica foi a mais utilizada no GT História do Jornalismo (Rede Alcar), presente em 52 artigos dos 65, e GT História do Jornalismo

260

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

(Intercom), presente em 25 dos 30 artigos. No GT História da Mídia Impressa a metodologia mais recorrente foi a Análise de Conteúdo, utilizada em 22 artigos dos 46 publicados no grupo. O método Pesquisa Bibliográfica aparece na sequência, em 19 artigos. Entre os métodos de estudo utilizados pelos autores dos artigos encontramos métodos de análise de textos, como Análise de Conteúdo, Análise do Discurso e Análise de Enquadramento, métodos para a análise de imagens, tais como Análise Iconográfica, Leitura de imagens e Teoria da Imagem, além de métodos ligados aos estudos históricos como História oral, Levantamento Histórico e Nova História. Gráfico 4. Metodologia (GT História do Jornalismo Rede Alcar)

261

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

Gráfico 5. (GT História do Jornalismo - Intercom)

Gráfico 6. Metodologia (GT História da Mídia Impressa Rede Alcar)

Por fim, como quarta categoria de análise tem-se o recorte temporal de cada artigo, constituindo o item período. Os recortes temporais adotados nos trabalhos dos GT’s História do Jornalismo (Rede Alcar e Intercom) e GT História da Mídia Impressa (Rede Alcar) privilegiam os séculos XX e XXI. Os trabalhos analisados abordam objetos e temas que se estendem desde o século XV até a atualidade. Os papers que trazem estudos situados no século XX são maioria nos três grupos de trabalhos, com 83 artigos. Na sequência, aparecem os artigos com estudos situados no século XXI, no total de 20 artigos. Em terceiro estão os trabalhos que abordam temáticas relacionadas à transição entre os séculos XIX e XX, com 18 papers. É importante apontar ainda que sete artigos não tinham período definido. No GT História do Jornalismo (Rede Alcar) encontramos 36 trabalhos relacionados ao século XX, 11 que se referem à transição entre os séculos XIX e XX ou a segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX, e nove trabalhos que se situam no século XXI. Nesse grupo aparecem também dois estudos que analisam o século XVIII e um que faz um panorama histórico do tema e objeto entre os séculos XV e XX. Do mesmo modo, no GT História do Jornalismo (Intercom) há prevalência de estudos situados no século XX. Por outro lado, há mais trabalhos ligados à transição entre os séculos XIX e XX ou a segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX (4) do que ao século XXI (2). Nesse grupo de trabalho também encontramos um paper que estabelece um traçado histórico, que se ­estende do século XVI 264

A Comunicação, Meios e Interações

ao XXI. Por fim, o GT História da Mídia Impressa (Rede Alcar), apresenta maior quantidade de trabalhos ligados ao século XX (29). Em segundo lugar aparecem os artigos com objetos e temas situados no século XXI (9) e, na terceira posição, papers referentes ao século XIX (4). Período

Ocorrências

Século XV - XX

1

Século XVII

1

Século XVIII

2

Século XIX

1

Século XIX para Século XX

11

Século XX

36

Século XXI

9

Tabela 4. Período. (GT História do Jornalismo Rede Alcar)

Período

Ocorrências

Século XVI - XXI

2

Século XVII

1

Século XIX

1

Século XIX para Século XX

4

Século XX

18

Século XXI

2

Tabela 5. Período. (História do Jornalismo Intercom)

265

A Comunicação, Meios e Interações

Período

Ocorrências

Século XV - XXI

1

Século XIX

4

Século XIX para Século XX

2

Século XX

29

Século XXI

9

Tabela 6. Período. (GT História da Mídia Impressa Rede Alcar)

Conclusão Ao problematizar as relações entre jornalismo e história na narrativa da história dos meios de comunicação buscamos compreender, a princípio, o papel da mídia, sobretudo, do jornal impresso, como fonte e objeto dos estudos em História da Imprensa e da Comunicação. A revisão bibliográfica nos levou a compreender a relação entre o campo da história e o campo da comunicação, suas ligações com o passado, as diversas abordagens de narrativa histórica, o lugar da mídia nessas narrativas, além dos desafios a serem enfrentados pelo pesquisador. A partir disso, foi possível visualizar a imprensa em uma abordagem que a faz fonte e objeto de pesquisa, como exprime Luca, ao trabalhar com a exploração complexa de textos e uma avalição minuciosa do seu lugar de inserção e contexto.

266

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

Por meio do levantamento de artigos publicados em grupos temáticos que tratam sobre a História do Jornalismo e da Mídia Impressa foi possível observar a relevância do uso do jornal, notadamente o impresso, como objeto de estudo nas narrativas da história da própria comunicação e do jornalismo. Dos 141 papers analisados, 81 trazem jornal como objeto. Outro objeto em destaque é a revista, presente em 28 artigos. Mesmo nos GT’s História do Jornalismo (Rede Alcar e Intercom), que apresentam ementas mais abrangentes em relação aos conteúdos a serem abordados pelos artigos, há a prevalência do objeto jornal. Nesses grupos, porém, vemos a maior variedade de objetos, quando comparados ao GT História da Mídia Impressa (Rede Alcar), que delimita os envios de trabalhos aos estudos que abarcam impressos. Ainda, podemos apontar como possível justificativa da utilização de jornais impressos e revistas como principais objetos de estudo, a preservação e arquivamento desses materiais em Arquivos Públicos, Museus e Bibliotecas, que apesar de apresentarem deficiências, como coleções incompletas ou em mau estado de conservação, estão ao acesso do pesquisador. Em relação à temática abordada pelos trabalhos analisados notamos grande variedade, sendo 60 temas diferentes em 141 artigos publicados. Entre os temas mais recorrentes estão trajetória de personagem/empresa, cobertura de guerra, eleições, tragédias e ditadura. É interessante notar a tendência por artigos que façam narrativas de trajetórias de personagens ou empresas, sendo comum a análise de um aspecto do jornalismo 267

A Comunicação, Meios e Interações

ser embasada na figura de um jornalista ou empresa. Outro ponto a ser destacado é o interesse dos autores por estudos de assuntos ligados às temáticas temporalmente próximas ao pesquisador, tais como cobertura de guerras, eleições e tragédias, como no caso do incêndio da Boate Kiss, abordado em um dos artigos. Esse fator indica grande quantidade de artigos ligados a acontecimentos recentes e pontuais, de apelo social, e que muitas vezes não estão vinculados às pesquisas mais extensas, sendo por vezes tema explorado apenas para a redação do artigo a ser publicado em evento. Ainda, ao analisar a incidência do tema ditadura nos grupos de trabalhos analisados, fica claro que a escolha pelo tema está relacionada à data que marca os 50 anos do Golpe de 64 e da Ditadura no Brasil, ocorrido abril de 2014. No quesito metodologia verificamos a prevalência dos métodos Pesquisa Bibliográfica, Análise de Conteúdo e Entrevista. O uso recorrente da Pesquisa Bibliográfica justifica-se, uma vez que, toda pesquisa deve estar baseada num prévio conhecimento do assunto a ser abordado, numa espécie de reconstrução do “estado da arte”, já trilhado por outros pesquisadores. No caso dos estudos históricos em comunicação, a contextualização é fundamental para evitar o anacronismo da pesquisa (ALVES e GUARNIERE, 2007). No entanto, é importante indicar que muitos artigos se valem apenas deste método apresentando revisões bibliográficas sobre os temas tratados. Já a Análise de Conteúdo, por constituir um método que se aplica a discursos diversificados, baseado na inferência, e que possui um conjunto de técnicas próprias 268

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

(BARDIN, 2009), se aplica de forma abrangente nos estudos de jornalismo e comunicação. Por sua vez, no item período, notamos a opção por objetos e temáticas situados nos séculos XX e XXI. Mais uma vez, a escolha do recorte temporal é aquela mais próxima ao tempo presente do autor. Como fator de influência na tomada de decisão dos pesquisadores ao delimitar o corpus de análise está o acesso aos materiais a serem utilizados no estudo. Os arquivos de jornais impressos, por exemplo, muitas vezes não são arquivados de forma adequada, apresentando páginas apagadas, recortadas, rasgadas e, inclusive, em decomposição, sobretudo, os mais antigos. Além disso, grande parte desses materiais precisa ser digitalizada pelo pesquisador que deverá dedicar longo tempo de estudo nesta tarefa. Tais fatores, como exposto por Hohlfeldt (2011), dificultam o trabalho do pesquisador em História da Imprensa, daí a escolha por recortes temporais mais próximos do presente, cujos materiais podem ser encontrados com mais facilidade e em melhor estado de conservação. Por fim, cabe apontar que os levantamentos e análises aqui realizados compõem uma investigação inicial, por isso mesmo aberta, da utilização da mídia enquanto objeto de estudo nas investigações acadêmicas sobre História do Jornalismo e Mídia Impressa, tomando como base as publicações recentes dos GT’s História do Jornalismo (Rede Alcar e Intercom) e GT História da Mídia Impressa (Rede Alcar). A partir deste panorama, que apontou as características das pesquisas em quatro frentes (objeto, temática, metodologia e período), podemos entender, 269

A Comunicação, Meios e Interações

em parte, a atual composição das pesquisas e trabalhos desenvolvidos por estudantes e acadêmicos dentro dos grupos temáticos. Apontamos, ainda, que as possibilidades de análise e problematização desses trabalhos são amplas abrangendo itens que não foram abordados aqui. Destacamos a relevância, por exemplo, de se realizar um levantamento que leve em conta as referências bibliográficas utilizados nos artigos, de modo a indicar, entre outros fatores, autores e correntes privilegiados nos estudos que relacionam jornalismo e história no Brasil.

Referências ALVES, Fábio Lopes; GUARNIERE, Ivanor Luiz. A utilização da imprensa escrita para a escrita da História: diálogos contemporâneos. Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo, Brasília, v.1 n.2 p.30-53, ago./nov.2007. Disponível em http://www.fnpj.org.br/rebej/ojs/viewissue.php?id=7 Anais do XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, de 1 a 5 de setembro de 2014, [recurso eletrônico]: Comunicação, guerra e paz / organizado por Marialva Barbosa, Maria do Carmo Silva Barbosa, Ariane Carla Pereira Fernandes e Marcio Ronaldo Santos Fernandes. [realização Intercom, Unicentro, UDC, Unila e PTI] – São Paulo: Intercom, 2014. Disponível em: http://www. intercom.org.br/papers/nacionais/2014/trabalhos.htm Anais do 9º Encontro Nacional de História da Mídia, de 30 de maio a 1º de junho de 2013, [recurso ­eletrônico]: 270

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

História da Comunicação ou História da Mídia? Fronteiras Conceituais e Diferenças. [realização Rede Alcar e Universidade Federal de Ouro Preto], 2013. Disponível em: http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/ encontros-nacionais/9o-encontro-2013 BARBOSA, Marialva. Meios de Comunicação e História: um universo de possíveis. In: RIBEIRO, Ana Paula Goulart e FERREIRA, Lucia Maria Alves (Orgs). Mídia e Memória: a produção de sentidos nos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. v1. pp.15-34. _______. O presente e o passado como processo comunicacional. Revista Matrizes, v.5. n. 2, jan/ jul 2012. pp. 145-155. _______. Comunicação e história: presente e passado em atos narrativos. In: Comunicação, mídia e consumo. Revista do Programa de Mestrado em Comunicação e Práticas de Consumo. São Paulo: ESPM, 2009. BARBOSA, Marialva. C. & RIBEIRO, Ana Paula G. “Combates” por uma história da mídia e do jornalismo no Brasil. XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação/INTERCOM. Curitiba, 2009. BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa, Portugal: 4ª ed., 2009. Enciclopédia INTERCOM de comunicação. Volume 1. – São Paulo: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2010.

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A Comunicação, Meios e Interações

HOHLFELDT, Antonio. Perspectivas e desafios para compor uma história da imprensa: o que o pesquisador precisa saber e a que se deve dispor. In: LOSNAK, Celio José e VICENTE, Maximiliano Martin (Orgs). Imprensa e Sociedade Brasileira. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2011. pp. 31- 44. LUCA, Tânia Regina. A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. pp. 111-153. RIBEIRO, Ana Paula Goulart. A mídia e o lugar da história. Revista Lugar Comum nº11, mai-ago 2000, pp.2544. SILVA, Karina Vanderlei; SILVA; Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. 2.ed., 2ª reimpressão. – São Paulo : Contexto, 2009. THOMPSON, J.B. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Tradução de Wagner de Oliveira Brandão; revisão da tradução: Leonardo Avritzer. 9 e.d. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008 Sites https://historiadojornalismo.wordpress.com/ http://www.portalintercom.org.br/index.php http://www.ufrgs.br/alcar http://www.dicionariodoaurelio.com/ 272

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

Capítulo 9 Henry Jenkins e Andrew Keen: A Cibercultura sob diferentes olhares1 Felipe de Oliveira Mateus2

Definições de Cibercultura O constante desenvolvimento tecnológico da internet e dos dispositivos digitais de comunicação que se utilizam dela, aliado à cultura envolvida em seus usos evidenciam a emergência da cibercultura enquanto temática de estudos dentro do campo da comunicação. Tais estudos sustentam-se na definição de Lévy (1999) a respeito da cibercultura. Segundo o autor, ela se ­apresenta 1. Artigo apresentado como trabalho de conclusão da disciplina Teorias da Comunicação, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unesp, campus de Bauru, ministrada pelo prof. Dr. Osvando de Morais, no 2º semestre de 2014. 2. Mestrando em Comunicação pela Unesp, campus de Bauru. ­E-mail: [email protected]. 273

como “o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem com o crescimento do ciberespaço” (1999, p. 17). A partir dessa definição norteadora, é possível destacar o viés duplo que os estudos tomam, sendo dedicados tanto à análise do desenvolvimento tecnológico em si, quanto dos usos culturais que dão sentido às tecnologias. Incorporadas às práticas sociais contemporâneas, as tecnologias dão origem a novas formas de interação social. Conforme sustenta Lemos (2013), a cibercultura configura-se como uma forma de convergência entre o social e o tecnológico, já que as novas mídias advindas do desenvolvimento tecnológico promovem novas formas de sociabilidade. Lemos (2013) assim coloca a cibercultura como a “sociedade estruturada pela conectividade”. Dessa forma, analisa-se que a cibercultura não deve ser encarada como uma forma de cultura que surge sem antecedentes, ou que começa a se manifestar apenas com o desenvolvimento da internet. Ela é um sistema de práticas e valores que se desenvolve com a incorporação e mediação dos dispositivos digitais, mas que se ancora nas práticas e valores já existentes em um determinado sistema cultural e que se desenvolveu por meio de um longo processo midiático caracterizado pela progressiva personalização das tecnologias e conteúdos midiáticos aos quais temos acesso (SANTAELLA, 2003). Segundo Santaella (2003), essa personalização, responsável por dar origem ao cenário cultural que 274

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

­ enominamos como cibercultura, possibilitou que, em d um primeiro momento, produtos culturais pudessem ser consumidos de forma individual, rompendo com a lógica massiva vigente até então. Isso se tornou possível graças a tecnologias surgidas nos anos 1980 e 1990, tais como o videocassete, o walkman, o CD player. O efeito dessa evolução na produção cultural foi a criação de produtos destinados a esse consumo individualizado e passíveis de customização. Porém, com a conexão à internet e seus respectivos recursos digitais, a personalização colocada por Santaella (2003) avançou no sentido de permitir ao antigo consumidor passivo, o receptor do modelo comunicacional de Lasswell, ou a massa, na visão crítica dos frankfurtianos (WOLF, 2009) a também se tornar um produtor de mensagens e de conteúdos que, também pelos meios digitais, podem ser divulgados e consumidos. De uma forma simplificada e com viés estritamente tecnológico, este foi o caminho percorrido pelas mídias que hoje conformam o cenário cibercultural. Essencial para a formação desse cenário e que é tema de grande parte dos estudos em cibercultura são os usos culturais feitos dessas tecnologias midiáticas, sua incorporação nos sistemas culturais e sociais e as novas práticas surgidas dessa incorporação. Esse caráter dado aos estudos comprova a definição de Lévy (1999) que considera a cibercultura um conjunto de valores e práticas estabelecidos a partir da mediação digital.

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A Comunicação, Meios e Interações

A Classificação de Rüdiger Dadas as constantes mudanças pelas quais passam seus objetos e os efeitos culturais que delas surgem, a cibercultura hoje ocupa um importante espaço no rol de temáticas das pesquisas em comunicação. Isso pode ser comprovado na multiplicação de obras teóricas e de autores que se dedicam ao assunto. Tais pesquisas ganham visibilidade por meio de eventos e instituições de pesquisa, tais como os grupos de trabalho com a temática cibercultural existentes nos congressos da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) e da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós), além das produções realizadas pela ABCiber, Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura. Devido a essa expansão e visibilidade conquistada não só nas instituições de pesquisa brasileiras, mas também de outros países, sobretudo norte-americanas e europeias, várias são as perspectivas empregadas na análise da cibercultura enquanto novo paradigma da comunicação e da cultura contemporânea. Um dos principais nomes dos estudos teóricos no Brasil, Francisco Rüdiger explora as definições atribuídas à cibercultura como forma de cultura que se desenvolve por meio das tecnologias de comunicação e chega a um pensamento que envolve o conceito de mediação. Segundo o autor (2013), a comunicação que ocorre por meio das tecnologias digitais deixa de ser simplesmente imediata, dependente apenas da linguagem, e passa 276

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

a depender das mídias. Com isso, podemos considerar que a mediação digital torna-se um dos pilares da cena cibercultural. Porém, ao mesmo tempo em que o autor atribui aos processos comunicacionais um novo fator de mediação no cenário digital, se analisarmos as práticas de comunicação e cultura digital aos olhos das teorias clássicas da comunicação, que levam em conta modelos consagrados como o de Lasswell, ao mesmo tempo em que deve ser considerada a mediação digital proposta por Rüdiger (2013), é possível considerarmos que há outra nova configuração da medicação existente no processo de produzir e acessar mensagens. Da mesma forma em que os suportes tecnológicos dão origem a uma nova mediação tecnológica, a possibilidade de os usuários das mídias produzirem, divulgarem e acessarem outras mensagens e conteúdos produzidos por outros usuários exclui a necessidade de haver a mediação de pessoas, empresas e instituições nos processos de comunicação. Ao analisar o panorama de perspectivas dadas à cibercultura, principalmente por conta dos fatores mencionados acima, Rüdiger (2013) propõe uma classificação que agrupa essas visadas em três chaves de pensamento. De acordo com o autor, os estudos podem ser classificados como: “populistas tecnocráticos”, grupo ao qual o autor atribui uma visão otimista a respeito da cibercultura e que seria ligado a pesquisas de caráter empresarial e mercadológico; “conservadores midiáticos”, esfera formada por autores alinhados a formas tradicionais de comunicação e de cultura e que veem a cibercultura com 277

A Comunicação, Meios e Interações

maus olhos; e os “cibercriticistas”, grupo que se preocupa em estabelecer uma visão de caráter dialético à cibercultura, refletindo sobre suas relações com as esferas de poder e os problemas que podem surgir a partir disso. A partir do que refletimos a respeito da mediação tecnológica e da imediação institucional que a cibercultura proporciona, podemos analisar que as diferenças existentes entre as perspectivas teóricas mencionadas por Rüdiger (2013), principalmente em relação aos dois primeiros grupos, de visões antagônicas, devem-se as considerações feitas justamente pelo novo cenário cibercultural que exclui a necessidade de haver uma mediação institucional nos processos de comunicação digital. Assim, aqui analisaremos as ideias defendidas por dois autores que, segundo Rüdiger (2013), pertencem a esses grupos e suas obras são influentes na difusão de seus pontos de vista: Henry Jenkins, alinhado às visões progressistas e otimistas (“populistas tecnocráticos”) e Andrew Keen, ligado ao pensamento conservador. Ainda que defensores de perspectivas diferentes acerca de um mesmo universo cultural, Jenkins e Keen compartilham em muito conceitos e fenômenos que são analisados sob suas óticas opostas. Isso se explica por serem membros de uma mesma geração intelectual que herdou os conhecimentos basilares a respeito da cibercultura de autores que são fundamentais para a formação do conhecimento a respeito do tema. O que mais se destaca dentre as referências utilizadas para a reflexão a respeito da cibercultura é Pierre Lévy, que juntamente com Manuel Castells, analisa a forma como ela se estabelece 278

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

como uma cultura digitalmente mediada. Porém, todo esse conhecimento construído sobre a cibercultura tem origem nas reflexões feitas por Marshall McLuhan, visionário canadense que pensou, nos anos 1960, como seria o mundo interconectado em redes.

A Herança de Mcluhan Marshall McLuhan foi um dos mais influentes teóricos alinhados à chamada Escola de Toronto, grupo de pesquisadores ligados à Universidade de Toronto que se destacou por difundir a Teoria do Meio dentro dos estudos comunicacionais. Conforme analisa Martino (2014), a Teoria do Meio põe como foco de atenção as características dos meios de comunicação e como eles interferem na configuração das mensagens. O autor sustenta que, para seus intérpretes da Escola de Toronto - além de McLuhan, destacam-se Harold Innins, Joshua Meyrowitz e Derick de Kerckhove - os modos de compreender o mundo são determinados conforme as gerações interagem com suas mídias. Assim, a perspectiva apregoada pelos membros do grupo coloca os meios em uma posição de protagonismo nas análises comunicacionais, ponto de vista inovador até então, já que a maior parte das correntes teóricas da comunicação voltavam sua atenção às intenções dos produtores das mensagens ou aos efeitos destas nos públicos receptores (WOLF, 2009).

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A Comunicação, Meios e Interações

De acordo com a análise colocada por Martino (2014), McLuhan considera que a comunicação se estrutura a partir das conexões que as mídias estabelecem entre as pessoas. Tomando os modelos comunicacionais consagrados como exemplos, na relação existente entre emissor, produtor da mensagem, e o receptor, está uma forma de mídia. Na visão de McLuhan, cabe a este elemento o papel principal no ato comunicativo. Por conta disso, a grande questão colocada pelo autor ao longo de seus estudos é a forma como os meios de comunicação interferem na maneira como vemos e temos acesso à realidade, já que são eles os responsáveis por estabelecer as relações entre as pessoas (MARTINO, 2014). McLuhan tornou-se célebre ao elaborar importantes conceitos que deram sustentação aos estudos focados na cibercultura dentro do contexto de expansão da internet nos anos 1990, tendo Pierre Lévy como grande referência. Dentre os conceitos que se destacam nesse sentido estão o de Aldeia Global e o de que os meios de comunicação são extensões do homem. Há que se ressaltar que as ideias de McLuhan foram elaboradas nos anos 1960, dentro de um contexto midiático em que a maior inovação era a televisão. Porém, o caráter visionário de sua obra nos permite aplicá-la em estudos recentes sobre mídias digitais. Logo no início de seu «Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem» (2007), sua principal obra, McLuhan antevê o que a cultura mediada pelos meios seria capaz de realizar, cenário que denomina como «simulação tecnológica da consciência» e que hoje é ­comparável ao que a internet se tornou. 280

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

Hoje, depois de mais de um século de tecnologia elétrica, projetamos nosso próprio sistema nervoso central num abraço global, abolindo tempo e espaço (pelo menos naquilo que concerne ao nosso planeta). Estamos nos aproximando rapidamente da fase final das extensões do homem: a simulação tecnológica da consciência, pela qual o processo criativo do conhecimento se estenderá coletiva e corporativamente a toda a sociedade humana, tal como já se fez com nossos sentidos e nossos nervos através dos diversos meios e veículos. (MCLUHAN, 2007, p. 17)

Assim, o autor coloca que por meio da conectividade elétrica, o mundo torna-se uma vila, a chamada aldeia global. O que McLuhan (2007) expressa por meio do conceito é o fato de que a expansão midiática que à época tinha como maior avanço a plenitude dos meios eletrônicos, comparável com o que hoje são as mídias digitais, possibilitaram também a expansão do universo simbólico ao qual temos acesso por meio de nossos sentidos. Isso ocorre em tal proporção que todo o mundo torna-se conectável por meio das mídias. Para que o homem então dê conta desse vasto universo que se torna acessível de forma mediada, para que haja esse “abraço na humanidade”, McLuhan (2007) analisa que os meios atuam como nossas extensões, ampliando nossos sentidos que permitem o acesso ao universo sensível. Pelo fato de este universo permanecer em constante expansão, o autor analisa que o homem sente-se motivado a criar novas extensões de si mesmo por 281

A Comunicação, Meios e Interações

meio das mídias. Por isso, sustenta que o homem é capaz de modificar e ser modificado pelas mídias, que são suas extensões. Dessa forma, McLuhan (2007) confirma o protagonismo dos meios não apenas nas relações comunicativas simples, mas como operadores de mudanças que ocorrem na sociedade a partir de mudanças tecnológicas. Essas ideias inspiraram autores que, a partir da popularização da internet nos anos 1990, puderam aplicar conceitos antes futuristas em fenômenos reais e cotidianos, tais como Pierre Lévy e Manuel Castells. O grande mérito de Lévy (1999) ao pensar a cibercultura como um sistema cultural que se desenvolve a partir da expansão do ciberespaço é o de ter pensado os meios como fatores que proporcionam aos homens, agentes produtores e transformadores da cultura, a possibilidade de criar novos hábitos e valores, que passam a configurar a cibercultura. Como o próprio autor defende, as tecnologias são produtos culturais, já que carregam consigo sentidos que são culturalmente determinados, como seus próprios usos e a forma como estes interferem no cotidiano da sociedade. Assim, Lévy (1999) propõe que as tecnologias, como os meios de comunicação, não determinam, mas dão condições para que a cibercultura exista. A ideia vai ao encontro do que Manuel Castells interpreta como a formação da cultura da internet. Os sistemas tecnológicos são socialmente produzidos. A produção social é estruturada culturalmente. A internet não é exceção. A ­cultura

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Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

dos produtores da internet moldou o meio. Esses produtores foram, ao mesmo tempo, seus primeiros usuários [...] A cultura da internet é a cultura dos criadores da internet. (CASTELLS, 2003, p. 34)

Assim, os dois autores expõem sua concordância ao afirmar que, sendo a cibercultura uma forma de cultura mediada através das mídias digitais, os usos culturais feitos dos meios tecnológicos fazem deles instrumentos não apenas técnicos, mas humanamente definidos, o que exclui das análises acerca da cibercultura o chamado determinismo tecnológico. Para os autores, apesar de as tecnologias terem papel importante, a cibercultura é um produto cultural humano. A partir disso, Lévy (1999) dedica-se à análise de conceitos que surgem com a evolução dos meios digitais, como a inteligência coletiva, forma com a qual a cibercultura é construída, a virtualidade e a interatividade. Tomando a referência de McLuhan (2007) de que, através dos meios o homem é capaz de abarcar toda a humanidade, Lévy (1999) propõe que o ciberespaço é marcado por sua “universalidade não totalizante”, o que significa não ter limites em seu formato de rede e que cada integrante desta rede pode ser um emissor de informações. Este é outro fator em comum nas definições teóricas do cenário cibercultural, a possibilidade de todos os indivíduos terem acesso aos meios digitais de comunicação, serem produtores de informações e difundirem

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A Comunicação, Meios e Interações

seus conteúdos por meio das redes. Se considerarmos a perspectiva de McLuhan (2007) de que os meios são extensões de nossos sentidos para termos acesso ao amplo universo sensível, a partir do momento em que as mídias digitais de comunicação tornam-se utilizáveis, elas se tornam nossas extensões não apenas com a função de tornar o universo acessível, mas também estendem nossas capacidades de produzir informações e difundi-las. Ou seja, as mídias não são extensões apenas para o consumo de informações, mas também para a produção delas, o que configura um cenário em que cada habilidade estendida - a de acessar informação e a de produzi-la alimentam-se reciprocamente. Tal condição possibilitou não somente a difusão da internet nos anos 1990, como também o surgimento de redes sociais nos anos 2000, comprovando a perspectiva de Lemos (2013) de que a cibercultura possibilita novas formas de sociabilidade. Retomando a perspectiva de Rüdiger (2013) a respeito da comunicação, o fato de o autor colocar que a troca de informações, antes imediata, agora depende da mediação digital faz referência à visão aqui colocada de que as mídias atuam como extensões de nossa capacidade comunicativa. Porém, ao mesmo tempo em que a extensão de acessar informações cria uma nova forma de mediação, ao estendermos nossa capacidade de produzir informações e difundi-las pelas mesmas mídias, dispensamos a necessidade de que haja nesse processo a mediação institucional de empresas midiáticas ou de profissionais que tenham o domínio técnico e/ou burocrático dos meios. Assim, ao mesmo tempo em que uma 284

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

nova mediação técnica é criada, outra institucional é retirada do processo. Ao classificar as diferentes visões a respeito da cibercultura e propor os três grupos teóricos, o que Rüdiger (2013) explicita são as diferentes visões a respeito dessa reconfiguração da mediação. Partimos então para a verificação de como Henry Jenkins e Andrew Keen expõem suas visões opostas a respeito desse novo cenário da comunicação.

Henry Jenkins: da convergência à conexão Autor que conquistou visibilidade no campo da comunicação a partir da segunda metade dos anos 2000, Henry Jenkins destaca-se hoje tanto no meio acadêmico quanto no mercado de comunicação, tendo seus conceitos em muito explorados por estudiosos e profissionais das mídias e do marketing. Tal perfil reforça o viés mercadológico descrito por Rüdiger (2013) em sua classificação dos estudos que considera “tecnocráticos”. O autor tem como marca de sua produção teórica as visões dadas aos usos midiáticos realizados pelo público. Sua grande preocupação está na utilidade, na valorização, no aproveitamento e no consumo de conteúdos produzidos pelas antigas audiências passivas, hoje produtoras e difusoras de informação. Por conta dessa prioridade dada a esse tipo de produção, Jenkins (2009) volta-se em muito às produções midiáticas advindas de comunidades de fãs, os chamados fandoms.

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A Comunicação, Meios e Interações

A grande difusão de suas ideias foi obtida com a publicação de “Cultura da Convergência” (2009), obra em que reflete sobre o cenário cultural da convergência de mídias e como ele modifica os usos midiáticos feitos pelo público. Tais reflexões tiveram continuidade com “Cultura da Conexão” (2014), obra recente, publicada em coautoria com Sam Ford e Joshua Green, parceiros de Jenkins em grupos de estudos de mídia ligados ao Massachusetts Institute of Technology (MIT). O livro parte para a análise de como ocorre a circulação de conteúdos nesse cenário convergente já analisado. Pode-se verificar que tanto Cultura da Convergência, quanto Cultura da Conexão, colocam a audiência ativa e produtora de conteúdos em posição de protagonismo, sendo que a importância desses agentes nas relações comunicacionais ocorrem graças às mídias que tornam o cenário possível. O conceito de convergência é definido por Jenkins (2009) como o fenômeno que possibilita o fluxo de conteúdos entre suportes midiáticos, o trânsito do público entre eles na busca por novos conteúdos e o trabalho em conjunto de mercados de mídia. É a partir da ideia de convergência que o autor conceitua o conteúdo transmídia, que é aquele criado para transitar entre diferentes suportes que se complementam e que oferecem ao público essa opção de consumo de várias mídias. Por conta disso, o conceito acabou se tornando mais aplicável a narrativas criadas em diferentes suportes midiáticos, como filmes, seriados, animações e games. Apesar de a convergência ocorrer por conta do desenvolvimento tecnológico das mídias, o autor deixa 286

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

c­ laro que ela é um fenômeno cultural que envolve os usos dos suportes midiáticos e que a cultura envolvida nesses usos é o motor de tal transformação simbólica. a convergência representa uma transformação cultural, à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos de mídia dispersos. (JENKINS, 2009, p. 29-30)

Tais usos culturais favorecem o desenvolvimento de conformações comunicacionais e midiáticas em muito exploradas pelo autor dentro dos fenômenos analisados: a cultura participativa de mídias, que surge com a audiência sendo capaz de também ser produtora de conteúdos, e a inteligência coletiva, conceito criado por Pierre Lévy, que faz referência ao potencial de as redes possibilitarem a criação de comunidades de conhecimento. A partir das reflexões sobre os usos das mídias, Jenkins (2009) analisa as possibilidades de essas comunidades se concretizarem. O autor deu continuidade à reflexão sobre os conteúdos criados e difundidos pelas audiências com o desenvolvimento do conceito de “propagabilidade” (JENKINS; FORD; GREEN, 2014). A ideia pode ser entendida como uma continuação do cenário de mídia previsto pela convergência, agora englobando a circulação de conteúdos por meio do compartilhamento ativo do público. A “propagabilidade” se refere aos recursos técnicos que tornam mais fácil a circulação de algum

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A Comunicação, Meios e Interações

tipo de conteúdo em comparação com outros, às estruturas econômicas que sustentam ou restringem a circulação, aos atributos de um texto de mídia que podem despertar a motivação de uma comunidade para compartilhar material e às redes sociais que ligam as pessoas por meio da troca de bytes significativos. (JENKINS; FORD; GREEN, 2014, p. 26-27)

A partir dos conceitos desenvolvidos pelo autor e da visão dada por ele à cultura envolta nos usos dos suportes midiáticos e na produção de conteúdos pelas audiências, fica clara a herança teórica de Pierre Lévy e sua obra, principalmente com base em evidências como o uso do conceito de inteligência coletiva. Também é possível identificar a sustentação que as ideias de McLuhan (2007) fornecem às de Jenkins (2009; 2014). Ao longo do desenvolvimento de suas teorias a respeito dos meios enquanto extensões do homem, McLuhan (2007) analisa que o público usuário e consumidor de mídias demonstra ter fascínio por suas extensões, já que as tais dão a ele o acesso a um universo simbólico amplo e sua criação é motivada por um cenário cultural em que «o estímulo para uma nova invenção é a pressão exercida pela aceleração do ritmo e do aumento de carga» (MCLUHAN, 2007, p. 60). Ou seja, o autor considera que apesar do protagonismo dos meios, são as condições culturais vigentes que induzem os homens a criar e a utilizar novos meios, novas extensões. Remetendo isso ao pensamento de Jenkins (2009; 2014), são as mesmas condições que geram fascínio no público por suas extensões que o leva a produzir e compartilhar conteúdos, além 288

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

de tornar os meios aptos à cultura do compartilhamento, de dotá-los de propagabilidade. Já em relação à perspectiva colocada do Rüdiger (2013) de que a comunicação digital consiste na inclusão de uma nova modalidade de mediação pelos suportes digitais no processo comunicacional, é perceptível que Jenkins (2009; 2014) demonstre uma visão positiva acerca do novo cenário da comunicação. Seus conceitos também reforçam a visão proposta aqui de que, enquanto se inclui uma mediação técnica na comunicação, excluem-se antigas mediações institucionais. Justamente por valorizar a produção informativa das audiências, por celebrar a formação de uma cultura participativa, possibilitada pelas mídias e pelo cenário cultural já verificado por McLuhan (2007) e Lévy (1999), e ainda por analisar a necessidade dos meios de ofereceram condições de que o público acesse e compartilhe conteúdos, evidencia-se o otimismo de Jenkins (2009; 2014) em relação à nova configuração das mediações envolvidas na comunicação e o porquê de ele ser considerado por Rüdiger (2013) como um tecnocrata. Tais características ficam ainda mais evidentes quando comparadas às ideias de Andrew Keen, autor ligado às ideias conservadoras em relação às mídias.

Andrew Keen: o público como amador Classificado por Rüdiger (2013) em sua análise das visões teóricas acerca da cibercultura como um “conservador midiático”, Andrew Keen conquistou visibilidade 289

A Comunicação, Meios e Interações

entre os estudiosos e profissionais da comunicação da mesma maneira que Henry Jenkins o fez, tendo sua trajetória em muito associada aos grandes grupos de mídia digital, como o próprio autor relata no início de “O Culto do Amador” (2009), obra em que expõe seu ponto de vista sobre a cultura da internet. Ao contrário de Jenkins (2009; 2014), que exalta os benefícios do desenvolvimento de uma cultura baseada na produção midiática ativa das audiências, Keen (2009) expressa uma visão extremamente negativa a respeito desse cenário participativo. Sua produção é marcada pela argumentação de que a possibilidade concedida às audiências de serem produtoras e difusoras de conteúdos, por meio de suportes que oferecem tais recursos a seus usuários, de que o ambiente de cultura participativa e de mídias propagáveis celebrado por Jenkins (2009; 2014) representa, na verdade, uma ameaça às instituições e valores culturais consagrados. Para ele, a valorização dos conteúdos produzidos por agentes e instâncias não ligados a esferas institucionais é um culto ao amadorismo, o que dá nome a sua principal obra. É possível perceber na trajetória de Keen, em especial na difusão de suas reflexões nas referências disponíveis no Brasil, um progressivo incremento teórico de seus argumentos acerca da cultura digital contemporânea. Sua primeira obra, «O Culto do Amador» (2009), é marcada por análises feitas a respeito da situação atual do campo cultural e das comunicações, em muito baseadas em suas próprias visões sobre a questão. Ao longo do livro, demonstra possuir uma visão conservadora a respeito 290

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

da eliminação da mediação institucional de profissionais e empresas nos processos de comunicação com as massas. Para o autor, dotar as audiências de capacidade para produzir e difundir informações por meio das mídias significa colocar em xeque a qualidade e a confiabilidade de tais conteúdos. o conteúdo gratuito e produzido pelo usuário gerado e exaltado pela revolução da Web 2.0 está dizimando as fileiras de nossos guardiões da cultura, à medida que críticos, jornalistas, editores, músicos e cineastas profissionais e outros fornecedores de informação especializada estão sendo substituídos (“desintermediados”, para usar um termo da FOO Camp) por blogueiros amadores, críticos banais, cineastas caseiros e músicos que gravam no sótão. [...] Pois a consequência real da revolução da Web 2.0 é menos cultura, menos notícias confiáveis e um caos de informação inútil. (KEEN, 2009, p. 20)

O autor segue ao longo da obra com exemplos de como esse cenário é prejudicial a instituições culturais tradicionais, como a indústria fonográfica, o cinema, a televisão e o jornalismo. Já em sua obra subsequente, “Vertigem Digital” (2012), Keen demonstra um tom mais analítico e maior solidez teórica em suas reflexões. O autor passa a focar seus estudos nos usos e na penetração que as redes sociais têm na cultura humana. Partindo da premissa de que elas são responsáveis por um processo de 291

A Comunicação, Meios e Interações

i­solamento social pelo qual passam os indivíduos, ao invés de promover a integração entre as pessoas, Keen (2012) argumenta a respeito de como as práticas de divulgação e compartilhamento de informações pessoais tornam-se as principais fontes de lucro das novas empresas de mídia digital, o que leva ao comprometimento e à ameaça da privacidade dos usuários, conceito que Keen considera ter ressignificado no contexto da cultura digital (2012, p. 57). Tal solidez teórica mencionada acima acerca das reflexões feitas em “Vertigem Digital” pode ser identificada pelas referências utilizadas pelo autor para validar seus argumentos. Para justificar a atração que os usuários de mídia têm pelas redes sociais, o autor se utiliza do conceito de hiper-realidade de Baudrillard, que expressa a forma como as tecnologias anulam as barreiras entre realidade e irrealidade, para conceituar o que considera como “hipervisibilidade”. De acordo com Keen (2012), o conceito seria uma aplicação da definição de Baudrillard aos usos das redes sociais, que promoveriam o apagamento das fronteiras entre a visibilidade e a invisibilidade (2012, p. 22). O que o autor quer dizer é que, tendo a própria imagem mediada pelas redes, o homem torna-se, ao mesmo tempo, visível a todos, por conta da difusão que adquirem as informações nas redes, e invisível, dado o isolamento social que estas promoveriam. Ainda na reflexão sobre as motivações para os usos das redes sociais, Keen (2012) preocupa-se em buscar a origem da cultura de valorização do social que existe nas redes, o que se mostra como fator determinante nos 292

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hábitos de compartilhamento de informações nas redes. Nessa busca, o autor situa o surgimento dessa cultura no contexto contracultural nos anos 1960, período em que se valorizava o coletivo e o social em detrimento do individual. Assim mesmo, ao longo da obra, fica claro que, na visão de Keen (2012), tal motivação cultural foi frustrada, já que defende a ideia de que as mídias promovem o isolamento ao invés da integração. O que se destaca da busca teórica feita por Keen (2012) das origens dessa cultura social que permeia os usos midiáticos é o fato de o autor também compartilhar da visão de que as tecnologias são social e culturalmente determinadas. Conforme já foi visto, tal ponto de vista também é empregado por Jenkins (2009; 2014) e encontra sustentação nas reflexões tanto de Lévy (1999), quanto de McLuhan (2007). Ainda sobre este último, Keen também se utiliza do conceito de Aldeia Global para justificar o ímpeto dos usuários de mídia em difundir suas informações em rede. Os argumentos de McLuhan, em especial - em livros como A Galáxia Gutemberg (1962) e Compreender os Meios de Comunicação (1964), sobre o ciberespaço como união de toda a humanidade numa só “aldeia global” - se tornaram uma das crenças centrais no Vale do Silício, entre empreendedores de rede social como Mark Zuckerberg (KEEN, 2012, p. 122)

Ou seja, a visão do autor aponta que aquele desenvolvimento tecnológico que permite ao homem abraçar 293

A Comunicação, Meios e Interações

toda a humanidade apregoado por McLuhan (2007) nos anos 1960 é o que hoje baliza os usos das mídias sociais e as relações estabelecidas por elas. Isso se dá com base no desenvolvimento de suportes que, ao mesmo tempo que estabelecem novas mediações tecnológicas, dispensam mediações institucionais. No entanto, ao contrário de outros autores que veem tal cenário com otimismo, como é o caso de Jenkins (2009; 2014) e dos próprios Lévy (1999) e McLuhan (2007), Keen (2009; 2012) se utiliza destes conhecimentos já constituídos para compor uma argumentação conservadora e pessimista a respeito desse cenário.

Perspectivas: diversidade de visões sobre um mesmo tema Assim como em outros estudos das ciências humanas, o exercício de analisar as perspectivas teóricas acerca de um tema é proveitoso por mostrar como as diferentes visões colocadas pelos principais teóricos de uma área de pesquisas podem derivar de uma mesma matriz de pensamento, o que possibilita a identificação de pontos comuns em suas produções, mesmo no caso de defensores de pontos de vista opostos. No que diz respeito às visões teóricas que perpassam os estudos em cibercultura e nos usos das mídias digitais, o objetivo deste estudo foi o de verificar as ideias expostas por Henry Jenkins e Andrew Keen, autores de grande difusão na área dos

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estudos ciberculturais e que, de acordo com o que Rüdiger (2013) analisa, sustentam visões antagônicas sobre o mesmo fenômeno cultural. Desde o início da análise, foi possível identificar nas ideias colocadas por ambos o consenso de que a cibercultura é um sistema cultura que se caracteriza pela incorporação dos suportes midiáticos nas práticas culturais existentes e que, a partir disso, novas práticas e valores se desenvolvem com a mediação digital desses suportes. Além disso, há uma concordância entre Jenkins (2009; 2014) e Keen (2009; 2012) sobre o fato de que o que move e caracteriza a cena cibercultural são os usos culturais das tecnologias digitais de comunicação. Por isso, negam o chamado determinismo tecnológico, reconhecendo a ação humana nesse processo. Essa essência comum identificada nos autores permite com que se possa verificar uma tradição teórica dentro dos estudos em cibercultura, iniciada pelas reflexões de McLuhan (2007), que foram incorporadas aos estudos de autores que se ocuparam em desvendar o desenvolvimento e a popularização da internet nos anos 1990, sendo o principal deles Pierre Lévy. O próprio contexto de desenvolvimento de tais estudos, que acompanharam o crescimento da internet e dos dispositivos digitais, fizeram com que os autores vissem as mídias como suportes culturalmente determinados, já que eram construídos culturalmente à medida em que eram utilizados socialmente. No entanto, mesmo compartilhando de uma mesma matriz teórica, Jenkins (2009; 2014) e Keen (2009; 295

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2012) apresentam divergências no que diz respeito aos aspectos positivos e negativos da conformação cultural que analisam. Como foi visto, são as visões antagônicas a respeito da capacidade do público de produzir e difundir suas próprias mensagens e conteúdos e consequente reconfiguração das mediações envolvidas na comunicação que levam Jenkins (2009; 2014) a desenvolver uma perspectiva otimista do novo cenário de mídia e Keen (2009; 2012), pessimista e negativa. Ambas as visões podem ser explicadas pelo caráter que os estudos em cibercultura adquiriram de acompanhar o próprio desenvolvimento das tecnologias que se tornam objetos de estudo. McLuhan (2007) desenvolveu suas reflexões sobre a sociedade na era da televisão enquanto esta se popularizava. Lévy (1999) pensou conceitos como o da inteligência coletiva conforme as plataformas que tornaram a internet acessível ao grande público, como a World Wide Web, eram construídas. Da mesma forma, Jenkins (2009; 2014) e Keen (2009; 2012) observam a cena comunicacional atual, com o desenvolvimento de novos suportes móveis de comunicação e a integração convergente destes pelos recursos digitais, além da consolidação de uma cultura comum aos usuários da internet e das mídias digitais de produzir, divulgar e consumir conteúdos veiculados em plataformas como as redes sociais. As diferenças entre os autores surgem por Jenkins (2009; 2014) destacar as possibilidades que o público passa a ter de participar dos processos comunicativos e de como isso pode ser lucrativo às empresas de mídia, enquanto Keen (2009; 2012) observa a necessidade de adaptação que toda a cultura - composta 296

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

por indivíduos e instituições - deve passar para manter-se atual dentro desse novo cenário. Mesmo que sustentem visões opostas, os argumentos utilizados pelos dois autores devem ser interpretados de forma articulada, complementando-se e favorecendo uma visão crítica a respeito da cena cultural digital. Ao mesmo tempo em que o pensamento de Jenkins (2009; 2014) pode ser utilizado como um incentivo à criatividade tanto de usuários como de empresas, e também como um reconhecimento do potencial que as redes têm de democratizar as relações comunicacionais, as observações pessimistas de Keen (2009; 2012) servem como um alerta aos que supõem ser a cibercultura um sistema perfeito. Sendo social e culturalmente determinada, a tecnologia pode ser utilizada tanto para o cenário integrativo previsto por Jenkins (2009; 2014), quanto o de total isolamento e de destruição cultural advertido por Keen (2009; 2012). Ainda sobre a perspectiva de Keen, pode-se analisar que o autor está progressivamente se aproximando do que Rüdiger (2013) considera como terceira visada teórica, a dos cibercriticistas, saindo da posição de apenas conservador midiático. Lançado em 2015, ainda sem versão em língua portuguesa, seu mais recente livro “The internet is not the answer” (“A internet não é a resposta”) avança na análise das implicações sociais da cultura da internet. De acordo com entrevistas e conferências ministradas pelo autor, a obra preocupa-se em verificar como os grandes problemas mundiais que ocorrem desde o fim do século XX têm relações com o desenvolvimento de todo um sistema econômico baseado nas redes. Tal ponto de vista

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vai ao encontro da definição de Rüdiger (2013) sobre os cibercriticistas, que se preocupam com as relações entre cibercultura e poder. Podemos analisar tal postura como um aperfeiçoamento de sua visada teórica. As visões plurais a respeito do atual cenário cibercultural continuarão a surgir e a coexistir dentro do campo de estudos. Isso se deve ao fato de a cultura digital ser um fenômeno que se desenvolve continuamente e também por conta de todos, sejamos tecnocráticos, conservadores ou críticos, estarmos inseridos nela e dela não podermos fugir. Dessa forma, é necessário que a diversidade teórica a respeito da cibercultura seja valorizada e incentivada. Isso contribui para a consolidação das tradições comuns aos estudos como bases teóricas do campo científico e ainda a respeito de fenômenos que surgem a todo momento e continuarão a surgir e a intrigar pesquisadores e leigos no futuro.

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KEEN, Andrew. O culto do amador: como blogs, MySpace, YouTube e a pirataria digital estão destruindo nossa economia, cultura e valores. Rio de Janeiro, Zahar, 2009. ______. Vertigem digital: por que as redes sociais estão nos dividindo, diminuindo e desorientando. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. 6 ed. Porto Alegre: Sulina, 2013. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. MARTINO, Luis Mauro Sá. Teorias das mídias digitais: linguagens, ambientes e redes. Petrópolis: Vozes, 2014. MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 2007. RÜDIGER, Francisco. As teorias da cibercultura: perspectivas, questões e autores. 2 ed. Porto Alegre: Sulina, 2013. SANTAELLA, Lucia. Cultura e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003. THE INTERNET is not the answer. Techonomy Media. 2014. 10’53’’. Disponível em Acesso em 25 mai. 2015. WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. 10 ed. Lisboa: Presença, 2009. 299

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Capítulo 10 Hiperlocal como um elemento de ­convergência entre a digitalização e o reforço de identidades Giovani Vieira Miranda

Algumas considerações iniciais As mudanças tecnológicas ocorridas no final do século XX e que ainda estão em curso nos primeiros anos do século XXI afetaram amplamente todos os domínios do conhecimento humano. No campo da comunicação não foi diferente: novas tecnologias propiciam novos modos de produção, distribuição e consumo de informação nas mais diferentes plataformas e meios. Esses rearranjos nas mídias conduzem a remodelações de práticas e modelos de negócios, inclusive no jornalismo, que luta para encontrar novas bases para se sustentar, além de afetar as relações sociais. As atuais tecnologias empreendem uma nova lógica, onde parece haver a dissolução do paradigma clássico da comunicação (emissor>mensagem>receptor). As tecno300

logias permitem a fruição de conteúdo em tempo real, em qualidade e quantidade antes jamais imaginadas, ao mesmo tempo em que possibilitam a interação, o compartilhamento e a criação de novos conteúdos a partir daquilo que está sendo consumido. Diante da emergência desses dispositivos, algumas tendências caminham a se sobressair e merecem ser analisadas para que a compreensão sobre o que está acontecendo seja mais ampla. No Jornalismo, a criação de conteúdo colaborativo e de caráter hiperlocal aparece como prática oriunda desses novos tempos. Na prática, as tecnologias atuais derivam dos ajustes estruturais do liberalismo global e alimentam transformações que incidem diretamente sobre os meios de produção e sobre os modos de trabalho material e simbólico. Elas afetam também as relações econômicas, a cultura e as sociabilidades cotidianas, sejam individuais ou coletivas. Também se acredita que a possibilidade de alteração de determinados padrões de produção e consumo seja derivada, principalmente, do fato dos consumidores passarem a dispor dos recursos tecnológicos para interferir nos produtos de comunicação midiática. O desenvolvimento de diversas ferramentas de interatividade permitiu a criação de um movimento crescente de usuários ativos, que passaram a rejeitar a condição de consumidores passivos de conteúdos midiáticos, alterado dessa forma, um ecossistema já traçado até então. Assim, surgiu um contexto no qual parcelas crescentes do público realizam intervenções criativas e alteram os produtos que recebem em seus dispositivos, um fator 301

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que dificulta para as indústrias criativas a preservação da integridade dos sentidos de seus conteúdos originais. Dessa forma, o movimento de constante inovação tecnológica dos meios e recursos de comunicação faz com que aumentem no território virtual do ciberespaço as intervenções não autorizadas dos usuários em produtos comerciais, assim como as manifestações e produções culturais, autorais ou coletivas. Por outro lado, em um momento quando há uma tendência de homogeneização das identidades globais devido a globalização e a intensificação dos fluxos de informação, surge o contraponto, a valorização do local, como se o cidadão, frente a tanta diversidade cultural e de valores, buscasse uma ancoragem na qual possa se referenciar e se identificar. Assim, o jornalismo de âmbito hiperlocal pode atuar como ponto de referência e identificação para culturas locais.

A emergência de uma sociedade informacional Vivemos no final do século XX e no inicio do século XXI um raro intervalo, “cuja característica é a transformação da nossa ‘cultura material’ pelos mecanismos de um novo paradigma tecnológico que se organiza em torno da tecnologia da informação” (CASTELLS, 2001, p.67). A atual revolução pode ser comparada a Revolução Industrial do século XVIII, por induzir um padrão de descontinuidade nas bases materiais da economia e

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cultura. As revoluções são caracterizadas por sua penetrabilidade, ou seja, por interferir em todos os domínios da atividade humana. São voltadas para os processos, além da criação de novos produtos. O cerne da nova revolução está nas tecnologias da informação, comunicação e processamento. A tecnologia da informação é para esta revolução o que as novas fontes de energia foram para as revoluções indústrias sucessivas, do motor a vapor à eletricidade, aos combustíveis fósseis e até mesmo à energia nuclear, visto que a geração e distribuição de energia foi o elemento principal na base da sociedade industrial (CASTELLS, 2001, p. 68).

As novas tecnologias não são meras ferramentas, mas processos sendo desenvolvidos. A mente humana é uma força direta de produção, não apenas mais um elemento no sistema produtivo. Ressalta-se ainda a amplitude dessa revolução. Enquanto as revoluções anteriores ocorreram apenas em algumas localidades e demoraram muito para se espalhar de maneira uniforme pelo globo, as atuais novas tecnologias da informação se disseminaram de maneira muito rápida ao redor do globo entre as décadas de 70 e 90, conectando o mundo através da tecnologia da informação. A partir disso, surge a “sociedade informacional” (CASTELLS, 2001) e a criação de um novo paradigma informacional (embora nem todos os países estejam no

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mesmo nível de desenvolvimento para que possamos afirmar a existência de uma sociedade informacional global) Dessa forma, as mudanças que iniciaram na década de 70 foram de fundamental importância para o rearranjo socioeconômico da década de 80 e de tudo que ocorreu nos anos 90. Pode-se listar, de acordo com Castells (2001), quais são os aspectos centrais do atual paradigma da tecnologia da informação: 1º aspecto: informação como matéria prima; 2º aspecto: penetrabilidade dos efeitos das novas tecnologias, de forma a que todos os campos do conhecimento humano sejam de alguma forma afetados pela evolução da tecnologia; 3º aspecto: lógica das redes; 4º aspecto: flexibilidade, de modo que processos, organizações e instituições podem ser mudados pela reorganização de seus componentes; 5º aspecto: convergência de tecnologias para um sistema altamente integrado. Em resumo, o novo paradigma caminha não para o fechamento como um sistema, mas para a transformação em uma rede de acessos múltiplos, adaptável em seu desenvolvimento. A disposição em forma de rede seria o principal atributo do novo paradigma informacional.

Cultura da convergência Embora a ideia de convergência midiática não seja nova, Henry Jenkins (2008) oferece a ideia de que o antigo paradigma comunicacional baseado no broadcast

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(um para muitos) está sendo substituído por uma confluência de fenômenos aos quais ele denomina como “cultura da convergência”. O autor define convergência como um: fluxo de conteúdos através múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação que vão a qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam (JENKINS,2008, p.29).

Jenkins aponta ainda que o surgimento da cultura da convergência não é apenas resultado da evolução tecnológica, e sim resultados da alteração do relacionamento das pessoas com a mídia e das indústrias de mídia entre si. “[...] a convergência representa uma transformação cultural, à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos de mídia dispersos” (JENKINS, 2008, p.30). O fenômeno da cultura da convergência estaria apoiado em três bases: convergência dos meios de comunicação, o surgimento de uma cultura participativa e a inteligência coletiva. A convergência dos meios de comunicação pode ser entendida como a convergência entre as diferentes mídias, produtores e consumidores. A convergência acaba alterando a relação entre os diferentes atores, tornando o público capaz de produzir conteúdo e mudando a forma como a indústria opera. Antes

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de qualquer coisa, a convergência se dá nos processos (JENKINS, 2008). A convergência, assim, é um processo corporativo, que flui de cima para baixo, quanto um processo de consumidor, de baixo para cima. Ambos os modelos de convergência coexistem, mas atuam de maneiras diferentes. Enquanto a convergência corporativa (de cima para baixo) se concentra na diversificação e ampliação para a produção e distribuição de conteúdos em diferentes plataformas a convergência do público se dá através de criações coletivas e amadoras, que são compartilhadas na internet de maneira espontânea. A noção de cultura participativa se centra na ideia de que a cultura da convergência não depende apenas da evolução dos aparatos tecnológicos, mas na possibilidade de interações sociais entre os consumidores e produtores de conteúdo. Para o autor, a cultura participativa envolve também as interações incentivadas pela mídia, como caixas de comentários, enquetes e participações do público, embora as práticas mais comuns da cultura participativa estejam desvinculadas das empresas de conteúdo, como vídeos e paródias de programas. Logo, os consumidores deixam de ser passivos e passam a fazer parte da cadeia produtiva, embora isso possa acarretar problemas, principalmente envolvendo questões de propriedade intelectual Por fim, a ideia de inteligência coletiva utilizada por Jenkins segue o que pensa Pierre Lévy. Ou seja, a inteligência coletiva é aquela onde o conhecimento de todos os integrantes de um grupo é reunido em prol de um objetivo. “Nenhum de nós pode saber tudo; cada um 306

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de nós sabe alguma coisa; e podemos juntar as peças, se associarmos nossos recursos e unirmos nossas habilidades” (JENKINS, 2008, p. 30). Essa união de conhecimento pode trazer benefícios além do entretenimento, criando especialistas em áreas onde eles não existem e propiciando aos participantes possibilidades de fazerem melhores escolhas. Jenkins foca sua atenção em mídias de entretenimento e não no jornalismo de maneira específica. Mas a partir de suas ideias, podemos apontar alguns aspectos da cultura da convergência no jornalismo atual. A noção de uma cultura participativa está em alta no jornalismo. Cada vez mais a participação da antes passiva audiência está sendo requisitada pelos meios de comunicação. E quando essa participação não é requisitada, ela se dá de maneira espontânea através das redes sociais e de fóruns de discussão na internet. Com a cultura participativa, a ideia de inteligência coletiva parece ganhar força com a cultura da convergência. A teoria da inteligência coletiva presume que num universo em que todos os indivíduos têm algum conhecimento, esses conhecimentos podem ser unidos e produzir conhecimentos sólidos e confiáveis. Essa teoria pode ser aproveitada pelo jornalismo, onde o conhecimento produzido por um grupo pode passar a integrar o conteúdo produzido por jornalistas. Em outros casos, pode até substituí-lo. Está se tornando normal indivíduos escolherem restaurantes ou filmes para assistir através de comentários de outras pessoas em sites e aplicativos especializados. Parece haver uma deslegitimazação 307

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do especialista, pelo menos em algumas áreas. Por último, o fenômeno da convergência dos meios modificou sobremaneira os processos de produção jornalísticos, além de colaborar com a cultura colaborativa, descrita anteriormente. Fluxos de informação foram acelerados, atividades de edição e distribuição facilitadas com os avanços tecnológicos.

O jornalismo pós-industrial Nessa sociedade informacional e convergente, processos disruptivos vêm atingindo setores da imprensa que sempre basearam suas receitas na produção em escala industrial de informação e na venda de espaço publicitário. Com a falência desse modelo, já se fala no surgimento de um jornalismo “pós-industrial”. O termo ganhou fôlego em relatório da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e aponta que mudanças no ecossistema do jornalismo estão provocando alterações no processo de produção das notícias. Se no século XX as empresas jornalísticas seguiam uma lógica industrial, essa lógica deixou de fazer sentido no começo deste século, dando origem ao que os autores denominam como jornalismo pós-industrial. Na atual conjuntura, é crescente a fuga de publicidade dos meios tradicionais, o que financiou o jornalismo durante o século passado. E o cenário não é muito animador quanto à retomada da publicidade perdida através da internet, onde as marcas

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podem chegar diretamente ao consumidor sem o intermédio de um meio de comunicação de massa. Assim, se as atuais empresas quiserem sobreviver deverão repensar seus métodos de trabalho e criar novas formas de produção baseadas nos meios digitais. Para isso, o papel dos jornalistas e das instituições é fundamental. Anderson, Bell e Shirky (2013) listam as cinco grandes convicções a respeito do jornalismo: O jornalismo é essencial; o bom jornalismo sempre foi subsidiado; a internet acaba com o subsídio da publicidade; a reestruturação se faz, portanto, obrigatória; há muitas oportunidades de fazer um bom trabalho de novas maneiras. A fuga de publicidade, que financiou o jornalismo durante boa parte do século passado dos meios tradicionais, se mostra ainda mais preocupante quando o futuro não é muito animador quanto à retomada da publicidade perdida através da internet, onde as marcas podem chegar diretamente ao consumidor sem o intermédio dos meios de comunicação tradicionais. A partir de então o papel de jornalistas, das instituições e do ecossistema no atual momento do jornalismo se tornam diferentes, e mudanças se tornam urgentes. Os jornalistas não vão ser substituídos, mas terão seu trabalho modificado. Em meio ao turbilhão de informação trafegando na rede, o jornalista pós-industrial teria a obrigação de dar ordem a essa enxurrada de informações, verificando, interpretando e dando sentido ao que é recebido, muitas vezes de pessoas que não são jornalistas. Dessa forma, em alguns casos as multidões e os amadores podem exercer o papel de um jornalista 309

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de maneira satisfatória em determinados casos, mas que em outros o jornalista sempre será melhor. Num terceiro momento, as máquinas podem substituir o jornalista, principalmente com algoritmos capazes de produzir relatos de fatos previsíveis. Entender a reviravolta na produção de notícias e no jornalismo, e decidir qual a maneira mais eficaz de aplicar o esforço humano, será crucial para todo e qualquer jornalista. Para determinar qual o papel mais útil que o jornalista pode desempenhar no novo ecossistema jornalístico é preciso responder a duas perguntas correlatas: nesse novo ecossistema, o que novos atores podem fazer, hoje, melhor do que jornalistas no velho modelo? E que papel o jornalista pode desempenhar melhor que ninguém? (ANDERSON; BELL; SHIRKY, 2013, p.42)

O jornalista pós-industrial deve ter uma lista de habilidades desejáveis. Essas habilidades são divididas em “soft skills” (mentalidade, capacidade de articular redes, eficiência, originalidade e carisma) e “hard skills” (conhecimento especializado, capacidade de interpretar dados, personalidade, habilidade de gerir projetos, compreender dados públicos, conhecimentos em programação e habilidades narrativas) As instituições, para os autores, são, acima de tudo, “uma série de normas sociais que criam padrões estáveis de comportamento” (ANDERSON; BELL; SHIRKY 2013, p.57). Essas instituições estariam vivendo um 310

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momento tanto de desgraça, quanto de ressurgimento. No atual cenário, instituições estão colapsando, outras estão surgindo e algumas estão se reinventando ao mesmo tempo em que enfrentam um dilema: enquanto essa inflexibilidade de normas e padrões foi benéfica a eles em um contexto anterior, no atual estado do jornalismo estaria dificultando a tomada de medidas necessárias para que elas se adaptem ao novo paradigma. Essa inadequação de processos costuma ser ainda mais visível em redações que produzem conteúdos para plataformas digitais, mas ainda estão presos a métodos anacrônicos de trabalho. A nova concepção de modelo de produção rompeu com a linearidade industrial presente até então nas empresas de mídia. As bruscas mudanças provocadas pela internet estão levando ao fim da linearidade dos processos e a passividade do público. Ao falar de “ecossistema” os autores dão a entender que todas as instituições sempre foram interdependentes. A chegada da internet não trouxe um novo ator ao ecossistema anterior, mas sim programou um novo ecossistema totalmente diferente do anterior. Diante dessa nova situação seria necessário que as instituições jornalísticas aprendessem a aturar em parceria com indivíduos, organizações e redes para aumentar seu alcance e diminuir custos. Segundo eles, tudo o que estará em alta daqui a sete anos já está criado, mas ainda não se popularizou de maneira satisfatória. O exemplo maior é You Tube, que já existia em 2006. Além disso, a mudanças nos processos de produção se aprofundarão e será papel de jornalistas e instituições proporem as ­alterações necessárias. 311

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O jornalismo hiperlocal e a questão de identidade Práticas do chamado jornalismo pós-industrial reforçam uma tendência bastante interessante: a importância do local na cobertura jornalística. Assim, pode-se inclusive tentar conceituar o surgimento de um jornalismo hiperlocal, onde o interesse pelo local seria a principal fonte de notícias. O jornalismo hiperlocal consiste em “uma conjunção de funções pós-massivas e massivas, onde o usuário pode ter informações mais precisas sobre o seu local de interesse a partir de um cruzamento de notícias dos jornais, dos blogs, do Twitter, da polícia, da prefeitura, etc.” (LEMOS, 2011, p.12). A dimensão hiperlocal no jornalismo (já que ele é sempre local) refere-se, em primeiro lugar, a informações que são oferecidas em função da localização do usuário (sobre o bairro, a rua, etc.), e em segundo lugar, pelas características pós-massivas desse novo jornalismo onde qualquer um pode ser produtor de informação. Essa é uma das tendências atuais do jornalismo: vinculação de notícias cruzando diversas fontes, oficiais, profissionais e cidadãs à geolocalização. (LEMOS, 2011, p.3)

Com as mídias massivas, “a opinião pública é enquadrada e agendada pelos mass media, havendo debate a posteriori, fruto do consumo de informação editada por grandes conglomerados de empresas de comunicação e jornalistas profissionais” (LEMOS, 2011, p.1). Essa 312

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e­ sfera midiática cria a noção de público e opinião pública ao mesmo tempo em que enfraquece o debate e a participação política, devido a crescente confusão entre fatos e entretenimento. As mídias pós-massivas, por sua vez, se caracterizam principalmente pela capacidade de gerar comunicação e diálogo entre “consciências engajadas em romper o isolamento e em compartilhar uma atividade conjunta” (MARTINO, 2001). Essas mídias são marcadas por “um novo formato de consumo, produção e circulação de informação que tem como característica principal a liberação do polo da emissão, a conexão planetária de conteúdos e pessoas e, consequentemente, a reconfiguração do espaço comunicacional” (LEMOS, 2011, p.2) Assim, Lemos aponta que nesse inicio de século estamos diante de um sistema comunicacional onde convivem mídias massivas e pós-massivas, possibilitando assim o surgimento de uma esfera comunicacional onde a conversação se dá no seio mesmo da produção e das trocas informativas, entre atores individuais ou coletivos (LEMOS,2011) Essa nova esfera marca uma mudança para mídias mais conversacionais do que informativas, devido ao fato de que troca se dá mais próxima ao diálogo do que a emissão-recepção. A ampliação e o refinamento do que é discutido nessa nova esfera pode resolver os problemas do engajamento político e levar a uma maior ação política e a uma ampliação da participação pública. A relação entre local e mídia é muito importante na cibercultura, uma vez que a visão que nós temos de nós mesmos que influenciada pelas mídias de massa 313

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e, ­agora, pelo o que produzimos e compartilhamos na internet. “Podemos dizer que a nova prática do jornalismo hiperlocal é mais um exemplo que ilustra a ampliação da conversação aplicada a uma dimensão mais local, permitindo maior engajamento comunitário e político” (LEMOS,2011, p.13). Engana-se quem pensa que o jornalismo hiperlocal seja uma criação das novas tecnologias. A noção de hiperlocalidade na produção de notícias surgiu na Europa, durante o século XIX, através dos Penny Press (jornais de centavo, em tradução livre). Esses jornais surgiram em contraponto aos grandes jornais, que eram seis vezes mais caros, passando a focar em notícias de âmbito local. De alguma forma, foram os precursores dos jornais sensacionalistas que ainda existem (CASTILHO, 2011). Mesmo com o surgimento dos meios de comunicação de massa, as mídias locais ainda continuaram a existir. O rádio, a TV e os jornais, mesmo atingindo um grande público, ao nascer, eram mídias de abrangência local ou regional. A partir da década de 1960, com o surgimento do video-tape e das transmissões via-satélite, veículos como rádio e televisão deixaram de ser majoritariamente locais e passaram a ter alcance nacional. Apesar disso, Peruzzo (2005) constata: Com o desenvolvimento da globalização da economia e das comunicações, num primeiro momento, chegou-se a pressupor o fim da comunicação local, para em seguida constatar o contrário: a revalorização da mesma, sua

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e­ mergência ou consolidação em diferentes contextos e sob múltiplas formas (PERUZZO, 2005, p.70).

Na Europa as bibliografias sobre mídias locais surgem em grande número já a partir da década de 80, enquanto no Brasil esse fenômeno só foi percebido na década seguinte. Isso se dá por razões históricas e culturais, além do grau de importância da mídia local em cada região.  As regiões autônomas europeias (Catalunha, País Basco, Galícia) devido a especificidades linguísticas e culturais tendem a desenvolver seus próprios veículos de comunicação, enquanto no Brasil a ideia de integração nacional vinda da época da Ditadura militar ainda prevalece nos meios de comunicação (PERUZZO, 2005) Ainda assim, os conteúdos locais não estão totalmente ausentes dos veículos de âmbito nacional, mas quase sempre estão presentes por interesses puramente mercadológicos. Os conteúdos veiculados são quase sempre jornalísticos, com tempo bastante limitado, em horários pouco favoráveis, além de seguirem obrigatoriamente os padrões e estruturas das grandes redes, o que inibe o aparecimento de traços culturais locais, como o sotaque, por exemplo, (PERUZZO, 2005). Ao se discutir a questão do local nos meios de comunicação algumas questões surgem: a primeira delas é a questão das fronteiras: os meios de comunicação têm por hábito transgredir fronteiras, tornando-se impossível delimitar com clareza o que é local, o que é regional ou que é comunitário. A segunda questão é o aspecto 315

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do território. Além de um marco geográfico, o território pode ser de base cultural, linguística, ideológica, entre outras. Esses aspectos podem ser tão ou mais importantes que o conceito físico de território, uma vez que podem unir grupos através da construção de laços além do espaço geográfico. A terceira questão foca nas relações entre a globalização e o local: superou-se a ideia de que a globalização iria sufocar o local. “A realidade vai evidenciando que o local e o global fazem parte de um mesmo processo: condicionam-se e interferem um no outro simultaneamente” (PERUZZO, 2005, p.74) A superposição e aproximação do local-global deu origem ao termo “glocal”, uma aproximação entre o que está próximo e o que está distante pelas relações dos fluxos comunicacionais. “Glocal é um neologismo usado para indicar a superposição de um conceito global a uma realidade local, a partir de um meio de comunicação, prioritariamente (mas não exclusivamente) operando em tempo real. No ambiente glocalizado, o sujeito se vê em um contexto simultaneamente local (o espaço físico do acesso, mas também o seu meio cultural) e global(o espaço mediático da tela e da rede, convertido em experiência subordinativa da realidade).Sem o fenômeno da glocalização, suporte comunicacional das trocas em escala global, a derrubada das fronteiras para a circulação de produtos, serviços, formas políticas e ideias estaria prejudicada ou impossibilitada” (COZELATO, 2007, p. 49 apud ROCHA, 2014, p. 157).

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Alguns teóricos defendem a atualização do termo globalização por glocalização, enquanto Castells aponta a internet, por suas características próprias, como uma grande representante dessas ligações entre global-local. Ao mesmo tempo em que pode provocar desterrioralidades, a internet desperta novamente o interesse pelo local, e por que não, o surgimento de novas identidades e terrioralidades. Além de propiciar uma maior pluralidade de informações e oferecer novas oportunidades de inovação e emprego no jornalismo, as práticas de hiperlocalidade reforçam a noção de identidades culturais cada vez mais fortes mesmo diante de um mundo extremamente globalizado, onde parece haver uma homogeneização das identidades. Identidades locais, comunitárias e regionais têm se tornado mais importantes ao mesmo tempo em que a globalização parece provocar uma homogeneização das culturas. Concomitantemente, junto com o impacto do global, um novo interesse pelo local parece emergir. De acordo com Hall (2000) a “globalização” afeta a questão da identidade cultural e que as sociedades modernas se baseiam na noção de descontinuidade, fragmentação e ruptura. Hall define a globalização como “processos, atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornado o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado”. (HALL, 2000, p.67). A globalização, para ele, deslocou as identidades culturais no final do século XX. 317

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Diante da morte do sujeito moderno, as culturas nacionais emergem como formadoras da identidade cultural. “[...] as identidades nacionais não são coisas com as quais nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação” (HALL, 2000,p.48). As culturas nacionais buscam unificar seus integrantes numa identidade única, sem levar em conta termos de classe, gênero ou raça. As culturas nacionais não devem ser pensadas como culturas unificadas, e sim como um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. As identidades culturais nacionais servem para costurar as diferenças numa única identidade. Segue-se que a nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos- um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/dãs legais de uma nação; elas participam da ideia da nação tal como representada em sua cultura nacional. Uma nação é uma comunidade simbólica [...] (HALL, 2000,p.49).

A globalização então deslocou as identidades no final do século XX. Para Hall, a globalização se constitui em: [...] processos atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo, tornado o mundo, em realidade e em experiência, mais interconectado. (HALL, 2000, p.67).

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As consequências da globalização para as identidades culturais podem ser resumidas em três pontos: -As identidades culturais nacionais estão se desintegrando, como resultado do crescimento da homogeneização cultural e do “pós-moderno global” -As identidades nacionais e outras identidades “locais” ou particularistas estão sendo reforçadas pela resistência a globalização -As identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades híbridas estão tomando em seu lugar. Hall aponta que alguns teóricos acreditam que um dos efeitos desses processos globais seria enfraquecer ou solapar formas nacionais de identidades culturais. Identidades locais, comunitárias e regionais têm se tornado mais importantes ao mesmo tempo em que a globalização parece provocar uma homogeneização das culturas. Ao mesmo tempo, junto com o impacto do global, um novo interesse pelo local parece emergir. Castells também aponta para uma nova valorização do local diante do novo paradigma que se torna presente, mostrando que as mudanças em nosso tempo (onde as instituições perdem força) estão fazendo com que a busca da identidade se torne fonte básica de significado social. As novas tecnologias da informação estão integrando o mundo em redes globais de instrumentalidade. A comunicação mediada por

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c­ omputadores gera uma gama enorme de comunidades virtuais. Mas a tendência social e política característica da década de 90 era a construção da ação social e das políticas em torno de identidades primárias- ou atribuídas, enraizadas na história e geografia, ou recém construídas, em uma busca ansiosa por significado e espiritualidade. Os primeiros passos históricos das sociedades informacionais parecem caracterizá-las pela preeminência da identidade como seu princípio organizacional. (CASTELLS, 1999, p. 57)

Diante do reforço das identidades locais perante a homogeneização das culturas provocadas pela globalização dos fluxos informacionais, o jornalismo hiperlocal pode oferecer narrativas que relatem as identidades locais, fazendo com que perfis históricos e culturais possam se sustentar, além de valorizar a memória do lugar (LEMOS; PEREIRA, p.4,2011). Ao favorecer a abordagem local, o jornalismo se torna importante fomentador de práticas cidadãs. Uma vez que, na infinidade das metrópoles a uniformidade de identidades parece mais latente, valorizar a localidade pode criar maneiras de sociabilização, principalmente nas regiões mais periféricas Especialmente os setores populares, ou seja, os que não têm carro ou telefone tendem a restringir o horizonte da cidade ao próprio bairro: ali se elaboram as redes de interação que desempenham modalidades distintas dentro de uma

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mesma cidade, e só se abrem- limitadamente- às grandes veias da metrópole quando seus habitantes têm de atravessá-la nas viagens para o trabalho, realizar um negócio ou buscar ou serviço excepcional (CANCLINI, 2005, p.102-103).

Somada a políticas públicas eficientes, o jornalismo hiperlocal pode ajudar a promover e contribuir para que se mantenham traços históricos que distinguem os habitantes de determinado lugar, e assim despertar a responsabilidade dos seus cidadãos (CANCLINI, 2005). Se com o surgimento dos satélites já se imagina uma interligação “local-global”, pois seria possível ver imagens em tempo do globo todo, a internet acentuou essa sensação e permitiu ainda mais próxima a relação “local-global”. A internet, devido a seu funcionamento descentralizado permite diversos usos e a divulgação de variadas vozes, inclusive no jornalismo. Assim, surgem ao mesmo as edições eletrônicas de grandes jornais e portais de notícias junto com sites enfocadas na informação de proximidade e de serviços específicos. No cenário convergente em que vivemos, a colaboração passa a ser fator determinante. Ao mesmo tempo em que jornalistas desenvolvem coberturas cada vez mais rápidas, o consumidor de informação é convidado a participar do relato, enviando todo tipo de conteúdo possível através das redes sociais. (CARVALHO; CARVALHO, 2014) [...] o jornalismo passa por uma transformação que transita entre a circulação da informação 321

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em tempo real, dinâmica e de grande alcance e a necessidade de adaptar a produção de conteúdo para o público local. De modo geral, o hiperlocal atua em duas frentes: uma editorial e uma comercial. Na primeira, com o surgimento da necessidade do leitor de encontrar aquilo que realmente quer com facilidade, em uma navegação cada vez mais direcionada (favoritos, RSS, Twitter), os veículos que destacam o trânsito, a segurança ou o time de uma cidade, bairro ou rua, têm chance maior de sucesso. No quesito comercial, o oferecimento de produtos que tenham o foco definido, com potencialidade de criar um relacionamento estreito com o leitor, é um grande atrativo para o anunciante (CARVALHO; A.M.G.;CARVALHO, J.M.; 2014, p.74).

Devido ao seu caráter colaborativo, o jornalismo hiperlocal só se torna possível com a participação do público na produção das notícias. Contudo, experiências existentes já demonstraram que de nada adianta centenas de leitores enviarem conteúdo, uma vez que não haverá condições de analisar todo material (CASTILHO, 2012). Alternativas viáveis existem e podem criar novas formas de dar fôlego às combalidas empresas jornalísticas e aos pequenos jornalistas produtores de notícias locais. Castilho (2012) sugere que sejam feitas trocas de conteúdo por audiência entre os independentes, que podem assim ter acesso ao grande público e podem criar novas formas de financiamento, desde os tradicionais anúncios até a elaboração de reportagens patrocinadas através de

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financiamentos coletivos. Diante de uma situação de crise dos modelos de negócio do jornalismo tradicional, voltar as atenções para o hiperlocal pode se tornar uma nova esperança, mesmo com todas as incertezas desse novo modelo. A cobertura comunitária voltou a ser uma preocupação da imprensa no auge da crise do modelo de negócios dos jornais, principalmente nos Estados Unidos. O segmento é visto como uma espécie de tábua de salvação no momento em que o público perde interesse nas notícias políticas bem como na informação internacional. (CASTILHO, 2011)

Antes praticado apenas por ONG’s e Universidades, os grandes veículos vêm aos poucos adotando práticas de jornalismo hiperlocal (CASTILHO,2011). O New York Times lançou o projeto The Local, onde notícias de bairros da cidade de Nova York eram produzidos através do material enviado pelos leitores. No Brasil, uma experiência similar foi desenvolvida no site Bairros.com, vinculado a Globo.com, que divulgava notícias de pequenas localidades da região metropolitana do Rio de Janeiro. Além disso, as experiências hiperlocais no jornalismo brasileiro são focadas em pequenas atividades envolvendo redes sociais como o Facebook, Twitter e Orkut, além de sites de compartilhamento de vídeos como o YouTube. (LEMOS; PEREIRA, 2011). Mesmo com várias perspectivas em torno das possi-

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bilidades de práticas hiperlocais, os veículos que se aventurarem por esse caminho terão que solucionar alguns problemas. O primeiro deles é conseguir constituir um público grande o suficiente, aumentar sua visibilidade e conseguir conhecer as características da sua audiência. O segundo problema é semelhante ao enfrentado por qualquer outro veículo jornalístico: o financiamento. Pouco se sabe como veículos de jornalismo hiperlocal podem ser tornar sustentáveis. No Reino Unido, a maioria deles recorre aos tradicionais anúncios, mas há alternativas, como financiamentos coletivos e editais. Ainda assim, poucos são lucrativos (WILLIANS, 2014).

Algumas considerações As mudanças tecnológicas estabelecidas no final do século XX mudaram radicalmente o ecossistema dos meios de comunicação e tocam nesse início do século XXI todos os domínios da vida humana. Com o jornalismo em específico não foi diferente. A alteração do papel do jornalista, o uso massivo de redes sociais e o crescimento de coberturas colaborativas questionam o modelo industrial de jornalismo que se consolidou no século passado. Além da mudança no processo, as empresas jornalísticas passaram a sofrer para se manterem sustentáveis financeiramente. A valorização da cobertura de âmbito local pode oferecer alguma esperança nesse momento de incerteza do

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jornalismo. Embora algumas incertezas se mostrem, o enfoque no hiperlocal pode proporcionar um maior envolvimento da audiência. Juntamente com a criatividade, a prática jornalística calcada na localidade pode trazer grandes ganhos ao jornalismo em um momento de incertezas e dificuldades. Resta tirar proveito disso e equacionar questões como fidelização e ampliação da audiência, além de melhorar questões relativas ao financiamento para que a inovação propiciada pela criatividade e pela tecnologia possa trazer desenvolvimento econômico e social, não só para o jornalismo. Ademais, o jornalismo hiperlocal fornece um importante referencial de sustentação das identidades culturais locais e assim colaborar com a participação cidadã mais qualificada e envolvida com as questões inerentes a cada local, principalmente aqueles em que as mídias tradicionais e hegemônicas costumam excluir da cobertura praticada atualmente.

Referências ANDERSON, C. W.; BELL, E.; SHIRKY, C. Jornalismo Pós Industrial. Revista de Jornalismo da ESPM, São Paulo, n. 5, p.30-89, abril-junho.2013. Disponível em: Acesso em 25. Abr.2015. CANCLINI, N.G. Consumidores e Cidadãos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005 325

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CARVALHO, J.M; CARVALHO; A.M.G. Do hiperlocal aos insumos criativos: as mutações do jornalismo na contemporaneidade. In: CARVALHO,J.M; BRONOSKY (Org.) Jornalismo e Convergência. São Paulo, Cultura Acadêmica. 2014. p. 69-87 CASTELLS, M. A sociedade em rede. v. 1. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CASTILHO, C. Jornalismo Hiperlocal ganha adeptos na grande imprensa. Observatório da Imprensa. Disponível em Acesso em 25. Abr. 2015 ____________. Jornalismo hiperlocal: luz no fim do túnel. Observatório da Imprensa. Disponível em Acesso 25. Abr. 2015. GOMES, R.J; VIEIRA, E. Geotagging, Hiperlocalidade e as suas influências no Jornalismo Contemporâneo. Revista Anagrama: Revista Científica Interdisciplinar da Graduação. Ano 5. Edição 2. São Paulo, 2011. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 4ª Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. JENKINS, H. Cultura da Convergência. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009.

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LEMOS, A. Nova Esfera Conversacional. In: Dimas A Künsch, D.A, da Silveira, S.A, et al. Esfera Pública, redes e jornalismo. Rio de Janeiro. Editora. E-papers, 2009. LEMOS, C.E.B; PEREIRA, R.M. Jornalismo hiperlocal no contexto multimídia: um relato da experiência do jornal-laboratório Contramão Online. XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste. São Paulo, 2011. WILLIANS, A. Tendências e desafios dos sites de jornalismo hiperlocal. Observatório da Imprensa. Disponível em Acesso em 25.abr.2015

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Capítulo 11 Jornalismo de dados: influência da construção narrativa no agendamento midiático1 Kelly De Conti Rodrigues2

Introdução Quando se aborda a representação objetiva da realidade, é comum a utilização de números e estatísticas com a intenção de mostrar precisão a respeito do tema tratado. A

1. Trabalho apresentado na disciplina “Teorias da Comunicação”, ministrada pelo Prof. Dr. Osvando José de Morais, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FAAC-UNESP). 2. Discente do Programa de Mestrado em Comunicação Midiática da Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (FAAC-UNESP) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). E-mail: [email protected] 328

matematização das ideias, portanto, age como legitimadora das informações. Esse fenômeno ocorre tanto na ciência quanto em práticas profissionais, sobretudo aquelas que se fazem assumir como referenciais, como no jornalismo. Neste, aliás, os números conferem credibilidade à informação, fazendo com que o público passe a acreditar com mais segurança no conteúdo descrito. Nesse contexto, os infográficos passaram a preencher papel importante ao detalhar os dados e torná-los visualmente mais atrativos. A proposta desta pesquisa é abordar como a construção discursiva influencia o efeito de sentido e, consequentemente, o entendimento das matérias jornalísticas. Focamos nos casos do Estadão Dados e do jornal Folha de S. Paulo em matérias que utilizam o jornalismo de dados e infografia.

A hipótese do agendamento midiático A hipótese – ao contrário da teoria – é um sistema aberto, sempre inacabado, composto de previsões sobre determinado fenômeno e de seu comportamento. Trata-se de uma experiência dentro de um caminho de pesquisa. A agenda-setting se enquadra nessa perspectiva, uma vez que se caracteriza como uma seleção de temas e de conhecimentos sobre a mediação simbólica, que exercem influência sobre a realidade social e seus efeitos de sentido. Mais precisamente:

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Em consequência da ação dos jornais, da televisão e dos outros meios de informação, o público sabe ou ignora, presta atenção ou descura, realça ou negligencia elementos específicos dos cenários públicos. As pessoas têm tendência para incluir ou excluir dos seus próprios conhecimentos aquilo que os mass media incluem ou excluem do seu próprio conteúdo. Além disso, o público tende a atribuir àquilo que esse conteúdo inclui uma importância que reflete de perto a ênfase atribuída pelos mass media aos acontecimentos, aos problemas, às pessoas. (SHAW, 1979, p.96 apud WOLF, 2001, p.144).

A origem do conceito de agendamento está no pensamento do jornalista norte-americano Walter Lippman, que trabalhou com muitas pesquisas de opinião nos Estados Unidos na primeira metade do século XX. Para ele, a notícia não é um simples espelho das condições sociais. Ele aproxima os conceitos de notícia e opinião pública. Contudo, a formulação clássica do conceito surge nos Estados Unidos no final da década de 1960 com Maxwell McCombs e Donald Shaw. O primeiro trabalho de investigação empírica relacionado ao agendamento surgiu aplicado a um estudo das campanhas políticas das eleições estadunidenses de 1968. Ele tinha como objetivo analisar a influência da mídia no eleitorado. A amostra teve como base cem eleitores indecisos, que foram submetidos a uma questão de agendamento sobre os assuntos sociais de maior atenção naquele determinado m ­ omento. De

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acordo com as respostas obtidas, foi p ­ ossível estabelecer a agenda pública de questões eleitorais que mais preocupavam os eleitores (MCCOMBS, 2009). Com isso, pode-se dizer que essa hipótese configura-se como um processo que correlaciona a agenda midiática e a agenda pública. A partir disso, é possível notar que a capacidade da mídia de influenciar a projeção dos acontecimentos na opinião pública impacta a “figuração da nossa realidade social, isto é, de um pseudoambiente, fabricado e montado quase que completamente a partir dos mass mídia” (MCCOMBS; SHAW, 1977, apud TRAQUINA, 2001, p.14). A ação da mídia no conjunto de conhecimentos sobre a realidade social forma a cultura e age sobre ela. Para Noelle Neumann, ao abordar a espiral do silêncio, essa ação tem três características básicas: a acumulação (a capacidade da mídia para criar e manter relevância de um tema), a consonância (as semelhanças nos processos produtivos de informação tendem a ser mais significativas do que as diferenças) e a onipresença (o fato da mídia estar em todos os lugares com o consentimento do público, que conhece sua influência). Nessa ação sobre a cultura, para Alsina (2009, p. 11), o discurso noticioso como construção de uma realidade simbólica, pública e cotidiana “são, como todo o mundo, construtores da realidade ao seu redor. Mas também conferem estilo narrativo a essa realidade, e, divulgando-a, a tornam uma realidade pública sobre o dia-a-dia”. Isso demonstra a importância do estudo dos enunciados jornalísticos e suas intencionalidades. 331

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O discurso jornalístico e a construção da realidade A construção discursiva da autoridade nas narrativas jornalísticas é um assunto que vai além da mera tentativa de adequação de um processo de investigação com uma estrutura de narração específica. Como nos lembra Certeau (2008), o jornalismo se configura como uma escritura desdobrada que, a partir de diferentes procedimentos discursivos e técnicas de investigação específicas da prática, tem a missão tripla de convocar o acontecimento, mostrar as competências do jornalista (dono das fontes de informação) e convencer o espectador. Desde o famoso texto de Roland Barthes (1984) sobre o efeito de real nas narrativas que se pretendem referenciais, essa construção discursiva da autoridade é muitas vezes posta nos termos de uma narrativa que se constrói a partir do mascaramento do enunciador, de forma que se crie a impressão de que o acontecimento se narra sozinho. O que Barthes propõe nesse texto é o delineamento de um tipo de modelo de verdade que está calcado em estratégias textuais comumente utilizadas nos discursos referenciais tais como a história, o jornalismo ou as narrativas literárias realistas. Quando Barthes fala de “ilusão referencial”, ele está se referindo a uma série de estratégias que criam a ilusão de que o que é representado pode ser misturado ao próprio real, revestindo o discurso dos privilégios do aconteceu. O efeito de real, portanto, em seu entendimento, é um efeito de sentido que se dá a partir do uso de um 332

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­ eterminado número de técnicas discursivas que dão d sustentação e embasamento a esse tipo de modelo de verdade. No nível da enunciação, uma das técnicas principais está na tentativa de apagamento dos signos relacionados ao anunciante do discurso. Esse apagamento, contudo, impõe uma quantidade considerável de problemas, na medida em que, se uma narrativa pode prescindir de um destinatário manifesto no texto (não é preciso convocar o leitor para que haja estória), toda narrativa, necessariamente, precisa de um narrador. Pêcheux (2008) também aborda essa tentativa de ocultamento do enunciador. Para ele, o narrador, ao pensar sobre aquilo que quer dizer, faz uma interpretação do(s) discurso(s) que norteia(m) a narrativa que irá produzir. A partir dessa ideia, Pêcheux afirma que interpretar é produzir um enunciado que “traduza” o enunciado de origem. Por esse motivo, defende que o ato de descrever se trata de um processo que não pode ser dissociado da interpretação. Já Sousa (2006) também aponta os títulos como importantes elementos textuais na produção do discurso jornalístico, pois ajudam a construir o formato no qual um conteúdo será apresentado. Além de informar, os títulos também têm a função de despertar a atenção do leitor para a leitura de determinada matéria. Segundo o autor, os títulos ainda são utilizados como estratégia para não somente atrair o leitor, mas também direcionar sua compreensão e interpretação, colaborando para que o discurso jornalístico seja consumido da forma como 333

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foi pensado e construído pelo jornalista ou veículo de comunicação. Assim, a realidade observada em textos jornalísticos pode projetar uma imagem que, se analisada mais amplamente, destoará o conteúdo dos textos do objeto às quais se referem. Em resumo, [...] o texto jornalístico mantém relações com a realidade, mas constrói jornalisticamente um mundo que o leitor pode confundir como sendo o mundo extra-mental. Na verdade, o jornalismo apresenta aos leitores um tratamento da realidade, mas que pode ser confundido com um retrato do mundo (SILVA, 2006, p. 15).

A partir disso, pode-se concluir que o discurso jornalístico se enquadra no que o filósofo Chaïm Perelman (2005, p. 347) descreve como “argumento de autoridade”. Trata-se de uma forma de indução retórica, utilizada pelo enunciador, capaz de facilitar o processo de persuasão do auditório. Ele explica que é mais difícil fazer questionamentos sobre os discursos de alguém que tenha credibilidade junto ao público do que aceitar passivamente os apontamentos de um orador que não goze desse prestígio. Por esse motivo, é possível afirmar que o jornalista é alguém que dispõe dessa prerrogativa social para dizer/descrever “a verdade”, com menor desconfiança sobre seus apontamentos. Mesmo que o “eu” não apareça diretamente no discurso proferido, ele está previamente autorizado pela

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credibilidade da classe dos jornalistas, bem como pode ser corroborado pela confiança sobre a instituição que representa. Somando-se a isso, o produtor do discurso jornalístico ainda utiliza vários recursos para aumentar a fidedignidade de sua narrativa. Como afirma Perelman, As autoridades invocadas são muito variáveis: ora será ‘o parecer unânime’ ou ‘a opinião comum’, ora certas categorias de homens, ‘os cientistas’, ‘os filósofos’, ‘os Padres da Igreja’, ‘os profetas’, por vezes a autoridade será impessoal: ‘a física’, ‘a doutrina’, ‘a religião’, ‘a Bíblia’; por vezes se tratará de autoridades designadas pelo nome (PERELMAN, 2005, p.350).

Nesse contexto, ganha cada vez mais evidência a utilização de dados numéricos, sobretudo oriundos de pesquisas de instituições de credibilidade perante a sociedade em geral, para legitimar o discurso jornalístico.

O jornalismo de dados A utilização de bases de dados numéricas no jornalismo ganhou mais recorrência sobretudo no final da década de 1960. Nesse momento, houve o desenvolvimento do chamado Jornalismo de Precisão – a partir do qual derivaram as técnicas do Jornalismo Guiado por Dados, conforme ficou mais conhecido atualmente – com ­Philip Meyer, então repórter do Detroit Free Press.

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O jornalista desenvolveu a reportagem “The People Beyond 12th Street” (posteriormente comtemplada pelo Prêmio Pulitzer), em 1967, que propunha a utilização de metodologias de pesquisa das Ciências Sociais para conhecer as causas e as características dos participantes de motins urbanos que aconteciam com frequência em Detroit. A cidade passava por um período de distúrbios sociais após uma invasão policial a um bar clandestino em 23 de julho. Esse acontecimento foi o estopim para que outros moradores locais se inflamassem e promovessem manifestações durante cinco dias. O resultado foi a destruição de várias ruas da cidade, além de deixar 43 mortos e 7 mil pessoas detidas. Não se sabia o motivo exato do que ocorreu, mas duas teorias predominavam: 1) Grupos de camadas econômicas mais baixas e com baixo grau de escolaridade causavam esses motins como forma de expressão; 2) Imigrantes, sobretudo descendentes de africanos, do sul da cidade causavam esses motins pois enfrentavam dificuldades para serem assimilados na cultura do norte (ROSEGRANT, 2011, s.p.). Após passar um ano estudando Ciências Sociais em Harvard, o repórter Philip Meyer participou da cobertura dessas manifestações e sugeriu a aplicação de um questionário baseado em uma amostra representativa da população dos bairros afetados. O resultado mostrou que não havia correlação entre condição econômica e participação nos distúrbios e que os nativos da cidade eram três vezes mais propensos a participar de saques, agressões, homicídios e incêndios do que os imigrantes do Sul (TRASEL, 2014, p. 97). 336

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Anos depois, Meyer publicou o livro “Jornalismo de Precisão”, no qual defende a volta da objetividade às redações – naquele momento, o New Journalism possuía grande espaço nos veículos de comunicação – por meio dos números. O repórter, aliás, defende a cientificidade desse processo. O novo jornalismo de precisão é um jornalismo científico. [...] Isso significa tratar o jornalismo como se ele fosse uma ciência, adotando método científico, objetividade científica e ideais científicos em todo o processo de comunicação de massa (MEYER, 1991).3

Com o passar dos anos, a incorporação de dados numéricos em matérias jornalísticas ficou mais recorrente e ganhou ares de legitimação do discurso. Essa construção narrativa por meio de números, ainda mais aliada à infografia, passa por seleções e interpretações do profissional. Com o auxílio de computadores, tanto o acesso e a análise de pesquisas quanto a produção de infográficos se tornou mais fácil e frequente nos veículos de comunicação e, como vimos anteriormente, há diversos aspectos que influenciam a produção discursiva dos enunciados que se utilizam desses recursos.

3. The new precision journalism is scientific journalism. […] It means treating journalism as if it were a science, adopting scientific method, scientific objectivity, and scientific ideals to the entire process of mass communication. 337

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Apesar da defesa da objetividade desse tipo de fazer jornalístico, o próprio Meyer (2002, p.19) cita que “os números são como fogo. Eles podem ser usados para o bem ou para o mal. Quando mensurados, eles podem criar ilusões de certeza e importância que nos tornam irracionais”4. É essa tensão entre a objetividade e a subjetividade da construção discursiva que guia esta pesquisa. Traremos, com isso, algumas observações sobre essa relação por meio da análise de alguns infográficos do corpus selecionado.

O discurso inquestionável dos números Uma das percepções que parte do público tem da fotografia é a sensação de “congelamento” do fato representado na sua exata forma, portanto inquestionável. Contudo, é sabido que muitos fatores são, evidentemente, influenciadores em uma narrativa fotográfica, a exemplo do enquadramento. Outro recurso muito utilizado quando se deseja legitimar uma informação é recorrer a algumas fontes “autorizadas”, como instituições governamentais e especialistas de determinadas profissões.

4. Numbers are like fire. They can be used for good or ill. When measured, they can create illusions of certitude and importance that render us irrational 338

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Ao abordar a representação objetiva da realidade, os dados numéricos, sobretudo oriundos de pesquisas de instituições de credibilidade perante a sociedade em geral, funcionam como ferramentas para mostrar precisão a respeito do tema tratado. Contudo, esse papel dos números no jornalismo pode ser ilusório, uma vez que os organizadores das informações que irão compor o produto final utilizam mecanismos retóricos e discursivos para atribuir sentido. Como destaca Pêcheux (2008, p. 53), todo discurso está exposto ao que chama de “equívoco da língua”, ou seja, “todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro”. A respeito dos discursos midiáticos, aliás, Certeau (1994, p. 288) afirma que esses relatos têm “o duplo e estranho poder de mudar o ver num crer, e de fabricar o real com aparências”. Ou seja, ele reflete sobre essa ideia da abordagem das cenas sociais por meio de instrumentos linguísticos que pretendem mostrá-las como uma realidade visível, e não apenas representações das mesmas. O grande silêncio das coisas muda-se no seu contrário através da mídia. Ontem constituído em segredo, agora o real tagarela. Só se veem por todo o lado notícias, informações, estatísticas e sondagens. Jamais houve uma história que tivesse falado ou mostrado tanto. Jamais, com efeito, os ministros dos deuses os fizeram falar de uma maneira tão contínua, tão 339

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­ ormenorizada e tão injuntiva como o fazem p hoje os produtores de revelações e regras em nome da atualidade. Os relatos do-que-está-acontecendo constituem a nossa ortodoxia. Os debates de números são as nossas guerras teológicas. Os combates não carregam mais as armas de ideias ofensivas ou defensivas. Avançam camuflados em fatos, em dados e acontecimentos. Apresentam-se como os mensageiros de um “real”.

É por meio das afirmações (e também dos ocultamentos) que a mídia cria narrativas que objetivam conquistar a confiança do público em torno da sua credibilidade. Partindo da Análise de Discurso de tradição francesa como campo teórico-metodológico para este trabalho, abordaremos aspectos que conformam o discurso, como a noção de “dito e não dito”. Tal ideia faz menção aos pressupostos em um discurso, ou seja, algo que não foi colocado claramente, mas que guarda relevância para o analista que pretende depreender sentidos discursivos.

Construção da realidade por meio de dados: análise do Estadão e da Folha De S. Paulo Para a análise a respeito das reflexões trazidas anteriormente, este estudo utilizou como corpus os conteúdos publicados pelo Estadão Dados na aba “Gráfico do

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Dia” e no jornal Folha de S. Paulo, entre os dias 03 de outubro de 2014 e 07 de abril de 2015, que utilizam dados numéricos como eixo da matéria. A partir destes, sorteamos algumas delas para análise e trazemos dois desses casos a seguir. Em “Confiança do consumidor para de cair após 5 meses – e isso não é ruim para Dilma”, publicado em 7 de abril de 2015, a escolha das palavras e da organização destas são importantes na produção de sentido. O título possui forte carga semântica. A segunda parte do enunciado – “e isso não é ruim para Dilma” – aparece logo após um hífen. Essa construção cria uma ênfase para essa conclusão. Outro ponto em destaque é que dizer que “para de cair” e “não é ruim” são formas que criam um tom mais negativo da situação. Outra organização para o enunciado poderia ser “confiança do consumidor se mantém estável” e “isso é bom para Dilma”. Pode-se ainda contestar esse discurso de autoridade dos dados numéricos – que tenta isentar de dúvidas a sua veracidade – a partir da maneira como estão dispostos. No caso do conteúdo de “Confiança do consumidor para de cair após 5 meses – e isso não é ruim para Dilma”, a projeção leva a crer que a taxa de confiança do consumidor tem relação direta com o saldo de popularidade da presidente, como aponta a frase “desconfiança do consumidor prenuncia queda de popularidade” acima do gráfico. Contudo, é preciso lembrar que vários outros fatores podem determinar a elevação ou queda de cada um deles. O Índice Nacional de Expectativa do 341

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Consumidor (INEC), por exemplo, é um indicador que avalia o sentimento do consumidor quanto a fatores que afetam sua disposição de compra. As informações são coletadas por intermédio de pesquisa de opinião pública, e o INEC ajuda a prever variações no ritmo da atividade econômica, estimando alterações no nível de consumo das famílias. Essa medida da confiança do consumidor depende do poder de compra, da variação salarial, dos índices de desemprego, das variações cambiais etc. Ou seja, é difícil avaliar uma relação tão íntima, de causa e consequência, com a popularidade presidencial. Até mesmo o design escolhido influencia a leitura, uma vez que a relação diretamente proporcional que se busca criar fica mais evidente na estrutura escolhida. Um olhar superficial já é suficiente para perceber que as barras que indicam o INEC acompanham a curva de popularidade presidencial. Se os dados estivessem em artes separadas, ou até mesmo ambas dispostas em barras, essa visualização seria mais difícil. A proposta do jornal é passar essa perspectiva de que os elementos estão correlacionados, ou seja, verifica-se, com isso, a marca da interpretação do enunciador, do “eu” que está escondido por trás dos números.

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Figura 1. Infográfico divulgado pelo Blog Estadão Dados, em 2013, comparando a popularidade da presidente Dilma Rousseff e o Índice de Expectativa do Consumidor

Os elementos analisados, portanto, mostram algumas das estratégias discursivas de convencimento das ideias que se pretendem transmitir por meio de elementos como os números estatísticos e o ocultamento do enunciador. O outro infográfico da amostra foi divulgado pelo jornal Folha de S. Paulo no dia 07 de dezembro de 2014. A matéria em questão destaca o resultado de uma pesquisa Datafolha, realizada pelo mesmo grupo de comunicação, e o infográfico combina os atuais números com resultados da mesma consulta de opinião em anos anteriores. Assim como no primeiro exemplo, ele aborda alguns índices relacionados ao governo da presidente Dilma Rousseff, reeleita em 26 de outubro de 2014. O infográfico é composto pelos seguintes tópicos: a) a responsabilidade da presidente Dilma no caso Petrobras; b) o grau de conhecimento dos entrevistados sobre o caso; c) níveis de combate à corrupção nos mandatos dos seis últimos presidentes do Brasil; d) a expectativa quanto ao desempenho de cada um dos últimos cinco presidentes dias antes de suas respectivas posses. Inicialmente, é preciso contextualizar que o “caso Petrobras” se refere a uma operação, iniciada em 2014, que investiga um suposto esquema de lavagem e desvio de dinheiro envolvendo essa empresa estatal brasileira, grandes empreiteiras do país e políticos. A matéria, cuja chamada de capa foi “Brasileiro responsabiliza Dilma por caso Petrobras”, associa a figura da chefe do 344

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­ xecutivo ao escândalo, tanto por meio da manchete taE xativa quanto pela forma como elenca os dados. Um elemento que pode ter influenciado o número que recebeu mais destaque do jornal é a forma como ocorreu a elaboração da pergunta “Dilma tem responsabilidade sobre o caso?”. O termo “responsabilidade” se torna muito genérico nesse contexto. Por exemplo, as respostas afirmativas podem ter interpretações como: “ela sabia das irregularidades, mas nada fez”; “ela teve participação ativa, portanto estava diretamente envolvida nos desvios”; “ela tem responsabilidade, mas porque escolheu ou aprovou os gestores da Petrobras”; dentre outras variadas formas de observar essa pergunta. Desse modo, nota-se a dificuldade de representação da realidade concreta e imutável em um discurso, o que influencia nos índices apresentados. Já a respeito da maneira como os números foram divulgados no infográfico em questão, nota-se que, enquanto a pergunta destacada pelo jornal aponta uma avaliação negativa do governo, os demais índices mostram o oposto. Se os números positivos para Dilma fossem o destaque da manchete e também da ordem disposta no infográfico (na publicação da Folha, o gráfico sobre o caso da estatal é consideravelmente maior e está no topo em relação aos outros), a percepção a seu respeito poderia tomar contornos afirmativos. A hierarquia escolhida para a apresentação dos dados, portanto, também é importante na produção de sentido, uma vez que aquilo a que se confere mais destaque 345

A Comunicação, Meios e Interações

possui uma probabilidade muito maior de também ser recebido como ponto mais importante pelo público. O fato de ser o índice com maior ênfase também tem a possibilidade de criar um estado de espírito no receptor capaz de influenciar a forma de recepção das demais informações. Também observando sob essa perspectiva, o gráfico que aborda a ligação da presidente no caso Petrobras está dividido entre aqueles que atribuem muita (43%) e pouca (25%) responsabilidade, que se encontram somados totalizando o índice de 68%. Uma outra forma de interpretação possível seria unir aqueles que acreditam que ela não tem nenhuma relação com o caso (20%) aos que conferem pouco envolvimento, resultando em 45%, ou seja, a maioria. Neste caso, a manchete poderia afirmar, por exemplo, que os brasileiros acreditam que a presidente não é a principal responsável no caso, uma vez que a maioria dos entrevistados apontou que ela não tem responsabilidade ou que tem apenas uma pequena parcela de culpa. Não se trata, portanto, de apontar um erro no gráfico em questão, mas de verificar que, a partir de um mesmo conjunto numérico, é possível criar diferentes narrativas. A interpretação do jornalista e a forma como organiza o discurso, portanto, são importantes na produção de sentido.

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Figura 2. Infográfico divulgado pelo jornal Folha de S. Paulo, em dezembro de 2014, com resultado de pesquisa Datafolha

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A Comunicação, Meios e Interações

Considerações finais A matematização das ideias no jornalismo, em grande parte dos casos, é utilizada para legitimar as informações. Contudo, conforme abordado anteriormente, esses elementos também fazem parte de um discurso, a partir do qual o emissor pretende gerar conhecimentos e transmitir determinados pensamentos. A combinação de dados faz com que cada um destes ganhe um novo valor. Ou seja, a exemplo do que Maingueneau (2002, p.25) coloca a respeito das citações em um texto, trata-se de “retirar um material já significante de dentro de um discurso para fazê-lo funcionar dentro de um novo sistema significante”. Nesse novo contexto, ganham novos valores simbólicos e criam diferentes narrativas. Conforme destacado nas análises, entre os fatores que contribuem para influenciar as interpretações estão as representações gráficas, as informações/dados escolhidos, as fontes de coleta destas, além da própria interpretação primária realizada pelo jornalista ao observar os documentos. Os sentidos, portanto, são construídos a partir de subsídios como os mencionados. Essas escolhas dos fatos que farão ou não parte das matérias, bem como da hierarquia e das formas composicionais, são determinantes para o público formar a imagem sobre determinados assuntos. Isso corrobora na construção da agenda, tanto no que se refere ao que deve ser mais discutido quanto à importância e percepção atribuída apelo público aos acontecimentos. Ou seja, influenciam o modo como os destinatários organizam 348

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

a sua imagem do ambiente. Afinal, “o modo de hierarquizar os acontecimentos ou os temas públicos importantes, por parte de um sujeito, assemelha-se à avaliação desses mesmos problemas feita pelos mass media, como um efeito cumulativo” (SHAW, 1979, p.102).

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A Comunicação, Meios e Interações

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WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. Editorial Presença, Lisboa, 2001.

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Capítulo 12 A construção da notícia: ­correlacionando conceitos de Rodrigo Alsina e Wolf Renan Milanez Vieira1

Introdução O presente artigo visa correlacionar duas visões de teóricos acerca do Jornalismo. O primeiro deles é Miquel Rodrigo Alsina, com a obra A construção da notícia e o segundo é Mauro Wolf e as suas ideias sobre o ­Newsmaking por meio do livro Teorias das Comunicações de Massa. A fim de cumprir essa meta serão apresentadas as concepções de ambos os autores para que, seguidamente, possam ser comparadas, indicando no que se assemelham e em que divergem. Com os resulta1. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da UNESP, Bauru/SP, sob a orientação do Prof. Dr. Carlo José Napolitano. E-mail: [email protected] 352

dos dessa análise, inclui-se também apresentar problemáticas contemporâneas relacionadas às perspectivas da mídia impressa na sociedade atual, marcada pela massificação da internet e das tecnologias digitais. A estrutura desse trabalho está definida da seguinte maneira. No tópico O fazer jornalístico para Rodrigo Alsina são detalhadas as concepções do pesquisador. De todo o seu estudo, foi definido um recorte, o qual compreende quatro capítulos que englobam noções sobre o acontecimento, sua determinação pela mídia, as fontes e o trabalho jornalístico. Em O Newsmaking e a produção da notícia para Wolf compreende-se a exposição dessa abordagem teórica para esse estudioso, que contempla os conceitos de Noticiabilidade e Valores-notícia, demonstrando sua origem, suas lógicas e como enquadram e interpretam as etapas da produção da informação. Já no tópico Análise: correlacionando a visão dos autores será feito o cruzamento das ideias. Sua esquematização parte inicialmente de um esboço que detalha as principais fases da construção noticiosa, elaborado pelo autor desse texto e que tem por finalidade ser um parâmetro de comparação. A partir dele será possível constatar as temáticas abordadas, as semelhanças e as diferenças, ou seja, detalhar os resultados conquistados. Finalmente, em Considerações: possibilidades e desafios do jornalismo impresso na era da sociedade digital é contemplado o desdobramento alcançado, que se propõe a refletir sobre o cenário social atual, marcado pela expansão das tecnologias e pelo seu uso na obtenção de 353

A Comunicação, Meios e Interações

informações. São descritas as principais mudanças de paradigmas surgidos com a comunicação digital e, em seguida, demonstra-se sugestões de possibilidades para os veículos impressos alcançarem uma renovação que os permita expandir sua abrangência para os novos públicos.

O fazer jornalístico para Rodrigo Alsina A construção da notícia pode ser esquematizada segundo Rodrigo Alsina (2009) em três grandes núcleos: acontecimento, fonte e notícia, sendo o primeiro desses elementos o marco inicial, ou seja, o princípio de onde começam todas as problemáticas a se julgar. Quanto à sua concepção, uma premissa relevante refere-se à enquadrá-lo como um produto da ação humana, ou seja, eles são criados e não necessariamente pode-se defini-los enquanto algo espontâneo, que ocorre sem planejamento ou sem intenções. Para conceituá-lo, o autor o situa diante das seguintes condições. Ele é sempre gerado por meio de fenômenos que serão sempre externos para o sujeito e entre eles há uma relação de dependência, isto é, um não existe sem o outro. Para que ele alcance forma, é necessário que um indivíduo aplique seu conhecimento e o resultado desse ato de significação é o que fará com que o ocorrido alcance sua estrutura final (RODRIGO ALSINA, 2009, p. 114). Assim, é preciso situá-lo também como uma ocorrência social, alvo de forças culturais e históricas que 354

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

podem agir na projeção de repertórios para os integrantes da sociedade. Dessa maneira, as pessoas em si não são necessariamente os protagonistas desse processo; há uma hierarquia que pode ser detalhada pela seguinte sequência: as instâncias sociais, culturais, educacionais agem no modo de pensar dos seres humanos e estes se utilizam daquilo que aprenderam por meio de julgamentos, classificando o que deve ser significado e validado, e o que será despercebido. Portanto, trata-se de uma decisão de escolha/exclusão, segundo um sistema cultural específico. (RODRIGO ALSINA, 2009, p. 115). Convém questionar de que forma estão inseridos os meios de comunicação. Para o teórico, estes se situam numa lógica em que: Poderíamos considerar então que a mídia é um sistema que funciona com alguns inputs, os acontecimentos, e que gera alguns outputs que transmitem: as notícias. E essas notícias são recebidas como acontecimentos pelos indivíduos receptores da informação. Ou seja, todo e qualquer output pode ser também um input de outro sistema e todo e qualquer input também pode ter sido um output de um sistema anterior. (RODRIGO ALSINA, 2009, p. 133, grifo do autor).

Pode-se supor que os eventos funcionam conforme uma espécie de matéria-prima para os jornalistas se apropriarem na transformação em notícia. Muitas vezes, aquilo que é captado engloba o fenômeno completo ou ele pode ser apenas um ponto de partida, levando 355

A Comunicação, Meios e Interações

o comunicador a explorar um assunto mais abrangente. Quando o conteúdo é produzido e, consequentemente, veiculado, sua recepção pelo público também é considerada um acontecimento. Ou seja, o jornal pode ser um suporte, um intermediador no qual coloca à disposição dos leitores vários fatos, prontos para serem lidos, interpretados e ressignificados em novas pautas para os meios, gerando-se assim o círculo conceituado pelo autor. Trata-se de uma relação dinâmica, cujo foco estará sempre na figura do público, pois a mídia depende dele para o surgimento de temáticas e elas são estruturadas de acordo com o seu interesse e o seu feedback. Uma variação desse conceito é o que Rodrigo Alsina (2009, p. 139) intitula acontecimento jornalístico, que “[...] é toda variação comunicada do ecossistema, através da qual seus sujeitos podem se sentir implicados.” Por ecossistema, entende-se o mundo, a sociedade onde vivem as pessoas. A partir dessa noção, pode-se pensar nos seguintes elementos como sendo fundamentais para que um evento atinja esse status: a variação do ecossistema, a comunicabilidade do fato e a implicação dos sujeitos. (RODRIGO ALSINA, 2009, p. 134-140-142). O segundo item é o fator que pode diferenciar o conceito tradicional do específico, ou seja, se o fenômeno percebido for compartilhado coletivamente, alcança-se esse novo grau, podendo ser ainda mais atrativo para a imprensa escolhê-lo nos seus processos produtivos. Vale ressaltar que qualquer um dos dois modelos é alvo dos meios, contudo a quantidade de pessoas significando pode ser um critério de noticiabilidade, com um peso 356

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

maior do que um ocorrido que for captado de maneira individual. A partir dessa relação entre sujeito, fatos e mídia, cabe a esta desenvolver lógicas e princípios que deem conta de selecionar aquilo que for relevante, de interesse público, que mereça se tornar notícia. Todavia, nessa prática deve-se levar em conta que as possibilidades para se destacar algo são praticamente infinitas, por outro lado, os meios são limitados e incapazes de alcançar essa demanda e é por isso que se pensa nos critérios definidos pelos veículos na escolha daquilo que é propenso a se divulgar. O autor inclui na sua abordagem uma reflexão sobre a concepção dessas regras de seleção (valores-notícia), para que, em seguida, possa teorizar sobre as fontes. Esse tópico pode ser organizado a partir de dois eixos - o papel das fontes na construção do discurso e as problemáticas inerentes das relações entre elas e o jornalista ou a empresa midiática. Recorrer a profissionais para fundamentar ou dar voz a um personagem diretamente ligado àquilo que é reportado são recursos que visam dar mais propriedade ao conteúdo e torná-lo também mais próximo à realidade. Dentro dessas possibilidades, são esquematizados dois tipos de fontes. A primeira refere-se às oficiais, consideradas muitas vezes de fácil acesso, legitimadas, mas que levam consigo intenções próprias. Já a segunda categoria diz respeito às não rotineiras, àquelas que estão fora do círculo das instituições e das assessorias de imprensa (RODRIGO ALSINA, 2009, p. 171-172). Na definição entre qual caminho escolher, encontra-se uma variável: o tempo. São as pressões decorrentes 357

A Comunicação, Meios e Interações

dos prazos, das finalizações e das entregas que podem induzir a dependência às vozes consagradas. Obviamente, elas serão necessárias em determinados momentos, contudo o estudo e a investigação contribuem para incentivar a pluralidade de opiniões no discurso comunicacional, um elemento benéfico para a promoção da democracia, pois permite trazer a visão e o pensamento de outros atores sociais. É possível descrever duas situações oriundas do choque de interesses e do desentendimento dessas partes, ligadas a procedimentos de punição ou de premiação. Os primeiros ocorrem com um conflito, ou seja, quando o jornalista explora um assunto até determinado ponto que não convém aos interessados ou quando este faz críticas a alguma empresa estratégica para o veículo. Tudo isso pode por em risco sua estabilidade no emprego. Já o segundo ponto surge quando organizações utilizam estratégias de persuasão, dando prêmios e cortesias para que possam criar uma relação de gratidão com os profissionais midiáticos, utilizando-a para seu benefício (NEVEU, 2001, p. 57-58 apud RODRIGO ALSINA, 2009, p. 167-168). Em linhas gerais, desenvolve-se um jogo em que os produtores precisam de pessoas adequadas para se interpretar ou opinar sobre um conteúdo e, do outro lado, há corporações que necessitam de espaço em busca de visibilidade ou de marketing estratégico. Definidas as fontes, parte-se para o início da redação, a qual está estruturada em dois processos - seleção das informações a serem contempladas e hierarquização das mesmas. Esses dois pilares demonstram 358

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

que a escrita envolve ajustes ao suporte e às especificidades técnicas e organizacionais do respectivo meio. Em uma notícia, quando angulações são determinadas e ênfases aplicadas, pode-se considerar também que houve um ato de tematização (RODRIGO ALSINA, 2009, p. 184-185). Existem duas possibilidades que levam a esse conceito: a tematização como efeito, relacionada aos princípios da Teoria da Agenda-setting e a resultante da produção, que envolve o direcionamento da atenção do público para temas específicos. Para diferenciá-los, deve-se entender que a primeira linha refere-se à capacidade da mídia em criar a opinião pública, enquanto que a segunda é decorrência do ato de valorização de problemáticas a partir da seleção de um evento (RODRIGO ALSINA, 2009, p. 191-192-193). É uma ação indireta, que presume a capacidade do indivíduo em criar uma teia de significações e ir além do que foi apresentado, embora muitas vezes não se pode prever se um determinado assunto leva a sociedade a indagar ou não outras questões Portanto, a partir do recorte definido para a análise, percebe-se que são demonstradas teorizações sobre o que é e como é construído o acontecimento, quais as lógicas e os princípios para a seleção deste pela mídia, a necessidade de se recorrer a especialistas na fundamentação do discurso e os problemas inerentes à relação com as fontes, as consequências do ato de produção de conteúdo, ligadas ao desdobramento direto e/ou indireto de influência à opinião pública. 359

A Comunicação, Meios e Interações

O Newsmaking e a produção da ­notícia para Wolf A perspectiva do Newsmaking corresponde a um viés teórico capaz de fornecer subsídios para a análise da notícia, permitindo identificar os eventuais fatores que a influenciaram a adquirir determinada forma ou diretriz. Para Wolf (2012, p. 193-194), esse modelo pode ser enquadrado dentro dos seguintes eixos: “[...] a cultura profissional dos jornalistas; a organização do trabalho e dos processos de produção. As conexões e as relações entre os dois aspectos constituem o ponto central desse tipo de pesquisa.” A concepção que essa abordagem defende é a de que as ações midiáticas são alvos de pressões por conta dos prazos e da necessidade de se levar diariamente informativos à população. Isso faz com que seja necessário adotar práticas sistemáticas e critérios para que as escolhas e as atividades feitas pelos comunicadores sejam rápidas e eficazes. É preciso levar em conta também a incapacidade dos meios de veicular tudo o que ocorre na sociedade, ou seja, torna-se necessário desenvolver noções que possam dizer dentre todas as possibilidades, o que pode ser julgado válido a ser de conhecimento público. É a partir disso que se situa a Noticiabilidade, que diz respeito aos critérios exigidos pelos fatos para se adequarem à estrutura de trabalho presente nos órgãos informativos e à visão profissional para que assim possam adquirir o

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Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

posto de notícia (WOLF, 2012, p. 195). Uma outra noção a classifica como o [...] conjunto de critérios, operações e instrumentos com os quais os aparatos de informação enfrentam a tarefa de escolher cotidianamente, de um número imprevisível e indefinido de acontecimentos, uma quantidade finita e tendencialmente estável de notícias. (WOLF, 2012, p. 196).

Sendo assim, esse conceito compreende as estratégias que as empresas midiáticas usam para se enquadrar diante das demandas de produção e, muitas vezes, dentre elas podem estar inseridos critérios próprios e específicos do que um veículo define ser válido a se noticiar. Pode-se então considerá-lo como o recurso que torna viável as etapas noticiosas, possibilitando que se leve ao público um relato daquilo julgado relevante na sociedade em um espaço de tempo. Um outro item teórico que integra o anterior são os valores-notícia. Estes contribuem ao permitir o detalhamento das ações dos jornalistas, mapeando os argumentos aplicados por eles na realização de seu ofício. Por definição, eles «[...] representam a resposta à seguinte pergunta: quais acontecimentos são considerados suficientemente interessantes, significativos, relevantes, para serem transformados em notícias?” (WOLF, 2012, p. 202). Esses tópicos apresentam uma nuance mais qualitativa, ou seja, eles refletem a essência da justificativa

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a­ plicada para dizer por que um fato foi escolhido (sendo que muitas vezes essa ação reflete a exclusão de outro). Assim, pode-se relacionar ambos os conceitos no auxílio para explicar as técnicas aplicadas na organização, na seleção de conteúdo e na descrição dos porquês da opção realizada. É importante destacá-los enquanto critérios diretamente enraizados na cultura profissional da classe jornalística, ou seja, eles correspondem a conhecimentos que são comuns a qualquer pessoa dessa área, independente do setor de atuação ou da empresa para qual fazem parte. Além disso, são dinâmicos, ou seja, alteram-se no tempo e podem muitas vezes não continuar a ser os mesmos (WOLF, 2012, p. 205). Nesse sentido, não é possível enquadrá-los como saberes subjetivos; na verdade, estão mais próximos de um código, cuja natureza é consensual, compartilhada por todos. Isso permite que qualquer membro da imprensa possa compreender facilmente por que um outro colega realizou determinada escolha e direcionamento para uma produção. Mesmo que se cruzem mídias concorrentes, as lógicas aplicadas são semelhantes, ou quase as mesmas. Sendo saberes específicos, pode-se imaginar de onde eles provêm. Sua origem não está restrita apenas a fase de seleção dos fatos. Tudo o que se liga às escalas comunicacionais pode gerar novos valores-notícias. A classificação de Wolf (2012, p. 207) orienta que eles podem ser desenvolvidos a partir de:

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[...] admissões implícitas ou de considerações relativas a: a. os caracteres substantivos das notícias; o seu conteúdo; b. a disponibilidade do material e os critérios relativos ao produto informativo; c. o público; d. a concorrência.

O primeiro item refere-se à avaliação direta do fato em termos de importância e de interesse e são denominados como critérios substantivos. Já o segundo, contempla a disponibilidade e as adequações que o material escolhido necessita ter diante das particularidades técnicas e organizacionais do veículo. Uma espécie de subitem são os critérios relativos ao meio, que problematiza a tendência pela preferência de acontecimentos que se enquadrem mais facilmente às matrizes e formas midiáticas. Por exemplo, no telejornalismo haverá sempre preferência para um fenômeno que forneça boas imagens para sua composição. O terceiro diz respeito à imagem que os comunicadores têm do seu público. O último relaciona de que modo a competição pode refletir e reforçar esses conceitos (WOLF, 2012). Contudo, é possível levar em conta outras problemáticas e fenômenos contemporâneos, relacionando-os com esses elementos. A popularização da internet, o desenvolvimento e a ampliação dos dispositivos móveis podem ser um exemplo, além da convergência e da massificação das mídias digitais, que são cada vez mais

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usadas enquanto fontes de informação. Ou seja, as tecnologias promovem novas relações entre os produtores e os receptores e isso consequentemente levará a implicações sobre como aqueles irão estruturar e determinar o seu trabalho. Pode-se pensar também nas relações entre a imprensa e na conexão com as práticas jornalísticas. Isso ocorre inicialmente quando se considera os seus bastidores enquanto um forte critério de seleção e de garantias de atenção, uma vez que os veículos fazem parte do dia a dia de toda a população e grande parte dela tem a curiosidade em saber o que ocorre nesse ambiente. Outra ponderação reflete a notícia sobre a mídia como uma ferramenta estratégica, ideológica, a favor dos interesses de um determinado grupo. Essa lógica pode estar presente quando os conflitos e os desentendimentos nessa área ganham o status de ser de conhecimento do público ou por serem julgados de seu interesse ou por utilizar esse espaço para transmitir indiretamente uma crítica ou transparecer uma posição contrária a um concorrente específico ou ao mercado em geral. Por outra perspectiva, tem-se o papel do Estado. Por meio da Constituição, é expresso no Direto à Comunicação a sua preocupação em dar garantias para que as práticas nesse setor sejam estimuladas e não sofram restrições, dentro dos limites e parâmetros legais (NAPOLITANO, 2009). Ou seja, haver concorrência pode significar mais conteúdo e um estímulo a sua diversidade, elementos que para a sociedade podem ser algo benéfico. 364

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

Assim, para o Newsmaking a cultura profissional dos jornalistas é um ponto de análise do qual se permite compreender as formas de produção, as quais estão inseridas num cenário marcado por um ritmo constante e considerável de demandas e isso exige que se desenvolvam estratégias que permitam alcançar as metas exigidas pelas organizações midiáticas e pela sociedade.

Análise: correlacionando a visão dos autores A realização da análise está estrutura em três etapas. Na primeira será apresentada uma visão padrão, elaborada pelo autor deste artigo, que visa descrever as fases tradicionais que envolvem a construção da notícia. Na segunda etapa, as ideias de Rodrigo Alsina e de Wolf serão comparadas com esse parâmetro próprio, com o objetivo de identificar em quais pontos esses autores oferecem relatos teóricos e em quais não são enfatizados. Finalmente, na terceira etapa, os resultados obtidos entre os dois serão comparados, para que assim possa se deduzir novas problemáticas. Tomando como base o conhecimento e a experiência do pesquisador, foram definidos os seguintes passos para a análise comparativa. Após cada um deles, há uma breve descrição: 1 - Escolher e definir o direcionamento da pauta Ações realizadas na delimitação dos assuntos a serem trabalhados para um suporte e o que pode decorrer disso.

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2 - Determinar e entrevistar a(s) fonte(s) Processos relacionados à escolha e à realização das entrevistas com especialistas 3 - Produção, revisão e edição da notícia Realização da redação e das adaptações de linguagem para o respectivo meio. 4 - Adequações antes da finalização do produto Diz respeito aos imprevistos que podem ocorrer com um conteúdo, impedindo sua veiculação momentos antes do fechamento, seja por conta do teor abordado, de questões relacionadas a estratégias definidas pela redação, por interesses organizacionais ou pressões comerciais. 5 - Recepção e desdobramentos do assunto reportado Reflexões sobre a recepção e como o público pode contribuir para a continuidade do tema pela mídia. Dentre as ideias formuladas por Rodrigo Alsina, foram encontradas teorizações que se relacionam com os tópicos 1, 2 e 3. As explicações sobre o acontecimento: como ele é construído, o papel da mídia e os seus fundamentos de seleção contemplam relatos para se encaixar no item 1. A definição do papel das fontes e as problemáticas que são resultados da sua interação estão diretamente ligadas ao item 2 enquanto que a noção de tematização pelo viés da produção jornalística pode ser indicada para o item 3. Os itens 4 e 5 não são possíveis de ser conectados dentro do recorte apresentado. Quanto ao Newsmaking para Wolf, as definições sobre essa linha teórica contemplam saberes correlacionados ao item 1. Os conceitos de Noticiabilidade e 366

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Valores-­notícia correspondem aos itens 1 e 3. Os critérios substantivos, os relativos ao produto e ao meio problematizam assuntos ligados aos itens 1 e 3, descrevendo os julgamentos aplicados na escolha das temáticas de trabalho, considerando as restrições do veículo e os formatos noticiosos praticados como limitadores da mensagem. Já os critérios relativos ao público e à concorrência podem ser indicados aos itens 5 e 4 respectivamente. Levar em conta determinadas preferências pode ser uma tentativa de garantir uma recepção mais efetiva e também um eventual desdobramento. Por outro lado, a questão da concorrência entre os meios pode impossibilitar a veiculação ou a adequação de uma notícia prestes a ser distribuída junto a um suporte. Os resultados obtidos com essa análise comparativa demonstram que as explanações de Rodrigo Alsina contemplam estudos que buscam conhecer mais sobre as etapas iniciais e intermediárias da prática midiática, ou seja, as definições, o planejamento, a apuração e a redação. Todavia, as influências que podem ocorrer por conta de forças sociais, da concorrência entre os meios e do público não são diretamente contemplados. Pode-se supor que se trata de uma teorização cujo marco de análise se dá a partir das competências e atribuições do comunicador ao longo do seu trabalho. As considerações para Wolf comprovam a noção de que o Newsmaking compreende de fato um referencial cujo ponto de partida se dá pela produção, contudo cada base das quais se derivam os valores-notícia auxilia a expandir seu alcance, ou seja, as etapas de ­pauta, 367

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c­onstrução, forças limitadores internas e externas e recepção são levadas em conta. O único item que não foi contemplado refere-se à questão das fontes e da sua potencial capacidade de influência. Talvez, seja esse um dos pontos a se ponderar para a formulação de novas matrizes que contribuam para esse modelo. O que há de comum entre ambos os pesquisadores é o fato de centralizarem o seu olhar sobre a figura do jornalista e a partir dele deduzirem outras problemáticas por meio da sua relação com elementos que fazem parte do seu cotidiano profissional: as rotinas e as práticas produtivas, a ideologia da empresa de comunicação, as fontes e a lógica capitalista, principalmente para os meios comerciais. Dessa lista, pode-se acrescentar uma variável de grande potencial para trazer novos paradigmas: trata-se do avanço das tecnologias e da construção de uma sociedade fundada essencialmente pelas mídias digitais. Uma questão de natureza contemporânea e que representa um desafio para os atuais pesquisadores está em relacionar se a popularização dessas ferramentas pode fazer com que as pessoas recorram a outros suportes para se informarem. Isto é, os sites e os portais podem se tornar uma fonte mais consultada do que os meios tradicionais? Nesse eventual cenário, como se situam os veículos impressos e de que forma é possível direcionar métodos e estratégias para eles?

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Considerações: possibilidades e desafios do jornalismo impresso na era da sociedade digital O cenário atual no qual se encontra nossa sociedade é marcado pela expansão dos fenômenos digitais e esse crescimento provoca transformações que alteram processos consagrados e até então estabilizados. A popularização da internet e a chegada de dispositivos móveis contribuem no desenvolvimento de relações marcadas principalmente pela instantaneidade e isso reflete no consumo de informações, gerando uma necessidade cada vez mais imediata de se situar sobre os fatos que ocorrem na sociedade. Nesse sentido, é oportuno descrever como cada uma das matrizes básicas utilizadas pelo Jornalismo pode responder a essa demanda. O jornal é um espaço que se utiliza da notícia no panorama dos eventos sociais ocorridos diariamente, contudo o fator tempo é algo a se indagar pois o seu ciclo exige a ação de diversos profissionais e o seu suporte, o papel, é um limitador. O radiojornalismo apresenta possibilidades de explorar a agilidade, embora dependa de condições e aparatos técnicos que muitas vezes podem interferir na concretização da transmissão. O telejornalismo alcança essa meta com a veiculação de plantões para narrar algo extraordinário, mas dentre todos os mencionados é o que mais necessita de recursos e colaboradores para se concretizar. As mídias on-line, principalmente as comerciais, apresentam condições de serem mais efetivas diante

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dessa necessidade, visto que a transmissão e atualização de dados não sofrem tantas restrições e podem ser feitas com relativa velocidade. Justamente, o que se constata é que a notícia encontrou aqui um terreno propício para que seja explorada e aprimorada. Além disso, há outros três pontos que favorecem esse campo tecnológico e que merecem ser destacados: o potencial dos blogs, as redes sociais e os aplicativos. O primeiro item permite que novas vozes possam se utilizar dessa rede para noticiar. Atualmente é também uma área alternativa em que comunicadores conseguem expor outros olhares mais analíticos sobre a sociedade. O viés democrático permite que um usuário sem ligações com grandes empresas a explore, levando à pluralidade de relatos, concretizando, por hipótese, as diretrizes constitucionais acerca da comunicação social. Já o segundo item, apesar de apresentar uma finalidade de cunho mais interacional, pode ser utilizado também como um ambiente de promoção de conteúdos (pelo lado dos veículos hegemônicos), ou também pode contribuir para a mesma lógica na qual atuam os blogs - possibilitar um meio para que outros atores possam se expressar e divulgar informações. O terceiro item corresponde a um fenômeno muito recente e ainda um pouco impreciso de ser analisado. A forte presença de smartphones e tablets favorece o desenvolvimento de lugares comunicacionais e os aplicativos podem ser um meio pelo qual o Jornalismo pode se utilizar amplamente, seja na transmissão ou na promoção de diálogos, buscando estruturar relações significativas, 370

Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

rompendo assim a visão unidirecional das práticas midiáticas. Portanto, o que se vê com esses exemplos é que o espaço digital proporciona inovações que podem transformar os métodos e as técnicas. Nesse sentido, é possível indagar como fomentar recursos modernos para as mídias tradicionais? Com o objetivo de auxiliar à reflexão, serão apresentados alguns apontamentos, que nada mais são do que indicações de possibilidades a serem exploradas, principalmente pelos jornais impressos. A primeira tendência reflete-se na ampliação e no aperfeiçoamento das reportagens. Enquanto a notícia irá colaborar para a constatação do fenômeno, a reportagem acrescentará um olhar mais contextualizado ou um desdobramento do mesmo. Articular esse gênero pode fazer com que as novas gerações recorram aos meios tradicionais quando quiserem saber mais e se fundamentar, desenvolvendo uma opinião mais crítica. Explorar a redação segmentada, isto é, abordar os interesses de um grupo específico é também um caminho para a diferenciação. Os suplementos são um ponto a se destacar. É fato que um dos objetivos dos informativos diários está circunscrito no relato do que mais de interessante ocorreu nesse intervalo de tempo, contudo, buscar temáticas que atravessem essa delimitação corresponde a uma inovação referenciada em parte à estrutura adotada pelas revistas. Dessa forma, esses cadernos representam a oportunidade de se contemplar assuntos que não estão presentes nas seções convencionais, com profundidade e relativa abrangência. 371

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Uma maneira capaz de ilustrar essa ideia refere-se à construção de 5 cadernos segmentados que abordem a questão da crise hídrica no mundo, por exemplo. Para cada um deles pode-se abordar um subtema, ou seja, sua concepção irá exigir o planejamento e a estipulação de objetivos tanto pelo lado da produção como pelas expectativas de recepção. Em linhas gerais, eles representam um local de experimentação de projetos, refletindo em novos formatos, novas abordagens e novas linguagens que podem ser testadas. A questão da linguagem é um espaço propício a se aprofundar. O ambiente digital é marcado por um diferencial ligado à interação. É possível relacionar conteúdos, destacá-los, compartilhá-los e tudo isso leva à estimulação de novas participações pelo receptor. Seguindo essa lógica para os meios não digitais, promover uma técnica que se aproprie de recursos linguísticos para dialogar mais efetivamente com o leitor representa um caminho capaz de trazer um senso de aproximação e resulta na conscientização em querer conhecê-lo melhor, em valorizar seus feedbacks e instiga ainda a se pensar na importância da colaboração mediada. Portanto, refletir e problematizar sobre tudo o que foi levantado é um desafio para o campo científico da Comunicação como também para as Teorias do Jornalismo, uma vez que essas novas condições de articulação com o público motivam a se ponderar sobre a construção da notícia e efetivamente se o modo de atuação do jornalista pode ser modificado na contemporaneidade. Em suma, a sociedade contemporânea é marcada por um antagonismo de culturas: de um lado expõe grupos 372

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sociais diretamente ligados ao uso das tecnologias e do outro é composto por uma relativa faixa de pessoas que transitam nessa realidade mas que apresentam uma longa experiência nos suportes convencionais. Logo, é preciso trabalhar com essa dicotomia para encontrar caminhos que se fundamentem na solidez daquilo que é tradicional e, consequentemente, se utilize dos novos fenômenos como parâmetro para aperfeiçoá-lo. Isto é, na articulação entre eles se situa a renovação. Essa coerência tem também relação quanto à essência das práticas metodológicas e científicas. Para Bachelard (2004, p. 19), a construção do conhecimento corresponde a um método de criação contínua, em que os alicerces antigos e clássicos servem de parâmetro para explicar o novo, assimilando-se a este, ou ainda, o fenômeno atual reforça o antigo, reorganizando-o. Isso significa que para enxergar caminhos para o jornalismo impresso num cenário predominado pelo digital é preciso se manter na sua essência, buscando novas possiblidades que o renovem, que o façam comunicar com todos os receptores, que estão cada vez mais complexos, com interesses específicos, querendo se relacionar mais com os emissores.

Referências BACHELARD, Gaston. Ensaio sobre o conhecimento aproximado. Tradução: Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. 373

A Comunicação, Meios e Interações

PENA, Felipe. Teoria do jornalismo. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2013. RODRIGO ALSINA, Miquel. A construção da notícia. Tradução: Jacob A. Pierce. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. MARCONDES FILHO, Ciro. O capital da notícia: jornalismo como produção social da segunda natureza. 2. ed. São Paulo: Ática, 1989 NAPOLITANO, Carlo José. Direito fundamental à comunicação. In: VICENTE, Maximiliano Martin (org.) Comunicação e Cidadania. Bauru: EDUSC, 2009. p. 9-26 TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo: A tribo jornalística - uma comunidade interpretativa transnacional. 3. ed. rev. Florianópolis: Insular, 2013. V.2. WOLF, Mauro. Teorias das comunicações de massa. Tradução: Karina Jannini. 6. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.

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Capítulo 13 Memória: de reminiscências ­particulares a instrumento de ­comunicação organizacional Wanessa Valeze Ferrari Bighetti

Quando o termo memória é utilizado, comumente, a primeira definição que vem à mente é a que envolve as funções psíquicas do cérebro, bastante estudadas por diversas áreas do conhecimento biológico, capazes de trazer à tona fatos do passado que de alguma forma ficaram gravados nas lembranças de seu detentor. É um registro pessoal carregado de influências do ambiente em que foi gerado, fermentado por sentimentos e emoções revisitadas no tempo presente. Contudo, há alguns anos, o termo deixou de se restringir às reminiscências particulares. Com a evolução da sociedade, a memória alcançou o patamar de coletividade, ganhou linhas de estudo, novas funções, possibilidades e desafios, tornando-se a aposta das organizações modernas, que enxergam nela uma ferramenta em potencial para a criação da identidade organizacional, 375

manutenção da imagem da empresa e para a gestão de crises, entre outras atribuições. Preservar a memória, para as sociedades modernas, tornou-se o antídoto contra o tempo e o implacável esquecimento. Para entender como se deu esta transição, antes, é preciso recorrer aos conceitos básicos que envolvem o tema. As diferenciações entre história e memória, suas limitações e confusões, bem como a evolução dos conceitos no decorrer dos anos serão trabalhados no tópico a seguir.

História e memória: conceitos e confusões Ao mergulhar neste campo, antes de tudo, é preciso distinguir dois conceitos que se conversam, se misturam e, por vezes, se confundem, mas que essencialmente são diferentes entre si: são os conceitos de história e de memória. Para isso, nada melhor do que iniciar pela análise da etimologia da palavra. A palavra história vem do grego antigo historie, que denota conhecimento por meio de investigação. É ainda forma derivada do grego histor, que significa testemunha no sentido de aquele que vê, que presencia um fato ou acontecimento, que toma conhecimento. Com a mesma raiz etimológica, há ainda a palavra historein, que em grego antigo significa procurar saber (LE GOFF, 1996). Desta forma, cruzando definições, é possível entender a história como investigação sobre o passado com

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i­ ntenção de reconstruí-lo e documentá-lo, transformando-o em conhecimento. Neste sentido, a relação da história com o tempo é aparente, visto que o passado é sua principal matéria-prima, o combustível para entendimento do presente. Ou como melhor define Le Goff (1996, p.12) “Matéria fundamental da história é o tempo; portanto, não é de hoje que a cronologia desempenha um papel essencial como fio condutor e ciência auxiliar da história”. Isso porque é por meio da cronologia que a história se estabelece, se organiza, investiga e torna possível a reconstrução do passado e o estabelecimento do conhecimento. Sendo assim, entende-se que é função da história juntar documentos, analisá-los, entender sua relação com o passado em que um dia estiveram inseridos e transformá-los em prova de um tempo vivido que se foi e não volta mais, porém, que deixou reflexos na sociedade atual e se definiu como percurso. “A história recolhe sistematicamente, classificando e agrupando os fatos passados, em função das suas necessidades atuais. É em função da vida que ela interroga a morte. Organizar o passado em função do presente: assim se poderia definir a função social da história” (FEBVRE, 1949, citado por LE GOFF; 1996). Com base nas reflexões anteriores, é possível afirmar que uma das principais características da história é o fato de ela se pautar em documentos na tentativa de reconstruir o passado. Fotografias, filmes, textos, depoimentos e documentos orais, fósseis e todo tipo de material que traga pistas sobre um tempo longínquo são, para 377

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a história, fonte de conhecimento. A essa história que ‘caça’ em diversos elementos do presente pistas sobre o passado Le Goff, Chartier e Revel (1998) dão o nome de “História Nova”. Partir do pressuposto de que a história é uma espécie de colcha de retalhos tecida com base em rastros do passado na tentativa de registrar uma época, a sociedade em que nela viveu, seus costumes e tradições e explicar as influencias que esse passado tem sobre o tempo atual é também assumir que a história não deve ser entendida como absoluta. Apesar da pretensão de atuar como reconstrução fiel do passado, pautada em provas documentais, a história é uma narração e, como tal, sujeita às interferências de seu narrador e dos elementos que ele teve à disposição para sua (re)construção. Ou, como melhor explica Le Goff (1996, p. 21), “A história quer ser objetiva e não pode sê-lo. Quer fazer reviver e só pode reconstruir. Ela quer tornar as coisas contemporâneas, mas ao mesmo tempo tem de reconstruir a distância e a profundidade da lonjura histórica”. O fato de o documento não ser em si mesmo uma prova imparcial, inocente, exige ressalva crítica sobre a exatidão da história. Isso porque a construção da realidade histórica se dá por meio de dois elementos fundamentais: o historiador e os documentos pelos quais ele pauta seu trabalho. Considerando que cabe ao historiador fazer uma seleção dos documentos, que foram produzidos em uma época determinada, de forma consciente ou inconsciente, com diferentes intenções, e que é com auxílio desses documentos que reconstruirá 378

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o passado de uma comunidade, ressalta-se a necessidade de ponderação de que a história não é e nem deve ser tratada como verdade absoluta. E é essa vertente de parcialidade que coloca em cheque a categorização da história como um campo da ciência. Para Georges Duby (DUBY; LARDREAU, 1980, citado por NASSAR, 2007, p.110), por exemplo, a história é, acima de tudo, arte: “[...] uma arte essencialmente literária. A história só existe pelo discurso. Para que seja boa, é preciso que o discurso seja bom”. Pierre Nora (1993), em seu texto entre Memória e História, classifica a história como uma “reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais”, e reforça a necessidade de análise e discurso crítico para sua construção. COSTA (2008, citado RIBEIRO, 2013, p. 57) também pondera sobre o assunto, ao salientar que a construção histórica é evidentemente passível de influência do historiador e dos elementos que a compõem. As relações entre o historiador e a sociedade caminham numa via de mão dupla. O trabalho do historiador, queira ele ou não, é produto da sociedade e do tempo em que vive. A vivência do presente afeta a construção do passado. Ao mesmo tempo, o posicionamento do historiador na sociedade marca os limites de sua visão. Suas experiências definem suas motivações e explicam o por quê e para que ele se debruça sobre a história. Seu projeto inspira-se por problemas sugeridos pela posição que assume na ­sociedade. Seus

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temas e seu método são função dos objetivos que pretende alcançar e das razões que o levam a estudar a história. Sua própria definição do que é história nasce a partir dessas coordenadas.

Contudo, Costa deixa claro que a possível parcialidade não deve anular as conquistas obtidas por meio do registro histórico. Para ele, para que a história cumpra com seu papel, é preciso, antes de tudo, compromisso por parte do historiador e rigidez de método.

[...] a versão que o historiador apresenta do passado contribui para a preservação ou para a mudança da sociedade. Isso confere ao historiador enorme responsabilidade e requer de todo aquele que se dedica a essa tarefa uma profunda reflexão sobre a natureza dessas relações, a fim de evitar que venha a descobrir tarde demais que tomou a via errada (COSTA, 2008, citado por RIBEIRO, 2013, p.57)

Le Goff partilha da mesma opinião. Embora o pesquisador encare a história com ressalvas e aponte para problemas como a falta de objetividade do historiador e a não inocência do documento, ele também faz um apelo a sua importância e alerta que é preciso deixar de lado o ceticismo com relação à objetividade histórica e à crença de que no processo de reconstrução do passado prevalece o abandono da noção de verdade. “[...] Os contínuos êxitos no desmascaramento e na denúncia das 380

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mistificações e falsificações da história permitem um relativo otimismo a esse respeito” (1996, p.11). E acrescenta ainda que a seleção de documentos feita pelo historiador “não significa arbitrariedade nem simples coleta, mas sim construção científica” (LE GOFF; CHARTIER; REVEL, 1998, p. 32). Desta forma, crer na cientificidade da história como instrumento organizador do passado é crer no potencial de preservação de fatos importantes para uma comunidade/sociedade. É crer que, apesar de passível de inverdades, a história atua como importante ferramenta para que as sociedades contemporâneas tomem conhecimento de seu passado, seu percurso e, desta forma, vislumbrem o futuro. É crer ainda que a história é um elemento em constante transformação, que pode - e deve - ser revista, redescoberta e reconstruída ao longo dos anos, sempre com mais rigor e método. Tendo claro o significado do termo história, sua etimologia, importância e problemática, é preciso, então, estudar os conceitos relacionados à memória, de fundamental importância para a compreensão do presente trabalho. Antes, porém, de entender os meandros que envolvem o termo, é necessário compreendê-lo em seu sentido mais puro, ligado ao campo das ciências biológicas. Jacques Le Goff (1998, p. 423) traz sua contribuição ao relembrar o sentido inicial da palavra, associando-a às funções psíquicas do corpo humano, que permitem ao homem conservar certas informações e atualizar impressões ligadas ao passado. 381

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Ele destaca que a memória é a quinta operação da retórica. “[...] depois da inventio (encontrar o que dizer), a dispositio (colocar em ordem o que se encontrou), a elucotio (acrescentar o ornamento das palavras e das figuras), a actio (recitar o discurso como um ator, por gestos e pela dicção) e enfim a memória (memoriae mandare, ‘recorrer à memória’)” (LE GOFF, 1998, p. 441-442). Em outras palavras, é possível definir a memória como a capacidade de registrar fatos, armazená-los ao longo dos anos, reordenar as informações de acordo com as necessidades particulares de cada pessoa, considerando o tempo presente, em um processo de releitura, e que é passível de recurso e revisitas sempre que necessário. Mas é importante lembrar que o termo memória é mais amplo e não reside apenas no pensamento dos indivíduos. Está abrigado também “no gesto e no hábito, nos ofícios onde se transmitem os saberes do silêncio, nos saberes do corpo” (NORA, 1993, p.14). Além disso, é necessário não esquecer que, com a evolução tecnológica, a memória passou a ser também uma ferramenta sintetizada na funcionalidade das máquinas. Para compreender a abrangência do termo, Paulo Nassar (2007, p.113) recorre a Bergson (1999) e a Chauí (1999) e divide o emprego da palavra em seis categorias, cada qual com uso diferente, são elas: a) memória biológica da espécie, ligada ao código genético que caracteriza os diferentes tipos de vida na Terra; b) memória artificial, relacionada às máquinas e à tecnologia, que funciona a partir da simplificação da estrutura do ­cérebro ­humano; 382

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c) memória pura, que é responsável por registrar acontecimentos e resgatá-los posteriormente em forma de lembranças; d) memória hábito, que se cria e fixa na mente encenando o passado em função de um objeto presente, é adquirida pelo esforço da atenção e da repetição; e) memória perspectiva, que é indispensável por permitir reconhecer coisas, lugares, pessoas, objetos, entre outros elementos presentes na vida cotidiana; f) memória social ou histórica, fixada por uma sociedade por meio de registros, documentos, relatos, nomes, lugares que possuem significado para a vida coletiva. As categorizações conduzem ao entendimento de que a memória, apesar de referenciada principalmente como uma característica inerente ao ser humano, ligada à individualidade, pode ser também um instrumento de organização, interpretação e registro da vida coletiva, responsável pela partilha de valores e significados, campo em que adquire a importância típica da construção social da realidade por meio de representações. É sob a regência desta vertente compartilhada da memória que vamos estruturar o pensamento a partir deste momento. A memória coletiva, também chamada de memória social ou histórica, corresponde às recordações que um determinado grupo tem sobre um fato vivenciado no passado. São lembranças compartilhadas, formadas por uma teia de memórias individuais que, juntas, adquirirem significado e ganham importância na construção da realidade social. “Os quadros coletivos da memória não se resumem em datas, nomes e fórmulas, eles 383

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r­epresentam correntes de pensamento de experiência onde reencontramos nosso passado porque este foi atravessado por isso tudo” (HALBWACHS, 2004, p.71). Assim, é possível afirmar que a memória coletiva é capaz de deixar registrados fatos do passado, comuns a um grupo de indivíduos, de forma que essas lembranças, no futuro, sejam passíveis de revisitas e interpretações. Tal recurso, sob o olhar pautado em um sentimento coletivo presente no momento em que esses registros de percepção da realidade foram gerados, permite desvendar de que forma as experiências coletivas colaboraram para a produção de sentido e significação em um dado momento. Em outras palavras, a memória coletiva “indica o lugar, o tempo e a percepção de coerência dos elementos que formam o sujeito histórico” (ALMEIDA in MARCHIORI, 2013, p. 46). A validade da memória como forma de entendimento do passado, portanto, advém de seu caráter plural, comunitário, que garante a ela a verdade necessária para que seja aceita como oficial. Por ter essas propriedades, desde os primórdios da humanidade, o ser humano tenta, de diversas formas, manter viva sua trajetória por meio do registro da memória. Tal tentativa não é simplesmente precaução no sentido de preservar o fato por si só, mas, sim, de preservar a informação e transformar a memória em aprendizado passível de recorrência em demandas futuras. “Desde um ponto de vista prático, a memória dos homens e dos animais é o armazenamento e evocação de informação adquirida através de experiências; a 384

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aquisição de m ­ emórias denomina-se aprendizado.” (IZQUIERDO, 1989, s.p). Foi com base em experiências passadas que se deu a evolução da humanidade. Leroi-Gouhran (1964, citado por LE GOFF, 1996, p. 426), divide a trajetória da memória coletiva em cinco períodos: o da transmissão oral, o da transmissão escrita com tábuas ou índices, o das fichas simples, o da mecanografia e o da seriação eletrônica. As divisões apresentadas pelo autor representam, sobretudo, a evolução das formas de registro da memória coletiva, assim como a crescente importância da memória como ferramenta de conservação do passado para a humanidade. Para entender posteriormente o caminho percorrido pela memória como ferramenta de produção de sentidos, seja na sociedade, seja nas organizações, é necessário ater-se ao menos brevemente a esta questão. A transmissão oral da memória teve início nas sociedades primitivas, que não tinham a cultura da escrita. Neste cenário, a memória cumpria o papel de perpetuar conhecimentos através de gerações. Os “homens-memória”, como são nomeados por Le Goff (1996), eram os principais responsáveis por cumprir com esta função. Segundo o historiador, neste período, a preocupação em perpetuar a memória atendia três grandes objetivos: “a idade coletiva do grupo que se funda em certos mitos, mais precisamente nos mitos de origem, o prestígio das famílias dominantes, que se exprime pelas genealogias, e o saber técnico que se transmite por fórmulas práticas fortemente ligadas à magia religiosa” (LE GOFF, 1996, p. 431). 385

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A invenção do papiro, do pergaminho e, posteriormente, do papel revolucionou a forma de se registrar a memória. O documento escrito foi responsável por transformar a memória oral em memória física, conferindo a ela a função de armazenar informações que possam comunicar através do tempo e do espaço. Essa forma de registro físico cumpre ainda com a função permitir e facilitar o reexame, reordenação e ressignificação do passado. Com estas ferramentas, os “homens-memória” das sociedades antigas passaram a ser conhecidos como arquivistas. Mas foi somente com o surgimento da imprensa, no século XIV, que a memória deixou de ser objeto restrito a uma comunidade específica e ganhou novos lares. Com a imprensa, “não só o leitor é colocado em presença de uma memória coletiva enorme, cuja matéria não é mais capaz de fixar-se integralmente, mas é frequentemente colocado em situação de explorar textos novos” (LEROI-GOURHAN, 1964, citado por LE GOFF, 1998, p. 457). Atualmente, a revolução tecnológica é a forma mais promissora dentre as existentes de as sociedades – e também os indivíduos – perpetuarem suas memórias individuais e coletivas. O rádio e a televisão foram precursores nesse sentido, mas na contemporaneidade é a internet que vem instigando e atraindo a atenção de pesquisadores em comunicação. A quebra de limites impostos pelos meios tradicionais, como a escassez de espaço, o alto custo de produção, as barreiras geográficas e o domínio de pequenos e poderosos grupos de 386

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i­nteresses ­favorecidos pelas políticas vigentes, fez com que a ferramenta ganhasse adeptos em toda a parte do mundo e passasse a ser uma opção de baixo custo e grande efetividade. Vale citar aqui também outras ferramentas paralelas que permeiam essa evolução nas formas de registro da memória e que, por serem de grande importância, merecem ser lembradas: a fotografia e a criação de lugares de memória. A fotografia, segundo Le Goff, representa uma significativa revolução nas formas de registro da memória, uma vez que “multiplica-a e democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma verdade nunca antes atingidas” (1998, p. 446). Já os lugares de memória, conhecidos como museus ou arquivos, são espaços físicos que cumprem com a função de cristalizar lembranças e experiências, servindo de acervo para quem não participou efetivamente do momento onde se deu a produção de sentidos. “[...] a razão fundamental de ser um lugar de memória é parar no tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial, [...] prender o máximo de sentido em um mínimo de sinais [...]” (NORA, 1993, p. 22). Entender a evolução das formas de registro de memória é um percurso importante para esta pesquisa pois conduz ao olhar crítico sobre tal evolução. Assim sendo, é preciso ter em mente que, seja nas sociedades onde a transmissão oral era a única forma de perpetuar conhecimento, ou na contemporaneidade, fermentada por ferramentas favorecidas pela tecnologia, como a internet, a memória sempre foi vista por grupos de interesse 387

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como instrumento de poder. E é neste fator que reside o interesse por sua preservação e, consequentemente, o aprimoramento de meios que permitam efetivar esses registros de maneira eficiente. [...] o passado filtrado pela memória como elemento explicativo de interesses de indivíduos nas coletividades tornou-se um tópico capaz de dar contornos tangíveis a mudanças de territórios geográficos, status social, formas de convívio, soluções de bem-estar, ajustes e desajustes emocionais e de culturas que se conferem, confrontam, aceitam ou refutam (MEIHY, p.31, in MARCHIORI, 2013)

Portanto, a memória, entendida como o passado que se foi e não volta mais, mas que merece ser assinalado, adquire contornos de instrumento de manipulação com vistas para o poder, passando a fazer parte do interesse de grupos dominantes que buscam oficializar, promover ou salvaguardar determinadas memórias particulares, que falam em benefício próprio e que se utilizam muito mais do esquecimento coletivo do que da recordação. São grupos que enxergam na memória uma ferramenta capaz de levar ao poder, com interesse em determinar o que pode ou não ser dito, o que merece ou não ser lembrado. O esquecimento, nesse sentido, cumpre papel tão importante como a lembrança. O que não é rememorado permanece nas sombras do passado e, portanto, é dado

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como se nunca tivesse feito parte da realidade. Assim, a memória enquanto prática de reconstrução seletiva do passado é parcial, um recorte da realidade marcado por interesses. Fatos marcantes são tirados do fundo do baú enquanto ocorrências que possam interferir no discurso dominante são deixados de lado.“As memórias definidas por um trabalho de “enquadramento/oficialização” compõem o tecido social, apontando variadas estruturas organizacionais, permeadas por esquecimentos e silêncios [...]” (ALMEIDA in MARCHIORI, 2013, p. 46) Assim, ter domínio sobre a memória coletiva significa dominar também o sentido que determinada sociedade histórica confere à sua existência e ao contexto em que ela está inserida. “Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva” (LE GOFF, 1996, p. 426). Souza (2014, p.79-80) resume bem este entrave entre a veracidade do discurso memorialístico e seu processo seletivo de construção. “[...] a lembrança e o esquecimento; os bem-ditos, os não-ditos e mal-ditos; o válido e o inválido. É a partir dessa relação dialógica que se estruturam a memória, a comunicação e o poder”. Nesse sentido, é possível entender a memória coletiva como uma ferramenta poderosa para aqueles que buscam estabelecer laços entre uma comunidade e seus interesses, fazendo surgir uma identidade compartilhada carregada de significados e legitimada coletivamente. Nora (1993, p. 7) critica o uso da memória como instrumento de poder e deixa claros os riscos que este emprego pode trazer à sociedade. “Com a globalização, 389

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democratização, massificação, a memória pura, verdadeira, foi substituída pela ânsia de preservar o passado, de não deixar perder as origens. Mas essa aceleração cria uma memória ditatorial, autoritária, organizadora e todo-poderosa”. Compreendidos o conceito de história, os processos de sua produção e imbróglios que envolvem a questão da cientificidade, e as definições de memória, sua abrangência, relação com a construção da realidade social e importância, é possível, neste ponto, diferenciar claramente os termos história e memória. Apesar de convergirem sob o imenso guarda-chuva que é o passado, história e memória são termos bastante diferentes em sua concepção. De forma simplificada, é possível afirmar que, por não pretender-se isenta, a memória é combustível para a criação de valores e visões de mundo. Sua força de representação da realidade social reside, portanto, na vivência legitimada da experiência, seja ela coletiva ou individual. A história, por sua vez, tem caráter científico. Apesar de esbarrar em problemas relativos à imparcialidade da recuperação do passado, o objetivo da história é reconstruir, com base em documentos e com rigor de método, um tempo que se foi e não volta mais. “A memória, como construção social, é formação de imagem necessária, para os processos de constituição e reforço da identidade individual, coletiva e nacional. Não se confunde com a His-

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tória, que é a forma intelectual de conhecimento, operação cognitiva. A memória, ao invés, é operação ideológica, processo psicossocial de representação de si próprio, que reorganiza simbolicamente o universo das pessoas, das coisas, imagem e relações, pelas legitimações que produz” (MENEZES, 1992, p.22).

A memória é, portanto, um elo carregado de afetividade entre o passado e o presente. Sua principal característica é o fato de ela se referir a - e se constituir de - fatos vivenciados por uma sociedade. Por ser intensa e simbólica, contudo, a memória, muitas vezes, pode ser composta mais de esquecimentos do que de lembranças. E são justamente esses esquecimentos que podem deformar o passado rememorado, fazendo prevalecer determinados recortes da realidade, posicionados sob pontos de vista de interesses. A história, por sua vez, é uma representação do passado, apoiada em análise e discurso crítico. Comparando, a memória é, por natureza, “múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá vocação para o universal” (NORA, 1993, p. 9) Outra diferenciação entre os termos é apresentada por Barbosa (in MARCHIORI, 2013, p. 66), que afirma que “[...] a memória produz a autenticidade do testemunho como algo vivido no passado. O testemunho dá ao portador daquela reminiscência a autoridade de ter presenciado algo que aconteceu e que pode ser trazido de volta”, enquanto, na história, “o passado chega,

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i­ndicando a presença imoralizada do pretérito. O documento tem valor inquestionável”. Sarlo (2007, p.9) também dá sua contribuição para a diferenciação entre os termos ao afirmar que memória e história nem sempre são complementares e que, muitas vezes, estabelecem uma relação conflituosa e concorrente. “Por vezes, o que um grupo lembra é diferente do que a história registrou. [...] porque nem sempre a história consegue acreditar na memória, e a memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança [...]”. Apesar de diferentes em suas raízes e objetivos, memória e história têm relação e caminham próximas, sempre ‘de olho’ no passado. Há quem abrigue a memória sob o guarda-chuva da história, classificando-a como um de seus diversos componentes constitutivos. Afinal, a memória é um dos elementos que atuam na construção da história. “Na mistura, é a memória que dita e a história que escreve” (NORA, 1993, p.24).

Memória organizacional A transição da memória do campo da coletividade para o campo organizacional se deu de maneira natural, visando suprir uma necessidade da contemporaneidade. No mundo atual dos negócios, marcado pela globalização e pela forte competitividade, as empresas precisam provar dia a dia seu valor, oferecendo aos seus

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stakeholders diferenciais que a destaquem perante suas concorrentes. O advento da tecnologia, porém, nivelou técnicas, acesso à matéria prima e modo de produção, fazendo com que a qualidade dos produtos oferecidos por diferentes empresas se tornasse similar. Neste cenário, os valores intangíveis passaram a ser, para as organizações, o caminho das pedras para o destaque no mercado. Assim, é preciso que as empresas sejam mais do que produtoras de bens materiais, é preciso que elas reforcem aos seus stakeholders quem elas são, quais são seus objetivos, de que forma lutam para alcançá-los, o que a comunidade onde ela está inserida ganha em apoiá-la, por que ela é digna de confiança, entre outras coisas. Em resumo, “[...] cada vez mais seus gestores têm como desafio administrar a dimensão simbólica dos negócios, o imaginário de suas ações” (NASSAR, 2004, s.p). Essa tarefa, contudo, é mais complicada do que se pressupõe. Administrar o imaginário produzido pela organização não se resume em aplicar ações pontuais de marketing ou investir em publicidade esporadicamente, mas, sim, realizar um trabalho contínuo, deixando sempre fresco na lembrança dos stakeholders a marca, a identidade e os pontos que diferenciam a organização de seus concorrentes. O resgate e preservação da memória organizacional surge nesse contexto como uma ferramenta eficaz para a perpetuação e manutenção de valores simbólicos. Isso porque a “memória é um mapa simbólico que perpassa e organiza tanto o indivíduo quanto o coletivo. É com esta 393

A Comunicação, Meios e Interações

perspectiva que as organizações se apropriam da memória como ferramental estratégico para construção das identidades institucionais” (SANTA CRUZ, 2012, p.8). Antes, porém, de se aprofundar nos benefícios que a preservação da memória organizacional pode trazer para as organizações modernas, é preciso entender o conceito de memória organizacional e de que forma ele passou a compor o planejamento estratégico das organizações brasileiras. A definição elaborada por Paulo Nassar e Rodrigo Cogo aponta que A memória organizacional é um processo inserido no pensamento e nas operações de comunicação organizacional nas quais uma empresa ou instituição tem que conservar e recuperar informações de sua história, disponíveis no âmbito de suas dimensões humanas e sociais (memórias biológicas) e tecnológicas (memórias artificiais). Por sua vez, a organização é um produto cotidiano de sua memória e das vozes que falam se sua tradição (NASSAR; COGO, in MARCHIORI, 2013, p. 86).

Santa Cruz (2012, p. 6) reforça a definição de Nassar e Cogo ao entender a memória como uma operação feita pela organização em busca de resgatar o afeto de seus stakeholders. “É uma recuperação do elemento humano e individual nas organizações: construção do passado a partir de vivências individuais e coletivas”. 394

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Analisando a definição dos autores, é possível afirmar que a memória organizacional é um bem intangível das organizações modernas, produzido diariamente por clientes, funcionários, fornecedores, administradores, pela comunidade com que a organização se relaciona, etc. Essa memória é, portanto, uma colcha de retalhos formada pelo relacionamento que cada stakeholder mantém com a organização. Recuperar fragmentos desta colcha de retalho, conferindo a ela uma unidade, é recuperar tradições que dizem respeito a sua trajetória. Recuperar a memória organizacional é recuperar o DNA da empresa. Karen Worcman colabora para o entendimento do termo ao definir memória empresarial a partir do ponto de vista e dos interesses da organização. Para ela, memória organizacional é, sobretudo, “o uso que uma empresa faz de sua história” (2004, p. 23). E vai além ao afirmar que a história da organização não é escrita apenas por um grande líder: “Uma empresa é uma reunião de pessoas que também fazem parte de outros grupos sociais. A partir dessa compreensão, definimos que a história de uma empresa é resultado de história e da contribuição de cada uma dessas pessoas [...]” (WORCMAN, 2004, p. 26) Santa Cruz (2012, p. 6) também trabalha o termo sob esta perspectiva e afirma que a memória organizacional pode ser encarada como “Um esforço das empresas em fazer de uma determinada versão a base da identidade da instituição bem como um elemento de seu reconhecimento e legitimação”. 395

A Comunicação, Meios e Interações

Já Paulo Nassar (2005, p.179) apresenta uma definição ainda mais prática e simplista sobre memória organizacional, que para ele “É o conjunto de sensações, lembranças e experiências, tanto boas quanto ruins, que as pessoas guardam de sua relação direta com uma empresa”. E ressalta que “[...] mais do que produtos e serviços, as empresas compartilham, seja com seus colaboradores seja com a comunidade, seu imaginário organizacional”. Compilando as definições apresentadas é possível constatar que a memória organizacional não é algo que possa ser produzido/criado pela empresa com as portas fechadas, mas sim, pressupõe o relacionamento da organização com seus stakeholders, em um processo de construção colaborativa e gradual. Entende-se ainda que é a partir dessa construção diária que se torna possível deixar claro quem de fato a empresa é, os motivos de sua atuação, seus objetivos e importância para seus consumidores e a comunidade com a qual ela se relaciona. Em outras palavras, a memória organizacional é a responsável por dizer o que uma empresa tem de diferente – e de melhor - do que sua concorrente. Mas abrir as portas para que os stakeholders se tornassem coautores da trajetória e tradição organizacional não foi um processo simples de ser aceito e implantado pelas organizações que durante muito tempo trabalharam sob a vigência do modelo fordista de administração, que pressupõe a produção em escala como chave do sucesso empresarial. Santos (2014, p. 65), em seu artigo História e legitimação organizacional: reflexões acerca das narrativas 396

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histórico-organizacionais, ressalta que, no início, quando o resgate da memória organizacional passou a ser considerado uma ferramenta de comunicação capaz de fazer com que a empresa se destacasse perante a concorrência, houve resistência por parte dos gestores da organização, para quem resgatar a memória significava retrocesso e estagnação, palavras que seguiam na contramão da tão perseguida evolução. Além do que o retorno ao passado poderia “tirar do armário alguns esqueletos”, trazendo à tona segredos, falhas e omissões da organização. Neste ponto, é interessante retomar o caminho evolutivo dos estudos relacionados à memória organizacional. Segundo Gagete e Totini (2004), o conceito de memória empresarial começou a ser desenvolvido na década de 20, com a criação da Business Historical Society, nos Estados Unidos, e com a criação da disciplina de História Empresarial, em Harvard. Contudo, nesses primeiros empreendimentos, a memória organizacional era estudada e aplicada sob a perspectiva funcionalista: a ideia era analisar a biografia de empresários de sucesso na intenção de aprender técnicas de direção que permitissem expandir o negócio, conquistar o público e, desta forma, aumentar a lucratividade. Esses estudos eram desenvolvidos principalmente em países europeus e nos Estados Unidos. Na década de 40 e 50, as pesquisas relativas à memória organizacional deram um passo à frente em direção a um conceito mais amplo, passando a abranger estudos com olhares multidisciplinares. “[...] como o 397

A Comunicação, Meios e Interações

­ esenvolvimento de produtos, parcerias, processos de d mudança de estrutura corporativa, entre outros” (GAGETE; TOTINI, 2004, p.113). Contudo, foi somente na década de 70 que a memória deixou de ser vista como uma ferramenta econômica e assumiu a dimensão do simbólico, passando a ser um elemento capaz de colaborar na construção e consolidação de significados culturais e sociais para a organização. Gagete e Totini (2004, p.115) lembram em seu texto uma entrevista que o historiador francês Maurice Hamon, criador do centro de arquivos Saint Gobain, concedeu à edição número 22 da revista Memória Eletropaulo, publicada em 1.995, sobre a mudança de foco nos estudos de memória organizacional. Maurice resumiu a guarda e exploração da memória coletiva pelas empresas com uma finalidade precisa: “compreender melhor o passado para viver o presente e preparar o futuro”. Essa consciência de que a memória poderia ser um instrumento de comunicação estratégica para as organizações chegou ao Brasil anos mais tarde, em 1.960. O atraso está ligado, principalmente, à tardia consolidação dos setores industriais e de serviço no país. Assim, o entendimento do conceito de memória organizacional como importante componente na administração de valores simbólicos passou a ser efetivamente aplicado por empresas tupiniquins na década de 80, quando as instituições, sofrendo com a crise econômica, buscavam formas de se diferenciar de suas concorrentes. As empresas perceberam que diante de tantas transformações, um dos maiores desafios era 398

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promover as necessárias mudanças, sem perder sua identidade. Por conseqüência, tomavam consciência de que sua identidade estava diretamente ligada à sua memória, aos processos que vivenciaram, aos erros e acertos, às inovações, superações e vitórias que marcaram sua trajetória histórica (GAGETE; TOTINI in NASSAR, 2004, p.119)

Na atualidade, marcada pela constante mudança de cenários, preservar a memória se tornou uma urgência para as organizações modernas, que têm como objetivo deixar sua marca em um mercado cada vez mais competitivo, volátil e efêmero. As potencialidades da aplicação da memória organizacional como ferramenta de gestão estratégica serão abordadas no capítulo a seguir.

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A Comunicação, Meios e Interações

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3ª Parte Críticas e Processos Comunicacionais

Capítulo 14 1 As Jornadas de Junho e as abordagens de Gohn e Traquina: uma revisão bibliográfica Ana Cristina Consalter Amôr1

Introdução No ano de 2013, o país inteiro foi surpreendido por uma série de manifestações que ocorreram em junho e nasceram da reivindicação contra o aumento da tarifa para trens, ônibus e metrô. Posteriormente essas manifestações expandiram suas pautas e levantaram bandeiras mais difusas e menos pontuais em sua fase final. Tais manifestações podem ser consideradas as maiores desde as “Diretas Já” e os “Caras pintadas”, e, de uma maneira geral, de acordo com Silva et al (2014, p. 7), podem ser pensadas “como parte de novos processos de ação coletiva que vêm se desenhando nas últimas décadas”. 1. Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita” (Unesp), Bauru, SP 405

É preciso destacar que um dos elementos de grande importância neste processo é a comunicação social porque tanto os meios mais tradicionais quanto os meios mais recentes desempenharam papéis importantes porque serviram de eco para vozes de diversos atores que participaram do evento. Torna-se interessante então verificar como os meios se comportaram diante do evento que sacudiu as principais capitais do país e como as pesquisas em comunicação analisaram o processo, percebendo como atendem às teorias do jornalismo e às teorias dos movimentos sociais, baseadas nas ideias de Gohn e Taquina. Foi possível verificar ainda com que qualidade e comprometimento cidadão e social os meios desempenharam o papel/dever de informar. Para constituição do corpus de análise, fizemos o resgate dos artigos científicos, sintetizando as afirmações e conclusões do estado do conhecimento que direcionou seu olhar/pesquisa para as manifestações de junho de 2013, considerando todo o conhecimento produzido. Buscamos durante o mês de abril de 2015, bancos de dados de artigos de revistas acadêmicas da comunicação2, nos anais dos Grupos de Trabalho da Intercom3 e

2. http://www.revistas.univerciencia.org/ 3. http://www.portalintercom.org.br/index.php?option=com_ content&view=article&id=1081&Itemid=134 406

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Compós4 e no Portal de periódico da Capes5, por artigos científicos que estivessem em língua portuguesa, com a abordagem voltada para área da comunicação e observassem as jornadas e sua relação com a comunicação. Nos Anais dos congressos da Intercom, procuramos limitar a seleção apenas aos artigos publicados em categorias que permitissem trabalhos de pós-graduandos, mestres e doutores, com exceção de três trabalhos publicados no Intercom Junior 2014, devido à relevância de seus objetos. Como procedimento de coleta, recorremos aos mecanismos de busca dos sites enumerados acima, empregando as palavras: manifestações de junho de 2013 e protestos de junho de 2013. E, nos bancos de dados/ portais que não tinham essa ferramenta examinamos cada um dos grupos e/ou divisões temáticas. Destacamos que a pesquisa apresentada, assim como toda construção simbólica, se compromete com as questões tratadas, por intencionar conhecer as maneiras que os movimentos sociais são abordados nas mídias e nas pesquisas em comunicação, assim produzir conhecimentos que possam ser utilizados como caminho/ferramenta para a construção de mais conhecimento e da consolidação da cidadania nos meios.

4. http://www.compos.org.br/biblioteca.php 5. http://www.periodicos.capes.gov.br/ 407

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As jornadas de junho: breve histórico A partir do início do mês de junho de 2013 intensas manifestações se espalharam pelas principais capitais e regiões metropolitanas do país para protestar contra o aumento das passagens de ônibus, trem e metrô. Com grande repercussão e cobertura noticiosa nos meios jornalísticos, essas manifestações também protestaram contra o aumento dos alimentos, dos alugueis, da precariedade dos serviços públicos no Brasil (educação, saúde, moradia) e do atual ambiente político, pautado em diversos casos de corrupção. A repressão policial às manifestações também chamou atenção da sociedade e foi motivo para intensificar os protestos. Grande parte das mobilizações foi organizada através das redes sociais, tendo como precursores os membros do Movimento Passe Livre (MPL). O termo “vandalismo” e a violência policial acabaram ganhando as páginas e as imagens dos veículos de comunicação, quando começaram os registros violentos durante os atos, resultando em manifestantes e policiais feridos. Sem lideranças unânimes e sem o predomínio de grandes partidos, essas manifestações surgiram como uma forte onda social nas principais praças e ruas e reuniram milhares de pessoas. Em São Paulo, os protestos começaram em dois de junho de 2013. Em dez  de junho, as ruas da cidade se transformaram num campo de batalha, onde foram protagonizadas cenas de vandalismo, truculência policial e destruição do patrimônio. Três dias depois, 408

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simpatizantes do Movimento Passe Livre (MPL) ocuparam uma das principais avenidas do centro do Rio, a Presidente Vargas, bloqueando as pistas.   No dia 17 de junho, o Rio também foi palco de uma grande passeata que reuniu mais de 100 mil pessoas que protestaram contra os gastos para a Copa do Mundo, das Confederações, a corrupção e, principalmente, o aumento das tarifas de transporte público. O protesto foi quase todo pacífico. Porém, no final do ato, um grupo infiltrado de manifestantes radicais promoveu um festival de pancadaria. O Palácio Tiradentes, sede da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), foi invadido e depredado. Era o cartão de visita dos chamados Black blocs no cenário das manifestações no estado.  Com repercussão e reflexo em todo território nacional e internacional, o governo brasileiro passou a atender algumas reivindicações: o  Congresso votou a favor de a corrupção ser tratada como crime hediondo, arquivou a PEC 37 (que dava poder exclusivo à polícia para realizar investigações criminais, retirando essa possibilidade do Ministério Público) e proibiu as votações secretas. Governos estaduais voltaram a praticar os preços antigos das passagens. Nas ruas, crescia o número de pessoas nas passeatas. As manifestações no Brasil foram comparadas aos protestos Primavera Árabe, em países árabes, Los Indignados, na Espanha e o Occupy Wall St, nos Estados Unidos.  Configurou-se um movimento com protestos amplos e generalizados em todo o país, fato que não acontecia desde 1992, com o movimento “caras pintadas”. 409

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De acordo com Locatelli (2013, p. 9), o processo que desaguou nas manifestações não surgiu do nada e nem foi obra do acaso. “Ele teve origem dez anos antes, quando jovens se revoltaram com o aumento das passagens em Salvador”. Mais tarde o MPL se consolidaria, em 2005, durante o Fórum Mundial de Porto Alegre. Para Locatelli (2013, p. 11), com a criação do MPL a pauta dos transportes voltava a ter atenção e a questão da mobilidade urbana passa a ser meta fundamental para este grupo específico. Por isso, mesmo sem lideranças marcantes, é impossível abordar as manifestações de 2013, sem abordar um histórico de lutas do MPL, movimento que contribuiu efetivamente para a realização de vários atos que perduraram os anos seguintes até eclodirem as manifestações em questão (MARICATO ET AL, 2013, p. 13). Para Maricato et al (2013, p. 13), as revoltas populares em torno da questão dos transportes fazem parte da história das metrópoles brasileiras há muito tempo, desde sua formação, na verdade. “Num processo em que a população é sempre objeto em vez de sujeito, o transporte é ordenado de cima, segundo os imperativos da circulação de valor”. A população acaba sendo excluída da própria organização da cidade. Maricato et al (2013, p. 15) aponta que as catracas seriam “barreiras físicas que discriminam” de acordo com a concentração de renda. Há aqueles que podem circular prazerosamente pela cidade e há aqueles condenados à exclusão urbana devido à falta de mobilidade e/ou ao seu acesso. “Para a maior parte 410

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da população explorada, o dinheiro para a condução não é suficiente para pagar mais do que as viagens entre a casa, na periferia, e o trabalho, no centro: a circulação do trabalhador é limitada, portanto, à sua condição de mercadoria, de força de trabalho”. De acordo com Silva (2014, p. 10), as manifestações de junho devem ser entendidas como um fenômeno complexo, político e social e que não possui apenas uma causa, mas sim um histórico de carências e deficiências que foram amplamente difundidos e sentidos principalmente por aqueles com menor poder aquisitivo. “Já a pauta do transporte público é altamente sensível por abarcar não apenas as classes trabalhadoras, mas a classe média e, de forma mais específica, o segmento estudantil”.

As teorias do jornalismo e as teorias dos movimentos sociais: os paradigmas de Gohn e Traquina Considerando que todas as pesquisas analisadas neste estudo estabelecem uma relação estrita entre as manifestações de junho e a comunicação e que ainda sim há todo um contexto social, político e econômico precedente, torna-se necessário sistematizar teorias e paradigmas correspondentes sobre os movimentos sociais na produção das ciências sociais, porque situam os protestos dentro de uma perspectiva da comunicação, sistematizam e apontam as características desses movimentos enquanto espacialidades comunicativas e também de ativismo em rede,

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por exemplo. Para tal, utilizamos os paradigmas contemporâneos apresentados por Maria da Glória Gohn, em especial o paradigma explicativo, utilizado para os estudos dos movimentos sociais na América Latina. Por outro lado, 28 artigos do corpus apresentam uma análise voltada para a cobertura do evento ou de seus personagens pelos meios noticiosos ou ainda analisam a atuação de um meio alternativo, como o Mídia Ninja, por exemplo. Nesse sentido, o papel dos meios de comunicação foi um item fundamental na evolução dos eventos. Por isso, atingir uma melhor compreensão das notícias, segundo Nelson Traquina, também é um dos objetivos desse estudo porque é interessante verificar como os meios se comportaram diante do evento que sacudiu as principais capitais do país e como as pesquisas em comunicação analisaram o processo, percebendo então, como atendem às teorias do jornalismo e às teorias dos movimentos sociais, baseadas nas ideias de Gohn e Traquina. Uma compreensão teórica das notícias

Como atestou Traquina (2001, p. 25), diversas teorias acerca das notícias avançaram e configuraram a complexidade de fatores que ajudam a construir o produto jornalístico final, o que aponta para a tese de que conhecer de fato a notícia implica um conhecimento da cultura jornalística e de seus profissionais como “agentes especializados” do campo jornalístico.

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Ciências da Comunicação: Circularidades Teóricas e Práticas Acadêmicas

Traquina (2005, p. 15) também atenta para o fato de que desde o início do século XXI, o poder dos media é algo que tem sido sublinhado nos mais diversos estudos porque seriam o principal elo de ligação entre os acontecimentos e as pessoas, ou melhor, entre os acontecimentos no mundo e as imagens ou os pensamentos que as pessoas têm sobre esses acontecimentos. O jornalismo tem sua devida importância não apenas na projeção social de um acontecimento ou de uma realidade, mas no seu poder de enquadrar esse acontecimento “como um recurso de discussão pública”, conceito de Lippmann (1922) que já antecipava o surgimento da teoria do agendamento, identificada por Traquina (2005, p. 16) como uma redescoberta do poder do jornalismo não só para selecionar os acontecimentos noticiáveis, mas enquadrar, organizar esses acontecimentos. A notícia então não seria um relato, mas uma construção e, compreender porque as notícias são como são tem sido objeto de diferentes teorias ao longo dos tempos. Nelson Traquina dá sua interessante contribuição nesse sentido porque traz uma reflexão sobre a trajetória histórica do jornalismo e sobre a prática do jornalismo enquanto profissão e seu recurso social, ou seja, a notícia e sua construção, abordando os polos econômicos e ideológicos que dominam o campo jornalístico contemporâneo. Este autor também lança dois importantes questionamentos para adentrar ao mundo das notícias: “o jornalismo é apenas um espaço fechado de reprodução ideológica, ou pode ser um espaço aberto a todos os agentes sociais na luta política e social”? Com sua obra, Traquina 413

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(2005, p. 26) afirma que a resposta é que “o campo jornalístico pode ser utilizado como recurso pelos agentes sociais que oferecem voz alternativa, mas para isso precisam jogar o xadrez jornalístico” (TRAQUINA, 2005, p. 26). Traquina (2005, p. 54), relata toda a história do surgimento da imprensa, suas características e entraves e aponta que com o desenvolvimento de uma nova imprensa no século XIX, liberta do conceito de porta-voz partidária, pôde oferecer uma diversidade maior de notícias, mas contadas de uma maneira sensacionalista, o que predominou na Europa do século XVIII. Antes mesmo disso foi possível vislumbrar um jornalismo que noticiou coisas bizarras, fatos sobre casamentos, divórcios, adultérios e outros absurdos. Já chamado de “quarto poder”, encontra legitimidade na teoria da opinião pública e nas ideias dos utilitaristas ingleses do século XIX (na chamada “época de ouro da imprensa”). Esse jornalismo combate a imagem de uma força revolucionária e perigosa, especificamente neste século e se transforma ao longo dos anos com o objetivo de alcançar mais leitores. Começa a repensar suas questões econômicas e surge então “uma nova empresa jornalística” que, competitiva, se viu disposta a correr atrás da notícia. Essas empresas se tornaram cada vez maiores, mais complexas e mais burocráticas, com estrutura de indústria e divisão de trabalho. A divisão no trabalho fez emergir a profissão de jornalista e a ilustre figura do repórter, o desenvolvimento de novas técnicas de reportagem, o crescente poder da imprensa e a constituição de lead que se tornou prática 414

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recorrente. Toda essa e outras evoluções se devem, segundo Traquina (2005, p. 35), à “evolução do sistema econômico, os avanços tecnológicos, fatores sociais e a evolução do sistema político no reconhecimento da liberdade rumo à democracia”. No entanto, Traquina (2005, p. 55) solicita atenção às qualidades mais permanentes do jornalismo e às suas possibilidades, como atividade criativa, com uma autonomia relativa e condicionada por pressões cotidianas e em uma democracia. Atenta para a questão dos chamados “polo econômico” (o jornalismo como negócio e as notícias como mercadoria) e “polo ideológico” (ideologia profissional de servir ao público para que o cidadão seja participante assíduo na democracia) e uma tensão permanente entre eles. Para Traquina (2005, p. 206), este “quarto poder” não é mesmo um campo fechado e pode sim ser mobilizado por diversos movimentos de contestação em uma luta simbólica das sociedades democráticas. E é claro que pode também atuar como contrapoder, de acordo com a força de valores. O campo econômico, por sua vez, é uma força importantíssima na atividade jornalística e, de fato, o poder do jornalista é relativo e condicionado. Por fim, Traquina finaliza seu primeiro volume com uma informação crucial para este trabalho em especial: essa atividade comunicativa e criativa chamada jornalismo será sempre transformada por inovações tecnológicas e as novas capacidades que o ciberespaço oferecem e as novas oportunidades de acesso para as vozes alternativas “são fatores que apontam para a de415

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bilitação do controle do jornalismo e para a existência dum campo jornalístico que é cada vez mais uma arena de disputa entre todos os membros da sociedade” (TRAQUINA, 2005, p. 210) As contribuições de Gohn e os movimentos sociais no Brasil na era global

De acordo com Gohn e Brigel (2012, p. 7), vários paradigmas têm sido abordados de diferentes perspectivas desde a institucionalização acadêmica dos movimentos sociais. Importante torna-se apresentar primeiro o conceito de paradigma como um conjunto de “teorias, conceitos e categorias de forma que podemos dizer que o paradigma X constrói uma interpretação Y sobre determinado fenômeno ou processo da realidade social”. Gohn (2012, p. 13) cita o responsável pelo termo, T. Kuhn, que afirmava o surgimento de um paradigma toda vez que surge a dificuldade em envolver, inserir novos dados em velhas teorias. Os clássicos seriam os provenientes principalmente da Europa e dos Estados Unidos e a partir de então alguns enfoques passaram a ser revistos e/ou redescobertos. As abordagens críticas, advindas do marxismo, dos novos movimentos sociais, da teoria da mobilização social e mobilização política desenvolveram na América Latina outros desdobramentos e reconstrução de teorias que buscam inúmeras respostas para os movimentos sociais contemporâneos.

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Para Gohn (2012, p. 9), motivações e razões não faltaram para caracterizar tais paradigmas, afinal foi possível identificar uma ausência significante acerca de pesquisas que tenham se dedicado ao estudo das teorias dos movimentos sociais. O que se vê, enfim, são questões de ordem prática, estudos de natureza mais empírico-descritiva, estudos de caso e de objetos que têm omitido a questão teórica. “Destaque-se ainda a ínfima importância dada neste debate à própria existência dos movimentos na América Latina” (GOHN, 2012, p. 10). A partir da década de 60, os movimentos ganharam visibilidade e as teorias sobre as ”ações coletivas” foram se desenvolvendo gradativamente. Um deslocamento de interesse levou o foco das atenções para a sociedade civil e não mais para o Estado, objeto central de investigação dos cientistas sociais. E mesmo com o boom dos movimentos sociais, muitos problemas de pesquisa também surgiram, como por exemplo, o próprio conceito de movimento social e outras questões emergentes. Segundo Gohn e Brigel (2012, p. 7), do final do século XX para cá, novas formas de dominação foram rearticuladas e muitos fatores desencadeados pelas novas políticas econômicas, pelos novos mecanismos de atuação dos mercados e agentes financeiros, novas políticas, novas práticas sociais, novas tecnologias de informação e comunicação e demais transformações que caracterizam uma nova era global, uma “globalização assimétrica” que também reestruturou as formas de organização e de ações de protestos coletivos dos movimentos sociais. 417

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E ao expor novos interesses acadêmicos para revelar o papel dos movimentos sociais contemporâneos, Gohn e Brigel (3012, p. 11) conceituam: Pensamos que os movimentos sociais continuam sendo atores centrais (ainda que logicamente não exclusivos nem portadores da “melhor” ou “única” mensagem transformadora) dos processos e dinâmicas de protestos e luta por mudanças e justiça social no mundo contemporâneo. Uma questão de fundo tem a ver com a própria definição do que os diferentes atores e agentes sociais, que se apresentam como movimentos sociais, estão entendendo por movimento social (ou ressignificando alguma prática social como movimento) (GOHN e BRIGEL, 2012, p. 11).

Como explica Gohn (2012, p. 337), a temática trata de uma área clássica da sociologia e da política, e não apenas um momento da produção sociológica reduzindo as manifestações à própria existência do fenômeno. Inicialmente os estudos dos movimentos sociais estavam relacionados a contextos de mudanças sociais e revoluções, revoltas, tensões, fontes de conflito e atos anômalos em comportamentos coletivos vigentes. A categoria “trabalhador” e o conceito de luta de classes sempre estiveram centralizados em todas as análises e utilizados inclusive, em acepções mais amplas, como períodos históricos grandes, e em questões de reforma ou revolução nas abordagens críticas, associadas à perspectiva marxista. 418

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Os diferentes contextos históricos, temporais e geográficos permitiram o surgimento de novas modalidades de movimentos sociais e novos personagens. “O tema se ampliou e passou a enfocar outras dimensões das ações coletivas como os “protestos sociais” e em um quadro de pesquisas e pesquisadores que se alterou profundamente ao longo dos anos após a década de 60” (GOHN, 2012, p. 337). De acordo com a autora, a produção norte-americana entra em diálogo com a produção europeia, algo não abordado no Brasil, país de significante produção sobre os movimentos, mas ambas as teorias, ou seja, o paradigma norte-americano e a teorias dos Novos Movimentos sociais, cresceram, se desenvolveram e depois se estagnaram, o que deixou as pesquisas na América Latina bem debilitadas por estarem muito presas aos referenciais clássicos. Para Gohn (2012, p. 211), falar do paradigma latino-americano é falar de um paradigma muito diferenciado ao comparar seus movimentos sociais com os movimentos europeus, canadenses e norte-americanos, por exemplo, a despeito das diferenças histórico-culturais e os processos econômicos, políticos e sociais muito distintos. Gohn (2012, p. 212) explica que mesmo com tantas diferenças, seguiu-se os modelos clássicos como a teoria da modernização e as teorias elaboradas pela CEPAL (Comissão Econômica para Desenvolvimento da América Latina), fundadas no paradigma das fases moderna e atrasada. O que se destaca é a contribui419

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ção dos estudos acerca da participação social dos indivíduos como parte do processo de integração social (Germani, Solari e Lipset) que, ainda sim, estudavam grupos mais elitistas. Grupos populares eram raramente citados. Prosseguindo, Cardoso e Falleto, com a teoria da dependência, inovaram e chamaram atenção para as especificidades da América Latina. Entretanto, foi difundida num momento de militarização generalizada. Mas possibilitou releituras e abriu caminhos para análises mais críticas como a teoria da marginalidade (Kowarick) (marginalização como um processo muito mais complexo). Em suma, Gohn (2012, p. 221) contextualiza que os movimentos sociais na América Latina foram bastante diferenciados em termos de distribuição, embora tenham ocorrido em todos os países. Surgiram nos grandes centros, seguiram para outras regiões e se organizaram até em vilarejos (em países de estrutura econômica mais agrária), com agendas diferenciadas, tais como questões étnicas, suprimentos de gêneros e serviços sociais, como demandas por alimentos, terra, moradia, educação e ainda questões de gênero. No Brasil, segundo Gohn (2012, p. 222), os movimentos se concentraram nas últimas três décadas, o que ela atribui, talvez, à sua extensão territorial e à sua população em relação aos outros países latinos. Por isso a abordagem da autora a partir da década de 90, período de intensas mudanças no processo de desenvolvimento brasileiro, as quais abarcam novas estratégias de intervenção social para enfrentar a cha420

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mada “capacidade reguladora de mercado”, além do crescimento da economia informal. “As relações de trabalho deixam de ser o principal foco das lutas dos trabalhadores. A luta básica passa a ser pela manutenção de um emprego”. As mudanças não param por aqui. O tempo se altera em função dos novos meios de comunicação. A mídia, principalmente a TV e os jornais de grande imprensa, passa a ser um grande agente de pressão social, uma espécie de quarto poder, que funciona como termômetro do poder de pressão dos grupos que têm acesso àqueles meios. As organizações não governamentais, por sua vez, ganham proeminência sobre as instituições oficiais quanto à confiabilidade na gerência dos recursos públicos (GOHN, 2012, p. 298).

A fome e a miséria passam a ser objeto de diagnósticos de políticas públicas e a exclusão passa a ser “exclusão integradora”, em um cenário de construção de uma economia popular vinculada diretamente à economia pública e capitalista. Neste contexto perdem força os sindicatos e os movimentos populares porque as políticas de integração aqui solicitam interlocução com organizações institucionalizadas. As ONGs se destacam e se destacam também: crise econômica com deslocamento da economia formal para a informal com suporte de políticas econômicas e fomento à abertura de negócios, porém com fragmentação das atividades produtivas se421

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miartesanais. A falta de moradia e a violência crescem absurdamente, mesmo com a economia estável com o plano real (GOHN, 2012, p. 300). Gohn (2012, p. 300) contextualiza a situação com o cenário internacional, nada positivo, com reformulação da globalização, da primazia do mercado sobre o Estado, a intensificação do capital especulativo, sem a menor preocupação com os processos de desenvolvimentos das nações, além das economias ilegais (tráfico de drogas, armas e rede paralela de recursos econômicos). O que se percebe é a constituição de um sistema excludente, que moderniza muitas regiões do país, mas desloca pessoas em função de mão de obra barata que almeja qualificação. Que é contraditório porque cria um sistema produtivo fragmentado e competitivo, de saberes codificados e não especializados num ciclo de mais miséria e desemprego. Vale então destacar, que não só esses fatores macroestruturais explicam a “centralidade da miséria dos indigentes”, mas também provém de uma conquista de grupos e movimentos sociais organizados. O Estado então estaria respondendo a pressões da sociedade civil, também estaria transferindo parte de suas responsabilidades para o setor privado. Ele se reorganiza e se torna mais dinâmico no cenário produtivo e enxuga a máquina estatal e diminui conflitos internos. “Observamos, portanto, no cenário brasileiro dos anos de 1990 um conjunto enorme de profundas alterações estatais no modo de operar a economia, as políticas públicas, e na forma de se relacionar com a sociedade civil” (GOHN, 2005, p. 303). 422

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E resumo, tem-se o desenvolvimento de uma nova concepção de sociedade civil e o surgimento de novos atores sociais, além de novos espaços, novos formatos e participação e relações sociais, basicamente construídos pelos movimentos populares nas décadas de 70 e 80 e por ONGs, na década de 90, a partir de relações baseadas em direitos e deveres, A partir de então, de acordo com Gohn (2012, p. 307), se redefine o cenário das lutas sociais no Brasil. Entram em crise movimentos de militância, de mobilização, de participação cotidiana e de credibilidade e confiabilidade nas políticas públicas e instituições. Cresce o movimento popular rural. Destaca-se o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra), criado em 1979, com sólida organização, mas com dificuldades de operações devido às diferenças culturais. Em 1990 e 1996, a chacina de trabalhadores rurais chamou atenção internacional e para a criação da União Ruralista Brasileira (URD) e o MST transformou-se então no maior movimento do Brasil, se ampliando de maneira singular entre 1994 e 1997. A reforma agrária começa a ser aceita com perspectiva de fixar o homem no campo, diminuindo índices de violência na cidade. A autora relata que outros movimentos surgiram com inúmeros propósitos. Há de citar, por exemplo o Movimento de Ética na Política, da Ação da Cidadania contra a miséria e pela Vida, Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, o Movimento dos Aposentados, movimentos que pediram pela revalorização da Cida e contra a violência como o Viva Rio. Este caracterizou423

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-se como movimento de novas práticas coletivas porque não firmou vínculos com partidos, ocupou notável espaço simbólico e agiu por meio de projetos culturais. Destaca-se ainda o fortalecimento e/ou criações de entidades como a ABONG (Associações Brasileiras de ONGs), a CMP (Central de Movimentos Populares), que passou a reunir movimentos que estavam em consonância com a CUT (Central Única dos Trabalhadores), a instalação de ONGs internacionais no Brasil, como Greenpeace, Rainforest e Anistia Internacional, entidades já presentes desde a década de 80, como a CONAM (Confederação Nacional das Associações de Moradores), a CGT (Confederação Geral dos Trabalhadores) e programas sociais criados por meio da LBA (Legião Brasileira de Assistência). O MST, ainda com notoriedade, passa a ser um interlocutor para a formulação de uma reforma agrária no país, e a temática ganha adeptos e fomenta pressões, como por exemplo o lançamento do livro de Sebastião Salgado, “Terra”, episódio relevante para a causa, além de pressões morais e advindas do clero católico, embora na década de 90, os movimentos sociais tenham perdido grande apoio desta grande aliada, a Igreja Católica (especificamente a ala da Teologia da Libertação), que reviu suas práticas, doutrinas e diretrizes. No Brasil há destaque então para a década de 90, quando segundo Gohn (2012, p. 317), os movimentos tornaram-se mais qualificados e estruturados, com ações motivadas com mais organização e menos pressão, que trouxeram, sobretudo, uma nova cultura e contribuições dos diferentes tipos de movimentos para 424

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o processo de democratização do país para reconstrução de valores democráticos. A crise de alguns movimentos, ou a chamada “crise de mobilização”, nas análises de Gohn (2012, p. 324), se refere mais às mudanças, às transformações internas e externas do que propriamente a um processo de crise, como um momento de amadurecimento, uma “adequação à institucionalização democrática, quando a autora se pauta em outros autores como Harber e Oliveira. Os chamados novos movimentos sociais, ligados às lutas por questões de direitos no plano da identidade ou igualdade, declinaram e, depois de reorganizados, cresceram. “Em síntese, está havendo uma mudança nos valores e orientações que informam e fundamentam a ação social (GOHN, 2012, p. 327). Por fim, Gohn (2012, p. 339) reflete que a tendência que predomina na análise dos movimentos sociais a partir dos anos 90 é de unir abordagens provenientes de teorias macrossociais e teorias que priorizam aspectos micros da vida cotidiana. Há a necessidade de uma teoria que busque uma síntese, com ações e conteúdos articulados com diferentes disciplinas (economia, política, sociologia, antropologia, psicologia, psicanálise, filosofia e comunicações). “Diferentes olhares, diferentes ângulos de apreensão dos fatos da realidade: esta é uma necessidade imperiosa, numa era na qual tudo se desfaz rapidamente, tudo fica obsoleto em frações de tempo muito menores que nossa capacidade de memorização”. E lança a hipótese de que talvez o paradigma postulado venha se realizar com a fusão de vários procedi425

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mentos metodológicos e pensado para analisar fenômenos que estão ocorrendo na contemporaneidade do terceiro mundo.

Metodologia do trabalho Para contribuir com a problematização em torno de como as manifestações foram abordadas nas pesquisas em comunicação, concatenamos os trabalhos científicos que retrataram a questão. Primeiro, fizemos a busca, seleção e identificação desses trabalhos. Constituímos um corpus com 44 artigos científicos que analisaram de alguma maneira manifestações de junho de 2013. Posteriormente, realizamos a leitura e sistematização das informações dos textos em uma tabela onde destacamos: o título, autores, objetivos, metodologia, contextualização e pressupostos e principais conclusões. Em princípio o estudo tentou abarcar apenas trabalhos sobre a cobertura de diversos veículos em relação às manifestações. Porém, devido à escassez de trabalhos com essa delimitação nas bases de dados, decidimos englobar então todos os trabalhos que estabeleceram certa relação entre a comunicação e as jornadas de junho. Dos artigos selecionados, oito são do Intercom 2013, nove são do Intercom 2014, três são, excepcionalmente, do Intercom Junior 2014, por sua relevância e objeto, 15 são do portal Univeciência, quatro são da Compós, quatro do banco de dados da Capes e um estudo, organizado

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em seis capítulos e coordenado pelo professor Sivaldo Pereira da Silva, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e da Universidade de Brasília (UnB), apresenta uma análise comparada e descritiva da cobertura dos jornais no momento significativo de mobilização social. A seguir, tais pesquisas foram descritas brevemente, atentando-se para seus objetivos, objeto, metodologia e principais resultados. Em seguida, em reflexões finais, a correlação com as abordagens de Gohn acerca do fenômeno dos movimentos sociais e suas características contemporâneas e na abordagem de Traquina a respeito das notícias e como se dão na representação deste fenômeno social pelos meios.

As pesquisas: as manifestações de junho, os movimentos sociais e a comunicação Novamente enfatizamos que para constituição do corpus de análise, fizemos o resgate dos artigos científicos, sintetizando as afirmações e conclusões do estado do conhecimento que direcionou seu olhar/pesquisa para as manifestações de junho de 2013, considerando todo o conhecimento produzido. Buscamos durante o mês de abril de 2015, bancos de dados de artigos de revistas acadêmicas da comunicação, nos anais dos Grupos de Trabalho da Intercom e Compós e no Portal de periódico da Capes, por artigos científicos que estivessem em língua portuguesa, com a abordagem voltada

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para área da comunicação e observassem as jornadas e sua relação com a comunicação. Nos Anais dos congressos da Intercom, procuramos limitar a seleção apenas aos artigos publicados em categorias que permitissem trabalhos de pós-graduandos, mestres e doutores, com exceção de três trabalhos publicados no Intercom Junior 2014, devido à relevância de seus objetos. Como procedimento de coleta, recorremos aos mecanismos de busca dos sites enumerados acima, empregando as palavras: manifestações de junho de 2013 e protestos de junho de 2013. E, nos bancos de dados/ portais que não tinham essa ferramenta examinamos cada um dos grupos e/ou divisões temáticas. Dos 44 artigos encontrados, 27 analisam cobertura dos meios noticiosos em relação ao evento supracitado. Do XXXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, realizado em Manaus em 2013, foi possível coletar oito artigos. Desses, cinco analisam como a mídia representou as jornadas de junho. Ao analisar as reverberações midiáticas sobre os megaeventos que aconteceram no Rio paralelo às manifestações através da cobertura de O Globo e O Dia, Freitas (2013) aponta que a mídia encontra um ambiente de grande produção de narrativas jornalísticas sobre o medo e o pânico na violência que acontece no Rio de Janeiro, uma estratégia que vende jornal e espaço publicitário nos meios de comunicação de massa. Sobre a produção de sentidos no Discurso de Veja acerca das manifestações de Junho, Pádua (2013) percebe-se o trabalho tendencioso de seleção e organização 428

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das informações para construir um discurso coerente e persuasivo com a intenção de influenciar a forma como a população percebia o movimento. Moraes, Machado e Tomazetti (2013) analisam as representações midiáticas das manifestações de rua no Brasil em relação aos seus personagens, através das notícias veiculadas em três emissoras de televisão. Eles afirmam que os meios apresentam os personagens de uma maneira maniqueísta: manifestantes pacíficos e vândalos. Inicialmente são desfavoráveis ao evento, repreendendo os excessos de uma minoria sem compreender a complexidade do acontecimento. Sobre a cobertura da Folha de S.Paulo (capas dos jornais, das páginas de Opinião, Painel do Leitor e Caderno Cotidiano), Maradei (2013) conclui que o veículo foi obrigado a reconhecer o significado das manifestações. Confirma-se a premissa de que houve uma mudança de comportamento editorial do jornal após atos violentos cometidos pela Polícia Militar contra manifestantes, ocorridos em 13 de junho em São Paulo. Por fim, com metodologia qualitativa, através do modelo de Thompson, Sena e Rocha (2013) analisam o discurso jornalístico do programa Brasil Urgente/Band e identificam a manipulação ideológica durante a cobertura feita das manifestações populares em junho de 2013 no Brasil. Inicialmente a cobertura desqualifica o evento como ação criminosa e reafirma o modelo de Thompson como um instrumento analítico bastante esclarecedor. As demais pesquisas apresentam a utilização das linguagens no contexto da mobilização social via internet 429

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para manifestações que ocorreram em todo o Brasil em junho de 2013, analisam a comunicação realizada nas redes sociais virtuais para fins de mobilização social, aprofundam as discussões acerca dos meios textuais que facilitaram essa propagação através do facebook, compreendem como o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC’s) promoveu o desenvolvimento do processo de mobilização social brasileiro em 2013 e traz à luz conceitos de convergência e conversação mediada pelo computador, buscando compreender a importância das redes sociais e das redes sociais online nas manifestações e protestos democráticos no Brasil. Foram nove artigos coletados do XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, em Foz do Iguaçu, no ano de 2014. Destes, quatro focam o evento de maneira midiatizada. Roldão (2014) reflete acerca do espaço ocupado pelo jornalismo alternativo no Brasil, identifica inúmeras experiências de comunicação alternativa, abrangendo jornal e revista impressa, portais na web ou, simultaneamente, nas duas versões, como o Jornal Brasil de Fato, Le Monde diplomatique, A Nova Democracia e Carta Maior. Abarca alguns movimentos sociais e algumas coberturas destes. E conclui que a relação de experiências de jornalismo alternativo que busca apresentar perspectiva diferente da sociedade globalizada é extensa. Esse jornalismo combate uma ditadura, mas nem sempre a ditadura do mercado, da contemporaneidade. Ao abordar a cobertura d’O Estado de S. Paulo sobre o Movimento Passe Livre (análise sobre as matérias 430

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publicadas na seção Metrópole, destinada a cobertura da região da Grande São Paulo, entre os dias 7 e 24 de junho de 2013) e sua correlação com a cidadania, Araujo, Filho e Nunes (2014) observam que “à medida que a população sai às ruas em todo o país e as demandas originalmente apresentadas pelo MPL se amplificam e se desdobram o jornal O Estado de São Paulo vai mudando seu posicionamento paulatinamente”. Este reconhecimento da retomada do protagonismo político dos sujeitos significa para o autor uma nova forma de exercer a cidadania, de ocupar espaço social e de reposicionar a mídia convencional diante dos movimentos sociais organizados da sociedade civil. Oliveira (2014) analisa as manifestações na página do Campo Grande News no facebook, em relação à duração e a interação dos usuários com essas notícias e verificou-se que os critérios de proximidade e de novidade/atualidade, que são recorrentes nas listas de critérios de noticiabilidade, também se apresentaram recorrentes nas publicações feitas pelo Campo Grande News. A análise foca mais nos estudos de jornalismo online do que propriamente n a cobertura do evento. Justen (2014) traça um diagnóstico do cenário midiático para entender a ascensão das novas mídias a partir da noção foucaultiana de relações de poder. E chega à óbvia reflexão de que cada um à sua maneira transmite um fato com suas representações mais fiéis e com pontos de vista, que variam mediante circunstâncias e atores sociais. Em especial, Leske (2013), por meio de pesquisa documental de caráter empírico, realiza um panorama 431

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acerca das pesquisas contemporâneas sobre os estudos de comunicação sobre Movimentos Sociais na América Latina. Torna-se uma pesquisa interessante porque envolve estudos publicados acerca de MS/NMS nos Anais do Intercom Nacional. Os principais conceitos citados estão atrelados ao enquadramento do fenômeno (Framing), à construção da notícia de forma geral (Newsmaking) e à inserção de um tema na agenda social (Agenda Setting). “Assim, evidencia-se que a mídia influencia o posicionamento da sociedade diante dos assuntos por ela expostos”. No caso estudado, a visão hegemônica dos meios midiáticos tradicionais apresenta-se de forma negativa, prejudica a imagem dos movimentos e enfraquece o resultado das ações. Pinto e Fossa (2014) trazem considerações teóricas acerca dos movimentos sociais a partir de autores como Castells (2013) e Scherer-Warren (2011) para entender de que forma os movimentos sociais contemporâneos caracterizam-se enquanto atores sociais e de que forma sua atuação concretiza-se no espaço físico social. Percebe-se que atualmente “os movimentos sociais nascem de forma diferenciada, sem lideranças, com variadas contestações, mobilizam-se por meio das redes sociais, tomam as ruas, arregimentam muitas pessoas que indignadas postulam do poder público medidas para a melhoria social”. Funcionam com autonomia que não foi dada, mas que foi aceita e é autossupervisionada. Através da cartografia, Oliveira (2014) apresenta reflexões sobre o uso do paradigma qualitativo nas pesquisas sobre práticas comunicacionais e movimentos sociais popu432

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lares, a partir da experiência de pesquisa no assentamento Barra do Leme. Trata-se de uma pesquisa de compreensão e intervenção como parte de um atuar em campo nas pesquisas de comunicação e nas Ciências Sociais e Humanas. Oliveira (2014), por meio de uma abordagem teórica e da observação do contemporâneo, situa os protestos dentro da perspectiva da comunicação, sistematiza e aponta as características destes movimentos enquanto espacialidades comunicativas e de ativismo em rede. O autor crê no potencial de ação e comunicação das redes e movimentos sociais com todas as suas interações e possibilidades com uso das tecnologias. Porém, torna-se difícil enxergar mudanças mais profundas em curto e médio prazo em questões que se anunciam com profundidade. Teixeira (2014) tem a mesma intenção ao estudar a mobilização gerada a partir das páginas da rede social Facebook no mês de junho de 2013, que redundaram nas manifestações ocorridas pelas ruas da Grande Vitória. E aponta que é impossível imaginar na atualidade, qualquer manifestação ou decisão para uma nação que não passe pelas articulações geradas pelas redes sociais digitais. Excepcionalmente, do Intercom Junior de 2014, destacamos três pesquisas. Amancio e De Paula (2014) analisam o papel das mídias digitais durante a organização e realização da manifestação e notam que através delas foi possível organizar e promover a manifestação em menos de uma semana, em diversas capitais do Brasil. Essas mídias estariam sim modificando costumes e hábitos da sociedade, proporcionando uma transmissão de mensagem mais eficaz e completa. 433

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Roque et al (2014) analisam a diferença de tratamento dado ao grupo Black Bloc pelas revistas CartaCapital e Veja, durante as manifestações de junho de 2013. A cobertura neutra, descritiva, analítica e ética de Carta se contrapõe à cobertura negativa e tendenciosa de Veja. Esta confere ao grupo uma conotação animalesca e desorganizada, totalmente desqualificada. Othon (2013) analisa o trabalho jornalístico desenvolvido pelo grupo de mídia independente Mídia Ninja e destaca que esses grupos de mídia independente têm exercido um importante papel em propor novas formas de produzir e consumir a informação. O Mídia Ninja teria conseguido captar o espírito desse novo jornalismo ao camuflar o repórter em meio aos manifestantes e transmitir os anseios do povo e ações que aconteciam no interior das manifestações. No Portal da Produção Científica em Ciências da Comunicação (Univerciência) foi possível encontrar 15 pesquisas sobre as manifestações de junho de 2013. Dentre elas, 12 abordam a mídia e as manifestações. De acordo com Rosa (acesso em abril, 2015), que faz uma análise comparativa das fotografias dos jornais Zero Hora e Sul21 através da semiótica de imagens, o jornal Zero Hora midiatizou as imagens por um viés pró-Estado enquanto que o Sul21 manteve uma postura diferenciada, veiculando imagens que abrandasse a imagem dos manifestantes e denunciasse ações abusivas da polícia. Barros (acesso em abril, 2015) faz uma análise das referências ao Anonymous nos portais Folha.com e G1, com o objetivo de investigar a legitimidade do hacktivismo 434

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como prática de protesto através das ações do coletivo ciberativista. Por meio da análise de conteúdo, ficou claro que esses “novos” protestos são resultado das possibilidades que a rede proporciona, como a diversidade, por exemplo, que pode beneficiar ou não o movimento. E que através do Anonymous, o hacktivismo cumpriu seu papel de participante importante no processo. O hacktivismo e o ciberativismo estão imanentes um ao outro. Carvalho (acesso em abril, 2015), analisa a construção textual do folheto de Abraão Batista, onde o cordelista aborda as características mais marcantes das manifestações e tece seus comentários sobre o que apreendeu pela mídia de massa. Percebe-se que a Folkcomunicação auxilia a construir um olhar sobre a prática dos cordelistas e sobre os conteúdos apresentados nos folhetos. A teoria ajudou a compreender a utilização que o poeta fez de um veículo de comunicação popular como instrumento de luta, representando o posicionamento de um grupo que também se mostrou insatisfeito com a situação socioeconômica do país. Com “O Papel das Revistas Veja e Carta Capital na Formação da Opinião Pública Brasileira acerca das Manifestações Populares”, Gonçalves (acesso em abril, 2015) conclui que cada revista primou pelos seus posicionamentos politicoideológicos, deixando em segundo plano a imparcialidade. “Tendo grande influência na opinião pública, esses veículos comunicativos comprometeram a construção social da opinião do eleitor fazendo-o caminhar em direção as suas ideologias, o que viola a principal premissa do jornalismo que é a informação”. 435

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Ao analisar as imagens no jornalismo de revista acerca da cobertura das manifestações em Carta Capital, Veja, Época e IstoÉ, Rodrigues (acesso em abril, 2015), à luz da análise de conteúdo, com base no estudo do fotojornalismo por Jorge Pedro. Em suma, mais uma vez Veja se destaca por sua cobertura exótica. Responsabilizou o governo petista por todas as insatisfações, representou manifestantes como baderneiros e a polícia apenas agindo de maneira enérgica e não violenta. Brasil e Frazão (acesso em abril, 2015) investigam como se constroem as estratégias de cobertura pela mídia tradicional e mídia alternativa, a partir da revisão de artigos divulgados na imprensa e vídeos disponíveis na internet. Para eles, o novo modelo de cobertura jornalística televisiva aponta a importância da participação de novos atores sociais com novas ferramentas digitais poderosas, apoiadas pela nova cultura informacional das redes sociais. E atentam que “é necessário estudar as transformações não só das tecnologias e das mídias, mas, igualmente, investigar o surgimento de novas narrativas informacionais, fluxos comunicacionais e relações cada vez mais híbridas entre emissor e receptor”. Ao analisar parte da cobertura impressa desses protestos, na Folha de S. Paulo e no O Estado de São Paulo, e outras informações compartilhadas nas mídias sociais pela mídia ninja, Lima e Loose (acesso em abril, 2015) verificam que a cobertura das manifestações pela imprensa tradicional precisou se adequar diante de outras informações que emergiram das mídias alternativas digitais, como a mídia ninja. Estas “constituem uma nova 436

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e poderosa variável que incide sobre as práticas de jornalismo tradicional e sobre a reflexão a respeito de que novos caminhos o campo deve seguir para manter suas grandes pretensões históricas nas democracias”. Em “Política sem partido e notícia sem empresa jornalística – um olhar sobre a crise evidenciada nas manifestações de junho de 2013”, Thomé (acesso em abril, 2015), responde a algumas questões referentes ao movimento e o futuro do jornalismo num contexto de agressões. Para o autor, nesta cobertura, a crise do jornalismo veio à tona com força total com um discurso que retoma a questão do mito da imparcialidade. “O jornalismo cidadão abre possibilidades de apresentação de múltiplos olhares, de ângulos diversos, viabiliza que outros fatos sejam “pescados”, ampliando a oferta de informação e de versões”. Zanotti (acesso em abril, 2015) avalia a guinada que se observou na tonalização das coberturas jornalísticas relativas à evolução dos protestos através do método de investigação que associa a análise discursiva a uma discussão sobre estratégias e fundamentos do jornalismo. Este foi aplicado a editoriais e textos noticiosos publicados no jornal Correio Popular, da cidade de Campinas/SP, entre os dias 13 e 24 de junho de 2013. O autor concluir que o jornal em questão, assim como os demais, abriu mão de seus compromissos com qualquer grau de objetividade porque recorre às adjetivações, “fenômeno que culminou com o uso da metáfora hiperbolizada de um país que se levanta de seu berço esplêndido, em texto que deveria se restringir à informação”. 437

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Bergamaschi (acesso em abril, 2015) apresenta um estudo sobre a cobertura midiática dos movimentos que ocorreram em junho em Porto Alegre, pelos jornais impressos Zero Hora e Correio do Povo e especificamente como caracterizaram a corporação policial. A mídia fortaleceu a representação dos manifestantes como vândalos e em relação à polícia as representações reforçam a perpetuação de um modelo de polícia autoritária e violenta e ainda com julgamento positivo por parte da sociedade, que reproduz o que a mídia dissemina. Para Zardo (acesso em abril, 2015), que analisou os editoriais da Folha de São Paulo e do The New York Times, que versaram sobre os protestos de junho (2013) e sobre o Occupy Wall Street (2011), a partir da análise de conteúdo, foi possível perceber: em relação ao Occupy, o The New York Time, embora, tivesse posturas de apoiar o movimento, exigia o tempo todo que se respeitassem as leis e não lançassem mão da violência. Em relação aos protestos de junho, os editoriais do mesmo veículo os saudaram como “um despertar para o Brasil”, mesmo sabendo dos episódios de violência. A postura do veículo é bem contraditória. Interessante até a colocação do autor que utiliza o famoso ditado popular que diz que “a grama do vizinho é sempre mais verde”. Em relação aos editoriais da Folha, fica nítido que o veículo apresenta muitas variações. Há de se dar destaque para o famoso editorial “Retomar a Paulista” que demanda uma atitude mais incisiva da polícia. O veículo ora apresenta os manifestantes como vândalos ora como manifestantes pacíficos, portadores de reivindicações 438

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justas. Assim ocorre com a polícia, abordada ora como a que exercia o uso legítimo da força contra abusos cometidos pelos vândalos ora atuaria de forma excessiva e despreparada. Para o autor, ambos os veículos teriam um discurso que dialoga com a sociedade e fornece informações de interesse, mas também pauta sua agenda própria, de acordo com interesses específicos. Rocha (acesso em abril, 2015) analisa o papel dos meios de comunicação de massa e das redes sociais na internet na repercussão das manifestações de junho. A análise é feita a partir de Manuel Castells (espaço de disseminação) e Wilson Gomes para estudar a repercussão nas redes sociais e na Folha de S. Paulo. Percebe-se então uma clara mudança no papel dos veículos de comunicação de massa na esfera de discussão pública devido ao avanço dos canais digitais. Nesse sentido, as redes sociais teriam fornecido as ferramentas para que as manifestações ocorressem. Grohmann (acesso em abril, 2015) explorou os processos de midiatização e circulação de sentidos, na esfera digital, culminando na análise de um anúncio publicitário e sua circulação na rede. O objetivo foi compreender as relações entre midiatização, consumo e manifestações nas redes. A pesquisa analisou o evento “enquanto fenômeno midiatizado por excelência”, através da campanha da montadora Fiat (“Vem pra rua”), “que se tornou, acima de tudo, produto de consumo simbólico, marcado por uma massiva reapropriação e ressignificação dos discursos midiáticos na rede”. O autor observa como a dimensão do consumo se faz presente, ainda que em comentários liga439

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dos às manifestações e afirma que o território das manifestações é expandido, elas “tomam caráter midiatizado e circulam pelas mais diversas arenas em que o controle político do discurso fica mais difícil, seja pelos atores políticos, seja pelos grandes atores midiáticos”. Ao mostrar como a sociabilidade online é capaz de contribuir com o exercício do que aqui se trata por ciberdemocracia e do grande contingente de pessoas que essa interação é capaz de atingir, Tavares (acesso em abril, 2015), pela teoria da espiral do silêncio, conclui que a internet como meio de exercício da democracia se mostrou eficiente. A sociabilidade online não só permitiu como embasou a ciberdemocracia. As redes sociais permitiram a expressão das opiniões acerca dos interesses, da organização do protesto e da inclusão de pessoas no processo de mobilização social. Por fim, Recuero, Zago e Bastos (acesso em abril, 2015), a partir da análise de conteúdo, analisam o conteúdo do Twitter (a partir de um recorte) acerca dos protestos e apontam, no geral, um conceito positivo do evento e que apesar de um fio condutor principal, que permeou as narrativas de todas as regiões, não houve uma percepção única em todos os discursos. “Notadamente, a homogeneização da estrutura das coocorrências parece sugerir o Twitter não como um espaço de debate e organização, mas de narrativa e mobilização”. Mais uma vez nota-se: esses dois últimos trabalhos, mesmo partindo de uma análise social não midiática, omitem a questão teórica dos movimentos sociais, bem como os demais, de ordem prática e de estudos de casos e coberturas. 440

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Dos encontros da Compós de 2013 e 2014 coletamos quatro artigos. Castro (acesso em abril, 2015) aborda a ascensão das massas como um fenômeno característico da modernidade, e relacionado com três diferentes lógicas: a econômica, a do regime de dominação e a comunicacional. Ele contextualiza historicamente e sociologicamente a esfera midiática, os líderes e identificações nas massas e nas redes, modelos teóricos de psicologia das massas e a mobilização política das massas às redes citando casos mais recentes. É mais um ensaio do que propriamente uma análise especifica. Polydoro (acesso em abril, 2015) analisa imagens e narrativas audiovisuais feitas da perspectiva dos manifestantes, do evento em questão, de autoria de jornalistas independentes, membros de grupos ativistas ou filmagens anônimas/sem autoria informada – tendo como enfoque seu estatuto de contradiscurso. O autor verifica se tais objetos audiovisuais podem perder a força de resistência, uma vez inseridas no fluxo de imagens na web. Ele faz uma análise vídeo a vídeo. “Imagens das ruas e das redes: análise das jornadas de junho a partir da hashtag #VemPraRua”, traz apontamentos sobre as manifestações a partir dessas imagens publicadas em rede e coletadas por meio da hashtag #VemPraRua. Ao identificar mais de 85 mil imagens, Gouveia et al (acesso em abril, 2015) explicam que seguir os rastros de narrativas imagética e textuais pode ajudar a compreender aspectos importantes de um acontecimento. Problemas e potencialidades da rede não de441

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vem estar dissociados da subjetividade e ao encontrar padrões visuais foi possível mapear comportamento de imagens, seus usos e apropriações. Alde e Santos (acesso em abril, 2015) analisam as semelhanças e as dinâmicas das manifestações que ocorreram na cidade do Rio de Janeiro e a dinâmica de casos de desobediência civil que obtiveram apoio massivo após a repressão policial. Tratou-se de uma análise comparativa e revisão por meio do projeto Civil Resistance & Power Politics (Roberts e Ash, 2009) e através da associação entre o conceito de redes policêntricas (Gerlach, 2001). Do sistema de banco de dados da Capes, acessado pelo modo VPN do Banco de dados da Unesp, pesquisamos as seis primeiras páginas após busca com as palavras “Manifestações 2013” e “Protestos 2013” e encontramos quatro trabalhos. Mendonça e Daemon (acesso em abril, 2015) apontam regularidades discursivas implícitas no enfoque dado às manifestações de 2013 pela grande imprensa. Não foi realizada uma análise empírica de reportagens, mas recorreu-se a exemplos emblemáticos que permitiram fazer os registros. Afirmam que a fatalidade dos desdobramentos está na criminalização do evento e na aceitação de práticas violentas e abusivas, em um círculo de estabilização de sentidos que se fecha mais uma vez com garantia da legitimação da mídia. Em seu artigo, Enne (acesso em abril, 2015) a categoria semântica “vândalos” no decorrer das manifestações que ocorreram, em especial, no Rio de Janeiro. Foi possível perceber que esse signo foi eleito pela mídia hegemônica 442

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como termo síntese das ações violentas dos manifestantes, e permitiu a construção, via indústria cultural, de uma série de representações sociais sobre as manifestações, os manifestantes e seus atos. Foram abordadas duas matérias do jornal O Globo (dos dias 16 e 17/10), com as respectivas manchetes “Lei mais dura leva 70 vândalos ao presídio” e “Vândalos deixam rastro de destruição após confronto com PMs do Rio”. Em sua dissertação, Silva (acesso em abril, 2015) apresenta de que forma o Facebook foi um espaço de reverberação e mobilização social durante os protestos que de 2013 no Brasil, com as abordagens de alguns conceitos e autores clássicos. A pesquisa escolheu o dia 18, que concentrou as principais passeatas e ocupações de locais públicos em todo o país. A partir desta data, buscou-se nos perfis do Facebook do jornal O Globo, do coletivo Mídia Ninja, do jornal El País (Espanha) e do Semanário Sol (Portugal) as publicações que foram realizadas neste dia sobre as manifestações. Por meio de metodologia específica para análise de conteúdos de web, utilizamos métodos qualitativos e quantitativos. Silva conclui que “a rede social oferece ferramentas importantes para o debate público, assim como a possibilidade de ampliação do espaço democrático. Contudo, a utilização deste canal precisa acontecer de forma mais crítica e consistente, tanto pelos media, como pelos cidadãos”. Lifschitz (acesso em abril, 2015) analisa, através de um ensaio, as manifestações e seus personagens, fazendo alusão ao filme V de Vingança, e percebe que naqueles dias de junho um modelo de representação política 443

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extravasou. Não havia liderança, não havia partido. Um movimento de massas sem representação e sem mediação. Para o autor, o mascarado, em seu transitar performático, fez drama. “A questão do drama é a perplexidade, e V dialoga com esse sentimento”. “[...] se as mídias digitais serviram como ferramenta de mobilização e ampliação dos protestos, de que forma ocorreu a cobertura dos mass media? Como os principais jornais brasileiros trataram do tema e de seus atores”? Para responder a essas duas questões, o coletivo Intervozes, através da organização de Silva et al (2014) analisam a cobertura dos jornais O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e O Globo sobre os protestos de junho de 2013. A pesquisa abarca os 19 primeiros dias de junho de 2013 e o objetivo principal foi trazer uma visão concreta, baseada em análise de material empírico, sobre essa cobertura. Na pesquisa de Silva et al (2014), a análise de 964 matérias permitiu conhecer que os resultados demonstraram que os veículos seguem padrões de cobertura bastante parecidos em todos os indicadores estudados. As diferenças são pontuais e pouco significativas. “O estudo traz elementos suficientes para colocar em evidência diversas fragilidades do jornalismo brasileiro atual”.

Reflexões finais Através deste estudo, com a descrição das pesquisas coletadas, foi possível verificar o estado do conhecimento

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acerca das manifestações que ocorreram em junho de 2013 e suas relações com o campo da comunicação, com base em 44 trabalhos em língua portuguesa pesquisados nos bancos de dados supracitados. Pode-se afirmar que é possível fornecer uma compreensão histórica e mediática do que significaram as manifestações de junho e ainda servir como registro da ação mediadora dos meios no processo de manifestação social baseada nas ideias de Gohn e Traquina, além verificar como as pesquisas em comunicação e suas teorias problematizam as manifestações sociais. Os principais achados analíticos dos autores nos permitem apontar que dos 44 trabalhos, 27 analisam cobertura dos meios noticiosos em relação às manifestações que ocorreram em junho de 2013. Essas pesquisas analisaram capas de jornais, editoriais de jornais e demais seções informativas dos jornais, imagens e narrativas audiovisuais (cobertura televisiva), narrativas imagéticas e textuais, páginas e conteúdos de redes sociais, blogs, ou páginas digitais de veículos tradicionais ou de mídias alternativas (como é o caso do Mídia Ninja), matérias e imagens de revistas e uma peça publicitária, através de: análise do discurso, análise de conteúdo, análise de sentido e representações midiáticas, análise de estratégias de fundamentos do jornalismo e constituição textual de cordel. Uma delas estabelece correlação com a questão da cidadania. As demais pesquisas apresentam a utilização das linguagens no contexto da mobilização social via internet para manifestações que ocorreram em todo o Brasil em 445

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junho de 2013, analisam a comunicação realizada nas redes sociais virtuais para fins de mobilização social, aprofundam as discussões acerca dos meios textuais que facilitaram essa propagação através do facebook, desenvolvem os conceitos de ciberespaço e ciberdemocracia e compreendem como o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC’s) promoveram o desenvolvimento do processo de mobilização social brasileiro em 2013 e traz à luz conceitos de convergência e conversação mediada pelo computador, buscando compreender a importância das redes sociais e das redes sociais online nas manifestações e protestos democráticos no Brasil. Estas englobam pesquisas documentais de caráter empírico, cartografia, observação, ensaios e análises de exemplos emblemáticos. A quase totalidade dos trabalhos omitem a questão teórica dos movimentos sociais. Cerca de 10% desses trabalhos fazem menção aos trabalhos de Gohn e contextualizam mais profundamente este fenômeno social. Castro (acesso em abril, 2015), por exemplo, analisa a ascensão das massas e relaciona o tema com três diferentes lógicas: a econômica, a do regime de dominação e a comunicacional. Ele contextualiza historicamente e sociologicamente a esfera midiática, os líderes e identificações nas massas e nas redes, modelos teóricos de psicologia das massas e a mobilização política das massas às redes citando casos mais recentes. De fato, como reflete Gohn (2012, p. 339) é possível perceber que a tendência que predomina na análise dos movimentos sociais já parte de várias abordagens oriundas 446

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de teorias macrossociais e também que priorizam aspectos micros da vida cotidiana. Ainda sim, omitem a questão teórica dos movimentos sociais, como por exemplo, do próprio MPL e a questão dos transportes e da mobilidade urbana permanece uma lacuna. Há de se reafirmar a citação que destaca os anseios de Gohn acerca da necessidade de uma teoria que busque uma síntese, com ações e conteúdos articulados com demais disciplinas. “Diferentes olhares, diferentes ângulos de apreensão dos fatos da realidade: esta é uma necessidade imperiosa, numa era na qual tudo se desfaz rapidamente, tudo fica obsoleto em frações de tempo muito menores que nossa capacidade de memorização”. Em relação aos estudos de jornalismo há de destacar a forte presença das redes e das mídias sociais, com as quais fica evidente a fragilidade das práticas tradicionais de jornalismo. É evidente que a rede social oferece ferramentas importantes para o debate público, assim como a possibilidade de ampliação do espaço democrático. As informações que emergiram das mídias alternativas digitais, como a mídia ninja, “constituem uma nova e poderosa variável que incide sobre as práticas de jornalismo tradicional e sobre a reflexão a respeito de que novos caminhos o campo deve seguir para manter suas grandes pretensões históricas nas democracias” (LIMA e LOOSE, acesso em abril, 2015). Em sua pesquisa, Thomé (acesso em abril, 2015) aponta que a importância do jornalismo cidadão e afirma que a crise do jornalismo veio à tona com força total com um discurso que retoma a questão do mito da imparcialidade. “O jornalismo cidadão abre possibili447

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dades de apresentação de múltiplos olhares, de ângulos diversos, viabiliza que outros fatos sejam “pescados”, ampliando a oferta de informação e de versões”. Assim, retomamos Traquina (2005, p. 2010) acerca das transformações tecnológicas e pelas novas oportunidades que o ciberespaço pode oferecer para “a existência dum campo jornalístico que é cada vez mais uma arena de disputa entre todos os membros da sociedade” (TRAQUINA, 2005, p. 210).

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Capítulo 15 1 Aves que não cantam: paralelos entre a ornitologia e a comunicação Guilherme Sementili Cardoso1

Introdução O interesse do homem pela interação entre organismos é marcante. Desde a origem dos agrupamentos humanos, a sobrevivência do homem é vinculada à necessidade de interpretar corretamente os pistas deixadas fornecidos pelo ambiente. O avanço da tecnologia e da ciência pode mascarar esta dependência, mas grande parte das atividades humanas ainda está atrelada aos ciclos biogeoquímicos mais basais do planeta, como o regime de chuvas, as estações do ano e a obtenção de alimento. As primeiras representações pré-históricas da 1. Pós-Graduação em Zoologia, pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Campus Botucatu. [email protected] 461

relação entre os animais e homem é relatado nas pinturas e gravuras rupestres. Elas são as representações da percepção do homem pré-histórico sobre o meio. Muitas delas ilustram as atividades de caça e coleta, essenciais para que tais comunidades prosperassem no contexto pré-histórico. Contudo, as constantes mudanças no contexto das sociedades humanas também exercem modificações na percepção que os indivíduos inseridos nestes contextos têm acerca das relações entre organismos. Mais do que isto, os níveis de compreensão desta relação se modificam junto com as mudanças no contexto. Da caça realizada pelo homem pré-histórico às pesquisas em epigenética molecular contemporâneas, as premissas básicas de compreensão se mantêm as mesmas: as relações dos organismos entre e si e com o ambiente. Por serem pautadas pela visão de mundo humana, esta relação é estudada e compreendida por um viés antropocêntrico. Por estarmos contidos numa esfera de “conhecimento humano”, os “fenômenos não humanos”, que relacionam um conjunto de elementos não humanos entre si e com o ambiente, são compreendidos por uma visão antropocêntrica do fenômeno. Como estamos excluídos do processo, nossa parca compreensão do todo é baseada nos fragmentos de contexto sociocultural humano, o que pode levar a uma apreensão de sentido equivocada. Um processo de comunicação animal, por exemplo, deve levar em consideração fenômenos físicos, evolutivos, ecológicos, contextuais e econômicos que são entendidos de modo distinto entre os organismos. Muitas 462

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vezes, esses organismos não se dão conta da complexidade destes fenômenos, já que tal capacidade demanda um nível de abstração simbólica. Contudo, é inegável que não podemos abandonar o “conhecimento humano” para compreender os “fenômenos não humanos”. Quando observamos um fenômeno natural ocorrer, é crucial que haja uma relação entre o observador e o fenômeno que atraia a atenção deste. A partir desta observações e de fenômenos similares, um observador poderá fazer reflexões e abstrações sobre as fundamentações e motivações daquele acontecimento. Desta relação que incialmente é esporádica, o observador deixa de ser apenas espectador e se torna participante daquela relação. Os problemas ocorrem a partir do momento em que o espectador-objeto se torna um replicador do fenômeno. Também é extremamente natural que, ao passar pelos filtros de contexto interno dos organismos, um fenômeno puro se torne um evento mediado. Cada organismo vivencia um fenômeno de maneira distinta e o transmite deste modo, que vai ser compreendido de uma terceira forma por um outro organismo. Esta corrente de transmissão cultural é inata de qualquer organismo social. Entretanto, em determinado ponto, a “compreensão” do fenômeno se torna demasiadamente mediada por inúmeros intermediários. Neste ponto, a “compreensão do fenômeno” transforma-se no próprio fenômeno e as suas bases são esquecidas. Neste caso, a aproximação entre o observador e o fenômeno nubla uma construção de conhecimento mais ampla. Ao nominar, explicar, dia463

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gramar e dissecar um “fenômeno não humano” pela ótica do “conhecimento humano”, um novo observador em potencial estará tão absorto no contexto que sua limitada compreensão do fenômeno que se baseará apenas em observação de terceiros. A partir daí, é necessária uma nova reflexão sobre toda a construção e, muito provavelmente, um retorno ao fenômeno puro. A Bioacústica Ornitológica sofre com este fenômeno. O estudo das vocalizações é uma importante ferramenta dentro do estudo da ornitologia, porque as aves utilizam a comunicação sonora como intermediária de vários processos vitais, como reprodução, alimentação e organização social. As ondas sonoras emitidas por um indivíduo atravessam um meio e são percebidas por receptores em potencial, que podem agir ou não de acordo com este sinal. Os processos físicos desde a emissão até a recepção são bem conhecidos e foram muito pesquisados no decorrer do desenvolvimento da comunicação ao final do século XX. Contudo, devido às heranças estéticas e artísticas, a ornitologia ainda sofre com a “humanização” das aves. Muito do que se conhece sobre as relação entra as aves e os homens pré-históricos é derivado das pinturas rupestres. Registros de diversas civilizações da Antiguidade demonstram a relação entre os homens e as aves. Muitos destes registros se relacionam diretamente com as atividades diárias de rituais religiosos e de caça. O simbolismo das aves era representado através de imitações de seus displays e vocalizações, ou através das suas penas. As crenças, lendas e cerimônias variam de acordo 464

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com cada cultura, mas geralmente os espíritos das aves eram invocados para prover força, sabedoria, cura aos doentes, fertilidade, alimentos e chuva. Alguns povos associavam a mudança das estações aos padrões migratórios das aves, onde estas comunidades acreditavam que as aves eram capazes de controlar o tempo, trazendo chuvas. Outro aspecto importante imitado por algumas culturas tradicionais era o elaborado cortejo exibido por algumas espécies de aves. Nestas imitações, os padrões de display e de vocalizações das aves estavam sempre associados aos rituais e cerimônias importantes, associados à fertilidade e à reprodução humana. Contudo, foi com Aristóteles (384-322 a.C.), na obra Historia Animalium, que as primeiras abordagens científicas foram realizadas, com a classificação das aves por caráteres etológicos, morfológicos e ecológicos. Com o decorrer da Idade Média, outros autores, como Plinio, d’Arborea e Tardiff, tentaram propor sistemas semelhantes ao aristotélico para classificar as aves. Grande parte dos conhecimentos sobre comportamento das aves é devido ao desenvolvimento das atividades de falcoaria durante o império mongol de Gengis Khan (MASI, 2007). Para realizar a caça com falcões, os criadores e caçadores precisavam conhecer a biologia das aves, tanto das raptoras quanto das presas. Estas atividades de observação começaram a ser difundidas, não só através do império mongol, como também através da Europa, principalmente através do tratado De arte venandi cum avibus (“A arte de caçar com aves”) formulado por Frederico II da Germânia, imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Mais do que um sim465

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ples manual de falcoaria, o tratado realiza importantes observações fisiológicas, etológicas e ecológicas sobre aves. Posteriormente, estudos científicos e sistemáticos dentro da ornitologia foram difundidos durante o Renascimento, com as publicações das observações de Willian Turner, realizando uma revisão das obras de Aristóteles e Plínio. No século XVIII, a ornitologia se difundiu como ciência, fazendo com que as pesquisas ganhassem ampla divulgação na comunidade científica emergente da época. Apesar da ornitologia estar sedimentada como ciência, a bioacústica emergiu como ciência a partir do final da Primeira Guerra Mundial. As técnicas de transmissão e armazenamento sonoro foram desenvolvidas a partir da indústria de inteligência e espionagem. Anteriormente, as aproximações entre a ciência e o som das aves ocorria através de um intermediário: a música. As similaridades estéticas entre a vocalização de uma ave e uma melodia musical são marcantes. Mais do que isso, durante séculos, a relação afetiva e sentimental entre as vocalizações e as atividades humanas foi estreitada pela produção dos compositores da época. Numa das obras mais expressivas da renascença francesa, Clément Janequin (1485-1558) utiliza figuras onomatopaicas para imitar as vocalizações de aves através do canto coral. Nesta peça, denominada Les chant des oyseaux (“O canto das aves”), características ecológicas e comportamentais das aves são comparadas às ações humanas, como, por exemplo, no caso do parasitismo de ninho executado pelo cuco-canoro (Cuculus canorus), que na obra é associado à traição e à enganação humana. 466

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O estudo das vocalizações das aves também passou por tal aproximação entre a música e as aves. O principal obstáculo dentro desta disciplina é o modo de descrever o som. Muitas das técnicas de manipulação sonora surgiram apenas no século XX. As primeiras tentativas de descrição de vocalizações das aves foram as imitações através de onomatopeias. As diferentes espécies eram reconhecidas de acordo com sua vocalização, as quais eram atribuídas determinadas onomatopeias que melhor transcreviam o som. Contudo, a oralidade e a subjetividade deste método dificultavam a validade científica das observações. Muitas destas onomatopeias variavam de acordo com o sistema linguístico empregado pelas comunidades. Deste modo, as vocalizações tinham diferentes representações em várias comunidades. O padre jesuíta alemão Athanasius Kircher (16021680), em seu tratado Musurgia Universalis, estabelece sua visão sobre a música. Ele acreditava que a harmonia musical refletia as proporções do universo. Deste modo, ao sistematizar a visão da música, ele buscava um meio de mensurar o universo. O “canto” das aves, por representar a música da natureza, também poderia ser quantificada e seguir uma notação musical. Deste modo, ele tentou transcrever as vocalizações de aves em notas musicais nos padrões da época. Outras tentativas modernas de notação musical aplicada ao “canto” das aves são expressivas, principalmente na obra do compositor francês Olivier Messiaen (1908-1992). O compositor e ornitólogo não só transcreveu as vocalizações de aves para o sistema de notação musical contemporâ467

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neo, como também aplicou estas notações em diversas obras, como “Oiseaux exotiques” e “Quatuor pour la Fin du Temps”. Outras notações distintas foram propostas, como nos trabalhos de Aretas Saunder (1884-1970), onde linhas verticais e horizontais representavam a duração, o tom e o volume de cada elemento constituinte da vocalização. Atualmente, a representação dos sons animais ocorre através de sistemas gráficos, onde as características acústicas de frequência, amplitude e tempo são representadas. As ferramentas mais conhecidas são os espectrogramas, sonogramas e osciligramas. Estes gráficos permitem que as variáveis bioacústicas das vocalizações sejam quantificadas, gerando dados que possam ser analisados empiricamente. Devido ao apelo estético visual e sonoro, as aves são associadas a ideais de liberdade, beleza e amor. Grande parte desta sensibilidade ocorre pela proximidade afetiva que o canto das aves desperta nos seres humanos. O desenvolvimento da ciência da ornitologia iniciou-se com a relação das aves com o cotidiano dos seres humanos. Esta proximidade e afetividade, contudo, foi sendo substituída por um estudo mais sistemático e empírico, que forneceu conhecimentos importantes sobre outros aspectos da vida das aves, até então desconhecidos por falta de estudos. Contudo, a aplicação da notação, dos sistemas e, principalmente, da nomenclatura musical não se mostra viável dentro dos estudos em bioacústica ornitológica, já que pode levar a uma interpretação equivocada dos fenômenos de comunicação sonora das aves. 468

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Por isso busca-se uma alternativa viável à utilização de parâmetros musicais (carregados de simbolismos estéticos e afetivos) para designar os processos de comunicação das aves. O principal foco da discussão será um único termo: a palavra “canto”. Será que as aves realmente produzem “cantos”? Quais as implicações de afirmar que uma ave “canta”? Quando uma ave “canta”, estaria ela produzindo o mesmo fenômeno que um ser humano? Para iniciar esta discussão, discutiremos o que é um “canto”.

O problema da definição O substantivo “canto” pode ser definido da seguinte maneira: “canto. [Do lat. cantu] S. m. 1. Som musical produzido pela voz do homem ou de outro animal. [...]. 2. Música vocal. 3. Poesia lírica; canção. [...] 5. Mus. Melodia principal de uma composição, geralmente no registro agudo. 6. Mus. Título geral dado a composições (vocais ou instrumentais) sem forma determinada. [...].” (FERREIRA, 2009, p. 390).

Tal definição, extraída de um dicionário clássico da língua portuguesa, faz ressalvas importantes sobre a natureza do substantivo “cantar”. As definições são todas vinculadas aos preceitos musicais. A terminologia utilizada (“composição”, “música vocal” e “registro agudo”)

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é importada do estudo da música estrutural. A primeira definição é a que mais se aproxima de uma perspectiva animal, onde afirma-se que é o canto é um “[...] som musical produzido pela voz do homem ou do animal [...]”. Esta sentença levanta uma série de questionamentos que serão abordados posteriormente. Considera-se, para todos efeitos de tradução, que o termo “canto” é equivalente ao termo “song”. Deste modo, este último termo também é dotado de um simbolismo musical indissociável do significado real. Designar que a vocalização de uma ave é “canto” ou “song” é atribuir os mesmos simbolismos musicais à comunicação das aves. Definições mais aplicadas à ornitologia podem ser encontradas em diversas publicações específicas para vocalizações de aves. “In general, ‘songs’ tend to be long, complex, vocalisations produced by males in the breeding season. Song also appears to occur spontaneously and is often produced in long spells with a characteristic diurnal rhythm. But to these features there are innumerable exceptions. However as far as complexity is concerned, it is not easy to generalise and […] species differ enormously in how varied their songs are”. (CATCHPOLE & SLATER, 2008, p. 8).

Este trecho, retirado da publicação “Bird Song”, já aborda algumas das deficiências da terminologia “song”. O autor evita os simbolismos musicais do termo ao afirmar que “songs” são produzidos por machos na estação 470

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reprodutiva. Deste modo, ele se evade de alguns problemas de significado ao transportar o termo da área musical para a comunicação de aves. Contudo, é importante salientar que mesmo assim, “song” é um termo vago e restrito, já que é produzido por machos na estação reprodutiva através de longas emissões em ritmos diurnos. Para cada uma destas condições estreitas, existem inúmeras exceções. Ao estabelecer este parâmetro, fica claro que apenas aves de regiões temperadas produzem “songs”, já que muitas aves Neotropicais não se enquadram em nenhum destes parâmetros. Estas exceções são abordadas ao final da consideração. O autor assume uma postura mais comedida ao afirmar que “is not easy to generalise and […] species differ enormously in how varied their songs are”. Entretanto, mais uma vez, ele utiliza o termo “song”, mesmo definindo-o de modo obscuro. Outros autores abordam a temática de modo explícito e se posicionam claramente. “A traditional distinction exists between ‘songs’ and ‘calls’. The term ‘song’ refers primarily to the loud, often long, vocal display of territorial male birds. Specific, repeated patterns are often pleasing to the human ear. The term ‘call’ connotes short and simple vocalization, usually given by either sex. […]. There is, however, no real dichotomy between songs and calls in their acoustical structure, delivery, physiology, development, function and taxonomy. […] Despite the lack of a single accepted definition, we continue to use the term song because it is so entrenched

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and because we lack better alternatives.” (GILL, 2007, p. 217-218).

Ao definir o que é “song”, o autor se vale das mesmas prerrogativas abordadas por Catchpole e Slater anteriormente. Contudo, ele adiciona um elemento estético que vem pautando as discussões dentro da área da bioacústica ornitológica. Ao afirmar que “[…] Specific, repeated patterns are often pleasing to the human ear […]”, o autor retoma as discussões sobre a relação entre o homem e natureza intermediados por padrões estéticos. Neste caso, uma das condições para que uma ave produza um “song” é que este seja algo aprazível, que ressoe de modo agradável aos ouvidos de um receptor. Pode-se questionar qual o real papel da percepção estética de um “song” na comunicação de aves. O fato de um som ser agradável é realmente relevante na escolha do receptor para receber uma mensagem? Se observarmos pelo viés antropocêntrico, fica claro que o reconhecimento entre o receptor e o emissor pode ser influenciado pelos padrões estéticos. Contudo, tal abstração é cabível na comunicação animal? Um conceito de “song” ou “canto”, que apresenta restrições e exceções, e que também tem suas bases nas percepções subjetivas e estéticas individuais não é viável em tal situação. Este trecho ainda demonstra uma dicotomia assumida entre “songs” e “calls”. “Song” corresponderia a um tipo de vocalização específica, enquanto “call” seria uma vocalização mais simples, curta e executada por ambos os sexos. Contudo, não é especificado o que é considerado 472

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simples ou curto neste caso. Além disso, a emissão de vocalizações por ambos os sexos também pode ocorrer nos “cantos”, fato comum em espécies Neotropicais. Esta divisão incerta é explorada pelo autor no seguinte trecho: “[...] There is, however, no real dichotomy between songs and calls in their acoustical structure, delivery, physiology, development, function and taxonomy [...]”. Assim, a classificação de uma vocalização em “canto/chamado” ou “song/call” se mostra artificial, já que estrutural e contextualmente, ambas as vocalizações são idênticas. Então, qual a justificativa para a utilização desta terminologia subjetiva e restritiva? O próprio autor dá ideia de que seu uso é devido às convenções históricas: “[...] we continue to use the term song because it is so entrenched and because we lack better alternatives.” Deste modo, o uso do termo é justificável apenas pela tradição histórica e musical. A fundamentação científica por trás do termo é substituída por características subjetivas de percepção sensorial e aproximação afetiva.

Música animal? Para continuarmos a discussão, é preciso abordar a comunicação vocal dos animais com maior profundidade. Peter Marler, etólogo norte-americano, em seu texto “Origins of Music and Speech: Insights from Animals” (2000) revisa os principais tópicos atuais dentro do estudo da comunicação simbólica e afetiva nos animais.

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Para o autor, animais só podem apresentar um sistema de comunicação simbólico se o sinal for codificado e decodificado de um modo não icônico tanto para emissor quanto para o receptor. Estudos sobre a vocalização de primatas demonstram que em situações de perigo, os indivíduos em guarda emitem um sinal adequado para cada tipo de predador. Ao adentrarem na savana, os primatas ficam sujeitos a uma grande variedade de predadores. Deste modo, diferentes sinais desencadeiam diferentes respostas ecológicas no grupo. Caso o sinal seja específico para predadores que voam, os macacos escondem-se em arbustos e começam a procurar o predador no céu. Se o sinal for específico para felinos, os animais se escondem na copa das árvores mais próximas. Isto é um indicativo de que cada sinal tem seu significado distinto, mesmo sendo produzidos pelo mesmo mecanismo e em contextos similares (CHEYNEY & SEYFARTH, 1990). Estas espécies de animais apresentam classes de sinais distintos que desencadeiam ações físicas e não icônicas em outros indivíduos. Algo similar ocorre com as aves, onde uma mesma classe de sinais (emissões vocais) pode funcionar de modo referencial para os indivíduos. As aves emitem vocalizações de alerta sobre fontes de alimento que não indicam apenas a localização, mas sobre a quantidade e a qualidade do alimento. Para o autor, tais sinais só constituem uma linguagem se forem compostos de sentenças. Para que estas sentenças sejam construídas, é necessária uma dupla organização temporal dos seus constituintes. Estes dois níveis de 474

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organização sintática são denominados “sintaxe fonológica” e “sintaxe lexical”. A sintaxe fonológica tem como base a recombinação de elementos estruturais (e.g. fonemas) em diferentes sequências (e.g. palavras), onde cada componente não apresenta significado sozinho. Já uma sintaxe lexical é uma recombinação destas sequências em diferentes ordens (e.g. sentenças), onde o significado reside em dois níveis. Os significados da sentença final dependem não apenas dos elementos, mas também da organização destes elementos na sentença. Marler afirma que atualmente não há registros de animais que satisfazem completamente os critérios de uma sintaxe lexical. Na comunicação animal, não existem exemplos de espécies que possuam a capacidade de criar sequências combinando diferentes elementos simbólicos em sentenças com novos significados. Contudo, há casos de sintaxe fonológica, onde os sinais são dotados de conteúdo afetivo mas sem significado simbólico. O caso mais comum é do repertório em aves, onde uma ave pode apresentar diversos tipos de vocalização modificando a sintaxe fonológica dos elementos componentes de suas vocalizações. Estes repertórios são ampliados através da utilização das mesmas estruturas acústicas (também denominadas “elementos” ou “notas”), porém em sequências diferentes. Estas “notas” não apresentam sentido sozinhas, mas quando agrupadas, formam uma sentença dotada de significado para as aves. Contudo, ao se traçar paralelos entre este tipo de sintaxe e a lexical, observa-se que diferentes combinações das mesmas notas ainda sim apresentam a mesma mensagem básica. 475

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Deste modo, apesar de emergir uma combinação de notas nova, esta não constitui uma sentença com significado simbólico diferente das anteriores. Estudos com aves do gênero Poecille (conhecidas como “chickadee”) demonstram como a sintaxe fonológica é estruturada durante o desenvolvimento do indivíduo. (HAILMAN ET AL., 1985). O repertório desta ave consiste em recombinações do mesmo conjunto de componentes em diferentes formas. Cada macho apresenta um repertório que varia de cinco a dez vocalizações distintas. A análise destas vocalizações revela que elas compartilham um conjunto de elementos componentes, mas que são arranjados de maneiras distintas. Quando um jovem macho inicia a fase de aprendizado, ele ouve e aprende diferentes conjuntos de vocalizações dos adultos. Em fases posteriores do desenvolvimento, ele fragmenta essas estruturas complexas em elementos mais simples. Assim, a ave adulta rearranja este conjunto prévio de elementos em novas vocalizações. Marler ainda ressalta que a composição de uma vocalização deste tipo remonta a evolução da própria linguagem humana. A criação de um vasto repertório depende dos mesmos mecanismos de produção de um léxico. A reestruturação dos elementos de comunicação em uma ave (denominados “notas”) para a criação de uma sinal significativo (denominado vocalização) é muito semelhante aos processos primitivos da recombinação de fonemas para criação de palavras. Contudo, a semelhança termina no momento em que as diferentes sequências de vocalizações de aves não apresentam 476

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diferentes significados. Elas são ricas em conteúdo afetivo, mas ainda não apresentam o conteúdo simbólico característico da linguagem humana. Os princípios ontogenéticos do desenvolvimento do repertório aprendido das aves são muito parecidos com os processos criativos de produção musical. Neste ponto, Marler ressalta que as semelhanças das vocalizações das aves com os padrões musicais humanos são maiores até que aquelas produzidas por outros primatas. Ao se comparar vocalizações de aves e primatas superiores, observa-se que a semelhança entre as duas é grande. Ambas são sinais não simbólicos, ricos em conteúdo afetivo, altamente individualistas, limitadas pela sintaxe fonológica. Contudo, a complexidade estrutural acústica das aves, somada à capacidade de ampliação e criação de um repertório conferem aos sinais vocais das aves uma proximidade grande com as composições musicais humanas. As aves, ao reestruturarem suas “notas” em vocalizações distintas, apresentam marcas de processo criativo muito semelhantes àquelas produzidas por humanos. As vocalizações apresentam uma ordem clara e não randômica, passíveis de transmissão cultural através de gerações por aprendizado. Contudo, outros paralelos entre a vocalização de aves e a música ainda se mostram obscuros. A questão da apreciação estética ainda é muito forte dentro da música. O próprio autor cita que ainda são necessários maiores estudos, e que o modo como as aves percebem uma emissão sonora pode ser muito semelhante aos dos seres humanos (inclusive com indícios de apreciação estética). 477

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Mas a principal questão ainda permanece aberta: as aves produzem música? O ornitólogo Peter J. Slater (2000) afirma que esta questão é mais complexa do que se imagina. É conhecido que muitos animais apresentam emissões sonoras rítmicas e tonais. Os mecanismos físicos de produção e conservação de energia durante a transmissão ambiental justificam a existência destes padrões acústicos na natureza. A seleção sexual também surge como fator de seleção importante na evolução de padrões complexos e intrincados de vocalização. Em ambientes como florestas, onde a comunicação acústica é importante, a competição na transmissão sonora é crucial, o que justifica a pressão seletiva para que novos padrões espectrais e temporais se desenvolvam no decorrer evolutivo. Sendo assim, fica claro que os padrões de complexidade tonal e rítmica são justificáveis em um ponto de vista evolutivo. No entanto, devemos levar em consideração a diversidade de espécies. Existem cerca de 4000 espécies de pássaros que apresentam um canto aprendido (também denominados Passeriformes Oscines). Tendo em vista esta grande variedade de aves que são passíveis de transmissão cultural, Slater afirma que é muito provável que o surgimento de aves que vocalizem utilizando sistemas que são semelhantes às escalas musicais humanas (e.g. uirapuru-verdadeiro, Cyphorhinus arada, em DOOLITTLE & BRUMM, 2012) é produto de uma convergência evolutiva, e não de um ancestral comum entre aves e seres humanos.

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Evolução Musical Apesar de aves não possuírem um sistema simbólico de produção musical, ainda sim suas vocalizações são complexas o suficiente para levantar questionamentos sobre suas semelhanças com a música. Como dito anteriormente, aves possuem sistemas de vocalizações que compartilham elementos (como tonalidade, ritmo e afetividade) comuns à música. Deste modo, em algum ponto da história evolutiva humana, os sistemas primitivos de comunicação em primatas se modificou em um sistema simbólico de produção abstrata de sentido. Jean Molino (2000), em seu texto “Toward an Evolutionary Theory of Music and Language”, aborda uma ideia promissora: a música não é derivada da linguagem, mas sim tem raízes comuns em novas formas de comunicação que surgiram na evolução dos hominídeos. Para desenvolver suas ideias, Molino retoma a dicotomia evolutiva entre Lamarck e Darwin. Ele conceitua evolução como um processo dependente da replicação de uma variação populacional. Deste modo, tal variação deve ser selecionada por um agente que, através do isolamento das populações variantes, vai manter estável tal caráter variável. Já a evolução cultural tem aspectos distintos de uma evolução biológica. Molino se apoia na definição de Durham sobre a “cultura”, onde estas seriam sistemas de fenômenos conceituais codificados simbolicamente que são transmitidos social e historicamente dentro e entre populações. Deste modo, um novo sistema de heranças pode ser adicionado no siste479

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ma de herança genética para determinar as características de um ser vivo. Este novo sistema é parcialmente dependente de um sistema genético, já que está sujeito às mesmas leis de mudança manifestadas na evolução biológica. Contudo, segundo Molino, um sistema cultural se diferencia de um sistema genético em duas características principais. Primeiramente, uma evolução cultural é dotada de mecanismos Lamarckistas. A evolução em sentido biológico é não regida pela herança de caracteres adquiridos, enquanto uma evolução em sentido cultural permite que uma informação adquirida por uma geração seja transmitida para a próxima de modo completo. Outra diferença entre os sistemas é que modificações no genótipo só ocorrem de modo randômico. Não existe nenhum direcionamento evolutivo dentro de processos biológicos. O que ocorre é uma seleção dos caracteres pelas forças de seleção imposta pelo ambiente sobre determinada característica variável. Já uma evolução cultural, apesar de poder ocorrer de modo aleatório, apresenta mecanismos direcionados ao contexto em que surgem, se desenvolvendo para solucionar problemas de maneira direta. A música como conhecemos atualmente em toda a sua pluralidade é muito complexa para surgir de um único evento histórico na evolução cultural. Deste modo, o termo “música” é uma generalização para as diversas práticas rítmicas, melódicas, simbólicas e afetivas que compõem um conjunto de práticas surgidas pela evolução cultural. Por isso não podemos considerar música um “gênero natural”. Não existe uma “música” por si só. 480

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Ela é um conjunto de capacidades motoras e cognitivas que convergiram para a produção de um gênero cultural. Neste ponto, Molino abandona a ideia de música como aquela concebida pelos moldes dos grandes clássicos da música europeia ocidental já que se distancia dos fundamentos antropológicos da música humana em geral. Do mesmo modo, uma linguagem que tenha surgido através de uma sintaxe lexical simbólica não pode ser considerada um gênero natural pois não evoluiu exclusivamente de uma raiz filogenética conjunta, mas sim de práticas e processos culturais ortogenéticos que convergiram pela necessidade cultural gerada por uma evolução dirigida. Dentro dos componentes comuns entre as construções culturais da música e da linguagem, o autor ressalta a importância da aproximação afetiva, já que é o elo entre a representação semântica abstrata e as respostas cognitivas neurais. A afetividade intervém na forma em que a resposta será emitida. O poder emotivo encontrado na linguagem e na música está associado a uma raiz comum no sistema nervoso humano. Assim sendo, fica claro que a música e a linguagem dependem dos mesmos mecanismos para serem difundidos na espécie humana. Por compartilharem muitas características, é provável que a música e a linguagem tenha uma raiz em comum. Não é certo se a coordenação dos módulos neurais necessários para a execução evoluíram de uma única origem, mas muito provavelmente tiveram origem a partir de atividades de movimentação cinética (como a atividade de lançar), já que estas demandam uma “sin481

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taxe geral”, onde diversos elementos são combinados em sequências a fim de atingir determinado objetivo. Esta atividade contribuiu no para o desenvolvimento do controle muscular e neural dos movimentos corporais, exercido pelo córtex cerebral. Deste modo, atividades que demandam uma sintaxe dependente de ritmo, como a linguagem e a música, seriam beneficiadas por este refinamento na coordenação de movimentos, principalmente em porções como a musculatura associada à laringe e aos movimentos faciais. Esta evolução nas capacidades rítmicas musculares e neurais foi a grande precursora da organização temporal de atividades abstratas, já que os módulos rítmicos são a fundamentação de qualquer tipo de sintaxe. Outro fator crucial no desenvolvimento da linguagem e da música é a aprendizagem. Molino cita as pesquisas de Piaget e Wallon sobre a imitação de crianças e sua influência na ontogenia de certas potencialidades humanas. Diversos níveis de compreensão sobre a imitação e o aprendizado devem ser considerados. Num nível primordial, “imitação” pode se referir ao “mimetismo” ou “atividade de mímica”. Este que é um ato reflexo de reprodução de uma imagem. Um segundo nível corresponderia a uma “imitação” em senso estrito, onde algum nível de abstração seria incluído neste ato reflexo. Num terceiro nível, o ato de reflexo seria reproduzido na ausência de modelos, o que constituiria uma representação, e não apenas uma imitação. A evolução de uma cultura dotada de representações simbólicas e abstratas teria que passar por estes estágios, 482

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devido à necessidade do símbolo para o coletivo. Neste ponto, o intuito não é simplesmente “imitar algo” mas sim “imitar para alguém”. Desta necessidade, surge o que Piaget denomina função simbólica, que consiste na habilidade de representar algo através de diferentes significantes para atingir esta representação. Esta seria uma origem de uma protolinguagem, onde as cenas do contexto cotidiano daqueles indivíduos seriam representadas simbolicamente a partir da imitação. A música e a linguagem, então, teriam emergido de processos de representações da abstração simbólica e de processos refinados de controle neural e muscular. A combinação destes dois fenômenos evolutivos paralelos é a grande chave para a evolução da música. Um indivíduo capaz de reproduzir símbolos, no intuito de melhorar sua representação sobre algo, tentaria aperfeiçoar o controle sobre seus movimentos, através da divisão de um movimento contínuo em frações mais simples. Esta é uma teoria para explicar a origem da sintaxe combinatória aplicada aos símbolos abstratos, presentes na música e na linguagem humana. A cultura mimética se resume à transmissão desses símbolos por meio de ensino e aprendizagem, criando uma forma efetiva e transformadora de evolução cultural. Para transportar esta abordagem para a comunicação das aves, realizaremos uma comparação dos tópicos apresentados com a ideia de comunicação mediada por gestos.

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A vocalização como gesto Já foram discutidas as premissas básicas da música: uma construção cultural dotada de articulação sintática em nível simbólico, apresentando também um forte apelo afetivo (traduzido em termos de reconhecimento estético). Contudo, a questão da vocalização de aves como música só pode ser finalizada se discutirmos qual o valor da vocalização para uma ave para os seres humanos. A compilação de ideias de George H. Mead na obra “Mind, Self and Society: from the Standpoint of a Social Behaviorist” traz o conceito de “gesto”, importante para a compreensão do desenvolvimento dos símbolos nos animais. Mead estabelece o “gesto” como o ponto de partida da interação social. Na sua compreensão, a interação mediada por gestos é o ponto de partida para a evolução de uma linguagem. Um gesto corresponderia a um estímulo a outros indivíduos dentro de um mesmo contexto social. A partir da “conversação de gestos”, indivíduos deflagram ações e respostas uns nos outros. Um indivíduo emite um gesto com significado simples e único dentro do contexto. Isto faz com que o receptor internalize este gesto e emita um outro em resposta ao primeiro. Deste modo, cria-se uma relação tríplice, onde relacionam-se o gesto de um emissor, a resposta de um receptor e o feedback recebido pelo emissor. Contudo, esta interação mediada por gestos não pode ser confundida com uma linguagem articulada, porque apesar de haver uma ação comunicativa, ela não é participativa. Os indivíduos que interagem através de gestos não compartilham símbolos. 484

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Um emissor, ao emitir um gesto, espera uma resposta gestual de um receptor, mas não age em torno de seu próprio gesto. De um mesmo modo, um receptor emite um gesto ajustado para o emissor, mas não responde à sua própria resposta. Para Mead, é na internalização dos gestos que surge o potencial semântico de uma linguagem, já que as interações mediadas por gestos começam a se tornar disponíveis em níveis simbólicos. A relações estabelecidas entre as trocas de gestos são cruciais para este significado simbólico. Segundo Habermas (2009), um gesto só adquire valor simbólico quando os significados deste deixam de valer apenas para um indivíduo e se tornam disponíveis para todos os integrantes da interação. Posteriormente, a participação dos indivíduos faz com que o seu comportamento se modifique: de uma relação entre estímulo e reação, os indivíduos passam a interagir de modo interpessoal, onde ambos se relacionam por meio de uma intenção comunicativa. Um gesto, então, diferiria do símbolo na maneira que é exposto na interação. Se é gesto, não passa de um reflexo das ações. Se é símbolo, é interiorizado, apropriado e representado de uma maneira distinta, onde um indivíduo se relaciona tanto com o tema exposto quanto com os componentes da ação comunicativa. Não se trata de puro reflexo, mas sim de símbolos que emergem numa relação social intersubjetiva. O gesto vocal tem uma importância diferenciada dos outros tipos de gestos. Por depender do som, a vocalização se propaga por um ambiente e envolve todos os que estão dentro de seu alcance. Isto inclui o próprio 485

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emissor. Assim, um indivíduo pode modular as características de sua expressão se ouve a si mesmo e relaciona a maneira como tal gesto foi recebido por outros. Este gesto vocal dotado de significado tanto para um emissor quanto para um receptor é dotado de simbolismos para os elementos da interação. Quando analisamos a atividade vocal de aves, entretanto, não é possível afirmar que este nível simbólico é atingido. Mesmo em aves de canto aprendido, onde a influência do feedback auditivo é importante, a vocalização se restringe a um reflexo, não a uma representação simbólica. Mead cita o exemplo de um pardal que imita a vocalização de um canário quando o ouve. Se o pardal utiliza os elementos vocais do canário, ele está apenas refletindo o gesto que recebeu. O pardal enfatizará as respostas vocais a estes elementos quando o canário emitir um gesto semelhante. Este comportamento exibido pelo pardal se tornará mais frequente se ele continuar a ouvir a vocalização do canário. Apesar do gesto emitido por ambos ter uma estrutura muito, o pardal não está executando o papel de canário, pois o significado de seu gesto não é compartilhado de modo simbólico entre os dois. O pardal aprende e incorpora este gesto vocal em seu repertório, mas ele não é compartilhado pelo canário. Mead também discute os gestos vocais nas relações intraespecíficas das aves. Segundo o autor, o estímulo vocal produzido influencia o próprio indivíduo a ajustar este gesto. A resposta é produzida não só no receptor, mas também no emissor. Se este gesto enfatiza determinada resposta, ele não vai ser apenas enfatizado pelas respostas dos receptores, mas 486

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também pelo próprio emissor. Nestes casos, os sons que são emitidos servem de estímulo para a produção de novos sons. A vocalização de uma ave, portanto, não configura um símbolo abstrato pois, mesmo quando aprendido e reproduzido, a ave vocaliza para outras, e não para si mesma. A relação com o gesto vocal é direcionada apenas para terceiros. Um símbolo precisa ter influência tanto para outros indivíduos quanto para si próprio, numa relação de comunicação interpessoal.

Conclusão Afirmar que “aves não cantam” é difícil, já que a tradição histórica aproxima a música humana e a comunicação animal. Durante séculos, o apelo estético das aves, com suas plumagens exuberantes e suas vocalizações melodiosas, foi justamente o fator que impulsionou as pesquisas científicas e permitiu que os conhecimentos básicos acerca da biologia destes animais fossem desvendados. Todavia, não há mais necessidade de se pautar o conhecimento científico em bases estéticas e subjetivas. Ao dizer que uma ave “canta”, um pesquisador deve estar ciente de todo o simbolismo por trás do termo. Como foi discutido aqui, ainda não há provas conclusivas de que aves são capazes de produzir sentenças que apresentem uma sintaxe lexical típica das composições humanas. Ainda que algumas delas vocalizem em padrões semelhantes ao modos tonais e rítmicos da música humana, a

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mensagem passada por suas vocalizações ainda não atinge um nível simbólico abstrato que permita comparar a evolução deste “canto” das aves com a música humana. Sendo assim, a vocalização de uma ave, mesmo em toda a sua complexidade, ainda constitui um gesto, onde a relação se dá através de uma troca de sinais e de respostas. Para considerá-la música, ela deveria se encaixar em um contexto social e cultural onde a troca de sinais entre os componentes possuísse um conteúdo que afetasse não somente aos receptores potenciais mas também ao emissor, criando um vínculo interpessoal dotado de significado e afetividade. Quando observa-se as aves na natureza (mesmo as que apresentam uma estrutura social), não encontra-se evidências de que uma evolução cultural dirigida que tenha surgido desta organização. Mesmo quando especialistas se referem aos gestos vocais das aves como “cantos”, ainda não existe um consenso. As definições são pontuadas com imprecisões e exceções que as tornam infundadas e subjetivas. Dizer que um único tipo de vocalização é o “canto da espécie” implica em valorizar excessivamente um gesto em detrimento de outros, que podem estar relacionados aos mesmos contextos que estes denominados “cantos específicos”. Quando um pesquisador realiza um levantamento de repertório vocal de aves em banco de dados específicos, não é raro ele encontrar uma amostra muito abundante de apenas um tipo de vocalização, enquanto outras são restritas a poucas dezenas de arquivos, ou até mesmo negligenciadas. E o que determina o valor de importância de uma vocalização não é a sua relevância 488

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científica, e sim, infelizmente, princípios estéticos de beleza e harmonia. O reconhecimento e a aproximação afetiva são importantes para a conservação de aves e o desenvolvimento das pesquisas em ornitologia. Contudo, as abordagens românticas de apreciação naturalista devem ser empregadas com cautela, pois estamos perdendo dados importantes sobre a comunicação de aves em função deste romantismo.

Referências CATCHPOLE, C. K.; SLATER, P. J. B. Bird Song: Biological Themes and Variations. 2ª Ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 8. CHENEY, D. L.; SEYFARTH, R. M. How monkeys see the world: inside the mind of another species. 1ª ed. Chicago: Chicago University Press, 1990. DOOLITTLE, E.; BRUMM, H. O canto do uirapuru: Consonant interval and patterns in the song of the musician. Journal of Interdisciplinary Music Studies, v. 6, n. 1, p. 55-85, 2012. FERREIRA, A. B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. 4ª ed. Curitiba: Ed. Positivo, 2009, p. 390. GILL, F. Vocalizations. In:______. Ornithology. 3ª ed.  Nova Iorque: W. H. Freeman and Company, 2007. p 217-218.

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HAILMAN, J. P., FICKEN, M. S. & FICKEN, R. W. The ‘chick‐a‐dee’ calls of Parus atricapillus: a recombinant system of animal communication compared with written English. Semiotica , v. 56, n. 1, p. 191–224, 1985. HABERMAS, J. Teoria do agir comunicativo. Vol. 2: sobre a crítica da razão funcionalista. 1ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 6-79. MARLER, P. Origins of music and speech: insights from animals. In: WALLIN, N. L.; MERKER, B.; BROWN, S. The origins of music. 1ª ed. Massachusetts: MIT Press, 2000, p. 31-47. MEAD, G. H. Mind, self and society: from the standpoint of a social behaviorist. 1ª ed. Chicago: Chicago University Press, 2009. MOLINO, J. Toward an evolutionary theory of music and language. In: WALLIN, N. L.; MERKER, B.; BROWN, S. The origins of music. 1ª ed. Massachusetts: MIT Press, 2000, p. 165-176. SLATER, P. Birdsong repertoires: their origins and use. In: WALLIN, N. L.; MERKER, B.; BROWN, S. The origins of music. 1ª ed. Massachusetts: MIT Press, 2000, p 49-63.

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Capítulo 16 1 O cenário globalizado no jornalismo internacional: expectativas, desafios e influências Maria Carolina Vieira1

Abra uma página qualquer de um site de notícias ou variedades. É muito provável que apareçam em sua tela fatos que abrangem a economia nacional, os resultados da rodada de esportes, alguma polêmica recente do Oriente Médio, os últimos atos políticos nos Estados Unidos, o que aconteceu na novela, as tendências de moda que badalam a Europa e muito mais. Nunca antes se teve o mundo tão ao alcance das mãos: basta um clique para sair da sala de sua casa e se transportar – se quiser, com direito a Street View do Google – para qualquer lugar do globo. Porém, por mais relativamente fácil que seja este acesso, por que interessa o que se passa no Japão, por exemplo? O que liga tantas realidades,

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por vezes tão desconexas? O que faz um acontecimento longínquo parecer ter tamanha importância para quem está distante? Enfim, como se coloca “ordem” em um mundo tão conectado quanto complexo? Ainda que nesta modernidade tardia o individualismo predomine e tudo o que faz referência ao tradicional e institucional perca o valor, não é difícil enxergar que o jornalismo ainda tem a capacidade de responder a tais questionamentos, principalmente por meio de suas funções, por vezes clássicas, por vezes repaginadas, mas sempre de caráter mediador e democrático. O jornalismo internacional, por sua vez, vê esta capacidade aumentada ao ser o elo não só entre fatos e localidades, mas, sobretudo, entre ideias e pessoas. Diante de tais considerações, este capítulo busca trazer um panorama geral da situação do jornalismo (e, em especial, do jornalismo internacional) hoje, sob a luz de como ele adapta suas funções e potencialidades diante das mudanças trazidas por um contexto cada vez mais globalizado e regido por interesses alheios aos ideais jornalísticos.

Desafios e expectativas no jornalismo do século XXI Verdade. Liberdade. Independência. Credibilidade. Equilíbrio. Estas são palavras que podem ser ligadas aos ideais do jornalismo clássico, aquele que nasceu com a aura de guardião dos cidadãos e da democracia. Traquina (2005) chega a citar a frase proferida por Thomas

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Jefferson de que “não há democracia sem liberdade de imprensa” ao listar os grandes valores do jornalismo. Alguém mais cético fatalmente diria que este jornalismo não tem condições de existir em pleno século XXI, era na qual as redações são comandadas pela lógica do mercado, a atualização frenética é prestigiada como qualidade editorial e os grandes conglomerados industriais ditam as regras do jogo. Estaria lá a mídia preocupada em seguir qualquer ideologia? Os desafios são grandes, é verdade, no entanto nota-se que os valores jornalísticos perseveram em sua sobrevivência, principalmente entre aqueles que o exercem. Os jornalistas e pesquisadores americanos Bill Kovach e Tom Rosenstiel fizeram um amplo estudo sobre os grandes princípios que norteiam a prática jornalística contemporânea, ouvindo os próprios profissionais da imprensa. O resultado é que, mais do que nunca, o fazer do jornalismo está ligado, pelo menos no campo ideológico, à democracia e à cidadania. Os autores listam nove elementos altamente presentes no conceito do que é jornalismo hoje, quais seriam suas obrigações e o que pode se esperar dele: 1- A primeira obrigação do jornalismo é com a verdade. 2- Sua primeira lealdade é com os cidadãos. 3- Sua essência é a disciplina da verificação. 4- Seus praticantes devem manter independência daqueles a quem cobrem. 5- O jornalismo deve ser um monitor independente do poder. 6- O jornalismo deve abrir espaço para crítica e o compromisso público. 7- O jornalismo deve empenhar-se para apresentar o que 493

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é significativo de forma interessante e relevante. 8- O jornalismo deve apresentar as notícias de forma compreensível e proporcional. 9- Os jornalistas devem ser livres para trabalhar de acordo com sua consciência. (KOVACH & ROSENSTIEL, 2003; p. 22, 23).

Se palavras como liberdade, verdade e compromisso público estão ainda tão presentes no imaginário da profissão, por que hoje existe certa resistência em conferir ao jornalismo os valores que, em princípio, foram-lhe tão inerentes? Traquina (p. 61) enxerga algumas tendências jornalísticas históricas comuns a diversos países, as quais ocorreram praticamente de forma cronológica: a expansão da imprensa; a sua crescente comercialização; um número crescente de pessoas que ganha a sua vida trabalhando nos jornais; e uma crescente divisão do trabalho no jornalismo, com uma também crescente especialização na profissão. Na primeira fase, que remete ao século XIX, é que se começa a moldar as funções da mídia que perdurariam, mesmo que sob o olhar de suspeita, até hoje. É já nestes primórdios que o jornalismo passa a ser chamado de Quarto Poder – não como uma forma de legitimar sua influência, mas como uma denominação para sua característica de guardião em uma sociedade que prezava cada dia mais pela liberdade: Os pais fundadores da teoria democrática têm insistido, desde o filósofo Milton, na liberdade

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como sendo essencial para a troca de ideias e opiniões, e reservaram ao jornalismo não apenas o papel de informar os cidadãos, mas também, num quadro de checks and balances (a divisão do poder entre poderes), a responsabilidade de ser o guardião (watching) do governo. Tal como a democracia sem uma imprensa livre é impensável, o jornalismo sem liberdade ou é farsa ou é tragédia. (TRAQUINA, 2005, p. 22, 23)

Assim, segundo o autor, o jornalismo encontra na opinião pública a justificativa para seu lugar crescente na sociedade. Afinal, como ela poderia se expressar – em um tempo sem internet ou redes sociais, é claro – senão pela mídia? O jornalismo se constitui, então, não só como o elo entre cidadãos e instituições governantes, mas também o guardião que “tira as pessoas da letargia e oferece uma voz aos esquecidos” (KOVACH & ROSENSTIEL, 2003, p. 31). Nasce aí sua finalidade primordial, intrinsicamente ligada aos ideais democráticos, também apontada por Kovach & Rosenstiel, de “fornecer aos cidadãos as informações de que necessitam para serem livres e se autogovernarem” (p. 31). Segundo eles, os conceitos de jornalismo e comunidades democráticas são tão intrínsecos que é difícil até mesmo separá-los, utilizando-se de um ótimo argumento de que “o jornalismo é tão fundamental para essa finalidade que as sociedades que querem suprimir a liberdade devem primeiro suprimir a imprensa” (p. 32). Tudo pareceria um perfeito conto de fadas se outros fatores também não entrassem nesta história. Kovach & 495

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Rosenstiel apontam que a teoria e a finalidade do jornalismo, tão duradouras até aqui, são agora desafiadas de uma forma nunca antes vista (p. 32). É que se chega à segunda fase do jornalismo, apontada por Traquina, na qual industrialização e comercialização da mídia entram em cena. Devido principalmente à nova organização das empresas jornalísticas, o fazer jornalístico fica submetido a outros interesses e sua independência acaba dissolvida no meio da informação comercial e da autopromoção (KOVACH & ROSENSTIEL, p. 32). Neveu (2006, p. 158) acredita que a expressão jornalismo de mercado “não designa a simples e velha obrigação de uma publicação de equilibrar seu balanço financeiro, mas um conjunto de evoluções pelas quais a busca de uma rentabilidade máxima vem redefinir a prática jornalística”. Já Thompson (2005, p. 110) considera a transformação das instituições de mídia em interesses comerciais de grande escala uma das três grandes tendências desse ramo de trabalho desde o século XIX, ideia compartilhada também por Traquina (p. 125). Este novo cenário acaba por criar uma polarização no jornalismo como campo de conhecimento, no qual o polo positivo está relacionado aos ideais clássicos da imprensa, identificando-a como elemento fundamental da teoria democrática: “o jornalismo é visto como um serviço público em que as notícias são o alimento de que os cidadãos precisam para exercer os seus direitos democráticos”, afirma Traquina (p. 125, 126). Já o polo comercial seria identificado como o negativo, embora seja ele que sustente economicamente as redações e empresas: 496

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Para os jornalistas e para muitas vozes da sociedade, o polo negativo do campo jornalístico é o polo econômico, que associa o jornalismo ao cheiro do dinheiro e a práticas como o sensacionalismo, em que o principal intuito é vender o jornal/telejornal como um produto que agarra os leitores/os ouvintes/a audiência, esquecendo valores associados à ideologia profissional. (TRAQUINA, 2005, p. 27)

Com a entrada do caráter comercial no fazer jornalístico, era de se esperar que mudanças ocorressem em sua prática. É o que Traquina chama de penny press – o jornalismo vendido a centavos, afinal, quanto mais gente comprando, maior o lucro. Sim, o lucro, por fim e sem sombra de dúvidas, é o que rege este novo jornalismo. Neveu (p. 158) aponta algumas evoluções no dia a dia na profissão com a entrada do jornalismo de mercado, entre elas a prioridade dada às editorias julgadas mais propícias a maximizar os públicos, o aumento das soft news e a tendência da perda de autonomia das redações em face dos departamentos de gestão. Esta última, inclusive, propiciou uma relação cada vez mais rachada entre o departamento comercial e a redação. O resultado, além do eterno embate entre repórteres e editores, é que, segundo Kovach & Rosenstiel (p. 95), algumas práticas de negócios, contrárias aos melhores interesses jornalísticos e da população, passaram a ser usadas na redação. Traquina ainda aponta outras mudanças oriundas do jornalismo de mercado, como o surgimento do infoentretenimento, a valorização do jornalismo de informação 497

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em detrimento do de opinião e o culto aos fatos, o que direciona as notícias aos acontecimentos por si só, esquecendo-se de contextos, causas e desdobramentos. Já Oliveira Filha & Moreira (2014), focando no jornalismo impresso, observam que, às transformações mercadológicas, somam-se as provindas de uma crise da própria linguagem escrita em relação à linguagem audiovisual, o que obriga o jornalismo – não só o impresso, mas também como campo propriamente dito – a se reinventar. Seria, então, por meio da reinvenção de suas práticas que o jornalismo tentaria se manter íntegro? Como, por fim, o jornalismo lida com este cenário tão desafiador e em constante mudança? A questão é tão grave que Neveu (p. 168) chega a dizer que a legitimidade do próprio jornalismo é contestada devido a episódios que põem em xeque o respeito às suas regras deontológicas. Então, como balancear o inevitável caráter comercial com seus ideais de democracia, verdade e liberdade? Kovach & Rosenstiel defendem que a imprensa deve ser independente diante da ameaça dos conglomerados midiáticos: Somente uma imprensa livre de censores governamentais pode contar a verdade. Num contexto moderno, essa liberdade expandiu-se de forma a significar independência de outras instituições também – partidos políticos, anunciantes, negócios e outras fontes. A conglomeração de negócios informativos ameaça a sobrevivência da imprensa como instituição independente, à medida que o jornalismo se converte em um setor subsidiário dentro das grandes corporações 498

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essencialmente voltadas para os negócios. (KOVACH & ROSENSTIEL, 2003; p. 53)

Assim, é possível ver uma luz no fim do túnel com tendências jornalísticas recentes, impulsionadas não só pelas novas tecnologias, mas também pelo esforço – ou até mesmo necessidade – de manter a credibilidade jornalística com um mínimo de reputação. Neveu (p. 171) destaca algumas renovações no jornalismo contemporâneo, que se constituem como uma resistência à dominação total do lucro sob o jornalismo voltado para os cidadãos. Entre elas, estão o jornalismo etnográfico, mais próximo do cotidiano; o jornalismo de reportagem, que fixa na evocação de pessoas comuns e passa do ponto de vista de quem decide para o dos efeitos de suas decisões; e o jornalismo cívico, que aparece como “preocupação explícita em contribuir para um debate social que procure renovar os locutores legítimos e rediscutir o monopólio dos especialistas e dos políticos sobre a hierarquia dos temas debatidos”. Além desses, Kovach & Rosenstiel (p. 51, 52) ainda apostam em três forças causadoras do jornalismo ligado à construção cívica: a primeira seria a natureza das novas tecnologias, em especial a internet, que dissociaram o jornalismo da geografia e, inclusive, mudaram o papel do jornalista, já que este não decide mais o que o público deve saber, mas, sim, o ajuda a pôr “ordem nas coisas”; a segunda seria a globalização, tema a ser tratado mais adiante; e a terceira se daria com a conglomeração e surgimento de novas redes de notícias. 499

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De qualquer forma, seguindo lógicas comerciais e empresariais ou não, o jornalismo segue encontrando caminhos diante de novos desafios e tentando manter sua primeira lealdade com a missão de informar seu leitorado de forma íntegra, já que só “dessa maneira que nós, cidadãos, acreditamos numa empresa jornalística. É essa a fonte de sua credibilidade – a certeza de que não sofrem influência de terceiros” (KOVACH & ROSENSTIEL, p. 83). Além disso, os autores concluem afirmando que o jornalismo não está sozinho em suas batalhas diárias: os próprios cidadãos devem fazer parte da construção de uma mídia cada vez mais voltada para os princípios deontológicos tão celebrados no passado e ainda hoje prezados por seus profissionais, mesmo que mais fortalecida no campo ideológico do que no mercadológico. Assim, Os jornalistas devem fazer com que o público participe do processo pelo qual são produzidas as notícias. [...]. Dessa forma, o público se equipa com informação que lhe permite comparar com outras alternativas à mão. Mais importante ainda, o leitor passa a contar com uma base sobre a qual pode julgar se é esse mesmo tipo de jornalismo que quer estimular. Nesse sentido, os cidadãos passam também a ter algum tipo de responsabilidade no processo informativo. (KOVACH & ROSENSTIEL, 2003; p. 289)

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Enfim, se o cenário geral do jornalismo se encontra nestes termos, como se dão as especificidades do jornalismo internacional?

O que é notícia no jornalismo internacional Enquanto o jornalismo segue buscando maneiras de lidar com as transformações do mundo contemporâneo, com a editoria internacional não poderia ser diferente. Embora a globalização traga maior sentido – e importância – a este setor especializado da mídia, ele é um dos que mais sofre as consequências do jornalismo de mercado: pouco rentável comercialmente e com um público seleto, os investimentos provindos das empresas midiáticas diminuem ano após ano. Carlos Eduardo Lins da Silva, jornalista e ex-correspondente internacional em Washington (EUA) pelo jornal Folha de São Paulo, sintetiza bem tal dilema ao dizer que: O início do século XXI, quando a globalização chega ao apogeu, é assim, contraditoriamente, o período em que a necessidade da atuação dessa categoria de jornalista é, em princípio, mais urgente e justificável, mas também em que ela se tem contraído como raramente antes, devido à impossibilidade de as empresas darem conta de seus elevados curtos. (LINS DA SILVA, 2011, p. 10).

Mesmo com problemas em se sustentar financeiramente, contudo, o jornalismo internacional se mantém

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como uma editoria importante no quadro geral dos veículos de comunicação, muito pelo fato de que “publicar notícias sobre outros países sempre foi associado a prestígio para o veículo jornalístico que as divulgasse” (LINS DA SILVA, p. 25). Hohenberg (1981) observa que há bons sinais, pelo menos entre o público americano, de que há mais pessoas seguindo o noticiário internacional, lembrando que o jornal The New York Times, mesmo fora de períodos de crise estrangeira, publica uma média de 16 a 18 colunas diárias de material referente ao contexto mundial. Natali (2004, p. 23) vai mais longe e chega a afirmar que o jornalismo nasceu internacional, já que, ainda nos formatos rudimentares do século XVII e XVIII, ele serviria basicamente como instrumento de coleta e difusão de notícias produzidas em terras distantes. O autor remonta à formação deste segmento da imprensa, passando pelo papel das newsletters – já utilizada por banqueiros do século XVI para receber informações úteis aos negócios – e dos correios; pelo aumento do interesse do público em saber o que se passava fora de sua região – ele cita a Revolução Francesa como marco para a ampliação do espaço público de troca de ideias, ou o denominado “espaço de pauta” (p. 26) – até chegar ao que ele chama de fase adulta do jornalismo internacional, iniciado durante a Guerra Civil americana, que foi acompanhada por nada menos do que 150 correspondentes de guerra. É também a partir deste período, em meados do século XIX, que as agências de notícias entram no cenário midiático. Ainda hoje mantendo “suas posições de 502

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liderança no sistema internacional de coleta e disseminação de notícias e outras informações” (THOMPSON, p. 205), elas chegam para, como afirma Natali (p. 31) dar visibilidade econômica ao noticiário internacional, já que distribuir centenas de textos a jornais que assinam seus serviços sai incomparavelmente mais barato do que um texto enviado por um correspondente, por exemplo. Porém, mesmo detentoras do crédito de exponenciar o jornalismo internacional, o autor ainda aponta certo apartidarismo como uma séria consequência da generalização dos serviços das agências. Generalização, aliás, que já é reflexo dos cortes de gastos nesta editoria: “não é uma postura ética, que isso fique bem claro. É uma postura de mercado. Como há clientes de diferentes orientações editoriais, nenhuma agência puxaria a azeitona para o lado de uma só empada”. (NATALI, p. 31). Não se pode esquecer da importância do repórter inserido na produção de conteúdo para o noticiário internacional, tão envolto de particularidades que recebe outro nome: correspondente. O correspondente, “jornalista sediado em um país que não o seu de origem com a missão remunerada de reportar fatos e características dessa sociedade em que vive para a audiência da sua nação materna por meio de um veículo de comunicação” (LINS DA SILVA, p. 15), é por muitos considerado um orientador cultural: É muito comum que ele se ache não apenas a elite da elite, mas também um guia das massas, influência fundamental no processo de decisões

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políticas, orientador cultural de seu público, formador de opiniões a respeito do país de que reporta. Provavelmente ele é muito menos do que se imagina, embora naturalmente um pouco disso tudo a maioria realmente seja. (LINS DA SILVA, 2011, p. 118)

Além de carregar esta fatídica responsabilidade, é o correspondente internacional que precisa lidar com dilemas tão rotineiros quanto inerentes da editoria focada nas notícias estrangeiras. Entre eles, o risco de se nacionalizar no país em que se encontra sediado (LINS DA SILVA, p. 33), ou seja, pensar como suas fontes e não como seu público alvo; ou ainda outros, listados por Natali (p. 8, 9), como o manejo de reclamações sobre o viés partidário na apresentação da notícia; o pouco acesso a fontes que estão na origem da informação publicada, já que este sofre intermediação de agências, consulados e comentaristas estrangeiros; e, claro, as limitações oriundas de trabalhar com uma língua estrangeira. Além disso, o correspondente não fica ileso das restrições financeiras das empresas midiáticas, o que acaba exigindo uma maior qualificação destes já especialistas. Uma saída mais drástica, mas, ainda assim, cada vez mais frequente, é o corte do repórter alocado em outro país, que vem a ser substituído por profissionais que trabalham direto da redação. Mesmo que pareça uma troca desfavorável ao noticiário internacional, que não terá olhos in loco para cobrir os fatos, Natali consegue ser otimista graças ao que ele chama de revolução trazida pela internet:

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Ela fez com que o redator abandonasse seu papel passivo diante dos telegramas das agências. Deu a ele um poder de intervenção inimaginável na elaboração mais pessoal de um texto noticioso”. [...]“Vejam que o uso da internet não substitui a existência de uma boa rede de correspondentes. Mas a falta dessa boa rede é em parte compensada por profissionais familiarizados com os múltiplos recursos disponíveis na rede mundial de computadores. (NATALI, 2004, p. 57-59)

Diante de certas mudanças no jornalismo internacional, como as causadas pela influência dos cortes de orçamento, pela adaptação à realidade mercadológica e pelas novas funções atribuídas a quem está por trás do teclado que redige seus textos, ao menos uma característica permanece praticamente intacta: sua gigantesca guilhotina da notícia. É a maneira de Natali (p. 10) de dizer que nenhuma outra editoria precisa utilizar critérios tão refinados e qualificados de seleção. Ele também logo refuta esta ideia de seleção como sinônimo de censura, já que ela seria baseada em critérios claros de noticiabilidade: Nem tudo o que é notícia aparece no noticiário internacional. O noticiário não constrói um retrato do mundo com determinado grau de exatidão. Muita coisa que será vista no futuro como de capital importância histórica é diariamente deixada de lado. E, ao mesmo tempo, certos temas sem importância histórica nenhuma acabam virando notícia porque interpelam a mitologia de nosso mundo cotidiano. (NATALI, 2004, p. 12) 505

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Tal afirmação nos leva, então, à teoria do gatekeeper, para a qual o processo de produção da informação é concebido como uma série de escolhas onde o fluxo de notícias tem de passar por diversos gates, isto é, ‘portões’” (TRAQUINA, p. 150), sendo tais portões as áreas de decisão nas quais o jornalista escolhe se a informação é ou não notícia. Porém, ao contrário do que Traquina acredita ser um processo subjetivo e arbitrário, baseado em um conjunto de experiências, atitudes e expectativas do próprio gatekeeper (p. 150), o jornalismo internacional segue um mínimo de padrão quando se refere aos valores-notícia, que seriam “qualidades atribuídas, pelo jornalista, ao acontecimento, que permitem que o fato seja incluído na lista dos noticiáveis” (MURAD, 2002, p. 4). Tais valores-notícias, tanto na editoria internacional como no jornalismo como um todo, podem ser enxergados como parte da cultura jornalística, como afirma a comunicadora social Fabiane Barbosa Moreira: Os valores-notícia não são naturais, mas fruto da cultura jornalística e de uma intenção prévia, e esta pode originar-se em um nível pessoal, organizacional, social, econômico, ideológico, etc. Tanto os sujeitos como as rotinas e também certos segmentos sociais, por exemplo, são agentes de valoração e construção das notícias. (MOREIRA, 2006, p. 40)

Diante destas constatações sobre o que determina a transformação de um fato em notícia, quais seriam, afinal,

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os grandes valores-notícias que norteariam o jornalismo internacional na comunicação contemporânea? O primeiro fator a se considerar é o leitorado desta editoria. Natali afirma que o leitor desta editoria faz parte de um segmento minoritário, metropolitano e mais bem informado do público, o que consequentemente o faz mais exigente (p. 55). Lins da Silva complementa ao dizer que, embora não seja massivo, este leitorado, em grande parte, “determina os rumos da sociedade” (p. 171). Estas características, portanto, devem ser pesadas na hora da escolha e posterior encaminhamento da notícia. Outro fator específico a ser ressaltado é a acessibilidade, tanto geográfica quanto editorial, à notícia, como lembra Natali (p. 15). Países de difícil acesso ou com liberdade de informação muito restrita dificilmente chegam às páginas (impressas, eletrônicas ou virtuais) dos meios de comunicação. Já partindo para os valores-notícia clássicos do jornalismo, é presumível que eles também estejam presentes na editoria internacional. Porém, o contexto globalizado e cada vez mais multimídia das comunicações acaba influenciando e trazendo mudanças mesmo a este quesito. Critérios de noticiabilidade como importância, interesse, brevidade, qualidade da história, uma composição equilibrada do noticiário, material visual disponível, exclusividade, entre outros listados por Murad (p. 5) são acompanhados por fatores que chegam com destaque nos dias de hoje: a atualidade – trazida pelo aumento da velocidade provinda das tecnologias digitais, ela faz com que se busque o encurtamento do tempo entre o transcorrido e a publicação da notícia (MURAD, p. 507

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6), mas também resulta em certa negligência com a apuração dos fatos – e a frequência, que se caracteriza pela atualização constante das informações, a fim de “promover sua audiência por meio de uma continuidade da cobertura informativa” (MURAD, p. 6). Por último, mas não menos importante, vemos hoje com certa frequência no jornalismo internacional um embate entre o interesse público (com significado político, social, cultural...) e o interesse do público (aquilo que pode despertar curiosidade). Reflexo da predominância do jornalismo de mercado, vê-se que, na maioria das situações, o interesse do público acaba ganhando, já que “a pressão do mercado e da concorrência impõe, muitas vezes, na prática, a subvalorização da importância, isto é, a subordinação do interesse público ao interesse do público” (BIANCHI & HATJE. 2006, p. 174). Assim, a partir deste histórico, destas características e destes critérios de seleção é que se molda o jornalismo internacional hoje: embora passando pelas (quase) mesmas mudanças e obstáculos do jornalismo em geral, consegue visualizar que tem um papel fundamental – ainda que dependente de fatores mercadológicos e editoriais – em “transformar cidadãos nacionais em cidadãos globais” (LINS DA SILVA, p. 10), transformação necessária em um cenário que, segundo o autor, exige cada vez mais que as pessoas estejam informadas, especialmente sobre o que acontece além de suas próprias fronteiras. É a globalização, mais uma vez, impondo sua chegada – ou melhor, sua permanência. O que nos leva ao próximo tópico. 508

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Reflexos da globalização no jornalismo O cientista social interdisciplinar Toby Miller, em seu trabalho sobre cidadania cultural, diz que, à medida que a globalização impõe e convida à mobilidade, prolifera-se o intercâmbio de práticas culturais – muitas vezes, guiado pela mídia – como se cada vez existissem mais indivíduos e organizações transnacionais. Neste cenário, o autor enxerga a emergência inevitável de uma “cidadania global” (2011, p. 61). Enquanto algumas linhas de pensadores tomam esta tendência como a decadência da tradição e das identidades nacionais, outras a consideram a celebração da diferença, sem contar os que simplesmente a focalizam como um novo nicho mercadológico. Divergências à parte, o fato é que a globalização é um fenômeno intrínseco ao nosso tempo e já reflete na relação indivíduo x mundo. A formação da globalização como característica organizacional do globo remete ao século XIX, mas, segundo Thompson, ela é um fenômeno típico do século XX, já que foi durante esse período que “o fluxo de comunicação e informação em escala global se tornou uma característica regular e penetrante da vida social” (p. 208). O autor conceitua globalização como a “crescente interconexão entre as diferentes partes do mundo, um processo que deu origem às formas complexas de interação e interdependência” (p. 197). Para ele, o fenômeno só surgiria quando atividades que envolvem algum grau de reciprocidade e interdependência acontecem e são organizadas numa arena global. Já 509

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Hall (2002, p. 67), afirma que globalização se refere aos processos que tornam o mundo mais interconectado e foca em suas consequências. Uma destas consequências, a compressão do espaço-tempo, tem reflexos diretos na prática do jornalismo internacional. Segundo o autor, a aceleração dos processos globais, com os quais há a impressão que o mundo é menor e as distâncias mais curtas, faz com que “os eventos de um determinado lugar tenham um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande distância” (p. 69). Além disso, essa disjunção entre o espaço e o tempo possibilita a simultaneidade, com a qual se pode experimentar eventos simultâneos que acontecem em lugares completamente distintos. O sentido de “agora” não é mais ligado a uma determinada localidade, nas palavras de Thompson (p. 58). Muda-se também a relação entre espaço x lugar: enquanto o lugar permanece fixo, “o espaço pode ser cruzado num piscar de olhos” (THOMPSON, p. 72) – ou melhor, em um acesso a um site de notícias. Ocorrem agora, como parte da mudança destas relações, os eventos globais, que são “acontecimentos catárticos que reúnem em torno de si notícias, reportagens e programas, os públicos nacionais e locais os mais diversificados” (MATTELAR, 2000, p. 158). Não dá para negar que o mundo nunca foi tão incrivelmente pequeno. Porém, embora tudo isso pareça positivo, a globalização não é um processo que ocorre de forma uniforme, e aí se encontra o que poderia ser chamado do outro lado da moeda. Para Hall, a globalização é “desigual e 510

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tem sua própria geometria de poder” (p. 80). É o que Canclini (2005, p. 32) também aponta como a submissão das manifestações culturais aos valores de mercado, ou seja, a substituição de cidadãos por consumidores. Em uma sociedade baseada nestas regras, não importa o quão interconectadas se encontram as nações, manda quem tem maior poder econômico. E as perspectivas não seriam muito animadores para os acadêmicos. O especialista em jornalismo Luis Álvares Pousa acredita que os agentes da globalização “buscam rentabilizar ao máximo seu objetivo básico, que é alcançar um controle absoluto [...] criando assim condições para que se produza uma primeira grande fragmentação social: a dos consumidores” (POUSA, 2004, p. 72). Já Mattelard (p. 62) vê, decorrente da interdependência mundial, uma uniformização da cultura planetária, claro que comandada pelas nações ocidentais de primeiro mundo. Canclini não é mais otimista ao constatar que as pessoas se sentem, hoje, mais consumidoras do que cidadãs, muito porque as respostas de perguntas próprias dos cidadãos, por exemplo, “a que lugar pertenço” ou “como posso me informar”, hoje são respondidas através do consumo de bens privados e dos meios de comunicação de massa. É onde reencontramos aquele tal quarto poder designado à mídia, desta vez com moldes contemporâneos. Contudo, a própria imprensa também não se encontra isenta dos reflexos da globalização. A globalização impõe à mídia o papel de mostrar o mundo “sem fronteiras” ao seu público. Thompson fala inclusive de uma “mundanidade mediada” (p. 61), já que 511

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nossa compreensão do mundo fora do nosso alcance pessoal estaria sendo modelada cada vez mais pelas formas simbólicas, construídas, ora, pela mídia. A fim de cumprir esse suposto dever, Mattelard (p. 37-44) chega a listar algumas utopias em relação à comunicação universal, entre elas a associação universal de homens em busca de um mesmo objetivo; o encurtamento não só entre distâncias, mas entre uma classe e outra graças à interligação de redes; a propagação de ideias pelas redes sociais; e a superação das desigualdades entre classes, grupos e nações. Porém, os efeitos de uma comunicação globalizada são muito mais profundos e bem menos utópicos do que os abordados pelo autor. A começar que “a globalização da comunicação no século XX é um processo dirigido principalmente por atividades de conglomerados de comunicação em grande escala” (THOMPSON, p. 209), que, ao mesmo tempo em que organizam suas atividades baseados em estratégias efetivamente globais, também promovem uma fragmentação de seu público “a fim de competir em todas as partes e com todos os tipos de suporte, o que obriga a criar sinergias midiáticas, que vão contra a diversidade de conteúdo” (POUSA, p. 73). Além disso, embora o desenvolvimento de novas tecnologias expanda o mercado global e crie uma arena internacional de circulação de produtos da mídia, para Thompson existem um acesso e um fluxo desiguais de informação: O material produzido em um país é distribuído não apenas no mercado doméstico, mas também – e em níveis sempre crescentes – no

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mercado global. Já é sabido, entretanto, que o fluxo internacional dos produtos da mídia é um processo estruturado no qual certas organizações detêm o controle predominante, levando algumas regiões do globo à extrema dependência de outras para o suprimento de bens simbólicos. (THOMPSON, 2005, p. 212).

Estas características, somadas à cultura do efêmero e da velocidade, leva, segundo Pousa, a uma sensação de caos, com a qual os indivíduos não conseguem entender e se comunicar com o mundo a sua volta. Para o autor, tampouco o jornalismo tem a capacidade de encarar a complexidade do mundo globalizado: O modelo de jornalismo que emerge das ruínas do industrialismo [...] nunca poderá assim encarar os desafios de um mundo tão problematizado. Tampouco poderá desativar as causas que explicam desde a proximidade à grave deteriorização que sofrem os meios, e muito menos reconquistar os valores que conformam a argamassa da democratização informativa” (POUSA, 2004, p. 78).

Assim, a globalização nos moldes atuais imporia “tiranias” à pratica do jornalismo, que trariam consequências bastante específicas em sua prática, por exemplo as citadas por Pousa (p. 78): a valorização da função consumista das audiências por cima de qualquer outra função ativadora; o surgimento do que o autor chama de

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distorções, como o infoentretenimento, que limitaria a capacidade interpretativa da audiência e levaria ao questionamento do tipo “o que é jornalismo e o que não é?”; o condicionamento do conceito de atualidade a apenas o que tem impacto visual ou emocional, o que também mostraria o poder de significação dado exclusivamente à imagem; a variação do tempo da informação, já que o que é instantâneo teria sempre mais valor. Em seguida, as consequências chegam à própria mensagem jornalística, seja ela local ou internacional, como continua Pousa (p. 79), ao observar, entre tais consequências, a fragmentação da realidade em cenas soltas, sem dar importância ao contexto dos acontecimentos; a desestruturação e fragmentação do argumento, submetendo-o à leitura rápida; a espetacularização, contando mais com a capacidade emotiva do que com o valor de verdade; a dramatização, baseada no impacto que a mensagem pode fazer; a criação de mitos; a engenharia dos acontecimentos, ou seja, a fabricação de fatos noticiáveis; a obsessão pelo presente; a figuratividade, na qual contam as aparências dos fenômenos e suas manifestações visíveis, etc. Mas fica o questionamento final: mais do que a globalização, não seriam todas essas consequências ligadas às mudanças do próprio jornalismo contemporâneo? Seja lá qual for a fonte de seus desafios atuais, é certo que a imprensa e seus representantes vivem um contínuo caminho de adaptações – ora apostando no que já é sólido, ora se lançando para o desconhecido – para se adequar a um mundo cada vez mais globalizado e subordinado às leis do mercado, sim, mas também muito mais interessante e imprevisível. 514

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Considerações finais Ao abordar os aspectos atuais da mídia, partindo do jornalismo como um todo, passando pela especificidade da editoria internacional e finalizando nas consequências da globalização não só na estrutura da mídia, mas na prática jornalística em si, pode parecer que, no cenário geral, os desafios se sobreponham às soluções ou, de uma forma simplista, a uma rotina de simples calmarias. Mas quem iria esperar que um campo dinâmico e visionário por sua essência iria preferir se manter parado, vendo “o bonde passar” sem ele? O desenvolvimento de tecnologias, a configuração mercadológica das empresas de comunicação e a nova configuração do mundo como uma arena interligada de culturas e conhecimento – nem sempre tão equilibrada em seus fluxos, que fique claro – transformam as funções e as maneiras de agir da mídia, o que não deixa de se constituir como uma crise. Em chinês, a palavra “crise” é representada por dois ideogramas: o que significa “perigo” e o que diz “oportunidade”. Digressões à parte e considerando tudo o que já foi abordado, acredito ser preferível seguir pelo segundo caminho, o da oportunidade, e vejo que é essa exata rota que o jornalismo está tomando. Thompson afirma que o papel da mídia nas transformações culturais é agir como uma multiplicadora de mobilidade, superando qualquer limitação imposta pelas características dominadoras dos grandes conglomerados midiáticos, do jornalismo de mercado e até mesmo da globalização: “a mídia permite que indivíduos experimentem vicariamente eventos que 515

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acontecem em lugares distantes, e por isso estimula sua capacidade de imaginar alternativas às formas de vida características de seus locais imediatos”. (p. 245). Além de representar uma saída ou, ao menos, um ponto de partida para que os próprios indivíduos busquem alternativas para sua realidade, a mídia continua sendo detentora do tão aclamado e temido “quarto poder”. Mas, em um mundo cada vez mais conectado e informado, este poder também pode se modificar para tornar os meios de comunicação, enfim, em integradores de conhecimento. Quem defende isso é Pousa, o mesmo que alarmou tanto sobre os estragos provocados pela cultura do efêmero no jornalismo: “meios e jornalistas estão, pois, obrigados a ser instrumentos integradores do conhecimento, conscientes de que processam informação para a sociedade do conhecimento” (p. 80). No jornalismo internacional, então, poderia se ver a integração de conhecimentos além-fronteiras como jamais visto. Dessa forma e seguindo pelo caminho de que a imprensa não se perdeu entre cifrões, velocidade sem fundamentação ou preponderância total dos agentes do mercado (além de lembrar que, pelos levantamentos de Kovach & Rosenstiel, os valores tão clássicos quanto importantes do jornalismo, como o compromisso com a verdade, a independência e os cidadãos, estão extremamente presentes no imaginário dos profissionais que atuam nas redações) o resultado seria um jornalismo de significação, “que é o modelo em que se vai fundamentar as estratégias de resistência e de alternativa a quanto desnaturaliza as funções sociais e culturais dos meios e jornalistas profissionais” 516

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(POUSA, p. 80). E seria, assim, tanto o resultado quanto também uma possível e acertada solução para qualquer maior obstáculo que venha a aparecer nesta rota ao futuro do jornalismo, tão bifurcada quanto permanente.

Referências BIANCHI, Paula & HATJE, Marli. Mídia e esporte: os valores-notícia e suas repercussões na sociedade contemporânea. In: Motrivivência, Ano XVIII, Nº 27, 2006, p. 165-178 CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002 HOHENBERG, John. O jornalista profissional: guia às práticas e aos princípios dos meios de comunicação de massa. Rio de Janeiro: Interamericana, 1981 KOVACH, Bill & ROSENSTIEL, Tom. Os elementos do jornalismo. O que os jornalistas devem saber e o público exigir. Geração Editorial, 2003 LINS DA SILVA, Carlos Eduardo. Correspondente internacional. Editora Contexto, 2011 MATELLART, Armand. A globalização da comunicação. Bauru: EDUSC, 2000 517

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MILLER, Toby. Cidadania cultural. In: MATRIZes, Ano 4, Número 2, 2001, p. 57-74 MOREIRA, Fabiana Barbosa. Os valores-notícia no jornalismo impresso: análise das ‘características substantivas’ das notícias nos jornais Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e O Globo. 2006. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Informação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006 MURAD, Angèle. Os valores-notícia na imprensa oligopolizada e multimídia: olhares a partir do newsmaking. In: XXV Congresso Anual em Ciência da Comunicação. Salvador, 2002. NATALI, João Batista. Jornalismo internacional. Editora Contexto, 2004 NEVEU, Érik. Sociologia do jornalismo. São Paulo: Edições Loyola, 2006 OLIVEIRA FILHA, Elza & MOREIRA, Rejane de Mattos. Cenário do jornalismo impresso: entre tensões e potencialidades. In: DE MORAES, Osvando J. (ORG). Ciências da comunicação em processo: paradigmas e mudanças nas pesquisas em comunicação no século XXI. Conhecimento, leituras e práticas contemporâneas. São Paulo: Intercom, 2014 POUSA, Luis Álvares. La especialización em el tempo de la globalización. In: DEL MORAL, Javier Fernández (COORD). Periodismo especializado. Barcelona: Editorial Ariel, 2004 518

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THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade. Uma teoria social da mídia. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005 TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo: porque as notícias são como são. V. 1. Florianópolis: Insular, 2005

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Capítulo 17 1 Estudos culturais e comunicacionais como forma de auxiliar na inclusão do homossexual masculino no ambiente organizacional1 Matheus José Prestes

Apresentação do tema Introdução

Nos dias atuais, vem surgindo na grande mídia noticiosa e de entretenimento elementos que vêm dando notabilidade e legitimidade aos movimentos homossexuais. Bem ou mal, essas informações trazem à tona a discussão para dentro da sociedade, em seus mais diversos ambientes.

1. Artigo apresentado como trabalho final da disciplina de Teorias da Comunicação do Programa de Mestrado em Comunicação Midiática. Unesp Bauru, turma 2014. 520

O enfoque deste artigo se dá principalmente sob a relação organizacional, onde as relações gênero/sexualidade nunca foram tidas como elementos a serem discutidos. As empresas sempre foram um ambiente heteronormativo, onde as minorias são silenciadas e não levadas em consideração a inter-relação de seus membros, assim como suas características relativas à interculturalidade. Sem dúvida, tais elementos podem influenciar a produtividade e a satisfação no ambiente de trabalho junto aos colaboradores. Ao se pautar esta decisão, espera-se gerar um maior espaço de discussão e aceitação desta temática, derrubando-se os tabus envolvendo tais temas. Nota-se que estas mudanças se dão em função da pressão dos movimentos sociais no sentido da inclusão desta junto às políticas públicas, cobrando assim direitos. Este trabalho tem a intenção de fazer uma análise bibliográfica que possa abranger desde informações teóricas, onde possa buscar definições muitas vezes desconhecidas e pouco divulgadas sobre o assunto, dando uma ênfase, neste ponto à educação sobre o tema, suas relações culturais, tendo em vista mais especificamente o ambiente das organizações, envolvendo assim conceitos baseados em teorias da comunicação, a necessidade de se realizar a interculturalidade e a quebra de paradigmas decorrentes deste padrão cultural heteronormativo dentro do ambiente laboral. As teorias da comunicação e a homossexualidade

Dá-se início a este texto, abordando-se de forma sucinta, dentro das teorias da comunicação, as linhas dos

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estudos culturais, apontando para autores ingleses e latino-americanos, assim como, o estudo da teoria da espiral do silêncio, associando-os ao tema relacionado às minorias sexuais e sua inclusão, principalmente no que diz respeito à cultura organizacional. Ao teorizar sobre os estudos culturais, Fernandes (2010, p.3) publica um artigo em que diz que estes surgiram na Inglaterra no final dos anos 50, onde politizados pesquisadores como Raymond Williams, Richard Hoggart e Edward Thompson, unidos mais adiante a Stuart Hall (1964), utilizaram-se das teorias de Karl Marx como fonte para seus estudos, alinhando-se assim, aos pensamentos da Nova Esquerda Inglesa Segundo Regina (2011), a Nova Esquerda Inglesa tinha seu pensamento alinhado aos ideais democráticos, que buscava valorizar a relação do ser humano em sociedade. Iniciativa esta que tinha em seus objetivos a substituição do pensamento alinhado a figura aos ideais economicistas do homem que caracterizava a sociedade capitalista. Assim, a Nova Esquerda propunha estudar o homem que participava das relações sociais e da história, valorizando-se a sua consciência social e experiências pessoais. Tendo em vista isso, a autora Ana Carolina D. Escosteguy (2001, p. 271-272), nos apresenta em seu livro uma entrevista datada de fevereiro de 2007, com o Prof. James Curran, da Universidade de Londres, cujo foco se dá exatamente nos debates sobre os estudos culturais britânicos, e seu viés social e político. O professor, que faz parte do departamento de comunicação e mídia, atualmente, concentra sua produção em cima 522

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das áreas de história, economia política e suas influências sobre as audiências. Ao ser indagado, o professor explicitou seu posicionamento com relação aos estudos culturais, onde denota o porquê de seu encantamento, e ao mesmo tempo, sua frustração no que diz respeito aos estudos britânicos das mídias. O entrevistado afirma à autora, que tais estudos eram os que existiam de mais dinâmicos e excitantes nos idos dos anos de 70 e 80, pois via neles uma aproximação com o que era dito “popular”, tornando-se assim verdadeiramente relevante suas publicações e pretensões. Considerava que o encontro de áreas distintas do conhecimento (assim como as teorias: literária, psicanalítica, história etc.) passou a olhar para “todos os lados, para qualquer disciplina ou temática, mas atenta aos porquês” (ESCOSTEGGUY, 2001, p. 272). Ou seja, buscavam aprofundar seus estudos frente à cultura popular, mas com o intuito de realizar verdadeiras mudanças sociais, tendo assim, um verdadeiro e sério projeto conectado as suas pesquisas. Os estudos culturais britânicos eram um movimento radical que pretendia encontrar uma forma de olhar a cultura popular como o modo pelo qual as pessoas expressam sua identidade e suas relações com os outros, conectada a diferentes grupos. Pretendiam um entendimento da natureza essencial do cotidiano, para construir uma frente popular que transformaria a sociedade. Tal projeto, como eu o entendi, estava articulado à política. O propósito de estudar 523

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a cultura popular envolvia mudar muitas das instituições da sociedade, portanto, o objetivo era mudar a sociedade. Isso envolve ganhar eleições, estar envolvido na política convencional. Se você olha os escritos de Gramsci, ele sempre viu a cultura mobilizando apoio ao estado capitalista, isso foi visto em termos revolucionários, eu não vejo assim porque sou um social democrata. A atração pelos estudos culturais gira em torno de uma mobilização liberadora da classe trabalhadora, das feministas, dos gays, dos ambientalistas e outros grupos numa campanha conjunta para mudar a sociedade. Esse é meu entendimento dos estudos culturais. (ESCOSTEGGUY, 2001, p. 272)

Apesar do professor, reafirmar seu entusiasmo com relação aos estudos culturais, este coloca que abandonou tal linha teórica, pois os estudiosos deixaram de ser “radicais”, passando apenas a serem liberais. Coloca também que muitos destes teóricos se posicionaram como antiestatistas, o que poderia parecer um tipo de radicalismo, o que é negado pelo entrevistado, haja visto, que no país britânico este posicionamento liga-se à um contexto de direita, dando bases a sua frustração com seu encaminhamento teórico-político, negando assim suas origens Marxistas. Ainda assim, tal teoria se mostra relevante, pois, como afirma Richard Johnson (2006. apud FERNANDES, 2010, p.4.), são três as principais contribuições de Marx para os Estudos Culturais:

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1) os processos culturais estão intimamente vinculados com as relações sociais, especialmente com as relações e as formações de classe, com as divisões sexuais, com a estruturação racial das relações sociais e com as opressões de idade; 2) cultura envolve poder, contribuindo para produzir assimetrias nas capacidades dos indivíduos e dos grupos sociais; 3) cultura não é um campo autônomo, mas um local de diferenças e de lutas sociais.

Tratando-se ainda dos estudos britânicos, Beltrão (1980, apud FERNANDES, 2010, p. 4) classifica alguns grupos como marginalizados. Para este estudo, o enfoque será dado apenas aos que ela denomina como “marginalizados culturais”, onde o interesse se volta especificamente aos nomeados como os “erótico-pornográficos”, que são pessoas que iriam contra a ordem moral e sexual, ditada como padrão pela sociedade. Deles fazem parte as feministas, as prostitutas e os homossexuais. Assim, Beltrão (1980, apud FERNANDES, 2010, p. 4) nos transporta aos conceitos de hegemonia propostos por Gramsci, os quais são utilizados amplamente pelos Estudos Culturais. O pesquisador propõe com estes estudos a observação de duas vertentes distintas, a cultura hegemônica (tida como “dominante”) e a cultura contra-hegemônica (chamada também de “folk”), principalmente no que se diz respeito às lutas das minorias por reconhecimento e seguridade de direitos, para que se assemelhem aos grupos hegemônicos, inclusive no que possa dizer respeito à comunicação. 525

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O indivíduo marginal [...] muitas das vezes se apresenta dentro das normas socialmente aceitas, pois ele teme ser rechaçado por determinados grupos, porém, quando está junto ao seu grupo folk ele pode assumir sua identidade dentro desse grupo. Por exemplo, é difícil para um homossexual se declarar gay nos ambientes de trabalho e escolar, porém, quando está junto a outros homossexuais ele (pode) não tem (ter) problemas em si assumir como tal, desde, é claro, que já tenha passado pelo processo de come out (sair do armário). (FERNANDES, 2010, p. 4)

Garcia (2002) pontua, a partir de sua entrevista com Curran, que se pode pontuar o contexto da homossexualidade através de estudo inter/transdisciplinar. Afirma também que “o universo da homocultura mobiliza o direito e o respeito à diferença, quando investe sobre um conhecimento que observa e absorve acordamento, aceitação e inclusão das ditas minorias sexuais”. Ainda demonstra a pertinência deste estudo e sua afinidade com as relações entre tais minorias e o mundo do trabalho. Ferreira (2007, p. 31) contribui em seus estudos o que nos diz a alemã Elisabeth Noelle-Neumann, e sua teoria do Espiral do Silêncio. Essa autora mostra como vozes em minoria podem ser silenciadas. Partindo dessa colocação a cientista alemã explicita que os indivíduos tendem a expressar suas verdadeiras opiniões apenas quando o ambiente externo lhes é favorável. Estes indivíduos analisam o ambiente ao qual estão inseridos, determinam qual a posição dominante, majoritária, em 526

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detrimento da minoritária. “O que essa teoria revela é que opinião nenhuma é expressa se não houver apoio e suporte por parte dos colaboradores envolvidos.” Brito (2014, p. 61), utiliza-se da mesma teoria para afirmar que uma minoria pode ser isolada ou mesmo rejeitada, caso não siga um consenso imposto pela maioria das pessoas. E isso pode ser visto claramente no contexto de heteronormatividade, que dita normas dentro do ambiente organizacional, que pode levar as pessoas, nesta condição de homossexualidade, a agir sob uma postura reservada, ou mesmo, perder a naturalidade de seus contatos, causando assim insatisfação pessoal, e possivelmente uma perda diante do seu potencial laboral. A cultura homossexual e a heteronormatividade nas organizações

Tendo em mente os dados assim expostos no tópico anterior, dá-se continuidade a esta análise utilizando-se dos dados expostos por Ferreira (2007, p. 20), onde se pode conceituar que a cultura homossexual surge dos anseios de pessoas homossexuais que ao manterem relação/convívio podem estabelecer identidades, obtendo assim elementos de representatividade e reconhecimento frente à sociedade, a partir do compartilhamento de pensamentos, valores, símbolos, atitudes e comportamentos próprios. Ainda segundo o autor: a cultura homossexual é um fenômeno socialmente construído com vistas a lidar com a alienação e o preconceito. (KATES, 1998, apud NUNAN, 527

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2003, p. 137). Seguindo esse raciocínio, define-se cultura homossexual como consequência das sociedades complexas em que não existe sistema de valores único e uniforme que seja válido para todos os indivíduos. A realidade social é heterogênea e inclui a coexistência e inter-relações entre diferentes sistemas de classificação da sexualidade. (MÈNDES-LEITE, 1993, p. 272)

Esta visão de que não existe um sistema de valores únicos e uniformes, muitas vezes não é partilhada pelas organizações brasileiras. Segundo Reis (2003, p. 24), a maioria destas vê seus colaboradores sobre uma “óptica completamente tecnicista”, como se não houvesse diferentes grupos sociais, além daquelas definidas por suas posições hierárquicas. Quando falamos de sexualidade, o debate sempre se centrou nos estudos que seguiam um padrão normativo, e praticamente todos se davam em cima destes “iguais”. No entanto, Candau (2008, p. 46) sugere que, não se deixando de lado as questões sobre igualdade, mas os enfoques das discussões têm se dado atualmente mais às diferenças. A autora afirma, inclusive, que tais diferenças assumem uma importância especial, transformando-se num direito “não só o direito dos diferentes a serem iguais, mas o direito de afirmar a diferença [...] não se trata de afirmar um polo e negar o outro, mas de articulá-los de tal modo que um nos remeta ao outro (2008, p. 47)”. Para tanto, partimos na nossa reflexão utilizando a definição proposta por Reis (2013, p. 18), quando coloca

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que as características padrão esperadas do trabalhador, da pessoa que tomam frente, sob a ótica da sociedade brasileira é a do homem, branco e heterossexual. Afirmação essa, a qual é repetida por vários autores, e deverá ser retomada ao longo deste tópico. O Manual de Comunicação LGBT (MARTINS, ROMÃO, LINDNER, REIS, p. 13) carrega a definição da expressão heteronormatividade, como uma suposta norma social relacionada a esse comportamento esperado, tipo como um padrão heterossexual. Onde explicita que este tipo de postura cultural e social seja o único válido, colocando assim quem não o segue em desvantagem frente aos demais cidadãos. A partir destes argumentos discriminatórios se embasam discussões sobre a constituição de família e expressão pública da sexualidade. Ferreira (2007, p. 11) traz em sua obra a confirmação destes relatos, reforçando que existe um caráter do silêncio e da anormalidade atribuídos a um sistema de classificação cultural, que direciona a homossexualidade, tornando-o um assunto quase que impenetrável. O autor afirma, ainda, que “a herança cultural brasileira deixou a homossexualidade no campo do proibido, em que falar, defender, produzir conhecimento ao seu redor, lutar por sua visibilidade, possui um aspecto de transgressão”. Afirma-se que no momento, “até mesmo pesquisas sobre o tema no ambiente empresarial enfrentam inúmeras barreiras com o receio da exposição” (Promoção dos direitos humanos de pessoas LGBT no mundo do Trabalho, p. 66). Ainda que considerem o embasamento científico sobre o tema deficiente, os autores Sicherolli, 529

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Medeiros e Valdão Júnior (2011, p. 3) afirmam que os estudos existentes têm colhido seus dados a partir experiências vividas nas organizações e no trabalho dos profissionais, tanto de recrutamento, como as minorias, possibilitando uma enorme gama interpretações, como a da “diversidade de pessoas, costumes, tradições e origens, entre outras”. O Instituto Ethos (2003, p. 24) afirma que, além dos conceitos históricos, culturais e ideológicos atribuídos a “normalidade” como ser homem, branco e heterossexual (REIS, 2013), há também características como a de ser magro, não deficiente e católico. Atributos estes ligados aos ditos graus “de normalidade, moralidade, beleza e capacidade para decidir e liderar as organizações”. Tendo em vista a predominância deste perfil, Coutinho (2006, apud PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DE PESSOS LGBT NO MUNDO DO TRABALHO, 2014, p. 14) vê como impraticável o ato de se colocar em prática o tema da diversidade nas organizações brasileiras, já que os homossexuais ainda precisam omitir a sua orientação sexual para manter-se em seus postos de trabalho. Reis (2013, p. 11) explicita tais dificuldades, quando afirma que podem ser imputadas às relações laborais, alguns tipos de sanções e/ou “punições” devido à orientação sexual do indivíduo, limitando assim a atuação do homossexual em seu ambiente de trabalho. Reforça, ainda, que diferentemente dos casos dos portadores de deficiência física, por exemplo, os homossexuais não possuem proteção legal contra este tipo de violência, ainda mais que, muitas vezes essas sanções são feitas de forma camuflada. 530

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Segundo Ferreira (2007, p. 30), pode-se elencar que as principais barreiras encontradas pelos gays, lésbicas e bissexuais são a “discriminação, inapropriação de profissões para os homossexuais, homofobia, estereótipos negativos, estigmas sociais e o medo da AIDS no ambiente de trabalho”. Jardim (2004, apud. REIS, 2013, p. 11) endossa esta afirmação ao dizer que “quando um indivíduo se mostra de forma singular, distinto do sistema e dos outros indivíduos, ele sofre com os preconceitos de uma sociedade que aparenta zelar pela liberdade e singularidade”. Ferreira (2007, p. 32) e Reis (2013, p. 11-12), afirmam que não se assumir no ambiente de trabalho acarreta um fardo, um sofrimento, sentindo-se incompleto em seu ambiente profissional. Dispende-se muita energia em esconder sua sexualidade, de forma a criar e se manter uma camuflagem, portando-se de maneira que este segredo não seja revelado. Esta homofobia internalizada gera baixos níveis de bem-estar e satisfação de vida, assim como a existência de um constante medo de rejeição e retaliação, ceifando suas qualificações profissionais, expondo-o a uma realidade onde tem sua intimidade invadida, submetendo-o a julgamentos constantes de um ambiente opressor, dominador e/ou violento (PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DE PESSOAS LGBT NO MUNDO DO TRABALHO, 2014, p. 14-15). Além do receio de que sofram agressões ou atos de discriminação, os mesmos constantemente policiam suas atitudes ligadas ao seu estilo de vida pública. A heteronormatividade, os preconceitos e as discriminações imbuídos neste contexto, fazem com que 531

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sejam deixadas de lado as competências profissionais, ou mesmo o mérito, razões estas que deveriam ser requisitos para a contratação ou ascensão a novos cargos. Tais impactos são sentidos não apenas pelo candidato, mas na gestão empresarial, e mesmo, porque não dizer, no âmbito da própria sociedade (PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DE PESSOAS LGBT NO MUNDO DO TRABALHO, 2014, p. 15-16). Segundo Reis (2013, P. 18), faz-se necessária aderrubada de alguns estereótipos já estigmatizados pela sociedade, como a afirmação de que todo homossexual masculino seja mais sensível e efeminado para os ditos padrões masculinos, ou mesmo, ao contrário, que o homossexual feminino seja uma mulher com atributos e atitudes masculinizadas. Ferreira (2007) observa que os aspectos ligados à relação entre o indivíduo que mantém segredo ou revela sua orientação sexual, devem ser discutidos pelos estudos organizacionais, não tendo seu centro ligado apenas a aspectos pessoais, sociais e culturais. Questões como: desempenho, relacionamento interpessoal, satisfação no trabalho [são] importantes para a melhor compreensão da diversidade existente nas organizações, vez que nesses espaços, assim como fora deles, existe um ambiente heterossexual por excelência, onde não há espaço para a diversidade relacionada à orientação sexual minoritária (FERREIRA, 2007, p. 14).

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Tais questões ou considerações poderão ser vistas de forma mais aprofundada a seguir, onde trataremos da diversidade cultural e a inserção do homossexual nas organizações. Diversidade cultural e a inserção do Homossexual nas organizações

A diversidade cultural é condição sine qua non para o diálogo intercultural e vice-versa (UNESCO, 2009, p. 31). Ao definir a diversidade, Reis (2013, p. 13) coloca que esta não pode ser resumida a uma ou outra característica, como raça ou gênero, mas a uma enorme gama de atributos pertencentes a determinados indivíduos ou grupos. Fleury (2000, p. 20), define a diversidade cultural como um “mix de pessoas com identidades diferentes interagindo no mesmo sistema social”. O autor observa que nestes sistemas há a coexistência de grupos de maioria e minoria, onde ainda “os grupos de maioria são os grupos cujos membros historicamente obtiveram vantagens em termos de recursos econômicos e de poder em relação aos outros”. Eccel e Flores-Pereira (2008, apud REIS, 2013, p. 13) afirma que a diversidade pode ser considerada como “o que se afasta de uma identidade: homem branco, heterossexual e sem deficiências”. Reis (2013, p. 13) acrescenta que a diversidade, segundo Thomas (1990, apud NKOMO E COX JR. 1999, p. 334335) [...] estende-se à idade, história pessoal e corporativa, formação educacional, função e personalidade. In-

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clui estilo de vida, preferência sexual, origem geográfica, tempo de serviço na organização, status de privilégio ou de não privilégio e administração ou não administração. Segundo o relatório da Unesco (2009, p. 22) atualmente é fator chave para as empresas que almejam participar com sucesso deste mercado internacionalizado que se atentem para os desafios impostos pela diversidade cultural, considerando não apenas suas políticas de emprego, mas todas as suas operações, “quer se trate da concepção dos produtos, da criação da sua imagem de marca ou da elaboração de estratégias de comercialização, ou ainda da organização das empresas ou das suas políticas de emprego”. Portanto, é necessário, segundo Thomas (1996, apud FLEURY, 2000, p. 20) que a gestão desta diversidade cultural tenha uma visão holística de forma a desenvolver em todos os seus colaboradores a potencialidade necessária para atingir os objetivos da empresa. Neste ponto, segundo Candau (2008, p. 46) faz-se observar que: a relação entre questões relativas a justiça, redistribuição, superação das desigualdades e democratização de oportunidades e as referidas ao reconhecimento de diferentes grupos culturais se faz cada vez mais estreita [...] a problemática dos direitos humanos, muitas vezes entendidos como direitos exclusivamente individuais e fundamentalmente civis e políticos, amplia-se e, cada vez mais, afirma-se a importância dos direitos coletivos, culturais e ambientais.

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Os impactos individuais e organizacionais da diversidade, são consequência destas diferenças individuais (físicas e culturais) com este “clima de diversidade”, que responde por fatores individuais, grupais e organizacionais inter-relacionados. Tais resultados podem ser medidos em variáveis de afetividade e desempenho, impactando diretamente na qualidade do trabalho, na lucratividade, no nível de atendimento e até mesmo nas admissões e demissões (FLEURY, 2000, p. 20). Muitos gestores podem se sentir desestimulados a apoiar este processo de inclusão da diversidade, levando em conta a demora ao vislumbrar as consequências desta estratégia administrativa (SICHEROLLI; MEDEIROS; VALADÃO JÚNIOR, 2011, p. 6). No entanto, estas relações devem ser vistas como estratégicas nas organizações, visto que podem comportar relações positivas, quando possuem papéis de inclusão social, ou negativas, quando representam exclusão (FERREIRA, 2007, p. 23). Fleury (2000, p. 20) afirma que é de suma importância avaliar o contexto organizacional, buscando analisar de que forma os impactos são positivos ou negativos da diversidade presente nas organizações, levando em consideração as pretensões organizacionais e individuais. Informa também, em concordância ao que afirma Dessler (2003. Apud SICHEROLLI; MEDEIROS; VALADÃO JÚNIOR, 2011, p. 4) que este posicionamento deve melhorar a relação e a experiência entre os dois grupos, maioria e minoria, maximizando as vantagens e minimizando as desvantagens potenciais, como discriminações e preconceitos. 535

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Segundo Knomo e Cox (1996. apud. FLEURY, 2000, p. 20) “notamos, por exemplo, que o não-gerenciamento da diversidade pode conduzir a forte conflito intergrupal entre membros da maioria e da minoria, reduzindo os resultados efetivos do trabalho para homens de ambos os grupos”. Green et al (2002, apud SICHEROLLI; MEDEIROS; VALADÃO JÚNIOR, 2011, p. 1) corrobora com esta afirmação, ao colocar que uma empresa que investe no recrutamento de pessoas pertencentes a grupos de diversidade, a partir de uma gestão ativa destas diversidades, possibilita o aumento de sua capacidade criativa, além da manutenção de uma imagem positiva da organização. Diante da distribuição mais justa das posições de trabalho, apoiados numa legislação mais igualitária, justificáveis inclusive, pelas mudanças demográficas e pela globalização de mercado, vislumbrando-se um futuro não tão distante, os postos de trabalho serão ocupados cada vez mais por mulheres e minorias, afirma Dessler (2003, apud SICHEROLLI; MEDEIROS; VALADÃO JÚNIOR, 2011, p. 2). Segundo Saraiva (2009, apud REIS, 2013, p. 14-15): as políticas de diversidades aplicadas nas empresas são constituídas de modo a: “tratar diferentes com igualdade”. Assim sendo os discursos empresariais acerca dos programas de diversidade “atuam em múltiplos níveis e em diferentes frentes – difundem uma nova visão de organização, tratando de aspectos díspares e, ao mesmo tempo, complementares, na tessitura de uma visão de cidadão (mais do que de 536

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empregado), e da comunidade (mais do que da empresa), em busca de legitimidade.

Tendo, portanto, esta noção de diferenças individuais, as empresas devem inserir em seus conhecimentos de diversidade, a orientação sexual. Afinal, nem todos os seus colaboradores são heterossexuais. Segundo Pope (1995, apud FERREIRA, 2007, p. 31), é extremamente relevante saber se existe e como é a revelação da orientação sexual, e como esta afeta ou não a rotina e as relações interpessoais no trabalho; se estas revelações interferem em posicionamentos trabalhistas, e mesmo outros assuntos relevantes a estes respectivos colaboradores. Como já citado anteriormente, a saída ou não do armário no ambiente de trabalho, depende em grande parte de um ambiente favorável para tal, que seja aberto à diversidade, com respeito e aceitação dos colegas e superiores. Segundo Ferreira (2007, p. 109), um ambiente aberto à diversidade “contribui, de alguma maneira, para não haver mudanças negativas de relacionamento interpessoal, bem como restrições de oportunidades no que se refere à ascensão de carreira e crescimento profissional”. Ferreira (2007, p.37) afirma também que os gays assumidos são propensos a procurar carreiras que permitam expressar sua orientação sexual dentro e fora do ambiente de trabalho. Enquanto os não assumidos, buscam escolhas laborais voltadas a valores tradicionais, como status e estabilidade. 537

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Segundo a cartilha que trata da “Promoção dos direitos humanos de pessoas LGBT no mundo do Trabalho” (2014, p. 11), atualmente há uma desaprovação e uma contestação de práticas de intolerância, que antes eram aceitas ou mesmo ignoradas. As pessoas pertencentes trazem ao ambiente de trabalho um ambiente plural, que acaba questionando “normas, estilos, padronizações, processos e políticas que antes eram impostos e obedecidos sem tantos questionamentos”. Nota-se que ainda há uma falta de repertório, tanto para a atuação dentro das empresas, quanto no ambiente social no que se diz respeito à cultura da diversidade. No mundo organizacional, há pessoas que tentam ignorar, outras que enfrentam os desafios deste novo paradigma. Deve-se ter a consciência de que organizações que não lutam em prol de melhores condições de trabalho, ampliação dos direitos trabalhistas, lutando contra práticas discriminatórias e violentas, visando a minimização de preconceitos e estigmas, findam por gerar pessoas infelizes, e não trilham assim um caminho em busca de resultados e sucesso em suas operações (PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS DE PESSOS LGBT NO MUNDO DO TRABALHO, 2014, p. 12, p. 15). Para tanto, Thomas (1996, apud MEDEIROS; VALADÃO JÚNIOR, 2011, p. 4) sugere cautela, para que as campanhas de inclusão não sejam minimizadas a apenas restritas a ações antidiscriminatórias, mas a uma completa gestão da diversidade, de forma a atingir os objetivos traçados pela organização a partir do engajamento de todos os seus membros. 538

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Expectativas relacionadas aos homossexuais e seus direitos nas organizações

Nem tudo numa empresa existe para gerar lucro e, por outro lado, a conduta ética pode estar relacionada ao lucro, dando a ele os contornos de sua legitimidade (INSTITUTO ETHOS, 2003, p. 31). Antes vitimados por um histórico de marginalizações, atualmente os homossexuais procuram um novo posicionamento no qual aspiram se relacionar de uma nova forma em busca de um novo espaço social. Isso se reflete também, nas relações de trabalho como meio de colocação profissional (CARRIERI; AGUIAR; DINIZ, 2010 apud REIS, 2013). No entanto, os gays ainda não têm seus direitos garantidos, diferentemente do que acontece com os direitos da mulher, por exemplo. Não há uma legislação dentro da sociedade brasileira que garanta os direitos humanos inerentes aos grupos LGBT, nem mesmo com relação à criminalização da homofobia. Ainda existe a carência de uma legislação de amparo a não discriminação e a não violência, por parte dos órgãos públicos de governo ou de justiça, ficando aberto a interpretações das autoridades cabíveis a cada situação (INSTITUTO ETHOS, 2003, p. 30). O Instituto Ethos, que diz respeito ao compromisso das empresas com os direitos humanos dos LGBT (2003, p. 31), afirma que direitos devem ser garantidos a todos que possuem a condição de membros de uma família humana. Há uma busca muito mais do que por

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direitos específicos ou diferentes dos oferecidos para as pessoas heterossexuais, mas sim, a igualdade de tratamento. Não se deseja negar o direito de ninguém, nem nada além, apenas se desejam que todos tenham os mesmos direitos. Segundo Ferreira (2007, p. 19), o movimento homossexual encontra-se no momento de sair do armário em busca de uma identidade coletiva, capaz de obter direitos civis em patamar de igualdade aos dos casais homossexuais. Dentre estes direitos, o autor propõe: “direito à herança, partilha de bens, declaração conjunta de renda, inclusão do parceiro como dependente em planos de saúde e previdência, aquisição de nacionalidade (nos casos em que o parceiro é estrangeiro), entre outros”.

Conclusão Partindo-se de um contexto histórico do movimento LGBT, desde suas primeiras lutas por direitos, até sua atual representatividade, como a comunicação através de suas mediações pode agir de forma colaborativa/ transformadora na implantação/desenvolvimento de uma cultura organizacional inclusiva, envolvendo conceitos de responsabilidade social empresarial, a criação de um ambiente organizacional favorável para que a pessoa LGBT possa viver harmoniosamente e ter seus direitos respeitados em nível de igualdade, minimizando-se assim os efeitos da homolesbotransfobia.

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Este estudo mostrou a existência de uma atração dos estudos culturais sobre assuntos como a classe trabalhadora, o feminismo, os homossexuais, entre outros. Este se dá, exatamente, através do vínculo dos processos culturais a suas relações sociais. Estudos estes que passando por estes grupos, inevitavelmente dialogam sobre conceitos de hegemonia e marginalização discutidos no decorrer do texto. Ainda dentro deste raciocínio, conceitos como o espiral do silêncio, demonstram como alguns indivíduos tendem a guardar suas opiniões verdadeiras sobre determinados assuntos, visto que os ambientes externos não lhes favorecem à abertura, comprovando assim a necessidade de uma adequação nos ambientes laborais. Tendo estes dados, o estudo percorreu a forma com que as empresas realizam, ou não, a inclusão do homossexual masculino, e obtiveram-se indícios de que as empresas trabalham sob uma óptica totalmente tecnicista, onde se tem a impressão de que ainda é como se não houvesse diferenças entre seus grupos sociais, além daquelas definidas por suas posições hierárquicas. Inclusive, não favorecendo a pesquisa das formas destas expressões culturais e de inclusão. Os estudos atuais focam principalmente no direito de ser diferente (e não mais nos aspectos ligados a igualdade), e principalmente no que isto pode trazer de positivo frente ao ambiente laboral, tema abordado com cuidado e profundidade durante este trabalho. Afinal, como nos afirmou Ferreira (2007, p. 30), pôde-se elencar que as principais barreiras encontradas pelos 541

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gays, lésbicas e bissexuais são a “discriminação, inapropriação de profissões para os homossexuais, homofobia, estereótipos negativos, estigmas sociais e o medo da AIDS no ambiente de trabalho”. E dentre estas e outras causas, veem suas expectativas e estímulo laboral minados por tais políticas organizacionais que não valorizam a diversidade cultural dentro do ambiente empresarial. Tal texto buscou se colocar como motivador para que se possa iniciar uma reflexão sobre o assunto em um mundo cada vez mais diverso e inclusivo. Tal tema se mostra atual e relevante, suscitando discussões nos mais diversos campos sociais, como também à pesquisa científica, principalmente o que diz respeito à comunicação e suas teorias.

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Capítulo 18 1 Intertexto da literatura para o cinema: um estudo sobre Bakhtin e a adaptação cinematográfica do gênero noir 1 Natália de Oliveira Conte Delboni2

Introdução Infidelidade, traição, violação... Esses e outros termos são usualmente utilizados para se referir a uma adaptação literária. Comumente tida como cópia de um romance, o filme adaptado de uma literatura tende a ser cobrado pela sua fidelidade à obra original e cria expectativas ao telespectador leitor.

1. Artigo apresentado na disciplina Teorias da Comunicação, ministrada pelo Professor Osvando Moraes. 2. Natália de Oliveira Conte Delboni é mestranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação Organizacional da Unesp – FAAC – Bauru/SP. Pesquisa baseada nas relações intertextuais do cinema e a literatura, em especial adaptações cinematográficas do gênero noir. É orientada pelo Prof. Marcelo Bulhões 546

Porém, é necessário partirmos do pensamento do teórico russo Mikhail Bakhtin para teorizar que, além da liberdade de cada artista ao dirigir a sua adaptação, devemos considerar a prática intertextual e o dualismo já citado há muitos anos pelo linguista. Os estudos sobre os diálogos entre signos surgiram no meio do século XIX, quando Bakhtin começa a tratar em suas obras sobre semiótica e estética da linguagem as relações existentes em diversos textos, como se esses se entrelaçassem formando uma trama com seus significados. Stam justifica a relação de Bakhtin com diversas áreas dos estudos culturais. Segundo ele, embora os estudos do filósofo russo tenham destaque no campo da linguística, suas disciplinas vão de encontro à critica literária e à antropologia, revelando-se ainda, um campo fértil para os estudos de cinema. “Até o momento, na historia da reflexão sobre o cinema, Bakhtin tem sido considerado o teórico do carnaval e das inversões rituais, tais como refletidos nas diegeses dos filmes e, quando filtrado através de Kristeva e Genette, como um dos pensadores seminais das discussões contemporâneas sobre “intertextualidade””. (STAM, pg. 59, 1992). Segundo o estudioso da comunicação e cinema Robert Stam, em seu ensaio “Teoria e Prática da Adaptação: da fidelidade à intertextualidade”, a semiótica estruturalista das décadas de 1960 e 1970, tratava somente das significações compartilhadas pelos sistemas textuais. No entanto, com os estudos de Julia Kristeva e Gerad Genette, no final da década de 70, a teoria da intertextualidade ganha força 547

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diante das questões sobre adaptação cinematográfica. “Similarmente, enfatizam a interminável permutação de textualidades, ao invés da “fidelidade” de um texto posterior a um mundo anterior, e desta forma também causam impacto em nosso pensamento sobre adaptação” (STAM, 2006, p. 21). Ele ainda ressalta que um filme enquanto “cópia”, pode ser original para as cópias subsequentes, é só observar as inspirações literárias que temos com o passar dos anos no mundo da sétima arte. “O “original” sempre se revela parcialmente “copiado” de algo anterior; A Odisseia remonta à história oral anônima, Don Quixote remonta aos romances de cavalaria, Robinson Crusoé remonta ao jornalismo de viagem, e assim segue ad infinitum”. (STAM, 2006, p. 22). Com o passar dos tempos, muitos romances foram grandes inspiradores para adaptações cinematográficas. Na década de 40, com a ascensão dos romances policiais, surge o gênero noir: um estilo de filme que se constitui basicamente de adaptações de romances e contos de revistas: as chamadas pulp magazine. Assim, esse trabalho vai permear pelas teorias do filósofo russo e outros teóricos que vão agregar conceitos que serão favoráveis ao estudo. No primeiro momento, será abordada toda a trajetória de Bakhtin sobre os estudos de linguagem e signos. Seguido de apontamentos sobre a noção de dialogismo e intertextualidade, junto com Kristeva. E para finalizar, a análise de quadros de três filmes que são objetos desse trabalho.

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Mikhail Bakhtin e seus estudos Mikhail Mikhailovitch Bakhtin nasceu em 16 de novembro de 1895, em Orel, pequena cidade ao sul de Moscou. Seu contato com diversidade de línguas começou na infância, quando viveu em cidades como Vilna e Odessa – áreas de grande diversidade linguística, grupos étnicos e classes sociais, o que lhe proporcionou a poliglossia, característica que marcou sua obra. Inicia seus estudos na Universidade de São Petersburgo, se formando em História e Filologia, momento em que apoiou a Revolução Russa de 1917. Torna-se professor em Nevel, onde forma um círculo de amigos pensadores e estudiosos que, mais tarde, serão conhecidos como “O Círculo de Bakhtin”. Entre os participantes temos Matvei Issaévitch Kagan, Valentin Nikolaévitch Voloshinov e Pável Nikolaévitch Medvedev. A vida de Bakhtin foi marcada por uma grave doença óssea que lhe causou a perda de uma das pernas, por um período de prisão por problemas com a igreja ortodoxa, por fases de desemprego e pelo final de sua vida como chefe do Departamento de Estudos Literários da Universidade de Mordóvia. E também, pelo exílio de grandes círculos acadêmicos. “Teve, no entanto, ao longo de sua vida, uma intensa atividade de reflexão e escrita, que fez dele um dos grandes pensadores do século XX” (FIORIN, p. 11, 2006). Segundo Fiorin, Bakhtin tem uma obra ampla e complexa. Primeiro por que seus textos seguiram duas vertentes: uma que vê a realidade como uma unidade e outra que considera a diversidade e o dialogismo. Situação 549

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esta, que fez com que muitos questionassem a autoria de seus textos entre os companheiros do “Círculo”. No Ocidente, torna-se conhecido em 1967, quando Júlia Kristeva publica uma apresentação na Revista Critique com o título: “Bakhtin, o discurso, o diálogo, o romance”. Inclusive, foi Kristeva que desenvolveu os primeiros estudos de Bakhtin sobre dialogismo, chegando ao termo intertextualidade. Mesmo com toda diversidade da obra do filósofo russo, Fiorin exemplifica que é possível identificar várias características do autor, entre elas o Bakhtin pós-modernista, o Bakhtin interacionista, o Bakhtin modernista e o Bakhtin linguista: o teórico da literatura. “No entanto, ele não produziu uma teoria acabada da linguagem e dos diferentes níveis da língua, nem uma teoria da literatura completa”. (FIORIN, p. 16, 2006). Foi a partir desse processo de estudo linguístico bakhtiniano que surge o conceito de dialogismo, ou seja, a noção de que a língua, em toda sua totalidade possui a propriedade de ser dialógica. Não somente em sua composição, mas também em como elas ocorrem filosoficamente. Em seus estudos sobre gêneros e discursos, Bakhtin mostra que os estudos sobre a língua não podem basear-se somente na relação de locutor e enunciado. Para ele, a multiplicidade de locutores não pode ser ignorada. “Às vezes a coletividade linguística é encarada como uma espécie de personalidade coletiva – o ‘espírito de um povo’, etc. – e é-lhe atribuída uma importância capital (na psicologia

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dos povos), mas a verdade é que, mesmo nesses casos, a multiplicidade dos locutores – os outros para cada determinado locutor – perde sua substância”. (BAKHTIN, p. 290, 2000).

Percebemos o tema central dos estudos sobre linguagem de Bakhtin: o eu e o outro. Segundo Stam, o eu, para Bakhtin, não é autônomo existindo somente em diálogos com outros eus. “O eu necessita da colaboração de outros para poder definir-se e ser “autor” de si mesmo” (STAM, pg. 17, 1992). Para Bakhtin, o eu humano, não existe se não passar pela convivência com o meio ambiente social que estimula a capacidade de reflexão, mudanças de estados e de respostas e estímulos. Em seus estudos sobre os eus autorais, Bakhtin compartilha de princípios marxistas quanto à tendência de alienação das sociedades capitalistas onde o receptor cessa o seu próprio poder de definição do pensar, gerando ideias de legitimadores culturais. Porém, ele se afasta desse pensamento quando passa a identificar nas análises de discurso uma visão mais comunitária da dialética social que como uma determinação econômica. O pesquisador russo identifica que o autor tem papel primordial e decisivo, não sendo uma figura estática, mas uma energia disponível em interação com outros personagens. “Trata-se, afinal, da relação entre o texto e todos os seus “outros”: o autor, o leitor e o intertexto” (STAM, p. 18, 1992). Assim, a existência de cada indivíduo está inter-relacionada com a sua experiência particular e a do outro, o que, segundo Bakhtin, seria uma 551

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relação dialógica entre eu e o outro gerando diversas dicotomias conceituais. O enunciado parte de uma única língua, porém que, também partilha de um plurilinguismo social e histórico. “Trata-se da língua do dia, da época, de um grupo social, de um gênero, de uma tendência, etc. É possível dar uma análise concreta e detalhada de qualquer enunciação, entendendo-a como unidade contraditória e tensa de duas tendências opostas da vida verbal”. (BAKHTIN, p. 82, 1993) É importante nesse momento ressaltar, o conceito de enunciado. Como já foi visto, todo enunciado é dialógico. Todo enunciado constitui-se de outro enunciado, que geraria outro enunciado, gerando uma cadeia dialógica de sentidos. Fiorin (2006, pg. 24), explica que em cada enunciado, ouve-se pelo menos duas vozes, mesmo que elas não se manifestem etimologicamente no discurso. Para ele, o enunciado é sempre heterogêneo, levando consigo sempre duas posições: aquela que lhe é nata e aquela que lhe é gerada. Todo texto possui relações de diálogo e dialética em seu caráter extralinguístico, em uma bipolaridade de cada texto, em um sistema compreensível ao consenso coletivo. “O texto como enunciado na comunicação verbal (na cadeia de textos) de uma dada esfera. O texto como mônada específica refrata (no limite) todos os textos de uma dada esfera. Interdependência do sentido (na medida em que realiza através do enunciado)”. (BAKHTIN, pg. 331, 2000). É a partir dessa contextualização que podemos definir o dialogismo como a relação necessária entre o um 552

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enunciado e outro. Não somente em relações explícitas como debate, polêmica e paródia, mas em afinidades mais sutis como o que deixou de ser dito e o que foi deduzido. Assim, chegamos ao conceito de intertextualidade, cunhada por Julia Kristeva.

Revendo a noção de intertextualidade A noção de intertexto diz respeito à incorporação de elementos de outros textos, podendo-se reconhecer tal atributo quando um autor constrói sua obra com referências verbais, imagens ou sons, a outras obras e autores (e até da sua própria), como uma forma de “complemento” ou de elaboração de novos sentidos. Laurent Jenny, em artigo na Revista Poétique 27, explica que a intertextualidade não só direciona a definição de um código, mas está explicitamente presente em relação ao conteúdo formal da obra. “Assim sucede em todos os textos que deixam transparecer a sua relação com outros textos: imitação, paródia, citação, montagem, plágio, etc.” (POÉTIQUE 27, Pg. 06). O conceito de intertextualidade surgiu com Julia Kristeva na década de 60, a partir de estudos e contribuições de Mikhail Bakhtin, filósofo russo, teórico da cultura e da linguagem humana. Com influência do marxismo, Bakhtin embutia em seus estudos de linguística, questões sociais e filosóficas calcadas do materialismo histórico. Os signos para Bakhtin tinham função ideológica

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e não somente estrutural. Ele propôs categorias teóricas diversas de relações entre os signos, como dialogismo, cronotopo, polifonia, campo, anunciação, entre outros. Antes, o termo dialogismo, expressão cunhada por Bakhtin na década de 1930, remetia à necessária relação entre qualquer texto e todos os demais textos. Segundo Stam, (2010, p. 225), “um enunciado, para Bakhtin, diz respeito a qualquer “complexo de signos”, de uma frase dita, um poema, uma canção, uma peça, até um filme”. Bakhtin defende que não existe estrutura narrativa totalmente pura ou imparcial, imune a algum tipo de influência. Todas as construções discursivas existentes têm a sua derivação, por mais singelas que sejam. “Os enunciados não são indiferentes entre si, nem se bastam cada um a si mesmo, uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros”, (BAKHTIN, 2003, p.297). “Para Julia Kristeva, que introduziu o termo intertextualidade a partir das contribuições de Bakhtin, o discurso é um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de várias escrituras, um cruzamento de citações.” (FIORIN, 2008. p. 51). Ela considera que uma narrativa é encontrada também em outras narrativas, podendo pertencer ou não à mesma natureza, o que podemos chamar de um processo intertextual. “O sentido do verossímil não tem mais objeto fora do discurso, a conexão objeto-linguagem não lhe diz respeito, a problemática do verdadeiro e do falso não tem nada a ver com ele. O sentido verossímil finge preocupar-se com a

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verdade objetiva; o que a preocupa efetivamente é sua relação com um discurso cujo é reconhecido, admirado e institucionalizado. O verossímil não conhece; não conhece senão o sentido que, para o verossímil não tem a necessidade de ser verdadeiro para ser autêntico (KRISTEVA, in BARTHES at all, 1972)

Jenny indica que a intertextualidade traz um problema “delicado” de identificação e levanta questões como: “A partir de que altura se pode falar de presença dum outro texto noutro, em termos de intertextualidade? Vamos tratar do mesmo modo a citação, o plágio, e a simples reminiscência” (POÉTIQUE, 1979, p. 12). Barros e Fiorin lembram que qualquer discurso, seja ele qual for, nunca é totalmente autônomo. “Suportado por toda uma intertextualidade, o discurso não é falado por uma única voz, mas por muitas vozes geradoras de muitos textos que se entrecruzam no tempo e no espaço, a tal ponto que se faz necessária toda uma escavação”. (BARROS E FIORIN, 1999, p.45). Ou seja, todo texto é absorção e transformação de outro texto. Stam ainda sustenta que a intertextualidade é um conceito teórico a ser estudado atenciosamente, principalmente à medida que um texto se relaciona com outros sistemas de representação: “Até mesmo para discutir a relação de uma obra com suas circunstâncias históricas, devemos situar o texto no interior do seu intertexto, para não relacionar tanto o texto com o intertexto a ou-

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tros sistemas de séries que constituem o seu contexto.” (STAM, 2010, p. 227). Vele atentar ao fato de que para Bakhtin (1995, p.41), um signo nunca surge de forma genuína. Sempre um signo provém de outro signo e geraria outro signo, formando uma cadeia infinita de relações signitárias. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É, portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais. Assim, acessamos a associação entre literatura de massa e o campo audiovisual da ficção midiática: “Transpondo tal noção para o domínio da ficção midiática, pode-se falar em intertextualidade quando uma narrativa torna claro o processo de assimilação dos procedimentos constitutivos de outra narrativa.” (BULHÕES, 2009, p. 128). Roman Jakobson foi o primeiro teórico a utilizar o termo tradução intersemiótica em texto que aborda aspectos linguísticos da tradução. Jakobson estabelece três tipos de tradução: a intralingual, a interlingual e a intersemiótica, sendo esta última definida por ele como “interpretação de signos verbais por meios de sistemas de signos não verbais” (JAKOBSON, 1968, p.65). Julio Plaza envolve-se analiticamente com a tradução intersemiótica, atuando na dinâmica que envolve diversas formas artísticas. No âmbito geral das artes, ele chama o fenômeno de “trânsito criativo”, delineando as próprias formas ao se transformar um discurso verbal em diversas formas artísticas, em que atuem interferências de tempo e espaço. “Os princípios normativos de uma 556

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forma estética impõem um comportamento a essa forma que afeta a sua configuração, ao mesmo em que essa ordem se reflete no interior de seu sistema” (2010, p.72). A importância de se analisar teoricamente adaptações cinematográficas demonstra a importância de relacionar teóricos como Julio Plaza e Bakhtin. Os sistemas de linguagem se relacionam como uma Tradução Intersemiótica de planos de expressões diferentes, como por exemplo, a obra literária e o cinema que constitui campos atraentes para estudos dos âmbitos intertextuais.

O noir literário e a intertextualidade O gênero noir tem sua origem a partir das narrativas literárias de investigação, com inspiração em detetives “clássicos” como Dupin, de Edgar Allan Poe, ou Sherlock Holmes, de Conan Doyle. No entanto, o que se tornaria conhecido como literatura noir, deixaria os clássicos padrões do protagonista para a permanência de um detetive mais profissional e refletindo a realidade da sociedade da época. Em 1938, Dashiell Hammett, lança o verdadeiro ícone da literatura noir, que mais tarde inspiraria diretamente outros romances, entre eles obras de Raymond Chandler, o detetive Sam Spade. Esse tipo de literatura popular não demoraria a chegar nas telas do cinema. Filmes passaram a ser produzidos sob sua inclinação direta, buscando refletir as marcas reconhecíveis daquelas histórias, quando não são diretamente adaptados de tais

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obras conhecidas como pulp fiction, levando à grande tela a encarnação de personagens já queridos do público. Na década de 40, ao final da Segunda Guerra Mundial, e com a abertura dos países envolvidos no conflito, essas películas chegam à França. A partir de então, essas obras passam a ser denominadas como filme noir pela primeira vez. Marcel Duhamel, em 1945, cria a Série Noire, onde publicavam histórias policiais de autores como Dashiell Hammet e Raymond Chandler, entre outros. “Film noir foi a expressão inventada pelos críticos franceses do período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial para designar um grupo de filmes criminais americanos, produzidos a partir dos anos 40, com certas particularidades temáticas e visuais que os distinguiam daqueles feitos antes da guerra”. (MATTOS, 2001, p. 11). É preciso perceber a mudança de paradigmas que o noir proporcionou à narrativa de enigma clássica. Basicamente, a literatura clássica de enigma foi criada por Edgar Allan Poe, com o seu detetive C. Auguste Dupin. Suas principais obras foram os contos “Assassinatos na Rua Morgue”, “O Mistério de Marie Roget” e “A Carta Roubada”. Influenciado pelo positivismo de August Comte, Dupin é uma máquina de raciocínio imune aos acontecimentos criminosos, pois, já na narrativa, não haverá perigos derivados do crime em questão. Dupin desvenda os maiores mistérios de dentro de sua casa, sentado em sua poltrona, somente com seus poderes incríveis no uso do pensamento lógico, cujos fatos são narrados por um fiel amigo-narrador, do qual nada sabemos, mas com o qual nos identificamos, já que, como 558

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nós, ignora os motivos do crime e não possuímos os incríveis dons de raciocínio de Dupin. Essa inclusão de um mesmo personagem em diferentes histórias sem ser uma sequência, como uma trilogia, por exemplo, também será uma das contribuições de Poe. Para Reimão (1983, p. 19), a própria invenção do gênero policial é, na verdade, consequência de uma nova concepção da literatura proposta por Poe; é essa concepção que fará com que o autor consiga imaginar uma novela policial, isto é, uma combinação de ficção não mais com o deixar-se tomar pela inspiração e pela fantasia, ou com o liberar potencial de criatividade, mas sim uma combinação de ficção com raciocínio e interferências lógicas. Então, surge outro personagem que conquistaria o gosto de leitores com extraordinário sucesso. O mais famoso dos detetives nasce da inspiração em Poe e passa a ser um verdadeiro ícone da literatura policial. Seu autor, Conan Doyle, leva Sherlock Holmes para quatro romances e cinco livros de contos que, anos depois, se traduziriam para o cinema com o ator Basil Rathbone, considerado por muitos o melhor intérprete do célebre detetive. Talvez Holmes seja um dos primeiros personagens adaptados para o cinema, e um dos que ganharam maior visibilidade mundial. Holmes e Dupin possuem características muito próximas, como se pode perceber numa leitura sumária das obras em que aparecem, as quais consolidariam o gênero, que passaria, com o tempo, a ser reconhecido como de narrativa “clássica” de enigma. Passado o início do século XX, chegada a 559

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década de 30, podemos observar uma mudança na literatura policial. Estando às vésperas da Segunda Guerra Mundial e da queda da Bolsa de Nova York em 1929, o mundo vive uma reviravolta em distintas áreas. E, ao nível das ideias, Reimão (p.55, 1983), destaca que, nesse período, estamos presenciando uma importância crescente da filosofia de Nietzsche, do vitalismo de Bergson, da psicanálise e os primórdios do Existencialismo, que engendram um clima natural que se opõe ao otimismo racionalista oriundo do Positivismo. Surge a Série Negra ou a Série Noire, criado por Dashiell Hammet, em especial com seu romance O Falcão Maltês. Seu detetive, Sam Spade, foge do perfil de Holmes ou Dupin. A educação, elegância, sutileza dos detetives da narrativa “clássica” de enigma dão lugar a um novo perfil. Spade é o primeiro investigador rude, vulgar, áspero, deselegante, para quem resolver casos criminais é uma fonte de renda. E vale lembrar que, ao contrário dos clássicos detetives, que decifravam racionalmente um crime que já aconteceu, na narrativa do noir outros assassinatos poderão ocorrer, até a última página. Não há seguranças ou garantias para o detetive, que se vê em teias num mundo da escória da grande cidade. E se o véu da suspeita se estende a todos, os supostos assassinos, a polícia ou sedutoras mulheres, o detetive deve agir também para proteger a própria pele.

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Análise da Narrativa Visual Segundo Reis e Lopes, o termo “narrativa” pode ser compreendido por diversas nuances: “enquanto enunciado, como conjunto de conteúdos apresentados por esse enunciado, como o ato de os relatar ou como a forma que nos interessa nesse trabalho “narrativa como modo (v.), termo de uma tríade de “universais” (lírica, narrativa e drama) que, desde a Antiguidade e não sem hesitações e oscilações, tem sido adotada por diversos teorizadores”. (REIS E LOPES, p. 66, 1998) Segundo Jullier e Maria (2009, p. 23) para o cinema, em suas formas mais habituais, a narrativa tem suas acepções intimamente ligadas a forma em que a câmera coloca o telespectador como testemunha, proporcionando ponto de vista imparcial, invisível ou privilegiada. Para nós, o importante é salientar que a narrativa do cinema também segue a mesma linha da narrativa textual e aplicada no audiovisual. Isso influencia diretamente a linguagem cinematográfica que convertida em estética ganha forma e uma narrativa também visual. Esse capítulo vai fazer algumas análises estilísticas de quadros dos filmes Bellini e a Esfinge, O Falcão Maltês e À Beira do Abismo, sendo os dois últimos clássicos do gênero noir. Aqui, não vamos nos ater aos parâmetros sobre as relações entre as versões de romance e filme dos nossos objetos. Mesmo trabalhando com filmes que são adaptações literárias, o nosso objetivo é mostrar as relações intertextuais existentes nas obras cinematográficas e 561

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buscar verificar se há nesse processo manifestações intertextuais também entre os meios livro e cinema. Os quadros abaixo são dos filmes Bellini e a Esfinge e O Falcão Maltês. Ambos mostram uma proximidade de mise-en-scène na composição de um dos cenários mais importantes do gênero noir: o escritório do detetive. Os quadros possuem a mesma composição visual dos elementos presentes. É possível observar a presença de linhas delimitando a profundidade de campo, priorizando a localização das personagens da cena. A profundidade de campo proporciona maior significação narrativa da trama, o que é proporcionada pela relação com a luz. “Em uma concepção clássica do cinema ligando o fundo à forma, a profundidade de campo fraca permite representar um personagem perdido em seus pensamentos, ou que deixe de prestar atenção no que se passa a sua volta”. (LULLIER E MARIE, 2009, p. 31). Nesse caso, a profundidade exprime a seriedade e tensão do momento. Em ambos casos é o primeiro encontro do detetive com personagens secundários da história. No gênero noir, a profundidade de campo é um fator importante, pois, para consegui-lo é preciso algumas observações técnica: quanto maior a quantidade de luz que cai sobre a cena, mais fácil obter grande profundidade de campo. No noir, o jogo de luz é imprescindível para o contraste entre o branco e o preto tão característico. Nos quadros abaixo, podemos perceber o contraste da luz muito presente e favorecendo a profundidade de forma incisiva.

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Bellini e a Esfinge, 2001. Direção: Roberto Santucci

O Falcão Maltês, 1941. Direção: John Huston

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Não podemos falar de noir, sem citarmos a questão da iluminação. Em todos os filmes do gênero podemos observar o uso intensivo da luz para os contrastes de cores, acentuando os efeitos e sombras. Nos quadros já comentados e nos quadros abaixo é possível perceber o quanto esse recurso é utilizado com maestria. O jogo de luz e sombra do estilo é o grande protagonista desse gênero no cinema. É com a iluminação que conseguimos transpor para a tela a dramaticidade dos romances, assim como a tensão entre personagens que é possível perceber nos textos. A primeira imagem é uma reprodução de À Beira do Abismo, no filme, o detetive Philip Malowe é tomado pelo único feixe de luz do quadro, refletindo em sombras no fundo que mostram a obscuridade do local. Já em O Falcão Maltês, o uso da luz, além do clima de tensão que proporciona, o elemento sombra nos traz uma percepção de uma nova narrativa através da sombra de prédios da cidade que está ao lado de fora do escritório de Sam Spade. Entre essas duas obras, por pertencerem a um mesmo período histórico e, também, por terem o mesmo protagonista a identificação de cada título. Os elementos estilísticos são muito próximos. Vale lembrar que os dois filmes são adaptações de grandes autores da literatura investigativa. O Falcão Maltês, obra de Dashiell Hammett e À Beira do Abismo, de Raymond Chandler, sendo que esse último teve clara influência do primeiro escritor. 564

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Através de uma relação intertextual, podemos ver que em Bellini e a Esfinge, o uso da luminosidade é elevado ao grau máximo do suspense noir. Nesse quadro, a luz é tão contrastante que não é possível observar com nitidez o nosso detetive, que deixa claro somente a sua silhueta. Esse contraste todo só é possível pela proporção de luz que existe no elemento túnel atrás da imagem de Bellini, o que indica o que foi dito acima, sobre a intensidade luminosa para o efeito de profundidade de campo. É importante perceber que a mesma sensação de tensão que temos nos filmes tradicionais do gênero, retratada através do uso da luminosidade, também acontece em Bellini e a Esfinge.

À Beira do Abismo, 1946. Direção: Howard Hawks

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O Falcão Maltês, 1941. Direção: John Huston

Bellini e a Esfinge, 2001. Direção: Roberto Santucci

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Conclusão Nesse trabalho pudemos obervar que Bellini e a Esfinge tem ligações estéticas vinculadas ao gênero noir tradicional das décadas de 40 e 50. Isso foi possível mostrar através da teoria da intertextualidade de Mikhail Bakhtin e Julia Kristeva. Pudemos ver que a relação entre signos acontece através de uma dependência de significações, onde no cinema é possível dizer que encenação de situações discursivas. Bakhtin mostra grande diversidade de gêneros discursivos, como os orais, escritos e audiovisuais. Para ele, os gêneros primários de discurso (ações de convivência do dia a dia) se relacionam com a sua mediação secundária – a cinematográfica. Como o dialogismo se refere à relação entre o texto e os seus outros. Embora a sua definição seja interpessoal, ela também se aplica às relações entre língua, linguagem, signos, estilos e gêneros. E foi o que vimos nessa pesquisa: uma relação dialógica presente nos quadros dos filmes Bellini e a Esfinge, O Falcão Maltês e À Beira do Abismo. Através das referências intertextuais dos quadros analisados entre os três filmes desse trabalho, localizamos influências visuais estilísticas entre eles. O que nos comprovou que Tonny Belloto e Roberto Santucci foram buscar nas raízes do noir elementos para abrilhantar Bellini e a Esfinge. Através das duas concepções de profundidade de campo e iluminação foi possível fazer essa comprovação. Bellini não só é um detetive com características narrativas muito próximas de detetives da narrativa c­ lássica 567

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de investigação como Sam Spade e Philip Marlowe, como também, explora alguns elementos como o excesso de bebida, sagacidade e a sedução com as personagens Femmes Fatales do noir. É importante acrescentar que o gênero noir é propício para sua análise através dos conceitos sobre intertextualidade devido a sua origem. Podemos afirmar que o gênero nasce a partir das influências estilísticas da literatura policial, desde Sir Conan Doyle. Além disso, a partir das histórias publicadas nas chamadas pulp magazine surgiram filmes adaptados para a grande tela do cinema, iniciar com a literatura de Dashiell Hammet e o seu O Falcão Maltês. Sendo assim, a comprovação intertextual presente mostra que essa é uma teoria propícia para análises de materiais audiovisuais, em especial em adaptações cinematográficas que mostram as relações entrelaçadas nas vertentes entre literatura x cinema e cinema x literatura.

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Capítulo 19 1 Seriados fora do fluxo: possibilidades e recursos narrativos na criação de ficções seriadas televisivas distribuídas por serviços sob demanda Octavio Nascimento Neto1

A ficção seriada se destaca como formato televisivo. O sucesso e apelo das ficções seriadas audiovisuais podem ser atribuídos a muitos fatores característicos do seu formato e conteúdo. Um fator vital relacionado diretamente tanto ao formato quanto ao conteúdo é a estrutura narrativa. Não se pode deixar de observar que dentro do conjunto de formatos televisivos a ficção seriada se revela a de maior proximidade com o cinema, como afirma Cannito (2009): “É devido à constante comparação entre a linguagem do cinema e da TV que a ficção em televisão é considerada o gênero mais nobre da telinha e costuma ser o mais debatido” (p. 17). Esse formato pode apresentar os mais diferenciados gêneros, de suspense a romance, drama a comédia, além 1. E-mail: [email protected] 571

de policial, terror, aventura, fantasia e diversos outros, assim como visto no cinema. Os personagens de uma série são sempre muito bem definidos desde o primeiro capítulo. Grande parte do sucesso do seriado depende de o espectador criar empatia por esses personagens e querer acompanhar as suas trajetórias, afinal, estender-se-ão vários episódios em torno deles. O desenvolvimento de uma planejada disposição do enredo de acordo com o caráter episódico é essencial para garantir que a produção seja bem-sucedida. Relacionado a essa questão está a frequência de acompanhamento destes fragmentos por parte do público. De acordo com Médola: Os episódios apresentam em sua estrutura tanto as características dos unitários, quanto a de capítulos de minisséries e telenovelas. Ocorre que o discurso teleológico do unitário, com começo meio e fim, restringe-se ao episódio, mas enquanto série, essa só pode ser percebida no conjunto dos episódios, adquirindo dessa forma ‘nuances’ de capítulo que se pauta pela continuidade. (MÉDOLA, 2004, p. 2)

As principais séries de maior sucesso de público são as produzidas pelos Estados Unidos, que adotaram o modelo de exibição semanal de episódios. Estes seriados foram se espalhando para vários países pela compra do conteúdo para exibição em emissoras locais. Geralmente esses conteúdos são feitos com o planejamento

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de uma temporada completa, mas com final em aberto. O futuro deles depende do público. Quando sucesso de audiência ou crítica, a emissora renova para uma nova temporada no ano seguinte. É comum a história continuar até que não esteja mais trazendo o retorno esperado pela emissora e, então, é cancelado, dando um final a narrativa ou não. Há séries como Law & Order, no ar desde 1990, que de tanto sucesso gerou três outras séries: Law & Order: Special Victims Unit, Law & Order: Criminal Intent e Law & Order: Trial by Jury. E, por outro, lado, existem séries como Terra Nova (2011), produzida por Steven Spielberg, importante nome no universo cinematográfico, mas que não foi o suficiente para manter o seriado no ar. Os baixos índices de audiência fizeram a série ser cancelada ao final de sua primeira temporada - para tristeza dos fãs que acompanharam a história ficou sem um desfecho. Sobre as características do formato seriado televisivo, Machado (2000) distingue em três diferentes tipos. Primeiro, o mais comum, aqueles em que há uma única narrativa, ou várias entrelaçadas, que vão se desenvolvendo ao longo dos episódios, um conflito base é explorado do começo ao fim da série. Séries como Lost e Twin Peaks se encaixam nesse modelo. Sobre esse tipo de seriado, Machado explica que: [...] se resume fundamentalmente num (ou mais) conflito(s) básico(s), que estabelece logo de início um desequilíbrio estrutural, e toda evolução posterior dos acontecimentos consiste num

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empenho em restabelecer o equilíbrio perdido, objetivo que, em geral, só se atinge nos capítulos finais” (MACHADO, 2000, p. 84)

O segundo tipo de série é aquele em que cada episódio é autônomo, tem começo meio e fim. Os personagens são os mesmos e o formato do episódio se repete. Como se tivesse uma forma base e o que muda são apenas as variantes. Nesse tipo podemos enquadram séries como CSI e Law and Order, por exemplo. Já o terceiro tipo, além de histórias diferentes por capítulos, ele apresenta também personagens diferentes, atores, cenários, tudo diferente. O que se mantém ao longo da temporada são os estilos das histórias. Nesse tipo encontra-se mais exemplos em terror e comédias, com diferentes contos a cada episódio. Exemplos: The Outer Limits e Comédia da Vida Privada. Claro que essa divisão feita por Machado (2000) é mais um guia, algumas séries não se enquadram perfeitamente em nenhum desses três. E ainda, há algumas outras que pode considerar um misto de dois desses tipos. Levando em consideração o primeiro tipo de série, o espectador precisa acompanhar o seriado por meses, ou até anos para que veja por completo o desenvolver da narrativa, episódio após episódio e temporada após temporada, até chegar ao fim. Outra característica importante dos seriados é a estrutura de seu formato na televisão: Uma emissão diária de um determinado programa é normalmente constituída por um conjunto

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de blocos, mas ela própria também é um segmento de uma totalidade maior – o programa como um todo – que se espalha ao longo de meses, anos, em alguns casos até décadas, sob a forma de edições diárias, semanais ou mensais. Chamamos de serialidade essa apresentação descontínua e fragmentada do sintagma televisual. (MACHADO, 2000, p. 83)

Esta continuidade que pauta a estrutura tanto do episódio quanto da temporada assume então um papel fundamental na produção de sentido da série, e é, deste modo, fator considerado na criação e estruturação da história. O público deve ser constantemente instigado para que siga a programação da exibição dos episódios. É objetivo dos produtores e roteiristas que o espectador daquela série considere importante acompanhar cada um dos episódios e não perder o desenrolar da história. Deste modo, a distribuição e veiculação tornam-se importantes na própria construção narrativa. Assim, esse trabalho pretende revisar as características do meio televisivo frente aos recentes processos comunicacionais e averiguar as alterações na concepção das narrativas seriadas.

As características da TV em fluxo Para entender esse novo modo de veiculação dos seriados é necessário compreender como eles são transmitidos em fluxo na TV. A televisão segue uma programação. O espectador tem opção de ligar/desligar e

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mudar os canais, mas dentro dos canais ele está sujeito à programação da emissora. Para que o espectador tenha um conhecimento prévio da programação foi estruturado uma grade de programação (CANNITO, 2009). Essa grade tem dois sentidos: vertical (diário) e horizontal (semanal). O autor discute a relevância dessa grade de programação na hora de determinar qual conteúdo televisivo se enquadra melhor com cada tipo de audiência, ou seja, levando em conta o público em cada horário e determinar os formatos que esse público tem preferência: A organização da grade dialoga diretamente com a temporalidade padrão de cada povo. O padrão é dividir por turnos: manhã para crianças e donas-de-casa, tarde para público jovem, novela das seis ainda para dona-de-casa e novela das oito para o público em geral. Isso é o padrão. Mas outra estratégia comum de contra-programação é colocar programas para públicos diferenciados em horários inusitados, preenchendo uma demanda de audiência e conquistando parte do público. (CANNITO, 2009, p. 27)

Desse modo, o espectador, mesmo sem ter participação ativa na programação pode prever o tipo de conteúdo que estará sendo exibido naquele momento. O fluxo televisivo traz um comprometimento por parte do público, porque ele precisa se manter na rotina estabelecida pela emissora para acompanhar o seu seriado. Portanto, acompanhar uma série que tem seu episódio inédito transmitido às terças oito horas da 576

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noite significa manter-se em casa sempre nesse horário para não perder a transmissão. Como diz Cannito, “Trata-se de um “eterno ao vivo”, ainda que o “ao vivo” tenha sido gravado previamente”. Por estar inserido nesse fluxo televisivo, os seriados adquiriram algumas características desse modelo de transmissão. O modelo de televisão divide sua programação em diferentes programas e por sua vez são divididos em blocos, esses blocos são separados por um intervalo comercial. Nesse intervalo anunciantes expõem seus produtos. Esse é o modelo tradicional que sustenta a TV comercial. Por esse motivo criou-se uma estratégia com intenção de segurar a audiência da emissora durante o intervalo comercial: os seriados posicionam aos finais dos blocos e episódios os ganchos da narrativa - a história é cortada no meio de uma cena e não no final dela. Dessa forma, o público, curioso para ver como termina aquela sequência se mantém na emissora para não perder nenhum segundo do episódio quando voltar do comercial. Esses ganchos são feitos, geralmente, em cenas importantes do episódio, ou pelo menos, cenas que pareçam importantes. O final dos episódios, por sua vez, também se estrutura com importante gancho para o próximo episódio, a fim de garantir que o público fique curioso e se mantenha atento à programação para não perder o início desse próximo capítulo. Além dos ganchos, outra importante ferramenta criada para manter o público fã da série e atento ao fluxo foi a recapitulação no início dos episódios. Pensando que ao longo das semanas o público pode esquecer 577

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detalhes importantes da narrativa, os seriados adquiriram um modelo de colocar um resumo no começo dos capítulos, que apresenta as cenas necessárias para que os telespectadores relembrem os pontos relevantes para que o episódio a seguir seja compreendido. Essa recapitulação acabou servindo também como ferramenta de atualização da narrativa para aqueles que perderam algum capítulo ao longo da temporada. Para não perder o público que depende dessa rotina e serialidade para acompanhar o fluxo, algumas emissoras criaram um esquema de reprises desses conteúdos, mas ainda assim o espectador depende de uma programação imposta, em que muitas vezes, não corresponde com seus horários disponíveis para o entretenimento. O advento do videocassete foi um ótimo aliado do telespectador, dando a ele o controle de gravar e assistir no momento que escolhesse a sua programação. Com um outro aparelho conectado à televisão foi possível o arquivamento pessoal dos conteúdos televisivos de maneira programada para ser assistido em qualquer horário do dia. O espectador conquistou a possibilidade de mesmo sem disponibilidade de ver TV nos horários de seus programas preferidos, poder deixar o videocassete programado para gravação e depois ter posse desse material, sem mais depender da transmissão da emissora. Depois do vídeo cassete, o público contou com outras maneiras, através da tecnologia, de gravar e assistir aos programas fora do fluxo.

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TV sob demanda Na última década, com a difusão da internet banda larga, a televisão vem se transformando com a chegada de novos serviços e produtos. A avanço tecnológico trouxe a multiplicação e mobilidade de telas (computadores, tablets e smartphones) e o avanço da internet móvel. Essas mudanças proporcionaram a distribuição e disseminação de vídeos on demand (em português, vídeos sob demanda). Sobre essa modalidade de distribuição de conteúdos audiovisuais, Machado aponta que: [...] se pode ver o que se quer, em qualquer horário, a partir de um menu de possibilidades, pagando especificamente por aquele conteúdo acessado (modalidade muito utilizada nos dispositivos móveis, através de download, mas também nos serviços de cabo). (MACHADO, 2011, p. 88)

Antes de prosseguir, faz-se necessário pensar também nas práticas de consumo do conteúdo televisivo por parte do público. Um dos papéis da TV é fazer companhia para o espectador: ela está ligada durante o jantar em família, nas noites de insônia, na manhã enquanto se faz os afazeres da casa, o jornal durante o almoço, e assim por diante. O espectador passa a ter um relacionamento muito diferente com o conteúdo audiovisual se compararmos com o cinema, por exemplo. Em sua maior parte, a TV não exige do telespectador 100% de sua atenção, então ela passa a ser companhia enquanto realiza outras ações.

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Fechine (2014) considera dois modos de “ver TV”, um realizado de forma secundária e o outro de forma primária. O primeiro pensando em uma TV ligada como companhia, e o segundo modo seria com toda a atenção no seu conteúdo. Para a autora: No regime da “olhadela”, o espectador apenas “acompanha” a televisão, muitas vezes enquanto realiza outras atividades, dedicando-lhe uma atenção intermitente ou esporádica. Nesse caso, a TV é tão somente uma atividade secundária, que sugere agora uma investigação da nossa própria relação com o fluxo contínuo da sua programação. No regime do “olhar”, ao contrário, o espectador é absorvido pelo que vê na TV, conferindo uma grande atenção àquilo que está sendo transmitido. Agora, assistir à TV é uma atividade primária, que nos permite, a partir de uma pressuposta relação do espectador com programas específicos, analisar os efeitos de sentido por estes produzidos. (FECHINE, 2014, p. 117)

Na TV sob demanda, o telespectador se torna um “interator”, porque ele define a programação e tem possibilidade de assistir quando e onde quiser, e ainda pausar a transmissão caso precise, perdendo a característica de “passivo”. Segundo Machado, A atual evolução da televisão caminha em duas direções diferentes e aparentemente contraditórias, pressupondo duas modalidades de espectadores, munidos dos mais variados equipamentos 580

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de acesso. De um lado, parte da audiência prefere permanecer “passiva”, cumprindo o seu papel de espectador na sua sala de estar, sobretudo diante da atual e farta oferta de material audiovisual. De outro lado, o surgimento no cenário audiovisual de novos protagonistas, os interatores, está forçando mudanças cada vez mais radicais em direção a modelos de conteúdos que possam ser buscados a qualquer momento, em qualquer lugar, fruídos da maneira como cada um quiser e abertos à intervenção ativa dos participantes. (MACHADO, 2011, p. 87 e 88)

Pode-se concluir então, que o conteúdo sob demanda em sua maior parte é visto de maneira a contemplar o “regime do olhar” e não o da “olhadela”. O desenvolvimento e barateamento de uma banda larga mais rápida, o uso de tecnologias de compressão de vídeo e o surgimento de serviços variados de vídeo online, em destaque o YouTube em 2005, fizeram com que os usuários usassem cada vez mais a internet como um espaço para o consumo de vídeo. O YouTube é um site que permite que seus usuários carreguem e compartilhem vídeos em formato digital. Hospeda uma grande variedade de filmes, videoclipes e materiais caseiros. Em 2011 a estimativa era que a cada minuto eram enviados 48 horas de vídeos para o servidor do YouTube2. Sobre 2. Dados retirados do tecmundo.com.br. Disponível em: . Acesso em: 07 jun. 2015.

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essas novas práticas de consumo audiovisual, Machado ressalta que: Hoje, com o crescimento da disponibilidade de canais on demand, da autoprogramação e dos dispositivos de busca na internet, parte cada vez mais expressiva da audiência está se deslocando para além do nicho, em direção a formas de recepção (ou participação) individualizadas. Com a crescente convergência das telecomunicações com a internet e inúmeras alternativas de recepção (celulares, televisores portáteis, dispositivos para automóveis, players multiuso tipo IPod etc.), tanto a indústria, quanto os provedores de conteúdos estão se defrontando com níveis de complexidade, dinâmicas de mudança e pressões para inovar jamais experimentados em tempos anteriores (MACHADO, 2011, p. 87)

O surgimento desses novos modelos de distribuição modifica também a maneira de assistir a um produto audiovisual. O espectador agora não depende da programação da emissora, nem da espera pelo próximo episódio de seu seriado. Agora o usuário decide como assiste e pode até mesmo assistir mais de um episódio em seguida, ou até mesmo a temporada toda no mesmo dia. Essa novidade altera a serialidade do conteúdo, e, portanto, influencia a estrutura narrativa dos episódios da série, tornando possível modificações nos modos de produção do conteúdo. Quais são as mudanças na concepção narrativa dos seriados televisuais quando a recepção muda de fluxo para on demand?

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A Netflix Fundado em 1997 como uma locadora de filmes online no Vale do Silício, a Netflix chegou ao mercado americano como uma opção àqueles que não queriam sair de casa para alugar DVDs. Os títulos eram escolhidos através do site e o locador os recebia via correio. Cerca de dois anos depois, a empresa lançou o modelo de assinatura mensal, ou seja, todos os clientes tinham um valor fixo para pagar por mês e podiam locar uma quantidade determinada de DVDs simultaneamente e assim que devolvessem podiam locar mais. Sem multas e sem atrasos, além da comodidade de fazer tudo sem sair de casa, a empresa foi crescendo cada vez mais. Em 2007, surgiu o serviço que reinventaria a empresa: a capacidade de o assinante assistir cerca de 1.000 filmes e episódios de seriados através do computador. Com a promissora forma de exibição de vídeo o VoD (video on demand) já disseminada pelo YouTube em 2005, a Netflix ganha novos objetivos de mercado. Segundo a página oficial do Netflix Brasil no Facebook3, são cerca de 57 milhões de assinantes em quase 50 países, assistindo a mais de dois bilhões de horas de conteúdo ao mês em praticamente qualquer tela, e pagando um valor fixo de aproximadamente R$ 20,00. Ainda em sua página, a empresa destaca as vantagens para o assinante: O assinante Netflix pode assistir a quantos filmes e séries quiser, quando e onde quiser, em pratica3. Disponível em: . Acesso em: 07 jun. 2015.

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mente qualquer tela com conexão à Internet. O assinante pode assistir, pausar e voltar a assistir a um título sem comerciais e sem compromisso4.

Antes do VoD o modelo já consagrado de compartilhamento de arquivos online era o modelo peer-to-peer através do BitTorrent para baixar vídeos, músicas, imagens e softwares, sendo que 99% desses arquivos digitais disponíveis são piratas. Mesmo no YouTube, o compartilhamento é feito através dos próprios usuários sem a intermediação dos detentores dos direitos autorais das obras audiovisuais. Ou seja, o conteúdo consumido através da internet em sua maioria era de forma ilegal. Depois de consolidada como serviço legal de transmissão online sob demanda e conquistado público em diversos países, os seus idealizadores acreditavam que a empresa podia ir além. Pensando no universo dos seriados de TV e com a preocupação na insatisfação dos fãs com a espera da programação das emissoras de TV (fluxo), Reed Hasting, um dos fundadores e atual CEO da empresa, rumou a Netflix na direção da produção de conteúdo próprio. Com objetivo de liberar os fãs dessa espera semana após semana, entre os episódios. Em 2011 a Netflix iniciou sua produção de conteúdo. Com parcerias com outros estúdios e produtoras, no final do ano a empresa lançou duas temporadas de Lilyhammer, seu primeiro seriado. E ainda no mesmo ano, depois 4. Disponível em: . Acesso em: 07 jun. 2015.

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de adquirir o direito de continuar a série cancelada Arrested Development, anteriormente da Fox, lançou a quarta temporada completa. Em fevereiro de 2013, a Netflix lançou de uma só vez todos os 13 episódios da primeira temporada da série House of Cards, um drama político criado por Beau Willimon e produzido por David Finch, uma adaptação do romance homônimo escrito por Michael Dobbs. A série já colocou um marco na história ao receber 14 indicações nos prêmios Emmy da televisão norte-americana e vencer em três categorias: melhor diretor, elenco e fotografia. Tornando-se a primeira série produzida exclusivamente para uma plataforma online a alcançar este feito, todas as outras concorrentes eram produzidas e exibidas por emissoras em fluxo. Esse destaque na premiação (Emmy), sua audiência e o sucesso de críticas consolidaram o modelo de produção e exibição da empresa. A partir de House of Cards a Netflix continuou na produção de conteúdo próprio. Se em 2013 foram 4 séries lançadas pelo canal online, nos 6 primeiros meses de 2015 já foram 6 séries, todas com as temporadas disponibilizadas na integra. O serviço ainda disponibiliza em seu catálogo séries em parceria com emissoras, que são lançadas semanalmente.

O Binge Whatching Binge whatching é uma expressão comum para os norte-americanos. Também usada como binge viewing, em

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uma tradução livre significa “assistir até se entupir”. Ou seja, seria a prática conhecida no Brasil como maratonas. Consiste em um espectador assistir a vários episódios em sequência, acompanhar a mesma série até se cansar. No Brasil, alguns canais de TV por assinatura já apresentavam essa possibilidade. Depois de já exibidos os episódios inéditos de forma semanal, ao fim da temporada ou início de uma nova, algumas emissoras exibem em maratonas vários episódios, muitas vezes a temporada inteira. A prática do binge whatching já é contemplada, mas ainda de forma a seguir o fluxo e não por opção do telespectador. Defendendo a prática das maratonas, o professor Robert Thompson da Syracuse University, afirma que: Eu acho que com esses novos seriados, de alta qualidade, alto nível novelístico, o melhor jeito de assistir é por binge watching. Eu acho que a opção ideal para assistir BreakingBad, The Wire, Homeland ou Dexter é da mesma forma que você leria um romance – e você não leria um único capítulo de Moby Dick por semana.5 6

Lançar todos os episódios de uma única vez foi a tática utilizada pela Netflix para alimentar esse fenômeno que 5. Entrevista do professor Robert Thompson da Syracuse University. Disponível em: . Acesso em: 07 jun. 2015. 6. Tradução feita pelo autor 586

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ela mesma ajudou a criar. Apesar de já visto de forma parecida antes através das maratonas das emissoras ou com a locação ou compra de DVDs das séries. Com a Netflix a configuração muda: nesse momento o binge whatching é feito com episódios inéditos, eles são lançados todos no mesmo instante, dando ao fã a possibilidade de assistir a temporada completa no dia da estreia.

O Seriado fora do fluxo Apesar de não depender mais da serialidade no fluxo, o formato continua sendo chamado ficção seriada. A estrutura continua sendo dividida por episódios que por sua vez são divididos em temporadas. Verifica-se, no entanto, que esse novo modelo de transmissão e hábito de consumo muda também a maneira de se roteirizar e produzir esses conteúdos. Então o que mudou com a Netflix? Sobre algumas possibilidades de mudanças na produção desses conteúdos: [...]o binge watching elimina a necessidade de algumas ferramentas como a recapitulação, a uniformidade de duração dos episódios e oferece a chance de uma mudança significativa na narrativa afastando ainda mais a barreira entre televisão e cinema. (KULESKA e BIBBO, 2013, p. 47).

Comparando o seriado apresentado no fluxo com o seriado “liberado” completo pela Netflix pode-se notar 587

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algumas diferenças pensando em hábito de consumo e produção de conteúdo. O binge whatching proporciona ao telespectador a possibilidade de assistir tudo de uma só vez, além da possibilidade de pausar e/ou voltar a exibição quando quiser ou precisar. O espectador não fica preso à espera semanal do próximo episódio. Ele é quem decide quando vai continuar assistindo, além de não perder qualquer diálogo ou informação, por poder pausar quando precisar de um tempo. Por não se estender ao longo de meses, a narrativa não sofre com o esquecimento de informações, porque, mesmo com a técnica da recapitulação no começo dos episódios, nunca é possível fazer o telespectador relembrar todas as informações, ou ainda se atualizar a respeito de um episódio perdido. Esse último caso então, não existe mais. Não existe episódio perdido. Com a exibição on demand, o espectador na posição de “interator” não está mais sujeito ao fluxo, não perde mais nenhum capitulo dos programas que acompanha. Ele escolhe quando assistir, e o desenrolar da narrativa depende da sua própria rotina e não da grade de programação da emissora. Sobre essas novas práticas, Scholari aponta que: A chegada de novas telas, a difusão lenta, mas constante, de televisão em dispositivos móveis ou a televisão peer-to-peer, que promovem sistemas colaborativos como YouTube, também acabam gerando novas práticas de produção e consumo. (SCHOLARI, 2014, p. 43)

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Todos esses novos recursos disponibilizados ao espectador ampliam as possibilidades para os roteiristas e produtores. O desenvolver das trajetórias dos personagens pode acontecer de forma mais ágil e ao mesmo tempo atingir novos horizontes. Os novos seriados podem desenvolver narrativas mais complexas, e, por se estenderem por mais tempo que o cinema, podem até mesmo criar histórias ainda mais detalhadas e mais personagens complexos. Para entender a nova configuração na produção de sentido desses formatos, recorre-se a Scholari em seu texto “This Is The End: As Intermináveis discussões sobre o fim da Televisão” (2014). Entende-se como a TV avançou no desenvolvimento dos conteúdos, criando o que ele chamou de “hipertelevisão”. O conceito hipertelevisão refere-se ao momento atual da televisão, inserida nesse contexto de novas mídias e multitelas. No texto original do autor, as ideias e análises desse conceito são feitas observando a TV em fluxo em geral. Neste trabalho iremos no apropriar das características observadas por Scholari específicas para o formato ficção seriada e que também equivalem para o conteúdo sob demanda. Para entender melhor o que significa essa mudança de fase da TV e o papel dos seriados nela, segue uma lista das características dos seriados na fase da “hipertelevisão”, de acordo com Scholari. Primeiramente destaca-se a multiplicação de programas narrativos. Atualmente, percebe-se que os seriados apresentam mais personagens principais e todos eles com trajetórias complexas. O desenrolar das tramas 589

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apresentam complexas redes de interação entre os personagens. Algumas vezes nota-se vários núcleos de personagens, chegando até a ter pouca relação entre eles. Outra característica importante é o ritmo das histórias. O desenvolver da trama acontece de maneira mais dinâmica, sem subestimar o telespectador. Acontecimentos que levavam vários episódios ou até mesmo uma temporada completa, agora revela-se em um único episódio - dessa forma, torna-se possível contar histórias mais complexas e/ou mais extensas. Outra diferença na “hipertelevisão” é o uso de montagens não sequenciais. A narrativa começa a apostar em técnicas usadas antes mais frequentemente no cinema, como flashbacks e flashfowards. Muitas vezes o mistério da trama depende dessa configuração de montagem audiovisual. Essas três características já convencem que assistir a essa nova televisão através do regime da olhadela não está mais em cogitação. Esses conteúdos dependem de atenção e serialidade, perder um ou mais episódios representa agora se perder na trama. As adaptações literárias de séries de livros tornaram-se mais frequentes. A possibilidade de estender-se por anos e contar histórias de maneira concisa e dinâmica atraiu produtores e roteiristas. Pensado nessas novas práticas geradas pelo binge whatching e pela TV on demand, precisa-se olhar para esse novo modelo de televisão com olhos críticos, e investigar como essa nova prática de assistir TV pode se tornar a vilã da experiência compartilhada pelos fãs. “Eu sinto falta de ver as pessoas na mesma página. Eu sinto mesmo falta de poder entrar na internet e discutir [sobre o 590

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episódio passado] no dia seguinte”, falou de Jenji Kohan, criadora de um dos primeiros sucessos a experimentar o modelo Netflix, Orange Is the New Black, em entrevista7. Mesmo os criadores das séries do Netflix, e mesmo com o sucesso que elas têm feito nota-se que os próprios idealizadores lamentam a perda desse universo criado pelos fãs no mundo digital. Para entender melhor essa realidade - a importância desse diálogo entre os telespectadores -, recorre-se a Henry Jenkins, em seu livro Cultura da Convergência: Por convergência refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplos suportes midiáticos, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam. (JENKINS, 2009, p. 29)

Jenkins fala sobre convergência midiática, inteligência coletiva e cultura participativa. Inteligência coletiva refere-se à nova forma de consumo, que se tornou um processo conjunto e pode ser considerada uma nova fonte de poder. A expressão “cultura participativa”, por sua vez, serve para caracterizar o comportamento do consumidor midiático contemporâneo, cada vez mais distante

7. Entrevista retirada do site adorocinema.com. Disponível em: Acesso em: 7 de jun. 2015. 591

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da condição receptor passivo. São pessoas que interagem com um sistema complexo de regras, criado para ser dominado de forma coletiva. Sobre os novos modelos de fruição de conteúdo televisivo, o autor aponta: A TV do futuro, vista a partir do momento atual, talvez seja irreconhecível [...] No nível mais simples, as audiências irão organizar e reorganizar o conteúdo do jeito que quiserem. Irão acrescentar comentários aos programas, votar neles e, de maneira geral, mexer neles. Mas, em outro nível, as próprias audiências irão querer criar os fluxos de vídeo do zero, com ou sem nossa ajuda. (JENKINS, 2009, p.324 e 325)

De acordo com os tópicos tratados por Jenkins, é nítido as alterações das condições da TV on demand. Observa-se que agora os fãs esperam até acabar toda a temporada para poderem buscar informações extras, ou discutir sobre determinadas cenas, ou ainda para expor sua própria opinião sobre os acontecimentos. Essa espera para acabar a temporada se deve à preocupação com acabar descobrindo elementos do enredo que ainda estão por acontecer enquanto se busca falar ou ler sobre os episódios que já assistiu. Ou seja, o fã se isola do mundo digital até finalizar a temporada completa para não ser surpreendido por spoillers, como explica Jenkins (2009) a seguir, usando como exemplo os fãs do reality show “Survivor”, mas mostrando um comportamento que tem se tornado cada vez mais frequente por fãs de diferentes gêneros televisivos:

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Os fãs mais exaltados, um contingente conhecido “spoillers”, não medem esforços para escarafunchar as respostas. Usam fotografias de satélite para localizar a base do acampamento. Assistem aos episódios gravados, quadro a quadro, procurando informações ocultas. Conhecem Survivor de trás para a frente e estão determinados a descobrir tudo – juntos – antes de os produtores revelarem o que aconteceu. Chamam a esse processo de “spoiling”. (p. 55)

Wolton (2007) disse que “não há televisão sem uma concepção implícita ou explicita de seu papel na sociedade”. Segundo o autor, a TV une a sociedade, que mesmo formada por pessoas com pontos de vista diferentes acompanham a mesma programação. E assim, mesmo que com princípios ou filosofias diferentes, elas podem manter um diálogo a respeito do que é transmitido pela televisão. O comportamento dos telespectadores de seriados se tornou importante para divulgação e para manter a audiência. Há fóruns, blogs, portais e páginas em redes sociais - são inúmeros locais digitais para se discutir o conteúdo. Há muito assunto para se falar sobre as séries, como o futuro dos personagens, romance entre eles, erros de cenas, problemas técnicos nas gravações, furos no roteiro, hipóteses de possíveis finais de temporada, ou de acontecimentos para o próximo episódio. Desde prever o futuro da narrativa até criticar problemas técnicos ou de roteiro, os fãs vêm mantendo essas séries como assunto importante nas mídias digitais. Existem páginas com discussões de episódio por episódio, onde 593

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é possível encontrar pessoas do mundo inteiro participando. Entra em jogo o papel caçador dos fãs, de buscar detalhes nos episódios já exibidos para tentar prever acontecimentos futuros, e com isso várias hipóteses do desenrolar da trama. O vídeo on demand possibilita a mobilidade e torna possível criar a própria programação dentro de um catálogo de opções, mas também divide o público, que nem sempre está assistindo a mesma coisa ao mesmo tempo. As séries que mesmo em período de “break” conseguiam se manter em discussão através das redes sociais, no sistema on demand (quando a temporada é disponibilizada de uma só vez) acabam caindo em esquecimento por seus 12 meses de intervalo entre temporadas. Caso não possua um planejamento de comunicação por parte dos produtores, não há assunto para se discutir por um ano, mesmo sendo a temporada completa já divulgada - diferente do seriado semanal que cada episódio fomenta as discussões até a semana seguinte quando o novo capítulo da narrativa é lançado. Possivelmente, alguns gêneros são mais assertivos para esse novo modelo de TV, enquanto outros dependem mais do modelo de serialidade no fluxo, mas ainda é cedo para prever ou determinar quais são esses gêneros. Ou até mesmo se depende também do tipo de fã/ telespectador que cada um deles atrai. Está claro que o modelo de TV sob demanda como a Netflix ainda está em fase inicial, e como nota-se na própria plataforma da empresa está em constante mudança, adaptando-se e melhorando segundo as necessidades dos assinantes. 594

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Precisa-se pensar em como aliar a esses novos recursos as vantagens das discussões geradas pelos fãs episódio por episódio tão presente na transmissão em fluxo.Um dos possíveis caminhos seria, no próprio site o público poder exercer de maneira organizada, unificada e compartimentada o seu papel na cultura participativa.

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4ª Parte Dinâmica das Práticas Acadêmicas

Capítulo 20 O futebol como cultura no Brasil: da paixão à profissionalização Bárbara Bressan Belan1

A chegada do futebol no Brasil Há relatos de diferentes esportes com a bola nos pés desde a idade média. Um deles, muito parecido com o futebol, é o Soule. Segundo Wisnik (2008, p.77) “Trata-se de uma festa popular praticada em regiões da França ao longo dos séculos desde pelo menos meados da Idade média e caracteriza-se como uma encarniçada disputa de bola”. O esporte tido como violento era disputado entre campos e bosques e frequentemente terminava com mais de uma pessoa ferida. Já neste esporte “mais primitivo” 1. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, UNESP/ Bauru/SP. E-mail: [email protected] 598

o objetivo era conduzir a bola para dentro do território do outro e era praticado em dias festivos. Porém, o futebol propriamente dito só surgiu na Inglaterra por volta de 1800. Foi lá que ele ganhou regras e foi sistematizado. No ano de 1848, numa conferência em Cambridge, estabeleceu-se um código de regras para o jogo. Mas somente em 1871 foi criada a figura do goleiro que seria o único que poderia colocar as mãos na bola e deveria defender o gol. Aos poucos o esporte foi criando forma e mais regras, como a do pênalti, penalidade máxima do futebol, e a do impedimento, que só chegaram mais tarde em 1891 e 1907 respectivamente. No Brasil, considera-se que o pai do futebol foi Charles Miller. Nascido no Brasil ele foi à Inglaterra para estudar. Quando voltou, em 1894, teria trazido duas bolas na bagagem e somente no ano seguinte reuniu amigos para disputar o que seria a primeira partida de futebol no país. Porém antes de se popularizar e estar em todos os lugares, o futebol, no Brasil e no mundo era praticado apenas por uma elite branca, principalmente nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. E se já era difícil ter pessoas das classes populares envolvidas com esse esporte quem dirá negros que tinham acabado de serem libertos da escravidão. Um dos exemplos mais utilizados para ilustrar as dificuldades enfrentadas pelos clubes que “teimavam” em inserir negros na equipe é o do Bangu Atlético Clube. O clube foi o primeiro no estado do Rio de Janeiro a escalar um atleta negro, Francisco Carregal, em 1905 para disputar o Campeonato 599

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Carioca. Em 1907 a Liga Metropolitana de Football publicou uma nota proibindo o registro de “pessoas de cor” como atletas amadores de futebol. O clube, então, optou por não disputar o Campeonato Carioca. Por conta do episódio, o Bangu ficou conhecido até hoje como um clube símbolo na luta contra o racismo presente no futebol brasileiro. Outros exemplos podem ser vistos nas Copas Mundo de 1930 e 1934. Conforme aponta Wisnik (2008, p.183) “o Brasil foi representado por seleções inexpressivas, resultantes de disputas regionais sem acordo entre São Paulo e Rio de Janeiro”. Além disso, “Os times não incluíam negros, pelo menos na medida de sua representatividade, mesmo se considerarmos a presença ocasional do centromédio Fausto, que veio a ser chamado “a maravilha negra”, na comitiva de 1930, e a de Leônidas da Silva na de 1934”. Mas a ausência dos negros, que desde a infância demonstram talento nato com a bola nos pés, não ia durar muito. Ao contrário dessas demonstrações inconsequentes e vexaminosas, a de 1938 foi uma seleção assumidamente miscigenada, e pela primeira vez representativa do que havia de melhor no futebol já profissionalizado do país, dando esperanças às multidões que acompanhavam sofregamente, havia pelo menos vinte anos, as disputas internacionais sul-americanas. (WISNIK, 2008, p.184)

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O Futebol faz do Brasil nação É a partir do enegrecimento dos times e da popularização do futebol, que o esporte começa a ganhar importância na cultura brasileira. Ele passa a fazer parte da paisagem urbana e rural do país, conforme observa DaMatta (1982, p. 77) No gramado de um jardim público, no canto de um terreno baldio ou no meio da rua, com dois pedaços de pau e uma bola de meia surge um campo, onde, tarde após tarde, bandos de garotos jogam ventura e desventura, em partidas que parecem não querer terminar. Um amigo me confessou, tímido, que não se interessava por futebol, nem entendia grande coisa do assunto. Era Flamengo porque, afinal, todo mundo precisava ter um time.

Como é possível ver no trecho destacado a própria facilidade de se encontrar um “campo” e uma “bola” faz com que o futebol apareça em todos os cantos. O campo pode ser trocado por qualquer espaço: terrenos, ruas, quintais, quadras, retangulares ou não são tomadas por crianças que enxergam o próprio Maracanã por ali. A bola pode ser de meia, de borracha, ou até mesmo de outros esportes. Não é raro um brasileiro que se depara com uma bola de tênis ensaiar embaixadinhas antes de devolver o objeto cobiçado. Até as traves do gol podem ser pedaços de madeira, chinelos ou latinhas. A rede então é completamente desnecessária. Quando o atacante 601

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chuta e a bola e acerta o objetivo final já emenda a correria da comemoração ao desespero para recuperar a bola antes que ela se perca de vista. Outro ponto interessante que DaMatta chama a atenção neste trecho é o fato de um amigo ter confessado que não se interessava por futebol. Essa confissão quase sempre é motivo de vergonha e vexação, principalmente se o indivíduo for do sexo masculino. Para ser homem no Brasil e compartilhar do mesmo sentimento de pai e avô é necessário saber jogar bola, e acima disso ter um time do coração. Time esse que é imposto desde cedo pelos familiares mais próximos. Logo que nascem os bebês são bombardeados com camisa do Palmeiras pelo pai, meia do Corinthians pelo avô, shorts do São Paulo pelo tio. A escolha é quase sempre dramática, e depende muito da fase em que o time está vivendo. Quando acontece o caso descrito por DaMatta a decepção do pai é quase certa. Ainda assim, para não causar mais desgosto, o menino, que nunca se deu bem nas peladas da escola ou não consegue nem mesmo entender a regra do impedimento, escolhe o mesmo que o pai. É isso. Vai ser flamengo. Afinal todo mundo precisa de um time. E a necessidade da escolha de um time vai muito além do núcleo familiar. O esporte é capaz de criar núcleos e unir pessoas distintas em tribos que os tornam semelhantes. Um exemplo simples e visual é o que acontece dentro de um estádio em uma partida de futebol. São duas torcidas distintas separadas por grades e arquibancadas. Cada uma fica no seu canto, com a sua tribo. Elas se distinguem pelos cantos, gritos, vaias, e até pela forma de se vestir. 602

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As cores do uniforme são fundamentais na construção da identidade da torcida. Afinal, qual é o louco que entraria com uma camisa verde no meio da torcida corintiana? Ou com uma roupa preta e branca no espaço destinado a torcida palmeirense? O uniforme do time do coração torna-se assim um símbolo. Conforme aponta Vicente (2011, p.11) “Os símbolos, prossegue, afirmam-se como os instrumentos por excelência de integração social, tornando-se possível a reprodução da ordem estabelecida”. Confirmam assim a ideia de integração social entre a tribo, que a partir de símbolos se reconhece e cria sua própria identidade. A partir dessa ideia é possível compreender o verdadeiro fervor que se cria nas épocas de Copa do Mundo. Quando pessoas de diferentes classes sociais, regiões do país e, portanto, com costumes completamente diferentes se unem em forma de nação para cantar a vitória ou chorar a derrota. De um lado, as roupas de grife são substituídas por camisas oficiais da seleção, enquanto do outro qualquer pano verde e amarelo vira símbolo da identidade nacional. Conforme aponta DaMatta (1982, p. 50): Quando uma seleção nacional atua há uma superposição de símbolos do país; a bandeira hasteada, os uniformes - que são das cores da bandeira - e a própria seleção.Tudo isso mais ressaltado pelo contraste com os símbolos da “outra” seleção. Algumas das então consideradas “melhores qualidades do povo brasileiro” são exigidas dos atletas: raça, garra, malícia, sentimento, além da capacidade de jogo 603

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­ ropriamente técnica e da sorte. A derrota em p tais competições é frequentemente atribuída ao atraso do país, a seu subdesenvolvimento.

Dessa forma o futebol é frequentemente associado ao desenvolvimento do país. Da mesma forma que em 1938 a seleção brasileira, apesar de não ganhar a Copa, coloca o país entre as potências mundiais, quando perde é rebaixada não somente em nível de futebol, mas também em nível econômico. Um exemplo claro dessa associação e desse sentimento de derrota nacional é os 7 a 1 sofridos pela seleção brasileira na Copa do Mundo de 2014, a Copa do Brasil. No dia seguinte a vitória da Alemanha não só a população inteira estava de luto, como a imprensa também se vestiu de preto. No jornal de circulação nacional “O Globo” a manchete trazia os seguintes dizeres: “Vergonha, Vexame, Humilhação”, seguida de uma foto que tomava quase toda a capa do zagueiro David Luis agachado, escondendo o rosto, humilhado. Na “Folha de São Paulo” a representação do luto é ainda mais evidente. A capa estampou metade da página preta com o título: “Seleção sofre a pior derrota da história”, seguido das linhas finas: “Alemanha faz 7 a 1, esmaga o Brasil e vai à final da Copa, Anfitrião, país revive trauma de 50; e Felipão diz ser responsável por vexame, que pressiona o futebol nacional por reformas”. Não foi raro encontrar comparações do desenvolvimento da potência alemã, ao fracasso do subdesenvolvimento brasileiro. Na internet, principalmente nas redes sociais, choveram textos que diziam que enquanto o 604

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futebol brasileiro perdeu de sete, os hospitais, escolas, a segurança pública e o governo perdem de dez, cinquenta, cem. Além disso, as qualidades de excelentes hóspedes dos alemães também foram destacadas. Apesar da vitória com o placar elástico, há quem diga que os jogadores pouparam o Brasil de uma derrota ainda maior. Os “cavalheiros” teriam combinado no vestiário durante o intervalo não humilhar demais os anfitriões, e por isso na volta para o segundo tempo marcaram apenas mais dois gols. Mas essa não foi a primeira, nem a mais importante, derrota do Brasil futebol como nação. Uma estranha catatonia em campo e nas arquibancadas parece adivinhar que, se aconteceu um gol do adversário, isto é, se este existe, um segundo acontecerá então, fatalmente. Só isso explica o “silêncio ensurdecedor” que segundo tantos testemunhos, abateu sobre o estádio, silêncio que a gravação de rádio não registra, mas que parece estar localizado num lugar mais abisal do que as camadas agitadas de ar. (WISNIK, 2008, p.261)

No trecho acima Wisnik descreve o famoso silêncio que tomou o Maracanã com a derrota do Brasil na final pelo Uruguai. A falta de barulho, que ficou no inconsciente coletivo, e incomodou milhares de brasileiros é o som do luto que permaneceu no país por dias. Quando acabou o luto permaneceu o trauma que tenta ser superado até hoje. Milhares de pessoas que não eram 605

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nem nascidas em 1950 carregam esse trauma nacional que insiste em não ser esquecido. Um exemplo está no museu do futebol que fica no estádio municipal Paulo Machado de Carvalho, mais conhecido como Pacaembu, em São Paulo. Crianças que nunca ouviram falar na derrota de 50 podem passar por uma sala do museu chamada “Rito de Passagem”, e sentir como foi a experiência assustadora do “silêncio” como se estivessem no Maracanã no dia da derrota. Pode-se dizer que esse aumento exagerado das derrotas, como se fosse a própria morte, é reflexo do “complexo de vira-latas” típico do brasileiro. Nelson Rodrigues (1993, p.118) entende por “complexo de vira-latas” “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inverdade”. Isso quer dizer que por mais que o Brasil seja o único país pentacampeão da Copa do Mundo, o primeiro a conquistar o tricampeonato e o detentor da Taça Jules Rimet, a cada derrota a nação se rebaixa de forma a esquecer toda a tradição vitoriosa do país do futebol. É como se a única coisa que o país soubesse fazer direito fosse tirada da população com uma simples derrota na Copa do Mundo. Isso fica mais evidente quando o time vitorioso é uma grande potencia mundial, com status de país desenvolvido, e não em desenvolvimento como o Brasil. Se o país já perde em quesitos como a educação, a saúde e o transporte, não pode perder também, nem que seja apenas por uma vez, no esporte nacional. 606

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Futebol: construção da identidade nacional A construção da identidade de um país está quase sempre ligada a tradição de uma sociedade. Opressão colonial, lutas e revoltas pela independência ou pelo direito de professar uma religião específica são elementos que geralmente trazem essa unidade tão desejada pelos políticos para enfim constituir um Estado-Nação. No livro “Da Diáspora: identidades e nações culturais”, Stuart Hall (2003, p. 29) define: Possuir uma identidade cultural nesse sentido e estar primordialmente em contato com um núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente numa linha ininterrupta. Esse cordão umbilical e o que chamamos de “tradição”, cujo teste é o de sua fidelidade às origens, sua presença consciente diante de si mesma, sua “autenticidade”. (HALL, pg. 29, 2003)

Porém, o Brasil é um país com uma extensão territorial enorme, o quinto maior do mundo, e uma diversidade de povos maior ainda. São índios, negros, imigrantes italianos, japoneses, espanhóis, portugueses, alemães. E não para por aí. Mesmo nessas categorias apontadas a diversidade já é enorme. Os índios que se encontravam aqui antes da chegada dos portugueses, por exemplo, eram divididos em diferentes tribos de acordo com o tronco linguístico. Outro exemplo são os negros trazidos na época do Brasil-Colônia para serem escravos.

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Eles lutavam para manterem a tradição africana, as religiões africanas e não se sentiam parte de um país que os maltratava e vendia como objetos para fazendeiros ricos. Dessa forma o que se via era um amontoado de povos que se destoavam entre si e não formavam um único povo quando colocados juntos. Era necessário algo que unisse essas pessoas que estavam em um mesmo território, mas pareciam pertencer a tribos diferentes. Foi aí que o futebol entrou em cena. Tais formulações teriam como consequência prática o irrestrito apoio que o jogo passava a receber do governo de Getúlio Vargas durante a Copa do Mundo – quando a delegação brasileira tinha como madrinha a própria filha do presidente, Alzira Vargas. Cristalizando os ideais de harmonia social e furor nacionalista que eram propagandeados pelo seu governo após a implantação do Estado Novo, o futebol servia como um grande aliado na propaganda do projeto político [...] (PEREIRA, 1998, p.325)

O Estado Novo foi o período de 1937 a 1945 e foi marcado por uma série de repressões e censuras, por um governo ditatorial, mas também pelo grande avanço tecnológico e fortalecimento da indústria nacional. Além disso, os trabalhadores foram beneficiados com leis trabalhistas, que vigoram até os dias de hoje, que garantiram uma série de direitos fundamentais como a jornada de oito horas, o descanso semanal e o salário mínimo. Getúlio Vargas convocava os trabalhadores em busca de 608

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um Brasil melhor, forte e unificado. Mas para que esse ideal de país fosse consolidado não era necessário apenas fortalecer a indústria interna e garantir o direito dos trabalhadores. Era necessário investir em propagandas que fizessem que índios, negros, pardos, imigrantes europeus e mulatos se sentissem um só povo. Destaca-se aqui o ano dos acontecimentos. A propaganda nacionalista do Estado Novo aparece já em meados de 1938. Apenas cinquenta anos depois da libertação dos escravos no Brasil. Se ainda nos dias de hoje negros e mulatos compõem a classe mais baixa da sociedade brasileira, no começo do século XX a situação era ainda pior. Mas como já foi tratado no presente artigo os negros aos poucos conquistaram, muito mais pela habilidade do que pelo bom senso, o direito de jogar futebol e permanecer assim entre os craques aclamados do Brasil. Em 1938, Getúlio Vargas percebeu com o furor causado pela Copa do Mundo o grande potencial unificador que tinha esse esporte. Como narra Pereira (1998), Getúlio “Preferindo praticar esportes como o golf, ele não demonstrava ter no jogo da bola uma de suas paixões, intrigando-se com a destemperada reação da torcida”. Mais do que depressa percebendo que o futebol era capaz de “levantar paixões e ódios”, Getúlio iria utilizá-lo como uma “força motriz da nacionalidade”. Um exemplo é a utilização da própria filha como madrinha da seleção. Ou ainda em 1938 a doação de 200 milhões de réis para a equipe brasileira. “Muitos já identificavam a vitória brasileira à sua pessoa”. 609

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Retomando o pensamento de Hall, de que a cultura não é uma “arqueologia”, mas uma “produção”, pode-se dizer que nesse momento começa a ser constituída a base da cultura futebolística brasileira. Com o Estado Novo Getúlio deu apenas um pontapé para o que estava por vir. Ano após ano, o destaque do país do futebol nesse esporte era cada vez maior. Até que em 1958 confirmou esse favoritismo ao ser campeão do mundo pela primeira vez. Na Copa seguinte, em 1962 o resultado foi o mesmo. E na Copa de 1970 a seleção confirmou o tricampeonato e conquistando a Taça Jules Rimet para sempre. O tetra demorou a vir. Foram 24 anos de jejum, e ainda assim o Brasil não perdeu o favoritismo. E em 2002 a seleção conquistou o Penta, mais uma vez inédito. O fervor que toma conta das ruas durante a Copa do Mundo, observado em 1938 por Getúlio Vargas, não diminuiu com o passar dos anos. Torcedores se reúnem em bares, casas e até cinemas para assistir as partidas. Quando o Brasil joga de manhã, o país começa a funcionar a tarde, ou ao contrário, quando joga na parte da tarde, não se encontra comércio, padaria ou restaurante que esteja aberto no período da manhã. Todos vidrados, com os olhos na telinha, no mesmo instante. Como uma só nação.

Futebol: instrumento de mobilidade social Como já foi tratado, a facilidade de se encontrar campos, traves e bolas, torna as cenas das famosas peladas

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– nome dado no Brasil a uma partida de futebol com regras livres – tornam-se comuns em bairros periféricos e subúrbios. Nesses espaços o futebol é importante instrumento de socialização. Para exemplificar pode-se utilizar a pesquisa de DaMatta que estudou a trajetória de oito operários de uma fábrica têxtil do subúrbio do Rio de Janeiro e a relação de cada um com o futebol. O jogo de “pelada” não aparece apenas nessas ocasiões extraordinárias. E jogado semanalmente e são muitos os campeonatos nas praças do bairro. Como componente importante de padrão de sociabilidade da área estudada, congrega não só os operários da tecelagem, mas também outros moradores, a maioria, contudo, sendo de indivíduos situados na mesma faixa do mercado de trabalho que o grupo investigado: operários de outras fábricas, de construção civil, policiais, pequenos comerciantes, etc. (DAMATTA, 1982, p.62)

Da mesma forma que a escolha de um time do coração traz o indivíduo para uma tribo, a reunião para a pelada com churrasco aos finais de semana cria identificações com a “turma do bairro”. Nesse momento as separações criadas pelos times nacionais são esquecidas e novos grupos são formados. O craque é uma espécie de líder, que impõe respeito no lugar onde mora simplesmente por jogar bem futebol. As crianças, principalmente os meninos, são trazidas pelos pais desde cedo para o ambiente do jogo, e como que em um rito de passagem, e 611

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sentem orgulhosas quando na adolescência já podem ser escolhidas para jogar em algum time. Nos subúrbios, porém, o futebol não é visto apenas como ferramenta de socialização. Ele também é frequentemente usado como instrumento de mobilidade social. Se em meados de 1900 os negros conseguiam abandonar resquícios da recente abolição da escravidão, e virar ídolos com a bola nos pés, os garotos de baixa renda seguem o mesmo caminho ainda nos dias de hoje, um século depois. Ídolos nacionais, que fazem parte da camada de meninos do subúrbio que “deu certo”, ajudam garotos da periferia a continuarem sonhando. Um exemplo dessa mudança de vida por meio do esporte é o Neymar. Para FERRAZ (2012, p. 14) “A biografia de Neymar é muito próxima a dos grandes jogadores do futebol nacional: é mais um menino pobre que cresceu em um bairro periférico”. Filho de um mecânico e de família humilde começou a jogar nas categorias de base do Santos quando ainda tinha 11 anos de idade. Chegou a morar com o pai, a mãe e a irmã em um cômodo na casa da avó, na periferia de São Vicente. Já cedo conseguiu sustentar a família e com 17 anos virou titular do time principal do Santos. Nessa época já ganhava mais de trinta mil reais por mês. Dinheiro que provavelmente não ganharia em nenhuma outra profissão de forma tão rápida e fácil. Fácil no sentido de que a medida que o futebol no Brasil é lazer, frequentemente é visto como uma profissão nobre mas vagabunda. O paradoxo é visto em diferentes ocasiões. Os ídolos são aclamados e colocados na 612

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posição de reis, mas ao mesmo tempo a derrota não é aceita como parte do jogo. É comum escutar torcedores inflamados repetirem a frase: “ganha para jogar bola e ainda faz corpo mole”. O brasileiro não aceita que alguns escolhidos ganhem milhões para fazer algo que ele faz de graça todos os finais de semana e ainda façam feio, ou não consigam ganhar o jogo. Ainda que muitas vezes a falta de técnica ou de posse de bola possa ser compensada com o esforço do jogador, que ganha respeito da torcida por “vestir a camisa”, correr até os instantes finais e ser um verdadeiro representante do torcedor em campo.

Futebol: instrumento de alienação A visão do futebol como “ópio do povo” não é grande novidade. Apesar da expressão ser utilizada com mais frequência para a crítica religiosa “A religião é o ópio do povo”, ela é associada constantemente a objetos de lazer. Neste trecho, também retirado do artigo “Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira”, DaMatta (1982, p. 62) aponta uma série de questões que precisam ser discutidas: Há uma nítida consciência de que temas tais como esse são tabu dentro das sociologias oficiais que os têm sistematicamente abordado seja como “ópios do povo” seja como “casos de polícia”; seja, ainda, como “casos de idiotice popular aguda”, quer dizer: casos de mistificação e alienação social, tudo isso

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para ser corrigido com a administração da ideologia correta pelo grupo apropriado. É que as nossas elites, eu presumo, não estão acostumadas a jogar. Ao contrário, elas odeiam o jogo. Por que? Porque certamente o jogo significa basicamente ter de se submeter a regras que valem para todos.

Já no império romano, a política do pão e circo, como ficou conhecida, consistia na alienação política do povo através de jogos violentos nas enormes arenas que quase sempre custavam a vida dos competidores. As arenas eram construídas em tempos de crise para entreter a população e impedir revoltas. Em paralelo, no Brasil a Copa do Mundo sempre “coincide” com as eleições presidenciáveis, enquanto que as Olimpíadas sempre “coincidem” com as eleições municipais. Em ambos os casos, a atenção das pessoas, que deveria estar voltada para as notícias políticas para poder escolher os melhores candidatos, é dispersada para esses jogos que comovem milhões de espectadores. A própria mídia pode ser vista como culpada. Nas capas dos jornais O Globo e da Folha de S.Paulo, por exemplo, apenas um dia durante os jogos da Copa de 2014 as fotos do mundial não estamparam a capa do jornal. Até mesmo em dias que não tiveram jogos, fotos de treinos eram utilizadas para ilustrar a matéria de capa que falava sobre o esquema tático da seleção canarinho. Além disso, da mesma forma que as arenas eram construídas para os espetáculos durante o império romano o que se viu no Brasil no período anterior a Copa do Mundo

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de 2014 foi uma invasão de arenas “padrão FIFA” feitas especialmente para os espetáculos nas normas internacionais. O dinheiro gasto nas arenas foi alvo de críticas e manifestações. Segundo o relatório do Tribunal de Contas da União, no início estava previsto que a verba destinada a reforma ou construção de Arenas para Copa do Mundo 2014 somava até R$ 5,463 bilhões. Ao final do evento um novo relatório apontou que Os 12 estádios usados na Copa do Mundo custaram 50% a mais do que o previsto. Foram cerca de R$ 8 bilhões só para as arenas. Mas apesar dos gastos exorbitantes e da insistência do governo em se utilizar do futebol para desviar a atenção de brasileiros de assuntos políticos, DaMatta critica o fato do esporte mais popular do país ser visto apenas como forma de alienação. Ele defende que o futebol faz parte das raízes culturais do Brasil junto com o carnaval, o samba e a umbanda e deve ser tratado como tal. Para ele grande parte da falta de incentivo e valorização do esporte provém da falta de teorias e estudos acadêmicos sobre ele. É curioso que apesar da importância do futebol no Brasil são poucos os estudiosos brasileiros que tratam do assunto. Até mesmo na classificação editorial da maioria dos jornais é possível notar essa discriminação. O esporte vem sempre separado das notícias jornalísticas. Existe um grupo especializado para cuidar do assunto e eles ainda são vistos a margem de jornalistas econômicos, políticos e até culturais. DaMatta justifica a discriminação e a falta de bibliografia sobre o assunto dizendo que as elites econômicas, que teriam estudo para debater o esporte na sociedade, não jogam. 615

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Simplesmente pelo fato de que no jogo todos são colocados em condições de igualdade. Mas se de um lado as elites não jogam por serem “rebaixadas” e colocadas em condições de igualdade, pode-se dizer o contrário do outro lado. Milhões de garotos de origem humilde quando colocados a prova dentro de um campo de futebol conseguem se sentir iguais ou até superiores aos garotos de classe média alta que ali se encontram. Nesse momento a técnica, a raça e o dom prevalecem e o pobre pode sair vencedor pela primeira vez na vida.

A malandragem do brasileiro dentro de campo O futebol brasileiro costuma ser aclamado por ser diferente do jogado na Europa. Conforme assinala Chamadoira (2011, pg. 81) “O futebol brasileiro é associado à criatividade e à improvisação, enquanto o europeu mais à força física”. Ele ainda assinala uma comparação feita pelo cineasta Pasolini na ocasião do tricampeonato da seleção brasileira em cima da italiana em 1970 no México: “O futebol europeu está para a prosa assim como o futebol brasileiro está para a poesia”. Enquanto a prosa é vista como um discurso, a poesia é vista como arte. A prosa serve aos objetivos finais de comunicação. É a linguagem do dia a dia, direta. Enquanto a poesia se utiliza de floreios e tem o objetivo em si, não apenas na comunicação. Dessa forma, pode-se dizer que o futebol

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brasileiro, diferente do europeu, tem seu objetivo em si, e necessita da arte para ser aclamado. Diante dessa afirmação não é difícil recordar de momentos em que times brasileiros ou a própria seleção canarinho são criticados por ter “ganhado, mas jogando mal”. Para o brasileiro não basta apenas vencer, tem que convencer a partir dos dribles, jogadas bem ensaiadas, craques e floreios típicos do esporte. É nesse momento que a malandragem do brasileiro entra em jogo. Ela faz parte do espetáculo e é aclamada pelo público da mesma forma que a malandragem do “jeitinho brasileiro” é bem vista no dia a dia. O “boa praça” que costuma furar filas, entrar em ônibus sem pagar ou ganhar alguma vantagem em jogos de azar, costumam ser aplaudidos como “espertões” do grupo. E essa malandragem proveniente das ruas também é aclamada dentro de campo. Quando o time está contente com o resultado e a partida está para terminar o jogador “faz cera” ou se tem a oportunidade de fingir uma “falta” cai e segura a bola. Essas expressões já fazem parte do vocabulário do torcedor brasileiro que incentiva tal comportamento e aplaude quando ele se realiza. Até a cantora Cássia Eller na música de nome “malandragem” clama por esse atributo tão valorizado no país, na primeira estrofe da letra: “Eu só peço a Deus, um pouco de malandragem, pois sou criança e não conheço a verdade”. Na frase malandragem é utilizada como antônimo de ingenuidade e é vista como algo positivo. Esse mesmo significado é utilizado em campo, já que o herói nacional não pode ser ingênuo com a bola nos pés. 617

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Ele precisa utilizar a “catimba” a seu favor para ganhar tempo, faltas ou até mesmo irritar os adversários, e com isso ganhar a partida da forma mais brasileira possível. Por outro lado, na Europa a malandragem é malvista e amplamente criticada principalmente pela imprensa. Um exemplo foi o caso do zagueiro brasileiro David Luiz que protagonizou uma cena incomum durante uma partida do PSG contra o Chelsea. Ele apagou o spray utilizado pelo árbitro para demarcar a área da bola na cobrança da falta. O árbitro estava de costas e não viu a artimanha. No dia seguinte o jornal espanhol “Mundo Desportivo” classificou David Luiz como “patife e malandro”. O português “O Jogo”  manchetou o lance como o “A ‘batota’ de David Luiz”, que significa a “trapaça” de David Luiz, e outros jornais europeus seguiram na mesma linha.

Futebol: instrumento de visibilidade Aconteceu também no Brasil. Sem que ninguém esperasse. Sem líderes. Sem partidos nem sindicatos em sua organização. Sem apoio da mídia. Espontaneamente. Um grito de indignação contra o aumento do preço dos transportes que se difundiu pelas redes sociais e foi se transformando no projeto de esperança de uma vida melhor, por meio da ocupação das ruas em manifestações que reuniram multidões em mais de 350 cidades. (CASTELLS, 2013, p. 182)

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Em junho de 2013 aconteceram diversas manifestações que ficaram conhecidas como Manifestações de junho ou Manifestações dos 20 centavos. No início o Movimento Passe Livre, MPL, convocou, por meio de uma rede social, multidões para ir as ruas em todo o país protestar contra o aumento do transporte público. Porém como Castells aponta no trecho acima essa reivindicação rapidamente se transformou em um protesto amplo e sonhador, onde cada integrante tinha algo a dizer sobre um assunto diferente e devia ser ouvido. Em São Paulo a Avenida Paulista ficou conhecida como palco dos protestos. Em Brasília, manifestantes tomaram o Congresso Nacional subindo pelas rampas até o teto do prédio. No Rio de Janeiro houve chuva de papel picado na Avenida Rio Branco e na frente da biblioteca nacional foram distribuídas flores aos policiais. De acordo com vários jornais brasileiros foram as maiores mobilizações no país desde as manifestações pelo impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello, em 1992. Mas onde o futebol se encaixa nisso tudo? Da mesma forma que ele foi alvo de crítica por parte dos manifestantes, foi graças a ele que os protestos ganharam visibilidade internacional e se estenderam por tanto tempo. [...] a alegria de ver a Copa do Mundo de futebol no Brasil e de que a seleção canarinho volte a vencer converteu-se num negócio mafioso de corrupção em grande escala, do qual participam empresas de construção, federações esportivas

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nacionais e internacionais, e administrações públicas de diversos níveis, utilizando em boa medida fundos públicos sem controle de contas. “Trocamos dez estádios por um hospital decente”, dizia um cartaz em Belo Horizonte. (CASTELLS, 2013, p. 183)

Nesse trecho Castells deixa claro que de certa forma o brasileiro foi colocado a prova a poucos meses antes da Copa. Ninguém nega a grande alegria e o orgulho nacional que o futebol brasileiro com toda a sua ginga e classe traz aos torcedores e ao país como um todo. Porém algo maior do que o prêmio de melhor seleção do mundo estava em jogo. A população deixou o futebol de lado para reivindicar melhorias de necessidades básicas. Já na década de 50 Maslow (1954, p. 98) classificou as necessidades humanas como baixas e altas, sendo que as necessidades mais baixas estão relacionadas às necessidades básicas fisiológicas e de segurança, enquanto as mais altas são necessidades sociais, de estima e por último a de autorrealização. O pensamento indica que as necessidades humanas são distribuídas em forma de pirâmide, e que uma pessoa não passa de nível se não tem o nível anterior completo. Por exemplo, uma pessoa não vai pensar em comprar um carro ou uma casa se está com fome, com sede ou com sono. Quando o manifestante ergue um cartaz que se lê “Trocamos dez estádios por um hospital decente” pode-se aplicar a teoria de Maslow. Se o brasileiro não tem saúde e educação de qualidade não vai se preocupar com o futebol, que estaria um nível acima.

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Mas o alvo dos protestos virou também um instrumento de visibilidade a medida que a Copa das Confederações de 2013 foi realizada no Brasil de 15 à 30 de junho, exatamente no período das manifestações. Coincidência ou não foi graças ao evento esportivo de caráter mundial que os protestos brasileiros ganharam a mídia no exterior. No jornal francês “Le Monde” a manchete “Heurts à Fortaleza pendant le match Espagne-Italie” noticia um dos episódios que ficou mais conhecido durante as manifestações principalmente porque aconteceu ao redor do Estádio Governador Plácido de Castelo, mais conhecido como Castelão, antes e durante o jogo da semifinal do campeonato entre as seleções da Espanha e da Itália. Manifestantes protestaram e foram recebidos com resistência e spray de pimenta por parte da polícia, que tinha o dever de manter a ordem no local para proteger o espetáculo que ali acontecia de qualquer intervenção. No “El País” da Espanha uma matéria com o título “Un gigante se despierta” faz um resumo das manifestações e explica os motivos que levaram os brasileiros às ruas. Enquanto no principal jornal dos Estados Unidos “New York Times” a matéria “Tear Gas Fired Outside Stadium in Brazil, but Protest Still Spreads Inside” também narra os protestos ocorridos ao redor do Castelão, e traz uma foto de uma torcedora já dentro do estádio com os dizeres “Queremos hospitais padrão FIFA”. A frase acima foi vista constantemente durante os protestos com suas variações: queremos escolas padrão FIFA, transportes públicos padrão FIFA, saúde padrão FIFA, entre outros. E faz referência a série de exigências feitas 621

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pela Federação Internacional de Futebol Associado, FIFA, para realizar os eventos esportivos em determinado lugar. Além dos protestos que ocorreram ao redor dos estádios e durante a Copa das Confederações, um episódio chamou a atenção do mundo todo: dessa vez ele correu durante a festa de encerramento do evento, e dentro de campo. Dois participantes da cerimônia exibiram uma faixa pedindo a anulação da privatização do estádio do Maracanã, que acabou se concretizando. Outro integrante da coreografia levantou uma bandeira contra a homofobia. Os dois cartazes e os manifestantes foram retirados rapidamente por seguranças. Nesses dois casos duas coisas chamam a atenção. A primeira é a utilização do evento esportivo como palco para a manifestação de caráter ideológico dos participantes, como forma de promover a visibilidade não somente nacional como internacional das reivindicações. De outro lado está a ação dos seguranças que paralisa de forma imediata o protesto e retira os rapazes que estavam perturbando a ordem e atrapalhando a coreografia da cerimônia de encerramento da Copa das Confederações de 2013. É importante destacar que a atitude dos seguranças, que obviamente seguiam ordens de superiores, é inconstitucional. Já que a liberdade de expressão é um direito fundamental humano e está regulamentado no inciso IV do artigo 5º “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Além disso, no capítulo V reservado para questões de Comunicação Social o Art. 220 garante que “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, 622

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processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”. O que se pode observar nesses protestos foi a grande repressão policial sofrida pelos manifestantes. Mas ao mesmo tempo a própria repressão serviu de combustível para o movimento. Segundo Castells (2014, p. 175) “Quanto mais se reprime um movimento, e mais imagens se criam dessa repressão, mais capacidade há de gerar um movimento mais amplo”. Essa lógica pode ser aplicada nas manifestações ocorridas no Brasil sem grandes questionamentos. O que se viu foi uma comoção em massa aos agredidos e a tomada das ruas de forma ainda mais contundente. E apesar das manifestações não terem atrapalhado o andamento dos jogos, toda essa violência policial foi vista também no estrangeiro, que acompanhava através da mídia, como foi mostrado, a repercussão do que acontecia no Brasil, grande parte graças a visibilidade que o país já dispunha simplesmente por sediar a Copa das Confederações de 2013 nesse mesmo período.

Conclusão Ao contrário do que muita gente pensa o futebol não nasceu no Brasil. Ele veio da Inglaterra trazido por estudantes, membros da elite do país, e era jogado apenas por membros da alta sociedade. Pessoas da classe mais baixa, principalmente negros, não tinham acesso ao novo jogo. Mas

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não demorou muito para que se percebesse a afinidade natural de rapazes negros com o esporte. Há quem conte que alguns rapazes jogavam o Football, como era chamado na língua inglesa, e um rapaz de pele escura era gandula. Certa vez, antes de fazer a reposição de bola, ensaiou algumas embaixadinhas. O talento do homem negro foi reconhecido de imediato, e ele passou a jogar bola com os demais. A história acima pode ter acontecido uma porção de vezes em vários cantos do país, ou pode não ter acontecido. Mas o fato é que os negros começaram a ser reconhecidos no esporte e dominam até hoje o quadro dos grandes times. O próprio rei do futebol, como é conhecido Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, é negro. Jogou em grandes clubes do Brasil e até nos Estados Unidos, e é tricampeão com a Seleção brasileira de futebol. Histórias como essa povoam o imaginário de milhões de garotos de classe social baixa no Brasil. O esporte virou instrumento de mobilidade social no país, e o sonho de muitos garotos virou “vencer através do esporte”. Os salários milionários dos jogadores incentivam ainda mais o pensamento dos meninos. Em pouco tempo se conseguem ganhar mais de 10 mil por mês com o futebol no Brasil, salário difícil de ser atingido em outras profissões. Além disso, o futebolista ganha visibilidade e pode virar ídolo de um time, ou na melhor das hipóteses, do Brasil inteiro. O craque é o herói nacional que tem a oportunidade de derrotar as seleções “inimigas” e trazer o tão sonhado título da Copa do Mundo ao país do futebol. Mas o futebol só é visto assim como instrumento tão acessível de mobilidade, por ser de fácil acesso. Conforme foi 624

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abordado qualquer lugar pode servir de campo e qualquer objeto vira bola no pé de meninos jogadores. É só andar pelas ruas, principalmente dos subúrbios, que é fácil encontrar garotos de todas as idades correndo atrás de uma bola. Mais do que instrumento de mobilidade social o futebol pode ser visto como instrumento de socialização. Nessas cenas imaginadas acima garotos constroem relacionamentos para a vida inteira com os primeiros amigos da bola. E as relações não são restritas às crianças. O futebol com churrasco aos finais de semana é programa certo para pais de família ou jovens solteiros. Depois de sonhar com a profissionalização, os garotos desiludidos percebem que precisam seguir com a vida e estudar ou trabalhar. Nesse momento, o futebol se torna parte do lazer semanal, que é quase sempre levado a sério por todos os competidores dos times de bairro. Alguns têm até uniforme e torcida organizada. E não são apenas brancos e negros que o futebol conseguiu unir ao longo desses anos dentro do mesmo campo de jogo. Com a imensa extensão territorial do Brasil e a grande diversidade de povos, o futebol tornou-se também instrumento de nacionalização. Getúlio Vargas percebeu, na Copa de 1938, a grande comoção que o esporte causava em todo o país. Do Norte ao Sul, brancos, negros, índios e imigrantes espanhóis. Todos vibraram com as vitórias da seleção e amargaram o luto depois da derrota na final. A partir de então, essa união que já era vista de forma natural, passou a ganhar incentivos do governo e se transformou em um importante instrumento de propaganda nacionalista de um estado ditador 625

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que queria fortalecer a União e propagar a visão de um país em crescimento. Da mesma forma que o futebol já foi utilizado como instrumento de nacionalização, muitas vezes ele é visto também como instrumento de alienação. Não é a toa que no Brasil, a Copa do Mundo sempre “coincide” com as eleições presidenciáveis, enquanto que as Olimpíadas sempre “coincidem” com as eleições municipais. A atenção do povo, que deveria estar concentrada em notícias políticas, volta-se para o noticiário esportivo. Conforme foi discutido neste artigo, a própria mídia tem grande influencia nisso. A hipótese pode ser justificada a partir do agendamento. Segundo Ferreira (p. 111, 2010) “O agenda setting constrói sua hipótese afirmando que a influência não reside na maneira como os mass media fazem o público pensar, mas no que eles fazem o público pensar”. Dessa forma é possível dizer que os grandes jornais de circulação nacional “fizeram o público pensar” sobre a Copa em detrimento das eleições graças ao grande destaque dado às notícias esportivas, que na maioria das vezes ocupava a primeira página. E se o futebol influencia diretamente o dia a dia do brasileiro, seja como instrumento de nacionalização, alienação ou mobilidade social, o jeito brasileiro de ser também influencia na forma de se jogar bola. O futebol brasileiro é visto no mundo todo como arte, muito graças a ginga do jogador. Enquanto o futebol europeu é truncado, e ganha na força, o brasileiro ganha no drible. A malandragem do brasileiro é valorizada dentro e fora de campo. E é vista como parte do jogo. 626

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O futebol no Brasil faz parte da cultura. Consegue atingir homens e mulheres do país todo de diferentes etnias e diferentes classes sociais. E foi graças a esse alcance que em junho de 2013 ele foi utilizado também como instrumento de visibilidade. As manifestações pela redução da tarifa e por melhores condições no transporte coletivo aconteceram no mesmo período da Copa das Confederações de 2013. O evento trouxe para o Brasil jornalistas do mundo todo, que presenciaram o movimento histórico que ocorria no país. Dessa forma as reivindicações não ganharam apenas a mídia nacional, mas também a internacional e trouxeram resultados positivos nunca antes visto como a redução da tarifa em diversas cidades.

Referências CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede e os Movimentos Sociais. Porto Alegre: Editorial, 2014. CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança – Movimentos sociais na era da internet. 1 ed.- Rio de Janeiro: Zahar, 2013. CHAMADOIRA, João, B, N. Linha de Passe: a grande metáfora. (in) MARQUES, José Carlos; TURTELLI, Sandra Regina. Futebol, Cinema & Cia: ensaios. São Paulo: Cultura acadêmica, 2011. DaMATTA, Roberto et al. Universo do Futebol: Esporte e Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982. 627

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FERRAZ, Luís Henrique Mendonça. O craque, o sex symbol e o homem de sucesso: a construção da imagem de Neymar no mercado brasileiro de revistas (2010/2011/2012). 2014. 129fs. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Faculdade de Artes, Arquitetura e Comunicação, UNESP, Bauru, 2014. FERREIRA. M. G. As origens recentes: os meios de comunicação pelo viés do paradigma da sociedade de massa. In HOHLFELDT, A; MARTINO, L; FRANÇA, V. Teorias da comunicação: conceitos, escolas e tendências. Petrópolis: Vozes, 2010. HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Liv Sovik (org); Trad. Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da Unesco no Brasil, 2003. PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902 – 1938). 1998. 380f. Tese doutorado em história social – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, 1998 VICENTE, Maximiliano, Martin. Comunicação e futebol em tempos de política. (in) MARQUES, José Carlos; TURTELLI, Sandra Regina. Futebol, Cinema & Cia: ensaios. São Paulo: Cultura acadêmica, 2011. MASLOW, Abraham, H. Motivation and personality. New York: Harper & Row. 1954.

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WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: o futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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Capítulo 21 A cultura de fãs e fandom como perspectiva das práticas participativas de consumo de mídia Camila Fernandes de Oliveira1

Um dos desafios ao cursar a disciplina de Teorias da Comunicação na pós-graduação é encontrar nos textos estudados o aparato para lidar com seu objeto de estudo, e esse desafio torna-se maior quanto mais atual for esse objeto. Quando seu propósito é estudar a cultura dos fãs nas comunidades virtuais, se aceita que sua busca deverá ser ainda mais cuidadosa, num ritmo quase insaciável para encontrar as melhores condições de análise para o seu estudo e especialmente não hesitar em buscar textos externos ao programa para comparação e aprofundamento. 1. Mestranda do programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. E-mail: [email protected]. 630

Neste texto, não tenho intenção de realizar um resumo completo do que vem sendo discutido nos estudos de fãs, nem esgotar as perspectivas de olhares sobre o tema, mas sim iniciar uma discussão sobre como os aparatos teóricos a que temos acesso hoje servem para explicar o contexto favorável às atividades de fãs atualmente, para delinear o ponto de vista sobre as práticas das comunidades de fãs, além de pensar sobre os estudos específicos do tema. Cabe aqui destacar a relevância dos estudos de fãs como uma maneira de compreender a interação do indivíduo com a sociedade em um mundo mediado, porque permite “explorar alguns mecanismos chaves por meio dos quais nós interagimos com o mundo mediado no coração das nossas realidades e identidades sociais, políticas e culturais” 2 (GRAY ET AL., 2007). No mesmo texto é defendido que o futuro dos estudos de recepção e público demandam estudos profundos e inovadores sobre fãs em todas as suas formas, identidades, meios e espaços.

A origem e as fases dos estudos de fãs É difícil delinear um marco específico para o começo da história dos estudos da cultura de fãs, mas é ­natural

2. Tradução da autora para: “explore some of the key mechanisms through which we interact with the mediated world at the heart of our social, political, and cultural realities and identities.” 631

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associá-la ao desenvolvimento dos estudos culturais britânicos. Jenkins (1992, p.1) declara que foi inspirado pela tradição da Escola de Birmingham, “que ajudou a reverter o desprezo público pelas subculturas da juventude, eu queria construir uma imagem alternativa das culturas dos fãs, uma que visse os consumidores de mídia como ativos, criticamente engajados e criativos.”3 Um dos aspectos mais importantes do estudo da cultura de fãs é o foco na audiência, no receptor dos produtos de mídias, e a concordância de que os consumidores de um produto de mídia podem ser ativos e participantes. Como apresenta Grossberg (1992): Um texto só pode significar algo no contexto da experiência e da situação da sua audiência em particular. Igualmente importante, textos não definem como eles serão usados no futuro ou que funções eles poderão servir. Eles podem ter diferentes usos por diferentes pessoas em diferentes contextos. (p. 53)4

3. Tradução da autora para: “which helped reverse the public scorn directed at youth subcultures, I wanted to construct an alternative image of fan cultures, one that saw media consumers as active, critically engaged, and creative.” 4. Tradução da autora para: “A text can only mean something in the context of the experience and situation of its particular audience. Equally important, texts do not define ahead of time how they are to be used or what functions they can serve. They can have different uses for different people in different contexts.” 632

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Jenkins (2006) delineia, em entrevista a Matt Hills, três gerações – ou três ondas, para Gray et al. (2007) -, de pesquisadores de fandom. Na primeira, em que ele coloca John Tulloch, John Fiske e Janice Radway, destaca o foco nos públicos ativos, o uso de métodos etnográficos, derivados em parte dos métodos sociológicos, e o distanciamento dos objetos. “Era importante para esses escritores estar do lado de fora do que eles estavam escrevendo, para serem livres de qualquer implicação direta em seus temas em questão”5 (JENKINS, 2006, p.10). Eles começaram a reconhecer o papel ativo do público, mas sua escrita era despersonalizada, e não se tinha conhecimento de qualquer afeição que eles tivessem em relação aos seus objetos de estudo. “E às vezes havia uma tentativa de se afastar da comunidade de fãs no final da escrita e dizer, certo, agora nós chegamos à verdade que os fãs não reconhecem sobre sua própria atividade política.” (JENKINS, 2006, p.10) 6 A segunda geração, em que Jenkins se coloca junto com Camille Bacon-Smith, tem em seu discurso a garantia dos conceitos de passivo/ativo, resistência/cooptação, enquanto tenta buscar a maneira ideal de escre5. Tradução da autora para: “It was important for these writers to be outside what they were writing about, to be free of any direct implication in their subject matter.” 6. Tradução da autora para: “And there’s sometimes an attempt to pull back from the fan community at the end of such writing and say, right, now we can arrive at the truth that the fans don’t yet recognize about their own political activity.” 633

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ver, o equilíbrio entre a maneira que gostariam de fazer e a que é aceita pelos avaliadores, a primeira geração. “Os editores decidem se eles [seus manuscritos] serão publicados ou não, a faculdade decide se nós seremos contratados. Então, você acaba lutando para negociar entre o que quer escrever e o que é possível dizer naquele momento em particular, na tentativa de levar seu trabalho a público de algum modo.”7 (JENKINS, 2006, p.11)

Nesse ponto, Jenkins lembra que quando escreveu Textual Poachers8 se viu em uma árdua tentativa de defender os fandoms, e alterar a maneira que eles eram vistos e retratados, como um participante dessa cultura, ele via como uma necessidade naquele momento. Na introdução de Fandom: Identities and Communities in a Mediated World, Gray et al. também destacam essas marcas de gerações dos estudos de fãs, mas consideram como primeira onda o que Jenkins aponta como segunda geração, destacando além dos trabalhos de Jenkins (1992) e Bacon-Smith (1992), os trabalhos de Harrington e Bielby

7. Tradução da autora para: “The editors deciding whether they get published or not, the faculty deciding whether we get hired. So you end up struggling to negotiate between what you want to say, and what it’s possible to say at a particular point in time, in order to get your work out at all.” 8. JENKINS, H. Textual poachers: Television fans and participatory culture. London, New York: Routledge, 1992 634

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(1995) e Tulloch e Jenkins (1995), chamando essa geração de “Fandom Is Beautiful”, por causa da defesa e do entusiasmo ao observar a cultura dos fãs. Essa defesa não seria mais necessária para a terceira geração, que poderia ver o fandom de outra maneira, por causa das bases criadas pelas gerações anteriores. Nessa geração, Jenkins destaca a presença do que chama de aca-fen, os acadêmicos que também são fãs, “para quem essas identidades não são problemáticas de se misturar e combinar e que são capazes de escrever de maneira mais aberta sobre suas experiências em fandoms sem a ‘obrigação da defesa’, sem precisar defender a comunidade.”9 (JENKINS, 2006, p. 11). Essa condição propiciada pelas gerações anteriores cria condições para debates que eram evitados pela geração de Jenkins, permite discussões sobre problemas centrais. O que Jenkins (2006) apresenta como terceira geração, Gray et al. vê como duas ondas distintas. A segunda onda seria menos otimista que a anterior e enxergaria na estrutura dos fandoms uma reprodução das hierarquias culturais e sociais, considerando que as escolhas dos objetos dos fãs e as práticas de consumo dos fãs serem “estruturadas por meio do nosso habitus como uma imagem e mais intensa manifestação do nosso capital 9. Tradução da autora para: “for whom those identities are not problematic to mix and combine, and who are able then to write in a more open way about their experience of fandom without the “obligation of defensiveness,” without the need to defend the community.” 635

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social, cultural e econômico”10 (GRAY ET AL., 2007). Nessa onda, assim como a anterior, os pesquisadores também estariam preocupados com questões de poder, desigualdade e discriminação, mas não viam as comunidades de fãs como uma maneira de empoderamento, mas sim uma estrutura inserida na sociedade com estruturas semelhantes de manutenção do status quo. Uma das características destacadas em Fandom sobre a terceira onda é o espaço conquistado pelos fãs na relação com a mídia, os textos de mídia e os produtores de mídia. “Quando Jenkins escreveu Textual Pochers (1992), comunidades de fãs eram com frequência relegadas a convenções e fanzines. Hoje, com tantas comunidades migrando para a internet, os milhares de grupos de discussão de fãs, web sites, e as listas de e-mail que povoam a web são somente eclipsados em presença pela pornografia (que, é claro, tem sua própria base de fãs próspera).”11 (GRAY ET AL., 2007)

10. Tradução da autora para: “a wide spectrum spanning from regular, emotionally uninvolved audience members to petty producers.” 11. Tradução da autora para: “When Jenkins wrote Textual Poachers (1992), fan communities were often relegated to conventions and fanzines. Today, with many such communities’ migration to the Internet, the thousands of fan discussion groups, web sites, and mailing lists populating the Web are only eclipsed in presence by pornography (which, of course, has its own thriving fan base).” 636

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Outra diferenciação feita entre a terceira onda e as anteriores é a expansão do conceito de fã, enquanto as primeiras levam em consideração um subgrupo de fãs mais apaixonado e dedicado, a terceira inclui uma definição mais ampla, “um espectro que alcança membros de uma audiência assídua não envolvidos emocionalmente até os pequenos produtores” (GRAY ET AL., 2007). Essa mudança tornou o campo dos estudos de fãs mais diverso em termos conceituais, teóricos e metodológicos. Nessa geração, fandoms não são mais um objeto de estudo em si mesmo e por si mesmo, mas fazem parte de um contexto maior da nossa vida cotidiana, o trabalho dessa terceira onda de pesquisadores busca encontrar os elementos fundamentais da vida moderna. Esse aspecto é sintetizado em Fandom: Estudos de audiência nos ajudam a entender e enfrentar desafios muito além do reino da cultura popular porque eles nos dizem algo sobre a maneira com que nos relacionamos com aqueles ao nosso redor como também a maneira que nós lemos os textos mediados que constituem uma parte ainda maior do nosso horizonte de experiência.12 12. Tradução da autora para: “studies of audiences help us to understand and meet challenges far beyond the realm of popular culture because they tell us something about the way in which we relate to those around us as well as the way we read the mediated texts that constitute an ever larger part of our horizon of experience.” 637

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A relação com tempo e espaço Além dos conceitos advindos dos Estudos Culturais Britânicos, as práticas atuais dos fãs e de suas comunidades são possibilitadas pela existência de aspectos da cultura contemporânea que são estudados pelos pesquisadores da pós-modernidade, uma dessas condições é a maneira com que se alterou a relação que o indivíduo tem com o tempo e o espaço. Harvey (2001) explica que a ideia de tempo e espaço não pode ser definida de maneira concreta, não se pode atribuir um significado objetivo sem considerar os processos materiais, “cada modo distinto de produção ou formação social incorpora um agregado particular de práticas e conceitos do tempo e do espaço.” (p. 189). Além disso, ele explica que as transformações sociais afetam e são afetadas pela compreensão de espaço e tempo, “bem como dos usos tecnológicos que podem ser dados a essas concepções. Além disso, todo projeto de transformação da sociedade deve apreender a complexa estrutura da transformação das concepções e práticas espaciais e temporais.” (p. 201) Seguindo esse pensamento, podemos afirmar que mesmo se fosse levada toda a tecnologia necessária para a recepção de videoclipes ou filmes para uma tribo indígena isolada do convívio do resto do mundo, a experiência não seria em nada parecida com a recepção desses mesmos produtos de mídia por um estudante do ensino médio morador de uma cidade como São Paulo, por exemplo, porque a experiência que o público tem prescinde de 638

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uma compreensão de mundo e de pertencimento específica, além de uma percepção atual da velocidade de transmissão da informação.

A sociedade de consumo favorece o fandom Uma das perspectivas que servem para observar o fenômeno dos fandoms é a sociedade de consumo como analisada por Canclini (2008). O produto de mídia serve para constituir a identidade do fã, e no espaço do fandom que o indivíduo, especialmente o adolescente e o jovem, tem o primeiro contato com as lógicas e práticas da sociedade em que aquele fandom está inserido. Para muitos homens e mulheres, sobretudo jovens, as perguntas próprias dos cidadãos, sobre como obtemos informação e quem representa nossos interesses são respondidas antes pelo consumo privado de bens e meios de comunicação do que pelas regras abstratas da democracia pela participação em organizações políticas desacreditadas. (p. 14)

Essa experiência pode até gerar alguns choques de realidade quando o indivíduo e o fandom do qual faz parte se encontram em situações distintas, como um fã que faz parte de uma sociedade autoritária e controladora ao mesmo tempo que participa de um uma comunidade fãs construída com base em práticas democráticas. Gray et

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al. (2007) destaca esse desenvolvimento dos indivíduos dentro da comunidade de fãs. há um novo tipo de poder cultural emergindo quando os fãs criam laços dentro de grandes comunidades de conhecimento, investem sua informação, dão forma às opiniões uns dos outros, e desenvolvem uma auto-consciência maior sobre suas agendas compartilhadas e interesses comuns.

As trocas culturais no fandom Featherstone (1995) também contribui para a compreensão do contexto favorável ao desenvolvimento das comunidades de fãs online ao discutir as mudanças ocorridas na cultura pós-moderna nos papéis dos intermediários culturais. Isso é notável nas trocas culturais realizadas dentro dos fandoms, em que os fãs acabam sendo referência para indicações de novos produtos culturais para consumo. Alguns fãs, pela sua expertise e destaque na comunidade, atingem tamanha influência que se tornam referência de gostos e estilos de vida. Todo o aparato tecnológico necessário para as práticas de fãs e para o consumo do produto cultural, desde os primeiros filmes exibidos no cinema, e antes deles o consumo de livros, músicas e peças de teatro, até os atuais vídeos online, fansites, grupos virtuais, fazem parte 640

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das ferramentas já conhecidas pelos fãs. Como explica Thompson, a recepção é uma realização especializada. Ela depende de habilidades e competências que os indivíduos mostram no processo de recepção. [...] Uma vez adquiridas, estas habilidades e competências se tornam parte da maneira social de ser dos indivíduos e se revelam tão automaticamente que ninguém as percebe como complexas, e muitas vezes sofisticadas, aquisições sociais. (p. 43)

Essa ideia explica as mudanças das comunidades de fãs no mundo digital. A habilidade adquirida pelos fãs para se relacionarem através da internet com seus objetos de afeto e com outras pessoas é essencial para observar os fandoms hoje. Com os perfis em sites de redes sociais os produtores de mídia (escritores, músicos, atores, cineastas, etc.) estabelecem um canal direto de comunicação com os fãs, e através dos meus canais ou de vias paralelas é estabelecida uma conversação entre os fãs.

A quase-interação mediada dos fãs Essas interações dentro do fandom e entre fã-ídolo estão relacionadas ao conceito de quase-interação mediada estudado por Thompson (1998), que apesar de pressupor uma interação entre emissor e receptor se diferencia da interação face a face. Enquanto a interação

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face a face exige que receptor e emissor estejam no mesmo lugar ao mesmo tempo estabelecendo uma influência mútua e teoricamente simétrica, a quase-interação mediada as partes podem estar em tempos e espaços diferentes, e com níveis desiguais de envolvimento entre receptor e consumidor. Nas duas relações estabelecidas, se constrói uma “intimidade à distância”, os indivíduos com que se trava essa relação são companheiros regulares e confiáveis que proporcionam diversão, conselhos, informações de acontecimentos importantes e remotos, tópicos para conversação, etc. – tudo de uma forma que evita exigências recíprocas e complexidades que são características de relacionamentos sustentados através de interações face a face. [...] atores e atrizes, astros e estrelas e outras celebridades da mídia se tornaram familiares e íntimas figuras, muitas vezes assunto de discussão e de conversa rotineira na vida diária dos indivíduos (p. 191)

Vale destacar os quatro aspectos principais que diferenciam a quase-interação mediada da experiência vivida (THOMPSON, 1998, p. 197) e se relacionam com as práticas dos fãs individualmente ou dentro da comunidade. O primeiro é que seus eventos podem ocorrer fora do alcance espacial e/ou temporal da vida cotidiana, o que está presente nos filmes estrangeiros que fazem sucesso em outros países, nos músicos que têm uma base forte de fãs mesmo em locais que nunca se apresentaram, 642

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além da divulgação de fotos e vídeos em plataformas de redes sociais trazendo para o tempo e espaço do receptor o que foi produzido no tempo e espaço do emissor. O segundo aspecto é que a diferença de contexto entre a quase-interação e o evento, o que, como afirma Thompson, tem caráter ambíguo, por um lado atraente, porque “espaços de experiências não estão delimitados por contextos espaciais ou temporais, mas lhes são sobrepostos, de tal maneira que o indivíduo pode se movimentar entre eles sem alterar o contexto prático da vida diárias” (THOMPSON, 1998, p. 198), o que é observado na interação online, enquanto as pessoas estão envolvidas em suas atividades diárias e na suas experiências reais vividas, elas podem manter uma influência mútua com os ídolos e entre os fãs da comunidade, engajando-se em discussões virtuais, comentando produções que o ídolo divulgou, seja a produção fim de seu trabalho, como uma música ou vídeo clipe de uma banda, seja as produções de manutenção de influência, como fotos e vídeos sobre bastidores ou relacionados ao cotidiano, numa atitude semelhante ao que é compartilhado entre amigos nas redes sociais. Esse aspecto ainda é observado nos vídeos que exibem causas sociais apoiadas por outros fãs ou pelo ídolo, que acontecem longe do espaço e do tempo do receptor, em contexto diverso e desconcerta pelo choque de realidade que causa pelo contraste “de mundos divergentes que subitamente se unem numa experiência mediada, que choca e desconcerta” (THOMPSON, 1998, p. 198). A “relevância estrutural” é o terceiro aspecto, quando selecionamos o que importa para a construção do self. 643

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Esse aspecto é relacionado às comunidades de fãs por Grossberg (1992, p. 57) No âmbito da sensibilidade afetiva, os textos culturais servem como ‘outdoors’ de um investimento, mas não podemos saber o que o investimento é além do contexto em que ele é feito (este é o aparato). [...] Eles são o local em que nós podemos construir nossa própria identidade como algo em que se investir, como algo que importa.13

Esse aspecto se reflete nas variações de envolvimento do público dentro de um mesmo contexto, como a preferência por um personagem e não por outro, pela preferência por uma música de um álbum e não por outra, porque alguns fãs gostam mais de um episódio de um seriado enquanto outros gostam mais de outro. Essas diferenças se relacionam ao que cada fã identifica como importante ou relevante para si, o que o impressiona de alguma maneira. O último aspecto é a “não espacialização comunal”, os indivíduos não precisam compartilhar o mesmo local para ter aspectos em comum. Dessa maneira, um fã de uma banda britânica pode participar de um grupo online 13. Tradução da autora para: Within an affective sensibility, texts serve as ‘billboards’ of an investment, but we cannot know what the investment is apart from the context in which it is made (that is apparatus). […] They are the places at which we can construct our own identity as something to be invested in, as something that matters. 644

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de fãs predominantemente formado por fãs americanas, sem que isso prejudique suas relações que são baseadas em um interesse em comum, mais do que a localização.

A construção de um fandom Nesse ponto, cabe observar a maneira que se constroem e se identificam as comunidades de fãs. Podemos encontrar tanto exemplos mais tradicionais, como os ­whovians, fãs do seriado Doctor Who, ou os Trekkers, fãs de Star Trek, até a nerdfighteria, fãs dos irmãos John e Hank Green, e as Directioners, fãs de One Direction, passando pelos Potterheads, fãs de Harry Potter. Essa participação em uma comunidade e a identificação como um deles reflete a ideia de Thompson (1998) sobre a importância da comunidade para os fãs: “a possibilidade de se tornar parte de um grupo ou comunidade, de desenvolver uma rede de relações sociais com outros que compartilham a mesma orientação.” (p. 194) A comunidade de fãs se distingue de outros tipos de comunidades por não se definir a partir de um lugar particular, mas inicialmente de interesses em comuns. à medida que nossa compreensão do passado se torna cada vez mais dependente da mediação das formas simbólicas, e a nossa compreensão do mundo e do lugar que ocupamos nele vai se alimentando de produtos das mídias, do mesmo modo a nossa compreensão dos grupos e

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comunidades com quem compartilhamos um caminho comum através do tempo e do espaço, uma origem e um destino comuns, também vai sendo alterada: sentimo-nos pertencentes a grupos e comunidades que se constituem em parte através da mídia. (THOMPSON, 1998, p. 39)

Jenkins (2006, p. 23) destaca a diferenciação entre as ideias de Bourdieu de experienciar a arte à distância e a noção de alta cultura com as práticas dos fãs como uma maneira de construção do eu: “é sobre ter o controle e domínio sobre a arte, trazendo-a para perto e integrando-a em seu sentido do eu.”14 Essa perspectiva reflete o embaçamento das fronteiras entre alta cultura e cultura popular discutida por Featherstone (1995), fazendo com que o conceito de cultura inclua “um amplo espectro de culturas populares e cotidianas, nas quais praticamente todo objeto ou experiência pode ser considerado de interesse cultural.” (p. 135) A constituição da comunidade de fãs também se relaciona com o conceito de que os indicadores de individualidade, do gosto e do estilo pessoal sugerem que todos podem ser alguém nessa sociedade sem grupos com status fixos, e a produção simbólica envolve grupos específicos. (FEATHERSTONE, 1995, p. 119)

14. Tradução da autora para: “it’s about having control and mastery over art by pulling it close and integrating it into your sense of self.” 646

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A visibilidade online Um dos aspectos que facilita as relações entre o fã e o ídolo no contexto atual é a questão da visibilidade, que foi aumentada com o desenvolvimento da internet. A visibilidade dos produtores de conteúdo possibilita a interação, o compartilhamento de informações e produtos de mídia, o mesmo pode-se pensar em relação aos fãs dentro do. O conceito de visibilidade com que se relaciona o projeto é bem diferente do pensamento de visibilidade de dois séculos atrás pela influência das tecnologias de produção, transmissão e recepção de conteúdo, que não é mais limitada pelas características do aqui e agora. Além do mais, essa nova forma de visibilidade mediada não é mais tipicamente recíproca. O campo de visão é unidirecional: aquele que vê pode enxergar pessoas que estejam distantes e que são filmadas ou fotografadas, mas estas últimas não podem vê-lo, na maioria dos casos. Pessoas podem ser vistas por muitos observadores sem que elas próprias sejam capazes de vê-los, enquanto os observadores são capazes de ver à distância sem serem vistos por elas. (THOMPSON, 2007, p. 21)

As condições atuais de visibilidade alteram algumas dinâmicas que foram estabelecidas por anos, como a mediação clara de instituições - como editoras, gravadoras, produtoras de vídeos e canais de televisão - da transmissão de conteúdo e informação do produtor - como 647

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escritores, músicos, atores -, para o público. “Ganhou-se a capacidade de falar diretamente para um público, de aparecer diante dele em carne e osso como um ser humano com o qual seria possível criar empatia e até simpatizar, dirigir-se a ele não como público, mas como amigo.” (THOMPSON, 2007, p. 25) Essa visibilidade pela mídia garante um tipo de “reconhecimento no âmbito público que pode servir para chamar a atenção para a situação de uma pessoa ou para avançar a causa de alguém” (THOMPSON, 2007, p. 37).

O fã produtor Um dos reflexos dessa mudança é o envolvimento de um indivíduo em um fandom não só pelo interesse em comum com os outros fãs, mas pela possibilidade de utilizar os seus talentos e divulgar seus trabalhos para o público formado por aqueles fãs, como lembra Duffett (2013): “Muitos desses jovens são levados às comunidades de fãs – não por sua relação apaixonada e afetuosa com o conteúdo de mídia, mas por que essas comunidades oferecem a eles a melhor rede para levar o que eles produziram para um público maior.”15 Esse 15. Tradução da autora para “Many of these young people are being drawn towards fan communities – not because of their passionate and affectionate relationship to media content but because those communities offer them the best network to get what they have made in front of a larger public.” 648

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é o caso das populares fanarts e fanfics, mas também é observado em outras produções como criação e edição de vídeos, traduções, legendas e dublagens de vídeos, e em diversas funções que os fãs desempenham dentro do fandom como organização e administração de fansites, webdesign e divulgação ativa e organizada dos produtos de mídia. O desenvolvimento de um fã como produtor de conteúdo a partir das atividades realizadas na comunidade é celebrado por Coppa (2014): É ótimo que nós estamos vendo tantos escritores fãs na lista de mais vendidos do New York Times, e que alguns fãs produtores de vídeo estão ganhando dinheiro editando filmes ou criando trailers de livros, e que fãs administradores de sistemas codificadores estão entrando em trabalhos de tecnologia da informação. (p. 77)16

Essa associação entre o conceito de fã e a ideia de produção de conteúdo já estava presente nos textos de Fiske, como destaca Lewis (1992): “Fãs se concentram em cultura popular, ele sugere, porque industrialmente produziu textos que encorajaram a identificação e a

16. Tradução da autora para: “It’s great that we are seeing so many fan writers on the New York Times best-sellers list, and that some fan vidders are making money doing film editing or creating book trailers, and that fannish sysadmins and coders are stepping forward to take information technology jobs” 649

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participação dos membros do público.”17 (p. 3). No livro organizado por Lewis, Fiske (1992, p. 37-39) apresenta três categorias para a produção dos fãs. A primeira é a produtividade semiótica, essencialmente interior e subjetiva, constitui na atribuição de significados para os produtos de mídia e na apropriação deles para a construção da identidade. Quando esses significados são compartilhados com uma comunidade, ocorre a chamada produtividade enunciativa, que é a conversação entre fãs sobre o objeto de afeição. Em seu texto Fiske limita essa produtividade ao momento de fala e a circulação restrita, mas pode-se aplicar esse conceito às discussões que acontecem online, apesar de elas ficarem registradas em suas plataformas e poderem ser recuperadas mais tarde, porque, apesar disso, essas conversações online ainda se diferem da terceira categoria. A chamada produtividade textual é a produção dos fãs com algum valor cultural, como as fanfics, as fanarts, os fanvideos e as resenhas. Hoje essas práticas são ainda mais facilitadas pelo contexto chamado por Jenkins (2009) de cultura da convergência, que afeta não só as práticas dos fãs como a dos produtores, que em outros tempos tinham ação especializada, no cinema, por exemplo, mas hoje também assinam produtos para televisão, música, games, websites, brinquedos, parques de diversões. O consumidor, por outro lado, entra em contato com esse produto ao 17. Tradução da autora para: “Fans concentrate on popular culture, he suggests, because industruially produced texts encourage identification and participation by audience members.” 650

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mesmo tempo em que se engaja entre outras atividades, pode-se ouvir música enquanto trabalha, troca mensagens com um amigo, e lê notícias online. Esse comportamento convergente não fica de fora das produções dos fãs, como exemplifica o autor: E fãs de um popular seriado de televisão podem capturar amostras de diálogos no vídeo, resumir episódios, discutir sobre roteiros, criar fanfiction (ficção de fã), gravar suas próprias trilhas sonoras, fazer seus próprios filmes – e distribuir tudo isso ao mundo inteiro pela internet.” (p. 44)

O papel dos objetos de desejo e coleção Um dos aspectos relacionado às práticas de fãs sempre lembrado pela mídia é a coleção, seja de objetos diretamente ligados ao produto midiático, como DVDs, CDs, livros, seja de itens indiretamente ligados, como revistas e pôsteres sobre o tema, fotos dos ídolos, réplicas de objetos usados em filmes e seriados, objetos autografados. A de valorização de objetos pelo seu significado e simbolismo mais do que seu valor material e objetivo é explicada por Harvey (2001), Fotografias, objetos específicos (como piano, um relógio, uma cadeira) e eventos particulares (uma certa canção tocada ou cantada) se tor-

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nam o foco de uma lembrança contemplativa e, portanto, um gerador de um sentido do eu que está além da sobrecarga sensorial da cultura e da moda consumista. A casa se torna um museu privado que protege do furor da compreensão do tempo-espaço. (p. 264)

Uma aplicação desses valores está nos leilões desses objetos ou na troca desses objetos por doações de dinheiro para causas sociais, esse último caso é exemplificado no Project for Awesome, organizado pelos irmãos Hank e John Green, que arrecadou mais de 500 mil dólares para a caridade pela plataforma Indiegogo, aplicando essa lógica de associar a doação a um brinde que não tinha necessariamente um valor objetivo, uma função prática. Entre as opções de lembranças, estavam itens relacionados à comunidade de fãs nerdfighteria, incluindo moedas e meias com estampas do logo da comunidade, e compilações digitais de músicas feitas pelo fandom, ou de covers de músicas de Hank Green feitos pelos fãs.Ao escolher um item combinando com sua doação, o indivíduo traz para o seu meio uma memória de um momento construído com base na efemeridade. Esse tipo de item relaciona-se com a ideia de valor simbólico explicada por Featherstone (1995), e não se relaciona apenas como a posse de um desses itens, mas com o engajamento da audiência com o Project for Awesome, o valor não está apenas na utilidade, mas no que aquela ação comunica, no caso, fazer parte do grupo de nerdfighters.

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Considerações O consumo de textos mediado influencia e é influenciado pelas mudanças nas práticas sociais e os fãs, como parte da audiência consumidora, servem de perspectiva para estudar a sociedade em que a comunidade que formam está inserida. Os estudos de fãs vêm se desenvolvendo desde o fim da década de 80 nos Estados Unidos e no Reino Unido, e pouco a pouco vêm conquistando seu lugar no Brasil. Como parte das práticas sociais, as práticas dos fãs podem ser observadas pela perspectivas de variados estudos em comunicação e são compreendidas por meio de conceitos como quase-interação mediada, construção do self e visibilidade de Thompson (1998, 2007), cultura da convergência de Jenkins (2009), a dissolução das fronteiras entre alta cultura e cultura popular de Featherstone (1995), as mudanças na percepção de tempo e espaço de Harvey (2001). Fica clara a importância desse campo de estudo e da necessidade do desenvolvimento de mais estudos de fãs, especialmente entre os pesquisadores brasileiros.

Referências CANCLINI, N. G. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2008a. COPPA, F. Fuck yeah, Fandom is Beautiful, Journal of Fandom Studies v. 2, n. 1, 2014, p. 73–82. 653

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FEATHERSTONE, M. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995. FISKE, J. The Cultural Economy of Fandom. In: LEWIS, L. A. (Ed.) The Adoring Audience: Fan Culture and Popular Media. London: Routledge, 1992. p.30-49 GRAY, J., SANDVOSS, C., & HARRINGTON, C. L. Fandom: Identities and Communities in a Mediated World. New York: New York University Press, 2007. E-book. GROSSBERG, L. Is There a Fan in the House?: The Affective Sensibility of Fandom. In: LEWIS, L. A. (Ed.) The Adoring Audience: Fan Culture and Popular Media. London: Routledge, 1992. p. 50-65 HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 2001 JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009 JENKINS, H. Fans, Bloggers, and Gamers: exploring participatory culture. New York: New York University Press, 2006. E-book. LEWIS, L. A. (Ed.) The Adoring Audience: Fan Culture and Popular Media. London: Routledge, 1992. THOMPSON, J. B. O Comunicação e Contexto Social. In: ___________ A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998.

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_____________. O Eu e Experiência num mundo mediado. In: ___________ A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Vozes, 1998. _____________. A nova visibilidade. In: MATRIZes, São Paulo, v. 1, n. 2, p.15-38, 2007 Disponível em . Acesso em: 11 mar. 2015.

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Capítulo 22 Distorções da modernidade: o não lugar da imagem pictórica de fausto em Murnau e Sokúrov Fabrício Mesquita de Aro

A imagem sem território A divisão do território espacial do homem contemporâneo está cada vez mais destacada de sua geografia estática. O atlas enclausurado em estantes deu lugar a mapas digitalizados e em alta resolução, obtidos através de imagens de satélite e do uso de aplicativos em suportes móveis. A delimitação de espaços hierarquizados que delimitam culturas e hábitos já não é mais suficiente para suprir a demanda informacional da atualidade. Ao longo de seu percurso histórico, a imagem recortou-se de sua origem e tornou-se particular a todos os espaços estrangeiros. Numa dinâmica da virtualidade o objeto visual destacou-se do lugar para pertencer a um não lugar. “Contraste: são nas entradas das cidades, nos espaços melancólicos dos grandes conjuntos, 656

das zonas industrializadas e dos supermercados que são plantados os painéis que nos convidam a visitar os monumentos antigos: ao longo das rodovias, que se multiplicam as referências às curiosidades locais que deveriam reter-nos enquanto só passamos, como se alusão ao tempo e aos lugares antigos, hoje, fosse apenas uma maneira de dizer o espaço presente.” (AUGÉ, 2012, p.69)

Para Marc Augé a busca incessante pela velocidade e imediatismo fez do homem contemporâneo um nômade tecnológico desterritorializado de suas concepções espaciais do passado. O caminhar do contemporâneo se dá através de grandes deslocamentos que não têm mais relação com o espaço-tempo analógico. Quanto mais digitalizada for a transmissão informacional, menos esta estará vinculada a uma ideia de repouso. A imagem digital tem em sua natureza a transição, a interface, a decodificação de algoritmos numa recombinação constante – o não lugar da imagem é o habitar todos os espaços ao mesmo tempo, sem criar afetos que possam vincular sua existência a somente um ponto espacial. No contemporâneo tudo está em todo lugar, ao mesmo tempo, sem intervalos. Ao criar novas codificações espaciais a um mesmo objeto, sua natureza imagética começa a se desfigurar de suas características originais estáticas – para cada deslocamento há uma distorção que reconfigura sua estética imediata. Os novos mapeamentos permitem uma representação particular para cada espacialização 657

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criada. Não há mais um mapeamento universal comum a todos os que o habitam: Para cada indivíduo, um continente, e nele, características íntimas de sua representação. Ao analisar a figura-mito de Fausto, permite-se ver o processo de distorção da imagem em suas diferentes adaptações e estabelecer articulações espaço-temporais entre o objeto verbal de Johann Wolfgang von Goethe publicado em 1808, o intraverbal de Murnau no Expressionismo Alemão em 1927 e a verbo-imagético de Sokúrov de 2012.

(Novos Mapeamentos: Representação em escala cromática da cidade de Santiago no Chile mapeada por usuários de celulares com sistemas operacionais Android, IOS, BlackBerry e outros – Fonte: Google)

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O verbal – Fausto em Goethe “A obra, portanto, foi concebida e criada ao longo de um dos períodos mais turbulentos e revolucionários da história mundial. Muita de sua força brota dessa história: o herói goethiano e as personagens a sua volta experimentam com grande intensidade muitos dos dramas e traumas da história mundial que o próprio Goethe e os seus contemporâneos viveram; o movimento integral da obra reproduz todo o movimento mais amplo de toda a sociedade ocidental.” (BERMAN, 1982, p..45)

A figura de Fausto representada por Goethe se distingue de suas anteriores ao relacionar a sua relação com Mefistófeles num pacto muito mais ambicioso do que os bens universalmente desejados: dinheiro, sexo, poder sobre os outros, fama e glória. Na expressão verbal de Goethe o herói é aquele que transitou entre dois espaços: O lugar do arcaico medieval com sua política de feudos e o lugar da Modernidade pós-Revolução Industrial, em uma era burguesa de poderes concentrados. Aqui, o desejo de Fausto é o desenvolvimento, a velocidade, a conquista tecnológica desenfreada. Nesse contexto, a figura do herói se distorce ao trazer contrastes históricos a uma personagem fictícia. “Entendamo-nos bem. Não ponho em mira na posse do que o mundo alcunha gozos. O que preciso e quero é atordoar-me.

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Quero a embriaguez de incomportáveis dores, a volúpia do ódio, o arroubamento das sumas aflições. Estou curado das sedes do saber; de ora em diante às dores todas escancaro est´alma As sensações da espécie humana em peso, Quero-as dentro de mim, seus bens, seus males mais atrozes, mais íntimos se entranhem aqui onde à vontade a mente minha os abrace, os tacteie; assim me torno eu próprio a humanidade; e se ela ao cabo perdida fora, me perderei com ela”

(Litografia de Eugène Delacroix inspirado em Fausto de Goethe (1808). Fonte: Editora 34)

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A frase de Marx “Tudo o que é sólido se dissolve no ar” sintetiza o conceito do homem diante da Modernidade – nada dura para sempre, por mais forte e eterno que pareça. Para que um novo modelo se construa é necessária a destruição do seu devir-antigo. O lugar de Goethe é o cenário da grande evolução tecnológica do homem ocidental, o homem-máquina, o homem-poder. A distorção desloca o personagem medieval para os centros urbanos, dando origem à condição esquizofrênica da metrópole contemporânea.

O intraverbal – Fausto em Murnau República de Weimar, 1920. A Alemanha se encontrava num processo da cura das feridas expostas pela Primeira Guerra Mundial. Em um país destruído nasce uma estética que poderia refletir o imaginário daquela sociedade. A primeira fase do Expressionismo se deu nas artes plásticas para depois se desdobrar no cinema. Em ambos os suportes a estética expressionista se mostrava num campo onírico, com temas extraordinários e fantásticos - e o que seria sua característica mais marcante - o alto contraste da imagem na relação entre luz e sombra do fotograma. Luzes e sombras da tela se mostravam distorcidos, tortuosos e imprevisíveis. A fotografia e os cenários contribuíam para criar uma atmosfera de suspense e com distanciamento plástico do mundo palpável. Trata-se de uma estética antimimética da representação ilusória do espaço tridimensional.

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“A pintura chinesa, do mesmo modo, ignora a perspectiva e o realismo. Parte importante da arte africana também cultivou o que Robert Farris Thompson chamou de “mimese pela metade”, ou seja um estilo que evita tanto o realismo ilusionista quanto a hiperabstração. Tradições não-realistas também existem no Ocidente, e não há nada de intrinsicamente ruim no “realismo ocidental”. Mas como produto de uma cultura específica e de um momento histórico, o realismo é apenas uma variação dentro de um repertório muito mais amplo.” (SHOHAT; STAM, 2006, p.411)

Os atores sempre imprimiam um caráter exagerado em seus personagens, com uma maquiagem pesada que desfigurasse suas formas naturais. Não demorou muito para que esses filmes começassem a despertar a atenção do público intelectual alemão, que raramente valorizava o cinema. O mercado internacional que desde o início da guerra havia se fechado para a Alemanha também começou a mostrar um profundo interesse nessa nova cinematografia. Quando Murnau decide adaptar a obra de Goethe para o cinema, apresenta ao público um Fausto imerso em luz e sombra, carregado de expressões e distorcido plasticamente em seu cenário dominado pelo mal. Fausto aqui é um personagem que sofre a elasticidade dos cenários que o oprimem, pela luz superexposta que contrasta com o pleno breu de suas sombras. Um movimento artístico que nasceu de uma guerra e foi extinto por outra. No momento em que a Alemanha fica dominada pelo nazismo e entra na Segunda 662

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Guerra, o Expressionismo se interrompe. O êxodo de cineastas, atores e técnicos alemães espalhou influências “expressionistas” para o mundo todo, em especial nos Estados Unidos. A estética americana do cinema noir é considerada fruto dessa influência. A imagem exportada não pertence mais à sua origem. Ao se deslocar no espaço a imagem traduz sua distância e seu isolamento em frente a uma nova cultura. A estética do cinema mudo é de uma simbiose entre o verbal dos diálogos introduzidos na imagem pictórica. Quando o objeto intraverbal desloca-se para outro território sua natureza se deforma; o verbal já não pode mais retratar sua língua original. Há de se traduzir para um novo território para qual essa imagem está se deslocando.

(Fausto de F.W.Murnau – 1927 – Fonte: Versátil Filmes)

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O verbo imagético – Fausto em Sokúrov O cinema é a última imagem.[...] Entre os seres e as coisas...O cinema é o último entre dois. Real e imaginário, sujeito e objeto, o mesmo e o outro existem ainda que como partes indiscerníveis, na arte cinematográfica[...] ao se discutir se o cinema é ou gera o real em muitos sentidos, discute-se ao mesmo tempo se ele é ou gera a ilusão em muitos sentidos. Ao manter essa relação entre termos distintos, entre dois, o cinema produz distâncias, ou, ainda, ele se produz na distância.[...] As próximas imagens, aquelas digitalizadas, concebidas através de cálculos matemáticos de computadores, as imagens de síntese, propõem a interação em tempo real. A natureza das imagens mudou inteiramente. (MACIEL, 1993, p. 253-4)

A grande distorção tecnológica do cinema contemporâneo é a que deriva do suporte analógico para o digital. O que antes era um procedimento químico do fotograma, com sua irreversibilidade e grande demora em sua composição final tornou-se um método do imediatismo, da imagem deslocada em todo momento por seus suportes digitalizados de alta fidelidade. O paradoxo de Fausto filmado por Alexander Sokúrov em 2012 reside na textura imagética proposta pelo diretor – os das telas de pintura – a imagem digitalizada de Sokúrov não escancara seus dotes

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t­ ecnológicos na tela, pelo contrário, busca ecoar cenas pintadas à mão com tinta a óleo numa tela branca. Conhecido como o “cineasta pintor”, resolveu inserir seu herói goethiano numa tetralogia fílmica que ficcionaliza personagens históricos do século XX.

(Fausto de Alexandr Sokúrov – 2012 – Fonte: Imovision)

Assim foi chamada a “Tetralogia do Poder”: Moloch (Rússia, 1999), Taurus (Rússia, 2001) e O Sol (Rússia, 2005) são cinebiografias livres de Hitler, Lênin e Hirohito, com suas particularidades visuais distorcidas. Para fechar o Tetro-Poder, Sokúrov filma Fausto (Rússia, 2012), elemento ficcional de Goethe em uma adaptação de uma nova Modernidade da história humana.

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A distorção sokuroviana vem da elasticidade da imagem digital, de sua permeabilidade de edições e manipulações e das quebras dos dogmas da perspectiva linear. Um dos grandes tabus da evolução estética da Arte é a total obediência à perspectiva linear euclidiana, com sua profundidade de campo perfeitamente calculada desde a Renascença. Fez-se acreditar que toda forma de representação a partir daquele momento deveria seguir as linearidades da proporção áurea. O Fausto de Sokúrov dobra e redobra sua imagem, deslocando seus pontos de fuga para extremidades oblíquas, permitindo novos ângulos e novas linearidades espaciais no campo da tela. “Sokúrov recusa a ilusão da tridimensionalidade e o simulacro da realidade e encara a imagem de cinema como algo plenamente horizontal e plano, à maneira de uma tela de pintura. Em vez de reproduzir de forma concreta a natureza, ele a recria como pintor, mesmo que para isso seja preciso lançar mão de acessórios como espelhos, iluminação refletida e refratada, vidros em várias angulações na frente das lentes, e até pincel e finas camadas de tinta sobre esses vidros, tal qual em antigas técnicas chinesas de pintura.” (MACHADO, 2012, p.19)

Quando uma criança faz um desenho de uma casa, ela não a representa segundo as leis da perspectiva renascentista. Na verdade a criança está destituída de regras e dogmas que possam aprisionar seu desenho. Ao criar seu próprio desenho-casa, ela cria sua “própria n ­ atureza”, en666

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xerga o mundo com sua própria perspectiva. O problema é que essa criança passará pelos mesmos ensinamentos renascentistas e voltará a desenhar como o coletivo – sua identidade estética se perderá nesse meio. E se os pintores que viveram antes do Renascimento já tivessem a noção espacial, mas simplesmente se recusaram a reproduzi-la? Optaram assim por construir suas próprias naturezas com suas próprias leis e dinâmicas, libertando a obra de arte para novas representações. “Será verdade que a perspectiva expressa a natureza das coisas, como pretendem seus adeptos, e por isso deve sempre e em qualquer lugar ser considerada a premissa incondicional da veracidade artística? Ou se trata apenas de um esquema, de um entre tantos possíveis esquemas de representação que corresponde não à percepção do mundo como um todo, mas somente a uma entre as possíveis interpretações do mundo, ligada a um modo bastante determinado de sentir a vida e entender a vida?” (FLORIÊNSKI, 2012, p.33)

A natureza verbo-imagética de Fausto em Sokúrov permite que o suporte digital da ferramenta se encontre com seu devir-objeto-pictórico: o pincel. Se pensarmos que o cinema de Sokúrov é moldado pelo conceito de pinceladas, a tela de cinema irá ecoar a estética das obras emolduradas em museus. A obra de arte não se conforma em se aprisionar no espaço enclausurado do tradicionalismo – ambiciona a grande sala de cinema, busca grandes escalas para sua representação. 667

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“A origem não é apenas o que teve lugar uma vez e nunca mais terá lugar. É também – e mesmo mais exatamente – o que no presente nos volta como de muito longe, nos toca no mais íntimo e, como um trabalho insistente do retorno, mas imprevisível, vem trazer seu sinal ou seu sintoma.” (HUBERMAN, 2013, p.113)

(Santa Trindade, pintura sobre madeira, Andrei Rublev, 1427. Fonte: Editora 34)

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Seja no “Eterno Retorno” de Nietzsche ou no conceito de sintoma descrito por Huberman, a arte é feita de ciclos e elipses temporais. Recombina-se com novas tecnologias e desperta entre os não lugares da Modernidade. Ao expandir os limites do mapeamento geográfico, uma pintura icônica bizantina do século XIV dialoga livremente com a imagem digitalizada. As molduras do contemporâneo são elásticas e seus frames são como uma malha tecida sob forte tensão informacional. Mesmo distorcida, essa imagem não há de se romper.

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Capítulo 23 Representações Sociais da Profissão de Relações Públicas no Cinema: Análise sobre o Filme Thank you for smoking Lucas Sant’Ana Nunes1

O cinema é visto na sociedade como um meio de comunicação capaz de gerar os mais intensos debates em ambiente acadêmico, despertando o fascínio de espectadores, cinéfilos, críticos e analistas. É indiscutível que a chamada sétima arte traz expressivos desdobramentos culturais para a vida cotidiana, fomentando o universo simbólico no qual se baseiam as opiniões de indivíduos, comportamentos, estereótipos e até mesmo relações sociais. O Cinema ocupa uma posição privilegiada de agente no sistema cultural. (ORTNER, 2007)

1. Mestrando em Comunicação Midiática e graduado em Relações Públicas pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp - Bauru), Brasil – E-mail: [email protected] 674

Diversas teorias foram elaboradas com a proposta de desvendar como se operam os processos de produção de sentido no cinema, bem como as representações cinematográficas afetam a forma como o espectador vê o mundo. A significação ocupa um papel de destaque nas discussões acadêmicas sobre cinema, do mesmo modo como o público extrai e utiliza os quadros simbólicos de referência que são fornecidos através da imagem em movimento. Destarte, os limites entre o encenado e o vivido na concretude cotidiana tendem a se tornar mais fluidos, já que os procedimentos cinematográficos resultam em uma ‘impressão de realidade’ que deve ser assumida pelo público (METZ, 2012). O cinema, visto como construção simbólica, passa a efetuar uma operação de caráter ideológico que permite guiar o sistema cultural através de representações sociais, que por sua vez fornecem as bases para estruturar cognitivamente os comportamentos individuais e coletivos. O cinema não representa somente o espetáculo que fascina mundialmente cada vez mais apreciadores, mas uma realização de ordem ético-moral que permite trazer às telas elementos dinamizadores da cultura, quanto reflexos da própria cultura, de modo a construir o imaginário social que permeia as relações entre os indivíduos. (MORIN, 1977) Em vista disso, o cinema pode construir, desconstruir, afirmar, legitimar ou até mesmo deslegitimar identidades através de seus processos de produção de sentido, empreendimento que traz desdobramentos para a toda a vida em sociedade, como será visto adiante. Neste artigo, são discutidas a representação social e a construção de identidades no cinema, além de seus impactos 675

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socioculturais, traçando um panorama sobre como a profissão de relações públicas é representada por uma filmografia recente. Portanto, é essencial a utilização do conceito de Representações Sociais de Moscovici para entender como se constroem e são reproduzidas tais elaborações simbólicas, contextualizando tais concepções sob a perspectiva de meios de comunicação como o Cinema. A presente pesquisa apresenta importante relevância para a área de Relações Públicas e no estudo dos desdobramentos culturais através dos processos midiáticos, uma vez que se compromete a identificar questões que podem nortear a atuação e as percepções da sociedade e dos próprios profissionais com relação à essa atividade. A análise poderá contribuir tanto em âmbito científico, descortinando a visão sobre a identidade das Relações Públicas através do cinema, como em âmbito social, permitindo ao relações-públicas ter um horizonte mais amplo em relação à sua atividade e seu reconhecimento, fazendo com que possa desempenhar uma atividade reflexiva sobre sua profissão, elaborando estratégias identitárias e contribuindo para que sua atividade ganhe cada vez mais relevância para as pessoas e organizações que compõem a sociedade. Por conseguinte, é preciso saber como o profissional de RP é retratado no cinema e visto no âmbito social, bem como suas próprias atividades, já que esta é uma profissão que vem assumindo cada vez mais importância, se afirmando no mercado e nas organizações, o que torna ainda mais necessário o reconhecimento de tais percepções sobre sua atividade profissional. A análise deste estudo se compromete a estabelecer quais são as 676

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representações sociais ligadas ao profissional de Relações Públicas em um filme recente e de grande sucesso comercial, Thank you for smoking (2005), verificando quais construções simbólicas são associadas à atividade e descortinando como tais significados podem se traduzir em desdobramentos para a profissão. Traçando um panorama sobre a Teoria das Representações Sociais de Serge Moscovici, conceituando e delimitando tais estudos e como a Comunicação Midiática e o Cinema estão inseridos neste contexto, pretende-se verificar como o imaginário social é influenciado pelos meios de comunicação e, principalmente, como o Cinema constrói e reproduz significados que trazem impactos na forma como a sociedade explica a realidade aos sujeitos e grupos sociais. O intuito desta pesquisa é de fornecer uma observação crítica sobre como o profissional de Relações Públicas é representado, bem como os impactos de tais significações para sua profissão, analisando em quais contextos atua na narrativa, de quais práticas se utiliza, como é sua relação com outros personagens, além de verificar seu posicionamento social na trama.

Representações Sociais e a Comunicação Midiática Como ponto de partida, é necessário compreender a conceituação e a origem do termo ‘Representação Social’, contextualizando-a. O conceito de Representação Social, cunhado pelo psicólogo social romeno naturalizado

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francês Serge Moscovici, se trata de uma atualização do conceito de Émile Durkheim de Representação Coletiva. Moscovici, à vista disso, estudou como a psicanálise era representada socialmente e percebida pela população parisiense, trazendo importantes contribuições para algo que se tornou mais tarde uma teoria das Representações Sociais, possibilitando estender o estudo a outras áreas, por diversos autores. A origem etimológica da palavra representação remonta ao termo latino ‘representare’, que significa ‘fazer presente’ ou ‘apresentar de novo’. Portanto, para fazer presente algo ou alguém é necessário o intermédio de uma representação. Dessa forma, as representações sociais podem ser definidas como: uma série de proposições que possibilita que coisas ou pessoas sejam classificadas, que seus caracteres sejam descritos, seus sentimentos e ações sejam explicados e assim por diante. (MOSCOVICI, 2007, p. 207)

Em outros termos, as Representações Sociais carregam em si a possibilidade de explicar a realidade aos indivíduos, além de fazer com que as pessoas e grupos possam se situar na sociedade, adquirindo assim um nível identitário. As Representações Sociais possuem um papel crucial na elaboração de mecanismos de autoimagem e visão social dos grupos ou sujeitos. Os indivíduos, portanto, passam a obter quadros de referência para basear suas próprias vidas e comportamentos,

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sabendo quais práticas são aceitas socialmente. A representação social é o que vai ditar aquilo que é aceitável e lícito em um determinado contexto social. No entanto, como face da mesma moeda, as representações sociais podem alargar as diferenciações entre os grupos sociais, podendo contribuir para causar estereotipias e discriminações, já que são construções simbólicas negociadas culturalmente entre o indivíduo, os grupos sociais e a própria sociedade como um todo, que apresenta em seus interstícios relações complexas de poder e de sociabilidade. Neste sentido, Jodelet (2001, p. 27) afirma que há quatro características fundamentais no ato da representação social: - a representação social é sempre representação de alguma coisa (objeto) e de alguém (sujeito); - a representação social tem com seu objeto uma relação de simbolização (substituindo-o) e de interpretação (conferindo-lhe significações); - a representação será apresentada como uma forma de saber: de modelização do objeto diretamente legível em diversos suportes linguísticos, comportamentais ou materiais - ela é uma forma de conhecimento; - qualificar esse saber de prático se refere à experiência a partir da qual ele é produzido, aos contextos e condições em que ele o é e, sobretudo, ao fato de que a representação serve para agir sobre o mundo e o outro.

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Dinâmica das Práticas Acadêmicas

A realidade social, através desta perspectiva, é vista como um contexto no qual se situam pessoas e grupos, formada a partir das relações existentes entre estes conjuntos através de sua bagagem cultural, pelos códigos, símbolos e valores ligados à estas vinculações sociais e os processos comunicativos inseridos neste âmbito. Em outros termos, a representação social é aquilo que dá sentido aos eventos cotidianos e práticas sociais. Os comportamentos na sociedade são ditados pelas elaborações cognitivas e simbólicas. Sendo assim, existe uma negociação constante entre o indivíduo e a sociedade, onde as representações sociais e os processos comunicativos assumem uma importância crucial. As representações sociais se configuram como um importante conceito a ser utilizado pois todas as coisas que nos tocam no mundo social são reflexos ou produtos das representações sociais. Em outras palavras, para Serge Moscovici, todas as representações sociais são originadas a partir da realidade social. As representações, portanto, seriam formas simbólicas que mediam todo o sistema de classificações do ser humano, sejam elas ligadas ao âmbito científico ou ao senso comum. Além disso, as representações sociais apresentam um papel fundamental pois desempenham uma função importante de contribuir para a formação de comportamentos, sendo orientadas através de atos comunicativos e processos negociados entre os indivíduos e a sociedade. É precisamente a pluralidade objetiva da vida social que constrói a rede intersubjetiva que 680

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constitui a realidade de um tempo e lugar histórico. É na relação triádica entre sujeito-objeto-sujeito que encontraremos tanto a possibilidade da construção simbólica como os limites dessa construção. Porque a cada sujeito que investe o objeto com sentidos a partir do seu lugar particular no tempo e no espaço, compete reconhecer as construções de outros sujeitos que também ocupam posições particulares no tempo e no espaço. A significação, portanto, é um ato que tem lugar (e só pode ocorrer) numa rede intersubjetiva, entendida como uma estrutura de relações sociais e institucionais dentro de um processo histórico. (JOVCHELOVITCH, 2002, p. 78).

Nota-se que as representações sociais não são impostas pela sociedade ou por uma ideologia dominante, considerando o receptor das mensagens nos processos comunicativos como alguém que não possui criticidade. Ao contrário, as representações sociais são resultado de um processo em que o indivíduo participa de maneira ativa e consciente: Nas ruas, bares, escritórios, hospitais, laboratórios, etc. as pessoas analisam, comentam, formulam “filosofias” espontâneas, não oficiais, que têm um impacto decisivo em suas relações sociais, em suas escolhas, na maneira como eles educam seus filhos, como planejam seu futuro, etc. Os acontecimentos, as ciências e as ideologias apenas lhes fornecem o “alimento para o pensamento”. (MOSCOVICI, 2007, p. 45).

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Sob esse viés, pode-se entender que as representações sociais são elementos construídos a partir da teia de significações formada pela cultura, em um contexto onde as relações sociais e os processos comunicativos entre grupos e indivíduos são fenômenos que atuam na legitimação de tais representações. Pode-se analisar, portanto, que existe um diálogo constante entre as representações sociais veiculadas através dos meios de comunicação de massa e os indivíduos, uma vez que tais representações se veem permeadas por determinados interesses e pontos de vista. Neste contexto, a recepção dos indivíduos de tais mensagens e conteúdos veiculados pela mídia não pode ser vista de forma que o receptor seja encarado como passivo, mas deve ser analisado como sujeito, ou seja, como um elemento ativo no processo comunicacional, que forma sua opinião de acordo com tais conteúdos mas também de acordo com suas próprias convicções, visões de mundo e sua própria criticidade. Neste sentido, os meios de comunicação de massa possuem um papel de relevância central, uma vez que são utilizados a favor da disseminação de certas representações sociais que refletem a ideologia de seus realizadores. O cinema, neste ponto, assume o papel de privilegiar certas construções simbólicas para retratar a realidade, de forma a construir em seus interstícios processos comunicativos que vão pautar cognitivamente as opiniões e visões de seus espectadores sobre determinados assuntos. Destarte, pode-se dizer que o cinema carrega em si a afirmação de uma forma de ver o mundo, que é transmitida a seus espectadores de maneira que 682

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estes assumem o exposto na tela como o reflexo da própria realidade. Tal questão permite entender como o imaginário da sociedade é construído, desconstruído e reconstruído ao longo dos anos através da forma como o cinema influencia o mundo cotidiano. A imagem em movimento exposta nas telas é a base na qual se constroem opiniões, comportamentos, visões de mundo e até mesmo sonhos. A realidade social passa a estabelecer uma dinâmica de diálogo com o cinema à medida que as representações sociais são apresentadas e reproduzidas através de suas obras. Partindo desses pressupostos, pode-se questionar: quantos não são os objetivos e sonhos pessoais criados todos os dias através da “magia” das imagens do cinema? Os indivíduos passam a adotar trejeitos e falas de seus personagens favoritos, maneiras de encarar as situações de sua vida cotidiana e até mesmo escolhas pessoais como suas preferências de estilo, moda, música e profissão. O cinema é tema das mais variadas conversas cotidianas, apresentando e pautando assuntos que refletem as mazelas da própria sociedade como a vida, a morte, o amor, a criminalidade, as drogas, dentre muitos outros temas dos quais a encenação cinematográfica se ocupou ao longo dos anos. Levando em conta tal aspecto, a relevância e o impacto do cinema para a cultura e as relações sociais é inegável, uma vez que fornece os quadros de referência para explicar a realidade aos grupos sociais. Faz-se necessário, através deste ponto de vista, analisar quais são os impactos do Cinema para a vida social levando em conta como as representações sociais 683

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influenciam as construções simbólicas e cognitivas formadas e reproduzidas através dos meios de comunicação, dos processos comunicativos massivos e das relações sociais e cotidianas.

Cinema, a Construção de Representações Sociais e a Impressão de Realidade O Cinema, enquanto construção simbólica humana, pode ser traduzido em diversas formas e visto sob muitas perspectivas. Pode-se analisar o Cinema como meio de comunicação, como indústria cultural, como mecanismo de reprodução, como técnica, como arte e até mesmo como fábrica de sonhos e ilusões. Contudo, neste artigo, adota-se a perspectiva que coloca o Cinema como uma linguagem audiovisual capaz de gerar uma impressão de realidade que deve ser assumida pelo público, reproduzindo representações sociais através de operações de caráter ideológico e construindo elaborações cognitivas nos espectadores, que podem influenciar na formação de sua visão de mundo. O ponto central é como os processos de construção simbólica e produção de sentido são realizados, haja visto os profundos impactos que o Cinema ocasiona na vida cotidiana e social. Edgar Morin (1977), em seus estudos sobre o Cinema, elaborou uma perspectiva social e cultural de construção do imaginário coletivo, descrevendo a linguagem

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cinematográfica de maneira poética e traçando um paralelo com a invenção da aviação, que foi contemporânea à invenção do próprio Cinema, datando seu surgimento no final do século XIX e início do século XX. Seu ponto de vista sugere que, enquanto o avião deu asas ao corpo humano, fazendo com que o indivíduo possa cobrir distâncias antes nunca imaginadas, o cinema deu asas à imaginação e aos sonhos do homem, fazendo com que a fantasia pudesse se materializar na realidade. Tal relação seria imprescindível para se entender como o homo demens, ligado ao sonho, à fantasia e à imaginação se materializou através do homo faber, ligado à produção de artefatos e ferramentas, operação realizada pelo cinema. A discussão traz à tona como o Cinema consegue tornar concreto o imaginário e a cultura através de sua linguagem, expondo nas telas as contradições que encontramos na própria sociedade. As discussões teóricas sobre o Cinema, enquanto meio de comunicação responsável por criar e reproduzir universos simbólicos que refletem a realidade, são debates muito extensos e bem desenvolvidos no campo sociológico e estético. Ismail Xavier (2005) aponta em suas obras como o cinema é capaz de reproduzir imagens que criam uma “impressão de realidade” nos indivíduos, gerada através de seus mecanismos de produção de sentido: Se já é um fato tradicional a celebração do “realismo” da imagem fotográfica, tal celebração é muito mais intensa no caso do cinema, dado

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o desenvolvimento temporal de sua imagem, capaz de reproduzir, não só mais uma propriedade do mundo visível, mas justamente uma propriedade essencial à natureza – o movimento. O aumento do coeficiente de fidelidade e a multiplicação enorme do poder de ilusão estabelecidas graças a esta reprodução do movimento dos objetos sucitaram reações imediatas e reflexões detidas. (XAVIER, 2005. p.18)

Dessa forma, pode-se entender o processo de produção de sentido no cinema como uma construção simbólica através de uma sucessão de imagens que estabelece um sintagma (METZ, 2012), o que pode ser entendido como o “espírito manipulador” do Cinema, pelo qual o espectador é induzido a assumir uma determinada sequência lógica de acordo com as imagens expostas na tela. O processo de montagem, portanto, assume um papel central na construção simbólica do Cinema, uma vez que estabelece a ordem dos planos e dos conjuntos de cenas de um filme, que podem ser vistos como um encadeamento de sintagmas. Os processos de produção de sentido, portanto, seriam realizados através da filmagem e da montagem, que conferem significado às cenas expostas em tela. No entanto, a linguagem cinematográfica também se configura como uma operação de caráter ideológico pois tem o papel de veicular e reproduzir uma visão de mundo, privilegiando as representações que mais se adequam aos seus propósitos. Segundo Christian Metz (2012), “O 686

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sentido não basta, precisa acrescentar a significação”. Assim, o Cinema se encarrega de mostrar explícita ou implicitamente uma determinada fundamentação ideológica de maneira a criar sentido a partir destas operações e fornecer quadros de referência para que os indivíduos possam estabelecer suas elaborações cognitivas, traduzindo-se em opiniões, comportamentos e modos de explicar a realidade. O Cinema, portanto, pode ser visto como um meio de expressão único, pois opera a partir da representação da realidade de uma maneira nunca antes concebida por outras formas de arte e comunicação: Mas o que distingue o cinema de todos os outros meios de expressão culturais é o poder excepcional que vem do fato de sua linguagem funcionar a partir da reprodução fotográfica da realidade. Com ele, de fato, são os seres e as próprias coisas que aparecem e falam, dirigem-se aos sentidos e à imaginação: à primeira vista, parece que toda representação (significante) coincide de maneira exata e unívoca com a informação conceitual que veicula (significado). (MARTIN, 2013, p.18)

No entanto, é preciso recordar que o Cinema não se caracteriza somente como uma reprodução fotográfica da realidade, mas vai além disso, pois pode ser entendido como uma sucessão de fotografias e imagens, que conferem o movimento ao exposto em tela. A imagem em movimento, a partir desta perspectiva, é 687

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vista com mais naturalidade e impressão de realidade do que a própria fotografia, pois o movimento dá a ilusão de que os acontecimentos estão ocorrendo naquele momento, o que cria um laço de identificação e participação afetiva com o público que assiste a narrativa cinematográfica. O fenômeno da impressão de realidade no Cinema é sempre uma ocorrência de duas faces: pode-se procurar a explicação no aspecto do objeto percebido ou no aspecto da percepção. A linguagem cinematográfica, através desta perspectiva, pode ser entendida como um meio de não só criar a impressão de realidade no espectador, mas de fazer com que essa impressão seja carregada de um mecanismo que garante a sua participação, fazendo com que o exposto em tela se traduza em catarse: “O caráter quase mágico da imagem cinematográfica aparece então com toda a clareza: a câmera cria algo mais que uma simples duplicação da realidade.” (MARTIN, 2013, p. 15) Mais do que em qualquer outra arte, como a literatura, o teatro, a pintura, a escultura e até mesmo a fotografia, o cinema proporciona ao indivíduo uma experiência que se assemelha diretamente ao real. Os processos de participação do espectador assumem um caráter perceptivo e afetivo à medida que a narrativa se desenvolve. É importante ressaltar que, no processo de disseminação ou reiteração das mensagens ideológicas, o cinema (re)descobriu a existência de um território do vazio entre o espectador e o mundo, cabendo aos 688

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filmes instigar o público e vivenciar a trama como se estivesse inserido nela, decifrando os enigmas mundiais para quem pouco sabe sobre eles. Os limites entre o encenado e o vivido na concretude cotidiana tendem a tornar-se mais fluidos devido aos procedimentos de espetacularização e mitificação dos personagens, dos valores de ordem ético-moral e dos cenários expostos na tela. As estratégias de encenação cinematográfica ditam a cadência de um discurso politizado, criando com um vigor nunca antes experimentado pela cultura a construção do bem e do mal, dos heróis e dos vilões, dos vencidos e dos vencedores e também os perfis profissionais, seus atributos e sua inserção na sociedade abrangente. De maneira geral, o Cinema atua em uma lógica que o permite reproduzir e privelegiar certas representações sociais que reiteram seu posicionamenteo ideológico enquanto indústria e meio de comunicação, fazendo com que a realidade seja explicada através de um ponto de vista que particulariza determinadas representações sociais, retratando objetos, sujeitos e grupos sociais de acordo com seus interesses e visões de mundo. Sob esta perspectiva, nenhuma imagem, plano ou cena pode ser entendida como algo gratuito ou desprovido de propósito na narrativa cinematográfica, uma vez que carrega em si uma série de proposições ideológicas que apresentam determinados interesses e representações sociais que atuam em um contexto onde o espectador é 689

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levado a creditá-los como reais e, mais do que isso, a se identificar com tais construções simbólicas. O processo de participação através da identificação com os personagens e cenários expostos na tela se traduz em uma lógica afetiva, onde o espectador passa a se sentir parte da própria narrativa, experimentando sensações e emoções que vivencia em sua própria vida cotidiana, mas que são amplificadas pela experiência do cinema. Neste sentido, as Representações Sociais constituídas através da linguagem cinematográfica se mostram em um contexto polifônico, ou seja, expõem diversas representações para o mesmo sujeito ou objeto, lhes proporcionando subjetividade e complexidade enquanto personagens.

Análise das Representações Sociais Associadas ao Profissional de Relações Públicas, Resultados e Discussões Uma vez conceituadas as representações sociais, pode-se adentrar à análise de conteúdo da película Thank you for smoking (Obrigado por fumar, título traduzido para a distribuição no Brasil), onde o recorte privilegia os diálogos presentes nos filmes, verificando quais construções simbólicas são recorrentes na representação do profissional de RP, além de realizar uma análise fílmica que pretende descortinar como os processos de produção de sentido se constroem em tais filmes.

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Em Thank you for smoking, Nick Naylor, personagem interpretado por Aaron Eckhart, é o principal porta-voz de grandes empresas de cigarros. Desafiado pelos vigilantes da saúde e também por um senador, Ortolan Finistirre, personagem do ator William H. Macy, que deseja colocar rótulos de veneno nos maços de cigarros, Nick passa a manipular informações de forma a diminuir os riscos do cigarro em programas de TV, além de fazer com que o fumo seja promovido em filmes hollywoodianos através de seus contatos com a indústria cinematográfica. A película retrata o universo do lobbying na indústria dos cigarros, bebidas e armas nos Estados Unidos da América, mostrando como os profissionais de comunicação realizam estratégias para conquistar uma imagem positiva de suas empresas. O próprio título da película, Obrigado por fumar, na tradução para a distribuição no Brasil, já denota o tom cômico e satírico que o filme transmite. Tal característica demonstra a intenção da trama em criar uma paródia do ambiente organizacional formado pela indústria de tabaco nos Estados Unidos, revelando o cotidiano dos profissionais que se preocupam em manter um público consumidor fiel às suas marcas e uma imagem institucional positiva da organização frente à sociedade. A seguir, é possível analisar a Tabela 1 - Frequência de ocorrência de representações sociais ligadas ao profissional de Relações Públicas no filme Thank you for smoking (2005) e a Figura 1 - Frequência de 691

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ocorrência de representações sociais ligadas ao profissional de Relações Públicas no filme Thank you for smoking (2005), que ilustram os termos que aparecem em maior número na película: Tabela 1 - Frequência de ocorrência de representações sociais ligadas ao profissional de Relações Públicas no filme Thank you for smoking (2005) Frequência de ocorrências

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Diabo, assassino, explorador, matador de crianças, parasita

6

Enganador, Manipulador

5

Lobista

4

Porta-voz

3

Causador de dor e sofrimento

2

Charmoso

1

Leal

1

Mediador

1

“Advogado da marca”

1

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Figura 1 - Frequência de ocorrência de representações sociais ligadas ao profissional de Relações Públicas no filme Thank you for smoking (2005)

A princípio, as construções simbólicas mais recorrentes que caracterizam as representações sociais ligadas ao profissional de RP se configuram em um viés nada otimista sobre a atividade. Os termos “Diabo”, “assassino”, “explorador”, “matador de crianças” e “parasita” revelam de maneira ácida e cômica a visão que a película pretende transmitir através de sua narrativa sobre o universo dos lobistas. Representações como estas traduzem a maneira como os 693

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profissionais de Relações Públicas podem ser analisados no enredo, fazendo com que a profissão seja caracterizada de maneira pitoresca mas contundente em sua crítica, onde o relações públicas é visto como um personagem desprovido de princípios éticos e escrúpulos. Estas representações sociais mostram, de forma mordaz, como o profissional de Relações Públicas é visto no contexto da narrativa, uma vez que trazem uma forte crítica à maneira como a indústria e o sistema capitalista atual se valem da profissão para criar uma imagem e reputação favoráveis às empresas e organizações, se utilizando de um conjunto de métodos reprováveis do ponto de vista ético. O intuito de tais organizações fica claro no contexto diegético, já que seus objetivos se situam no âmbito de legitimar um estilo de vida ligado ao consumo, em que o indivíduo é levado a deixar de refletir sobre suas próprias práticas cotidianas, acreditando que o fumo é inofensivo à saúde e um hábito glamouroso. Tal intuito revela uma regra imprescindível para o funcionamento do capitalismo que é o lucro, uma vez que as organizações se valem de tais estratégias comunicacionais visando justamente legitimar um modo de vida, garantir que seus clientes continuem fiéis à marca e que o hábito de fumar permaneça atraente, conquistando cada vez mais consumidores, a começar pelos jovens, público essencial para a perpetuação do consumo de cigarros. Neste sentido, o termo “causador de dor e sofrimento” cristaliza uma crítica interessante à forma como a indústria de cigarros opera, já que mostra que a responsabilidade sobre os problemas de saúde causados pelo 694

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fumo não decorre somente das escolhas individuais de consumo, mas sim de todo um sistema que legitima o ato de fumar como uma prática saudável e glamourosa. Esta assertiva fica ainda mais explícita quando Nick sai em sua missão para fazer calar o personagem de Marlboro Man, o cowboy e garoto-propaganda da marca de cigarros, que após anos figurando como o símbolo máximo do estilo de vida associado ao fumo se vê em um estado terminal devido ao câncer de pulmão. Já os termos “lobista”, “porta-voz” e “mediador”, mostram de maneira neutra como o personagem de Nick pode ser identificado, pois deixam claro somente a função desempenhada por ele no contexto da organização onde trabalha. Tais construções explicitam que o profissional de Relações Públicas pode ser visto como um mediador entre os objetivos da empresa ou organização e os grupos de interesse a quem devem prestar contas, como seus clientes, fornecedores, o governo, a mídia, os órgãos de regulação de saúde, organizações não governamentais e a sociedade, de uma maneira geral. O relações públicas, portanto, pode ser visto como o “advogado da marca” – termo utilizado para caracterizá-lo no contexto narrativo de Thank you for smoking – pois é de sua responsabilidade defender os interesses, objetivos e finalidades da organização à qual presta seus serviços. Por ser o principal porta-voz das indústrias de cigarros e do centro de pesquisas médicas sobre o fumo e seus danos à saúde, o personagem de Nick Naylor é visto como um homem cínico que usa de seu forte poder de argumentação para convencer as pessoas de que não existem estu695

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dos conclusivos que associem o consumo de tabaco aos danos à saúde, como o câncer. Para Nick, o ato de fumar é fruto da liberdade de escolha das pessoas e as empresas de cigarros não podem ser responsabilizadas por isso. O personagem principal da trama é visto como “enganador” e “manipulador”, um lobista dotado de um enorme talento para a persuasão e que não possui escrúpulos em defender a indústria de cigarros nos EUA. Nick Naylor justifica essa característica de sua personalidade como uma “flexibilidade moral” quando é questionado por seu filho, que tem o pai como exemplo. O elemento persuasivo em Nick parece ser seu principal trunfo para projetar uma imagem positiva da indústria do tabaco frente à sociedade, onde se vale de uma argumentação poderosa no sentido de minimizar os efeitos nocivos do consumo de cigarros, bem como associar o fumo à um estilo de vida glamuroso e saudável. Nick, em uma de suas frases emblemáticas no decorrer da trama diz: “A beleza de um argumento é que, se você argumentar corretamente, você nunca está errado”. (Thank you for smoking 2005) Como cena em evidência, pode-se destacar um dos planos em que ocorre a tradicional reunião dos “Mercadores da Morte”, como é intitulado pelo próprio grupo, formado por Nick, Polly e Bobby, os representantes das indústrias de cigarros, bebidas alcoólicas e armas nos EUA, respectivamente. Em tais reuniões, que acontecem semanalmente em um restaurante, os lobistas discutem estratégias de persuasão perante o público e competem de maneira cínica pelas taxas mais altas de mortalidade, vangloriando-se 696

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quando as alcançam, tudo em meio a um jantar bastante amistoso e cordial. Tais cenas mostram de maneira descarada e jocosa o cotidiano de tais profissionais, sugerindo o que eles devem fazer em suas horas vagas: pensar em novas formas de manipular, ludibriar e contar as mortes pelas quais são responsáveis, de maneira frívola e banal. A forma como o filme retrata a mídia, de uma maneira geral, também se destaca por sua crueza e pessimismo. Os grandes meios de comunicação, que acompanham a guerra travada entre as indústrias de cigarros, representadas pelo personagem principal e pelo senador Finistirre, realizam uma cobertura midiática sensacionalista, que explora diversos casos de pessoas debilitadas fisicamente pelo fumo de maneira cínica. Os jornais e emissoras de televisão que noticiam os acontecimentos no contexto narrativo parecem estar mais interessados em conseguir uma maior audiência através do sofrimento alheio do que propriamente fazer com que seu público adquira uma visão esclarecida sobre os malefícios causados pelo consumo e vício do cigarro. Uma visão que corrobora com tais questões é a própria forma como Heather, a personagem de uma jornalista que deseja realizar uma entrevista com Nick, é retratada. Inicialmente, Heather se aproxima de Nick com o intuito de obter informações e a opinião do relações públicas sobre toda a polêmica criada com o caso da trama judicial envolvendo os riscos e danos causados pelo consumo de cigarros na narrativa. Depois de algum tempo, Heather passa a se envolver amorosamente com Nick, que por sua vez lhe concede 697

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informações privilegiadas sobre a indústria de cigarros, confiando em seu sigilo e tratando as questões de maneira mais sincera e crua, comportamento que o leva a lhe proporcionar detalhes que ficariam fora do alcance da mídia e, consequentemente da opinião pública. Após conseguir todas estas informações, que certamente não conseguiria através dos meios tradicionais do jornalismo investigativo sério e ético, Heather veicula uma grande reportagem sobre a indústria de cigarros e sobre como Nick busca somente a aceitação pública das organizações que defende, não dando nenhuma importância para os malefícios de que seus consumidores estão expostos, o que termina por retratá-lo como um profissional sem escrúpulos. Em outras palavras, Heather - a personagem que representa a figura do jornalista na trama – desempenha um papel tão cínico e imoral quanto Nick, já que se valeu das informações conseguidas através da intimidade criada a partir de um relacionamento amoroso, que no final pode ser visto apenas como um meio para que ela atingisse seus objetivos. Tal estratagema de Heather acaba por resultar na demissão de Nick das organizações que defende, fazendo com que o personagem passe a se voltar para trabalhos prestados à outras organizações. O jornalista, portanto, também é representada de maneira estereotipada e negativa, mostrando um profissional que justifica seus fins pelos meios, se valendo de qualquer tipo de empreitada, seja ela antiética, imoral ou não, para atingir uma determinada finalidade. O que se pode entender através desta perspectiva é que a 698

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maneira como a Comunicação Midiática, de uma forma geral, é vista na sociedade é negativa, pois os termos e construções simbólicas associados ao campo parecem sempre reiterar a faceta da manipulação, da ausência de ética e de escrúpulos e até mesmo das práticas desonestas utilizadas por profissionais da área. Não obstante, é óbvio que essa visão se compõe de um ponto de vista reducionista que não se propõe a analisar a complexidade do campo comunicacional, mas fornece pistas de como a sociedade vê os meios de comunicação e os profissionais que trabalham neste contexto.

Considerações Finais O Cinema pode ser visto não só como meio de comunicação ou campo estético e artístico, mas deve ser analisado também sob o viés sociológico e interpretativo, uma vez que se propõe a fornecer os quadros de referência que servem como base de construção para o universo simbólico dos indivíduos e grupos sociais. As narrativas cinematográficas se constituem de processos de produção de sentido que reproduzem e privilegiam certas representações sociais de acordo com seus interesses e posicionamentos ideológicos, o que se desenvolve na visão de mundo mostrada nas telas. Estes desdobramentos permitem que a realidade seja apresentada e explicada aos indivíduos, de forma que suas construções simbólicas sejam pautadas através

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de processos conscientes e ativos de diálogo cognitivo com os indivíduos. Neste contexto, o que se pode observar, na narrativa de Thank you for smoking, é um certo predomínio de estereótipos ligados à atividade de Relações Públicas. O profissional é retratado como manipulador, antiético e enganador. A atividade é vista como um instrumento de promoção de consumo, que por vezes pode trazer consequências sérias e prejudiciais para a esfera individual, já que no contexto da película o protagonista é porta-voz da indústria de cigarros. A falta de escrúpulos, o cinismo e a defesa de interesses escusos é um tema muito associado ao profissional de Relações Públicas, o que privilegia uma visão estreita e reducionista sobre a atividade. No entanto, o filme traz uma polifonia de representações sociais, uma vez que também retrata o profissional como inteligente, articulado e mediador entre os interesses dos públicos e das organizações, o que de fato condiz com o cotidiano da profissão e se constitui como uma competência estimulada tanto em cenário profissional como acadêmico. Neste ponto, o profissional é visto como um gestor da comunicação que se vale de um forte poder de argumentação e persuasão para construir uma imagem positiva da organização na sociedade, bem como arquitetar uma opinião pública favorável às indústrias de tabaco nos EUA. O poder de articulação do profissional de Relações Públicas passa a ganhar destaque neste contexto, onde o lobista desempenha funções que produzem resultados expressivos para a organização através de suas competências comunicacionais. 700

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O fato da produção retratar o profissional de Relações Públicas como “charmoso” parece indicar que as características corporais e estéticas são fatores que possuem grande relevância para a atividade, uma vez que o profissional necessita portar os atributos que o diferenciam e dialogam com a credibilidade pela qual o RP deve construir através de suas estratégias de comunicação. Destarte, o RP traz os caracteres físicos essenciais para que o profissional seja visto de maneira positiva, já que sua responsabilidade é ser o porta-voz da organização, representando seus interesses no cenário político e social e portanto, construindo e mantendo a personificação dos valores da corporação pela qual atua. Tal filme, portanto, traz em seu interior alguns estereótipos que privilegiam certas construções simbólicas, podendo produzir desdobramentos para a forma como a sociedade e os próprios profissionais de Relações Públicas veem a profissão. O cinema, visto como processo de construção simbólica, pode dar preferência a certas visões sobre grupos sociais e indivíduos, o que projeta em evidência uma faceta da profissão, em detrimento das muitas que existem ao se analisar a realidade da atividade, fato que torna necessária a elaboração de estudos sistemáticos e pormenorizados sobre o tema, que por sua vez se revela como complexo e aberto à diversos debates, tanto no âmbito social, como acadêmico e profissional. Surge a necessidade da realização de diversas pesquisas na área com o intuito de avaliar como essas 701

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representações sociais sobre o relações públicas influenciam a maneira como a profissão é vista na sociedade, bem como seu papel nas organizações e até mesmo na escolha da profissão por jovens que tomam o cinema como seus quadros de referência. De que maneira os jovens profissionais se veem influenciados por tais representações? Como os profissionais já estabelecidos no mercado sentem o impacto de tais construções simbólicas para sua vida cotidiana e profissional? Tais questões permanecem ainda em aberto e se traduzem em um desafio para futuros estudos na área, que devem avaliar como a comunicação midiática e mais especificamente o cinema trazem questões que permeiam e influenciam a vida social e profissional. Estes discursos, portanto, transpassam o senso comum e influenciam até mesmo o discurso acadêmico, uma vez que a identidade profissional de Relações Públicas é constantemente pautada através das representações sociais produzidas e reproduzidas através dos meios de comunicação e das interações sociais entre os indivíduos. A identidade, vista como a teia de significações que os indivíduos e a sociedade tecem a respeito de um sujeito, é influenciada pelos discursos veiculados na mídia, pelos processos comunicativos massivos, pela recepção das mensagens e pelas relações sociais. As representações sociais discutidas e reproduzidas, portanto, possuem um papel central na elaboração e emergência destes discursos e de sua legitimação na sociedade.

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Referências JODELET, D. Representações sociais: um domínio em expansão. In: JODELET, D. (Org.). Representações sociais. Rio de Janeiro: Eduerj. 2001. JOVCHELOVITCH. Re(des)cobrindo o outro: para um entendimento da alteridade na teoria das representações sociais. In: Arruda, A. (Org.). Representando a alteridade. Petrópolis: Vozes. 2002. MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: Brasiliense. 2013. METZ, Christian. A Significação no Cinema. São Paulo: Perspectiva. 2012. MORIN, Edgar. O Cinema ou o Homem Imaginário. Lisboa, Relógio d’Água. 1977. MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis, Brasil: Vozes. 2007. ORTNER, S. A máquina de cultura: de Geertz a Hollywood. Mana. Rio de Janeiro, vol. 13, n. 2. 2007. XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico, a opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra. 2005.

Filmografia

Thank You for Smoking. 2005. De Jason Reitman. Estados Unidos da América: 20th Century Fox. DVD. 703

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Capítulo 24 O desafio da publicidade na pós-modernidade Natália Azevedo Coquemala1

Introdução O momento atual do mercado publicitário encontra-se em constante transformação. Satisfazer o consumidor apenas com sacadas criativas na publicidade tem se tornado um papel cada vez mais árduo para os profissionais da área. Desde que o consumidor conquistou o poder de questionar as mensagens das marcas e interagir com elas, o ambiente e o modelo de comunicação têm mudado. O que antes era 1. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (FAAC/Unesp), Campus de Bauru/SP, sob orientação da Profª Drª. Ana Sílvia Lopes Davi Médola. E-mail: [email protected]. 704

um monopólio, hoje se torna cada vez mais um diálogo direto entre consumidor e marca. De acordo com Lemos (2015, p. 16), o propósito da marca impacta o consumo, e hoje os aspectos funcionais e aspiracionais já não bastam para nutrir a comunicação. Ainda segundo o autor, “a era do engajamento impõe uma nova dinâmica. E o nome do jogo agora é diálogo”. A alteração de formatos e movimentos faz com que os profissionais de comunicação necessitem adaptar-se às mudanças culturais na sociedade. Tais modificações têm acontecido com maior intensidade após o boom da pós-modernidade, que fabrica uma transformação da realidade em signos e intensifica o real, criando assim necessidades de consumo antes não existentes. Segundo Ribeiro (2015, p. 34), “as intensas transformações nos hábitos de consumo de conteúdo provocam revisões constantes nos diversos sistemas de verificação de audiência e deixam clientes e agências ansiosos sobre qual o melhor método”. As empresas e agências tendem a ter que adaptar-se rapidamente em suas estratégias para progredir e entrar no ritmo dos novos tempos. Considerando a dinâmica do ecossistema da comunicação, tem-se a visão de que há tempos não é mais possível depender de um único tipo de mídia. O atual consumidor é multiplataforma e é importante transmitir a mensagem em todos os canais que ele se encontra. É preciso entender que tudo passa a levar o prefixo “multi”: multiplataforma, multidisciplinar, multifacetado. Nada é apenas uma única coisa.

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Dinâmica das Práticas Acadêmicas

O público não é mais visto somente como telespectador, ou leitor, ou ouvinte, por exemplo. Ele é consumidor de mídia, já que é impactado por ações publicitárias e de marketing e até pela opinião de outros consumidores (BRITO; LENCASTRE, 2014).

Esse novo estilo de consumidor exige um modelo atualizado de construção da marca, de modo que esta continue cumprindo seu papel social no cenário contemporâneo. Tal convergência está associada à maneira como esse “novo” consumidor recebe esse emaranhado de informações que se dá em múltiplos canais de comunicação e a partir da interatividade de ambas as partes. Assim sendo, à luz dos estudos de Andrea Semprini sobre a marca contemporânea e a necessidade de encará-la nesse novo contexto social pós-moderno, tal artigo pretende refletir o ecossistema que rege a publicidade atualmente. A intenção é apontar o panorama a respeito da estrutura que envolve ações que são globalizadas. A partir de tais estudos, se faz necessário averiguar a atuação do mercado nessa nova forma do fazer publicitário, da imposição de tendências de consumo. A partir da perspectiva de Semprini, que traz a questão da construção da marca, traça-se o diálogo com a cultura da convergência proposta por Jenkins, que mostra que nessa cultura é necessária uma participação de forma engajada. Também serão utilizados os estudos da semiótica discursiva propostos por Greimas para entender a construção do sentido na peça publicitária.

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A visão pós-moderna da publicidade Atualmente, após diversas mudanças no modelo de negócios dentro também da publicidade, a compra pela compra não mais satisfaz o consumidor. De acordo com Semprini (2010, p. 11), “o discurso manipulador das marcas aposta nos procedimentos por sedução com o propósito de manter o consumidor no estado de sujeito desejante”. O sujeito contemporâneo é convidado a fazer parte da “vida” da marca de forma que são criados vínculos diretos com a realidade apresentada. Shapiro (2015, p. 6) afirma que o momento é de criação de experiências intuitivas e de fazer coisas que possam apaixonar as pessoas, sejam experiências, serviços ou ações. Esse processo se caracteriza pela ascensão do período pós-moderno. De acordo com Santos (1987, p.7), “pós-modernismo é o nome aplicado às mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950, quando, por convenção, se encerra o modernismo (19001950)”. Tal movimento invadiu o cotidiano das pessoas com tecnologia eletrônica de massa e individual, com informações, diversões e serviços. A essência da pós-modernidade se dá pela preferência da imagem em relação ao objeto, a cópia ao original, o simulacro ao real. Simular por imagens como na TV significa apagar a diferença entre real e imaginário, o que parece e o que é. Fica apenas o simulacro passando por real. Mas o simulacro embeleza, intensifica o real. Ele fabrica um hiper-real, es-

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petacular, um real mais real e mais interessante que a própria realidade (SANTOS, 1987, p.7).

Passa-se então a se desejar o objeto de acordo com o código do seu simulacro. O bolo feito em casa deve ficar igual ao da embalagem que o protege. Assim, acontece a desreferencialização do real, ou seja, a realidade se degrada, por exemplo, na compra de um produto não pelas suas características e qualidades, mas pelo que ele traz de estilo e referência em seu segmento que compõe uma imagem. Outra característica que se dá nesse momento da história é a dessubstancialização do sujeito (o indivíduo) que perde a substância interior e assim sente-se vazio e se preenchem com a moda, a aparência, por exemplo. O choque entre a racionalidade produtiva e os valores morais e sociais já se esboçava no mundo moderno, o industrial. Na atualidade pós-moderna, ele ficou agudo, bandeiríssimo, porque a tecnociência invade o cotidiano com mil artefatos e serviços, mas não oferece nenhum valor moral além do hedonismo consumista (SANTOS, 1987, p.7).

Nessa concepção, o indivíduo pós-moderno consome como um jogo personalizado bens e serviços. Semprini, em seu livro “A Marca Pós Moderna” (2010, p. 67), utiliza um esquema de Fabris (2003) para ilustrar as mutações do consumo “moderno” para o consumo “pós-moderno”.

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Consumo moderno Signo de status Necessidade Futuro Funcionalidade Fidelidade A Marca Realidade Funcional Estabilidade Bulimia Interação Seriedade Essência Unidade Ou/ou Visão Certeza Clareza Individualidade

consumo pós-moderno Signo de estilo Desejo Presente Estética Nomadismo Uma série de marcas Atmosfera Lúdico Mutação Seletividade Redes Ironia Aparência Pluralidade E/e Tato Dúvida Ambiguidade Estar junto

Tabela 1- Consumo moderno e consumo pós-moderno. Fonte: FABRIS, 2003 apud SEMPRINI, 2010, p. 67.

Esta tabela mostra que o universo do consumo vem evoluindo em direção ao pós-moderno no contexto social geral. As marcas não poderiam deixar de ser afetadas por estas transformações. 709

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O problema que importa não é o problema da marca, mas o problema que os seus consumidores enfrentam em suas vidas. Uma marca relevante não é aquela que apenas fala dela mesma, mas sim aquela que aponta soluções para problemas que incomodam o dia a dia dos seus consumidores. A propaganda precisa evoluir no sentido de colocar as pessoas no centro do seu desenvolvimento. A começar pelos departamentos de marketing das empresas (MARTINEZ, 2015, p. 8).

Há uma pulverização de muitas marcas, são muitos produtos que cumprem o mesmo papel. A quantidade de shampoos, por exemplo, disponível nas prateleiras dos supermercados que servem para lavar os cabelos é enorme e dos mais variados segmentos, cabelo seco, oleoso, misto etc. O fator que faz com que o consumidor escolha uma determinada marca e não a outra é o que interessa para os profissionais do mercado hoje. De acordo com Semprini (2010, p. 91), “o valor de uma marca é fixado pela “taxa de desejo” ou pela “força de sonho” que ela sabe introduzir em seu público”. A fidelização que faz com que o indivíduo utilize o mesmo produto em meio a grande diversidade que lhe é apresentada e ainda assim opte sempre pelo mesmo shampoo. Essa questão da construção e do posicionamento da marca no mercado dialoga com a cultura da convergência de Henry Jenkins. O autor traz a ideia de que nessa cultura contemporânea é enraizada por uma participação que se da de forma engajada. 710

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“Os produtores de mídias só encontrarão a solução de seus problemas atuais readequando o relacionamento com seus consumidores. O público, que ganhou poder com as novas tecnologias e vem ocupando um espaço na intersecção entre velhos e os novos meios de comunicação, está exigindo o direito de participar intimamente da cultura” (JENKINS, 2009, p.53).

Nesse sentido, é preciso entrar em uma reflexão de que criar a campanha para o rádio, para a televisão e assim as demais peças é um elemento da criação publicitária que ficou em um determinado momento da história e que atualmente não se basta mais. Hoje, as marcas têm dificuldade de entrar e se posicionar no mercado quando estão pensando apenas nessas ferramentas de publicização. De acordo com Médola (2006), sabe-se que o processo de convergência midiática ou a migração digital dos meios configura uma fase de transição. É preciso entender o que está acontecendo, o que está mudando. Do mesmo jeito que alterou-se o mercado e o modo como se consome livro, disco, fotografia, a televisão está mudando também e com ela seus conteúdos, seus modelos de negócios para as novas mídias e é preciso se repensar. Assim sendo, Semprini (2010, p. 19) vem dizer que “o que entrou em crise não é tanto a dimensão comercial das marcas, que continuam a ser vendidas, mas a sua legitimidade, a sua credibilidade ao se propor como uma parceira de confiança na vida cotidiana dos indivíduos”. Ou seja, a participação engajada e mútua é que está em jogo.

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As polêmicas envolvendo as marcas Skol e Risqué Atualmente as marcas aspiram e investem esforços para que se façam apreciadas e desejadas pelo consumidor e manter seu lugar na estima pública. Tal laço, muitas vezes afetivo, com o consumidor implica algumas reflexões. Talvez o objetivo original da comunicação publicitária – a criação de mensagens de impacto para atrair visibilidade e encantamento – precise ser equilibrado, neste novo cenário, com a perspectiva dos públicos e da gestão de reputação. O que implica estratégias e mensagens não apenas criativas, mas alinhadas ao propósito da marca; capazes de gerar sintonia com sentimentos e valores tanto de seus consumidores quanto das comunidades com interesse em seu segmento de atuação (CRUZ, 2015, p. 10).

Com isso, a partir dessa ascensão dos indivíduos na participação direta da “vida” da marca, parece não fazer mais sentido, afinal, focar apenas no consumidore. Este pode ser um formador de opinião potencial, com capacidade de afetar a reputação de uma marca. Duas campanhas nacionais de empresas renomadas no setor de cosméticos e alimentício se tornaram alvo de discussões nas redes e tiveram seus nomes envolvidos em polêmicas. São elas: “Viva Redondo”, da Skol e “Homens que amamos”, da Risqué. A Skol, uma das maiores marcas de cerveja no mercado  brasileiro e mundial, lançou uma campanha de 712

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carnaval que trazia frases como: ‘Topo antes de saber a pergunta’ e ‘esqueci o não em casa’ estampadas em peças de mídia exterior. A campanha foi julgada por internautas nas redes sociais como irresponsável. Foi alegado que as peças poderiam incentivar negativamente, principalmente durante o carnaval. Mulheres fizeram protesto em frente a uma das peças da campanha (Figura 1), exposta em São Paulo. Elas acrescentaram à frase “Esqueci o não em casa”, uma outra, que diz: “E trouxe o nunca.”

Figura 1: Protesto de mulheres frente à peças da campanha de carnaval “Viva Redondo”

Diante da situação, a marca Skol se comprometeu a modificar a campanha e deu o seguinte posicionamento: As peças em questão fazem parte da nossa campanha ‘Viva RedONdo’, que tem como mote aceitar os convites da vida e aproveitar

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os bons momentos. No entanto, fomos alertados nas redes sociais que parte de nossa comunicação poderia resultar em um entendimento dúbio. E, por respeito à diversidade de opiniões, substituiremos as frases atuais por mensagens mais claras e positivas, que transmitam o mesmo conceito. Repudiamos todo e qualquer ato de violência seja física ou emocional e reiteramos o nosso compromisso com o consumo responsável. Agradecemos a todos os comentários.2

Outra campanha que também trouxe uma repercussão negativa para a sua marca foi a da coleção de esmaltes, “Homens que amamos”, da Risqué (Figura 2). A marca é líder no segmento de esmaltes no país e tem uma história de mais de meio século no mercado de produtos de beleza. “André fez o jantar”, “João disse eu te amo”, “Zeca chamou para sair”, “Fê mandou mensagem”, “Guto fez o pedido” e “Leo mandou flores”, são os nomes dos esmaltes da coleção. De acordo com o site da marca 3, a coleção foi “inspirada nos homens que fazem a diferença na vida das consumidoras, um tributo aos  pequenos gestos diários dos homens”.

2. Disponível em: http://g1.globo.com/economia/midia-e-marketing/noticia/2015/02/acusada-de-apologia-ao-estupro-skol-ira-trocar-frases-de-campanha.html. Acessado em: 8/6/2015. 3. https://www.risque.com.br/index.php 714

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Figura 2: Anúncio da coleção “Homens que amamos” da Risqué

A campanha foi julgada machista e sexista pelos consumidores. De modo que fazer o jantar, dizer eu te amo, mandar flores, entre outras ações propostas pelos esmaltes, não deveriam ser consideradas como uma gentileza, mas sim uma obrigação, ou pelo menos algo comum. Nos dois casos e nos demais que vemos frequentemente tomando proporções negativas na mídia, vale notar o alcance da viralização negativa, que muitas vezes, acaba se tornando maior do que o da mensagem original.   A comunicação que constitui a marca deve, portanto, ser entendida não como uma modalidade de funcionamento ou como técnica de difusão, mas como motor semiótico, lógica de seleção, de organização e de concretização de um projeto de sentido que é proposto e trocado com seus públicos (SEMPRINI, 2010, p. 77).

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Neste contexto, cabe estabelecer uma breve leitura semiótica para ver se o que está se pensado enquanto estratégia de construção de marca no ambiente se configura com o discurso, atinge o público e busca o foco. O nível discursivo, segundo Barros (2011, p. 53), “é o patamar mais superficial do percurso, o mais próximo da manifestação textual”. Neste nível são construídos os percursos figurativos e temáticos. Em relação às duas campanhas, da Skol e da Risqué, foram reunidas figuras que fizeram com que as mulheres se sentissem ofendidas. O tom, as palavras utilizadas, a ironia e o machismo foram alvos das duas campanhas de tal modo que a marca Skol até escolheu desculpar-se e sua agência a criar rapidamente um anúncio substituto, desta vez brifado diretamente pelo público: “Quando um não quer, o outro vai dançar”. Em outros tempos, brincar com a ideia de “deixar o não em casa”, em clima de folia, poderia parecer inofensivo. Hoje, com essa voz adquirida pelos internautas, basta uma mulher sentir-se ofendida para que se materialize uma infinidade de outras mulheres que compartilham da mesma opinião nas redes sociais e elas trazem uma resposta pronta à afronta concedida pela marca em questão: “e trouxe o nunca”. Em se tratando de um caso positivo de relacionamento da marca com o consumidor tem-se o exemplo do botão Dash, da Amazon, que, quando acionado verifica o preço do produto e realiza o pedido automaticamente, para que a pessoa não precise ir ao mercado. A Amazon é uma empresa multinacional de 716

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comércio eletrônico dos Estados Unidos e foi uma das primeiras companhias com alguma relevância a vender produtos na internet.

Figura 3: botão Dash, da Amazon

De acordo com Shapiro (2015, p. 6), “ essa noção vai além da internet das coisas, é sobre como a inteligência artificial pode ajudar a melhorar a vida dos indivíduos”. As tecnologias cada vez mais oferecidas pelas marcas são criadas por empresas também capazes de oferecer experiências e com o objetivo de criar relacionamentos. Nesse cenário, o produto adquirido torna-se apenas um detalhe do combo todo que está baseado em estabelecer uma relação forte com o consumidor.

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Considerações finais Conclui-se, assim, que as marcas contemporâneas estão amparadas por novas ideias e diferentes formatos. A ideia deve ser forte o bastante para determinar em que formato deve se propagar. O modelo antigo de fazer publicidade não se sustenta mais. O cenário das novas mídias está em constante mudança de curso e exige hoje respostas mais rápidas das marcas. O verbo que mais é utilizado atualmente quando se trata de mercado publicitário é: transformar. A mudança se faz necessária para seguir e determinar as mutações do mercado e continuar sendo relevante e eficiente. Tais transformações devem ser proporcionais, assim como a demanda por produção exige uma aceleração, a entrega de conteúdo deve atender a esse processo. Hoje não se faz mais possível que os departamentos de uma agência de publicidades trabalhem individualmente, não se pode mais separar o departamento de criação dos departamentos de planejamento e estratégia e de tecnologia. Os clientes querem comprar não só um grande trabalho criativo, mas algo mais amplo. Muitas vezes, o diferencial não é só um anúncio, mas uma ideia que mobilizará uma causa, ou uma infinidade de pessoas, que trabalhe com emoções, sentimentos, ou mesmo algo promocional. É importante que a marca se molde a esse momento de convergência, para falar de novas formas a consumidores e audiências diferentes. Com a força e a voz que o público vem ganhando, bem como com a pluralidade 718

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de marcas no mercado, estas precisarão mais dos consumidores que estes delas. A possibilidade de escolhas se multiplicou e, assim, o papel das agências passa a ser não mais apenas falar sobre os clientes, seus produtos, suas marcas, seus serviços. A partir de agora e cada vez mais a função da agência é agir em favor do cliente, ajudando-os a serem tocados pelas mensagens. A expectativa é que os profissionais tornem-se mais híbridos, que reúnam as funções mais tradicionais do setor, amparados por um contato pessoal com a marca, além de um maior conhecimento de novas tecnologias e negócios. O consumidor mudou, consome hoje de uma forma diferente. Não é preciso mais que seja seguida uma grade linear e, assim, ele vê o que quer, na hora que quer, na plataforma que quer. Esse engajamento se dá não só durante o programa, o anúncio assistido, o consumidor termina de assistir e vai comentar, compartilhar, ter uma posição proativa e deseja fazer parte da história da marca, do seu contexto. A nova ideia é que as marcas façam algo pelo consumidor ao invés de somente apresentar informações e, assim, facilite, de alguma forma, a vida do usuário. Ouvir os consumidores, entender suas necessidades devem ser estratégias primordiais dentro das prioridades das marcas, o que ajudará no momento da tomada de decisão e da possível realização da compra, que é, muitas vezes, o grande objetivo de uma campanha publicitária. O mundo e a publicidade estão mudando. O grande segredo para se chegar a uma comunicação mais 719

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integrada entre marca e consumidor pode estar em ter um repertório amplo, juntamente com os fundamentos e visão estratégica dentro dessa nova era pós-moderna.

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Capítulo 25 Futebol “arte” x futebol acadêmico: uma análise foucaultiana a respeito da ordem dos discursos1 Nathaly Barbieri Marcondes2

Introdução Esta pesquisa pretende analisar as relações estabelecidas entre a cultura brasileira e a prática do futebol no Brasil, a partir do lugar-comum de que seria praticado entre nós o chamado “futebol arte” (onde se valorizam a individualidade 1. Trabalho apresentado para a conclusão da disciplina Teorias da Comunicação, ministrada pelo Prof. Dr. Osvando José de Morais no segundo semestre de 2014 do programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP, campus Bauru. 2. Bacharel em Publicidade e Propaganda pela Universidade do Sagrado Coração (USC). Especialista em Marketing pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Estadual Paulista (UNESP). E-mail: [email protected]. 723

do craque, por meio dos dribles, da ginga e da habilidade), e através das ideias de Foucault (1999), entender como este discurso tornou-se, aparentemente, predominante, mesmo que a academia esteja desmistificando esta ideia através de estudos. Para tanto, serão estudadas as vinhetas de divulgação da Copa do Mundo de 2014 produzidas pelas emissoras de TV aberta (Band e TV Globo), responsáveis pela transmissão do evento no Brasil, já que ao que parece, a mídia é uma das principais difusoras desta visão na sociedade. A cultura de uma nação, como não poderia deixar de ser, influencia diversas atividades praticadas por seus habitantes. Uma dessas atividades, a prática dos esportes, normalmente está carregada de simbolismos relativos à cultura, desde a definição da modalidade mais popular no país até a forma como ela é praticada. De acordo com o historiador holandês Johan Huizinga (2000), o jogo é anterior à cultura e o responsável por influenciá-la. Segundo ele, embora a cultura esteja diretamente relacionada aos seres humanos, já que é instituída por eles, o jogo nasce de forma primitiva, através dos animais, sendo este o principal argumento que comprovaria a ordem em que ambos surgiram. Huizinga (2000) afirma ainda que as grandes atividades da sociedade humana, como, por exemplo, a linguagem e os mitos, são definitivamente marcadas pelo jogo. E, para ele, o jogo seria um elemento independente, que não desempenha função moral alguma, o que impossibilitaria que fossem aplicadas a ele noções de vício e virtude. No entanto, ele estaria incluso no domínio da estética, mesmo que não se possa afirmar que a beleza seja inerente ao jogo. 724

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Já o sociólogo francês Roger Caillois (1990), complementando a contribuição de Huizinga (2000), classifica o jogo a partir de seis características. A primeira delas tem a ver com o fato de que ele é uma atividade livre, ou seja, o indivíduo não é obrigado a integrá-lo; se o fosse, o jogo perderia sua natureza de diversão. Caillois (1990) diz ser o jogo também uma prática delimitada, sendo restrita no tempo e no espaço. Ainda segundo ele, o jogo tem um caráter incerto, já que não se pode prever qual será seu resultado antes do momento de sua conclusão. O jogo carrega também a ideia de ser algo improdutivo, ou seja, não gera bens, riquezas ou elementos novos de espécie alguma, sendo que o indivíduo termina da mesma forma que começou. Outra qualidade atribuída a ele é a da regulamentação, estando sujeito a convenções que suspendem as leis normais e instauram de forma momentânea uma nova legislação, sendo esta a única que conta. A última característica que Caillois (1990) atribui ao jogo é o fato de este ser fictício, ou seja, a realidade que o acompanha é outra, distinta da vida “normal”. Para a presente pesquisa, entretanto, mais importante do que saber em que sentido se dá a influência entre cultura e esporte, é entender que há uma relação muito próxima entre ambos, relação esta que merece ser estudada e analisada. Neste sentido, cabem algumas reflexões sobre os conceitos de esporte e cultura sobre os quais iremos trabalhar. Tubino (1999) e Helal (1990) têm definições muito próximas sobre o que seria o esporte: trata-se de uma atividade desempenhada com certa habilidade em determinado movimento, mas que possui uma organização através da qual seja regulamentada. 725

Dinâmica das Práticas Acadêmicas

Roland Barthes (2009), escritor e semiólogo francês, em um insinuante texto sobre o esporte escrito em 1961 para o documentário “O esporte e os homens”, acrescenta um novo olhar sobre algumas modalidades esportivas. Baseado no estruturalismo francês, ele analisa o esporte pelo próprio esporte, identificando porque algumas modalidades se tornam mais populares em certas regiões do mundo. Influências como o clima ou a constituição cultural da sociedade são um dos exemplos de motivos citados por ele. Mas o grande diferencial de Barthes foi conceituar o esporte como uma forma encontrada pelo ser humano de se provar no meio em que vive. O homem, tão frágil perante as adversidades de um ambiente inóspito, ao qual teve que se adequar, encontrou no esporte uma forma de se afirmar perante as forças da natureza. Ainda de acordo com Barthes (2009), o esporte seria portanto uma competição entre o homem e ele mesmo, cuja função seria a de relatar o contrato humano. Sobre o esporte, portanto, conclui-se que, além de ser definido como atividade que requer habilidade na execução de um movimento, o qual exige esforço físico, e que seja regimentada por uma organização mais ampla que os praticantes, ele ainda é classificado como uma prática que está em interação constante com a sociedade em que é desenvolvido e com os indivíduos com ele envolvidos. Laraia (2009), em estudo sobre as ideias de alguns autores sobre o conceito de cultura, diz que o grande diferencial do homem é sua possibilidade de comunicação oral e de fabricar instrumentos que tornam mais eficientes seu aparato biológico. Isso o faria ser o único 726

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possuidor de cultura, em comparação aos demais animais. É fato que o homem necessita suprir suas funções biológicas, as quais seriam iguais a todos, independentemente de raça ou nacionalidade. O que diferenciaria os indivíduos, portanto, seria a forma como eles buscam atender a essas necessidades, o que varia de acordo com sua cultura. Ou seja, a herança genética de cada um não determina ações e pensamentos, já que os atos humanos dependem totalmente de um processo de aprendizagem (LARAIA, 2009), sendo este o papel da cultura. De acordo com estas definições, entende-se que a cultura está em constante interação com a sociedade, definindo hábitos e costumes dos indivíduos pertencentes a ela e sendo construída através do desenvolvimento dos próprios indivíduos. O esporte, compreendido como uma atividade praticada e acompanhada pela sociedade, também lhe concede traços característicos que o vão diferenciar em relação à forma como é praticado em regiões diversas, e ele também, através de suas regras e táticas, consegue moldá-la à sua maneira, ocupando em muitos casos uma dimensão tão importante quanto outros assuntos de interesse público, como a política ou a economia.

O Futebol Arte vs. O Futebol Acadêmico Embora não tenha surgido em nosso país, o futebol logo foi adotado pelos habitantes da terra. Ao longo do

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tempo, tornou-se culturalmente característico de um ethos brasileiro, tanto na visão da população nacional como estrangeira, como reconhece o antropólogo Roberto DaMatta (1994), um dos pioneiros na inclusão do futebol como tema de debate na academia brasileira. A sociedade brasileira emprestou os traços mais marcantes de sua cultura para moldar o futebol da forma como gostaria que ele fosse, enquanto o futebol auxiliou tal sociedade a modernizar-se com a introdução de noções de democracia e igualdade social. [...] embora o futebol seja uma atividade moderna, um espetáculo pago, produzido e realizado por profissionais da indústria cultural, dentro dos mais extremados objetivos capitalistas ou burgueses, ele, não obstante, também orquestra componentes cívicos básicos, identidades sociais importantes, valores culturais profundos e gostos individuais singulares. No fundo, o futebol prova que pode se acasalar [...] valores culturais locais, nascidos de uma visão de mundo tradicional e particularista, com uma lógica moderna e universalista. (DAMATTA, 1994, p. 12).

No meio acadêmico, entretanto, parece não haver dúvida sobre o fato de que a gênese deste processo sobre o “futebol arte” tem origem no sociólogo, antropólogo e escritor Gilberto Freyre, que inauguraria a visão idílica do futebol-arte brasileiro ao escrever o prefácio à obra O negro no futebol brasileiro, de Mário Filho. Intitulado de “Foot-ball Mulato” e datado de 1938, tal prefácio causará 728

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enorme influência no imaginário nacional, influenciando sobremaneira o olhar que será dedicado desde então ao futebol pela imprensa esportiva brasileira e pelos aficionados pelo futebol, de forma geral. No artigo “A produção das diferenças na produção dos ‘estilos de jogo’ no futebol: a propósito de um texto fundador”, a antropóloga Simoni Lahud Guedes (2014), como o próprio título já indica, nomeia o prefácio de Freyre como um “texto fundador” da noção de que se praticaria no Brasil o tal do “futebol-arte”. Em seu prefácio, Gilberto Freyre, diz que atividades típicas dos escravos africanos no Brasil, como a capoeira e o samba, estão nitidamente presentes no estilo brasileiro de se praticar o futebol. Ainda segundo ele, “sublimando tanto do que é mais primitivo, mais jovem, mais elementar, em nossa cultura, era natural que o futebol, no Brasil, ao engrandecer-se em instituição nacional, engrandecesse também o negro, o descendente de negro, o mulato, o cafuzo, o mestiço” (FREYRE in RODRIGUES FILHO, 1994, Introdução). Freyre ainda diz que “no futebol, [...] a mulatice brasileira caracteriza-se pelo prazer da elasticidade, da surpresa, da retórica, que lembra passos de dança e fintas de capoeira”. A propósito, o pensador alemão Anatol Rosenfeld (1993) também discorre sobre essa influência advinda dos negros, dizendo que ela se deve ao fato de que, embora o futebol tenha nascido no Brasil como uma modalidade esportiva elitista, que priorizava a prática pela parte caucasiana da população, ao se tornar um esporte popular a toda a população, anos após a abolição da escravatura, ele foi visto pelos negros como uma fuga à ascensão social. 729

Dinâmica das Práticas Acadêmicas

O jogador de futebol lhes pertencia; compreendiam-no, seu chute era o deles. Na medida em que começou a se comprovar o mesmo valor dos jogadores de raça negra – a princípio posto em dúvida pelo próprio homem de cor – cresceu simultaneamente a autoconsciência das massas e elas começaram a sentir o jogador negro ou mulato como seu representante (ROSENFELD, 1993, p. 99).

Devido à singularidade do estilo brasileiro de jogar futebol, este esporte se tornou um elemento de identidade nacional. Segundo Édison Gastaldo (2012), o futebol seria um dos principais meios de construção da memória social e afetiva relacionada ao sentimento de nação para a sociedade brasileira, o que se confirma a cada participação da seleção do país em uma Copa do Mundo. Maranhão (2006), em estudo sobre como o futebol influenciou o pensamento do já citado Gilberto Freyre a respeito do povo brasileiro, diz que o escritor categorizou a maneira brasileira de se praticar o esporte como “dionisíaca” em comparação com a europeia, que dizia ser “apolínea”, fazendo referência ao futebol de dribles e jogadas individuais contrastado com o mais regrado e técnico. No entanto, a aceitação de que jogadores brasileiros já nasceriam aptos a praticar o futebol-arte por meio de técnicas e habilidades individuais presentes em seu genoma começou a se posta em xeque igualmente na academia brasileira ao longo dos últimos 15 anos, como atestam as diversas contribuições de Soares, Helal, Lovisolo e Santoro (1994, 2001, 2003, 2004). Em alguns destes trabalhos, tem-se a ideia de que a imprensa foi uma

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das principais responsáveis pela disseminação da visão do “futebol-arte” no Brasil. Sob esta ótica, o enquadramento dado à Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1970 colaborou intensamente para o adensamento da identidade nacional brasileira atrelada à noção do futebol habilidoso, pleno de ginga, dribles, improvisação e malandragem. Aspectos táticos e físicos que contribuíram para o sucesso do Brasil naquela competição foram paulatinamente esquecidos, em favor da suposta habilidade incontestável dos jogadores nacionais, perpetuando-se assim a ideia do futebol genial e criativo dos brasileiros (SANTORO; SOARES, 2009). Franco Júnior (2013) também partilha da mesma ideia de Soares, Helal e Santoro (2004) em relação à falácia do futebol arte no Brasil, fazendo referência ao que tem sido visto do esporte na atualidade. Parte essencial do clichê “Brasil, país do futebol” é a crença de que aqui se joga com mais habilidade, com mais qualidade. A rigor, porém, o nível de nossas competições é mediano, quando não baixo. O enquadramento institucional impede que a potencialidade esportiva se torne realidade (FRANCO JÚNIOR, 2013, p. 50).

Condizente com a realidade ou não, o fato é que o futebol valorizado pelos brasileiros é justamente o praticado com ares teatrais, talvez porque ele seja entendido como o “verdadeiro” futebol do Brasil. E essa identificação causada pelo formato singular do esporte praticado no país

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tem sido muito visada pelas empresas como um apelo publicitário eficaz na divulgação de suas marcas e produtos. A seguir, será discutida a relação entre a publicidade e o esporte, destacando o futebol, e qual seu papel na disseminação da imagem do “futebol arte” brasileiro, principalmente em tempos de Copa do Mundo.

A Publicidade “entra em campo” Segundo Quessada (2003, apud RIBEIRO, 2013), o papel da propaganda seria transformar qualquer coisa, seja um objeto ou um fenômeno, em produto e mercadoria que desperte um grande desejo do público. E mais do que isso; Williams (1978, apud RIBEIRO, 2013) aponta para o fato de que muitas vezes a imagem usada para a publicidade não se relaciona com o produto anunciado, ou seja, a verdadeira intenção nesses casos é de que o produto seja relacionado a outro cenário, a algo melhor, trabalhando sonhos e imagens. Embora não se possa negar a relação entre publicidade e economia capitalista, ela não se resume a isso. De acordo com Rocha (1990), além de sua função manifesta, de vender e aumentar o consumo, a publicidade retrata as representações sociais através de símbolos, caracterizando o cotidiano e contrastando com o racionalismo e o utilitarismo da sociedade. Dessa forma, as características da cultura e dos costumes de uma sociedade estariam presentes em algumas propagandas.

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Em se tratando de anúncios que envolvem o futebol, pode-se dizer que alguns dos símbolos mais evidenciados no Brasil são a ginga, o drible, a “malandragem”, a valorização das jogadas individuais e as transgressões às autoridades, tanto em enredos que envolvem os jogadores em campo, quanto os que retratam o torcedor brasileiro. Soares (1994, apud GASTALDO, 2002) diz que a malandragem é um mito constituidor da identidade brasileira, e a define como uma orientação de conduta, que ao ser incorporada aos jogadores brasileiros, caracterizaria sua maneira de praticar o futebol numa modalidade chamada por ele de “futebol malandro”. Quando o objeto tratado nas propagandas que envolvem o futebol é a seleção brasileira, a característica deste “futebol malandro” se torna mais evidente. Segundo Santa Cruz (2003, apud RIBEIRO, 2013), eventos como a Copa do Mundo de Futebol desempenham a função de articuladores da identidade nacional, identidade essa voltada para o consumo, neste caso, de símbolos nacionais. As expectativas do mercado se fundem com o discurso nacionalista, buscando motivar a participação de torcedores/consumidores. Somando-se às formas de interação entre publicidade e futebol citadas anteriormente, pode-se dizer que a publicidade busca, através do futebol, a identificação de seu público, trazendo simbologias e elementos de sua cultura e enfatizando-os ao ponto de se tornarem facilmente perceptíveis. Já o futebol consegue, através dos anúncios publicitários, afirmar as características que absorve da sociedade em que é praticado, livre dos julgamentos e restrições existentes dentro do campo. 733

Dinâmica das Práticas Acadêmicas

A seguir, serão abordadas as classificações de exclusão dos discursos propostas por Michel Foucault (1999), para que posteriormente seja possível identificar em quais destes mecanismos o discurso do futebol arte se apoiou para se sobrepor ao discurso acadêmico sobre este esporte.

“O Apito do Árbitro” - A Ordem do Discurso de Foucault Discutidas as relações entre o futebol que constitui a identidade nacional brasileira e o futebol observado pela academia, bem como entre o futebol e a publicidade, cabe neste momento, buscar uma metodologia que explique porque determinado discurso acerca deste esporte foi escolhido pela mídia, e acolhido pela sociedade, para massiva divulgação. A partir da aula inaugural no Collège de France, ministrada em 2 de dezembro de 1970 por Michel Foucault, foi desenvolvido o livro “A Ordem do Discurso”, publicado originalmente em Paris, no ano de 1971. Neste livro, Foucault (1999) faz uma análise a respeito dos discursos, e propõe classificações metodológicas para eles, de forma a entender porque algumas ideias são tão fortemente difundidas na sociedade em detrimento de outras. Foucault (1999) inicia sua obra atentando para a necessidade que se há em estudar a origem dos discursos e as formas pelas quais eles se propagam na sociedade.

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[...] inquietação diante do que é o discurso em sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita; inquietação diante dessa existência transitória destinada a se apagar sem dúvida, mas segundo uma duração que não nos pertence; inquietação de sentir sob essa atividade, todavia cotidiana e cinzenta, poderes e perigos que mal se imagina; inquietação de supor lutas, vitórias, ferimentos, dominações, servidões, através de tantas palavras cujo o uso há tanto tempo reduziu as asperidades. (FOUCAULT, 1999, p. 8).

Em um segundo momento, o autor começa de fato sua análise sobre a produção dos discursos. Foucault (1999) introduz sua ideia de que em toda sociedade tal produção é, simultaneamente, controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um determinado número de procedimentos, cuja função seria tramar seus poderes e perigos, dominar o acontecimento aleatório e esquivar sua materialidade. Foucault separa as formas de construção do discurso em fatores internos e externos. O primeiro processo externo, relatado pelo autor, seria a interdição da palavra. Foucault (1999) diz existir três formas de se interditar o que é dito que se relacionam entre si, fortalecendo-se e complementando-se, que seriam: tabu do objeto, ritual da circunstância e direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala. A interdição da palavra revela a ligação do discurso com o poder, algo que não é novidade segundo o autor, que classifica a possibilidade de vetar certos discursos como uma das principais causas das disputas por dominação. 735

Dinâmica das Práticas Acadêmicas

O segundo fator externo seria o que Foucault (1999) chama de segregação da loucura. Segundo ele, desde a Idade Média, ao mesmo tempo em que se descredita o discurso das pessoas ditas loucas, ele é valorizado como uma forma diferente de se enxergar verdades ocultas. Ele ainda diz que embora se acredite que hoje em dia não haja mais essa exclusão, ela ainda voga, e pode ser percebida na relação existente entre pacientes e médicos, psicanalistas, onde há uma certa censura no discurso proferido. Por fim, o último fator externo consiste na vontade da verdade. Segundo Foucault (1999), a arbitrariedade não estaria em definir o que é verdadeiro e o que é falso dentro de um discurso já formado, mas sim, na forma como tal verdade foi forjada ao longo do tempo. A vontade da verdade funcionaria como um sistema de exclusão na medida em que é apoiada por um suporte institucional, sendo reforçada e reconduzida por um conjunto de práticas. “Mas ela é também reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído.” (FOUCAULT, 1999, p. 17). O autor diz que a vontade da verdade exerce sobre os discursos certa pressão e coerção. Foucault (1999) se aprofunda mais no conceito de vontade de verdade pois, como ele próprio diz, os dois primeiros processos se enfraquecem à medida em que são atravessados pelo terceiro, que se fortalece cada vez mais, tornando-se mais incontornável. E ele segue dizendo que a vontade da verdade é a forma de exclusão de que menos se fala, justamente pela suposta verdade estar tão incrustrada nos discursos. 736

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Assim, só aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza, fecundidade, força doce e insidiosamente universal. E ignoramos, em contrapartida, a vontade de verdade, como prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade e recolocá-la em questão contra a verdade [...]. (FOUCAULT, 1999, p. 20).

Foucault (1999) ainda fala sobre os processos internos de exclusão, visto que os próprios discursos exercem controle sobre si. O primeiro processo interno seria o comentário. O autor diz que existem dois tipos de discursos que circulam pela sociedade: os discursos que seriam origens e aqueles que se originam através dos comentários sobre eles. Embora esse desnivelamento dos discursos não seja estável, seu encerramento é uma utopia. No entanto, Foucault (1999) mostra que através do comentário novos discursos podem ser construídos indefinidamente, muito embora seu principal papel seja dizer por fim o que se articula no texto primeiro no qual ele se fundamenta. “O comentário conjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado.” (FOUCAULT, 1999, p. 25). O segundo processo interno, que complementaria o primeiro, seria o autor. Por autor, Foucault (1999) não diz ser o indivíduo que produziu um texto, mas sim o princípio de agrupamento do discurso. Enquanto o co737

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mentário limita o discurso pela repetição, o princípio do autor o limita pela individualidade. O terceiro e último processo interno de limitação seriam as disciplinas. Este princípio seria oposto aos dois primeiros, já que funciona como um conjunto de métodos e domínio de objetos que possibilitariam que qualquer um servir-se deles sem que tivesse importância quem, e também já que pressupõe que seja possível que novas proposições sejam indefinidamente formuladas. Embora possam possuir erros, que funcionam de forma positiva à medida em que se associam com a verdade, as disciplinas precisam responder a certas condições, para que se enquadrem como tal. “Em resumo, uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina.” (FOUCAULT, 1999, p. 34). Ainda segundo o autor, mais importante do que ser verdadeiro ou falso, para que uma proposição se enquadre em uma disciplina, é necessário que ele esteja “no verdadeiro”, o que caracteriza o processo de controle de produção do discurso. Depois de classificar os fatores internos e externos como forma de exclusão, Foucault (1999) parte para uma terceira forma que diria respeito à determinação das condições de funcionamento dos discursos, e quais regras fariam com que nem todos tivessem acesso a eles. [...] nem todas as regiões do discurso são igualmente abertas e penetráveis; algumas são altamente proibidas (diferenciadas e diferenciantes), enquanto outras parecem quase abertas a

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todos os ventos e postas, sem restrição prévia, à disposição de cada sujeito que fala. (FOUCAULT, 1999, p. 37).

A primeira forma dos sistemas de restrição que Foucault propõe é o ritual. Esta classificação definiria a qualificação que os indivíduos que falam devem possuir, define o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso, definindo qual é o efeito das palavras proferidas àqueles aos quais elas se dirigem. Quase em contraposição a isso, surge a segunda forma, que seriam as “sociedades de discurso”, que teriam como função conservar ou produzir discursos para que sejam veiculados em espaço fechado e distribuídos de forma restrita, para que isso não caracterize a perda de posse de seus detentores. Foucault as exemplifica, nos dias atuais, como os discursos pertencentes a classes profissionais que se limitam aos indivíduos pertencentes a elas, o que funcionaria como um tipo de exclusão. A terceira forma de restrição é a doutrina, que por sua vez, seria o inverso das “sociedades do discurso”. Ela tende a se difundir, e somente pelo compartilhamento de um único e mesmo discurso é que ela faz com que os indivíduos sintam que a pertencem. “[...] a doutrina questiona os enunciados a partir dos sujeitos que falam, na medida em que a doutrina vale sempre como o sinal, a manifestação e o instrumento de uma pertença prévia...” (FOUCAULT, 1999, p. 43). Por fim, a forma que o autor considera muito mais ampla, seria a apropriação social dos discursos. Foucault 739

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considera todos os sistemas educacionais como uma maneira política de manter ou modificar a apropriação do discurso. Portanto, ele entende que a apropriação social dos discursos funcionaria com a interação das três formas anteriormente citadas por ele, como se através da educação tradicionalmente fornecida nos centros educacionais fosse baseada em todas as formas de exclusão do discurso que se ligam a suas condições de funcionamento. Baseando-se nas classificações propostas por Foucault (1999) em “A Ordem do Discurso”, a seguir, será desenvolvida a tentativa de se entender como os discursos acerca do futebol brasileiro foram construídos, e como a imagem divulgada e perpetuada em meio à sociedade pela mídia tornou-se tão distinta daquela que é tida como real pela academia.

“Bola em Jogo” - Analisando o Objeto Para que fosse possível a análise do discurso do futebol brasileiro construído como forma de identidade nacional e perpetuado pela mídia, em contraposição ao discurso da academia sobre este tema, foram escolhidos dois produtos midiáticos que representam o emprego desta temática. Durante a Copa do Mundo, as emissoras de TV responsáveis pela transmissão do evento em rede aberta, Globo e Bandeirantes, produziram duas vinhetas, “Somos um Só” e “O Maior Espetáculo da Terra” respectivamente, com o intuito de divulgar a exibição dos jogos

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e estimular a audiência. Para tanto, o conteúdo destes vídeos publicitários deveriam ser o mais próximo possível da ideia que a população brasileira tem do futebol, para que se identificassem com eles. Em breve análise baseada nos aspectos considerados característicos do futebol no Brasil, e através do processo de decupagem, alguns elementos encontram-se presentes em diversos momentos de ambos os spots publicitários. Um aspecto importante de ser destacado é a trilha sonora, que consiste na parte textual de ambas as vinhetas. O fato de a propaganda veiculada pela emissora Band utilizar o samba como estilo musical é exemplo da relação existente entre tal música com o futebol, causando a identificação direta do público. No caso da Globo, a emissora aposta em uma canção criada para a Copa de 1994, “Coração Verde e Amarelo”, e que se tornou característica do evento para fazer com que o público se identificasse com ela. Já um dos elementos mais característicos do futebol brasileiro, e pelo qual ele é mais valorizado, é evidente em ambas as propagandas. A “molecagem” admirada neste esporte, tanto por brasileiros quanto por outros povos, é evidenciada pela quantidade de imagens de dribles ou truques com a bola, tanto pelos jogadores da seleção quanto pelas pessoas comuns que brincam de futebol, que é muito superior à quantidade de imagens que mostram passes entre jogadores (profissionais ou amadores). A transgressão à autoridade, característica também presente no futebol brasileiro e derivada da cultura do país, pode ser vista em diversos momentos nas vinhetas. 741

Dinâmica das Práticas Acadêmicas

Na Globo, ela aparece representada por imagens de pessoas utilizando bens privados ou públicos para brincar de futebol, como os balanços de um parque na praia fazendo as vezes de trave ou os carrinhos de um supermercado demarcando os limites de um campo. Já na Band, ela pode ser percebida pela imagem em que um jogador aparece discutindo com o outro em campo, apontando o dedo para o mesmo como forma de provocação. Por fim, nas duas propagandas, podem ser encontradas diversas imagens que detalham as partes do corpo mais utilizadas ao se praticar o futebol, e que são apreciadas pela cultura brasileira, como as pernas e os quadris, garantindo que o apelo à sensualidade exalada pelo enfoque de tais partes durante a prática do esporte seja mais um elemento para prender a atenção do público à vinheta. Nota-se, através da análise do conteúdo das vinhetas escolhidas, que ambas utilizam, majoritariamente, o discurso construído para se caracterizar o futebol brasileiro, carregado de simbologias nacionais, em detrimento ao discurso pregado pela academia, sobre a verdade sobre a prática deste esporte no Brasil. Cabe agora, através das diversas formas de exclusão, limitação e apropriação do discurso lançadas por Foucault (1999), classificar como, possivelmente, a fala midiática se sobrepõe à acadêmica em meio à sociedade. De acordo com as categorias referentes aos processos externos citadas pelo autor, pode-se entender que o discurso midiático acerca do futebol brasileiro enquadra-se no que Foucault (1999) chama de “vontade da verdade”. Como ele mesmo diz, pouco se discute sobre a vontade 742

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da verdade, já que este processo de exclusão considera que o próprio discurso proferido é a verdade. Talvez seja por meio deste mecanismo que a ideia do futebol arte foi tão propagada pela mídia que se tornou verdadeira em meio à sociedade. Isso explicaria porque o discurso da academia a respeito do esporte, como é praticado no Brasil, não seja acolhido também por ela, por parecer “falso” perante o que publicamente tido como “verdadeiro”, limitando-se a um grupo restrito de indivíduos. Pode-se perceber, no exemplo das vinhetas, que os pontos chaves utilizados na construção de ambas baseia-se nesta “verdade”, propagando um tipo de relacionamento utópico, porém aceito, entre a sociedade brasileira e o futebol, como uma massa que abre mão de deveres e obrigações para acompanhar a seleção brasileira durante a Copa do Mundo. Sobre os processos internos de exclusão, ao que parece, o discurso do futebol arte classifica-se no que Foucault (1999) chama de “comentário”, visto que o imaginário construído pela relação entre este esporte e a cultura do Brasil tornou-se tão enraizado na sociedade, que quando é abordado, o que se gera são apenas versões que o repetem, mas não o negam. Isto pode ser percebido também, não somente nas vinhetas, que levam quase que à exaustão diversos elementos culturalmente característicos da sociedade brasileira, mas também em noticiários esportivos, que acabam gerando o que Umberto Eco (1984) chamou de “esporte à enésima potência”, ou seja, uma “falação” infinita sobre o esporte que, normalmente, gira em torno dos mesmos temas. 743

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Por fim, em relação às condições de funcionamento dos discursos propostas por Foucault (1999), embora o autor exemplifique tal modelo com o discurso político e religioso, percebe-se que o discurso do futebol arte se assemelha muito ao que ele chama de doutrina. Tal discurso é divulgado de maneira única, já explicado segundo a classificação do “comentário”, e de forma que os indivíduos impactados por ele desenvolvam um sentimento de pertença, de identificação, de unidade por meio dele. As vinhetas deixam clara essa percepção quando mostram a sociedade como um conjunto, sem diferenciação de idade, raça ou classe social, com uma visão única sobre o futebol brasileiro, gerando um objetivo em comum: torcer pela seleção brasileira.

“Final de Jogo” – Considerações Finais A breve classificação feita do discurso midiático de acordo com os conceitos propostos por Foucault (1999) foi realizada de modo a entender através de quais mecanismos a ideia do futebol arte, aparentemente, se sobrepõe à difundida pelos estudiosos do esporte em matéria de alcance e aceitação. No entanto, se pensarmos no sentido contrário, também encontraríamos classificações possíveis de exclusão do discurso acadêmico. O estudo da comunicação esportiva pela academia é um campo relativamente novo, e isso pode ser um dos fatores pelos quais seu posicionamento ainda não

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foi completamente difundido. No entanto, através dos processos de exclusão dos discursos em que a fala do futebol arte, perpetuada pela mídia, está baseada, provavelmente será difícil que esta nova visão a respeito deste esporte no Brasil seja inserida e aceita pela sociedade. O brasileiro ainda se identifica muito com a ideia inicialmente construída por Gilberto Freyre em 1938, enxergando no esporte um dos principais elementos de sua identidade nacional, e muito disso se deve à constante veiculação desta imagem pelos diversos produtos midiáticos. Não se pode negar que alguns jogadores brasileiros possuem uma forma característica de praticar futebol, mas também não se pode dizer que tal estilo é unicamente deles. Hoje, outros jogadores, de outras nacionalidades, possuem grande habilidade com a bola, e se utilizam de firulas e transgressões para “embelezar” o jogo. Também não se pode deixar de lado o fato de que algumas seleções brasileiras demonstraram extrema destreza na prática do chamado futebol arte em alguns mundiais. No entanto, embora esta seja a visão difundida pela mídia e aceita pelos brasileiros, como alguns estudiosos do esporte afirmam, a partir do momento em que a maior parte das Copas do Mundo foi marcada por uma atuação regular dos jogadores brasileiros, e não tão artística, esta característica torna-se a exceção, e não a regra.

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Capítulo 26 Fotografia, comunicação e linguagem: O desafio da pesquisa imagética Neide Maria Carlos

O desafio da pesquisa O campo de estudo da comunicação se apresenta como um espaço interdisciplinar onde são necessários aportes de outros campos para um estudo que seja de caráter significativo para a construção do conhecimento científico. Da mesma forma, o campo de estudo da linguagem visual se amplia para outras áreas de conhecimento em busca de um entendimento sobre o seu papel como objeto da comunicação e transformação da cultura. O desafio epistemológico da fotografia em construir um conhecimento acerca do papel da mensagem visual para a comunicação, portanto, para a sociedade. A fotografia é importante fonte de informação que pode e deve ser interpretada à medida que retrata fatos sociais e auxilia na construção de um conhecimento acerca do 749

mundo visível. Diante das imagens tem-se a percepção de que há um uso consciente da linguagem visual como meio de comunicação. O processo de elaboração da pesquisa em fotografia deve definir-se sobre as abordagens pertinentes ao problema de pesquisa a ser verificado e discutido. O pesquisador se vê diante de diferentes questões a que remete a imagem: a sua relação com o real que lhe deu origem, o problema do sentido, o desafio da interpretação. Assim, o estudioso da imagem se vê diante das qualidades que se atribui à fotografia, seu poder de evocação, seu realismo e seus aspetos linguísticos. Portanto, torna-se pertinente a discussão acerca da fotografia como objeto da comunicação jornalística, a linguagem do fotojornalismo e seu papel na composição da mensagem comunicacional. Sob diferentes aspectos, tais mensagens podem ser elaboradas com menor ou maior grau de consciência de seus efeitos. “Sempre gostei da máquina que fotografa, desse pequeno olho de ciclope, único e redondo, que nos ensina a ver quando perdemos de vista o bom uso de nossos dois olhos. Magnífica máquina que nos permite questionar, pensar, sonhar com o real.” Samain (2012, p. 155) Romper a barreira entre o fazer fotográfico e passar ao campo da teoria e da pesquisa torna-se um desafio a quem produz imagem. Entender o seu papel na prática comunicacional e chegar ao desafio de submeter a prática ao espírito crítico da ciência se torna um desafio com muitas barreiras que deverão ser rompidas. Ao mesmo tempo, Philipe Dubois (1993, p. 15) afirma que “com a fotografia, não nos é mais possível pensar a imagem fora do ato que a faz ser.” Ou seja, há um duplo 750

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desafio em se entender a relevância do saber e da produção da imagem. Até onde e como se abordam os problemas que remetem a um ou outro aspecto que compõem o universo da imagem se configuram em um desafio da pesquisa em imagem. Ainda assim, é possível se afirmar que o ato de fotografar é um fazer seletivo, onde o enquadramento impõe a sua ênfase a determinados aspectos em detrimento a um vasto campo de acontecimentos. Revela alguns aspectos em detrimento de outros. Aos aspectos formais e práticos da mensagem visual podem ser atribuídas outras discussões que podem ser reveladoras do papel cultural imposto pela presença da imagem. Flusser (1985) aponta para uma valorização das imagens e da visualidade: “Imagens são mediações entre homem e mundo. O homem ‘existe’, isto é, o mundo não lhe é acessível imediatamente. Imagens têm o propósito de representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, entrepõem-se entre mundo e homem. Seu propósito é serem mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens. Não mais decifra as cenas da imagem como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado como conjunto de cenas. Tal inversão da função das imagens é idolatria.” (FLUSSER, 1985, p. 7)

No universo da imagem se reconhece a necessidade de mobilização de outras disciplinas que irão contribuir para 751

Dinâmica das Práticas Acadêmicas

a elaboração de um conhecimento sobre o potencial da mensagem visual e suas implicações. Disciplinas como a filosofia, a sociologia, a linguística, a semiologia e a história podem ser relevantes ao estudo do corpus do qual emerge a fotografia. Assim, pode-se reafirmar o caráter multidisciplinar dos estudos da linguagem visual a qual contribui para o campo dos estudos da comunicação. Aqui faço um “parênteses” para me referir a uns dos caminhos que me conduziu ao universo da fotografia. Lembrando uma imagem do passado, das primeiras que me levaram a pensar e a me interessar pelo fotojornalismo - e que aqui posso descrever sem precisar datas e contexto - me chegou ao final da década de 80. Era a fotografia de um veterano militar russo comendo um lanche do McDonald’s, com os arcos amarelos às suas costas. A imagem estava inserida em uma matéria de um jornal que falava sobre a abertura da União Soviética. Hoje, leria essa imagem sob a perspectiva do comunicador, pensando em vários níveis de leitura possíveis. Diferentemente, quando entrei em contato com essa imagem, há tantos anos, a perspectiva era de uma curiosidade acerca do momento histórico que produziu essa imagem. Ao mesmo tempo, tinha a imprensa como fonte quase incontestável e confiável de testemunho dos fatos históricos. Até mesmo como uma fonte de construção do conhecimento. Ainda assim, aquela imagem me fazia duvidar de sua veracidade. Pensar nela me fez questionar o seu testemunho de verdade: seria mesmo aquele um militar russo? Teria sido mesmo um flagra de um repórter fotográfico que registrou aquela imagem 752

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simbólica? Naquele momento, no contexto político em que ela foi inserida, teria uma força representativa para os conflitos que figuravam naquele tempo histórico. Questionar tal imagem me leva a refletir sobre o poder simbólico da imagem, sobre o seu papel revelador e sobre o quanto devemos questioná-lo.

Legenda: “Veterano do Exército Vermelho come sanduíche oferecido por loja do McDonald´s em São Petersburgo. Em homenagem ao ‘Dia da Vitória’” (não foi possível precisar data e publicação)

Roland Barthes afirma em A Câmara Clara (1990) que a fotografia representa algo que só ocorreu uma vez. Para Henri Cartier-Bresson é o momento decisivo que congela um momento recortado do real no instante

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em que o fotógrafo reconhece os elementos compostos diante da câmera, sob determinado ângulo e enquadramento. Didi-Huberman (2006) ainda afirma que: “A imagem, em especial a imagem fixa, é complexa. Para se dar conta disso, basta prolongar o tempo de um olhar posto sobre ela, sobre sua face visível para, logo, descobrir que a imagem nos leva em direção a outras profundidades, outras estratificações, ao encontro de outras imagens. É necessário, pois, abrir a imagem, desdobrar a imagem, inquietar-se diante de cada imagem.” (DIDI-HUBERMAN, 2006).

É possível, então, se interrogar sobre quais os tipos de tratamento poderíamos dar a essa imagem e quais as revelações que ela nos traria. Quais os tipos de pergunta ela nos remete e quais áreas de conhecimento das ciências sociais ela evoca. Ao mesmo tempo, ao profissional acostumado ao fazer fotográfico, alguém mais envolvido com a prática do fotojornalismo, faria quais indagações no sentido de incluir essa imagem ao seu repertório imagético. Poderia também se reter a questões técnicas e de linguagem. Na verdade, todas essas questões fazem parte do universo da imagem fotográfica e aí se encontra o desafio da pesquisa, o de construir o conhecimento sobre e através da imagem não verbal. A mensagem não verbal em alguns campos de pesquisa já foi negligenciada por diferentes razões. O presente trabalho busca salientar a sua relevância na constituição de um saber sobre o papel das mensagens veiculadas pelos meios

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de comunicação. Para tanto, é necessário reter o corpus, visualizá-lo e buscar nele o necessário aporte para construir através dele um estudo de aproximação com o campo da comunicação. Objetos de cultura, as mensagens passam por um processo de elaboração e construção sistematizada fundamentada sobre as escolhas da comunicação. O próprio campo de estudo da comunicação se apresenta como um espaço interdisciplinar onde são necessários aportes de vários campos para um estudo que seja de caráter significativo para a construção do conhecimento científico. Assim, a sociologia, a psicologia, a história, a linguística são algumas das áreas que podem contribuir para uma fundamentação do papel da comunicação para a sociedade. Da mesma forma, o campo de estudo da linguagem visual se amplia para esses demais campos em busca de um entendimento sobre o seu papel como objeto da comunicação social. Segundo Machado (1984), a câmera impõe um arranjo ao seu objeto: “Longe de encarnar o verismo essencial que lhe querem creditar os ‘realistas’, a câmera tem o poder transfigurador do mundo visível que chega a ser devastador nas suas consequências. Diante de uma câmera, não há realidade que permaneça intacta: tudo se altera, tudo se arranja, tudo concorre para a ordem ideal do monumento.” (MACHADO, p. 54, 1984)

Diante dessas proposições, a pesquisa tenta delimitar até onde a câmera se faz imparcial ou a partir

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de que momento ela interfere e modifica o objeto fotografado. Constitui-se assim mais um dos desafios epistemológicos da pesquisa científica estabelecer os limites do pensamento investigativo sob um ou outro aspecto a ser abordado e em que momento e de que forma eles se entrecruzam. Didi-Huberman em entrevista à Revista de Filosofia e da Imagem em Movimento (n° 01, 2010) afirma que “a cada novo objeto, se deve reformular os quadros conceituais.” E completa, “desde que comecei a trabalhar, sempre tive uma preocupação epistemológica.” As imagens nos dão a ilusão de que tocam o real e sua composição o modifica em algum sentido, orientado sob determinada visão. A partir daí, algumas das indagações do pesquisar se darão no sentido de questionar quais os tipos de conhecimento ela deverá manifestar ou quais modificações ela deve impor ao pensamento. Em seu artigo “Quando as imagens tocam o real”, Georges Didi-Huberman (2012) afirma: “Nunca a imagem se impôs com tanta força em nosso universo estético, técnico, cotidiano, político, histórico. Nunca mostrou tantas verdades tão cruas; nunca, sem dúvida, nos mentiu tanto solicitando nossa credulidade; nunca proliferou tanto e nunca sofreu tanta censura e destruição. Nunca, portanto, — esta impressão se deve sem dúvida ao próprio caráter da situação atual, seu caráter ardente —, a imagem sofreu tantos dilaceramentos, tantas reivindicações contraditórias e tantas rejeições cruzadas,

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manipulações imorais e execrações moralizantes.” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 209)

A fotografia é sempre um objeto difícil de ser dominado, onde diferentes vertentes de estudo buscam delimitar e sistematizar suas análises no sentido de traçar possíveis caminhos metodológicos. Ao mesmo tempo, os objetos relacionados ao universo da imagem se abrem a diferentes possibilidades teóricas e metodológicas, diferentes propostas de investigação da mensagem não verbal. Sontag (1986) fala em gramática e uma ética da visão, e fala também da ideia de reter o mundo através da imagem fotográfica. “Ao ensinar-nos um novo código visual, as fotografias transformam e ampliam nossas noções do que vale a pena olhar e do que pode ser observado.” (SONTAG, 1986, p.13) Nas palavras de Humberto (2001, p.80), “liberada do óbvio e da visão primeira, ela pode se tornar mais rica em possibilidades de mostrar nuanças ou mesmo faces mais inteligentes e intrigantes de realidades que às vezes poderiam parecer vulgares.”

Fotografia: documento ou expressão? A crença na veracidade fotográfica nasce com o advento das máquinas da Revolução Industrial. Com o capitalismo industrial surge a modernidade marcada por uma racionalidade instrumental. Os dispositivos mecânicos trabalham sob a credibilidade da sociedade moderna.

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Nesse sentido, a imagem da câmera fotográfica ganha o status de retrato e documento da sociedade moderna e industrial. Para Rouillé (2009, p. 31) “se a fotografia é moderna, deve-o, sobretudo ao seu caráter de imagem-máquina, a partir que, sem precedentes, a tecnologia ocupa em suas imagens.” É o surgimento de uma imagem tecnológica, diferente daquelas praticadas pela mão do homem. A ideia de semelhança sofre uma transformação e modifica a relação do homem com as imagens. Passa-se a ver através de um olho mecânico, assim, entre o olho humano e a realidade se interpõe a máquina. “Captar, apoderar-se, registrar, fixar, tal é o programa deste novo tipo de imagem: imagem de captura funcionando como uma máquina de ver, e renovando desse modo, o projeto documental”, acrescenta Rouillé (2009, p. 36) O dispositivo fotográfico e o processo de impressão criam a cópia e a reprodução dos documentos. A fotografia surge, assim, como uma apreensão da realidade e se constitui como documento dessa realidade. Segundo Rouillé (2009, 63) as imagens fotográficas “transformam-se em objetos mágicos, em cujas propriedades pedem-nos que acreditemos.” Essas imagens irão substituir simbolicamente o real através de um instrumento que não é mais o imaginário do homem e seus traços, mas um olho mecânico ao qual se atribui o poder de apreensão de fatos da realidade. É a crença no dispositivo. Essa convicção na veracidade fotográfica se perpetuaria por mais de um século e é certo que os documentos produzidos pela técnica fotográfica se assemelham muito mais à realidade do que aqueles fornecidos pela arte 758

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da pintura, por exemplo. Como afirma Ciro Marcondes (2006, p. 434), “Enquanto as imagens antigas apenas imaginavam o mundo, as novas imagens – as imagens técnicas – imaginam textos que concebem imagens que imaginam o mundo.” Mas Rouillé (2009, p. 19) adverte que “mesmo quando está em contato com as coisas, o fotógrafo não está mais próximo do real do que o pintor trabalhando diante de sua tela.” Nesse contexto, a linguagem fotográfica sofre a influência de outras referências estéticas e linguagens visuais, também da própria cultura onde ela se insere. Nas palavras de Rouillé (2009, p. 19), “entre o real e a imagem sempre se interpõe uma série infinita de outras imagens, invisíveis porém operantes, que se constituem em ordem visual, em prescrições icônicas, em esquemas estéticos.” Se estabelece a noção entre o objeto que se vê para se pensar em como se vê.

Fotografia e cultura O ser humano cria e faz uso das imagens em seu processo de conhecimento da cultura. Tais mensagens estarão carregadas de sentido que serão evocados por uma memória cultural. É o saber constituído através da cultura que remete o espectador da imagem a determinados significados. Ao mesmo tempo, pode também a mensagem visual contribuir para esse saber cultural através da visão de mundo que a linguagem fotográfica apresenta.

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Nesse sentido, a linguagem fotográfica nos faz questionar se é possível tornar visíveis questões sociais e humanas que se tornaram invisíveis ao olhar cotidiano utilizando-se de linguagens visuais contemporâneas a partir de uma fotografia, sem incorrer em resultados meramente ilustrativos.

Algumas propostas metodológicas Diante desse contexto e das questões aqui levantadas, apresenta-se a seguir algumas possibilidades de abordagens teóricas da imagem. Dessa forma, se apresentam possíveis caminhos metodológicos que busquem construir conhecimento acerca da linguagem fotográfica e seu papel dentro do campo da comunicação. Torna-se necessário reafirmar que o corpus que se apresenta para a pesquisa pode revelar diferentes possibilidades de discussão teórica. Portanto, é preciso interrogar esse corpus e verificar que tipo de problema ele apresenta e quais as perguntas a que ele nos remete. Assim, o próprio objeto de estudo se apresenta questionador ao pesquisador e solicita determinados tipos de conhecimento. Diante do documento fotográfico é preciso interrogar a imagem em seus planos de expressão e conteúdo. O fato expresso pela sua composição guarda representações que falam além da realidade que lhe originou. Kossoy (2007, p. 31) assinala que “é necessário que se compreenda o papel cultural da fotografia: o seu poderio de informação e desinformação, sua capacidade de emocionar e transformar, de denunciar e manipular.”

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Reconhecendo a linguagem visual como uma articulação textual, pode-se constituir um aporte teórico capaz de analisar os processos envolvidos na produção de significação, o processo de elaboração discursiva. Duarte (2000, p.171) ressalta que “considerar a fotografia como um texto implica nele reconhecer diferentes sistemas de signos e considerar sua articulação em uma linguagem que se proponha informar, comunicar, significar.” Expressão e conteúdo seriam, portanto, o ponto de partida para a análise da mensagem não verbal. Para Flusser (1984): “O fator decisivo no deciframento de imagens é tratar-se de planos. O significado da imagem encontra-se na superfície e pode ser captado por um golpe de vista. No entanto, tal método de deciframento produzirá apenas o significado superficial da imagem. Quem quiser ‘aprofundar’ o significado e restituir as dimensões abstraídas, deve permitir à sua vista vaguear pela superfície da imagem. Tal vaguear pela superfície é chamado scanning.” (FLUSSER, 1985, p. 7)

O pensamento de Roland Barthes Algumas propostas de abordagem das imagens são descritas em duas obras de Roland Barthes (1915-1980). Escritor, semiólogo, crítico e filósofo, influenciado pelo

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pensamento do linguista Ferdinand Saussure, Barthes relata em O óbvio e o obtuso (1990) e A Câmara Clara (1984) propostas para uma possível leitura e compreensão da imagem que serviriam de aporte para as discussões em torno dos planos de conteúdo e expressão da imagem. Em A Câmara Clara (1984), Barthes aponta para uma dualidade presente na imagem, uma de caráter mais formal da imagem e a outra de caráter mais subjetivo. O autor defende que a fotografia pode ser dotada de um Studium e um Punctum, o primeiro mais objetivo e o segundo subjetivo. Tais categorias buscam detectar em que medida nos afetamos pelo discurso da linguagem fotográfica. Para o autor, o Studium traz uma leitura do contexto cultural e técnico da imagem, enquanto o Punctum fala mais emocionalmente e fere o espectador de maneira subjetiva. “[O studium], visivelmente, é uma vastidão, ele tem a extensão de um campo, que percebo com bastante familiaridade em função de meu saber, de minha cultura.” (BARTHES, 1984, p. 44) O Punctum, na definição de Barthes (1980) é aquilo que vem me ferir e que me atravessa como uma flecha, um apelo emocional além da perspectiva dos fatos. É um apelo que atinge o espectador de maneira subjetiva, mas que apela a um discurso caracteristicamente emocional. É importante ressaltar que o retrato não é o fato. Trata-se de uma abordagem do fato, uma recriação expressiva. Segundo Barthes (1984, p. 153), “a fotografia dá um pouco de verdade com a condição de retalhar o corpo. Mas essa verdade não é a do indivíduo, que permanece irredutível; é a da linguagem.” 762

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Em O óbvio e o obtuso (1990), o autor aponta para uma coexistência na imagem de uma mensagem conotada e outra denotada, o paradoxo fotográfico. A conotação ocorreria, então, não ao nível da própria mensagem, mas pelo processo de produção e recepção. Comportaria assim significantes e significados que, segundo Joly (1996, p. 75), estariam vinculados ao “saber preexistente e compartilhado do anunciante e do leitor.” Sobre a pura representação analógica se desenvolveriam valores estéticos ou ideológicos. “O primeiro sentido não recorreria ao código pelo seu caráter analógico e contínuo. Por outro lado, o código do sistema conotado seria constituído por uma simbologia cultural ou universal, por uma retórica de época, por uma reserva de estereótipos.” (DUARTE, 2000, p. 170)

Umberto eco e os cinco níveis de compreensão da imagem Umberto Eco em A Estrutura Ausente (2003) apresenta um modelo de articulação da mensagem visual em cincos níveis distintos: icônico, iconográfico, tropológico, tópico e entimemático. Seriam níveis de codificação das mensagens: 1) O nível icônico seria a forma em que a imagem se apresenta. O nível da mensagem literal e que é percebida à primeira vista. 2) No nível iconográfico, o que a imagem vai denotar. Nesse nível a mensagem passa por um processo 763

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histórico e cultural de análise, um modo de interpretação pessoal adquirida ao longo do tempo. Se verifica, por exemplo, o contexto da imagem, as cores da composição e outros aspectos. 3) No nível tropológico, as figuras de linguagem identificáveis na imagem. Tais figuras de linguagem são mecanismos argumentativos da mensagem. Dentre as figuras mais recorrentes pode-se apontar a metáfora, a metonímia, a antonomásia e a hipérbole. 4) No nível tópico, engendra as premissas. Decorre de um senso comum que representam valores comumente aceitos. Estaria na esfera da ideologia. 5) No nível entimemático, as conclusões lógicas. Premissas ocultas em uma linguagem verbal. Tanto as propostas apresentadas por Roland Barthes em O óbvio e obtuso (1990) quanto aquelas enunciada na obra de Umberto Eco em A Estrutura Ausente (2003), são aplicadas à propaganda publicitária pelos autores. Mas, considerando-se que a imagem de imprensa não se apresenta como uma estrutura isolada e sim inserida em um conjunto para o qual concorrem texto verbal e não verbal, tais abordagens são altamente relevantes para a construção do método de análise da fotografia e suas construções discursivas.

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Relação entre imagem e texto A relação texto-imagem pode servir de ancoragem para a mensagem não verbal. Ao mesmo tempo, a imagem pode duplicar as informações do texto por um fenômeno de redundância da mesma forma que o texto pode acrescentar informações inéditas à imagem. A mensagem linguística pode orientar a interpretação do espectador. Assim, a informação visual jornalística dificilmente se apresenta como uma estrutura isolada, visual e textual estabelecem relações na construção do discurso da imprensa. A imagem é polissêmica e nela poderá coexistir, sob diferentes aspectos, uma cadeia de significados, sendo que alguns poderão ser escolhidos em detrimento de outros. Nesse sentido, o texto pode conduzir em direção a determinados sentidos. Para Barthes (1990) há um processo de sintaxe entre texto e imagem que não pode ser ignorado. A legenda, por exemplo, pode conformar o olhar e induzir a intelecção.

Conclusões O fotojornalismo está presente em nossa cultura como uma janela que se abre ao enquadramento técnico da realidade. Entre a prática de imprensa, o fazer fotográfico e a preocupação com a formulação de um conhecimento científico sobre a linguagem visual, o

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pesquisador é desafiado a compreender as fronteiras que separam e unem o pensamento teórico. “O avanço dos sistemas de criação e distribuição das imagens no mundo, fez com que elas se desprendessem da relação de similaridade com o visível e se aproximasse das relações sociais e culturais que dão significação às imagens.” (CAMARGO, p. 112, 2007) Analisar as construções e representações expressas através das imagens deve contribuir ao campo de estudo da comunicação e, portanto, ao campo das ciências sociais. Identificar os processos de construção da informação imagética, suas relações com o texto e a imagem podem ajudar a compreender o papel cultural da fotografia como meio revelador de novas formas de se “ver” o mundo. Diante de um vasto campo teórico consagrado, ainda é possível estabelecer novas possibilidades de investigação. Criar, assim, formas próprias ao corpus que compõe o objeto de pesquisa, o que ele solicita de conhecimento ao pesquisador. Assim, seu trabalho parte do princípio da observação de um seu recorte de mundo e para empreender o trabalho de construção de um pensamento científico de uma linguagem que foi por muito tempo negligenciada.

Referências AUMONT, Jacques. A imagem. São Paulo: Papirus Editora, 1993.

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