CIÊNCIAS SOCIAIS: VOCAÇÃO E PROFISSÃO (org.)

September 28, 2017 | Autor: F. Carreira da Silva | Categoria: Social Capital, Cidadania, Democratic Transitions, Envelhecimento
Share Embed


Descrição do Produto

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 1

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 2

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 3

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 4

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 5

Ciências Sociais: Vocação e Profissão Homenagem a Manuel Villaverde Cabral Pedro Alcântara da Silva Filipe Carreira da Silva (organizadores)

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 6

Imprensa de Ciências Sociais

Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa Av. Prof. Aníbal de Bettencourt, 9 1600-189 Lisboa – Portugal Telef. 21 780 47 00 – Fax 21 794 02 74 www.ics.ul.pt/imprensa E-mail: [email protected]

Instituto de Ciências Sociais — Catalogação na Publicação Ciências sociais : vocação e profissão : homenagem a Manuel Villaverde Cabral. Pedro Alcântara da Silva, Filipe Carreira da Silva (organizadores). Lisboa : ICS. Imprensa de Ciências Sociais, 2013. - 23 cm ISBN 978-972-671-317-3 Cabral, Manuel Villaverde, 1940- / Ciências sociais CDU 316

Capa e concepção gráfica: João Segurado Revisão: Levi Condinho Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda. Depósito legal: ?????? 1.ª edição: Julho de 2013

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 7

Índice Os autores............................................................................................. 17 Introdução ............................................................................................ 29 Pedro Alcântara da Silva e Filipe Carreira da Silva

Parte I Percurso e apontamentos pessoais Capítulo 1 Da militância política à investigação científica: história de uma vocação.................................................................................... 39 Guya Accornero Capítulo 2 Manuel Villaverde Cabral: entre o saber e a acção........................ 69 João Freire Capítulo 3 Le passeur intranquille ....................................................................... 75 Yann Moulier Boutang Capítulo 4 Manuel Villaverde Cabral: o livro e a leitura em Portugal ........... 85 Teresa Patrício Gouveia Capítulo 5 Homenagem a Manuel Villaverde Cabral....................................... 89 Richard A. H. Robinson

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 8

Parte II História e humanidades Capítulo 6 A multidão medieval e moderna: representações políticas em Fernão Lopes e D. Francisco Manuel de Melo........................ 95 Eduardo Cintra Torres Capítulo 7 Vocabulário heráldico e gramática social: as cartas de brasão modernas como retrato das elites portuguesas de finais da monarquia constitucional ............................................................. 117 Rui Graça Feijó Capítulo 8 Jeunesses syndicalistes: violence et action directe dans les années 20 ............................................................................... 145 Filipa Freitas Capítulo 9 Um sociólogo oblíquo: a função social da religião e da arte e as reflexões políticas em Fernando Pessoa ................................... 181 Steffen Dix e José Barreto Capítulo 10 Genèse et projet des Cadernos de Circunstância................................ 207 Fernando Medeiros Capítulo 11 Una rottura italiana: produzione versus sviluppo ........................... 231 Antonio Negri

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 10:18 AM Page 9

Capítulo 12 A Universidade e a crise do pensamento crítico ............................ 241 José Medeiros Ferreira Capítulo 13 O homo mercator e o princípio de electividade: limites do mercado, limites do liberalismo económico ............................. 251 Hermínio Martins Capítulo 14 La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica ............................................................................................ 283 Salvador Giner Capítulo 15 Das casas de família às casas de alterne: em Trás-os-Montes com Manuel Villaverde Cabral ......................................................... 331 José Machado Pais Capítulo 16 O corpo-espelho-de-forças e o acaso............................................... 357 José Gil

Parte III Política Capítulo 17 Manuel Villaverde Cabral e os casulos do conhecimento político .................................................................................................. 379 Renato Lessa

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 10:18 AM Page 10

Capítulo 18 The impact of ‘real-existing’ democracy – on the European Union and Central & South Eastern Europe .................................. 401 Philippe C. Schmitter Capítulo 19 Do authoritarian legacies account for quality of democracy? Additional remarks on Southern Europe ........................................ 413 Leonardo Morlino Capítulo 20 The Iberian divergence in political inclusion................................. 433 Robert M. Fishman Capítulo 21 British young people and politics: a disengaged generation? ...... 451 Roger Jowell & Alison Park Capítulo 22 Legitimacy, disaffection, and dissatisfaction: trends and structure in attitudes towards portuguese democratic politics ..... 469 Pedro C. Magalhães Capítulo 23 ¿Despotismo administrativo o Estado débil? Policía, fiscalidad y sus efectos en la cultura cívica portuguesa................................... 497 Diego Palacios Cerezales Capítulo 24 Cidadania trans-escalar: o Estado, a cidade global e o cidadão ... 515 Mónica Brito Vieira & Filipe Carreira da Silva

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 10:18 AM Page 11

Capítulo 25 Cultura política, cidadania e representação na urbs sem civitas: a metrópole do Rio de Janeiro ..................................... 545 Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro & Filipe Souza Corrêa Capítulo 26 Arquitectura, massificação e democracia: notas sobre um estádio de futebol ......................................................................... 559 José Neves

Parte IV Saúde e envelhecimento Capítulo 27 O consolo das humanidades ............................................................. 575 João Lobo Antunes Capítulo 28 Consilience.............................................................................................. 583 Leonor Parreira Capítulo 29 Ser velho: percepções e dimensões do envelhecimento............... 589 Sofia Aboim Capítulo 30 Sociedade e envelhecimento: algumas questões em torno do envelhecimento activo .................................................................. 615 Pedro Moura Ferreira

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 10:18 AM Page 12

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 10:18 AM Page 13

Índice de quadros e figuras Quadros 19.1 19.2 19.3

Authoritarian legacies as constraints to democracy ....................... 418 Dimensions influencing authoritarian legacies, per country......... 419 Authoritarian legacies as constraints to a «good» democracy, per country ....................................................................................................

Attitudes toward democracy according to left-right self-placement in Italy (1958) (%).................................................... 19.5 Attitudes towards the past (1985) .................................................... 21.1 Reported general election turnout and political interest, by age .. 21.2 Attitudes to homosexuality, by age ................................................. 21.3 No religious affiliation, by age......................................................... 21.4 «None at all» or «not very much» interest in politics (%).............. 21.5 Age cohort reporting voting in general election (%)...................... 21.6 Age cohort thinking pre-marital sex «not wrong at all» (%) .......... 21.7 Age cohort who do not belong to particular religion (%)............. 22.1 Factor analysis, Varimax rotation (1985-2002)................................ 22.2 Factor analysis, Varimax rotation (2005-2009)................................ 22.3 The determinants of democratic legitimacy ................................... 22.A1 The correlates of dissatisfaction....................................................... 22.A2 The correlates of disaffection........................................................... 23.1 Rendimiento del aparato fiscal en Europa (1851-1913), indicado por los ingresos públicos en porcentaje del PIB ............................ 25.1 A confiança interpessoal nas áreas da RMRJ.................................. 25.2 A confiança política nas áreas da RMRJ......................................... 25.3 As virtudes cívicas nas áreas da RMRJ............................................ 25.4 O associativismo nas áreas da RMRJ .............................................. 25.5 A mobilização política nas áreas da RMRJ .................................... 25.6 Condicionantes da mobilização política nas áreas da RMRJ .......

422

19.4

424 425 457 460 461 463 464 465 466 472 473 479 495 496 507 547 548 548 550 551 552

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 10:18 AM Page 14

Figuras 7.1 7.2 7.3 7.4 7.5 7.6 7.7 7.8 8.1 8.2 8.3 8.4 8.5 8.6 8.7 8.8 8.9 8.10 22.1 22.2 22.3 22.4 22.5

Armas da família Távora................................................................... Armas da família Castro ................................................................... Representação heráldica de águia e leão. Detalhe dos frescos A Lenda de Vera Cruz de Piero della Francesca na Igreja de São Francisco em Arezzo (cerca de 1450) .................................. Armas da família Machado ................................................................. Armas atribuídas a Pedro Álvares Cabral ........................................ Armas do barão do Alto-Mearim..................................................... Armas do conde de Duparchy ......................................................... Armas do visconde do Sorraia ......................................................... Réunion anarchiste : déjeuner commémoratif du premier anniversaire de A Batalha, à Benfica, en banlieue de Lisbonne .... L’église du Socorro après l’attentat de Jorge da Silva Pinheiro .... Artur Pato Moniz, le portier du Club Bristol, blessé par balle par la Légion Rouge, le 19 avril 1925 .............................................. L’épisode de Olivais vu par O Século, 30 mai 1924 ....................... Olivais vu par A Batalha: un tout autre point de vue... .............. Le manifeste de «O Avante»............................................................. Autres légionnaires............................................................................ Quelques légionnaires ...................................................................... Autres légionnaires ............................................................................ Affiche des années 40 sur les actions de la Légion Rouge sous la République............................................................................ Support for democracy as a regime................................................. Dissatisfaction with the way democracy works ............................. Political disaffection.......................................................................... Education and democratic legitimacy (predicted probabilities) ... Left-right self-placement and support for democracy (predicted probabilities). ..................................................................

133 134 135 136 137 138 139 141 150 152 154 156 157 164 167 168 170 177 474 474 476 480 480

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 10:18 AM Page 15

22.6 22.7 22.8 22.9 22.10 22.11 22.12 22.13 22.14 22.15 25.1 25.2 25.3 25.4 25.5 26.1 26.2 26.3

Cohort effects and democratic legitimacy (predicted probabilities).................................................................... Education and dissatisfaction with democracy (predicted probabilities of «somewhat» + «very dissatisfied»)....... Left-right self-placement and dissatisfaction with democracy (predicted probabilities of «somewhat» + «very dissatisfied») ...... Education and disaffection (predicted probabilities of answering in the two highest points of the scales) ........................................... Dissatisfaction, disaffection, and exposure to political news ........ Dissatisfaction, disaffection, and representational participation ..... Dissatisfaction, disaffection, and extra-representational participation ..................................................................................... Trend in disaffection with democracy. ........................................... Trends in political disaffection ........................................................ Trend in democratic legitimacy ....................................................... Áreas de ponderação da RMRJ segundo os níveis de renda familiar per capita............................................................................... Áreas de ponderação da RMRJ segundo os níveis do clima educativo domiciliar médio ............................................................ Áreas de ponderação da RMRJ segundo os quartis do índice de carência de infra-estrutura ........................................................... Áreas de ponderação da RMRJ segundo o grau de competitividade da disputa eleitoral para deputado estadual ....... Distribuição espacial da votação de um deputado e dos usuários de um centro social mantido pelo mesmo .................................... Estádio de Braga................................................................................ Estádio Nacional, Lisboa ................................................................ Estádio de Lausana ...........................................................................

481 482 482 484 486 487 488 489 490 491 542 543 544 553 555 561 571 571

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 16

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 17

Os autores Sofia Aboim é doutorada em Sociologia pelo ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2004). É Investigadora Auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e investigadora visitante no Centre for Gender Excellence (Gexcel) da Universidade de Linkoping na Suécia. Desde 1997 desenvolve investigação sobre vários temas, destacando-se a família e o curso de vida, o género e a sexualidade, a mudança social e a modernidade. Tem publicado vários livros e artigos sobre estas temáticas em Portugal e no estrangeiro. Tem coordenado e participado em projectos científicos nacionais e internacionais e é também membro da Comissão Coordenadora do OFAP – Observatório da Família e das Políticas de Família. Guya Accornero doutorou-se em Sociologia Histórica no ICS-UL e é actualmente investigadora em Ciência Política no CIES-IUL e no IEPI-Universidade de Lausanne. Foi estudante visitante na Fundação Juan March (Madrid) e, em 2011, investigadora convidada no Centre de Recherche sur l’Action Politique da Universidade de Lausanne. Tem artigos publicados nas revistas Análise Social, Storia e Problemi Contemporanei, Cultures et Conflits, Democratization; editou, com o Professor Alfonso Botti, o special issue «Il Portogallo e la transizione alla democrazia» e tem no prelo o livro Social Movements Studies in Europe: the State of the Art, para a editora Berghahn, organizado com o Professor Olivier Fillieule. João Lobo Antunes é professor de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina de Lisboa e presidente do Instituto de Medicina Molecular de que foi fundador. Entre 1971 e 1984 trabalhou no Instituto Neurológico da Universidade de Columbia em Nova Iorque, onde foi fellow da Fundação Fulbright e da Fundação Matheson. É autor de mais de 180 artigos científicos sobre temas médicos e cinco livros de ensaios, além de uma biografia de Egas Moniz (2010). Em 2012 publicou o ensaio A Nova Me17

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 18

Ciências Sociais: Vocação e Profissão

dicina na série editada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Foi presidente da Sociedade Europeia de Neurocirurgia (1999-2003) e do Conselho Superior de Ciência, Tecnologia e Inovação (2003-2006). É desde 2006 Conselheiro de Estado por nomeação do Presidente da República. Entre as distinções internacionais são de destacar o Neurobionik Award, Hannover 2003 e a Medalha de Honra da European Association of Neurosurgical Societies, 2007. Recebeu o Prémio Pessoa em 1996 e o Prémio da Universidade de Lisboa em 2013. José Barreto, historiador com formação académica em Economia (Universidade de Ciências Económicas de Budapest, 1974) e Sociologia (Universidade de Lisboa, 1992). Trabalhou desde 1975 como assistente de investigação do Gabinete de Investigações Sociais, depois Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (1982), de cujo quadro de investigadores faz parte desde 1992. Desenvolveu a sua investigação em sucessivas áreas temáticas, da história do sindicalismo e das relações laborais à história política e das relações Estado-Igreja no século XX em Portugal. Nos últimos anos, tem-se dedicado principalmente ao estudo e edição dos escritos políticos e sociológicos de Fernando Pessoa, divulgando as suas pesquisas em revistas ou editoras nacionais e internacionais. Yann Moulier Boutang é professor de Economia na Universidade de Tecnologia em Compiègne, desde 2005, e professor associado na Escola Superior de Arte e Design em Saint-Etienne, desde 2007. Ensina igualmente na Escola Superior Nacional de Criação Industrial, em Paris, e na Universidade Sino-Europeia de Tecnologia na Universidade de Shangai. A sua investigação relaciona-se com a migração, a escravatura, as recentes transformações do capitalismo, o capitalismo cognitivo e direitos de propriedade intelectual, e a complexidade urbana. Foi tradutor de inúmeros trabalhos de pensadores do operaísmo; autor de uma biografia sobre Louis Althusser. Fundou em 2000 a French Quarterly Multitudes. Recentes livros: L’abeille et l’économiste, Carnets Nord (Paris, 2010); Cognitive Capitalism (Polity Press, 2012); Liberté, égalité, blabla (Autrement, Paris 2012). Diego Palacios Cerezales é doutorado em Ciência Política pela Universidad Complutense de Madrid e mestre em Ciências Sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, onde trabalhou com Manuel Villaverde Cabral. Investiga sobre a história dos movimentos sociais e da contestação social, a construção do Estado e polícia, tanto em Espanha como em Portugal. Publicou dois livros: O Poder Caiu na Rua. 18

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 19

Os autores

Crise de Estado e Acções Colectivas na Revolução Portuguesa (ICS, 2003) e Portugal à Coronhada. Protesto Popular e Ordem Pública no Portugal Contemporâneo (Tinta da China, 2011). Actualmente está a escrever a história do uso colectivo do direito da petição desde o século XVII até à era da internet. Filipe Souza Corrêa é investigador no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia INCT-Observatório das Metrópoles/CNPq-FAPERJ (Brasil). Doutorando em Ciência Política (UFMG), desenvolve pesquisas no campo da sociologia urbana, comportamento legislativo, estudos eleitorais, partidos políticos e cultura política. Já publicou diversos artigos e capítulos de livros ao longo da sua trajectória académica. Steffen Dix formou-se em Ciência das Religiões, Filosofia e Filologia Portuguesa em Tübingen, Berlim e Lisboa, e doutorou-se na Universidade de Tübingen em Ciência das Religiões. Até 2012, trabalhou no Instituto de Ciências Sociais sobre o modernismo em Fernando Pessoa e sobre a teoria da secularização. Neste momento é Habilitand na Universidade de Bayreuth, desenvolvendo uma tese comparativa sobre a secularização em Portugal e no Brasil, e trabalha paralelamente no Centro de Estudos de Comunicação e Cultura (CECC) da Universidade Católica Portuguesa, analisando o contexto histórico da obra de Fernando Pessoa. No que diz respeito a estes interesses científicos, organizou diversos eventos académicos em Portugal e no estrangeiro, participou em projectos internacionais e divulgou as suas pesquisas em revistas académicas ou editoras internacionais. Rui Graça Feijó fez parte da primeira vaga de licenciados (Coimbra 1978) a doutorar-se no estrangeiro (Oxford 1984). Foi professor na Faculdade de Economia do Porto, Faculdade de Economia e Gestão da Universidade Católica Portuguesa, Universidade Aberta e Universidade Nacional de Timor-Leste. Foi vereador da Câmara Municipal do Porto, presidente da Comissão de Viticultura da Região dos Vinhos Verdes, e empresário agrícola no concelho de Lousada. É investigador associado do Centro de Estudos Sociais. Com formação em História – publicou Liberalismo e Transformação Social (1991) – dedica-se à análise política sobre a Democracia, tomando como base o caso timorense. Publicou Timor-Leste: Paisagem Tropical com Gente Dentro (2006). José Medeiros Ferreira é historiador. Foi assistente de História na Universidade de Genève de 1972-1974 (Prémio Gustave Ador daquela 19

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 20

Ciências Sociais: Vocação e Profissão

Universidade em 1972) e assistente e professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa entre 1981 e 2009, ano em que se aposentou. Foi presidente do Conselho Geral da Universidade Aberta até 2012. Entre a sua bibliografia conta-se: O Comportamento Político dos Militares (1992); Portugal na Conferência de Paz (1992); Portugal em Transe (1994); A Nova Era Europeia (1999); e Cinco Regimes na Política Internacional (2006). Pedro Moura Ferreira, doutorado em Sociologia pelo ISCTE-IUL, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e membro do Instituto do Envelhecimento da mesma Universidade. É actualmente responsável pelo Arquivo Português de Informação Social. Desenvolve investigação nas áreas de envelhecimento, curso de vida e género. Tem como publicações mais recentes os livros: As Sexualidades em Portugal: Comportamentos e Riscos e Mulheres e Narrativas Identitárias: Mapas de Trânsito da Violência Conjugal. Tem actualmente em curso dois projecto de investigação: «Processos de envelhecimento em Portugal: usos do tempo, redes sociais e condições de vida» e «Informação sobre saúde da população portuguesa: Conhecimentos e qualidade percepcionada das fontes de informação sobre saúde». Robert M. Fishman é professor de Sociologia no Kellogg Institute e Nanovic Institute da University of Notre Dame. Com uma orientação histórica e comparativa, o seu trabalho centra-se no estudo da democracia, nas consequências das desigualdades, da política, da cultura e em temas conexos. Encontra-se neste momento a trabalhar num livro que compara a prática democrática e as consequências sociais em Portugal e Espanha. Os seus mais recentes livros são Democracy’s Voices e (com Anthony Messina) e The Year of the Euro. Tem artigos publicados na American Sociological Review, World Politics, Politics and Society, Contributions to Political Economy, Comparative Politics, Studies in Comparative International Development entre outras revistas académicas, bem como artigos no The New York Times. João Freire é sociólogo. Professor Catedrático aposentado e professor emérito do ISCTE-IUL. Antigo oficial da Armada e desertor, para França, em 1968. Colaborador dos Cadernos de Circunstância. Fundador da revista A Ideia. Autor de Sociologia do Trabalho: Uma Introdução, Anarquistas e Operários, Homens em Fundo Azul Marinho, Economia e Sociedade, Pessoa Comum no Seu Tempo e outros livros. 20

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 21

Os autores

Filipa Freitas começou os seus estudos de História Contemporânea e de Sociologia na Universidade de Jussieu Paris 7, estudos que prosseguiu com uma tese de doutoramento sobre as Juventudes Sindicalistas portuguesas, realizada no âmbito de uma co-tutela entre a ICS e a EHESS (École des Hautes Études en Sciences Sociales), sob a direção de Bernard Vincent e de Manuel Villaverde Cabral. Obteve a Agrégation de Português e ensinou alguns anos, antes de se tornar intérprete de Conferência. José Gil foi professor na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde ensinou Estética, Filosofia da Arte e Filosofia Moderna e Contemporânea. Colaborou com diversas universidades europeias e da América do Sul, tendo sido coordenador do Departamento de Psicanálise e Filosofia da Universidade de Paris VII. É autor de dezenas de livros, entre eles, sobre a Filosofia do Corpo, Metamorfoses do Corpo (1997), Monstros (2006); sobre a poesia de Fernando Pessoa, Fernando Pessoa e a Metafísica das Sensações (1987), O Espaço Interior (1994), Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa (1999); sobre a Estética da Dança, Movimento Total (2001); sobre Estética e Filosofia da Arte, Sem Título (2005), O Humor e a Lógica dos Objectos de Duchamp (2011); e sobre a Filosofia de Deleuze, O Imperceptível Devir da Imanência (2008). Publicou inúmeros artigos sobre Descartes, Kant, Spinoza, Husserl, Deleuze e Foucault, e ensaios sobre a identidade portuguesa, sistemas de poder e política. Salvador Giner é sociólogo e doutorado em Sociologia e Teoria Social pela Universidade de Chicago, tendo prosseguido os seus estudos pós-graduados na Universidade de Cambridge. Ensinou nas universidades de Reading, Lancaster e West London, onde foi director do Departamento de Sociologia, entre outras. Catedrático na Universidade de Barcelona desde 1989, fundou a Federación Española de Sociología e a Europea de Sociologia. Dirigiu o Instituto de Estudios Sociales Avanzados e foi cofundador do European Journal of Sociology. É ainda presidente do Institut d’Estudis Catalans, Academia de Ciencias y Humanidades. Para além dos seus estudos macrossociológicos, é autor de várias obras sobre a dinâmica da sociedade civil, a democracia, a cidadania e a evolução da ética como Historia del Pensamiento Social, Sociedad Masa, Teoria Sociológica clásica, assim como a coordenação do Diccionario de Sociología. A sua obra mais recente é El Origen de la Moral. Teresa Patrício Gouveia é administradora da Fundação Calouste Gulbenkian desde Novembro de 2004 e membro da Comissão de Supervisão 21

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 22

Ciências Sociais: Vocação e Profissão

da Partex Oil and Gas (Holdings) Corporation. Membro do ECFR-European Council on Foreign Relations (Londres) e do EFLG-European Former Leaders Group (França). Secretária de Estado da Cultura (1985-1990), secretária de Estado do Ambiente (1991-93), ministra do Ambiente (1993-95), ministra dos Negócios Estrangeiros (2003-04), e deputada (1987-2004). Presidente da Fundação de Serralves, entre 2000 e 2003. Presidente do Comité Director de Cooperação Cultural do Conselho da Europa (1985-87), membro do Conselho Consultivo da Universidade de Lisboa (2007-2008). Roger Jowell foi fundador do Social and Community Planning Research (actualmente National Centre for Social Research), que liderou durante 30 anos, e do Centre for Comparative Studies na City University, em Londres. Foi o principal impulsionador de vários inquéritos sociais em Inglaterra, tais como o British Social Attitudes e o British Election Study. Deu igualmente um importante contributo para o desenvolvimento de programas de investigação comparativa como o International Social Survey Programme e o European Social Survey. Foi recentemente vice-presidente da Royal Statistician Society e recebeu diversos prémios e distinções pelo trabalho desenvolvido no âmbito das Ciências Sociais. Renato Lessa é presidente da Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro, professor titular de Filosofia Política da Universidade Federal Fluminense (Brasil) e investigador associado do Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa. É colaborador do Instituto de Filosofia da Linguagem e do Instituto de História da Arte, da Universidade Nova de Lisboa. Publicou, em Portugal, vários ensaios, entre os quais «Cepticismo, crença e filosofia política» (In O Processo da Crença, orgs. Fernando Gil, João Pina Cabral e Pierre Livet. Lisboa: Gradiva, 2004), «Pensamento soberano, abismo do fundamento e formas da irresolução» (In A Razão Apaixonada: Homenagem a Fernando Gil, AAVV. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008) e «Modos de fazer uma República: demiurgia e invenção institucional na tradição republicana brasileira» (Análise Social, 204). Pedro C. Magalhães (Ph.D. Ciência Política, Ohio State University, 2003) é investigador no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Faz investigação nas áreas do comportamento eleitoral, opinião pública, atitudes políticas e comportamento judicial. Tem trabalhos publicados em revistas como a American Political Science Review, Electoral Stu22

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 23

Os autores

dies, Public Choice, West European Politics e European Journal of Political Research, entre outras, e em editoras como a Cambridge University Press, Oxford University Press e Routledge. Hermínio Martins é presentemente Emeritus Fellow, St. Antony’s College, Universidade de Oxford e investigador honorário do Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa. Formado na London School of Economics da Universidade de Londres, foi professor nas Universidades de Leeds, Essex e Oxford, e como visitante nas Universidades de Harvard e Pennsylvania, e investigador-coordenador no ICS, Universidade de Lisboa. Autor dos livros Hegel, Texas e Outros Ensaios de Teoria Social, Classe, Status e Poder e Outros Ensaios sobre o Portugal Contemporâneo e Experimentum Humanum: Civilização Tecnológica e Condição Humana. Foi o organizador do livro Knowledge and Passion: Essays in Honour of John Rex, e co-organizador dos seguintes livros: A Morte no Portugal Contemporâneo; Scientific Establishments and Hierarchies; Debating Durkheim; e Dilemas da Civilização Tecnológica. Publicou numerosos artigos científicos em revistas académicas de três continentes, e em várias obras colectivas. Fernando Medeiros é doutorado em Sociologia pela École des Hautes Études en Science Sociales e foi professor de Sociologia na Université de Paris X (1978-2007) e no Instituto Superior de Economia e Gestão-UTL (1992-2002). De entre as suas publicações destacam-se A Economia e a Sociedade Portuguesa nas Origens do Salazarismo (1978); «Groupes domestiques et habitat rural dans le Nord du Portugal (1908-34)» Paris (1982); «Espaces ruraux et dynamiques sociales en Europe du Sud», Annales, 5 (1988); «A formação do espaço social português: sociedade providência/CEE providencial?» (Análise Social, 119). Leonardo Morlino é professor de Ciência Política e director do Research Center on Democracies and Democratizations at LUISS, em Roma (Itália). Foi presidente da International Political Science Association (2012-2014). De entre os seus mais recentes livros contam-se: Changes for Democracy (Oxford UP, 2011), Democracias y Democratizaciones (CIS, 2008); International Actors, Democratization and the Rule of Law: Anchoring Democracy? com Magen (Routledge 2008); Democratization and the European Union: Comparing Central and Eastern European Post-Communist Countries, com Sadurski (Routledge 2010). Foi igualmente um dos três editores da International Encyclopedia of Political Science (8 vols., Sage Publications, 2011). 23

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 24

Ciências Sociais: Vocação e Profissão

Antonio Negri iniciou a sua carreira académica como professor na Università di Padova. Exilado em França, prossegue a docência e a investigação na Université Paris VIII e no Collège International de Philosophie, onde reencontra algumas amizades intelectuais como Louis Althusser, Felix Guattari, Gilles Deleuze e Michel Foucault. Juntamente com um grupo de personalidades dessa universidade funda a revista Futur Antérieur (1990-1997). Vivendo entre Veneza e Paris, ensina actualmente em diversas universidades europeias e da América Latina. De entre a sua vasta obra com dezenas de livros, destacam-se, em coautoria com Michael Hardt, Empire (2000), Multitude: War and Democracy in the Age of Empire (2004) e Commonwealth (2009). As suas mais recentes publicações são Il comune in rivolta. Sul potere costituente delle lotte (2012) e Questo non è un manifesto, com Michael Hardt (2012) José Neves é actualmente professor auxiliar no Departamento de História da FCSH-UNL e investigador do Instituto de História Contemporânea da mesma universidade. Licenciado em História Moderna e Contemporânea pelo ISCTE, onde também realizou o seu doutoramento, seria depois bolseiro de investigação de pós-doutoramento no ICS-UL, sob supervisão de Manuel Villaverde Cabral. É autor de Comunismo e Nacionalismo em Portugal – Política, Cultura e História no Século XX, livro que recebeu o Prémio A. Sedas Nunes 2010, o Prémio CES 2009 e o Prémio Victor de Sá 2008. Co-editou, no âmbito dos estudos sobre desporto, A Época do Futebol – o Jogo Visto pelas Ciências Sociais e Uma História do Desporto em Portugal (3 vols.). José Machado Pais é investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, tendo sido professor visitante em várias universidades europeias e sul-americanas. Coordenou o Observatório Permanente da Juventude Portuguesa e o Observatório das Actividades Culturais. Foi director da revista Análise Social e da Imprensa de Ciências Sociais. Actualmente é vice-presidente da Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanas de Língua Portuguesa. Publicou mais de 40 livros, de entre os quais: Artes de Amar da Burguesia; Culturas Juvenis; Sociologia da Vida Quotidiana; Nos Rastos da Solidão; Lufa-lufa Quotidiana; Sexualidade e Afectos Juvenis. Em 2003 recebeu o Prémio Gulbenkian de Ciências Sociais por sua obra Ganchos, Tachos e Biscates. Jovens, Trabalho e Futuro. Página Pessoal: http://www.jose-machadopais.net.

24

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 25

Os autores

Alison Park é doutorada em Sociologia pelo Nutffield College, Oxford. Investigadora no National Centre for Social Research desde 1991, é uma das principais responsáveis pelo British Social Attitudes Survey. É cordenadora desde 2002 do European Social Survey em Inglaterra e colabora regularmente no International Social Survey Programme. Os seus interesses de investigação centram-se nas atitudes sociais e políticas numa perspectiva comparada. Leonor Parreira é professora catedrática da Faculdade de Medicina, Universidade de Lisboa, Directora do Instituto de Histologia e Biologia do Desenvolvimento. Integrou os Conselhos Pedagógico e Científico da Faculdade de Medicina e foi pró-reitora para a investigação na Universidade de Lisboa. Foi investigadora na Royal Post-Graduate Medical School, Londres, no Instituto de Medicina Molecular e no Instituto Gulbenkian de Ciência. Presidiu à Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa (2008-2012) e é membro titular da Academia de Medicina Portuguesa. Integrou o Conselho Nacional de Procriação Médica Assistida (2007-2008) e dirigiu o Programa Gulbenkian de Formação Médica Avançada entre 2008-2012. É secretária de Estado da Ciência do XIX Governo Constitucional. Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro é professor titular no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e coordenador do INCT/Observatório das Metrópoles: território, coesão social e governança, envolvendo estudos comparativos sobre 15 metrópoles brasileiras. Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela USP, possui uma extensa produção bibliográfica, desenvolvida ao longo de mais de 30 anos, que regista as suas investigações acerca da realidade urbana brasileira. Actualmente é editor das revistas Cadernos Metrópoles e e-metrópolis. Richard Robinson é doutorado pela Universidade de Oxford e foi professor de História Moderna na Universidade de Birmingham de 1965 a 2001, onde ensinou principalmente história da Europa dos séculos XVI-XX. Estudou o fascismo na Europa e na península ibérica do século XX. As suas publicações incluem The Origins of Franco’s Spain 1931-1936 e Contemporary Portugal. Foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, do CSIC e da British Academy. É actualmente Honorary Reader in Modern History na Universidade de Birmingham e Honorary Life Member of the SCR de St. John’s College, Oxford.

25

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 26

Ciências Sociais: Vocação e Profissão

Philippe C. Schmitter, é doutorado pela University of California, Berkeley, e foi professor no European University Institute (EUI) de 1996 a 2004 (e anteriormente entre 1982-1986), depois de dez anos na Stanford University (1986-1996) e de 15 anos na University of Chicago (1967-1982). Presentemente, é Professor Emérito na EUI e Professor Visitante na Central European University em Budapeste, no Istituto delle Scienze Humanistiche, em Florença, e na University of Siena. Tem desenvolvido investigação sobre política comparada e integração regional tanto na América Latina como na Europa Ocidental, com especial enfase na política dos interesses organizados. É co-autor de Transitions from Authoritarian Rule: Prospects for Democracy (4 vols.) e Trends Toward Corporatist Intermediation e Patterns of Corporatist Policy-Making, estando neste momento a terminar o livro Essaying the Consolidation of Democracy. Recebeu inúmeros prémios e distinções ao longo da sua carreira; foi vice-presidente da American Political Science Association. Pedro Alcântara da Silva é doutorado em Sociologia pelo ISCTE-IUL. Investigador no Instituto de Ciências Sociais e no Instituto do Envelhecimento, ambos da Universidade de Lisboa, tem desenvolvido estudos sobre os comportamentos e atitudes perante o Sistema de Saúde e a adesão terapêutica, assim como a visibilidade da saúde nos media e o acesso e a utilização de fontes de informação de saúde. O envelhecimento da população é outra das áreas de investigação a que se tem dedicado nos últimos anos, nomeadamente sobre aspectos relacionados com saúde, bem-estar e qualidade de vida. De entre as suas publicações, destacam-se os livros Saúde e Doença em Portugal (ICS, 2002), O Estado da Saúde em Portugal (ICS, 2009), A Adesão à Terapêutica em Portugal (ICS, 2010), A Saúde nos Media (Mundos Sociais, 2011) e Processos de Envelhecimento em Portugal (FFMS, 2013). Filipe Carreira da Silva é investigador auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e professor visitante no Departamento de Sociologia da Universidade de Cambridge (2012-2013). Licenciado em Sociologia (ISCTE, 1998) iniciou a sua carreira como assistente estagiário no Departamento de Sociologia do ISCTE. Em 2003, concluiu o doutoramento na Universidade de Cambridge. Publicou diversos livros e artigos sobre teorias sociológicas clássicas e contemporâneas, incluindo G.H. Mead. A Critical Introduction (2007, Polity Press) e Mead and Modernity. Science, Selfhood and Democratic Politics (2008, Lexington Books). Os seus interesses académicos passam 26

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 27

Os autores

pelas teorias sociológicas, sociologia política urbana e estudos sobre cidadania. Eduardo Cintra Torres é doutorado em Sociologia pelo ICS-UL. Autor de 14 livros e de dezenas de capítulos de livros e artigos em revistas e outras publicações académicas. Professor auxiliar convidado da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. Investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura. Crítico de televisão e media no Correio da Manhã e na CM-TV e de publicidade no Jornal de Negócios. Livros mais recentes: A Multidão e a Televisão (Lisboa, Universidade Católica Ed., 2013); Televisão e Serviço Público (Lisboa, Fundação FMS, 2011); A Vida como um Filme: Fama e Celebridade no Século XXI (co-autor, Lisboa, Texto, 2011). Principais interesses: sociologia dos media, estudos televisivos, representações literárias, artísticas e mediáticas da multidão. Mónica Brito Vieira é professora auxiliar no Departamento de Ciência Política da Universidade de York, Inglaterra. Doutorada em História do Pensamento Político pela Faculdade de História da Universidade de Cambridge, com uma dissertação sobre o conceito de representação em Thomas Hobbes (1588-1679), é também mestre em História Intelectual e História do Pensamento Político, pela mesma Universidade. As suas obras recentes têm incidido sobre o conceito de representação (política, mas não só), tendo publicado dois livros sobre o tema: Representation (2008, Polity Press), co-autoria de David Runciman, e The Elements of Representation in Hobbes (2009, Brill).

27

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 28

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 29

Pedro Alcântara da Silva Filipe Carreira da Silva

Introdução Manuel Villaverde Cabral, em homenagem a quem organizamos esta colectânea de ensaios, é um homem singular pelo caminho que vem trilhando desde o final dos anos 50 do século passado no panorama intelectual e académico português. A sua nobreza de carácter e a sua proverbial generosidade – que, um dia, Eduardo Prado Coelho descreveu certeiramente como sendo um «perdulário de boas ideias» – só vêm reforçar esta singularidade. A influência e o impacto da sua presença nas salas de aula, nas revistas e editoras académicas de referência, na comunicação social escrita, radiofónica e televisiva, bem como em revistas de índole política (foi, por exemplo, um dos fundadores dos Cadernos de Circunstância, publicados no exílio entre 1967 e 1970) e cultural (Imagem, Gazeta Musical e de Todas as Artes, Jornal de Letras e Artes, Távola Redonda, entre outros), são tão multifacetados quanto consistentes: é sempre o mesmo Manuel Villaverde Cabral, com apurado sentido crítico e realista, nunca cínico ou derrotista, que vemos intervir no campo das artes e das letras, da política e das ciências sociais, capaz de combinar lucidez e experiência como poucos. Manuel Villaverde Cabral é um homem de cultura, um humanista, além de ter sido um militante político. Mas é também um homem de ciência, admirador confesso das ciências naturais e adepto das potencialidades heurísticas das metodologias quantitativas em ciências sociais. É esta combinação invulgar de interesses e competências que não só faz de Manuel Villaverde Cabral um personagem único na academia portuguesa, como justifica plenamente o empreendimento de juntar num só volume 30 ensaios em sua homenagem. Nascido nos Açores em 1940, conclui o Curso Geral dos Liceus em Lisboa em 1957, tendo ingressado no mesmo ano na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa para cursar arquitectura. A sua passagem por Belas-Artes é, porém, fugaz. Logo em 1958, ano em que publica o seu primeiro artigo (na página de cinema do Diário de Lisboa), abandona o curso de Arquitectura e inicia uma vida profissional ligada sobretudo ao meio edito29

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 30

Ciências Sociais: Vocação e Profissão

rial, com passagem pelas Publicações Europa-América e a Editora Ulisseia. Figura activa da resistência ao regime ditatorial então vigente em Portugal, Manuel Villaverde Cabral vê-se obrigado a exilar-se em Paris em Novembro de 1963. Continuando a exercer diversas funções profissionais nos meios editoriais (quadro, tradutor, consultor, etc.) e um intenso activismo político, retoma os estudos universitários em 1965-1966; em 1968, licencia-se em Letras (Lettres Modernes) pela Universidade de Paris, e 11 anos mais tarde, em 1979, é-lhe concedido o grau de doutor em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales-Université Paris I, com uma tese intitulada Le Portugal de 1890 à 1914: Forces Sociales, Croissance Économique et Pouvoir Politique, sob orientação do Professor Pierre Vilar. Com o 25 de Abril de 1974, Villaverde Cabral regressa a Lisboa, tomando de imediato contacto com o meio académico português. Ao dar as primeiras aulas e depois da sua primeira publicação académica, sente que era isso o que sempre quisera fazer. Nesse mesmo ano, inicia assim a sua carreira universitária como assistente no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), onde começa por leccionar História Económica e Social de Portugal Contemporâneo (séculos XIX e XX), passando em 1979, quando terminou a sua Research Fellowship em St. Antony’s College, Oxford (1976-1979), a dedicar-se ao ensino de Sociologia Rural, agora como professor auxiliar no ISCTE onde ficou até 1986. Entretanto, no final de 1975 associara-se como investigador no Gabinete de Investigações Sociais (GIS), mais tarde extinto em 1982 para dar lugar ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Ainda durante o «Processo Revolucionário em Curso» (PREC), deixa a militância política, abraçando assim a sua vocação e dedicando-se em exclusivo à profissão de investigador. Excepção feita a um breve período nos meados da década de 80, em que participou na fundação do Clube da Esquerda Liberal e da revista Risco. A relação entre vocação e profissão tem sido aliás objecto de reflexão e foi o tema principal da sua Oração de Sapiência, em 2007, na abertura do ano académico na Universidade de Lisboa, publicada posteriormente no volume colectivo comemorativo dos 25 anos do ICS (Cabral, 2008). É no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (e ex-GIS), a sua casa de sempre, que desenvolve grande parte da sua produção científica. Uma das mais proeminentes figuras deste prestigiado instituto, através do desempenho de diversos cargos académicos, contribui para o seu desenvolvimento e consolidação, tendo sido presidente do Conselho Directivo (2007-2009) e presidente do Conselho Científico (1991-1997 e 2004-2007). Foi ainda vice-reitor da Universidade de Lisboa entre 1998 e 30

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 31

Introdução

2002 e em 2009 e 2010 para a Ciência e Investigação. Este longo percurso na universidade apenas foi interrompido por uma vez aquando do convite para assumir o lugar de director da Biblioteca Nacional de1985 a 1990. Foi ainda vice-reitor da Universidade de Lisboa para a Ciência e Investigação entre 1998 e 2002, e em 2009 e 2010. Entretanto, a par de outras colaborações em universidades portuguesas, sucedem-se as posições de docência e investigação no estrangeiro, entre as quais se destaca a permanência em Oxford, tendo sido, mais tarde, professor visitante na Universidade de Wisconsin-Madison (Outono, 1986), na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris, Primavera 1990) e no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – Universidade Cândido Mendes (Primavera-Verão, 2003), assim como titular da cátedra de História de Portugal no King’s College da Universidade de Londres entre 1992 e 1995. Investigador emérito do Instituto de Ciências Sociais desde 2010, aceita o desafio de ajudar a fundar e dirigir o Instituto do Envelhecimento da Universidade de Lisboa, expressão institucional de um dos temas de pesquisa em que vem trabalhando nos últimos anos. O reconhecimento do envelhecimento da população como um dos principais problemas da nossa sociedade, aliado a uma linha de investigação que vem desenvolvendo na última década sobre o sistema de saúde e os cuidados médicos (e. g., Cabral e Silva 2009 e 2010; Cabral, Silva e Mendes 2002), tem levado Villaverde Cabral a manter actualmente uma intensa actividade científica, coordenando estudos e realizando inúmeras conferências sobre essa problemática (e. g., Cabral, Ferreira, Silva, Jerónimo e Marques 2013). Ainda que centrais hoje em dia, não devemos perder de vista que a saúde e o envelhecimento são igualmente interesses recentes de alguém cujo percurso teve início nas humanidades, incluindo o cinema, a literatura e mais tarde as artes plásticas, para se focar na história (e. g., Cabral 1974, 1976 e 1977; Cabral 1979) e depois na filosofia política (é um dos principais conhecedores das obras de autores como John Rawls, Norman Daniels, Niklas Luhman e Robert Putnam, que aplicou em muitos dos seus estudos sociológicos sobre o exercício dos direitos de cidadania, o Estado-Providência e a saúde), vindo a passar pela ciência política empírica, com particular ênfase na problemática da cidade e cidadania (e. g., Cabral 1997; Cabral, Silva e Saraiva 2008) e na análise quantitativa comparada de valores como a religião e as desigualdades sociais (e. g., Cabral, Pais e Vala 2001; Cabral, Vala e Freire 2000; Cabral, Vala e Freire 2003). Com efeito, composta por três dezenas de livros e perto de uma centena de artigos, ensaios e capítulos de livros científicos, assim como mui31

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 32

Ciências Sociais: Vocação e Profissão

tas centenas de artigos de jornal, a sua obra é transversal às ciências sociais – história, sociologia e ciência política – e o conjunto dos seus temas de escrita passa pela arte, pela literatura, pelo cinema e pela vida política. Foi esta multiplicidade de áreas de interesse e actuação ao longo da vida académica de Villaverde Cabral, bem como a sua entrada na profissão e percurso académico, que se procurou abordar neste livro colectivo de homenagem, fazendo assim jus ao título escolhido, Ciências Sociais: Profissão e Vocação. A colectânea de textos que aqui se apresenta conta com um misto de contribuições de investigadores consagrados e amigos de longa data, com quem Villaverde Cabral dialogou e debateu ideias com mútuas influências nas suas obras, e de investigadores de gerações mais recentes, a maioria seus orientandos e ex-alunos, que com ele aprenderam e puderam usufruir da sua enorme generosidade e disponibilidade de acompanhamento, bem como do rigor científico que impõe a qualquer escrito que lhe seja dado a ler.1 O livro encontra-se assim dividido em quatro partes fundamentais que organizam as três dezenas de textos que passamos apenas a elencar: a primeira inicia-se com um capítulo de caracter biográfico, da autoria de Guya Accornero, assente numa entrevista a Villaverde Cabral, que constrói o seu percurso de vida desde a militância política ao interesse pelo ensino e pela investigação intitulado, precisamente, «Da militância política à investigação científica: história de uma vocação», seguindo-se um texto de João Freire, «Manuel Villaverde Cabral: entre o saber e a acção», onde, para além da celebração de uma amizade de mais de 40 anos, descreve o seu universo de pensamento e, em traços gerais, a diversidade de interesses e trajectória académica. Juntamente com os textos de Yann Moulier Boutang, «Le passeur intranquille»; de Teresa Patrício Gouveia, «Manuel Villaverde Cabral: o livro e a leitura em Portugal», e de Richard Robinson, com um apontamento pessoal sobre como travaram conhecimento e a influência no seu trabalho, este conjunto de escritos constitui-se como uma abertura à vida e obra de Villaverde Cabral, o que nos dispensou de realizar uma introdução mais aprofundada ao nosso homenageado sob pena de repetir factos e conteúdos.

1 Este livro surge no seguimento do colóquio de homenagem «Manuel Villaverde Cabral: O Nascimento e Consolidação das Ciências Sociais em Portugal», ocorrido a 27 de Setembro de 2010, que contou com a participação de muitos dos autores que contribuem agora com textos para esta obra.

32

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 33

Introdução

Na segunda parte, dá-se início às contribuições de capítulos de diverso cariz disciplinar, onde podem ser encontradas amplas referências ao trabalho de Villaverde Cabral aplicadas aos diferentes contextos e objectos em análise. Dedicada à história e humanidades, nesta parte podem ser encontrados textos de autores como Eduardo Cintra Torres, que analisa o conceito de multidão em «A multidão medieval e moderna: representações políticas em Fernão Lopes e D. Francisco Manuel de Melo»; Rui Graça Feijó, que escreve sobre «Vocabulário heráldico e gramática social: as cartas de brasão modernas como retrato das elites portuguesas de finais da monarquia constitucional»; Filipa Freitas, que se debruça sobre um período histórico particularmente estudado por Villaverde Cabral em «Jeunesses syndicalistes: violence et action directe dans les années 20»; Steffen Dix e José Barreto sobre Fernando Pessoa, em «Um sociólogo oblíquo: a função social da religião e da arte e as reflexões políticas em Fernando Pessoa»; Fernando Medeiros que escreve sobre os Cadernos de Circunstância e o contexto social e político em que surgiu em «Genèse et projet des Cadernos de Circunstância»; Antonio Negri sobre a evolução do panorama intelectual e político italiano em «Una rottura italiana: produzione versus sviluppo»; José Medeiros Ferreira, que reflecte sobre «A Universidade e a crise do pensamento crítico»; Hermínio Martins sobre «O homo mercator e o princípio de electividade: limites do mercado, limites do liberalismo»; Salvador Giner a respeito da modernização da Europa Meridional («La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica»); José Machado Pais acerca do lugar da casa nas relações sociais dos transmontanos em «Das casas de família às casas de alterne: em Trás-os-Montes com Manuel Villaverde Cabral»; e, por fim, José Gil sobre a operatividade de um conceito que designou por «surgimento do ‘acaso’» em «O corpo-espelho-de-forças e o acaso». A terceira parte é dedicada a outra área fundamental da carreira de Villaverde Cabral, a ciência política. No primeiro ensaio deste conjunto de textos, «Manuel Villaverde Cabral e os casulos do conhecimento político», Renato Lessa analisa precisamente a contribuição precursora de Villaverde Cabral para pensar e configurar as perspectivas do conhecimento da ciência política em Portugal e no Brasil; seguidamente, Philippe Schmitter escreve sobre «The impact of ‘real-existing’ democracy – on the European Union and Central & South Eastern Europe»; enquanto Leonardo Morlino discute o legado dos regimes autoritários nas democracias contemporâneas em «Do authoritarian legacies account for quality of democracy? Additional remarks on Southern Europe»; Robert Fishman a inclusão política em Portugal e Espanha em «The Iberian diver33

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 34

Ciências Sociais: Vocação e Profissão

gence in political inclusion»; e Roger Jowell e Alison Park a participação política dos jovens em «British young people and politics: a disengaged generation?»; Pedro Magalhães analisa as atitudes políticas perante a política em «Legitimacy, disaffection, and dissatisfaction: trends and structure in attitudes towards Portuguese democratic politics», e Diego Palacios Cerezales a relação entre o poder político e a cultura cívica em «¿Despotismo administrativo o Estado débil? Policía, fiscalidad y sus efectos en la cultura cívica portuguesa». Os três capítulos finais enquadram-se, em traços gerais, na esteira de estudos que Villaverde Cabral desenvolveu sobre cidade e cidadania, contando-se com as contribuições de Mónica Brito Vieira e Filipe Carreira da Silva em «Cidadania trans-escalar: o Estado, a cidade global e o cidadão»; de Luiz Cesar Queiroz Ribeiro e Filipe Sousa Corrêa em «Cultura política, cidadania e representação na urbs sem civitas: a metrópole do Rio de Janeiro»; e de José Neves em «Arquitectura, massificação e democracia: notas sobre um estádio de futebol». Finalmente, a última parte é dedicada às duas áreas de investigação mais recentes de Villaverde Cabral: a saúde e o envelhecimento. Conta com os ensaios de João Lobo Antunes, «O consolo das humanidades», a respeito da importância e virtudes da cultura das humanidades na prática da medicina; de Leonor Parreira «Consilience», sobre a complementaridade das ciências; de Sofia Aboim sobre a velhice e o envelhecimento, em «Ser velho: percepções e dimensões do envelhecimento»; e de Pedro Moura Ferreira que reflecte sobre a génese e definição do envelhecimento. É uma enorme honra para os organizadores deste livro poder prestar este tributo a uma personalidade tão marcante da vida social e académica em Portugal, e com a iniciativa agradecer também pessoalmente o que muito com ele aprendemos ao longo dos anos, assim como a sua inestimável amizade. Fazendo nossas as palavras justas e concludentes com que João Freire termina o seu contributo para este livro, «sem Manuel Villaverde Cabral, as ciências sociais não seriam a mesma coisa que são hoje em Portugal». Por fim, cumpre-nos, como não podia deixar de ser, expressar os nossos sinceros agradecimentos a todos os autores que se associaram a esta homenagem. Sem a sua generosidade e vontade de prestar também esse reconhecimento a Manuel Villaverde Cabral, este livro não teria sido possível. Para além do tributo que lhe pretendemos prestar, a excelência dos autores, a qualidade dos textos e a importância dos temas abordados são, em si mesmos, uma magnífica contribuição para as ciências sociais. A todos, sem excepção, o nosso muito obrigado. 34

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 35

Introdução

Bibliografia citada Cabral, M. V. 1974. Materiais para a História da Questão Agrária em Portugal, Séculos XIX e XX (Antologia com Introdução e Notas). Porto: Inova. Cabral, M. V. 1976. O Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal no Século XIX. Lisboa: A Regra do Jogo. Cabral, M. V. 1977. O Operariado Português nas Vésperas da República, 1909-1910 (Antologia com Introdução e Notas). Lisboa: Presença. Cabral, M. V. 1979. Portugal na Alvorada do Século XX: Forças Sociais, Poder Político e Crescimento Económico de 1890 a 1914. Lisboa: A Regra do Jogo. Cabral, M. V. 1997. Cidadania Política e Equidade Social em Portugal. Oeiras: Celta. Cabral, M. V. 2008. «A investigação científica como vocação e como profissão». In Itinerários. A Investigação nos 25 anos do ICS, eds. M. V. Cabral, K. Wall, S. Aboim e F. C. Silva. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 29-49. Cabral, M. V., J. Vala, e J. Freire. 2000. Trabalho e Cidadania. Inquérito Permanente às Atitudes Sociais dos Portugueses. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Cabral, M. V., J. M. Pais, e J. Vala. 2001. Religião e Bioética. Inquérito Permanente às Atitudes Sociais dos Portugueses. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Cabral, M. V., P. A. Silva, e H. Mendes. 2002. Saúde e Doença em Portugal – Inquérito aos Comportamentos e Atitudes da População Portuguesa Perante o Sistema Nacional de Saúde. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Cabral, M. V., J. Vala, e A. Freire. 2003. Desigualdades Sociais e Percepções da Justiça. Inquérito Permanente às Atitudes Sociais dos Portugueses. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Cabral, M. V., F. C. Silva, e T. Saraiva. 2008. Cidade & Cidadania: Governança Urbana e Participação Cidadã. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Cabral, M. V., e P. A. Silva. 2009. O Estado da Saúde em Portugal. Lisboa: Imprensa de Ciência Sociais. Cabral, M. V. , P. A. Silva. 2010. A Adesão à Terapêutica em Portugal – Atitudes e Comportamentos da População Portuguesa Perante a Prescrição Médica. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Cabral, M. V. , P. M Ferreira, P. A. Silva, P. Jerónimo, e T. Marques. 2013. Processos de Envelhecimento em Portugal – Usos do Tempo, Redes Sociais e Condições de Vida. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos.

35

00 MVCabral Intro_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 36

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 37

Parte I Percurso e apontamentos pessoais

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 38

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 39

Guya Accornero

Capítulo 1

Da militância política à investigação científica: história de uma vocação Muitos militantes da oposição ao Estado Novo dos anos 60 e 70 do século passado identificam o momento da campanha presidencial do general Humberto Delgado, em 1958, como uma espécie de «baptismo político». Embora o meio político do PCP não lhe fosse alheio, tendo o seu pai sido membro activo e posteriormente simpatizante passivo daquele partido, foi também nessa conjuntura que Manuel Villaverde Cabral iniciou aquele processo de socialização secundária que é a «socialização política». Foi o início de um longo percurso que o levou, nos anos seguintes, a explorar os mais diferentes meandros das «heresias» marxistas, com a mesma atitude de insaciável curiosidade, acompanhada por um extremo rigor intelectual, que depois o guiou através da sua investigação em história, em sociologia e em ciência política. Procurando manter um difícil equilíbrio entre o afecto e o interesse «sociológico», vou tentar reconstruir com ele, nestas páginas, o seu percurso de socialização política, isso é, tentar fazer com o Prof. Villaverde Cabral o mesmo que aprendi com ele, ou seja, investigação em Ciências Sociais. O período entre 1958 e 1962 foi um dos momentos mais críticos para a sobrevivência do Estado Novo. As turbulências começaram em 1958, quando a candidatura do general Delgado despertara o entusiasmo de milhares de apoiantes, os quais, desafiando a violenta repressão policial, tinham seguido em massa a campanha presidencial nas principais cidades do país. Segundo José Pacheco Pereira, «Delgado mostrou o esgotamento histórico de um certo tipo de oposição e abriu a política portuguesa para os anos 60, em que tudo foi diferente, mais duro, mais violento, menos transigente».1 Fernando Rosas afirma, por seu lado, a respeito da crise 1

J. P. Pereira, Álvaro Cunhal. Uma Biografia Política, vol. 3 (Lisboa: Temas e Debates, 2005), 573. Todas as notas são da autora, incluindo aquelas inseridas no meio da entrevista.

39

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 40

Guya Accornero

Delgado, que «o regime lograria sobreviver-lhe, mas não a recompor-se: nada voltaria a ser o mesmo».2 A mobilização começada com a campanha Delgado canalizou-se no sentido de um verdadeiro ciclo de protesto, que envolveu os mais diferentes sectores da sociedade e até as mais altas esferas militares e políticas do Estado.3 Guya Accornero (GA): Como é que, neste contexto, ocorreu o seu «engajamento» militante? Manuel Villaverde Cabral (MVC): Em finais de 1958 (tinha eu 18 anos feitos e trabalhava já num detestável organismo corporativo do Estado Novo, a Federação Nacional dos Produtores de Trigo, FNPT, num palácio à Rua do Salitre), procurei o PCP para aderir ao partido na sequência de contactos que tinha tido com o grupo «Acção Socialista», através do pintor Nikias Skapinakis (e depois do advogado Manuel Sertório), o qual me havia abordado a seguir à campanha presidencial do general Delgado, em que havíamos participado juntos, espontaneamente, em virtude de proximidades residenciais (Oeiras, Maio-Junho de 1958). O grupo da «Acção Socialista» pareceu-me, no entanto, pouco «avançado» para as minhas ideias e o meu temperamento, pelo que abordei o escritor Mário Henrique Leiria, que morava então em Carcavelos e com quem eu me encontrava regularmente no comboio para Lisboa a fim de irmos tomar café no Royal, no Cais do Sodré, com outras pessoas da «linha do Estoril» e de Lisboa, que ali mantinham uma tertúlia sob a égide do dono do Café, Pepe Blanco (pai da actriz Rita Blanco). Pouco tempo depois da minha abordagem ao Mário Henrique Leiria, fui então contactado pelo Viriato Camilo, cunhado do Pepe Blanco, já então todos eles ligados ao teatro, sobretudo o teatro amador. A partir daqui, o Viriato tomou conta de mim no partido. Não muito tempo depois, talvez já em 1959, passei de «simpatizante» a «militante» do PCP e comecei a participar regularmente em reuniões clandestinas espaçadas e extremamente compartimentadas por motivos conspirativos, onde no entanto se coordenavam as actividades do PCP numa larga parte do chamado «sector intelectual». Passei a ser controlado por um camarada que se apresentava como «Silva» e que nunca cheguei a saber quem era. Voltei a vê-lo depois do 25 de Abril num espectáculo no Coliseu mas, quando tentei abordá-lo, já não o encontrei; até hoje.

2

F. Rosas, O Estado Novo, vol. 7 de José Mattoso (dir.), História de Portugal (Lisboa: Estampa, 1997), 468-469. 3 Segundo Sidney Tarrow, um ciclo de protesto é «uma fase de alto conflito e confrontação no interior do sistema social» que envolve, entre outras características, «uma rápida difusão da acção colectiva desde os sectores mais mobilizados aos sectores menos mobilizados» [S. Tarrow, Democracy and Disorder: Protest and Politics in Italy, 1965-1975, (Oxford: Oxford University Press, 1989), 42].

40

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 41

Da militância política à investigação científica: história de uma vocação Pessoalmente, militei sobretudo nos sectores do cinema (sobretudo os cineclubes,4 sector onde cheguei a ser «controleiro» de vários militantes conhecidos, como o Vasco Granja e o Henrique Espírito Santo, e separadamente o artista e então estudante de medicina, Dante Júlio Marques); e no sector do jornalismo, onde cheguei a «controlar» as actividades para-legais do partido na política «entrista» de conquista, pela primeira vez, de um lugar na direcção do Sindicato, que veio a ser ocupado pelo jornalista e escritor Mário Ventura Henriques, já falecido; faziam parte desse núcleo o futuro líder do MDP-CDE e futuro historiador, José Tengarrinha, que então trabalhava num jornal chamado Diário Ilustrado, assim como um amigo meu da revista de cinema Imagem, dirigida pelo José Ernesto de Sousa e onde ambos colaborávamos, o Adelino Cardoso. Já então formalmente afastado do PCP, colaborava também connosco o jornalista Adriano de Carvalho (que muito mais tarde aderiria ao MRPP e já falecido), filho de um antigo membro das Juventudes Sindicalistas, David de Carvalho. Com efeito, à volta dos cineclubes e da Imagem, com o PCP na «sombra», além do Adriano e do Adelino, havia uma extensa rede de jovens rebeldes à Ditadura unidos por «afinidades electivas», alguns dos quais viriam a fazer, sempre com inúmeras dificuldades, futuras carreiras em diversas áreas culturais, como o cineasta João César Monteiro, o argumentista Carlos Saboga ou o artista João Rodrigues, desenhador de várias capas da Imagem, mas que viria a suicidar-se em breve; era irmão mais novo do Francisco Martins Rodrigues, o qual, por essa altura, devia estar preso ou na clandestinidade.

Com a derrota eleitoral de Delgado e a vitória anunciada do candidato salazarista Américo Tomás, as lutas não deixaram de continuar sob diversas formas. Um dos momentos mais importantes foi o das eleições legislativas de Novembro de 1961, as primeiras realizadas após o início da Guerra Colonial, para chegar ao auge na grande crise operária e estudantil de 1962. Nesta constelação desfavorável para o Estado Novo, a questão 4 Como no resto da Europa, também em Portugal, a partir do segundo pós-guerra começaram a surgir vários cineclubes de orientação marxista, que chegaram a «desempenhar um importante papel no combate ideológico através do cinema» (P. J. Granja, «Dos filmes sonoros ao cineclubismo», História, 47, Julho-Agosto 2002, 30). Em 1951, nasceram em Lisboa o Cineclube ABC e o Cineclube Imagem, ligados às revistas homónimas; em 1952 o Cineclube Universitário de Lisboa. Em consequência desta vaga repressiva, vários dirigentes de cineclubes e militantes do PCP, entre os quais o próprio MVC, deixaram o país para se refugiarem em Paris, onde muitos deles participaram, em 1964, na primeira cisão maoísta. Como evidencia MVC numa entrevista realizada e publicada por Henry Christel, à ruptura definitiva com o partido correspondia o afastamento do neo-realismo estético, considerado como «o equivalente da moderação e do pacifismo político» [H. Christel, A Cidade das Flores. Para uma Recepção Cultural em Portugal do Cinema Neo-Realista Italiano como Metáfora de uma Ausência (Lisboa: FCG e FCT, 2006), 487].

41

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 42

Guya Accornero

colonial, que eclodiu com virulência no princípio dos anos 60 e à qual o regime reagiu com a decisão de ir para a guerra em 1961, representa com certeza o elemento mais determinante. Sobretudo porque a opção pela guerra não foi consensual dentro do regime, abrindo fracturas nas mais altas fileiras do Estado e determinando uma situação de divisão das elites potencialmente favorável à abertura da estrutura de oportunidades políticas e, com efeito, a uma intensificação da mobilização.5 Neste sentido, ainda que falhada, surge a tentativa de golpe de Estado por parte do chefe do Estado-Maior, general Júlio Botelho Moniz, em Abril de 1961. Todavia, o último e mais radical ataque provindo das Forças Armadas seria o assalto ao quartel de Beja, levado a cabo na noite de São Silvestre de 1961 por oficiais dos quadros intermédios, que encontraram apoio nos mais diversos sectores da sociedade. Tirando partido desta conjuntura crítica, a atenta e capilar organização da Oposição, sobretudo o PCP, contribuiu para estender a mobilização e para transformar a crise de 1962 no pico do ciclo de protesto iniciado em 1958 e, na realidade, num dos momentos de mais intensa conflitualidade social e política durante o Estado Novo. GA: Qual foi a sua participação nestes acontecimentos e o que pode dizer sobre eles? MVC: Com as movimentações desencadeadas, com lentidão e dificuldade, a propósito das pretensas eleições legislativas religiosamente convocadas pela Ditadura no Outono de 1961, a minha intervenção sectorial e para-legal, muito burocrática e com pouco impacto visível, alargou-se a uma intervenção política propriamente dita, organizada a nível geográfico, tendo eu ficado com responsabilidades de agitação e networking no concelho de Oeiras, onde continuava a residir em casa dos meus pais. A actividade mudou radicalmente de conteúdo mas também de «forma», correndo-se muitos mais riscos, ao mesmo tempo que nos abríamos a sectores da sociedade que reconheciam o apelo do PCP mas que o partido não controlava. Por outras palavras, a militância deixou de ser tão burocrática para se tornar mais revolucionária e, obviamente, mais perigosa.

5

Com o conceito de Estrutura de Oportunidades Políticas (EOP) indicam-se as características, estáveis ou mutáveis, do sistema político, que influenciam a concentração da acção política menos institucionalizada. Sidney Tarrow identificou sobretudo quatro características relevantes em determinar a EOP: o nível de abertura/rigidez dos canais formais de acesso ao poder político; a estabilidade/instabilidade dos alinhamentos políticos; a presença e a orientação estratégica dos potenciais aliados, o grau de divisão das elites políticas (S. Tarrow, op. cit., 85-89).

42

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 43

Da militância política à investigação científica: história de uma vocação Representei, por assim dizer, o concelho de Oeiras (incluindo fábricas importantes com operários ligados ao partido, como a Fundição de Oeiras, a Lusalite da Cruz Quebrada e a Fábrica da Pólvora de Barcarena, onde por coincidência os meus avós tinham uma quinta), numa espécie de assembleia geral de participantes na candidatura da Oposição às eleições. Alguns destes operários estiveram na linha da frente da manifestação do dia 11 de Novembro em protesto contra a farsa eleitoral, que partiu do monumento aos Mortos da Grande Guerra em frente ao cinema São Jorge e chegou até ao Rossio, onde foi violentamente desbaratada, tendo eu ainda acompanhado ao Hospital de São José, bastante ferido, o jovem Armando Falcão, filho da jornalista Vera Lagoa, então ferozmente oposicionista. Entre as pessoas com perfil e coragem para dar a cara pela Oposição, contactei para candidatos, sempre em acordo com o partido, claro, o advogado Luís Francisco Rebelo. Nessa altura, eu já tinha saído da FNPT para ir trabalhar na editora do Jornal do Fôro,6 dirigida pelo advogado Fernando Abranches Ferrão, em cujo escritório, à Rua do Crucifixo, em plena Baixa Pombalina, trabalhava o Luís Francisco Rebelo e onde se reunia também um grupo dos chamados «democratas», isto é, oposicionistas sem ligação e frequentemente adversos ao PCP, entre os quais Mário Soares, Manuel Mendes e outras personagens da oposição burguesa, que eu reconhecia mas com quem não tinha contacto político. «Recrutei» também o médico César Abel, mais velho que eu mas com quem mantinha relações de amizade e «conspiração» em Oeiras. Chegámos a reunir dezenas de pessoas na cave da vivenda do livreiro antiquário João Pires, dono do Mundo do Livro, ao Largo da Trindade, junto ao restaurante Os Anarquistas, outro lugar de frequentação conspirativa... A grande figura da candidatura de 1961, que funcionava na Rua de São Lázaro, ao Martim Moniz, era porém o então capitão João Varela Gomes, que viria a dirigir no final desse ano as operações armadas na tentativa de assalto falhado ao quartel de Beja, comandada pelo general Delgado e que eu acompanhava, de muito longe, através do igualmente capitão Manuel Pedroso Marques, que morava na Linha de Cascais e que eu conhecia desde a campanha Delgado, encontrando-o às vezes no comboio (poderia fazer-se uma história política do «comboio da Linha»); foi o Pedroso Marques que levou o Varela Gomes ferido ao hospital de Beja, onde este ficaria em prisão, enquanto o Pedroso Marques fugia.

O auge deste ciclo de protesto desencadeado em 1958 chegou com a grande agitação operária e estudantil de 1962. Quem assistiu aos aconte6 O Jornal do Fôro era uma revista jurídica democrática e servia de cobertura administrativa a actividades editoriais tão importantes na época como a publicação em fascículos da História da Cultura em Portugal do António José Saraiva, à época comunista e já expatriado na Holanda, que MVC viria a conhecer bem em Paris em Maio de 1968.

43

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 44

Guya Accornero

cimentos de 1.º de Maio de 1962 não pode esquecer a dimensão memorável das manifestações, com milhares de manifestantes a fazerem frente às forças policiais. As agitações operárias concentraram-se sobretudo em Almada e no Barreiro; e, em Lisboa, nas zonas do Terreiro do Paço, do Martim Moniz e do Rossio. Desde manhã foram instauradas medidas de segurança excepcionais, sobretudo na zona em frente ao rio, passagem obrigatória para os operários das zonas industriais situadas do outro lado do Tejo. A área ficou tranquila até às 18 horas, quando os trabalhadores começaram a desembarcar. Às 18h30, a detenção de alguns operários que tinham transgredido as ordens policiais desencadeou a reacção de outros grupos. Chegaram novos contingentes da polícia e os acontecimentos aceleraram, sobretudo depois da chegada de numerosos passageiros provenientes do Barreiro e de Cacilhas, momento em que a polícia começou a tentar dispersar a multidão, enquanto alguns manifestantes começaram a insinuar-se nas ruas perpendiculares ao Terreiro do Paço. As agitações espalharam-se noutras zonas da cidade até à Sé e continuaram pela noite fora, com uma duríssima caça ao homem desencadeada pela PSP. A mobilização continuou nos dias seguintes e chegou com força ao meio estudantil – com a famosa ocupação da cantina da Cidade Universitária de Lisboa por 800 estudantes entre 9 e 11 de Maio – que já se encontrava mobilizado havia meses, sobretudo depois da proibição da comemoração do Dia do Estudante a 24 de Março. Os anos seguintes foram caracterizados por um surto repressivo que conseguiu decapitar quase toda a rede dirigente do PCP no meio operário e estudantil. GA: Também participou intensamente nos eventos que conduziram à crise de 1962, enquanto a vaga repressiva que se sucedeu, em 1962 e durante todo o ano de 1963,7 teve um efeito decisivo, quer na sua trajectória militante quer no seu percurso de vida, na medida em que se possa dividir as duas coisas... MVC: A agitação continuou depois das eleições de 1961, durante cujo período houve vários enfrentamentos violentos, como o do dia 11 de Novembro, de que já falei. Com o desencadeamento de algumas movimenta-

7

Em 1962, contam-se 1045 prisões políticas efectuadas pela PIDE. Trata-se do ano com o maior número de prisões durante toda a vigência do Estado Novo a partir de 1939, depois do fim da guerra civil espanhola. Em 1963, as prisões políticas foram 603, um número que, embora bastante mais baixo do que 1962, está ainda bem acima da média anual do pós-guerra, que é de 442 prisões políticas por ano [dados recolhidos pela autora no Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (IAN/TT), arquivo da PIDE/DGS, ficheiro dos presos políticos]. Ver também G. Accornero, Efervescência Estudantil. Estudantes, Acção Contenciosa e Processo Politico no Final do Estado Novo, tese de doutoramento em Ciências Sociais, ICS-UL, 2010.

44

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 45

Da militância política à investigação científica: história de uma vocação ções operárias, cujos dirigentes haviam passado pela sede da candidatura da Oposição, oriundos sobretudo das docas e dos estaleiros navais da Margem Direita e da Carris, bem como do badalado movimento estudantil da época, com o qual eu tinha muito pouco a ver, dada a rígida segmentação da militância PCP; com o desencadeamento da guerra colonial em Angola, apesar de o seu impacto ter tido inicialmente pouco sentido; enfim, com a correcção do chamado «desvio de direita no PCP», consecutiva à grande fuga de Peniche,8 o movimento oposicionista – semilegal, semi-revolucionário – cresceu até ao 1.º de Maio de 1962, com cujas manifestações e a sua violenta repressão culminou o ciclo político iniciado quatro anos antes com as eleições presidenciais de 1958. Para mim, o dia acabou na esquina do Rossio com a Rua do Carmo e a Rua 1.º Dezembro, com um banho de tinta azul lançada das mangueiras dos carros da polícia, seguida de uma série de vergastadas que me deixaram marcas nos braços com que tentava proteger a cabeça; refugiei-me numa grande taberna que aí existia então, onde me emprestaram um impermeável para tapar a roupa manchada de tinta azul e desapareci da vista da polícia até ao dia 8. O PCP, tanto mais entusiasmado quanto mal informado, pois os dirigentes clandestinos dependiam completamente de nós, os militantes no terreno, para saber o que se passava realmente, ainda lançou um apelo à manifestação para dia 8 de Maio, mas isso já só serviu para facilitar o trabalho da PIDE, que a partir daqui – e na exacta medida em que a agitação nos expusera a todos, necessariamente, aos olhares da polícia – começará a desmantelar implacavelmente as redes políticas, seja do PCP, seja dos dirigentes estudantis e dos «democratas» desligados do partido. A repressão é a palavra de ordem da polícia no ano de 1963, e é na sequência desta vaga de prisões, traições, denúncias e confirmações, ainda em grande medida por estudar devido aos tabus bem-pensantes, que a PIDE lança a sua rede sobre um grupo heteróclito de militantes, simpatizantes e simples «amigos» do PCP ligados ao cinema, no dia 12 de Novembro de 1962, entre os quais eu me contava. A traição vinha de cima, de um «funcionário» do partido chamado Rolando Verdial,9 oriundo do Porto, que en8 Em 1961, pouco depois da fuga da prisão de Peniche de Janeiro de 1960 e durante a reunião do Comité Central na qual foi nomeado secretário do PCP, Álvaro Cunhal declarou necessária a supressão daquela tendência definida como «anarco-liberal» e responsável por um «desvio de direita», cujo maior responsável seria considerado Júlio Fogaça, o qual foi expulso do Partido. José Pacheco Pereira liga a adopção desta nova linha às discussões desenvolvidas na prisão de Peniche entre Cunhal e outros funcionários, como Joaquim Gomes, Jaime Serra e Pedro Soares, todos membros do Comité Central eleito que foram presos em 1959 e que trouxeram informações acerca da conjuntura difícil em que vivia o Partido (Pereira, op. cit., 703). 9 Rolando Verdial na altura da sua «traição» membro do Comité Central do PCP, tinha sido um dos três militantes daquele partido, sendo os outros Carlos Brito a Américo de Sousa, que fugiram da cadeia de Aljube na madrugada de 25 para 26 de Maio de 1957.

45

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 46

Guya Accornero tregara à polícia sectores inteiros, entre os quais o chamado «sector intelectual». Por um conjunto miraculoso de circunstâncias únicas, escapei à prisão, enquanto, fora do meu conhecimento, eram presos o Vasco Granja e o Henrique Espírito Santo, que eu aliás já não controlava desde que o PCP me pusera de «quarentena», pois sabia que a minha denúncia tinha sido infelizmente confirmada pelo meu primeiro «controleiro», mas passando-me entretanto para a redacção do Avante!, com raros contactos ao longo do ano de 1963. O Vasco Granja e o Espírito Santo foram presos, julgados, condenados e fizeram ano e meio de cadeia. Segundo o Vasco, que encontrei anos mais tarde em Paris, não foi «um ano e meio», mas sim mais de 500 e tal dias sem saber de manhã como seria a noite! Foram também presos nesse dia o actor Rogério Paulo, meu amigo íntimo apesar de bastante mais velho, em cuja casa conheci «meio mundo»; e finalmente, o realizador de cinema José Fonseca e Costa. Foram ambos libertados pouco tempo depois mas, se a ligação do Fonseca e Costa ao partido era mínima, já a do Rogério aparentemente não era totalmente conhecida da PIDE, pois ele tinha desempenhado várias tarefas de alto risco para o PCP, como aquelas que são mencionadas pelo José Pacheco Pereira na biografia do Cunhal (fuga de Peniche; passagem de Cândida Ventura para o estrangeiro, etc.). Quanto a mim, a 14 de Novembro, cheguei a Paris via Espanha, sem saber que começava para mim um exílio de 11 anos em França, que nada teve de «dourado».

Só no V Congresso, em 1957, é que o PCP tinha assumido, pela primeira vez, uma posição declaradamente favorável à independência das colónias. Até então, o Partido tinha mantido uma posição menos clara. Esta não era uma anomalia do Partido Comunista Português, mas uma atitude que este partilhava com os homólogos de outros países colonialistas.10 Não é de estranhar que as mudanças introduzidas nesta linha pelo V Congresso do PCP chegassem um ano depois das declarações de Kruchtchev no famoso XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, que imprimiram um novo curso à política comunista mundial, mas também paralelamente ao crescente papel dos partidos comunistas nacionais, em primeiro lugar o chinês, com o qual o PCUS estava prestes a entrar em conflito aberto. De facto, o comunismo ortodoxo não se podia permitir o luxo de perder terreno face à afirmação do maoísmo, que aparecia como mais disponível e apelativo para os movimentos de libertação que estavam a surgir em todas as colónias, ao fazer-se portador da ideia de que a revolução podia partir dos países do Terceiro Mundo sem ser necessário um certo grau de desenvolvimento industrial. 10

Pereira, op. cit., 502.

46

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:50 AM Page 47

Da militância política à investigação científica: história de uma vocação

A afirmação do maoísmo na oposição portuguesa a partir da primeira metade dos anos 60 correspondeu, assim, a uma atitude mais activa da Oposição a respeito da guerra colonial. Por outro lado, emergia também outra importante diferença entre o PCP e os grupos da nova esquerda, desta vez a respeito da estratégia a adoptar face às políticas de incorporação militar do Governo. As organizações maoístas – que em 1963 estão prestes a surgir, como veremos – apoiaram a deserção e a resistência à incorporação militar, através da fuga e do exílio. Por seu lado, o PCP, se no início do conflito tinha promovido também a deserção, depois começou a solicitar aos seus militantes que entrassem no Exército e, uma vez incorporados, desenvolvessem uma acção de propaganda e politização no interior das Forças Armadas. GA: Também viveu directamente estes acontecimentos e a evolução destas questões ideológicas e estratégicas da oposição marxista, que preludiaram a primeira cisão maoísta portuguesa. Tudo isso, por outro lado, coincidiu com o momento da sua saída do país; como é que esta aconteceu? O facto de ter deixado Portugal colocava-o directamente em conflito com o PCP? E com quem entrou em contacto uma vez chegado em Paris? MVC: Eu, como disse, beneficiei de uma série de coincidências quase inverosímeis que contarei noutra ocasião e acabei por conseguir sair de Portugal, por minha conta e risco, pela fronteira do Caia no comboio para Madrid, onde «consultei uns camaradas do PCE» conhecidos da minha família espanhola, apesar de esta se situar no extremo oposto da cor política, e apanhei o avião no dia 14 para Paris, onde fui imediatamente procurar a Maria Lamas, uma espécie de «avó» que muitos ali tínhamos, tendo-me instalado num hotel ao pé do dela, o Excelsior na Rue Cujas, ao Boulevard de St. Michel. Ainda existe e espero que tenha melhorado desde então, pois acabei de sair de lá, quando descobri os ratos que passavam por cima de mim durante a noite... Os primeiros contactos que tive, além da escritora Maria Lamas com quem eu só tinha relações pessoais e além das pessoas indicadas no sentido de arranjar trabalho em Paris, foram inorgânicos, limitados aos jovens que ia encontrando nos cafés do Quartier Latin. O primeiro foi o Fernando Medeiros, que tinha então 20 anos e chegara dois dias antes de mim. Durante quase 11 anos que vivi em Paris, com o intervalo de um ano em Londres, foi um êxodo ininterrupto de jovens e menos jovens fugidos à Ditadura e, a grande maioria deles, à guerra colonial. Não me lembro se e quando procurei o PCP. A minha fuga fora individual, como aliás a da esmagadora maioria dos exilados, pois o partido era contra as fugas; pretendia que os jovens chamados para o serviço militar fizessem a tropa e lutassem contra a guerra dentro do Exército. Do ponto de vista partidário e até do ponto de vista histó-

47

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 48

Guya Accornero rico, a longo prazo (veja-se o papel dos milicianos no 25 de Abril), a posição do PCP não deixava de ser «correcta». Porém, essa fuga maciça à guerra colonial, que constituiu o maior movimento de resistência à incorporação militar (draft-resistance) de que há conhecimento (mais de 100 000 desertores e refractários, muito mais do que durante a guerra do Vietname ou da Argélia, cuja história está inteiramente por fazer),11 essa fuga em massa fazia já parte, sem o sabermos então, do grande movimento antiautoritário que mobilizou a juventude do mundo inteiro, desde os Estados Unidos até ao Japão, passando pela Europa Ocidental e pelo próprio glaciar soviético, culminando no «Maio de 68» em França. Neste sentido, fugir à guerra era, também, fugir à autoridade da família, da escola e da tropa, e, para os mais politizados, à autoridade do próprio PCP. Também eu, durante as horas que passei a circular por Monsanto e arredores de Lisboa, nessa terça-feira 12 de Novembro, enquanto decidia o que fazer depois de ter sido avisado, pelos meus antigos colegas das Publicações Europa-América, que a PIDE andava à minha procura, afastei logo a ideia de passar à clandestinidade e nunca me passou pela cabeça fugir para o Leste, pelo contrário, isso viria a tornar-se um dos motivos de risota contra os membros do PC no exílio!

A primeira cisão marxista-leninista dentro do PCP ocorreu em Paris em 1963 por iniciativa de Francisco Martins Rodrigues. Depois de uma série de conflitos no interior do PCP, por causa dos quais tinha sido retirado da Comissão Executiva, e depois de se ter recusado a ir para Praga, Martins Rodrigues foi enviado para Paris, ainda como membro do Comité Central. Como afirma Pacheco Pereira, foi aí que «Francisco Martins Rodrigues assistiu a discussões entre os exilados que discordavam da linha do Partido face à guerra colonial. Aí encontra o ambiente político efervescente moldado não só pelo conflito sino-soviético, como pela experiência vitoriosa das revoluções argelina e cubana».12 Muitos dos militantes com quem Martins Rodrigues entra em contacto – como Manuel Claro, Ruy d’Espiney e João Pulido Valente – se encontravam também em Paris, depois de uma passagem pela Argélia, por causa das denúncias de Rolando Verdial e do perigo de serem presos pela PIDE. Era este o

11 A fuga à incorporação no Exército e à mobilização para a guerra era de facto impressionante: em 1961 a percentagem de «refractários» foi de 11,6%; em 1962 atinge 12,8%; em 1963 15,6%; em 1964 subia para 16,5%; entre 1965 e 1968, situava-se por volta do 19%, e entre 1970 e 1972 estabilizou-se por volta de 20% (dados extraídos de Estado-Maior de Exército/Comissão para o Estudo das Campanhas de Africa Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, 1961-1974, 5 vols., Lisboa, EME, 1988). 12 Pereira, «O um dividiu-se em dois», op. cit., 163.

48

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 49

Da militância política à investigação científica: história de uma vocação

ambiente em que Martins Rodrigues começa a elaborar a linha política do novo movimento – onde convergem os temas dos debates anteriores dentro do Partido – em Novembro-Outubro de 1963. O resultado foi a compilação de três documentos, mas aquele que marcou de forma definitiva a ruptura com o PCP foi Luta Pacífica e Luta Armada no Nosso Movimento, em que além de insistir sobre o papel revolucionário dos movimentos de libertação nas colónias, Martins Rodrigues afirmava a necessidade da luta armada. O documento foi enviado, assinado com o pseudónimo de «Campos», para a direcção do PCP, que, em Dezembro do mesmo ano, expulsa Martins Rodrigues sem alegar como motivação nenhuma referência às teses pró-chinesas, mas apenas apontando causas disciplinares. Na sequência disso, em Março de 1964 é criada em Paris a Frente de Acção Popular (FAP) – que começa a editar em Junho o boletim Acção Popular – e em Abril-Maio é criado o Comité Marxista-Leninista Português (CMLP). O CMLP começa a editar Revolução Popular, no qual se publicam, como sustenta Miguel Cardina, «alguns dos textos fundamentais para a definição ideológica do movimento marxista-leninista».13 GA: Como é que se ligou a estes ambientes e como é que entrou em contacto com o núcleo que esteve na origem do CMLP? MVC: Ao fim de uma semana em Paris estava a trabalhar numa livraria a vender literatura inglesa para a licenciatura da Sorbonne e, não me recordo exactamente quando, comecei a frequentar as reuniões que se faziam em torno ou a pretexto de uma «União dos Estudantes Portugueses em França» (UEPF), onde se infiltravam os militantes do PCP e um ou dois funcionários que o Partido por lá tinha. A UEPF era, certamente, muito mais um fórum do que um sindicato; aliás, a maioria de nós só vagamente poderia ser descrita como «estudante»; e eu não o era! Acho que foi lá que se iniciou, para mim, a desvinculação do partido, com as intermináveis e violentas discussões sobre «o que fazer?» politicamente em Portugal, ficando eu cada vez mais do lado dos contestatários da linha do PCP. A dita UEPF transformou-se, durante um ano e tal, no palco do grande enfrentamento entre o PCP e os seus críticos, bem como alguns grupos que tentavam situar-se no «meio», como o MAR e o grupo da Suíça; recordo-me do Manuel Alegre, a caminho da Argélia; do José Medeiros Ferreira numa reunião com estudantes exilados noutros países, como a própria União Soviética, e do Manuel de Lucena, que depois se fixaria em Paris. Entretanto, Martins Rodrigues estava já em Paris e chegavam igualmente ecos da actividade bombista com que a FAP tentava concretizar em Lisboa 13 M. Cardina, Margem de Certa Maneira. O Maoísmo em Portugal, 1964-1874, Lisboa, Tinta da China, 2011, 45-46.

49

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 50

Guya Accornero a passagem à «luta armada», sem mais resultados do que a prisão ou a fuga dos seus poucos militantes. A «luta armada» constituía a charneira simbólica da clivagem que se introduzira, com a ajuda do conflito recém-desencadeado entre a China e a União Soviética, nos ambientes mais radicais dos jovens fugidos à guerra. É impressionante, em retrospectiva, como o ambiente de liberdade das discussões e o ardor juvenil dos intervenientes se articularam com o chamado conflito sino-soviético para, como fogo de palha, acelerar e radicalizar ao extremo a ruptura com o PCP. O «Campos» encarregava-se de teorizar a nova linha, respondendo ao Rumo à Vitória do Cunhal 14 com idêntica verve leninista, posta agora ao serviço da «esquerda revolucionária», e acabando por ser rapidamente expulso do partido com o pretexto de «ter roubado uma máquina de escrever». Este motivo alegado pelo Partido fez perder ao PCP mais simpatias do que a própria expulsão, prática da qual, aliás, nós nunca tínhamos ouvido falar, pois nada se sabia, então, da história do PCP nem tão-pouco da história do movimento comunista internacional, para não falar da história da classe operária, em Portugal ou no mundo, em suma, um universo inteiro de ignorância que as condições do exílio francês nos permitiram ultrapassar de modo a romper de forma radical e irreversível com o PCP ao longo do ano de 1964. O grau de conflito que então se instaurou entre o PCP e os dissidentes foi de tal ordem que, como está plenamente documentado, o partido não hesitou em denunciar as actividades do médico João Pulido Valente e de Manuel Claro.15 Foi o apogeu daquilo que era então ser «pró-chinês»; só depois se passou para o «maoísmo» e, mais tarde, para o chamado «marxismoleninismo», que rapidamente me pareceu uma nova apelação para o velho estalinismo. Já lá vamos! Algures em 1964, por minha iniciativa, apresentei a demissão do Partido ao jornalista Alfredo Noales, de quem eu fora «controleiro» durante a luta no sindicato (o pseudónimo dele era «Raimundo») e que, coitado, pouco ou nada tinha a dizer-me. Regressaria dentro em breve a Portugal para aqui morrer precocemente. Confesso que não me lembro de quem me abordou para formalizar a minha adesão ao novo movimento. As pessoas dessa época de quem me lembro melhor são aquelas com quem me dava mais como amigos: o Fernando Medeiros, o Zé Mário Branco, o Humberto Belo, todos jovens mas casados e com bebés a nascer. Possivelmente,

14 O novo curso contra o «desvio de direita» foi confirmado em 1965 durante o VI Congresso do PCP realizado em Kiev, com a apresentação por parte de Álvaro Cunhal do plano chamado «Rumo à Vitória». As tarefas do Partido na revolução democrática e nacional», já discutido com o Comité Central em 1964. Este debate que envolveu o Partido no início dos anos 60, coincidia entretanto com o eclodir do conflito sino-soviético, que atingiu o PCP num momento crítico da sua história (Pereira, «O um dividiu-se em dois», op. cit., 127). 15 Num artigo entitulado «Cuidado com eles», aparecido no Avante!, n.º 349, em Dezembro de 1964.

50

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 51

Da militância política à investigação científica: história de uma vocação terá sido o Humberto Belo a abordar-me formalmente, tanto mais que foi quem mais responsabilidades veio a ter no movimento em direcção ao chamado «marxismo-leninismo». Também não me recordo quando encontrei o «Campos» pela primeira vez; creio que terá sido por altura do meu encontro com o Noales, quando mudei de filiação. Eu tinha então 23 para 24 anos, mas já possuía mais de cinco anos de ligação ao PCP, o que, perante a extrema juventude da maior parte dos outros camaradas, fazia de mim uma espécie de «velho comunista». Também já levava uns seis anos de «vida literária» e até fora redactor do Avante!, embora só numa curta temporada em 1963. Era, pois, um «militante experiente» e terá sido isso que levou o Martins Rodrigues a cooptar-me para o recém-criado CMLP e, concretamente, para a redacção do «órgão teórico» do Comité, o Revolução Popular. Não sei se o Humberto Belo e/ou o Fernando Barros – que entretanto chegara a Paris fugido do descalabro da FAP e que, meu vizinho em Oeiras nos anos 50, me despertara para as primeiras grandes descobertas intelectuais da adolescência – tiveram algum papel nestas decisões. O certo é que a primeira reunião oficial do tão celebrado «CMLP» se realizou no dia 3 de Janeiro de 1965, não por acaso um domingo, pois a maioria de nós estava empregada, na «chambre de bonne» de 13m2 onde eu vivia no n.º 21, rue Manin, no 19 e arrondissement. Tenho a certeza de que o Humberto Belo e o Fernando Barros se lembram. Quanto ao quarto personagem, além do Martins Rodrigues, de cujas visitas regulares para discutir os artigos da Revolução Popular me lembro muito bem, leio no livro do Miguel Cardina 16 que seria o Rui d’Espiney, enquanto eu estava convencido de que era o Manuel Claro, primo dele, um tipo fascinante e paradoxal que conheci muito melhor do que o Rui. Seja como for, logo na reunião de 3 de Janeiro, o Comité dividiu-se ao meio a propósito já não recordo de que pormenor linguístico (o Martins Rodrigues ficou prudentemente de fora e jamais veio a decidir, no meu tempo de ML, o sentido da divergência), entre estalinistas e antiestalinistas, com o Belo e o Claro (ou o Rui?) entre os primeiros, contra o Barros e eu, que já tínhamos apanhado a onda antiautoritária e antiburocrática antes deles. Foi uma cisão decisiva para mim ao longo dos anos incendiários da «revolução» que se seguiriam até 1974.

A FAP/CMLP teve uma vida breve. Com o objectivo de instalar uma direcção da organização em Portugal, em finais de 1964, Pulido Valente e Manuel Claro regressam clandestinamente ao país. Como vimos, os dois militantes do CMLP em Portugal atacados no Avante!, segundo refere Miguel Cardina, a seguir à prisão de alguns elementos da organização, Valente e Claro regressaram a Paris, onde começaram a preparar,

16

Cardina, Margem de Certa Maneira, cit., 41.

51

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 52

Guya Accornero

juntamente com Martins Rodrigues, uma nova entrada em Portugal. Primeiro, foi o Pulido Valente a entrar em Portugal em Março de 1965, enquanto Manuel Claro e Martins Rodrigues viriam a passar a fronteira em Junho, depois de uma difícil viagem de carro, durante o qual tiveram um acidente e o próprio FMR sentiu sérias consequências na coluna, sem ter a possibilidade de se recompor. Tendo à disposição escassíssimos meios logísticos e financeiros, a FAP, em Portugal, teve sobretudo êxito nos meios estudantis, que ainda estavam a sofrer da vaga repressiva depois da crise de 1962 e da prisão dos quadros dirigentes do PCP. As pretensas acções de luta armada no país resumiram-se ao lançamento de alguns cocktails Molotov contra uma esquadra da PSP e contra a escola da PIDE, enquanto, como afirma Cardina, «a organização não conseguiu estender a sua influência para além de um pequeno núcleo de militantes e simpatizantes».17 Em Outubro de 1965, houve a prisão, pela PIDE, de João Pulido Valente, seguida por uma dezena de prisões de outros militantes. Estas prisões foram provocadas pelas denúncias de Mário Mateus, um ex-militante do PCP infiltrado no grupo com a tarefa de informador da PIDE. Na sequência desta delação, Mário Mateus foi sujeito, já mais tarde, a um «julgamento revolucionário» 18 que acabou com a sua execução na mata de Belas. A 30 de Janeiro de 1966, Martins Rodrigues foi preso, juntamente com outro militante da FAP, Acácio Barata Lima, enquanto Rui d’Espiney será preso duas semanas depois. No julgamento que se iniciou a 25 de Novembro 1967, Martins Rodrigues e d’Espiney foram condenados, respectivamente, a 15 e a 14 anos e 9 meses de prisão; 19 num julgamento posterior em 1970, foram condenados, desta vez por pertencerem à FAP/CMLP, a penas de 20 e 19 anos; só vieram a ser libertados a 27 de Abril 1974. Estas prisões representaram o fim da organização, mas não da difusão do «maoísmo», que em breve passaria a ser chamado «marxismo-leninismo», entre a oposição portuguesa, dentro e fora do país. GA: Qual é a sua memória destas experiências? MVC: A minha ligação ao grupo – para mim, os nomes não eram muito importantes, mas a minha referência nominal era mais «a FAP» do que «o CMLP» – ainda continuou ao longo de 1965, pois lembro-me de ter mudado de casa para o Sul de Paris, em Montrouge, e de aí ter guardado, debaixo da

17

Cardina, Margem de Certa Maneira, cit., 48. Idem, 50. 19 Ibidem. 18

52

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 53

Da militância política à investigação científica: história de uma vocação cama, como é habitual nestas circunstâncias, umas «armas» da organização (uma ou duas pistolecas que eu espero que não estivessem em estado de funcionar); mais importante do que isso, ainda fui tesoureiro da organização durante algum tempo até entregar o dinheiro à minha guarda ao camarada que me substituiu, não me lembro quem; mais tarde, ouvi contar que tinha havido problemas com os fundos. Seja como for, o meu afastamento coincidiu, mas não por coincidência, com o de muitos outros membros da FAP e do CMLP, sobretudo quando o FMR teve a trágica ideia, que nunca foi discutida comigo, de voltar a Portugal e, sem qualquer espécie de estrutura de apoio, se lançar na aventura de «executar», juntamente com o Rui d’Espiney, o alegado denunciante do João Pulido Valente, entretanto preso. Não me pronuncio sobre o fundo da questão nem sobre o que se passou com o FMR e o Rui na prisão, mas é indiscutível que foi aí que começou o descalabro do projecto maoísta, para ser no entanto retomado mais tarde por uma miríade de grupos fragmentários, mas sem mim nem os amigos com quem foram criados os Cadernos de Circunstância em 1967. Em resumo, não pertenci ao grupo que criou a FAP mas já fiz parte do «grupo inicial» que levou à criação do CMLP. É verdade, porém, que a minha ligação com este foi de curta duração, no máximo até meados de 1966, e também é exacto que nada tive a ver nem com as tentativas de ligação à classe operária nem, muito menos, com a ida do FMR para Portugal e com aquilo que lá se passou. Para além dos nomes que citei acima, nunca encontrei o João Pulido Valente, mas conheci e lembro-me de algumas das pessoas agora mencionados no livro do Miguel Cardina, concretamente o Mário Silva, que perdi de vista, assim como o Capilé, que continuo a encontrar de vez em quando, a última vez terá sido no funeral do Martins Rodrigues; lembro-me de «um» Custódio mas já não sou capaz de o localizar... Conheci perfeitamente o Jacinto Rodrigues e continuo a vê-lo, mas ele, a certa altura, ter-se-á afastado dos ML e enveredado pelas acções armadas, nomeadamente algumas associadas à LUAR, mas eu já não tive contactos políticos com estas organizações. Também conheci muito bem o Chico Alves, com quem até andei mais tarde à pancada por causa das nossas divergências empíricas entre «leninistas» (eu) e «situacionistas» (ele), mas ainda hoje somos amigos; pessoalmente, sempre julguei que ele não tinha nada a ver, pelo menos a partir de 1968, com os pró-chineses. Foi aliás com o Chico Alves, entre outros, que montámos a cena subversiva que pôs termo efectivo à pretensa rede internacional de estudantes portugueses, a tal «UEPE»; o Medeiros Ferreira, que só conheci verdadeiramente depois do 25 de Abril e que, do nosso ponto de vista, estava do lado dos «conservadores» nesse encontro, e cujo humor não terá sido muito apreciado. Conheci também, muito bem, José Carlos de Andrade, que estava próximo do FMR em Portugal mas conseguiu fugir depois da débacle, tendo-se tornado meu amigo até 1968; depois disso, perdemo-nos de vista pouco a

53

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 54

Guya Accornero pouco. Também me cruzei com vários jovens, como o João Quintela e o João Bernardo, que navegavam já noutras águas da maré «marxista-leninista». Conheci igualmente e sempre fui amigo do Hélder Costa, com carradas de humor e simpatia, que tinha um grupo numeroso de agitadores arrolados no Grito do Povo, creio. Era a altura da pulverização da grande constelação esquerdista sobre a qual, antes mesmo de Maio de 1968, o PCP e os «liberais» haviam perdido qualquer controlo. Pelo contrário: em muitas alturas passaram a andar atrás das iniciativas da extrema-esquerda, nomeadamente quanto o PCP se viu obrigado a lançar-se também na «luta armada», embora com pezinhos de lã... Por outro lado, conheci muitas pessoas de outros grupos com as quais me dava bem e até colaborava, como por exemplo o Fernando Pereira Marques, muito jovem, preso várias vezes, que foi sempre um amigo até hoje e com quem colaborei, já nos anos 70, no jornal para os emigrantes portugueses em França financiado pela LUAR, Fronteira; das desventuras da LUAR só sei aquilo que toda a gente dizia em Paris na altura: que estaria infiltrada por agentes da PIDE e que o Palma Inácio, com quem nunca me cheguei a cruzar, seria politicamente manipulado por Mário Soares, a cujo projecto político conviria que houvesse alguma agitação armada em Portugal... De facto, há um registo nos arquivos da PIDE onde alguém da LUAR me denuncia como «colaborador do jornal Fronteira». Quem também estava ligado à LUAR era o José Augusto Seabra, meu grande amigo desde a formação de uma «redacção juvenil» na Seara Nova no final dos anos 50, poeta e crítico literário desde muito jovem, antigo militante do velho MUD-Juvenil, que fugira para França antes de mim e andara depois pela URSS e pela Argélia, tendo voltado a Paris fugido às perseguições do PCP, que ainda lhe fez uma espera violenta antes do 25 de Abril; aderiu ao PPD depois do 25 de Abril, foi ministro e embaixador, tendo morrido precocemente em 2004.

A situação de fragmentação dos grupos maoístas, que acabou de citar, representa bem aquela competição à esquerda que levará, nos finais da década, à pulverização do universo marxista e à definitiva perda de consenso do PCP nos meios mais radicais da oposição. Por seu lado, Cunhal reagirá a esta situação no seu livro O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista, publicado clandestinamente pela primeira vez em 1970 e no qual, reproduzindo as teses já colocadas por Lenine em Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo, acusava os militantes e líderes dos grupos da nova esquerda de serem «renegados» e «aventureiros», quer no plano teórico, quer no plano prático. Nas palavras de Cunhal, eles manifestavam «incapacidade de acção e de organização políticas e [...] desligação das massas populares», assim como «individualismo, suficiência [...] e desprezo pelos trabalhadores ‘ignorantes’» e acreditavam que «a revolução

54

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 55

Da militância política à investigação científica: história de uma vocação

será obra de pequenos grupos de pequeno-burgueses ‘iluminados’».20 Mas a reacção do PCP – como também foi evidenciado por MVC mais acima – não foi apenas de «denúncia» dos riscos do radicalismo: ainda numa lógica de competição à esquerda e receando a ameaça de perder terreno face à atracção que projectos revolucionários mais ousados suscitavam sobretudo entre os mais jovens, Cunhal também decidiu a criação de um grupo de luta armada, a Acção Revolucionária Armada (ARA). Ainda que a primeira acção da ARA chegasse só em 1970, a sua constituição remetia para 1966, em sequência de uma viagem de formação efectuada em Moscovo e Cuba por dois dirigentes do partido, Raimundo Narciso e Rogério de Carvalho, em linha com as teses expressas por Cunhal em Rumo à Vitória. As Tarefas do Partido na Revolução Democrática e Nacional. Entretanto, os Cadernos de Circunstância – explicitamente citados, várias vezes, em O Radicalismo Pequeno-Burguês cuja experiência se iniciou em 1967 – estarão também incluídos no anátema do líder comunista. Se é exacto que no texto de Cunhal não existem grandes distinções, o grupo que está na base dos Cadernos é bastante diferente do que estava na base do CMLP e também das seguintes organizações maoístas, até e sobretudo, ideologicamente. GA: Como foi esta passagem e como definiria, de um ponto de vista ideológico, os Cadernos? Acha que é possível colocar os Cadernos numa perspectiva espontaneísta, que de facto está bem longe do conceito de vanguarda revolucionária do marxismo-leninismo? Até parece uma antecipação da autonomia operária... MVC: Sim, sem dúvida: estive a reler os Cadernos por causa desta conversa e verifiquei que o último número – o n.º 7, em Março de 1970 – está cheio da palavra «espontâneo»! Recuando no tempo, todavia, recordo que no final de 1965, inícios de 1966, a desagregação do movimento lançado pelo Martins Rodrigues era quase completa. Não fui só eu que me dei conta disso e que comecei a reorientar as energias. Em 1965 nasceu a minha filha, no dia 13 de Agosto, em que fez por todo o hemisfério norte um calor tão infernal que ficou ligado à revolta do gueto negro de Watts em Los Angeles. Existe uma fotografia desse dia tirada pelo Nuno Brederode Santos, de passagem por Paris, com um pequeno grupo politicamente misto a beber cerveja na esplanada do Café Cluny, no cruzamento dos Boulevards de St. Michel e St. Germain... Mudei de casa, das Buttes Chaumont para Montrouge, e fiquei com menos liberdade de movimentos, sobretudo à noite. Comecei então a pensar em retomar os estudos e cheguei a falar na «Sociologia» numa

20 A. Cunhal, O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista, 3.ª ed. (Lisboa: Edições Avante, 1974), 121-122.

55

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 56

Guya Accornero carta ao meu pai. Apesar de ter um emprego comparativamente bom para a maioria dos exilados, sofria de uma enorme falta de realização profissional e cultural. Assim, na rentrée de 1965 decidi inscrever-me na Sorbonne para fazer uma licenciatura em Letras; era a mais fácil para mim; de início, bastava ler os autores e a bibliografia indicados, e aparecer no fim do ano para fazer os exames; depois, fui-lhe tomando um certo gosto e passei a frequentar as aulas nocturnas para estudantes-trabalhadores e, por fim, algumas aulas diurnas que contribuíram para me mergulhar num universo universitário que eu, afinal, desconhecia. A agitação política em Portugal arrefeceu; os grupos fecharam-se sobre si próprios e tornaram-se cada vez mais desesperadamente ideológicos, de um marxismo de «carregar pela boca». Foi nessa altura que fui contactado por um grupo muito jovem de inconformados para fazer uma revista... Se a memória não me falha, inicialmente tratava-se do Fernando Medeiros, que estudava no Instituto de Estudos do Desenvolvimento Económico e Social (IEDES); do Aquiles de Oliveira, que vinha do Técnico e andava na École des Arts et Métiers, vindo a ser, depois do 25 de Abril, alto dirigente do INE; e talvez ainda do Tó Zé Horta Lobo, que não sei o que andaria a estudar, todos já casados e com filhos pequenos, como eu. Tratava-se de estudar Portugal, as colónias e a guerra da forma menos ideológica possível, a fim de tentarmos perceber de que país se estava a falar concretamente. E sem pretensões de intervenção política! Com eles, deve ter vindo também o Alberto Melo, formado em Direito e que trabalhava então na OCDE; e finalmente, saído não sei de onde, o Alfredo Margarido, muito mais velho do que nós (tinha 12 anos mais do que eu, que era o mais velho do grupo inicial) e que veio a ser o inventor do nome da revista, procurando explorar a heurística das «circunstâncias» em que nós – e porventura o país – nos encontrávamos. Portanto, nessa altura, não se pode ainda falar de «espontaníesmo» nem muito menos de «obreirismo» na fase inicial dos CdeC. Se o grupo tinha um perfil, nessa altura, era o de resistir à «ideologia», sobretudo à dos grupos maoístas, e de lutar contra ela «estudando» o país, começando pela sua «economia política». Implicitamente, esta resistência à ideologia e um certo gosto por uma «economia política» bem concreta não deixam de dar a perceber como é que eu e alguns outros nos abrimos ao «espontaneísmo» do movimento de Maio de 68 e, posteriormente, ao «operaismo» italiano. A revista foi sempre feita à mão; escrita, batida à máquina e impressa por nós, primeiro numa máquina stencil e, depois, na off-set de uma associação de jovens onde trabalhava um novo membro do grupo, o Jorge Valadas, um jovem oficial desertor da Marinha de Guerra, que pouco depois traria o João Freire também para o grupo, o qual, depois de Maio de 68, se iria alargando ao mesmo tempo que um ou outro membro se afastava, sempre sem drama. Se algo ficou dessa experiência, foi a convivialidade, o esforço de conver-

56

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 57

Da militância política à investigação científica: história de uma vocação gência e a vontade de expressão colectiva até fazermos desaparecer as assinaturas individuais; quando o grupo se desfez, igualmente sem drama, ficou a amizade que liga ainda hoje a grande maioria dos antigos membros dos CdeC. A primeira fase dos Cadernos (3 números até Maio de 68) foi, digamos, a menos ideológica e a mais informativa, com estudos económicos e estatísticos. O Margarido e o Medeiros, devido às suas experiências africanas, embora muito distintas, eram os responsáveis pela questão colonial e pela guerra. A orientação crítica em relação ao PCP manteve-se sempre, mas já não havia qualquer ligação à constelação ML [marxista-leninista] e, quando voltámos a debruçar-nos sobre as questões políticas imediatas do país e a possibilidade de intervenção, foi já de um ponto de vista totalmente pós-maoísta, alheio a qualquer apelo da chamada «revolução cultural chinesa» e do novo tipo de estalinismo que, segundo nós, espreitava atrás dela...

Num artigo posterior aos episódios do Maio francês, saído nos CdC a 1 de Março de 1970 e intitulado «A Revolução está na ordem do dia», afirma-se que a «greve geral de Maio de 1968 em França mostrou a profundidade e a radicalidade do antagonismo de classe, e abre à escala mundial um novo ciclo de lutas com conteúdos e forma modernas, que se manifestam logo a seguir nas lutas italianas (Porto Marghera, Junho-Julho 1968) e mais tarde se estendeu à Europa inteira (as lutas portuguesas – Carris e seguintes – inscrevem-se igualmente no imediato pós-Maio». Pode ver-se nesta situação um processo que ia criar, gradualmente, as condições para uma «revolução comunista». Aqui, põe-se a tónica nos elementos mais «obreiristas» do Maio de 1968, considerado como momento nevrálgico de um processo de aquisição de força por parte da classe operária. GA: Mas o Maio de 68 foi também – e talvez sobretudo, diferentemente do «Outono Quente» italiano – o auge de uma revolução social e de costumes. Qual foi então a incidência desta «revolução» nos Cadernos e no vosso grupo? MVC: Lembro-me perfeitamente de ter então recortado uma pequena notícia do Le Monde, no início do ano de 1968, onde se falava dos incidentes provocados por um grupo alegadamente dirigido por um assistente da Universidade de Nantes chamado Gabriel Cohn-Bendit (mais tarde saber-se-ia que era o irmão mais velho de Daniel Cohn-Bendit), que protestara violentamente contra a proibição de circulação nos dormitórios femininos da Universidade depois das 20h... Com efeito, a questão conjunta da repressão sexual e do autoritarismo universitário está na origem, não só como pretexto mas como símbolo e ethos também, do movimento de revolta antiautoritária iniciado na universidade recém-construída de Nanterre no dia 22 de Março

57

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 58

Guya Accornero e alargado posteriormente à Sorbonne a 3 de Maio, culminando o processo de gigantesca contestação geracional que vinha desde a luta contra a guerra do Vietname nos Estados Unidos. Eu ia fazer 28 anos e falo por mim ao dizer que «Maio de 68» foi a realização de todos os sonhos de liberdade e autonomia política, cultural e pessoal que eu pudera alimentar até então. Não fui, porém, o único a sentir-se mobilizado por essa mistura de conteúdos com a forma livre e voluntária de organização. Longe disso. Maio de 68 reflectiu-se imediata e plenamente nos Cadernos e na formação pessoal de cada um de nós, embora variassem as dimensões geracionais e culturais, fantasticamente antecipadas por Jean-Luc Godard nos filmes La Chinoise e Week-end (ambos de 1967). Durante os acontecimentos de Maio-Junho de 1968, cada um esteve por sua conta, conforme os locais de trabalho e as redes pessoais. Eu liguei-me ao Comité d’Action «Travailleurs étrangers», que funcionava no novo centro universitário de Censier e que eu aproveitei para orientar em direcção aos emigrantes portugueses, sobretudo dos grandes estaleiros da construção civil. Fiz o que pude, sem grande êxito, pois a maioria dos portugueses não percebia sequer o que se passava, o que de resto só revelava o seu «bom senso», pois a verdade é que, depois de quatro décadas e dezenas de livros, ainda ninguém conseguiu explicar exactamente o que se passou... Para mim, a «revolução» acabou de vez no dia 4 ou 5 de Junho, diante do estaleiro da futura gare de Montparnasse, quando me vi obrigado, depois de uns empurrões, a fugir da polícia chamada pela central sindical comunista a fim de forçar o fim da greve. A minha vida pessoal conheceu uma viragem radical nesse momento! Entretanto, eu e os outros «circunstancialistas» havíamos estabelecido todo o género de contactos com gente de variadíssimos grupos e grupinhos, assim como com estudantes sem experiência política nem pretensões revolucionárias, rendidos porém a um «movimento» que vinha mexer com desejos e projectos até então informulados. Durante duas ou três semanas, viveu-se à beira de uma espécie de «comunismo», sem dinheiro nem gasolina, sem transportes nem polícia por perto, comendo o mesmo frango assado com batatas fritas fornecido pelo Comité d’Action Paysans-Étudiants, enquanto o PCF entrava nas habituais negociações com o governo do general De Gaulle para pôr termo à maior greve de sempre no mundo, e nós participávamos alegremente na rejeição das lideranças da esquerda tradicional (Mitterrand, Mendès-France, etc.), no memorável meeting do Estádio Universitário de Charléty no dia 27 de Maio, quando Cohn-Bendit gritou: «À bas les récupérateurs!», entre outros slogans que ficaram desde então... Obviamente, quando a poeira assentou, o grupo nunca mais fez outra coisa que não fosse rememorar os «acontecimentos» e procurar perceber o que se passara depressa de mais para se entender realmente; quem disser o contrário, mente! Ganhámos novos membros, como o Jorge Valadas e o João Freire, já citados, que trouxeram com eles inesperados contactos com

58

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 59

Da militância política à investigação científica: história de uma vocação outros oficiais embarcados nos navios de guerra portugueses que vinham em missão a França e levavam de volta maços de Cadernos; mas também o Zé Rodrigues dos Santos, o primeiro sociólogo do grupo, brilhantíssimo e difícil de arrancar à influência trotskista de onde provinha; e o Zé Hipólito dos Santos, mais velho do que a média do grupo, calejado militante não-PCP, o que era uma coisa rara; em vez disso, estivera preso pela sua participação no golpe de Beja e vinha desencantado com as movimentações da chamada Frente Portuguesa de Libertação Nacional de Argel; todos fizemos o esforço necessário mas profundamente compensador de convergir para um ecléctico revolucionarismo que duraria ainda um bom par de anos. Foi um período de leituras intensas e de uma primeira abordagem aos factos desconhecidos, para não dizer ocultados, da história política do operariado e das lutas de classe anteriores à ditadura do Estado Novo, assim como a história das teorias e práticas do movimento revolucionário internacional, sobretudo fora do estalinismo e do maoísmo, os quais, a partir desta altura, já nos pareciam pertencer mais ou menos à mesma família. De contactos em contactos, acabámos por convergir para a variegada família daquilo a que então se chamava a «ultra-esquerda» – «conselhista» ou «espontaneísta», em todo caso, sempre mais «luxemburguista» (de Rosa, que traduzimos) do que «leninista» (que já estava traduzido), e certamente do que «maoísta» (que estava então reduzido a um «pequeno livro vermelho» agitado sem sequer ter sido lido). O círculo de relações, que era muito mais um círculo de sociabilidade do que de influência política, ia-se alargando. Para só citar os portugueses que participavam nas discussões abertas que tinham lugar na pequena sala do n.º 16 da Rue Malar, no 7e arrondissement, perto do Quai d’Orsay, onde vivia o Alberto Melo e para onde eu me mudei durante os «acontecimentos», havia outros exilados e mesmo pessoas conhecidas de Portugal, como a Leonor Coutinho e a Cristina Futscher Pereira, vindas de Toulouse; o Mário Barroso e o Rui Simões, vindos de Bruxelas; o José Loureiro, vindo do Porto com os seus Cadernos Necessários, cujo grupo viria a fundar a Editora Afrontamento e a editar, depois do 25 de Abril, uma antologia dos Cadernos de Circunstância (1975), assim como os Operários e Capital de Mario Tronti (1976), traduzidos pelo Carlos Aboim de Brito – outro companheiro do exílio – e por mim; mas também por lá passaram o João Ferreira de Almeida, amigo do Alberto Melo, e o João Martins Pereira, já regressado a Lisboa depois de nos termos conhecido antes de 1968, mas de passagem por Paris; ou ainda o Leonel Costa, meu futuro aluno no ISCTE, então a fazer um estágio profissional em Paris, todos estes vindos de Lisboa... No fim de 1968, o Alberto foi para Inglaterra e eu mudei-me, com o João Freire, para um apartamento num 5.º andar sem elevador no n.º 33, rue de Vaugirard, no 6 e, perto do Jardim do Luxemburgo, que partilhámos com sucessivos amigos estrangeiros até à chegada, vindo de Lisboa, no rescaldo das

59

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 60

Guya Accornero pseudo-eleições legislativas de 69, do Zé Maria Carvalho Ferreira, que nos trouxe a energia e a experiência para nos lançarmos – uns mais do que outros, eu decididamente – na nossa caminhada obreirista, sob várias influências simultâneas, entre as quais a do grupo italiano Potere Operaio se tornou, a certa altura, a referência mais importante, pelo menos para mim. O João Freire, que nessa altura fazia ele próprio uma profunda e prolongada imersão na condição operária – que ele descreve na sua autobiografia: 21 primeiro na Renault de Boulogne-Billancourt, depois como operário especializado, numa altura em que perdi um pouco o contacto com ele – deu também uma contribuição decisiva para esta caminhada. Nessa sequência, já mais perto do 25 de Abril, quando estávamos virados simultaneamente para os emigrantes em França (portugueses ou os magrebinos do Mouvement des Travailleurs Arabes) e para o operariado português, que entretanto começava ele próprio a organizar-se, chegámos a publicar um ou dois números de um jornal volante intitulado Classe Operária, com o apoio logístico do jovem Yann Moulier, estudante da École Normale ligado às Informations et Correspondance Ouvrières-ICO, que nos descobrira não sei como e a quem nós fizemos, por nossa vez, descobrir abordagens estranhas à tradição da ultra-esquerda francesa. O «operaismo» italiano dava também forma e figura à nossa própria descoberta da chamada «autonomia de classe», no fundo, o substrato histórico do velho sindicalismo revolucionário...

É difícil descrever em poucas palavras o que foi a complexa e fascinante história do obreirismo italiano, uma das experiências teóricas marxistas mais originais daqueles anos. Segundo algumas interpretações, seria possível identificar as primeiríssimas origens do obreirismo italiano, por um lado, na experiência do anarco-sindicalismo dos finais de Oitocentos e, por outro, nas vicissitudes que levaram do Partito Operaio Italiano (1882) à criação do Partito Comunista Italiano (PCI, 1920) até ao III Congresso do PCI no exterior, em Lyon (1926), durante o qual foram aprovadas as Tesi de Gramsci e foi posta em minoria a corrente de esquerda de Bordiga. No entanto, limitar-nos-emos aqui a falar brevemente da corrente obreirista mais conhecida e que diz directamente respeito a este texto, isto é, aquela que começou a desenvolver-se em Itália nos finais dos anos 50 e cujo grupo inicial, formado por Raniero Panzieri, Mario Tronti e Antonio Negri, fundou em 1961 a revista Quaderni Rossi. A principal concepção desta corrente – claramente explicitada por Mario Tronti no seu fundamental Operai e Capitale, já mencionado por MVC – é que 21 J. Freire, Pessoa Comum no Seu Tempo. Memórias de um Médio-Burguês de Lisboa na Segunda Metade do Século XX (Porto: Afrontamento), 2007.

60

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 61

Da militância política à investigação científica: história de uma vocação

a classe operária, sendo o principal motor do desenvolvimento económico, deve necessariamente ser considerada como principal agente de um processo revolucionário que ultrapasse as instituições clássicas como os partidos e os sindicatos, vistas como verdadeiras prisões. Em 1963, do grupo fundador de Quaderni Rossi, Mario Tronti, Alberto Asor Rosa, Rita Di Leo, Romano Alquati, Toni Negri, Massimo Cacciari e outros saíram para fundar a revista Classe Operaia. Os «longos anos sessenta» italianos nutriram-se amplamente das teses obreiristas, quer na sua vertente estudantil, a partir de 1967, quer na sua vertente operária, que animou uma das mais intensas etapas de luta de toda a história de Itália, a par do «biénio vermelho» de 1919-1920. Da experiência obreirista tiveram origem os dois grupos extraparlamentares mais significativos da altura, embora muito diversos entre si, Lotta Continua e, sobretudo, Potere Operaio; novas formas de organização sindical, e a experiência mais tardia de Autonomia Operaia. PO foi contudo a organização mais representativa do obreirismo italiano, quer a nível de teorização quer de prática política. A organização foi criada em 1969 e entre os seus fundadores e principais líderes, encontram-se Toni Negri, Franco Piperno, Lanfranco Pace e Valerio Morucci. Como afirma Aldo Grandi, numa excelente reconstrução da história desta organização, em torno de Potere Operaio reuniram-se «rapazes das famílias pequeno e médio-burguesas, por vezes até aristocráticas [...] que tinham sido mobilizados na vaga emotiva de um processo evolutivo de amplitude mundial [...] e que se tinham juntado em frente dos portões das fábricas – de Turim até Milão, de Porto Marghera até Bolonha, de Florença até Roma, de Gela até Porto Torres – a estudar a organização do trabalho, os salários e as ocupações, procurando convencer os operários a pedir ‘mais dinheiro e menos trabalho’ [...] e sobretudo aumentos iguais para todos».22 Isto no que diz respeito à prática política, mas mais interessante ainda pode ser considerado o quadro teórico com que este grupo se identificava: «Se se tinham formado nos Quaderni Rossi e na Classe Operaia [...], liam antes de mais Operai e Capitale, assim como textos de Marx esquecidos e recentemente redescobertos, como o Frammento sulle macchine ou os Grundrisse [...]. Desprezavam a União Soviética e desinteressavam-se da China. Para eles, o comunismo devia ser algo de completamente novo, a ser reinventado no Ocidente, no ponto mais alto do desenvolvimento, onde não era o capital a ser mais fraco mas sim a classe operária a ser mais forte.» E por fim, «encontravam nas fábricas uma figura nova, o 22

A. Grandi, La generazione degli anni perduti. Storie di Potere Operaio (Turim: Einaudi), 4.

61

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 62

Guya Accornero

operário-massa da cadeia de montagem, aborrecido e rebelde, não-profissionalizado e desadaptado, já não aficionado aos seus instrumentos de trabalho», como eram os jovens meridionais imigrados em Turim nos anos 50 e 60 para trabalhar na Fiat. Foram estes jovens que protagonizaram e contribuíram para radicalizar a vaga de mobilizações que ficou conhecida como o «Outono Quente». GA: Casualmente, encontrou-se aí no momento certo…Como é que chegou a participar nesta mobilização? Foi aí que entrou em contacto com o Potere Operaio, embora me tenha dito que só conheceu Toni Negri em 1970? Aí deviam estar também militantes de Lotta Continua, mas a sua «escolha» foi logo para Potere Operaio, porquê? MVC: Porquê, nem eu sei bem, foi sem dúvida devido a um misto de estética e intelectualismo que não me deixou qualquer hesitação no momento em que, diante das portas da Fiat-Mirafiori, no Verão de 69 em Turim, o nosso trio de turistas revolucionários se deparou com os militantes do futuro Potere Operaio, cujo grupo na altura se designava ainda La Classe, distribuindo os seus panfletos. Vínhamos de um encontro internacional da ultra-esquerda em Bruxelas no mês de Julho, onde Cohn-Bendit discutira a economia política do Maio de 68 em ídiche com líderes históricos marxistas exilados nos USA, como Paul Mattick; voltei a ver Cohn-Bendit em Zurique numa reunião muito vigiada pela polícia por causa dele. Os meus dois companheiros de viagem, que conheci por intermédio da Cristina Futscher, eram ambos típicos exemplares da ultra-esquerda cosmopolita: judeus émigrés, a Judith Miller nos Estados Unidos e o velho Marc Chirik na Venezuela, onde se refugiara nos anos 50 para «preservar a memória da Revolução». Estavam ambos demasiado agarrados às teses históricas da ultra-esquerda para se renderem à atracção empírica do obreirismo, mas eu não; antes pelo contrário: vinha de um país do Sul, sofrivelmente subdesenvolvido, e estava ainda mentalmente contaminado pelo practicismo leninista. Ainda em Turim, depois da Fiat, fomos com Emilio Vesce e alguém mais cujos nomes não recordo, até à Universidade, onde Guido Viale ou Adriano Sofri anunciava a próxima criação de Lotta Continua e a diferença, devida a algum «populismo terceiro-mundista» desta última, foi suficiente para que a minha «escolha» fosse imediata... Em Outubro voltei, sozinho, a Turim, onde ainda me encontrei com Vittorio Rieser, do grupo fundador dos Quaderni Rossi, mas depois fui para Milão, a tempo do lançamento do jornal do recém-fundado Potere Operaio, onde se anunciava, no seu forte grafismo a preto e branco, a propósito da negociação dos contratos colectivos de trabalho, «Ecco il primo bidone!». Ainda fui ajudar a distribuir o jornal à porta da fábrica da Autobianchi de Desio, de manhã cedo, com alguma grappa para aquecer... Aí conheci o núcleo milanês de PO, do qual apenas voltei a ver Sergio Bologna, e ainda 62

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 63

Da militância política à investigação científica: história de uma vocação nesse ano ou no seguinte, não recordo, iria até Pádua encontrar Ferruccio Gambino e Toni Negri, tendo ficado amigo de ambos até hoje. Rapidamente me desvinculei, todavia, da linha de actuação que o grupo viria a adoptar posteriormente. A minha divergência ficou aliás registada nas actas de um encontro realizado em Florença em 1971 ou 1972, onde fui vigorosamente criticado pelo Franco Piperno e pelo Sergio Bologna, enquanto Toni Negri se calava. A verdade é que eu me mantinha fiel ao espírito «espontaneísta» dos CdeC mas não deixámos de continuar em contacto até ao fim do meu exílio e até à revolução portuguesa de 1974-1975, que obviamente despertou o interesse não só do Negri mas também, por exemplo, do escritor Nanni Balestrini, autor de uma crónica do movimento italiano de 1968-1969, Vogliamo tutto, 23 que me visitaram quando eu fazia o meu desmame do activismo político no alto da serra de Sintra, depois de ter começado a dar aulas no ISCTE, que foi, como já tenho contado, a revelação da minha vida... GA: Em 1970 acabou a experiência dos Cadernos de Circunstância. Porquê? Foi a partir daí que começou a dedicar-se mais à sua actividade académica? MVC: A respeito do fim dos Cadernos, é uma excelente pergunta à qual nunca demos resposta satisfatória! Foram muitas razões de ordem prática e teórica. A verdade é que, depois de Maio de 68, altura em que saiu o n.º 3 da revista, não fomos capazes de escrever sobre o assunto: tentámos inúmeras vezes mas falhámos sempre. Conservo uma carta de 21 de Junho do António José Saraiva, acusando recepção de um longo documento que lhe cheguei a mandar e prometendo colaborar no número especial que pretendíamos fazer sobre os «acontecimentos»; em compensação, também ainda tenho os apontamentos de uma conversa telefónica do mesmo dia com o José Augusto Seabra em que este acusava os Cadernos de não terem «acção concreta» em Portugal... Acabámos então por ficar amarrados às questões portuguesas, quando a nossa cabeça – e a nossa vida – já estava(m) noutro(s) lugar(es), nomeadamente em França, em Itália e até em Inglaterra. Contudo, a morte política de Salazar no Verão de 1968; a ocupação soviética de Praga, que acompanhei durante as férias em Dubrovnik, na Jugoslávia de então; a Primavera marcelista e, depois, os eventos de 1969 nas universidades portuguesas absorveram as nossas energias redactoriais. Assim, o número duplo 4/5 dos Cadernos (Novembro de 1968) é todo ele dedicado a Portugal, como de resto aconteceria com os dois últimos números (n.º 6 de Março de 1969 e n.º 7 de Março de 1970), embora com cada vez mais inputs internacionais, entre os da ultra-esquerda tradicional (desde o «conselhismo» até Socialisme ou Barbarie) e os do «operaismo» italiano, cuja originalidade e actualidade exerceram sobre vários de nós, a começar por mim, uma atracção muito forte. 23

N. Balestrini, Vogliamo tutto, 1.ª ed. (Milão: Feltrinelli), 1971.

63

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 64

Guya Accornero Apesar de uma convergência política genérica e de uma lealdade interpessoal nunca desmentidas entre todos os membros dos Cadernos até à dissolução do grupo, a verdade é que o rescaldo de Maio de 68 e o refluxo do movimento, que cada um interpretava a seu modo e cujas implicações nos dividiam subtilmente, espartilhando-nos entre a pertença portuguesa de todos e os diferentes envolvimentos de cada um de nós no exílio, acabariam por ir esgotando os objectivos iniciais do grupo. Este acabou por se dissolver pacificamente, espartilhado entre as várias direcções contraditórias que apelavam a cada um: o movimento revolucionário internacional ou a luta contra a ditadura portuguesa; os estudos universitários ou a militância política; o debate teórico ou a intervenção concreta... Outras iniciativas de geometria variável se seguiram, contudo, depois do fecho dos Cadernos, nomeadamente aquela que prosseguimos em relação aos emigrantes portugueses e magrebinos, sobretudo enquanto o João Freire e o Zé Maria Carvalho Ferreira continuaram a trabalhar na Renault; também mantínhamos alguma actividade em Portugal, sempre através do Zé Maria, com uma folha volante chamada Classe Operária; e pouco tempo antes do 25 de Abril ainda recebemos a visita de um militar envolvido na preparação do golpe, que depois vim a saber ser o futuro membro do Conselho da Revolução, Almada Contreiras, aliás «companheiro de armas» do João Freire e do Jorge Valadas... Entretanto, eu próprio sentia cada vez mais necessidade de reconstruir a minha vida profissional, cansado de mais de 10 anos de actividades «alimentares», que aliás só acabariam com o regresso a Portugal depois do 25 de Abril. Em 1968, por coincidência, terminei a licenciatura em Literatura Francesa e Comparada e decidi continuar a estudar, com a vaga finalidade de arranjar mais tarde emprego no ensino. Ainda pensei continuar na via das línguas e literatura, propondo-me primeiro fazer uma tese de mestrado sobre «O surrealismo português em perspectiva comparada»; depois ainda pedi uma bolsa às entidades portuguesas, com parecer favorável do Alain Touraine, para outra hipótese de mestrado, desta vez em «Sociologia da Leitura e da Cultura de Massas», mas não me deram a bolsa por indicação negativa da PIDE. Ainda perdi mais um ano numa tentativa conjunta com o Fernando Medeiros para fazermos o doutoramento na École Pratique des Hautes-Études, como então se chamava, com o economista Charles Bettelheim, cujo curso versava sobre «a luta de classes», mas desistimos quando descobrimos que o seminário tinha sido monopolizado pelos fanáticos da «revolução cultural chinesa»… Finalmente, no ano escolar de 1970-1971, inscrevemo-nos os dois no curso do historiador Pierre Vilar para um doutoramento em que nos propúnhamos estudar, na sequência cronológica um do outro, as origens socioeconómicas do regime salazarista. Retrospectivamente, estou certo de que há uma relação entre o fim da experiência dos CdeC e o início do doutora-

64

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 65

Da militância política à investigação científica: história de uma vocação mento, enquanto tentativa de «mudar de vida», de fazer aquilo a que já na altura, em cartas aos meus pais, eu chamava «passar da vocação à profissão», ou seja, passar a ganhar a vida fazendo aquilo de que gostava e que acreditava ser capaz de fazer. Foi uma viragem muito difícil, misturada com inúmeras vicissitudes existenciais associadas ao exílio, mas que se acelerou um ano mais tarde, quando me voltaram a negar uma bolsa e decidi desempregar-me. Fui então para Londres, vivendo de traduções e fechando-me o resto do tempo nas bibliotecas do British Museum e da London School of Economics durante cerca de ano e meio. Quando tive de voltar a Paris, por causa da renovação dos papéis de residência e de trabalho, no final de 1972, entreguei ao meu orientador 700 páginas dactilografadas muito parecidas com aquelas que viriam a ser a versão final da tese. Antes disso, já tinha mandado para o meu antigo colega e amigo José Cruz Santos, da Editorial Inova no Porto, o manuscrito dos Materiais para História da Questão Agrária, que no entanto só viriam a ser publicados em 1974. Depois disso, apesar do encorajamento do Professor Vilar e do apoio de amigos como o Fernando Gil, que ainda tentou arranjar-me trabalho na OCDE sendo, desta vez, a polícia francesa que interferiu a pretexto das fugas de informação atribuídas aos «esquerdistas» infiltrados na Organização, a vida complicou-se de tal modo que só com o 25 de Abril, mais de um ano depois, viria a tornar-se possível fazer de vez a desejada dupla mudança – de terra e de vida. O último período do exílio foi muito duro. Tive de voltar às actividades «alimentares» e fiquei praticamente sem tempo para a tese, apesar de já ter as emendas do Professor Vilar. Andei de casa em casa dos amigos até, finalmente, encontrar um pequenino apartamento na Rue de Vaugirard, mas desta vez no n.º 151, bastante mais longe do «Quartier»; aí vivi até voltar para Portugal. Fiz todo o género de trabalhos; fiz traduções «au noir» para as Éditions des Femmes: assim, a minha tradução para francês da Paixão Segundo GH de Clarice Lispector saiu com o nome da amiga que me passara o trabalho; fui deixando de trabalhar para o André Gorz, que me encomendava traduções para os Temps Modernes dos líderes sindicalistas italianos e dos teóricos de Il Manifesto, como Bruno Trentin, que ele não me dava oportunidade de discutir; e também deixei de trabalhar como leitor para a Gallimard, algo que fazia praticamente desde que chegara, por divergências com o meu contacto directo, o Dyonis Mascolo, acerca do romance de Jorge Semprun, La guerre est finie... Acabei por aterrar, graças à intervenção do eterno amigo Jean-Philipe Talbo, das Éditions Maspero, numa tipografia onde trabalhei com um pequeno grupo na paginação e correcção de provas de uma publicação oficial francesa. Em resumo, conseguia viver frugalmente com as traduções e o part-time da tipografia, cujo ambiente de trabalho proletário era aliás uma agradável compensação, mas sofria de um misto de frustração e cansaço perante

65

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 66

Guya Accornero uma rotina sem futuro à vista. O activismo tornara-se quase mecânico e deixava-me psicologicamente exausto pela falta de perspectivas realistas. Finalmente, chegou o 25 de Abril. Nessa manhã, eu estava no meu canto de trabalho a traduzir para português a antiga introdução da tese, que crescera até às 300 páginas e veio a ser O Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal no Século XIX, quando a Cristina Futscher telefonou a dizer que tinha havido um golpe de Estado em Portugal! Reuniram-se os exilados todos numa espécie de «assembleia permanente» para acompanhar os primeiros dias do golpe e esperámos a libertação de todos os presos políticos para arrancar, no dia 29 de Abril de carro, o José Hipólito dos Santos, o Fernando Medeiros, eu e um jovem brasileiro que nos pediu boleia. No 1.º de Maio estávamos todos na grande manifestação. Pelo meu lado, reencontrei amigos, fiz novos conhecimentos e comecei a fazer contactos ao sabor dos encontros. Lembro-me de ter escrito à mão um longo texto sobre o golpe militar com o Eduardo Ferro Rodrigues; ignoro se ele o terá; eu não. Ainda voltei a Paris para receber o mês de salário, arrumar os escassos bens e muitos livros que tinha acumulado e, antes do início do Verão, já estava de regresso, sem trabalho nem ideia precisa do que iria fazer. Quem me ajudou muito nessa altura foi o Zé Loureiro. Por sua vez, a Maria Belo, que havia conhecido numa reunião épica em Paris, convidou-me para dar uma curta série de palestras sobre «a sociedade portuguesa» no Instituto Superior de Psicologia Aplicada. Foi a primeira vez que saboreei o gosto de dar aulas. Pouco depois, no meio da convulsão revolucionária que começava a acelerar, entrei em contacto com o Gabinete de Investigações Sociais, mais por motivos políticos do que propriamente académicos, e participei com a Maria de Lurdes Lima dos Santos, o Marinús Pires de Lima e o Vítor Matias Ferreira numa pesquisa interventiva sobre as greves operárias a seguir ao 25 de Abril, que deu depois dois volumes editados por A Regra do Jogo, do Zé Loureiro e do Zé Sousa Ribeiro, e onde publiquei uma curta análise da «composição de classe da fábrica de máquinas de escrever Messa»; era a minha primeira publicação académica. Finalmente, em Setembro, o Marinús perguntou-me se eu não queria dar aulas no ISCTE e eu, que estava sem trabalho nem dinheiro, disse logo que sim; quando comecei, senti que era aquilo que eu sempre quisera fazer, até hoje! Entretanto, por coincidência ou não, ao voltar de uma curta viagem a Paris depois do 28 de Setembro (1974), participei numa reunião do grupo informal de reflexão e intervenção que se reunia regularmente no escritório do advogado José António Pinto Ribeiro e, ao sair, disse-lhe: «Esta foi a minha última reunião política.» Perguntou-me porquê mas o motivo concreto não interessa agora. O ponto é que mantive a promessa durante quase dez anos ininterruptos e, mesmo depois de voltar a participar em encontros de natureza política, em 1983, por instigação do José Pacheco Pereira, nunca

66

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 67

Da militância política à investigação científica: história de uma vocação mais foi como antes. O mais perto que cheguei foi quando fundámos o Clube da Esquerda Liberal e começámos a publicar a revista Risco em 1984. Mas, entretanto, tinha trocado de vez a militância pela vocação e pela profissão. GA: Entretanto, a sua actividade académica foi muito influenciada pela experiência política e pelo obreirismo... Todos os seus primeiros trabalhos tinham a ver com isso e até traduziu para Português textos fundamentais do obreirismo italiano, como Operários e Capital de Mario Tronti... Em que direcção acha que isso está em continuidade com a sua investigação mais recente, com as suas perguntas de agora? Por outras palavras, qual é a sua versão actual da busca da classe operária e do espontaneísmo? MVC: A minha «vocação de historiador» nasceu manifestamente nos Cadernos; antes disso, aquilo que eu gostaria de ter estudado, depois das Belas-Artes e do Cinema, era a Literatura. E assim como as temáticas da minha pesquisa enquanto historiador emergiram das interrogações ligadas à prática militante, não só a perspectiva histórica geral das origens do fascismo português mas igualmente as perguntas específicas ligadas, por exemplo, ao debate com Álvaro Cunhal a propósito da questão agrária, também nunca deixei de militar, em Inglaterra e de novo em França, até ao regresso a Portugal, embora, seja dita a verdade, com dúvidas cada vez maiores quanto ao sentido da «revolução». Em compensação, creio que as marcas da experiência dos CdeC e do «operaismo», teórico e prático: composição de classe, negatividade material e autonomia política, são legíveis em tudo o que publiquei até 1984, incluindo portanto a versão portuguesa da entrada «Proletariado» que o Fernando Gil me pediu para a Enciclopedia Einaudi e na qual aproveitei para fazer o meu balanço do «operaismo», assim como em muitos textos posteriores. O que se aprende nunca se desaprende. Entretanto, em Oxford e de volta a Portugal, desde Novembro de 1976 até ao Verão de 1979, aprendi muitas coisas novas e diferentes das que conhecia antes. Mais importante do que isso, o mundo mudou; mudou muito e, entre tantas outras coisas que mudaram, mudou radicalmente o tipo de sociedade associado não só ao «operaismo» como, obviamente, à revolução, se é que esta expressão tinha algum significado à luz daquilo que foi pensável, com a maior das boas vontades, até há 50 ou 40 anos. Vou mesmo mais longe. A própria noção de «operaismo» era já uma astúcia teórica, senão um ardil retórico, para resgatar a simbologia da classe operária como «portadora da revolução», conforme o próprio Tronti reconhece, implicitamente, num texto recente de homenagem ao fundador dos Quaderni Rossi.24 Nesse mesmo texto, Tronti, hoje com 80 anos, descreve o grupo como dei matti intelligenti (doidos inteligentes) e eu

24 P. Ferrero, org., Raniero Panzieri: un uomo di Frontiera (Alessandria: Edizioni Punto Rosso, 2006).

67

01 MVCabral Cap. 1_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 68

Guya Accornero lembrei-me de Lapo Berti, um pilar de PO em Florença, em cuja bela casa no Oltrarno fiquei no Verão de 1970, me dizer: «Manuel, il nostro problema è che siamo troppo intelligenti.» E eu respondi-lhe imediatamente: «Sottolineato troppo; non intelligenti!» Seja como for, o importante é continuar a aprender.

68

02 MVCabral Cap. 2_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 69

João Freire

Capítulo 2

Manuel Villaverde Cabral: entre o saber e a acção Tenho com o Prof. Manuel Villaverde Cabral um conhecimento interpessoal e uma amizade de mais de quarenta anos, que começou em Paris em Setembro de 1968. Devo-lhe, de resto, a minha entrada para o ISCTE nos idos de 1975, pois foi ele, já em Lisboa, quem me falou dessa escola, cuja existência eu ignorava, e terá provavelmente abonado em meu favor quando submeti a minha candidatura, gesto que eu em breve iria repetir a favor de outro estrangeirado. Eram as solidariedades «de condição vivida». As nossas trajectórias profissionais cruzaram-se depois inúmeras vezes, ele sempre dois passos adiante de mim. Mas soubemos cultivar um saudável distanciamento – pessoal, político e de convivência – que creio ter sido a garantia de uma total independência de julgamento para cada um, sem qualquer espécie de obrigação ou de favor. Mas não é de afectividades que aqui quero referir-me ao homenageado, outrossim à sua actividade pública, embora este longo paralelismo das nossas respectivas trajectórias seja a base fundamental que autoriza os juízos que sou capaz de formular sobre a sua pessoa. E o primeiro que quero referir é o da sua capacidade de aprender. Sabe-se que o Manuel, depois de ter pensado quando jovem na arquitectura e de se ter embrenhado muito cedo nos meandros da cultura e da política – e por causa desta ter tido de abandonar o país e angariar sustento em actividade profissional menos condizente com os seus genuínos interesses –, se dedicou academicamente «às letras»: com uma licenciatura na Sorbonne em Literatura e, alguns anos depois, com um doutoramento em História, já na renovada École de Hautes Études en Sciences Sociales, que sucedeu à antiga 6.ª secção da École Pratique de Hautes Études. Nesta altura, de Sociologia teria aprendido pouco, à parte o marxismo 69

02 MVCabral Cap. 2_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 70

João Freire

dominante na intelectualidade parisiense e a «sociologia a caldo» [a quente], ao modo dos Quaderni Rossi, «inquirindo» à porta das fábricas de automóveis do Quai de Javel, de Mirafiori, de Genk ou Dagenham. Porém, a «espessura social» que descortinou nos seus estudos históricos (veja-se a forma como abordou o operariado português), a aproximação aos problemas do desenvolvimento socioeconómico (sobretudo talvez pela banda do tipo de economia política que, por todo o lado, se foi impondo na agricultura) e, por último, o salto para uma abordagem mais científica dos processos políticos terão sido, afinal, os passos necessários para uma entrada plena no campo da Sociologia. Em segundo lugar, gostaria de evidenciar o eclectismo e a capacidade de inter-relacionamento que o Villaverde sempre demonstrou, nos sucessivos períodos e facetas do seu percurso de vida. A primeira articulação forte que lhe descubro é, desde a fase parisiense dos Cadernos de Circunstância e das agitações conexas ao Maio de 68, entre a Política e a História. Servido já por uma cultura literária superior à média, vi aí o Villaverde animar inúmeras discussões em que trazia para o terreno político (ou revolucionário) argumentos históricos que nem todos conhecíamos, e, inversamente, pressionando as tertúlias mais académicas debruçadas sobre o passado com os resultados ou as contradições políticas que se espraiavam no presente. Em seguida veio a já referida ligação entre o conhecimento da História e o da Sociologia, que pessoalmente sempre muito me interessou e onde entrevejo as mais produtivas combinações, sem nada negar da especificidade de cada uma destas ciências, com a sua metodologia e o seu corpus teórico próprio, bem como com a respeitável antiguidade de uma, face à jovialidade da outra. Depois dos tempos da história económica e social de Portugal na passagem do século XIX para o século XX, e das proximidades de Pierre Vilar, que lhe ensinaram alguns fundamentos da Economia, o patchwork que escreveu sobre o «proletariado» marca talvez uma viragem, pela ênfase, porventura exagerada, posta no papel desempenhado pelo movimento social do operariado. Neste quadro, não sei se Negri, mas parece-me que Ferrucio Gambino e Yann Moulier-Boutang foram dois nomes com quem o Villaverde Cabral manteve longamente contactos intelectuais e decerto mútuas influências. E do seu italianismo sobrou, além dos reflexos magníficos da arte renascentista, a capacidade para as análises internamente ricas e sustentadas, o gosto pelo enfrentamento e o pensar largo, sem respeito pelas fronteiras nacionais. Nesta sequência, a colaboração dada à Encliclopedia Einaudi, as intensas trocas epistemológicas e conceptuais com o Fernando Gil e, pos70

02 MVCabral Cap. 2_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 71

Manuel Villaverde Cabral: entre o saber e a acção

teriormente, havidas no gabinete de filosofia do conhecimento, julgo que terão sido igualmente elementos decisivos para o enriquecimento do seu universo de pensamento, onde se puderam então cruzar a bagagem literária, as categorias da economia política, as inspirações freudianas e o gosto pela pintura, pelo cinema, pela música. Próximo (no tempo) desta evolução, identifico-lhe também um outro anelo de grande significado que terá sido o de acrescentar à nossa típica (na época) cultura francesa a actualmente indispensável cultura anglo-saxónica (no seu caso, mais inglesa do que americana, parece-me). Isto implica, obviamente, um elevado domínio do idioma e da história, mas vai muito mais além, exigindo a apropriação de certos «motores de busca» mentais (perdoem-me esta bárbara analogia tecnológica), que já não se encontra ao alcance de qualquer um. Se a França foi, como para tantos outros, o seu berço cultural, o espaço anglo-saxónico tornou-se uma sua casa de convívio e de confrontos intelectuais. E isto sem prejuízo de, mais recentemente, se ter deixado seduzir pelo Brasil (na sua «outra» dimensão, e diversidade), e sempre pela Espanha – não é verdade, Salvador Giner? –, mátria encantatória cujos apelos afectivos lhe têm feito, naturalmente, uma chamada mais forte nestes últimos tempos. Passaram-se uns anos mais e chegámos à década de 90. A identificação que o Villaverde fez então do factor decisivo que a educação constituiria para o desenvolvimento socioeconómico – e hoje, diria, parafraseando Alguém, para «a riqueza das nações» – terá sido talvez o resultado mais produtivo da sua entrada no campo de estudo das atitudes sociais, factor onde, malgré lui, se tentaram depois reformas a partir do Estado, tão ousadas quanto talvez desperdiçadas. Mas dessas aquisições bebidas inicialmente no «grupo de Cambridge» (Goldthorpe e companhia), foi ele capaz de se catapultar para a descoberta, entendimento e uso de alguns dos mais modernos instrumentos quantitativos de análise utilizados pelas ciências sociais. De facto, aquilo que talvez mais me tenha espantado – a mim que fiz a minha educação inicial mais no campo das ciências do que nas letras – foi a forma como o Manuel – que, pela sua formação e trajectória intelectual, sempre se mostrara um exímio cultor da expressão escrita e oral do discurso – foi capaz de, numa fase já bem avançada da sua vida e pela porta da Psicologia Social (certamente com a proximidade do Jorge Vala), entrar no domínio da análise estatística e ser capaz de discutir com qualquer um pormenores técnicos de que eu já estava esquecido ou que nunca fui capaz de aprender. 71

02 MVCabral Cap. 2_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 72

João Freire

Finalmente, depois de ter referido alguns aspectos da sua actividade reflexiva, de discussão e produção escrita, não quero deixar passar em branco a dimensão da acção, sempre presente na sua visível irrequietude, talvez mais aparente que real. Todos sabemos como o Manuel Villaverde Cabral procurou em permanência pôr em comunicação o seu mundo da ciência e da cultura com a esfera da acção colectiva, em especial daquele tipo de acção que tem impacto sobre a vida de todos nós: a política – quer na vertente das lutas que se travam em torno do poder, quer na vertente das ideologias e elaborações doutrinárias. Não tendo querido enveredar pela «carreira» nem pela fidelidade partidária – e ele lá saberá porquê –, foi sempre e simultaneamente um cidadão interveniente e influente, embora sem «tropas». Durante as últimas décadas, foi um daqueles regulares cronistas, comentadores e opinadores da vida pública portuguesa que, sobretudo nas páginas das gazetas de maior circulação, nunca deixaram de procurar introduzir no circunstancialismo e na astúcia do debate político aquele grão de sal dos conhecimentos teóricos que ele assimilava e destilava nos espaços universitários. De resto, de um tempo ainda próximo do nosso comum activismo político (em França), guardei para meu uso pessoal aquelas barreiras que o Manuel tão claramente definiu no prefácio de um dos seus livros: «Só nunca quis duas coisas; pôr bombas e fazer discursos eleitorais: são os limites do meu doutrinarismo.» Formei há muito a ideia de que a geração que se seguiu ao iniciador da Sociologia em Portugal, que foi Sedas Nunes, se configurou em torno de cinco nomes que constituíram as referências incontornáveis para os restantes da sua coorte e para todos os outros que vieram a seguir, já formados em instituições universitárias especializadas «na arte». Perdoem-me os que se achem preteridos, mas o José Madureira Pinto, o Boaventura de Sousa Santos, o João Ferreira de Almeida, o António Teixeira Fernandes e o Manuel Villaverde Cabral foram, de facto, os maître-à-penser por onde todos nós nos guiámos depois um pouco, procurando os nossos próprios caminhos. Alguns daqueles instituíram-se como verdadeiros «chefes de escola» marcando decisivamente as orientações do ensino e da pesquisa das suas universidades. Não foi, porém, tanto o caso do Manuel Villaverde Cabral, talvez pela paixão com que sempre se envolveu em novas áreas de conhecimento ou de debate, talvez pela sua falta de jeito para angariar seguidores. Mas ficámos-lhe todos devedores de algumas das mais luminosas intuições teórico-analíticas apresentadas nos últimos trinta e cinco anos, assim como fomos levados a ler autores estrangeiros essenciais que desconhecíamos (de Jowel a Runcimann, de Rawls 72

02 MVCabral Cap. 2_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 73

Manuel Villaverde Cabral: entre o saber e a acção

a Putnam) e nos deleitámos com a sua verve discursiva e polemizante em tantas conferências e seminários. Sem o Manuel Villaverde Cabral – por hipótese, perorando em Oxford ou Bolonha –, as Ciências Sociais não seriam a mesma coisa que são hoje em Portugal. Lisboa, Setembro de 2010

73

02 MVCabral Cap. 2_Layout 1 6/24/13 8:51 AM Page 74

03 MVCabral Cap. 3_Layout 1 6/24/13 8:52 AM Page 75

Yann Moulier Boutang

Capítulo 3

Le passeur intranquille Manuel Cabral malgré son prénom et son patronyme portugais qui ne vient qu’en second rang, ne correspond pas à l’idée placide qu’on se fait apriori et probablement à tort, du caractère lusitanien. Sa curiosité, sa fougue, son goût du langage, de la controverse, de la chose publique, évoquent dans son matronyme Villaverde l’inventivité catalane, la passion basque de la Rioja Alavaise. Pourtant, c’est un trait subtilement portugais qui, pour moi le résume le mieux : l’intranquillité chère à Pessoa. Non qu’il faille chercher un homme hésitant, effacé, nostalgique et pour cela tourné vers l’Atlantique. Non, l’intranquillité est chez lui franche et franchement théorique, politique, éthique. Elle se confond dans son histoire personnelle avec des rencontres italiennes et sa longue émigration politique en France. Elle fait aussi écho à l’intranquillité de la guerre civile espagnole et cela, j’ai appris avec plaisir tout récemment qu’il a l’intention de le raconter. L’idée que je voudrais associer à son nom (d’autres dans ce volume en associeront probablement d’autres) par ce petit hommage que me dicte à la fois l’amitié et la joie qu’on éprouve à reconnaître ses dettes intellectuelles est celle d’un passeur dans l’ordre de la circulation des idées qui forment les véritables collèges invisibles de l’esprit et d’un esprit intranquille justement dans ceux de l’enseignement, de la recherche comme de la politique. Avant d’en venir aux raisons qui me font ainsi le qualifier à la veille de sa retraite, je souhaite ajouter une remarque qui a trait au genre dans lequel il nous est demandé d’écrire ici en son honneur. Les mélanges en hommage à quelqu’un qu’il soit universitaire, homme politique, écrivain, poète, sportif constituent une tradition solidement ancrée dans l’académie. Le non conformisme dont Manuel Villaverde Cabral s’est toujours réclamé, qu’il défend comme une vertu essentielle de la recherche en sciences sociales et dans ce domaine comme

75

03 MVCabral Cap. 3_Layout 1 6/24/13 8:52 AM Page 76

Yann Moulier Boutang

dans bien d’autres, je le suivrais volontiers, ne devrait-il pas nous dissuader de sacrifier à cet exercice « sur figures imposées » ? Or, force est de reconnaître que l’attrait pour ce genre quasi littéraire vient sans doute de l’impression curieuse qu’il fait naître, semblable à celle que provoque l’observation d’un rituel religieux chez l’anthropologue athée ou non pratiquant. Entendons ici pour ceux qui ne font pas partie de l’alma mater, donc de la famille, le sentiment troublant qu’il y va de quelque chose de plus que la reconnaissance d’un magister universitaire, des traits d’une pensée, d’un legs intellectuel, quelque chose qui va aussi au delà de la chaleur de l’amitié ou de la reconnaissance. Genre hybride, il peut tutoyer le conventionnel jusqu’à l’ennui. Pourtant il n’est pas rare qu’on y trouve des pointes d’émotion particulières qui jouent le même rôle que le trait d’un sonnet qui surprend et force à penser hors sujet, à digresser vers des régions nouvelles. C’est en effet souvent grâce à la « lecture flottante » (comme l’attention que pratique le psychanalyste) de ce genre littéraire et scientifique, que l’on arrive à extraire du travail et des biogrammes quelque chose d’autre que ce que la vie et l’œuvre expriment en leur ordre ou ce que le jugement académique, politique ou amical permet de mettre à jour. Je prendrai pour exemple le lapidaire éloge de Jacques Martin écrit par Louis Althusser dans l’annuaire de l’Ecole normale supérieure après le suicide de son ami. Pour le biographe d’Althusser que je suis, ces vingt lignes ont constitué sans doute la piste autobiographique la plus décisive. Les choses les plus importantes s’annoncent rarement de façon tonitruante. Elles aiment d’autant plus à se cacher que l’exposition médiatique croît et avec elle, une certaine forme d’obscénité. Placer ces quelques lignes en l’honneur de Manuel Villaverde Cabral sous le titre du « passeur intranquille », c’est vouloir attirer l’attention sur autre chose que sa carrière universitaire de l’âge mûr à l’Institut des Sciences Sociales de l’Université de Lisbonne, de chercheur visiteur fréquent à Oxford ou au Brésil, de vice Président d’Université, de Directeur la Bibliothèque Nationale, sur autre chose également que son premier engagement dans le parti communiste sous Salazar 6 années durant et la guerre coloniale. C’est nommer plusieurs champs dans lequel il apparaît comme un passeur et comme un intranquille, c’est-à-dire comme jamais satisfait des pauses, des certitudes, des idéologies que la plupart se bâtissent avec l’âge comme une assurance contre les risques du hors piste. On évoquera ainsi le passeur entre l’Espagne et le Portugal qui se sont ignorés si souvent depuis 1640, quand il m’a fait remarquer que la montée des échanges économiques entre les deux pays ibériques du fait de 76

03 MVCabral Cap. 3_Layout 1 6/24/13 8:52 AM Page 77

Le passeur intranquille

leur inclusion dans l’Europe, avait certes changé la donne depuis les fins quasiment concomitantes des régimes hérités de Salazar et de Franco en 1974: mais que les deux pays persistaient à s’ignorer largement du point de vue culturel et politique. Cloisonnement que son histoire familiale récuse tout autant que son internationalisme naturel, son souci inquiet du devenir européen mais aussi ses travaux sur la compréhension du fascisme dans les pays producteurs agrariens et protectionnistes de la Grèce de Metaxas au Portugal de Salazar. Passeur aussi quand, à Paris, il fait de son appartement du 33 rue de Vaugirard où il emménage en 1969 l’un des foyers de l’émigration portugaise politique où l’on pouvait croiser des déserteurs de la guerre coloniale au Mozambique et en Angola. On y discutait aussi des conflits ouvriers aux usines Ford de Dagenham ou de Genk, des luttes sociales aux Etats-Unis, de l’immigration en France. Les Cadernos de Circunstância en constituent la trace aujourd’hui imperceptible. Pour le jeune contestataire que j’étais, entré en politique en Mai 68 du côté de l’ultragauche historique (Noir et Rouge, Poésie et Révolution, le mouvement du 22 mars et Information et Correspondance Ouvrière) dont les références étaient Marx, Rosa Luxembourg, Pannekoek, et les situationnistes, Victor Serge, bien plus que Lénine, Staline, Mao ou Trostky, Manuel fut l’intercesseur décisif dans l’accès à l’operaisme italien. Sans lui, je ne me serais pas engagé dans la traduction d’Ouvriers et capital de Mario Tronti avec un établi nomade, Giuseppe Bezza, qui occupait au 5e étage la chambre de bonne de l’appartement de la rue de Vaugirard. Ce dernier membre du groupe Potere Operaio m’avait proposé de m’intéresser à la mensualisation mis en place par le gouvernement Chaban Delmas ainsi qu’à l’immigration. C’est rue de Vaugirard que j’entendis parler d’Antonio Negri, de Sergio Bologna, de Mario Dalmaviva, de Ferruccio Gambino, de Lapo Berti, Rita di Leo, Maria Rosa Della Costa, Franco Berardi, de la traduction des Grundrisse d’Enzo Grillo. C’est grâce à lui que j’entrai en contact avec eux. Et que, rapidement, je fuis séduit par que j’ai nommé « ce rameau vert sur le vieux tronc du marxisme occidental »,1 sans lequel je serais demeuré prisonnier d’une culture hexagonale et classique. J’ai suivi Manuel avec un ou deux ans de retard. Et bien m’a pris. 1 J’ai tenté à de situer l’operaisme italien à trois moments différents de son histoire (et de la mienne) : dans la postface à l’édition portugaise d’Operai e capitale (Tronti 1976) ; dans un Colloque à Montréal en 1979 autour de l’extradition de Franco Piperno : « L’operaisme italien, : organisation/représentation/idéologie, la composition de classe revisitée » (Corten & Tahon 1986, 37-60); enfin dans l’introduction que j’ai faite au livre d’Antonio Negri Politics of Subversion, A manifesto for the XXI Century, (Boutang 2005).

77

03 MVCabral Cap. 3_Layout 1 6/24/13 8:52 AM Page 78

Yann Moulier Boutang

Il régnait rue de Vaugirard une liberté de ton décapant. Le petit livre rouge du président Mao n’était pas au pinacle, mais siégeait au cabinet comme papier toilette. Les idéologies, toutes les idéologies n’avaient pas bonne presse non plus. A commencer par les monstres sacrés de l’idéologie du Mouvement ouvrier comme la « conscience de classe », la « valeur du travail », « l’autonomie du politique » et les diverses formes de Gramscisme. Mais en même temps ce joyeux autodafé d’idées générales, ne nous plongeait pas dans la haine de toute idée générale qui régnait furieusement dans une bonne partie de l’extrême gauche et qui en conduisait rapidement beaucoup, et pas nécessairement les pires, à jeter le bébé de tout marxisme possible avec l’eau du bain socialiste. Ce fut de la bouche de Manuel que j’entendis avant de les lire d’autres concepts comme ceux de la composition de classe, l’autonomie, d’ouvrier masse, de refus du travail, de voix exit (l’absentéisme), de fuite de la représentation et surtout cette formidable perspective d’une faillite du socialisme réel un quart de siècle avant le rideau de 1989 et l’ébauche d’un post communisme dont nous aimions terminer nos lettres. Avant les postmodernes, ou parallèlement à eux, nous déconstruisions les « grands récits » de la classe ouvrière et du socialisme réalisé sans pour autant tomber dans la « pensée faible » ou jeter Lénine aux orties. Le contact avec les Quaderni Rossi de Ranieiro Panzieri, ce fut encore lui. Des ressources qui conférait subitement de la profondeur comme on dit au cinéma, à ce qui se déroulait sous nos yeux en Europe et même aux Etats-Unis : les grèves dans les citadelles du monde industriel moderne et la distinction entre l’enquête à chaud et l’enquête des sociologues du travail. Ce n’était pas les Hobos de l’école de Chicago, que je découvris plus tard, mais un rapport analogue à la mobilité et à son contrôle qui me fournit le point de départ de ma tardive thèse d’Etat sur le salariat et l’esclavage. Manuel était dans le secret de ces opéraistes que je trouvais décidément intelligents, comme leur intercesseur. Mais il n’instillait pas la foi du charbonnier. Il revenait de beaucoup de certitudes (quand on a été donné par son parti à la police politique, la PIDE, pour sauver les dix premiers dans la hiérarchie, on a déjà vécu) avec un sens de la dérision salubre. Peu de temps après (1971) je me souviens lui avoir rappelé ce mot de Lapo Berti après un mémorable séminaire international dans un couvent Jésuite, des terrasses de Fiesole : « nous sommes peut-être les plus grands marxistes du monde, et c’est peut-être pour cela que nous finirons par nous faire avoir. » Bienheureuse introduction en un monde nouveau qui garde suffisamment de lucidité pour avoir cette pensée de derrière que Pascal oppose à l’esprit de géométrie des demi-habiles. En 78

03 MVCabral Cap. 3_Layout 1 6/24/13 8:52 AM Page 79

Le passeur intranquille

toutes choses envisager l’échec. Entrer, séjourner à fond dans les idées avec l’imperceptible distance de l’intranquillité. A travers l’expérience d’interventions militantes dans les premières luttes des sans papiers dès 1972 contre les circulaires Fontanet-Marcellin, à l’appel à la grève du 14 septembre 1973 contre les actes racistes qui permit d’établir une collaboration réelle avec le Collectif du Mouvement des Travailleurs Arabes, notre laboratoire sauvage parisien multinational contribua à sa façon à « l’anomalie politique » européenne.2 C’était un laboratoire sans l’estampille universitaire, ni le « nihil obstat » des organisations et églises diverses. Manuel prenait cum grano salis les affrontements entre les diverses composantes de la gauche extra-parlementaire italienne et de Potere Operaio en particulier qui éclata en 1973, trois ans avant Lotta Continua. Le léninisme de Negri, celui de Franco Piperno, l’exhumation du mouvement de International Workers of the World par la revue Primo Maggio et Sergio Bologna, tout cela avait incontestablement une tenue intellectuelle bien éloignée de la scène de la Vulgär Politik parisienne. Nous n’étions pas très Lip : on produit, on vend, ni très Larzac non plus. Même si, c’est encore par Manuel que j’entendis parler pour la première fois de Chaianov et de l’économie paysanne. Nous suivions, grâce à Manuel, ce passeur des Pyrénées autant que de la Manche, ce qui se passait au delà des Alpes sans pour autant perdre de vue la fin du Franquisme annoncée. La révolution des Œillets au Portugal, la seule et peut-être dernière révolution au sens du XXe siècle qui eut lieu en Europe, marqua la fin de ce laboratoire. La plupart des émigrés portugais rentrèrent. La rue de Vaugirard avait vécu. Nous volâmes de nos propres ailes en France durant quatre ans fortement marqués par Bologne où se consomma en Italie une rupture frontale entre la gauche extra-parlementaire et le Parti communiste et les syndicats, rupture qui avait été la règle partout ailleurs presque dix ans plus tôt. L’Italie de l’anomalie sauvage positive avait tourné aux années de plomb avec l’enlèvement et l’assassinat d’Aldo Moro, autre anomalie monstrueuse négative, celle-ci, dont on vit les premiers résultats avec la décennie Craxi suivie de la lente descente vers Berlusconi. Pourtant, sur les bords du Tage, presque sans effusion de sang s’était produit la dernière révolution du XXe siècle en Europe occidentale : le renversement d’une dictature par un mouvement non factieux mais bien révolutionnaire au sein des forces armées, une décolonisation bâclée, pi2 Nous apparaissions sous la forme d’un Collectif immigrés. Il faut citer ici Gianmarco Montesano, Pierre Cusenier, Martin Andler qui furent parmi d’autres de l’aventure.

79

03 MVCabral Cap. 3_Layout 1 6/24/13 8:52 AM Page 80

Yann Moulier Boutang

lotée largement par la défunte URSS que l’Angola comme le Mozambique payèrent cher. Manuel en était un merveilleux conteur sans indulgence. Le passeur intranquille se révélait encore quand il nous tenait au courant, à la faveur de ses passages rapides à Paris, de l’étrange expérience qu’était cette fabrique non pas de la révolution, mais du résistible accouchement d’une démocratie, à l’opposé d’un pronunciamento militaire « populaire », mais tout aussi éloigné du rêve d’un Portugal de tous les espoirs révolutionnaires de l’Europe depuis 1968. Une utopie qui oubliait que l’économie de ce pays n’était pas celle d’une Suisse en Méditerranée. Manuel aimait à citer Mario Tronti : « Il n’y a qu’une seule réalité et deux points de vue, celui du capital et celui qui lui était opposé, mais sur la même base. » Non, le Portugal n’était pas la Suisse. J’ai regretté de n’avoir pu assister de mes yeux à ce moment de vérité dans et pour la conscience « révolutionnaire », et crucial de la révolution des Œillets qu’il nous conta : Toni Negri et lui assistant médusés à l’adoubement populaire bonapartiste d’Otelo de Carvalho qui crut arrivé Cuba alors que le Rapport Ponomarev (encore une des bonnes lectures de Manuel) disait clairement que l’URSS sacrifierait sans vergogne tout appui à une rupture révolutionnaire en Europe occidentale au profit de la conquête de quelques positions solides en Afrique. Ce qui me rappelait le lâchage par les Soviétiques de Mai 68 en échange de la future intervention en Tchécoslovaquie. Dans ces moments, la phrase de Lénine si souvent citée « seule la vérité est révolutionnaire » nous revenait aux oreilles. Et je crois que Manuel Villaverde Cabral a fait de cette phrase, sa ligne de conduite politique sous la forme suivante : la seule révolution qui tienne est la vérité du moment historique. Son travail d’historien l’avait déjà persuadé qu’il y a souvent dans le point de vue des acteurs sur le moment beaucoup à apprendre et qu’ils ont souvent plus conscience des limites ou des possibilités qu’offre la conjoncture que ne le prétend la vulgate du Mouvement ouvrier qui porte au pinacle une « prise de conscience idéologique » anhistorique d’un côté et de l’autre tient les hommes pour des marionnettes mus par les forces productives ou par le grand capital. Les années 1975-1979, furent en y repensant un point d’orgue. Avec, parallèlement aux avatars de la seule révolution concrète en Europe Occidentale, le double échec de la lutte armée. Les Brigades Rouges qui se construisirent sur les attentats fascistes du train Italicus (on le sait aujourd’hui téléguidés par une « stratégie de la tension » des services secrets italiens) ainsi que sur le reflux du Printemps de Bologne 1977, connurent leur Roche Tarpéienne immédiatement après leur Capitole avec l’enlè80

03 MVCabral Cap. 3_Layout 1 6/24/13 8:52 AM Page 81

Le passeur intranquille

vement et l’assassinat d’Aldo Moro, juste après l’abandon du Compromis historique par le PCI, de la reddition d’une colonne à Gênes vite suivie d’une débandade générale. Cet échec qui fut accompagné de la celui de la Rotte Armee Fraktion en Allemagne, ne fut pas isolé. Il concerna aussi l’autonomie ouvrière pourtant adversaire politique résolue du vieux léninisme troisième international des Brigades Rouges ; elle s’effondra au même moment . Le 7 avril 1979, 3 déclenchée par un Parti communiste vite débordé par la Démocratie Chrétienne, l’arrestation de plus de vingt enseignants du Département de sciences politiques de l’Université de Padoue, entraina dans les années qui suivirent l’arrestation de plus de 5000 militants et l’exil de plusieurs centaines de personnes dont 300 se réfugièrent dans la France de Mitterrand. Ces circonstances bien précises, firent de Manuel Villaverde Cabral le passeur de la révolution léniniste encore pensable (avec tout le raffinement des 33 leçons sur Lénine du titulaire de la chaire de Dottrina dello Stato de l’Université de Padoue [Negri 1976]) à un réformisme radical moins grandiose de la démocratie dans un pays complètement ancré dans l’Europe politique émergente. A la différence des autres européens occidentaux radicaux (qui souvent prirent les chemins exotiques au Sud ou orientaux) les intellectuels portugais furent les seuls à pouvoir dire dans cette dernière moitié du XXe siècle : «j’ai vu la révolution de mes yeux et j’ai dû m’y mouvoir ». Pour les autres, la révolution ne fut qu’une simulation plus ou moins longue, une transition vers l’économie de marché à l’Est, un mouvement éphémère comme Mai 68, l’automne chaud italien, le Printemps 1977. (Nous ne comptons pas ici le Printemps de Prague, les grèves de Gdanzk qui appartiennent au cycle séparé de l’agonie du socialisme réalisé). L’expérience de la révolution portugaise fut rude, la transition du fascisme ne fut pas la transition au capitalisme (il était là depuis longtemps) mais à la démocratie parlementaire. L’expérience du marxisme oriental fut sans doute bien pire et sources de davantage de désillusion et de palinodies. Les origines la transition à l’Est fut celle du socialisme... au capitalisme,

3 Dans l’affaire du 7 avril sur laquelle se penchèrent de nombreux livres, le rôle exact des services secrets américains dans la manipulation du juge d’instruction Calogero, membre du Parti communiste, n’a jamais été tirée au clair. Les révélations sur l’existence depuis les années soixante de l’organisation secrète du Gladio qui avait pour but de s’opposer à l’accès au pouvoir du PCI jettent une lumière assez crue sur le refus de la démocratie chrétienne de négocier la libération de Moro, comme sur l’opération du 7 avril. Un an et demi plus tard, le PCI et les syndicats furent balayés à leur tour avec plusieurs centaines de licenciements à la Fiat.

81

03 MVCabral Cap. 3_Layout 1 6/24/13 8:52 AM Page 82

Yann Moulier Boutang

tandis que la transition à la démocratie s’avérait, elle, bien moins brillante en Russie, en Ukraine qu’à Lisbonne. Intranquillité de l’histoire Pour autant, là où bien des engagés très à gauche, marxistes léninistes pro-chinois tels José Manuel Durão Barroso terminèrent dans le parti populaire européen, Manuel Villaverde Cabral demeura inclassable. Intellectuel en politique et jamais homme politique. Autorité isolée dont on se méfie, on ne saurait attendre de lui des compromis répétés. Si le rôle de passeur va de soi, le concernant, son intranquillité foncière est plus difficile à définir, mais non moins essentielle comme nous avons essayé de le montrer en nous en tenant à cette petite décennie cruciale dans son parcours. Ce qui retient l’intellectuel à l’âge moderne de se transformer en politique, ce n’est pas une mystique (qui comme disait Péguy a vocation de se muer en politique), c’est une insatisfaction récurrente sur ce qu’est la politique, sur l’organisation de la société, sur ce qui se présente comme l’alternative sans l’être réellement, sur les naïvetés innombrables auxquelles les esprits les plus déliés ont cédé grossièrement. Cette intranquillité est le complément indispensable du modernisme et d’un penchant révolutionnaire qui a abandonné le socialisme comme horizon indépassable de la transformation sociale. Sur le plan pratique, l’insistance constante de l’historien sur la conscience bien réelle qu’ont les hommes des marges d’action qui leur sont laissées par la conjoncture me rappelle de belles discussions que nous eûmes autour de la proposition célèbre de Mario Tronti qui renversait la position bolchévique classique (aux mouvements sociaux et aux syndicats la tactique, au parti la stratégie) en son contraire : la stratégie à la spontanéité ouvrière, la tactique au Parti. Si les hommes du moment avaient une assez bonne appréciation du « Que faire ? », la place du parti révolutionnaire ne devenait-elle pas de plus en plus réduite ? Etait-ce pour cette raison que Mario Tronti arrivé à cette sorte de Cap São Vicente, ne s’était plus posé de questions sur l’Atlantique de la révolution, bornant ses travaux postérieurs à la politique comme sphère institutionnelle et des partis comme ses rouages indispensables à connaître au cas où surgirait le moment favorable. Avec en réglage de la position d’attente un placide réformisme révolutionnaire. Si l’on y réfléchit, pareille intranquillité moderne et iconoclaste est sans doute la condition de l’homme moderne européen et ce n’est qu’en acceptant cette vocation de passeur intranquille que l’intellectuel peut accomplir son Beruff (métier, appel) d’enseignant, de chercheur et de citoyen. Cela, Manuel Villaverde Cabral nous l’aura montré où qu’il soit allé par le passé et où qu’il aille à l’avenir. Ce n’est pas rien. 82

03 MVCabral Cap. 3_Layout 1 6/24/13 8:52 AM Page 83

Le passeur intranquille

Bibliographie Boutang, Yann Moulier. 2005. «Introduction». In Politics of Subversion, A Manifesto for the XXI Century, ed. A. Negri. Cambridge: Polity Press. Corten, A., & Tahon, M.-B. 1986. L’Italie : le philosophe et le gendarme : Acte du Colloque à Montréal. Montreal: VLB. Negri, Antonio. 1976. La fabbrica della strategia, 33 lezione su Lenin. Padova: Arba. Tronti, Mario. 1976. Operários e Capital. Porto: Afrontamento.

83

03 MVCabral Cap. 3_Layout 1 6/24/13 8:52 AM Page 84

04 MVCabral Cap. 4_Layout 1 6/24/13 8:52 AM Page 85

Teresa Patrício Gouveia

Capítulo 4

Manuel Villaverde Cabral: o livro e a leitura em Portugal * A minha presença nesta iniciativa essencialmente académica é explicada por ter sido eu, entre 1985 e 1990, secretária de Estado da Cultura, quando o Manuel Villaverde Cabral (MVC) já era, e continuou a ser, director da Biblioteca Nacional. Não tive, assim, a honra de o nomear, mas também tão-pouco a pena de ter de aceitar a sua demissão. Tive sim o privilégio de uma colaboração próxima, frutuosa e vivíssima que se transformou em amizade duradoura. Conheci o MVC num vão de escada. Uma escada institucional, é certo: uma escada da Biblioteca Nacional, debaixo da qual o director mandara instalar a secretária-mesa – de uma colega, responsável por um outro serviço do Ministério, temporariamente desalojado; um enclave no seu território, coisa sempre perturbadora. Eu era a dona da secretária... Nunca tive muita sensibilidade para a questão das instalações –, o Prof. Villaverde Cabral, como se vê, também não – e assim se constatou, logo ali, uma afinidade. A que se somaram muitas outras, bem mais significativas e relevantes encontradas ao longo de vinte e cinco anos, e que fundaram uma amizade. Das primeiras iniciativas que tomei então, foi pedir ao Manuel Villaverde Cabral, a José Afonso Furtado e também a Vasco Graça Moura (então presidente da Imprensa Nacional-Casa da Moeda) e a Fernando Guedes (presidente da Federação Europeia de Editores e Livreiros) um relatório sobre a situação do livro em Portugal. Três meses depois, tinha em mão um dos mais pertinentes, pragmáticos e úteis documentos que recebi e no qual se baseou a política então desenvolvida para o livro e a leitura em Portugal. * Texto lido no Colóquio e Sessão de Homenagem ao Prof. Manuel Villaverde Cabral no ICS, 27 de Setembro de 2010.

85

04 MVCabral Cap. 4_Layout 1 6/24/13 8:52 AM Page 86

Teresa Patrício Gouveia

Concluindo pela insatisfatória intervenção do Estado nessa área (que descurava a procura e era dirigista nos apoios à oferta), o relatório apontava para uma radical reorientação da intervenção pública, assumindo a edição como actividade industrial, a promoção geral da leitura como suporte da industrialização do sector livreiro, e cometendo à escolha do consumidor a orientação qualitativa do mercado. Sustentando-se no conhecimento da informação objectiva e quantificada então disponível – e aqui a sensibilidade do sociólogo Manuel Villaverde Cabral foi determinante –, o relatório constatava que o problema da leitura em Portugal continuava a ser muito mais resultado do nível cultural do consumidor do que do seu nível de rendimento, e que a superação desse défice viria, assim, mais do que da melhoria das condições económicas, do nível cultural médio dos portugueses. A partir da Secretaria de Estado da Cultura tornava-se necessário promover uma política integrada do livro e da leitura, visando a promoção e o consumo do livro. Terminando também um deslocado afunilamento cultural ou literário dos critérios de apoio à edição, até aí em vigor, foi sobre a propensão indiscriminada para a leitura que se decidiu intervir prioritariamente. Não deveria esta intervenção, que concentraria recursos e funções normativas num organismo, corresponder a uma centralização administrativa e funcional. Com efeito, a necessidade de estabelecer uma rede de bibliotecas públicas que cobrisse o território nacional passaria, doravante, pela renovação e desenvolvimento da rede de bibliotecas municipais, cuja autonomia não se poria em causa. O estabelecimento de uma rede de leitura pública, que então se iniciou, envolvia um muito vasto conjunto de acções entre as quais o recurso a meios informáticos – com vista à progressiva criação de uma base bibliográfica das Bibliotecas Públicas – e de um centro nacional de cooperação de bibliotecas, a situar junto da Biblioteca Nacional como cabeça do sistema. Ao novo Instituto Português do Livro e da Leitura, criado meses depois, dirigido por José Afonso Furtado, coube o impulso e a coordenação desta política. Durante o mandato do Prof. Manuel Villaverde Cabral, a Biblioteca Nacional (BN) e o conjunto de bibliotecas públicas deram um passo decisivo no sentido da modernização e da cooperação. O aspecto mais relevante deste processo é a criação em 1985 da PORBASE (Base Nacional de Dados Bibliográficos), que ficou disponível ao público algum tempo depois. A PORBASE é o catálogo colectivo das 86

04 MVCabral Cap. 4_Layout 1 6/24/13 8:52 AM Page 87

Manuel Villaverde Cabral: o livro e a leitura em Portugal

bibliotecas portuguesas, que reúne informação bibliográfica do património da BN e de mais 170 bibliotecas portuguesas, universitárias, públicas, especializadas. Assim, pode-se, hoje, através do sítio web da BN, saber que documentos existem nas grandes bibliotecas do país, onde se localizam exactamente e como podem ser consultados. Quer para o investigador, quer para o cidadão comum, este é um recurso de inestimável valor, e uma inovação nos anos 80, que prenunciava uma tendência contemporânea de trabalho em rede. A concretização deste projecto implicou, em primeiro lugar, um processo de transformação da própria BN, que o Prof. Manuel Villaverde Cabral conduziu, para além da automação do seu catálogo. O projecto PORBASE exigia também um sistema tecnológico mais desenvolvido e, assim, em 1987, a BN decide adquirir um dos sistemas de gestão de biblioteca mais sofisticados à época, para a qual recebeu também apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Estava assim criada a condição fundamental para o avanço deste projecto, o qual nos anos seguintes suscitava a adesão das bibliotecas portuguesas. A principal dificuldade daquelas bibliotecas em aderir a um projecto deste tipo traduzia-se no facto de a automatização dos seus catálogos ser praticamente inexistente. De novo, a BN teve um papel relevante neste aspecto, ao tornar-se, em 1986, Centro Distribuidor Nacional da aplicação informática para bibliotecas desenvolvida pela Unesco (CDS/ISIS), que lhes permitia automatizarem os seus catálogos a baixo custo. Mas, para além disto, a BN decidiu criar um novo produto informático possibilitando às bibliotecas estender o processo de automatização a outros domínios para além do catálogo, o que veio a revelar-se fundamental para o decisivo salto tecnológico que aquelas protagonizaram em Portugal nos anos 90 do século passado. Com o Prof. Manuel Villaverde Cabral introduziu-se através deste sistema uma nova filosofia, um entendimento moderno do que fosse a intervenção cultural, novas maneiras de trabalhar para dentro de uma BN tradicionalmente conservadora e fechada. O director da BN chamou a si, com clareza e com a convicção que lhe conhecemos, a função de organismo normativo, abrindo a BN à cooperação com este embrião de rede. Sei como é difícil reconstruirmos com nitidez um passado relativamente recente, mas tão radicalmente distinto, como era o panorama institucional e tecnológico em 1985. Não havia computadores em lado nenhum e, para ilustrar o tipo de colaboração inexistente, recordo que em certa ocasião, quando o Prof. Manuel Villaverde Cabral contactou a Biblioteca do Porto para a visitar (e eram, então, as duas principais biblio87

04 MVCabral Cap. 4_Layout 1 6/24/13 8:52 AM Page 88

Teresa Patrício Gouveia

tecas do país), lhe foi dito que isso era motivo de grande alvoroço, pois em 17 anos era a primeira vez que acontecia. Manuel Villaverde Cabral teve na sua dupla capacidade de sociólogo e utilizador interessado um papel decisivo em toda esta mudança, conhecendo perfeitamente a sociedade portuguesa a quem ela se destinava e, por outro lado, as limitações que encontrava como académico e cidadão consumidor, como grande consumidor, eu direi, conhecendo o leque inesgotável dos seus interesses. Não poderei nunca, não se poderá, referir algumas das políticas lançadas nesses pouco mais de quatro anos, sem mencionar um excepcional conjunto de pessoas que, como o MVC, tiveram responsabilidades directas na sua formulação e execução: José Mattoso, José Afonso Furtado, António Lamas, Luís Salgado de Matos ou Fernando Alçada, para mencionar apenas alguns. Não se poderão, pois, referir estas transformações na área do livro e da leitura em Portugal, sem falar no Prof. Manuel Villaverde Cabral. Como diz uma daquelas pessoas, José Mattoso, a história só sabe o que acontece e ignora o futuro e o condicional. Mas, mesmo assim, atrevo-me a dizer, com convicção, que, neste domínio, este país não seria o mesmo, ou não o seria tão cedo, se não fosse o contributo de Manuel Villaverde Cabral.

88

05 MVCabral Cap. 5_Layout 1 6/24/13 8:52 AM Page 89

Richard A. H. Robinson

Capítulo 5

Homenagem a Manuel Villaverde Cabral * Primeiro: tenho de dizer que é para mim uma grande honra estar aqui presente para participar na comemoração dos setenta anos do Professor Doutor Manuel Villaverde Cabral. Por isso, quero dizer «muito obrigado» pelo convite do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Manuel e eu somos coetâneos, nascidos no mesmo ano em ilhas diferentes, mas sob a ameaça nazi. Segundo: duas perguntas. Como é que este estrangeiro começou a fazer pesquisas sobre Portugal? E como é que eu encontrei o Manuel? Fui historiador da Espanha do século XX mas, durante a minha permanência em Madrid, preparando a minha tese de doutoramento, passei os meus primeiros três dias em Lisboa, em Maio de 1964, para me encontrar com um político espanhol (nomeadamente, D. Pedro Sáinz Rodríguez) exilado na Rua Alexandre Herculano. Afortunadamente, fui apresentado a uma boa família portuguesa e estava encantado com os costumes dos portugueses, então (como agora) mais brandos do que na capital espanhola. Estava encantado também com a beleza de Lisboa (ainda sem Ponte), pela paisagem de Sintra e pelas cores matinais que via do comboio na fronteira. Na minha segunda visita, em 1969, acompanhei a minha mãe num giro turístico (Lisboa, Leiria, Aveiro, Porto, Barcelos, Coimbra, Fátima, Santarém, Évora, Setúbal – tudo em dez dias) e estas experiências de um país tão agradável, assim como umas breves férias em 1971 na Madeira e nos Açores, decidiram-me, quando terminado o meu livro sobre a Se-

* Texto lido no Colóquio e Sessão de Homenagem ao Prof. Manuel Villaverde Cabral no ICS, 27 de Setembro de 2010.

89

05 MVCabral Cap. 5_Layout 1 6/24/13 8:52 AM Page 90

Richard A. H. Robinson

gunda República espanhola, a começar investigar a então pouco conhecida, pelo menos lá fora, história portuguesa do século XX. Comecei por aprender a língua com o livrinho Hugo’s Portuguese in Three Months e um dicionário (sou autodidacta, como podem ver). Com umas palavras encorajadoras de Hermínio Martins e do tristemente falecido Oliveira Marques, comecei as pesquisas, com a generosidade de uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, sobre a Igreja durante a Primeira República. Para isso, passei dois trimestres em Portugal: o primeiro, de Janeiro a Março de 1973, no consulado então sombrio de Marcelo Caetano mas com os graffiti vermelhos do MRPP cada manhã no Metro da Rotunda; e a segunda, de Julho a Setembro de 1974, no consulado do general Spínola. Ainda que continuasse os meus estudos sobre a história religiosa, comecei a fascinar-me com a nova política em Portugal. Depois de acabar o meu primeiro artigo sobre a «questão religiosa» e de terminar um livro sobre Portugal desde a Ditadura Militar até 1976 (Contemporary Portugal: a history, publicado em 1979), dei-me ao propósito de investigar mais intensamente a política portuguesa, com a ideia de escrever um livro pan-ibérico sobre os partidos políticos e as eleições na Península (não esquecendo Andorra nem Gibraltar). Com os anos, o meu projecto, demasiado grande e sempre a mudar, foi inevitavelmente ultrapassado pelas pesquisas, os artigos e os livros dos académicos – e académicas – locais e agora jamais vai ser escrito. Mas um constante estímulo para os meus estudos nos últimos vinte anos do século passado tem sido o Manuel, que encontrei pela primeira vez em Oxford, quando ele era Gulbenkian Fellow, contribuindo com um paper em St. Antony’s College, sobre os primeiros grupos fascistas portugueses – tema que então a mim também me interessava. Li com admiração o seu livro Portugal na Alvorada do Século XX, ainda sob influência dos seus mestres franceses. Nos anos seguintes, temo-nos reencontrado em vários colóquios e encontros académicos em Oxford, em New Hampshire, e uma vez em Sintra – e uma vez (agora como o Papa) em Birmingham. Foi desta última vez que o Manuel ficou a saber que as minhas pesquisas sobre os horários de comboios foram defeituosas: por isso, outra vez, «desculpe». Os estudos sobre a política e a história de Manuel têm mais perspectivas sociológicas do que os meus. Eu era só observador, mas ele era também practicante: lembro o Clube de Esquerda Liberal (1984). Sempre gostei da sua inteligência, da sua larga sabedoria, da sua animação e vivacidade, da sua generosidade de espírito e da sua personalidade excepcional. Neste contexto, lembro umas palavras de um amigo e historiador 90

05 MVCabral Cap. 5_Layout 1 6/24/13 8:52 AM Page 91

Homenagem a Manuel Villaverde Cabral

norte-americano, que me dizia que o Manuel era o primeiro historiador português que ele encontrou que era um ser humano! Quero terminar observando que o Manuel tem investigado e tem escrito sobre muitos temas de sociologia: uma vez sobre a juventude, mas agora sobre os idosos – tema que temos de esperar que não se tornará para ele pessoalmente demasiado pertinente nos próximos anos. Parece que, aos 70 anos, é ainda jovem. Neste ano centenário do golpe republicano, quero saudar o nosso Manuel, que tem feito tantas coisas pelas ciências sociais em Portugal. Ainda que não creia que o nosso Manuel tenha o propósito de se exilar em Inglaterra, vou terminar com umas palavras em inglês: I pay my tribute to Manuel, a scholar, a gentleman and a friend.

91

05 MVCabral Cap. 5_Layout 1 6/24/13 8:52 AM Page 92

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 93

Parte II História e humanidades

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 94

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 95

Eduardo Cintra Torres

Capítulo 6

A multidão medieval e moderna: representações políticas em Fernão Lopes e D. Francisco Manuel de Melo Justificação Esta tentativa de ensaio, ou este ensaio de tentativa (para sobrecarregar o pleonasmo com um quiasmo), resulta da investigação sobre o fenómeno social da multidão realizada para a dissertação de doutoramento em Sociologia no ICS, orientada por Manuel Villaverde Cabral (Torres, 2013). Por falta de espaço, reduzi a um parágrafo na tese o subcapítulo em que procurava analisar as diferenças das relações entre elite político-social e multidão popular em dois momentos importantes da história nacional: 1383-1385 e 1637-1640 Surge agora a oportunidade de, através da reformulação do texto original, homenagear o meu orientador. Manuel Villaverde Cabral foi o orientador de que eu precisava: alguém que orientasse sem parecer que o fazia, um cientista social multidisciplinar pela curiosidade e cultura em processo permanente de acumulação avançada, alguém abençoado pelo deus da inteligência, um amigo, e um intelectual com um percurso académico pelo caminho das ciências sociais que permite uma ampla perspectiva das coisas do mundo — da História para o estudo da sociedade e da coisa política contemporâneas. Escrevi este ensaio, que praticamente nada retoma da dissertação, por nele se cruzarem três áreas de interesse para Manuel Villaverde Cabral e para mim: a história, a sociologia e a literatura.

Introdução A especialização crescente e a microinvestigação nas ciências sociais podem ensombrar a relação estreita inicial entre a sociologia e a história 95

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 96

Eduardo Cintra Torres

quando se afirmaram como áreas de saber científico. Fustel de Coulanges definiu a história como «a ciência dos factos sociais, isto é, a própria sociologia» (apud Lukes 1985, 61). E Durkheim considerava o método histórico como «um auxiliar indispensável à sociologia» (apud idem, 404), apelando «desde os seus primeiros textos à maior aproximação possível entre a sociologia e a história» e defendendo a comparação e a taxonomia estrutural com a dimensão histórica por fundo (Bellah 1959, 447). Até ao fim da vida, Durkheim sublinhou a importância da história para a compreensão do homem e da sociedade. No seu último ensaio, de 1917, escreveu que «a história não é apenas o quadro natural da vida humana, o homem é um produto da história. Se o retiramos da história, se se tenta concebê-lo fora do tempo, fixado, imóvel, desnaturaliza-se-o. Esse homem imóvel não é homem» (Durkheim 1975, 323). Outro dos fundadores da sociologia estrutural-funcionalista, Max Weber, dava igual importância à história como campo de investigação sociológica e de atenção às mudanças sociais. Ambos praticaram em obras maiores da sociologia a relevância que atribuíam à história como método e como conhecimento. Décadas mais tarde, o paradigma estruturalista foi acrescentado pelo paradigma do dinamismo, sublinhando as mudanças pela acção social (Touraine 1965). Este ensaio pretende fazer uma breve análise sociológica a partir de fontes históricas. Deste modo, «tem por objecto as generalidades (conceitos, tipos, regularidades, princípios) que servem para explicar um acontecimento», servindo este como exemplo «para ilustrar certa regularidade, certo conceito ou certo ideal-tipo» (Veyne 1976, 12), e pretendendo igualmente, a par da constatação de elementos estruturais perenes, captar as mudanças ocorridas no fenómeno multitudinário. Recorro a dois exemplos para recortar a regularidade e a mudança da mais efémera e repetida das formas sociais, a multidão, definida como um ajuntamento temporário de pessoas reunidas com um objectivo. A questão multitudinária inscreve-se na questão mais ampla, e essencial, dos «muitos», do seu controlo no âmbito da ordem social, matéria de reflexão política desde que ela se constituiu em Platão e Aristóteles, representantes de posições diferentes, se não antagónicas, que subsistem até ao presente. Os acontecimentos aqui abordados são as acções multitudinárias em dois momentos significativos da história portuguesa: a crise de 1383-1385 e as «alterações» de Évora em 1637, situadas na antecâmara da «restauração» de 1640. Não se trata de analisar os eventos na sua plenitude, mas apenas de verificar e comparar o papel da multidão na acção política, a relação entre 96

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 97

A multidão medieval e moderna

as classes em palco no que se refere ao recurso à acção multitudinária e o significado político desta. Recorrendo a fontes de alta qualidade literária e política — respectivamente Fernão Lopes e D. Francisco Manuel de Melo —, haverá que tomar em consideração a interpretação dada aos acontecimentos. Sobre o contexto temporal, ambos escrevem quando o devir dos acontecimento resultou vitoriosamente, se não para os revoltosos, pelo menos para as forças políticas nacionais opostas a Castela. Não escrevem, porém, da mesma posição: Lopes pertence à elite vencedora do rei D. João I; Melo escreve da prisão, envolvido num caso judicial, e sem ter ainda resolvido em definitivo a sua reentrada no sistema político, devido à ligação com o governo de Madrid antes de 1640; a sua Epanáfora Política — «o mais notável documento e interpretação de história social desde Fernão Lopes» (Saraiva e Lopes 1996, 464) – é dedicada às alterações de Évora, em que interveio como negociador; foi escrita em 1649 e publicada em 1660. Quer Lopes quer Melo têm uma interpretação favorável dos tumultos e integram-nos na luta contra o reino vizinho, dando-lhes uma interpretação de «alta política», que poderá não ter sido a dos intervenientes. Aliás, recorremos no caso dos tumultos de Évora ao testemunho de Manuel Severim de Faria, que os mantém na esfera mais típica do seu tempo: turbas violentas em luta contra os impostos, sem pôr em causa a estrutura política luso-castelhana. Os dois relatos permitem reflectir sobre temas recorrentes na teoria da multidão, como as questões da espontaneidade, da liderança, da «consciência política» dos movimentos, considerando que esta teria de exprimir-se necessariamente de modo diferente consoante os grupos sociais. Poderemos também apreciar brevemente a diferente interacção entre as elites e o povo, apontando para o que consideramos um distanciamento das elites face às classes populares, portanto, também nas ocorrências multitudinárias. Como representações, verificamos que o cronista de D. João I e o prisioneiro no reinado de D. João IV se apropriam de forma brilhante dos movimentos populares para sancionar o desamor à facção pró-castelhana e a ligação à facção anticastelhana. Deste modo, utilizam a multidão popular como representação da nação em potência. Os textos de Lopes e Melo servem-nos, pois, em simultâneo, como fontes factuais e de representações da multidão. Como fontes, poderemos verificar que a multidão, instável, por vezes violenta e terrível, não era desprovida de direcção política e de uma atitude política. Neste aspecto, a caracterização de turba «pré-política», que Hobsbawm atribui à população semiorganizada das cidades e disponível para a acção multitudinária (Hobsbawm 1978, 116-118), não se adequa às multidões de 1383 e de 97

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 98

Eduardo Cintra Torres

1637 descritas e narradas pelos nosso autores: nos casos concretos, elas exprimem-se politicamente contra e favor, através da causa, da intenção, da acção ou do elemento discursivo que chegou até nós; em termos gerais, o conceito de «pré-política» olha anacronicamente para o passado anterior à Revolução Francesa, ignorando que a expressão política — qualquer uma, mas certamente mais a das classes baixas — teria de ser diferente na Idade Média e na Idade Moderna. Pode mesmo dizer-se que qualquer motim, mesmo o que se resume ao roubo colectivo, não pode não ser considerado politicamente, pois implica a reunião colectiva, a acção contra certas pessoas ou a sua propriedade, a violação da legalidade, etc. (Do mesmo modo, a dificuldade em considerar-se os «acontecimentos revolucionários» pós-1383 como uma revolução restringe o conceito a uma «transformação radical nas estruturas materiais da sociedade», o que não teria acontecido, mas apenas uma «significativa viragem na História portuguesa» [Sousa 2010, 146-148]. Não parece pouco para uma não-revolução resultante de «acontecimentos revolucionários» — em itálico.)

A multidão popular na Idade Média e na Idade Moderna Antes da era industrial, a multidão era aceite como parte da vida social: era «tolerada e acomodada. Deve ter havido alguma coisa nas sociedades feudais que lhes permitiu encontrar um lugar para a multidão» (McClelland 1989, 63). A multidão popular era um fenómeno social «natural» com o qual o poder convivia «naturalmente». O objectivo dos motins não era por norma o derrube do poder constituído e a sua substituição por outro poder (a qual era, porém, concebida em utopias motivadas religiosamente). Nem tinha de ser revolucionário: a quase totalidade das multidões de dissensão que ocorreram ao longo dos milénios não tinham objectivos revolucionários. O rei Filipe IV escreveu à duquesa de Mântua: «tumultos populares se vêem em cada dia, sem nenhum inconveniente» (apud Serrão 1967, xl). O poder era gerido tendo em conta a reacção popular se ela se manifestava da forma possível, isto é, em multidão, que hoje poderíamos englobar no conceito de opinião pública. Mais: o poder podia mesmo considerar a hipótese de provocar tumultos para daí tirar dividendos, como num dos três caminhos recomendados pelo conde-duque de Olivares em 1624 ao mesmo Filipe IV para se tornar rei de uma Espanha unificada: embora não tão «justificado» como os outros conselhos, tratava-se de o rei visitar um dos seus reinos 98

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 99

A multidão medieval e moderna

e «fazer que se ocasione algum tumulto popular grande», reprimi-lo e, havendo sossego, «como por nova conquista assentar e dispor as leis em conformidade com as de Castela». A acção da multidão em geral neste período poderá, como a da turba urbana analisada por Hobsbawm, ser «considerada como reformista, na medida em que raramente, ou nunca, pensava na construção de uma nova ordem da sociedade» (Hobsbawm 1978, 117). Nos motins, «não se contesta o sistema nem a pessoa do senhor, mas sim actos de detestados rendeiros ou contratadores», como refere um historiador a respeito de acções multitudinárias no tempo do rei D. João V; «não há ataques ao poder constituído» (Almeida 1984, 333, 335). Tratava-se de evitar o domínio exagerado por parte da elite social, como escreveu Maquiavel, no texto que a seguir citamos. Pode dizer-se que os motins da «muita gente», geralmente localizados, rurais ou urbanos, faziam parte da vida das nações como forma de expressão «natural», porventura sem alternativas, de defesa das comunidades. Não ameaçavam a estrutura do poder, eram intermitentes e breves: os motins são de todos os dias, disse também o conde-duque (Oliveira, 1984: 289). Todavia, não se podem excluir apropriações pelo elemento popular das instâncias do poder em diversas circunstâncias, por breves períodos e em localidades concretas, nem se pode desconsiderar o valor de mundo político alternativo que teria para os amotinados o momento liminar, para aplicar a expressão de Victor Turner a períodos de conflito (Rothenbuhler 1988). Em Évora, em 1637, durante sete meses — período extenso sem qualquer relação com o poder que qualquer multidão possa ter — «estabeleceu-se na cidade um poder efectivo, conquanto clandestino, de características perturbantes à face da lei e dos costumes» (Serrão 1967, xxxvii), o qual resultava, na versão de Alexandre Herculano em 1839 dos tumultos de Évora, de «concelhos, ajuntamentos populares, ou clubes, como hoje lhes chamariam» (apud Barros s. d.). A sua concretização «mediática» ocorria nas inúmeras «convocações, cartas, éditos e ordens» do Manuelinho, colocados de noite nas paredes da cidade e que representavam não só uma expressão de opinião pública como eram instrumento de um poder alternativo em período liminar: Amanheciam cada dia, fixados pelas praças e portas da Cidade, Provisões, Bandos e Decretos pertencentes ao estabelecimento de sua defensa [quem o Manuelinho representava]: debaixo desta forma se escreviam e despachavam cartas às Câmaras do Reino, se despediam os ministros de seus ofícios e se acomodavam nele outros, em virtude de um simples provimento assinado

99

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 100

Eduardo Cintra Torres por Manuelino de Évora. Chegou a tanto a autoridade de seus mandados, que bastava, para que um Cidadão, Fidalgo ou ministro deixasse a cidade, casa e ofício, ou entregasse sua fazenda, ser-lhe assi mandado pela incerta voz de Manuel; porque já se sabia que nela era inclusa tacitamente a vontade do Povo, a que nenhum poder resistia [Melo 1967, 38].

Em resumo, não se pode excluir a multidão e a sua expressão e acção como forma política, e, portanto, um ataque ao poder constituído e sua substituição por um período curto, liminar. Não sabemos, à falta de documentos, qual o nível de politização da maioria dos tumultos ou levantamentos e, daqueles que conhecemos, o ponto de vista não é normalmente o dos revoltosos. Daí que, de novo, Fernão Lopes e Francisco Manuel de Melo sejam fontes significativas, para não dizer exemplares, ao praticarem, como se diz hoje, o contraditório e darem voz ao «outro». A participação de delegados do povo nas cortes portuguesas em representação dos concelhos, que permite chamar-lhes «areópago do povo» (Mattoso e Sousa 1993, 512), decerto dirimia conflitos e evitava a eclosão de multidões na rua, mas o carácter ao que sabemos inorgânico da opinião popular levava-a a exprimir-se de modo multitudinário espontâneo (ou aparentemente espontâneo, como em 1383 e em 1637), inesperado e temido, em especial na Idade Moderna, quando o povo se torna «aquele enfurecido monstro», na expressão do cronista do marquês de Marialva sobre um motim em Lisboa pouco antes das alterações em Évora, ou o «monstro cego», na do conde da Ericeira a respeito de outro motim em Lisboa, em 1641 (apud Serrão 1967, xxviii e xxx). O recurso à multidão era necessário, então como em qualquer outra época, para exprimir posições políticas ou outras e para agir em defesa própria ou contra alguma forma de poder. Nesse sentido, compreende-se a aceitação na Idade Média da multidão como realidade «natural» na sociedade. Podemos supor que essa «naturalidade» se respira em Fernão Lopes, mais como realidade do tempo do que uma expressão progressista avant la lettre do cronista. Esse carácter intrínseco da multidão na vida social seria mais acentuado ainda por se verificar alguma comunhão e convívio no espaço público entre os grupos sociais. Esta aceitação da multidão aplica-se não só à sua expressão política, mas também às multidões religiosas e festivas. A comunhão de D. Pedro I com a população, nomeadamente de Lisboa, em danças e festas, «nas quais de dia e de noite andava dançando por mui grande espaço», espantava o cronista, que menciona ainda como, ao regressar a Lisboa, «saíam-no a receber os cidadãos e todos os dos mesteres com danças e trebelhos e ele saía dos ba-

100

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 101

A multidão medieval e moderna

téis e metia-se na dança com eles assim ia até ao paço», e ainda como no seu tempo se distribuíam «vacas inteiras» ao povo de Lisboa (Lopes 2007, 59). Embora o cronista se espante com tal procedimento, estes factos assinalam que, na Idade Média, a relação entre os de cima e os de baixo tinha uma proximidade que depois desapareceu. A multidão enquanto fenómeno efémero de expressão colectiva estava, pois, pelo menos parcialmente incorporada na vida social e política. Era uma forma habitual de comportamento colectivo e não gerava a mesma oposição da elite letrada em épocas posteriores, como referia o sociólogo americano Charles Cooley em 1909: «A opinião de que a multidão é irracional e degenera é característica de uma sociedade intrincada em que a leitura em grande parte tomou o lugar da assembleia como estímulo do pensamento» (Cooley 1909, 155). A multidão emanava de uma parte da sociedade (não necessariamente uma classe) e não passava a ser um corpo estranho à sociedade que a gerara, mesmo se o seu comportamento fosse condenável. Um exemplo ilustrativo, pela negativa, da assimilação da multidão à sociedade política (ou civil, ou religiosa) terá sido a da reacção régia ao massacre de uma parte importante da comunidade de judeus convertidos de Lisboa, em 19 de Abril de 1506, no reinado de D. Manuel I, em resultado de uma acção colectiva própria do que mais tarde se chamará uma multidão criminosa. Terão sido mortas cerca de 3000 pessoas, homens, mulheres e crianças, com selvajaria e brutalidade invulgares. As acções da multidão foram instigadas ou participadas por dominicanos e as autoridades na cidade (o rei estava ausente) não reagiram (Mateus e Pinto 2007). Os castigos depois aplicados pelo poder eclesiástico e real ao massacre revelam que a justiça considerou a acção da multidão enquanto colectivo e aplicou-a em conformidade, condenando malfeitores, a cidade em conjunto e as elites que permitiram os desmandos, deste modo considerando a multidão como consequência de má governação. Esta visão da justiça antiga, que aceitava o crime «como facto colectivo» e a «culpabilidade colectiva» (Silva 1905, 127, 252), será recuperada e teorizada no final do século XIX por Gabriel Tarde, Scipio Sighele, Gustave Le Bon e outros autores ao teorizarem sobre a multidão criminosa (Ginneken 1992; Torres 2013), interessando-nos aqui por revelar a aceitabilidade da multidão enquanto forma natural de expressão colectiva. Os tumultos populares tiveram, no início do século XVI, um defensor acérrimo em Nicolau Maquiavel. Tal como encontramos em Fernão Lopes a respeito de 1383, Maquiavel distingue a «terrível [...] multidão amotinada e sem liderança» da que for dirigida por «um chefe que a con101

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 102

Eduardo Cintra Torres

trole», ou que for «regulada por leis» exprimindo-se com «bondade», pelo que os custos implícitos na potência de violência na multidão não o demovem de, politicamente, a considerar necessária para desbloquear divergências políticas (Maquiavel 2010, 148-157). Para o pensador florentino, os tumultos resultavam do estado natural de dissensão na sociedade, na relação entre nobres e plebeus, vendo naqueles «um desejo grande de dominar e nestes somente o de não serem dominados» (idem, 31). Daí que aconselhasse a existência de uma estrutura política em que pudesse haver «diálogo» e a «gestão de tumultos e dissensões», «um expediente através do qual o Povo possa expressar os seus anseios», como sucedeu com a criação dos Tribunos da plebe na República Romana (idem, 49, 54). Essa «via legal» permitiria que as repúblicas possibilitassem «uma forma de desafogar a ira que a multidão possa sentir contra um cidadão, porque, quando estas formas legais não existem, recorre-se a formas ilegais» (idem, 56-57). Dado que «um povo que detenha o poder e esteja bem ordenado será tanto ou mais estável, prudente e grato do que um príncipe que seja considerado sábio» (idem, 152), considerava os tumultos faccionais da República Romana como «a verdadeira origem da liberdade» (McClelland 1989, 80). Se esta posição faz de Maquiavel o «primeiro verdadeiro defensor da multidão» (ibidem) a nível teórico, encontraremos em Fernão Lopes um seu defensor no caso concreto da crise dinástica de 1383-1385. Antes, porém, devemos assinalar como o Renascimento representou uma alteração profunda na «formatação dos valores e atitudes da elite na primitiva Europa moderna» e na relação entre a elite e o povo, tema que «não tem recebido a atenção que merece» (Roberts 2000, 6). Em parte, essa mudança resultava da recuperação dos padrões da Antiguidade, cuja elite culta em grande medida espelhava o desdém pela multidão e pela multitude. Maquiavel já denota esse escárnio pelo «vulgo», que «se prende com o que parece e com o desenlace das coisas», destacando a importância de se enganar a maioria, pois, mostrando a prática que o príncipe quebra sempre a palavra dada, precisa de saber «mascarar [essa natureza] bem e ser grande simulador e dissimulador» num mundo em que «não existe senão vulgo, pois os poucos não têm aqui lugar quando os muitos têm onde se apoiar» (Maquiavel 2008, 198). Em Fernão Lopes encontraremos uma mentira na base da formação da multidão; nas alterações de Évora verificaremos como os porta-vozes populares acusavam a elite de querer enganar. Na alvorada da Idade Moderna, a necessidade de distinção entre a elite e o povo encontra-se concretizada na visão «pastoral» do povo 102

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 103

A multidão medieval e moderna

(Empson 1974), idealizado numa vida rural simples de pastores no «fresco prado» vistos à distância pelo poeta erudito escrevendo para uma nova elite erudita. O modo pastoral cria «uma relação bonita entre os ricos e os pobres» (idem), mitificação que antes era desnecessária. Na vida prática, o mesmo distanciamento exprime-se nos conselhos do best-seller renascentista de 1528 O Cortesão, de Baldesar Castiglione, a essa nova elite educada. O padrão que sugere para o comportamento dos membros da elite tornava impossível o contacto entre dirigentes e dirigidos que encontramos na Idade Média, por exemplo, nas crónicas de D. Pedro e D. João I por Fernão Lopes, misturados na multidão ou lidando directamente com ela em festas ou nos tumultos. Castiglione condena o hábito dos jovens cortesãos que, em ocasiões festivas, dançam todo o dia ao sol com camponeses, e jogam com eles ao pau, à luta, na corrida e no salto, o que seria agora um comportamento indigno da sua posição. Como regra, Castiglione recomenda «fugir da multitude da plebe» «e mais que todas da ignóbil» (Castiglione 1965, 107, 109). Regressava de Roma a voz de Horácio: «Odi profanum vulgus et arceo», «odeio a multidão profana e afasto-a» (Odes, III, 1, v. 1, apud Millet 1992, 239). Os medos produzidos em consequência das tensões sociais, expressos na crescente agitação popular tumultuosa a partir do século XVI e em especial no século XVII, são, em parte, «responsáveis pelo facto de a aristocracia cortesã ser muito mais sensível aos gestos das classes inferiores do que a nobreza de guerreiros da Idade Média e contribuem para que ela afaste do seu círculo, com enfática severidade, tudo o que é ‘vulgar’» (Elias 1990, 243). O «processo civilizacional» (Elias 1989 e 1990) passava não só pela etiqueta à mesa e no salão mas também por este afastamento na prática, que poderá ter contribuído não só para a atitude teórica perante a multidão depois de Maquiavel e do Renascimento e até ao presente, mas também para a sensação da existência de mundos separados entre as elites e o povo, cujo expoente terá ocorrido entre o final do século XIX e o início do século XX. O processo civilizacional de sofisticação das elites na Idade Moderna corresponde ao desenvolvimento das universidades, à afirmação do poder real, ao desenvolvimento do Estado e à formação de exércitos permanentes. A diminuição da reunião das Cortes em Portugal é um sinal desta evolução, sendo significativo para o nosso argumento, todavia, que após os dois processos políticos em análise de afirmação nacional com a participação da expressão popular multitudinária os monarcas tenham convocado esse «areópago do povo» com invulgar frequência. A partir do século XVII a expressão política é em geral desfavorável à multidão, qualquer que ela seja, como em Hobbes. Braudel refere para 103

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 104

Eduardo Cintra Torres

este período um novo «mal-estar» social devido à polarização social entre a elite económica e «uma massa de pobres cada vez mais numerosos e miseráveis, lagartas ou besouros, insectos humanos, infelizmente superabundantes. Uma racha abre em duas as sociedades antigas e abre abismos que nada voltará a fechar. [...] Progressivamente, tudo é conquistado pelo mal-estar, tantos os Estados como as sociedades, tanto as sociedades como as civilizações» (Braudel 1949, 660). Na literatura, o povo desaparece progressivamente do século XVI para o século XVIII (Auerbach, 2003). Compreende-se que o cortesão ou o nobre do século XVI já não andasse com a multidão nas ruas da cidade, como no século XIV.

Representação da multidão de 1383 em Fernão Lopes Fernão Lopes é uma fonte significativa para o estudo da multidão na história porque lhe atribui, no processo político de 1383-1385, uma forma deliberativa, política, utilizada pela elite alternativa e pelos líderes populares para a tomada do poder. A multidão fazia parte. Segundo A. J. Saraiva, «as assembleias dos vilãos quer em magotes, desarrumadamente, quer para ouvir e aclamar um orador, são tão frequentes e caracterizadas em Fernão Lopes que representam uma instituição, legalizada pelo direito consuetudinário» (Saraiva 1997, 21). Essas assembleias ou «magotes» exprimiam o pensamento das camadas populares, pelo que podemos sem hesitar chamar a essa expressão de vontade colectiva a opinião pública, a qual só muito raramente, ao que se saiba, se tornava à época escrita ou publicada, como aconteceu neste caso décadas mais tarde nas crónicas de Fernão Lopes: «A voz popular, a opinião pública, tem um papel funcional nestas crónicas. Sempre que relata um acontecimento saliente ou de grande importância, Fernão Lopes dedica algumas páginas, às vezes um capítulo inteiro, a expor o que pensavam dele as pessoas, e em especial os povos das vilas e cidades. É uma espécie de coro», comenta Saraiva (1997, 27). A reunião pública multitudinária era, como na Antiguidade, uma forma de comunicação por excelência. Era também no espaço público que se davam a conhecer, por ordenanças, as decisões do poder. O rei Carlos VI de Franca (1368-1422) indicava esta interacção com os súbditos ao afirmar nas ordenanças que ouviu o «clamor» dos súbditos e o fazia «publicar» a fim de que «nenhum o ignore» (apud Colas 2006, 341). A política faz-se também através da acção da multidão, a qual pode ser dirigida ou manipulada por líderes, como em 104

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 105

A multidão medieval e moderna

1383, mas podendo esta igualmente ser ultrapassada pelos acontecimentos; a multidão pode adquirir o carácter que mais tarde permitiu catalogá-la como criminosa, cometendo excessos, os quais constituíam noutros cronistas medievais o elemento mais saliente da narrativa. Mas, em 1383, como em 1637, a multidão é apresentada como motor de «alta» política: em 1383 consagra um «direito novo», vencendo o dos alcaides dos castelos e «revogando todos os laços de vassalagem senhorial» nas Cortes de Coimbra (Saraiva 1997, 26-28); em 1637 a revolta popular condicionará a oposição por enquanto surda de parte da nobreza em torno da Casa de Bragança e servirá de pretexto à corte madrilena para tentar levar a cabo a sua intenção de incorporar Portugal definitivamente no reino de Espanha e imobilizar a nobreza independentista portuguesa. Ambos os acontecimentos, com grande repercussão política, tiveram origem na acção multitudinária das camadas populares. Sobre 1383 escreve Fernão Lopes: «São às vezes os altos feitos haver começo por tais pessoas, cujo azo nenhum comum povo podia cuidar que par eles viesse» (Lopes 1973, 10). Falava de Álvaro Pais, homem popular que tinha ocupado um posto na administração, a quem atribui a estratégia revolucionária. Pais sabia falar em público, o que já é referido na crónica de D. Fernando, a propósito do alfaiate Fernão Vasques, «homem bem razoado e jeitoso para o falar» (Fernão Lopes, apud Serrão 1978, 32). A referência à capacidade retórica é compreensível, por ser um elemento que caracteriza o meneur das multidões, teorizado desde Aristóteles até ao presente. Em 1383, a multidão era uma necessidade política vital: o Mestre de Avis «falou muito» de como, «mormente dentro da cidade, cumpria ter alguma ajuda do povo». O assassínio do conde João Fernandes foi combinado entre ele, Pais e o conde de Barcelos e do plano falavam «especialmente como se poderia haver a ajuda do povo». Mesmo assim, continuava «duvidando muito o mestre de a ajuda do povo não se seguir como dizia Álvaro Pais». Para não darem conhecimento do plano, inventaram um logro para todos enganar, incluindo o povo: o pajem do mestre sairia pela ruas a cavalo gritando uma frase em que Saraiva vê o carácter de slogan (1997: 28), um grito de acção da multidão que Canetti analisará (1995): «Acorramos ao Mestre, amigos, acorramos ao Mestre, que filho é del-rei D. Pedro.» Assim «desta guisa se juntaria toda a cidade em sua ajuda» (Lopes 1973, 12, 15, 21). O slogan mobilizador é politizado, ao referir a filiação real do Mestre num rei popular e anterior aos tempos de crise e de guerra. A multitude, que já tinha a opinião pública contra a solução política da sucessão de D. Fernando, facilmente se incendiou depois de o mestre 105

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 106

Eduardo Cintra Torres

ter morto o conde: «a volta da gente», ou tumulto, «começava já de ferver pela rua». «Grande parte do povo, aceso com brava sanha», logo faz a sua aparição, obrigando de baixo da Sé os que subiram à sua torre que matassem o bispo de Lisboa, que era castelhano. O bispo receava o ajuntamento ou «união, o que todo o sisudo deve de recear», mas «a cega sanha, que em tais feitos nenhuma coisa esguarda começou a arder [...] nos entendimentos do povo». O crime da multidão (não juridicamente diferente do assassinato do conde Andeiro) é, assim, resultado, não de um acto frio e racional como este, mas de cega sanha, argumentando a multidão politicamente, porém, ao espicaçar a morte do bispo aos que estavam junto dele: «Já vos tornastes Castelhanos como ele?» Face à pressão dos de baixo, tiveram aqueles «tão grande receio» que logo o bispo foi morto. Face à acção e opinião da multidão, nada se pode fazer, diz o cronista: «posto que a algumas pessoas tais cousas parecessem mal e desonestamente feitas, nenhum era ousado dizer o contrário»; noutra ocasião, gerou-se entre as gentes da cidade «uma união de mortal ódio contra quaisquer que sua intenção não tinham, em tanto que nenhum lugar era seguro àqueles que não seguiam sua opinião» (idem, 20, 24, 25, 26, 29). O cronista realça, portanto, as duas faces da multidão: por um lado, perigosa e criminosa; por outro, o expediente político necessário para a prossecução de fins mais importantes; mas o relato é claro na denotação de que a multidão sabia o que queria e agia segundo objectivos políticos. As pessoas deixavam os seus trabalhos e juntavam-se em «magotes» a falar dos acontecimentos, nesse dia e no seguinte, o que indica uma formação de opinião pública, e com líderes, na qual o movimento social multitudinário se inscreve, o que põe em causa análises de exagerada espontaneidade, ausência de liderança e de total despolitização. Passada «a hora da efervescência», parecia terminada a revolta popular, mas «a recusa da rainha D. Leonor em pactuar com os amotinadores e amotinados vai dar origem à revolução que só então de facto deflagra» (Serrão 1978, 41). Segundo o cronista, numa reunião do agora seu líder Mestre de Avis, com «muito povo da cidade» no mosteiro de São Domingos, «então o comum povo livre e não sujeito a alguns que o contrário disto sentissem» pediu ao Mestre de Avis que aceitasse ser «Regedor e Defensor dos Reinos» (Lopes 1973, 46). Na versão do cronista, a legitimação do Mestre como regedor e defensor do Reino (e depois como rei) resultava do consentimento popular expresso nas assembleias de rua antes ainda da aprovação dos dirigentes legítimos da cidade: «Sendo assim todos juntos naquela Câmara da cidade, foi razoado por parte do Mestre como todo o povo miúdo o recebia por seu regedor e defensor e que ora era a eles requerido 106

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 107

A multidão medieval e moderna

se lhes aprazia outorgar o que todo aquele povo tinha outorgado.» Na própria reunião, os cidadãos «maiores» (os burgueses) foram forçados pelos do povo miúdo que ali estava, em nome de quem falou um tanoeiro, ameaçando os outros, ao que os cidadãos da Câmara, vendo «o alvoroço que todos faziam e que lhes não cumpria ter nisto outro contrário jeito, outorgaram então quanto os outros tinham prometido» (idem, 48). Noutras localidades, não podendo os pequenos opor-se às grandes pessoas, era mais difícil a «união» ou levantamento insurreccional, ou a referida coacção. Todavia, o cronista dá conta de outros motins vitoriosos, com acções da multidão contra a propriedade e a vida. Sobre a constituição da arraia-miúda, Lopes indica a presença de rapazes e também de mulheres, grupos que ao longo dos séculos serão referenciados nas multidões, como em 1637.

Representação da multidão em D. Francisco Manuel de Melo Precisamente dois séculos e meio mais tarde, a revolta iniciada em Évora sob o nome de Manuelinho — um gigante deficiente mental a quem os revoltosos atribuíam os documentos que divulgavam pela cidade — não encontra a mesma conjugação e interacção pública entre as elites e o povo, como em 1383, até pelas complicadas contingências políticas que não cabe narrar aqui. Anote-se que se verifica que a governação sobre as camadas populares se fazia todavia tomando-as em consideração, e que em 1637 também não foi possível, quer ao poder político luso-espanhol, quer ao poder nobiliárquico português que se lhe opunha, deixar de tomar em conta com a opinião e a mobilização multitudinárias. Na versão de D. Francisco Manuel de Melo, relatando a intriga palaciana que culminou nas alterações de Évora, a solução encontrada para aumentar impostos em Portugal em 1637 pela coroa espanhola com o préstimo de Miguel de Vasconcelos — um golpe fiscal simulando a aprovação obrigatória das Cortes — visava evitar o «quebranto dos foros do Reino» mas evitar também a «desordem» passada e «a contrariedade que da multidão se temia» (Melo 1967, 23, 13). Para o comentador, a divisão entre os independentistas e os outros torna-se evidente nesta relação com o povo: os primeiros «queriam comprazer ao povo», os segundos estavam «apartados dos clamores populares, sem nenhum respeito ao público descontentamento» (idem, 24). Tal não significa, porém, que se misturassem. De qualquer modo, a politização do movimento é indesmentível. Os manifestos do Manuelinho, 107

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 108

Eduardo Cintra Torres

escritos por alguém com cultura literária, têm por alvo o «rei tirano» e estabelecem uma clara relação entre o motim motivado pela «fome de nossos irmãos» e a «pobreza de nossos pais» com a luta para que «morra todo o que for traidor à pátria»; e, como da pobreza «se queixa todo o estado de gente», num «reino que, sendo antigamente um mar, se vai esgotando a Castela por um Rego», em referência dúplice do Manuelinho a uma personagem odiosa para o povo (Melo 1967, 147-152). Face aos levantamentos em geral, os detentores do poder político, económico e religioso, tomavam duas atitudes simultâneas: chamavam «as justiças» (a força armada) e ao mesmo tempo ensaiavam acalmar os ânimos, tentando determinar a melhor altura de intervir pela força, em parte por avaliação do que se chamaria no final do século XIX a psicologia colectiva; além disso, havia uma compreensão clara de que a multidão se dividia em duas partes, sendo dirigida pelos líderes, as «cabeças» que eram, após os eventos, castigadas exemplarmente. O relato da revolta do Manuelinho em Évora (1637) por Manuel Severim de Faria, chantre e cónego da sé da cidade, é exemplar acerca desta «fúria do Povo» urbano, pré-industrial, cujas motivações não são clarificadas: o primeiro dia foi de «grandíssima confusão» e «quase do mesmo modo os três ou quatro que se lhe seguiram». A multidão era formada pela «parte vil do Povo» e pela «parte melhor do Povo»: a primeira «andava furiosa de dia e de noite», a outra poderia ser arrastada, mas entretanto andava na rua horrorizada: os nobres da cidade «recearam que, se resistissem a este ímpeto, o poderiam acrescentar» com a acumulação da «parte melhor do povo» aos «pícaros e maganos»; não estando «declarada» a favor dos amotinados, a parte «melhor» «era tudo horror, tudo confusão: o povo se apelidava, o povo se ouvia e, sem ordem nem concerto, o Povo dispunha e executava». O poder ia reagindo tacticamente (por vezes com movimentos bastante complexos) até conseguir debelar os motins. O de Évora terminou com «o perdão de todos os movimentos passados», excepto das «cabeças e principais movedores dos motins, assim em Évora como nos demais lugares» do Alentejo, Algarve e resto do país onde a revolta se disseminou (Faria 1967, 137-144). A posição de Faria corresponde à visão moderna dos motins, limitada ao binómio ordem/desordem, sem uma mais ampla perspectivação política, sendo bem diferente a análise por Francisco Manuel de Melo. Para este, tal, como vimos, para Maquiavel, a «vontade» do «número», isto é, o poder dos muitos, tem a capacidade de impor decisões políticas fora do quadro institucional existente: a «vontade do Povo [...], como consta de número, incapaz de castigo, suborno ou conselho, é de ordinário 108

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 109

A multidão medieval e moderna

oposto a todos os respeitos políticos». Na multidão, distingue apenas entre «as cabeças populares» e o «vulgo» ou «o Povo»: Quanto aos dois líderes ou cabeças, «ambas da ordem mecânica», eram juiz e escrivão do Povo, o que Melo assemelha aos tribunos da plebe romana, noutra semelhança com o texto de Maquiavel. Pelos lugares que ocupavam e pelo «crédito de amadores da liberdade», as cabeças da multidão eram consideradas as pessoas de «maior poder entre a multidão de aquele Povo numeroso e soberbo». Uma das suas pretensões era escreverem directamente ao Rei «em nome do Povo» (idem, 27-28). Na primeira negociação com o poder após o desencadear da rebelião, o representante do governo reteve os dois homens, de modo a dividi-los da posição popular, mas um deles, «de juízo maior que sua fortuna», lhe disse que, «sem consentimento do Povo, nada ficava firme». Noutra ocasião, reconhece que eram ambos «a voz de aquele Povo», mas que «não podiam prometer alguma coisa sem o seu comum consentimento» (idem, 28, 111). Havia, pois, uma clara forma de representação política fora do quadro institucional. Não foi necessário inventar, como em 1387, que matavam os representantes do povo, pois de facto disso os ameaçava o corregedor, depois de os líderes populares terem ameaçado com o levantamento do povo. Chegando à janela, um deles transmitiu à multidão a ameaça, exprimindo-se politicamente: «que morriam pelo livarem do trabalho que lhe queriam dar [ao Povo] os ministros del-Rei». Mesmo sem ser ouvido, como «estavam todos dependentes do seu aceno», com «súbito estrondo, ardendo todos em ira, chamaram a morte do Corregedor e liberdade e vida dos Populares» (idem, 29-30). Segundo a sentença proferida contra os dois líderes, a presença da multidão em frente do local da reunião fora organizada: «Os réus convocaram e amotinaram o povo desta cidade fazendo-o ajuntar na praça dela» (apud idem, 29n). A multidão é muitas vezes descrita como «vil», mas naquele momento, registou o relator, foi «cousa rara» que a prata, ouro e dinheiro lançados à fogueira na praça não foram tocados por «uma só pessoa» entre «tanta multidão (que constava da pior gente da República)». Em «todas as suas acções», como a libertação dos presos e destruição de papéis e livros judiciais (outras formas de acção política directa), foi sempre maior na multidão «a indignação que o interesse» (idem, 30). Em parêntesis, note-se que a «cousa rara» do comportamento da multidão eborense não será tão rara assim, referenciando-se com frequência nos relatos de acções multitudinárias e na teorização da multidão a partir do último quartel do século XIX. Todavia, o autor já respira da atitude do seu tempo de afastamento do elemento popular. 109

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 110

Eduardo Cintra Torres

Acontece que a revolta na cidade era do interesse político de parte da nobreza, mas não quando «às vozes haviam sucedido as armas», e havia também um partido pró-castelhano. Era necessário controlar a revolta, o que se afigurava difícil não querendo os nobres favoráveis à restauração criar um conflito irresolúvel com Madrid, dado que o perderiam. Daí que da sua reunião saiu que «a primeira diligência convinha ser o sossego de aquela multidão, que cada hora se achava mais atrevida e resoluta», pelo que «se começou com brandas práticas a tratar a redução do Povo». Tentaram convencer os revoltosos ou «Inquietos» de que o assunto deveria ser entregue à câmara «pois a ela, e não a eles, pertencia a conservação de sua Cidade», e à nobreza junto da corte, mas os insubordinados não acreditaram na manobra; responderam que «os senhores e poderosos de Évora não sentiam a execução do Povo de sua Pátria, porque não eram do Povo; que para os grandes nunca havia novas leis que não fossem interpretadas em seu cómodo» e que «congraçavam com o Povo, para se justificarem depois com el-Rei, oferecendo por vítima, ao sacrifício de sua fidelidade, o inocente e simples vulgo» para depois serem «os mais cruéis algozes para o Povo» (idem, 32-3). Neste discurso dos líderes dos Inquietos não pode ser mais claro o afastamento entre a nobreza e as classes populares. Através da acção multitudinária, da representação popular na câmara, usando aí o «seu poder ordinário», e da opinião pública através das provisões e decretos fixados pelas praças e portas da cidade em nome do Manuelinho, os Inquietos tinham um efectivo poder discricionário usado anonimamente. Disso resultava, escreve D. Francisco Manuel de Melo, uma «cousa jamais vista»: a existência em simultâneo de «todos os três modos de governo que assinam os Políticos: o dos nobres, que em lugar del-Rei, significava o modo Monárquico, sempre continuava com suas conferências; o da Câmara que, não desistindo de seu exercício competente, representava o modo Aristocrático; e o do Povo, que, em benefício da liberdade proclamada, exercia um regimento comum, por modo democrático: donde qualquer do vulgo tinha igual autoridade que o mais sábio ou poderoso» (idem, 39). Esta é, essencialmente, a razão pela qual a multidão de Évora se distinguia das alterações «sem nenhum inconveniente» a que se referia o rei à condessa de Mântua, e é a razão pela qual, podemos especular, é destacada nas análises de Francisco Manuel de Melo e de Severim de Faria (como antes a de 1383 por Fernão Lopes). A prová-lo, a apreciação de Melo segundo a qual os Inquietos tinham um intento «profundo» que não parava no habitual das «revoluções», isto é, o «cómodo, ou vingança, como pareceu ao princípio» (idem, 43). O problema agravou-se para o poder com a «contagião» do exemplo, «imitado» 110

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 111

A multidão medieval e moderna

em numerosos outros locais, em especial no Alentejo e no Algarve, onde «foram semelhantes os excessos, segundo eles eram mais ou menos capazes da multidão». Alguns defendiam, por isso, que a rebelião estava circunscrita «só entre a gente mais vil, cujo costume é, como o das ligeiras névoas, que por si somente se desfazem, antes que o vento as espalhe, ou o sol as derreta» (idem, 39, 47, 61). A complexidade táctica que envolveu todos os actores deste evento, incluindo a Casa de Bragança, motivou uma evolução paradoxal. O levantamento multitudinário caminhava para o fim, como era habitual, mas era do interesse do partido anticastelhano mantê-lo aceso ou pelo menos sugeri-lo: a inquietação popular «se ia por si mesmo moderando, e de todo chegara a ser desfeita; porque os Populares, já cansados do contínuo ócio, perdendo o tempo servil dos exercícios do campo e artes mecânicas, de que se sustentavam, foram a grande passo desamparando o corpo da multidão». O contrário se passava «entre as pessoas particulares, que, vendo de uma parte o ameaço da desunião e da outra [de Castela] o das armas, não cessavam por todos os meios de excitar aos comovidos» (idem, 77-8), isto é, utilizando o elemento popular multidinário, mas sem se misturarem. Em Espanha pretendia-se «apartar a Nobreza do povo, fazendo-lha suspeitosa, para que a união destes dous (direito e esquerdo) braços da República a enfraquecesse», pelo que os patriotas das classes superiores «fizeram todo o esforço possível para persuadir aos Populares (com os quais já melhor se entendiam) que se acomodassem à quietação» (idem, 88-9), pois, pensamos, de outra forma teriam de escolher o partido da repressão, por motivos políticos e de interesse económico. A complexa situação política motivou uma solução também ela política entre as partes portuguesas: o arcebispo e o cabido ofereceram-se para pagar o excesso de imposto que o governo impunha à cidade «com o qual ajustamento o Povo ficava não pagando mais do ordinário, el-rei [Filipe IV] servido e a Cidade contribuindo com tudo o que se tinha imposto». Madrid não teria de ser informada da solução (idem, 90, 92). Deixamos de parte o resto do episódio (Madrid, aplicando a estratégia de Olivares acima referida, pretendeu aproveitar o levantamento para retirar o estatuto autonómico de Portugal no seio da coroa; idem, 95). Os Inquietos de Évora não estavam a par de todas as manobras palacianas envolvidas entre Évora, Vila Viçosa, Lisboa e Madrid, pelo que a efervescência colectiva — a «efervescência perigosa» a que se referia em 1637 o padre Francisco Rodrigues acerca dos acontecimentos (Serrão 1967, xli) — terminou subitamente quando a força armada ao serviço de Madrid se aproximou da cidade sem o seu conhecimento: «Começaram todos a desordenar111

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 112

Eduardo Cintra Torres

-se, confusos e temerosos, sem saber que meio seguiriam; porque o medo, com o perigo, já era igual em os que punham as mãos, ou entendimento, na persistência da revolução pública.» A justiça operou, mas os dois representantes populares cabeças do movimento escaparam facilmente e com ajuda à pena de morte, tendo sido queimadas as suas estátuas (idem, 120). Noutros lugares, nomeadamente no Algarve, foi «mais soberba a vingança» tendo a violência e os delitos, roubos, homicídios, forças e escalamentos excedido os de Évora (idem, 121). Mas, para D. Francisco Manuel de Melo, as alterações de Évora não terminavam ali: para ele, havia uma relação directa entre os eventos de 1637 e a Restauração de 1640: O «fim das alterações de Évora», afirma, foi o «fausto e elegante prelúdio da redenção Lusitana» (idem, 134). O brilhante ensaio político-histórico de D. Francisco Manuel de Melo, assim, entronca o motim, que fora, como tantos outros no tempo, motivado por impostos, pelas suas consequências políticas, num acontecimento primordial da história nacional e equipara-o à revolução de 1383: segundo os cronistas de ambos os eventos, as alterações populares originaram alterações vitais, próximas ou mais longínquas, na evolução política do todo nacional. As classes populares ganhavam alguma coisa com a revolta, segundo Fernão Lopes e Francisco Manuel de Melo, nem que fosse a recuperação da identificação com um poder político (mais) português. Nas suas interpretações, os eventos são inconcebíveis sem as acções multitudinárias, que descrevem com intenção política de indicar descontentamento com o governo e uma espécie de não haver retorno quando o elemento popular se manifesta pondo em causa a legitimidade do poder (Leonor Teles; Filipe IV). Quer em 1383, quer em 1637, à multidão é atribuída a sua capacidade transformadora da situação política, papel diferente do habitual. Mas em 1637 o seu afastamento da liderança política denota a atitude geral das elites face à multidão, a que voltamos agora, quando as cidades crescem, quando as classes se afastam, quando a teoria retoma, tal como os ideais cortesão renascentistas, as concepções mais negativas do vulgo. Vitorino Magalhães Godinho considerou as alterações de Évora e do Algarve como «o grande motor» da Restauração: «é de 1637 que parte a Restauração — a acção popular é que força a nobreza e os letrados a agir», As alterações não só estimularam a oposição anticastelhana, como levaram ao formato político do 1.º de Dezembro de 1640: entre as suas personagens encontram-se homens que participaram na repressão dos motins: «A nobreza e os letrados honrados deixam esmagar as sublevações que podiam pôr em causa a ordem social estabelecida e até ajudam sem 112

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 113

A multidão medieval e moderna

pejo a esse esmagamento; mas tiram daí a lição de que têm eles de realizar a sua conspiração palaciana, a fim de evitar que venha a triunfar um movimento vindo de baixo.» Deste modo, a sublevação do 1.º de Dezembro é uma «organização conspirativa de nobres e letrados, que sabe poder contar com a adesão popular, mas não recorre ao povo para a realização dos seus intentos»; por outras palavras, «é nobiliárquica depois da repressão dos motins populares e a fim de evitar que novas amotinações não degenerem em revolução» (Godinho 1980, 317-320).

Conclusão A leitura sequencial de Fernão Lopes e de Francisco Manuel de Melo permitiu-nos observar, em primeiro lugar, nesta breve exploração de fontes literárias, a morfologia e o comportamento das multidões na Idade Média e na Idade Moderna. A sua formação era veloz e aparentava espontaneidade, mas, como em qualquer movimento social, pressupunha uma indisposição prévia das camadas populares com algum ou todos os poderes. A ausência de roubos nas alterações de Évora, mas apenas destruição de documentos do poder político e fiscal, indica uma consciência da intenção da sua própria mobilização. A multidão tanto podia agir para o crime e a destruição de propriedade e documentos oficiais, como dentro do padrão esperado pelos poderosos. Houve no processo político multitudinário um diálogo, público em 1383, clandestino em 1637, entre elite e populares. A ocupação do espaço público com persistência por diversos dias surpreendeu os observadores, tendo em conta o seu habitual carácter efémero. A curto prazo, a multidão obteve o que quis em Lisboa em 1383; em Évora, apesar da repressão no final, obteve a destruição dos documentos, viveu em período liminar, exprimiu pontos de vista político-sociais. A longo prazo, a multidão daqueles dias também foi vitoriosa, tendo em conta o desfecho do processo político nas duas datas. A liberdade de movimentos da multidão, a sua constituição pelos de baixa condição, mas arrastando em ambos os casos os mais afortunados de entre o povo, a presença livre de mulheres e crianças, dotadas de uma voz que não se lhes ouve nas circunstâncias da normalidade quotidiana, são outros aspectos que caracterizam as multidões até ao presente. Em segundo lugar, perscrutamos nos dois textos a evolução das atitudes das elites perante a multidão do povo da Idade Média, mais franca, directa e fácil, e no Antigo Regime, mais distante e complexa. Quer pelos relatos dos cronistas, quer pela interpretação implícita ou explícita que 113

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 114

Eduardo Cintra Torres

deles fazem, verificamos que, em 1383, a elite política podia incentivar e misturar-se com a multidão e esperar que, terminada a perturbação, o sistema político tivesse a feição que lhe quisesse atribuir; em 1637, a elite está afastada do elemento popular revoltado ou participa na sua repressão e opta por uma alteração política sem intervenção popular, assim evitando a «vontade» do «número». Em 1383, o Mestre de Avis pede directamente ao seu representante a ajuda ao povo; em 1637, há uma distância hierárquica que impede qualquer mistura no espaço público. Em 1383, o líder popular está em contacto permanente com a elite insubordinada e coordena a acção; em 1637, os líderes populares estão por si, em autonomia, e desconfiam publicamente dos «de cima», a elite descontente não se insubordina em simultâneo com o elemento popular, por razões de avaliação de oportunidade, mas também por não pretender misturar-se com os «de baixo». Em terceiro lugar, como tentámos sublinhar, os relatos dos dois acontecimentos ultrapassam a caracterização de «normalidade» da multidão, dado o carácter revolucionário nacional mítico depois atribuído ao primeiro e a consistência política nacional atribuída depois ao segundo. Ambos permitem verificar como a multidão popular de «tumulto popular sem nenhum inconveniente» pôde adquirir significados adicionais. É pela sua potência de representação de atitudes políticas de oposição ao poder instituído que os dois eventos puderam transcender o carácter de tumultos na interpretação que deles deram os seus respectivos cronistas. A multidão efémera faz política, entra na história, origina literatura e oferece-se à sociologia como coisa social perene.

Referências bibliográficas Almeida, Luís Ferrand de. 1984. «Motins populares no tempo de D. João V». In Revoltas e Revoluções, orgs. Amadeu José de Carvalho Homem, António Resende de Oliveira e Rui Bebiano. Coimbra: Universidade de Coimbra. Auerbach, Erich. 2003. Mimesis: The Representation of Reality in Western Literature. With a new introduction by Edward W. Sadi. Princeton, NJ: Princeton University Press. Barros, João de. S. d. O Povo na Literatura Portuguesa. Selecção e prefácio de João de Barros. Lisboa: Guimarães & C.ª. Bellah, Robert N. 1959. «Durkheim and history». American Sociology Review, 24 (4): 447-461. Braudel, Fernand. 1949. La Méditerranée et le monde Méditerranéen à l’époque de Philippe II. Paris: Librarie Armand Colin. Canetti. Elias. 1995. Massa e Poder. São Paulo: Companhia dos Livros.

114

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 115

A multidão medieval e moderna Castiglione, Baldassare. 1965. Il libro del cortegiano. A cura di Giulio Preti. Turim: Einaudi. Colas, Dominique. 2006. Sociologie Politique. 2.ª ed. Paris: PUF. Cooley, Charles Horton. 1909. «Democracy and crowd excitement». In Social Organization, ch.14, Nova Iorque, NY, Charles Scribner’s Sons. http://www.brocku.ca/Mead-Project/Cooley/Cooley_1909/Cooley_1909_toc.html.: 149-156. Durkheim, Émile. 1975. «Introduction à la morale». In Textes. 2. Religion, morale, anomie, Paris: Les Éditions de Minuit: 313-331. Elias, Norbert. 1989 e 1990. O Processo Civilizacional. 2 vols. Lisboa: Publicações Dom Quixote. Empson, William. 1974. Some Versions of Pastoral. Nova Iorque, NY: New Directions. Faria, Manuel Severim de. 1967. «As alterações de Évora». In Francisco Manuel de Melo, Alterações de Évora (1637), Lisboa: Portugália. Ginneken, Jaap Van. 1992. Crowds, Psychology and Politics, 1871-1899. Cambridge: Cambridge University Press. Godinho, Vitorino Magalhães. 1980. «Restauração». In Dicionário de História de Portugal, dir. Joel Serrão. Porto, Livraria Figueirinhas: 307-326. Hobsbawm, Eric. 1978. Rebeldes Primitivos. Estudos sobre Formas Arcaicas de Movimentos Sociais nos Séculos XIX e XX. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Zahar. Lopes, Fernão. 1973. Cronica del Rei Dom Joham I de Boa Memória e dos Reis de Portugal o Decimo. Parte Primeira. Lisboa: INCM. Lopes, Fernão. 2007. Crónica de D. Pedro. Ed. crítica de Giuliano Macchi. 2.ª ed. Lisboa: INCM. Lukes, Steven. 1985. Émile Durkheim: His Life and Work. A Historical and Critical Study. Stanford, CA: Stanford University Press. Maquiavel, Nicolau. 2008. O Príncipe. Trad., introd. e notas de Diogo Pires Aurélio. Lisboa: Círculo de Leitores e Temas e Debates. Maquiavel, Nicolau. 2010. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. Estudo introdutório e notas de David Martelo. Lisboa: Edições Sílabo. McClelland, J.S. 1989. The Crowd and the Mob: From Plato to Canetti. Londres: Unwin Hyman. Mateus, Susana Bastos, e Paulo Mendes Pinto. 2007. Lisboa, 19 de Abril de 1506: O Massacre dos Judeus. Lisboa: Alêtheia Editores. Mattoso, José, e Armindo de Sousa. 1993. A Monarquia Feudal (1096-1480). In História de Portugal, vol. 2, coord. José Mattoso. Lisboa, Círculo de Leitores. Melo, Francisco Manuel de. 1967. Alterações de Évora (1637). Introd., fixação do texto, apêndice documental e notas por Joel Serrão. Lisboa: Portugália. Millet, Olivier. 1992. Dictionnaire des citations. Paris: Le Livre de Poche. Oliveira, António de. 1984. «Contestação fiscal em 1629». In Revoltas e Revoluções, eds. Amadeu José de Carvalho Homem, António Resende de Oliveira e Rui Bebiano, Coimbra: Universidade de Coimbra. Roberts, Warren. 2000. Jacques-Louis David and Jean-Louis Prieur, Revolutionary Artists: The Public, the Populace, and Images of the French Revolution. Albany, NY: State University of New York Press. Rothenbuhler, Eric W. 1988. «The liminar fight: mass strikes as ritual and interpretation». In Durkheimiana Sociology: Cultural Studies, ed. Jeffrey C. Alexander. Cambridge: Cambridge University Press: 66-89. Saraiva, António José. 1997. As Crónicas de Fernão Lopes. Seleccionadas e transpostas em português moderno por António José Saraiva. 4.ª ed. Lisboa: Gradiva.

115

06 MVCabral Cap. 6_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 116

Eduardo Cintra Torres Saraiva, António José, e Óscar Lopes. 1996. História da Literatura Portuguesa. 17.ª ed. Porto: Porto Editora. Serrão, Joel. 1967. «As alterações de Évora (1637) no seu contexto social». Introdução a Alterações de Évora (1637), de D. Francisco Manuel de Melo, Lisboa: Portugália, xiii-lvi. Serrão, Joel. 1978. O Carácter Social da Revolução de 1383. 3.ª ed. Lisboa: Livros Horizonte. Silva, Henriques da. 1905. Sociologia Criminal e Direito Penal. Coimbra: Imprensa da Universidade. http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/970.pdf. Sousa, Bernardo Vasconcelos e. 2010. «Idade Média (séculos XI-XV)». In História de Portugal, 6.ª ed., coords. Rui Ramos, B. V. e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro. Lisboa: A Esfera dos Livros: 17-196. Torres, Eduardo Cintra. 2013. A Multidão e a Televisão. Representações Contemporâneas da Efervescência Colectiva. Lisboa: Universidade Católica Editora. Touraine, Alain. 1965. Théorie de l’action. Paris: Seuil. Veyne, Paul. 1976. Le Pain et le cirque: Sociologie historique d’un pluralisme politique. Paris: Seuil.

116

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 117

Rui Graça Feijó

Capítulo 7

Vocabulário heráldico e gramática social: as cartas de brasão modernas como retrato das elites portuguesas de finais da Monarquia Constitucional Para além do espelho... Aristocracia, burguesia e elites O mais conhecido topos da historiografia social portuguesa relativa ao tempo da Monarquia Constitucional, com origem nos já longínquos anos 60, fala-nos de uma «impossível sociedade burguesa» (Godinho 1977, 153). Deve-se a um anterior artigo de Joel Serrão no Dicionário de História de Portugal 1 – em que defendia que «os burgueses portugueses nunca evidenciaram uma boa preparação cultural que, aliás, se tivesse existido, seria destoante da atmosfera mental que a grande maioria do País respirava» e que seria indispensável a tal propósito – a sua introdução e popularização no meio académico.2 Na senda de boa parte da literatura oitocentista, aponta-se o dedo ao barão e ao visconde e também ao bacharel como os «orientadores da nova ordem social» que frustravam a modernização burguesa e industrial. Com estes novos estratos sociais «não se chegou a realizar, no século XIX português, a sociedade burguesa, não foi possível, entre nós, a burguesia instalar a sua civilização» (Godinho 1977, 155). 1

Trata-se do artigo «Burguesia – na época contemporânea», in DHP, vol. I, 403-406. O mesmo texto foi publicado in Serrão (1962, 247-259) com o título «Para um inquérito à burguesia portuguesa oitocentista». 2 Veja-se Reis (1993, 181-186) para uma apresentação e discussão da bibliografia relevante.

117

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 118

Rui Graça Feijó

O nosso homenageado não ficou fora do consenso então gerado, e traduziu a seu modo esta ideia ao afirmar, a propósito da última secada de Oitocentos, que «Portugal participa, de forma subordinada, no mesmo reajustamento conjuntural por que então passava o sistema imperialista mundial, dá o mesmo ‘salto em frente’, qualitativamente falando; mas por outro lado, dado o atraso acumulado em termos de desenvolvimento das forças produtivas, cada novo reajustamento, cada novo salto do sistema, alarga o fosso que já separava Portugal do países dianteiros» (Cabral 1976).3 Esta tese da incapacidade portuguesa de gerar uma cultura social burguesa modelada no exemplo internacional poderia ser discutida a partir de um inquérito aos seus pressupostos. Nomeadamente poderia estar em causa a linguagem de «classe» de inspiração marxiana, presente como cenário onde se desenvolve uma argumentação tendente a identificar um modelo (europeu? francês? inglês?) designado como «burguês», que a elite portuguesa não teria podido ou sabido seguir, apesar da famosa boutade de Eça dizendo que Portugal vivia suspenso da chegada regular do Sud-Express... Essa linguagem está presente, entre outros, num livro de Charles Morazé com divulgação entre os académicos portugueses dos anos 60 e posteriores, numa tradução de Maria Antonieta Magalhães Godinho, e que terá certamente contribuído para a popularidade, para a sustentação, e para o enquadramento dessa tese (Morazé 1966). Uma recente revisão das interpretações clássicas sobre a ideia de «burguesia» levou Sarah Maza a proclamar provocatoriamente que «a burguesia francesa nunca existiu». E logo acrescenta: «os contornos sociais da burguesia são tão elásticos, e o termo em si tão pregnante de sentidos distintos e contraditórios que a maior parte das tentativas para propor generalizações a partir dele tende para um estado de caos» (Maza 2003, 5-6). Numa perspectiva substancialmente distinta, e evocando a pobreza de estudos empíricos que ancorassem as generalizações que abundavam, já em 1961 4 Henri Lefebvre sustentava que a categoria social «burguesia»

3 Pode o nosso homenageado estar convencido de que esse seu livro se encontra enterrado no passado, e só a ele pertence, soterrado pela vaga de investigações e publicações que se lhe seguiram e que fizeram da história do século XIX português um capítulo «normal» da nossa historiografia. Pela parte que me toca, entendo que, se utilizarmos técnicas oriundas da arqueologia e o desenterrarmos carinhosamente, tomando devida nota das coordenadas de referência, ele manterá aquela que terá sido, quiçá, a sua virtude maior: ser um texto bon à penser. 4 O item citado na bibliografia como Lefebvre (1971) é, na realidade, um segunda publicação, em livro, de um artigo de 1961, originariamente vindo a lume nos Cahiers Internationaux de Sociologie, vol. XXXI. Agradeço a João de Pina-Cabral o ter-me chamado a atenção para este importante texto.

118

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 119

Vocabulário heráldico e gramática social

apresentava um conjunto vasto de problemas à corrente marxista em que ele próprio se inseria. Entre outras razões, a extrema versatilidade que o conceito deveria demonstrar para abarcar as realidades empíricas leva-o a admitir, implicitamente, que a «sociedade burguesa» poderia ser algo mais complexa e heterogénea, mais sulcada por diferenças sensíveis acobertadas sob o mesmo nome, do que era costume ser aceite pela corrente marxista que, nas suas expressivas palavras, «trop souvent remplace l’analyse par les épithètes péjoratifs» (1971, 165). Esta não será, porém, a via escolhida, apesar de se reconhecer que há um aliciante trabalho a realizar neste domínio. Poder-se-ia também objectar que a tese de Serrão, Godinho et alii sucintamente exposta é dificilmente operacionalizavel em termos de uma pesquisa empírica, condição indispensável para a sua validação ou refutação. Falta-lhe um quantum de especificação do argumento sem o qual todos os gatos são pardos. Mas seguramente não será impossível inventar, com base em fontes históricas e numa imaginação investigativa empiricamente ancorada, formas de testar a sua pertinência. Jaime Reis, por exemplo, procurou em biografias de «burgueses» oitocentistas, como José Maria Eugénio de Almeida – ele que foi conde de Vilalva –, elementos que superficialmente concorrem para a sua confirmação – como a propensão para investimentos fundiários supostamente reveladores de uma atitude aristocrática e contrária à preocupação da sua rentablização financeira –, mas que acabaram por revelar um sentido bem diferente daquele que lhes era anteriormente, e apressadamente, atribuído (Reis 1993, 208). E assim, na senda desta abordagem, acabamos por nos confrontar com o conhecido aforismo «aparências iludem», no qual bebe inspiração o presente exercício. O que se tenta nas páginas que se seguem é um confronto entre a ideia de que a nova elite portuguesa adoptou uma estratégia de imitação da velha aristocracia, prescindindo da afirmação de elementos estruturalmente novos, com uma leitura das cartas de brasão de armas que deveriam servir de suporte à revelação dessa estratégia.

As bases do presente exercício O exercício que nestas páginas se apresenta tem duas condicionantes. Foi concebido – por circunstâncias da vida profissional do autor 5 – para 5 O presente capítulo e a investigação que o sustenta não foram objecto de nenhum financiamento por parte de entidades públicas ou privadas, sendo resultado do investi-

119

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 120

Rui Graça Feijó

poder ser realizado fora de um contacto próximo com os arquivos, facto que permite antever posteriores desenvolvimentos caso as ideias aqui expressas mereçam acolhimento suficiente para justificar tal esforço; e, por outro lado, partiu da existência (e acessibilidade) de um livro – publicado em 1935 e reeditado em 1992 – contendo a descrição das cartas de brasão «modernas» – neste caso as que vão de 1871 a 1910 (Valdez 1992). Esse volume contém toda a informação primária aqui tratada. Eis o que se oferece dizer sobre as fontes. Quanto à problemática, necessariamente articulada com o tema geral do colóquio para onde foi inicialmente preparado – a história das elites em Portugal 6 –, o ponto de partida e de referência deste trabalho é um axioma que reza assim: as cartas de brasão de armas, e os brasões propriamente ditos podem ser lidos como um auto-retrato daqueles a quem são concedidos. Detenhamo-nos numa breve explanação deste ponto. A heráldica deriva o seu nome do vocábulo medieval germânico herald, que etimologicamente significa anunciar. Trata-se de um étimo ainda hoje presente com grande vigor na imprensa anglo-saxónica (e. g., International Herald Tribune). Em língua portuguesa, cabe referir a sua evolução para arauto, que mantém o significado implícito de anunciar, divulgar. A heráldica constitui-se, assim, como um código de apresentação (plástica, simbólica e social) de indivíduos e grupos de indivíduos. Em grande medida, trata-se mesmo de um processo de auto-apresentação, na medida em que o indivíduo que ostenta um brasão nele se revê, assumindo o código implícito e as manifestações concretas que ele enquadra, podendo, nos casos de brasões novos, ser mesmo parte activa no seu próprio desenho. A heráldica vive da necessidade de evidenciar socialmente características próprias de indivíduos e de grupos de indivíduos. É assim que ela se articula com a cantaria, nas pedras de armas que encimam frontões de casas e capelas ou decoram um muro ou um lago; que constitui motivo relevante da decoração interior, através da louça de porcelana, primeiro chinesa e depois europeia; que está presente em grande número de peças de prataria; e que se grava em «cadeiras de sola» – tudo no âmbito de estratégias familiares de ostentação (Norton 2004, 19). mento privado do autor numa época da sua vida profissional em que não se encontrava associado a nenhuma instituição de ciência ou de ensino – e dessa forma, com um paralelismo óbvio com parte da trajectória do nosso homenageado. 6 Trata-se do II Colóquio sobre História das Elites, ICS, Lisboa, Novembro de 2003. Agradeço a Teresa Sousa de Almeida e a Nuno Gonçalo Monteiro o incentivo para participar neste colóquio; e aos assistentes da sessão onde foi apresentado, nomeadamente a José Manuel Sobral e Rodrigo Ortigão, os comentários então proferidos.

120

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:53 AM Page 121

Vocabulário heráldico e gramática social

Recordemos o aforismo que diz: uma imagem vale mais que mil palavras – ainda hoje tão presente no mundo contemporâneo, sobretudo no domínio das «imagens de marca», logótipos e reivindicação de direitos de propriedade intelectual sobre símbolos tão simples como «três riscas».7 Pastoureau mostrou como, em época próxima do dealbar da heráldica europeia, os padrões e as formas gráficas do vestuário eram investidos de sentido profundo (Pastoureau 1997). E recordemos que na Idade Média que viu nascer esta forma de identificação o estatuto da palavra escrita – base da civilização «alfabetizada» dos nossos dias na Galáxia de Gutenberg – era condizente com a extrema raridade de quem a conhecesse e a soubesse utilizar como forma de registo. Podemos assim aproximar-nos um pouco mais do sentido original – que não oitocentista – da heráldica europeia. Tendo começado, em épocas remotas, por ser uma forma de identificação simbólica cuja iniciativa de adopção e divulgação pertencia livremente aos próprios,8 a heráldica veio a ser formalizada e o uso dos seus símbolos sofreu significativas alterações. Tem-se considerado como primeiro tratado de heráldica o texto de Bartolomeo de Sassoferrato (1313-1357), que contém um capítulo integralmente dedicado ao escudo de armas. Mas parece possível afirmar que «no final do século XIII havia regras e uma linguagem técnica igual em toda a Europa heráldica» (Norton 2004, 152). Tão importante como esta codificação é a evolução que vem fixar a heráldica como símbolo de ostentação e identificação pública de uma família, articulado de forma estreita com as regras da hereditariedade (e em especial da hereditariedade por via masculina), sobrepondo-se à representação de um feudo ou domínio territorial com que inicialmente coexistira. A designada «heráldica de família» (de que aqui tratamos) é ainda hoje um ramo fundamental desta disciplina. Paralelamente, o direito ao uso de brasão de armas é restringido. Em Portugal, foram os reis da Dinastia de Aviz quem chamou a si o privilégio do exclusivo da outorga das mercês heráldicas, sendo a mais antiga carta conhecida passada por D. Afonso V em 21 de Maio de 1476. O uso de

7 A marca de material desportivo Adidas desencadeou, em vésperas de mais uma competição desportiva de impacto mundial na qual não possui o monopólio dos equipamentos, uma campanha internacional com vista a proteger o seu símbolo descrito de forma extraordinariamente abrangente como «três riscas». 8 Designam-se por «armas assumidas» aquelas que «são tomadas por um indivíduo para distintivo próprio na época em que a Coroa (ou Estado) não intervinha ainda em tal atitude» (Nóbrega 2003, 191).

121

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 122

Rui Graça Feijó

brasão passa a assumir um duplo significado: por uma banda, simboliza a integração de um indivíduo/família no conjunto restrito dos que dispõem desse direito; 9 por outro lado, cada brasão considerado nas suas caracaterísticas próprias diferencia e distingue – como um nome – o seu titular ou portador, singularizando-o. Ou seja: o brasão torna-se simultaneamente um símbolo de status e de individualidade. Hermínio Martins mostrou já em 1971 a importância crítica que assume, no Portugal contemporâneo, a noção de status como organizador social poderoso (Martins 1998). Este carácter duplo está na base da minha proposta de leitura dos brasões de «mercê nova» de finais da Monarquia Constitucional. A heráldica parece prestar-se particularmente bem a um estudo sobre elites: a posse ou obtenção do direito ao uso de brasões, rigidamente codificadas (e socialmente tantas vezes subvertidas), instituía o seu detentor como membro de um grupo social que prezava o seu estatuto colectivo elevado (o «estamento» de que falam os heraldistas), defendia acerrimamente a ideia de que as características dos membros desse grupo eram superiores aos restantes indivíduos e que era indiscutível que houvesse barreiras de vária ordem (entre as quais, as de tipo simbólico como a heráldica) à entrada nesse restrito núcleo, e tinha de si próprio uma imagem não só com elevado sentido corporativo, manifestada em códigos de conduta próprios, como ancorada na noção de superioridade. Estes atributos podem ser encontrados, na literatura sobre elites, no rol daqueles que fundam esta noção (Lima 2003, 27-32). Sustentando esta posição, encontramos a noção de distinção que Bourdieu analisou profundamente (Bourdieu 2010),10 e que evidencia a estrutura profundamente desigual das sociedades que assim se exprimem – coisa que, obviamente, não repugnava nem a velhas nem a novas elites. Apesar disso, é normalmente possível distinguir uma polarização entre uma atitude de reserva, de contenção, de sobriedade (que a língua francesa exprime na fórmula «bcbg» – bon chic bon genre) por banda de famílias tradicionais do «estamento», e, por outro lado, uma atitude de os9 Designam-se normalmente por «armas de sucessão» aquelas que foram herdadas pelo descendente do primeiro beneficiário. «Armas de mercê nova» são aquelas que foram «concedidas a pessoa nobilitada por alguma acção dignificante ou a pessoa que já tendo armas de sucessão, se pretendeu [...] memoriar por algum feito ou feito digno de ser perpetuado», substituindo as armas antigas. «Armas de acrescentamento honroso» são as que resultam de uma concessão régia a quem já era detentor de armas, por via das quais se acrescenta ao brasão uma ou mais peças e/ou mais partições (Nóbrega 2003, 192-197). 10 Curiosamente, o grande volume de Bourdieu inicia-se por um capítulo sobre «Nobreza e graus de nobreza cultural».

122

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 123

Vocabulário heráldico e gramática social

tentação exibicionista associada a formas rápidas de ascensão social e económica (nem sempre com a correlativa aculturação), e que comummente se designam por novo-riquismo. A apetência por formas vistosas de reconhecimento aparece, contudo, em Lefebvre como uma característica própria do estrato social que em Oitocentos confirmou o seu poder e se foi incorporando nas elites que antecederam a sua ascensão: Ce qui fait le bourgeois, c’est l’argent et ce n’est pas l’argent. C’est la propriété et ce n’est pas la propriété. [...] Qu’est-ce qui fait le bourgeois ? La respectabilité. Être considéré. Avec la respectabilité et la considération, le paraître se retourne vers l’avoir et l’être; il leur confère un statut moral: la dignité. L’apparence s’établit en essence, et le paraître constitue un être moral. Il pénètre dans l’être. Il crée une qualité qui appartient enfin à l’individu bourgeois comme tel: l’aristocratie du mérite [1971, 179].

Identidade e diferença são, assim, tanto a nível individual/familiar como a nível mais geral, os pólos de tensão em que se movimenta a heráldica oitocentista. O seu carácter aristocrático não a isola, antes relaciona culturalmente, com o grupo emergente. Essa relação não será, contudo, isenta de sinais bem visíveis de antagonismos vários. Essa é a essência do interesse do seu estudo para a problemática que nos ocupa

Das cartas de brasão como retrato A concessão de uma carta de brasão de armas respondia, por via de regra, a um requerimento nesse sentido, no qual se expunha a fundamentação da pretensão – carta de sucessão, alteração ou correcção a uma outra anteriormente consagrada, atribuição de «mercê nova» – e onde se evidenciavam as razões do pedido (Zuquete e Faria 1987, 325-326). Neste ponto há duas figuras fundamentais, que podemos apresentar como pólos «puros» (que permitem, obviamente, combinações várias):

n A reivindicação de ser integrado no privilégio de uma família brasonada e obter o direito ao uso dos seus símbolos Neste tipo de documentos («cartas de sucessão»), «o soberano limita-se a reconhecer ao impetrante, depois de justificada a respectiva nobreza de geração, a sua fidalguia de linhagem, e por inerência, a de cota d’armas e o direito do mesmo, por sucessão hereditária, às armas respectivas» (Zuquete e Faria 1987, 325) Um exemplo entre muitos pode ser o de João Teixeira Soares de Brito: «Fidalgo Cavaleiro da Casa Real, proprietário, residente na cidade de 123

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 124

Rui Graça Feijó

Coimbra, natural de Tentúgal, filho legítimo de Joaquim Maria Correia Soares de Brito, e de sua mulher D. Tereza Teixeira da Rocha, neto paterno de Francisco Soares de Brito e de sua mulher D. Maria do Amparo Correia de Menezes, neto materno de António Teixeira da Rocha e de sua mulher D. Tereza Matias, atendendo a que ele mostrou por documentos ser descendente de famílias nobres, atendendo a que os seus antepassados usaram o brasão de Armas, o que também prova por documentos, etc. Hei por bem conceder-lhe o brasão de armas do apelido Andrade com que foi agraciado em tempos remotos Diogo de Andrade da Fonseca Figueiredo, de quem o mesmo é descendente por linha paterna [...]. Alega descender por parte paterna de Teixeiras, Coelhos, Sampaios e Vieiras, o que justificou por processo de justificação de nobreza e mais documentos. Escudo: esquartelado de Coelhos, Teixeiras, Sampaios e Vieiras. Sobre tudo um escudete de Andrades. Timbre: Coelhos» (Valdez 1992, 38-39). A «dedução genealógica» podia ser mais extensa. Amâncio da Silveira Gago da Câmara, conde de Fenais, que havia primeiramente apresentado (em 1902) um requerimento do qual constava a sua ascendência até aos 5.os avós, entendeu mais tarde (1905) requerer acrescentamento ao seu brasão de armas face a uma árvore genealógica que se alarga até aos oitavos avós – dez gerações! – «sendo todos os ascendentes do sobredito Conde de Fenais pessoas nobres e que sempre se trataram à lei da Nobreza» (cit. in Valdez 1992, 6-9). A interpretação destas cartas não pode deixar de ter em linha de conta que alguma fantasia poderia entrar na composição das genealogias, e sobretudo que «os armigerados que não se queriam juntar aos Fidalgos de Cota d’Armas agraciados com armas novas tinham uma Carta de Brasão d’Armas que era aparentemente de dedução linhagística. Poderiam assim ter eventualmente um lugar entre a velha aristocracia. [...] Era uma das originalidades criadas pelos Oficiais de Armas portugueses do século XIX» (Norton 2004, 25).11 11 Importa referir aqui que em torno da concessão de cartas de brasão de armas e do processo de nobilitação em geral há importante evidência de venalidade, razão pela qual a veracidade das afirmações proferidas pelos requerentes nem sempre terá sido devidamente sopesada. Em associação com este problema, refira-se que Francisco de Vasconcelos mostrou o peso da vontade que o Estado liberal tinha de receber taxas e impostos correlacionados com as qualificações nobiliárquicas – tão importantes eram que alguns beneficiários deixavam por preencher os requisitos legais para a ostentação dos seus títulos ou chegavam ao ponto de os recusar (Vasconcelos, 2003, especialmente pp. 74-81). Também esta pressão para aumentar receitas pode ter efeitos sobre a verificação isenta dos argumentos aduzidos pelos requerentes.

124

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 125

Vocabulário heráldico e gramática social

Para o propósito deste ensaio, porém, esta situação é de secundária importância, valendo sobretudo pelo que indicia de uma fractura entre os candidatos a este tipo de honrarias que poderá ser significativa. Trata-se de uma forma de insistência sobre os elementos mais tradicionais – e estamos em busca sobretudo de inovações.

n A descrição do mérito individual que justificaria a concessão da mercê De facto, nas «cartas de mercê nova», «o monarca faz o agraciado fidalgo de linhagem e de cota d’armas e, simultaneamente, cria as armas dessa nova linhagem [...] tudo em recompensa de relevantes serviços, por norma descritos na respectiva mercê» (Zuquete e Faria 1987, 325). A Manuel José do Conde, visconde do Rosário, fidalgo cavaleiro da Casa Real e moço fidalgo com exercício, concedeu D. Luís armas de mercê nova como recompensa «por actos de beneficência em favor dos desvalidos» (Valdez 1992, 57-58). O mesmo rei agraciou «por sentimentos generosos e filantrópicos recentemente manifestados em favor de um estabelecimento de beneficência pública» a Severiano Ribeiro da Cunha, visconde de Cahuipe (Valdez 1992, 65). A Francisco Bento Alexandre de Figueiredo Magalhães, fidalgo cavaleiro da Casa Real, médico honorário da Real Câmara, el-rei D. Carlos faz mercê do título de visconde de Gomiei e passa carta de armas «em atenção a serviços prestados em epidemias no Ultramar» (Valdez 1992, 27-28). Valdez presta, na transcrição parcial que faz destes documentos, muito menos atenção aos atributos pessoais dos agraciados do que à sua genealogia, transcrevendo esta sempre que possível, dando daqueles notícia geralmente sucinta. Outras vezes, apresenta uma biografia resumida, que se presume ser a base da outorga da mercê. A realidade tal como evidenciada por um caso como o de Venceslau de Lima alerta-nos para a necessidade de não confiarmos cegamente na classificação das mercês, e para estarmos prevenidos para o carácter sincrético de que se revestem. Venceslau de Sousa Pereira de Lima, doutor em Filosofia pela Universidade de Coimbra, do Conselho de Sua Majestade, Grã-Cruz da Ordem de Nossa Senhora de Vila Viçosa, comendador da Ordem de Santigo da Espada, ex-director da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, lente da Academia Politécnica da mesma cidade, antigo deputado da Nação, antigo governador civil dos distritos de Vila Real e de Coimbra, antigo vogal da secção permanente do Conselho Superior da Instrução Pública, antigo vice-presidente e presidente da Câmara Municipal do Porto, provedor da Misericórdia nesta mesma cidade, foi agraciado por 125

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 126

Rui Graça Feijó

D. Carlos com... armas de sucessão. Perante um curriculum invulgarmente rico, a opção (do agraciado?) recai em evidenciar a sua linhagem. Em contraste, o conde do Canavial, João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos foi agraciado «atendendo aos serviços por ele prestados à ilha da Madeira de onde é natural» com novas armas – ele que descendia por parte materna das famílias Moniz, Barreto, Cabral e Ornelas, ou seja, da aristocracia titulada. Valdez não se coíbe de comentar «o paradoxo de uma Mercê nova para pessoa descendente de famílias nobres e com armas» (Valdez 1992, 35) Assim, há um primeiro elemento autobiográfico que deve estar presente no requerimento, e seguramente uma intervenção dos requerentes na sugestão do vocabulário heráldico a usar. Ambos estes aspectos – pese embora a forma simplificada como os pudemos tratar nas linhas acima – autorizam que o brasão seja lido como um auto-retrato. Mesmo que possa haver elementos de carácter formalizado e tipicamente burocrático na matriz dos requerimentos, o cuidado com que por vezes se solicita uma correcção ou uma alteração de aparente pequena monta evidencia que os destinatários das cartas de brasão de armas se reviam efectivamente no seu próprio brasão, e dele cuidavam como elemento importante da sua imagem pública na justa medida em que não desejavam que dele se pudessem fazer inferências que não se adequassem à sua situação. Vejamos alguns casos concretos: João José dos Reis, conde de São Salvador de Matosinhos, por carta de 19 de Novembro de 1862, requereu em 1874 nova carta «em que se acrescente o título e condecorações», e mais tarde, em 1880, fez novo pedido para acrescentamento de armas. De um escudo com as armas da família Rocha, passou a outro em que essas armas eram encimadas pelo coroa de visconde tendo como diferença uma brica azul com uma arruela de oiro, e posteriormente para um complexo brasão «partido: na primeira pala, o da Real Confraria de S. Salvador de Matosinhos, que é um escudo partido em pala, tendo na primeira as Armas Reais de Portugal, e na segunda em campo de prata as cinco chagas de Cristo de vermelho, gotejantes, dispostas em sautor; a segunda pala, cortada em faixa: no campo superiror Reis e no inferior Rochas, sendo estas bricadas de azul com uma arruela de oiro, conforme a primitiva carta. Corôa de Conde. Legenda: Salvatori Placet Caritas» (Valdez 1992, 35-36) João Manoel Fernandes Feitosa, conde da Feitosa, alegou ter obtido concessão de carta de antes de ser titular, e tendo sido elevado à condição de conde, pretendia – e obteve – nova carta com a simbologia adaptada à nova situação (Valdez 1992, 36-37) 126

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 127

Vocabulário heráldico e gramática social

Sebastião Deiró, nataural de Ponta Delgada (Açores) e residente em Manchester, proprietário, foi agraciado em 1902 com uma carta de brasão de armas cujo escudo era «partido em pala: na primeira, três pombos castanhos e brancos postos em roquete; na segunda, em campo vermelho, uma serpente de prata manchada de verde, com duas setas de oiro na boca. Timbre: três plumas sendo duas vermelhas e a do meio branca. Legenda: Deo et Patria». Três anos mais tarde, requereu nova carta, modificando o que lhe fora concedido, e que passou a ser «esquartelado, tendo no primeiro quartel, em campo de prata, cinco quinas azuis postas em aspa; no segundo, em campo vermelho, uma serpente de prata manchada de verde com duas setas de oiro na boca; no terceiro em campo de oiro três pombas com os peitos brancos e as asas castanhas; no quarto, em campo de prata, um leão sanguíneo. Coroa de barão; e o restante idêntico ao anterior. A justificação para esta alteração reside na identificação de mais elementos nobres na ascendência do barão de Sousa Deiró (Valdez 1992, 64-65). Estes exemplos parecem oferecer suporte à ideia segundo a qual os agraciados se reviam nas armas recebidas, e sempre que entendiam ser oportuno adequá-las a uma nova situação, faziam questão de obter as correcções que dissipassem qualquer dúvida quanto ao significado das diversas componentes do seu brasão – por confirmação, acrescentamento, renovação. Era o seu retrato, a sua imagem, que estava em causa. Por isso, todo o cuidado era pouco... No presente ensaio presta-se particular atenção aos títulos de «mercê nova». Muito embora eles representem menos de um terço da totalidade das cartas de armas concedidas entre 1834 e 1910, a nossa fonte – que se prende com o período 1871-1910 – revela uma imagem algo diferente : as 141 entradas dizem respeito a 77 cartas de «mercê nova» (mais de metade), sendo as restantes 47 de sucessão, 7 de sucessão com acrescentamento, 6 de renovação, e 4 de autorização de uso de armas estrangeiras. Neste contexto, as armas de «mercê nova» aparecem claramente como a maior fatia, em constante crescimento, de tal forma que no fim da Monarquia Constitucional eclipsavam quase por complerto as cartas de dedução linhagística.12 Serão estas onde a confluência entre a tradição (da gramática) e a inovação (vocabular) mais facilmente se poderá analisar.

12 Curiosamente, a última carta de armas da Monarquia Constitucional é uma carta de sucessão passada a Duarte de Andrade Albuquerque de Bettencourt, conde de Albuquerque, datada de 6 de Março de 1910 (Valdez 1992, 23-24).

127

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 128

Rui Graça Feijó

Estas cartas, ao consagrarem geralmente uma trajectória individual independente de condicionantes de ancestralidade e de parentesco (como sucedia nas cartas ditas de dedução), e ao remeterem, como veremos, para o presente histórico a tradução imagética das qualidades do agraciado (e não tanto para símbolos já constituídos e pertencentes ao acervo clássico da aristocracia portuguesa) revelam a manipulação do vocabulário heráldico operada por elementos da nova elite de finais de Oitocentos. As outras categorias de cartas de armas, pelo contrário, tendem a reforçar a utilização clássica desse mesmo vocabulário, e poderão ser usadas como contraste – até porque o seu uso revela mais de um aproveitamento de oportunidades que do estabelecimento de uma biografia «moderna» em termos de ascensão social.13

Brasões e elites, novos e velhos Foge cão, Que te chamam barão. Para onde, Se me chamam visconde. Este aforismo, corrente na segunda metade do século XIX,14 encerra uma profunda ambiguidade – e só assim se explica a sua popularidade e capacidade para ser invocado em circunstâncias diversas. O facto social incontornável que lhe confere relevância é o alargamento da concessão de títulos de nobreza. Segundo Caetano de Sousa (cit. in Norton 2004, 23), em 1754 haveria somente 3 duques, 16 marqueses, 37 condes, 3 viscondes e 1 barão – um total de sessenta títulos. Já em 1872 escrevia o visconde de Sanches de Baena: Existiam até o ano de 1855 não menos de trezentos e quinze titulares; desde então para cá tem crescido prodigiosamente esse já crescido número. [...] Há trinta anos a esta parte, isto é, desde 1841, tem-se passado cento e trinta e quatro cartas de sucessão, e de mercês novas quarenta e uma (pertencendo dezasseis dessas aos anos decorridos de 1865 para cá). São mais as mercês novas neste período que todas as concedidas em todo o tempo anterior da monarquia, a contar de 1438. 13 Parece que, desde D. Afonso V, há uma distinção entre armas pertencentes à aristocracia de sangue e as restantes, designadas por «armas plebeias» – embora também se possa encontrar a designação de «armas burguesas» (Norton 2004, 402). 14 Ouvi inúmeras vezes este aforismo nas palavras de minha Avó Maria Luísa (1890-1983), ela própria filha dos quartos viscondes da Carreira.

128

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 129

Vocabulário heráldico e gramática social

Para a aristocracia tradicional, o «pecado» evidenciado no aforismo estava na vulgarização dos títulos que, pelo número, perdiam o valor que a raridade melhor defendia.15 Nas modernas sociedades democráticas as elites tendem a seguir estratégias que permitam aos seus membros «ser visíveis uns para os outros mas invisíveis enquanto grupo para o público» (Cohen 1981, 217 cit. in Lima 2004, 29) e os indivíduos que vivem em condições materiais, culturais, políticas e sociais obviamente privilegiadas, «apesar de terem consciência desse facto, negam pertencer a uma elite, tentando diluir-se na paisagem» (Lima 2004, 29), dada a incompatibilidade entre a sua posição no topo da hierarquia social com os princípios fundadores do novo contrato social de matriz igualitária. O nosso estudo situa-se num contexto distinto deste, marcado profundamente pela cultura da exibição do status, ou seja, da diferença social institucionalizada e codificada. E num contexto como este, a questão das fronteiras, das barreiras à admissão de pessoas de fora, e da exclusividade são claramente assumidas. A única satisfação que a aristocracia clássica poderia ter com a avalhanche de «mercês novas» advinha do facto de os títulos atribuídos serem, na maior parte dos casos, os de barão e visconde, que figuram nos degraus mais baixos da tabela hierárquica. A Monarquia Constitucional apenas concedeu sete títulos de duque – e todos eles a personalidades que já possuíam título de marquês; e fez cerca de trinta novos marqueses, a esmagadora maioria dos quais era detentora de um título de menor relevo (sendo excepções os casos de Saldanha e de Soveral, entre poucos outros). Também restringiu a concessão da honra de «parente d’El-Rei» (Vasconcelos 2003, 20). Mantinha-se assim preservado o núcleo duro da aristocracia brasonada. Por outro lado, o processo de abertura ao exterior, sempre suspeito de ser subversivo, permanecia condicionado – mas suficientemente permeável para absorver a crescente mobilidade social. O uso do aforismo aparece, nesta perspectiva, como uma forma de sobranceria. 15

Note-se, no entanto, que Francisco de Vasconcelos afirma que a ideia da «explosão de títulos de nobreza» no século XIX se arrisca a dar uma imagem «distorcida de uma época em que, como tinha acontecido antes, o estado procurou assimilar, dando-lhes títulos, [...] as elites emergentes» (Vasconcelos 2003, 18), na medida em que põe em causa que o acesso aos títulos possa ser equacionado simplesmente com um alargamento da nobreza que, em seu entender, se dotava de novos instrumentos para fazer valer um estatuto que já detinha enquanto «nobreza civil». A base de sustentação desta tese reside precisamente na constatação da presença entre os novos armigerados e titulados de significativos números de nobres de segunda ordem do Antigo Regime

129

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 130

Rui Graça Feijó

Para a elite «republicana» – que haveria de ter a sua hora de glória em 1910, e que constituía uma parte crescente da elite nacional – o problema apresenta três faces distintas: começa numa crítica implícita à incapacidade da monarquia de abrir suficientemente o seu sistema de reconhecimento, nomeadamente os seus escalões mais elevados, para acomodar o percurso ascendente da nova elite; passa pela desconfiança da integridade do sistema, muitas vezes acusado de venalidade e de falta de rigor na transposição do mérito para a palco das vaidades – e ainda por cima, das pequenas vaidades, que os grandes títulos escasseavam; e termina na contraposição do ethos republicano, baseado no reconhecimento do esforço individual, à glorificação da linhagem – como a Primeira República haveria de evidenciar, ao extinguir os títulos de nobreza e instituir, em sua substituição, comendas e ordens honoríficas não hereditárias. É de realçar, porém, que estamos perante uma polarização de atitudes que permite a modulação, a adaptação, a interpenetração – mais do que uma oposição absoluta, de carácter fundamentalmente retórico. De facto, muitas mercês novas faziam tábua rasa da ancestralidade e reconheciam explicitamente – e simbolicamente – a contribuição individual tão cara aos «republicanos», como já tivemos o ensejo de ver. Além disso, vários títulos eram atribuídos «em vida», estando a sua transmissão hereditária vedada ou, pelo menos, severamente restringida – o que, além de aparecer como uma novidade, desafia o peso que a linhagem e a hereditariedade assumiam na aristocracia tradicional.16 Estamos, assim, no coração de um problema social e cultural complexo: o processo de alargamento da elite portuguesa, no quadro da monarquia, fazia-se através da institucionalização de novas formas de nobilitação – encarada como o veículo mais adequado a exprimir o reconhecimento público e a sinalizar e enquadrar a diferenciação sociocultural que se manifestava no país. Compreensivelmente, as reacções a essa dinâmica institucional não se fizeram esperar – tanto pelo que ela representava de corte com um modelo supostamente rígido e estático, herdeiro do antigo regime, como pelo que ela tinha de frouxo, de incompleto, ao aceitar uma gramática que alguns entendiam desfasada dos novos tempos. Mas a virtude do processo residiria acima de tudo na sua plasticidade, ou seja, na sua capacidade de se comportar como instrumento de integração de diversos estratos sociais, das velhas elites e de

16 Um exemplo entre muitos é o de Luís António de Abreu e Lima, primeiro visconde da Carreira com direito a transmissão por sucessão, e que, em vida, foi conde da Carreira sem direito de transmissão deste título.

130

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 131

Vocabulário heráldico e gramática social

grande parte das novas. Devemos, pois, precaver-nos contra a tentação de considerar preconceituosamente o sistema de nobilitação – e a heráldica que lhe está associada – como uma instituição que atravessaria os tempos agarrada apenas a um ideal perene, imutável, sem história.

De re empirica 17 Consideremos agora os dados empíricos que nos são transmitidos pelas cartas de brasão de armas, cingindo-nos apenas a dois tópicos: as divisas e as figuras. Outros aspectos, como os ornatos externos, terão de aguardar melhor oportunidade.18

Divisas Em heráldica, chama-se divisa a «sentenças [...] que lembram acções dignas de serem recordadas, ou o desejo de as praticar, ou que revelam estados de alma, ou que traduzem sentimentos religiosos, políticos, etc.» (Nóbrega 2003, 173), e que tem o carácter de frase hereditária ou de família, assim se distinguindo de frases pessoais que, em armaria, se designam por «tenção» (Norton 1988, 119; Ferreira 1923, 65-66). Recordem-se as divisas dos príncipes de Aviz, como a famosa «Talant de bien Faire» (do Infante D. Henrique) ou a extraordinária «Désir» do Infante D. Pedro, gravadas nos seus túmulos nas Capelas Imperfeitas da Batalha. As divisas nem sempre terão sido objecto de rigoroso suporte escrito, e aparecem mais pela via da tradição popular que por meios eruditos na heráldica portuguesa mais antiga. Porém – e este ponto é o que nos interessa sublinhar –, a Monarquia Constitucional registou frequentemente 17 Desejo agradecer penhoradamente a Artur Vaz-Osório da Nóbrega a sua contribuição para o esclarecimento de grande parte das dúvidas que a minha ignorância em matéria heráldica frequentemente me colocava. Aproveito também para referir ter sido numa das nossas muitas conversas num café da Senhora Aparecida, Lousada, que fui alertado para aquilo que constitui uma das bases deste ensaio: a novidade vocabular da heráldica de fins da monarquia. O seu a seu dono. 18 Esses elementos que aqui não se consideram, por falta de oportunidade,como «tenentes» e «suportes», têm sido apresentados na bibliografia heráldica recente como elementos característicos da heráldica oitocentista, por influência inglesa, e de grande importância na representação gráfica das armas. A título de mero exemplo, refira-se que a carta de brasão de armas do visconde de Sistelo (1883) prevê que este se apoie «numa figura de mulher representando as Artes, à dextra, e uma figura de Mercurio, respresentando o Comercio, à sinistra» (Nóbrega 2003, 172). Sobre a sua importância na heráldica oitocentista, veja-se Norton (1988).

131

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 132

Rui Graça Feijó

nas cartas de brasão de armas, sobretudo nas de mercê nova, as legendas que deveriam acompanhar o escudo (Nóbrega 2003, 175).19 Na publicação de Valdez que nos serve de suporte há notícia de 36 divisas, 28 das quais em cartas de «mercê nova» (as restantes oito dividem-se por três cartas de autorização de uso de armas estrangeiras, três por cartas de sucessão, e duas por cartas de acrescentamento). Não é claro se a divisa constituía, por si só, um elemento acrescentado. As divisas polarizam-se em torno de dois blocos: por uma banda, o de Deus, Pátria e Fé – com uma evidente carga religiosa, politicamente conservadora; pela outra, o bloco do Trabalho e da Honra. Pro Deo (visconde do Marco), Non Sine Deo (visconde de Somzée), Deo et Patria (barão de Sousa Deiró), Deus e Patria (Agostinho Guilherme Romano): divisas mais clássicas, mais tradicionalistas, seria difícil inventar... Honor et Labor (António Pinto Basto; José Constantino, conde de Vale-Flor; barão do Alto-Mearim), Probitas et Labor (visconde de Morais), Labor Omnia Vincit (conde do Canavial), Nihil Labor Melius (barão de Almeida Santos), Scientia est Potestas (Henrique Mateus dos Santos) – por muito que estas divisas se associem a brasões cuja imagética nos remete para o fundo dos tempos, nelas respira uma cultura nova, o enaltecimento do trabalho e da ciência, do valor do esforço individual no quadro da moderna sociedade emergente. Rien Sans Peine (conde de Paçô Vieira) é mais um exemplo a propósito. E há mesmo quem – usando uma tradição humorística com laivos de brejeirice que estava presente, por exemplo, na divisa da família Távora (figura 7.1) 20 – tenha optado por uma divisa jocosa: Bonum Facito, Aures Claudito (Feito o Bem, Guardado o Ouro, que alguns pretendem que se deveria ler Faz o Bem sem Esperar Retorno) foi a escolha de Henrique, conde de Burnay, conhecido banqueiro de Lisboa (Valdez 1992, 30-31). Obviamente, nem todas as legendas ou divisas se podem classificar com tanta clareza, havendo vários casos de «terceira via», onde, no entanto, sempre se pode realçar a inclusão de elementos novos: Deus, Honor et Labor (visconde de Sucena), Fide in Deo sic Labor Improbus Omnia Vincit (visconde de Taíde).

19 A sua colocação no escudo de armas deveria ser especificada na carta que a concedia. Normalmente, porém, «colocam-se num lintel inferiormente ao escudo de armas» (Nóbrega 2003, 127, 174). 20 As armas dos Távoras são cinco ondas de azul em campo de prata, o timbre é um golfinho, e a divisa «quasqumque fendit» ou «furo-as todas» (Gil, 1968). A figura 7.1 apresenta-nos este brasão num detalhe de um desenho seiscentista no qual o golfinho do timbre se encontra sobreposto ao campo das armas. Um agradecimento especial é devido à Biblioteca Nacional pela autorização dada para a sua reprodução.

132

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 133

Vocabulário heráldico e gramática social Figura 7.1 – Armas da família Távora

A gramática heráldica começa a mostrar a sua agilidade para incorporar um vocabulário novo.

Armas Os brasões, ou escudos de armas, são constituídos por várias partes. Interessa-nos, de momento, recordar que, na heráldica de família, os emblemas que distinguem as pessoas e as famílias se designam por «armas» (Nóbrega 2003, 3). Por sua vez, as «armas» podem ser constituídas por «peças» heráldicas e por «figuras». 133

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 134

Rui Graça Feijó Figura 7.2 – Armas da família Castro

O conceito básico da heráldica de família consiste em fazer corresponder a cada apelido (ou seja, a cada família original) uma representação gráfica constante. No caso de famílias com apelidos compostos pelos nomes heraldicamente já definidos, pode-se dividir o escudo por forma a compor um novo, combinando elementos oriundos dos «costados». 21 As «peças» – também designadas por «peças honrosas» – são constituídas por símbolos, frequentemente de estilo geométrico. Assim, por exemplo, as armas da família Castro (figura 7.2): trata-se de seis círculos de uma cor, que se colocam sobre um fundo de metal, tal como numa face de um dado que exiba o número seis. Heraldicamente, descreve-se do seguinte modo: em campo de prata (o metal), seis arruelas de azul (os círculos), postos em 2, 2 e 2. Este conjunto deverá representar sempre a mesma família. Qualquer mudança implica alteração de significado, como no caso dos círculos que, se passarem a ser de metal (ouro ou prata) recebem o nome de «besantes», terão de ser colocados sobre campo de cor, por via das regras da lei heráldica, e designarão outra família. Outros ramos desta família tinham no seu brasão um número diferente de arruelas. O que se indicou para as «peças» é válido para as «figuras», sendo que estes símbolos são, geralmente, representações estilizadas de animais, vegetais, construções, armas, ou outros objectos. Nóbrega distingue entre as figuras quatro categorias: naturais, sacras, fabulosoas e artificiais (2003, 67 e passim). A representação heráldica clássica submetia o uso de qualquer uma delas a regras rígidas de figuração, que acentuavam o seu ca21 Norton chama a atenção para erros que, na prática, desmentiam o carácter absoluto da norma. Mas trata-se de casos pontuais (Norton 1988, 112-115)

134

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 135

Vocabulário heráldico e gramática social Figura 7.3 – Representação heráldica de águia e leão. Detalhe dos frescos A Lenda de Vera Cruz de Piero della Francesca na Igreja de São Francisco em Arezzo (cerca de 1450)

rácter símbólico, decorativo e estilizado (por contraposição a «naturalista»). Por exemplo, uma das figuras heráldicas mais divulgadas é o leão – representado em posição «rompante»; já o leopardo, representa-se «passante»; a águia «representa-se, em regra, estendida, isto é, de frente, com as asas totalmente abertas, espalmadas, de pontas viradas para o alto do escudo e as penas em número restrito, a cabeça olhando para a dextra, com a língua de fora, as patas afastadas e a cauda com penas ornamentais» (figura 7.3). 135

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 136

Rui Graça Feijó Figura 7.4 – Armas da família Machado

Variadas seriam as razões que levavam uma determinada família a escolher um símbolo específico, ou conjunto de símbolos, como seu emblema. Mas devemos salientar que, entre as armas de família, há um caso especial que merece referência neste contexto: são as chamadas «armas falantes». Nóbrega sustenta que se devem designar deste modo as armas «quando lembram, directa ou indirectamente, o apelido de uma família» (2003, 202). Havendo em língua portuguesa apelidos de família que derivam de elementos da natureza como Lobo (na categoria dos animais), Pedrosa (de pedra, mineral), Carvalho (vegetal), ou objectos comuns como Chaves ou Machado (figura 7.4), a representação mais ou menos estilizada desse objecto ou elemento natural é uma forma possível de traduzir graficamente o nome. Por vezes torna-se necessário recorrer a aproximações para dar conta do carácter «falante» das armas, como no caso do nome do nosso homenageado, Cabral (representado por cabras – figura 7.5). Mas o princípio destas armas é o mesmo: a representação do apelido por um elemento natural que o evoque ou mimetize. 22 Estas armas têm as suas origens nos primórdios da heráldica, sendo conhecidas no caso de Portugal desde o século XIII (Norton 2004, 118). Estamos chegados a um ponto em que se torna possível percorrer as cartas de brasão modernas em busca das novas armas de família que con22

Nóbrega chama ainda a atenção para um outro tipo de armas muito curiosas, as armas «animadas» ou «historiantes», quando «tem distribuído no escudo e no timbre um pormenor de uma dada acção, ou quando tem representada e explicada no escudo e no timbre uma determinada acção em duas fases consecutivas» (2003, 203) Estará aqui um antepassado da banda desenhada ou do cinema de animação?

136

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 137

Vocabulário heráldico e gramática social Figura 7.5 – Armas atribuídas a Pedro Álvares Cabral

sagram. Norton (2004, 19) chama-nos a atenção para que «ao longo do século XIX, se assistiu ao triunfo de novas concepções de estética heráldica». Vejamos como tal fenómeno se traduziu nas peças heráldicas. Agostinho Guilherme Romano, cônsul-geral de Portugal em Hong Kong. Na segunda pala, em campo de oiro, uma árvore do chá, verde. António Ferreira Menéres, negociante de grosso trato. Escudo partido, tendo na primeira pala, em campo de oiro, um caduceu 23 vermelho; e na segunda pala, em campo azul, uma cornucópia de prata, lançando uvas e moedas de oiro. António Joaquim Borges de Castro, visconde das Devesas. Na primeira pala, em campo de oiro, uma devesa de árvores, de sua cor. António Pinto Basto, industrial. Escudo que tem no segundo quartel, em campo vermelho, uma báscula hidrométrica de prata, ao centro, e em cada um dos ângulos um castelo de oiro; no quarto quartel, em campo de oiro, uma águia negra voante, de duas cabeças armadas de vermelho, tendo nas garras um martelo de engenheiro de minas. Cândido Cardoso Colaço, visconde de Monsanto. Campo vermelho, tendo ao centro uma figura de oiro, representando a Indústria, e em cada um dos ângulos uma estrela de cinco pontas. 23

Caduceu é uma «varinha lisa de loureiro ou de oliveira terminada por duas asas de ave e na qual se enroscam duas serpentes afrontadas. Atributo de Mercúrio, deus dos comerciantes» (Nóbrega 2003, 119).

137

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 138

Rui Graça Feijó Figura 7.6 – Armas do barão do Alto-Mearim

Francisco Bento Alexandre de Figueiredo Magalhães, médico. Escudo esquartelado, tendo no primeiro quartel, em campo de oiro, cinco folhas de figueira verdes postas em aspa; no segundo quartel, em campo vermelho, o bastão de Esculápio, de oiro, com duas cobras de prata enroscadas. James Francis Mason, conde de Pomarão. Escudo tendo na parte inferior, em campo de prata, uma roda de mina de cor natural ao centro. João António de Freitas Fortuna, negociante na praça do Porto: no primeiro quartel da segunda faixa, uma figura de mulher. De oiro, sentada e encostada a uma roda de prata, representando a Fortuna. João da Câmara Leme Homem de Vasconcelos, conde do Canavial (Madeira), escudo compreendendo uma figura de mulher, vestida de azul, sentada num rochedo sobre o mar, tendo numa das mãos um ramo de videira e na outra um pão de açúcar; por baixo do braço direito uma cana de açúcar, e na cabeça uma coroa de flores representando a ilha da Madeira. José Álvares de Sousa Soares, visconde de Sousa Soares. Escudo que tem na segunda pala, em campo vermelho, uma torre de prata encimada 138

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 139

Vocabulário heráldico e gramática social Figura 7.7 – Armas do conde de Duparchy

por um sol de oiro e assente sobre uma campina verde, saindo-lhe da porta aberta uma corrente de água. José João Martins de Pinho, barão do Alto-Mearim. Escudo partido, tendo na primeira pala, em campo de prata, uma formiga de sua cor, significando o trabalho. Manuel António Gonçalves Roque, visconde de Sistelo. Escudo partido em pala, tendo na segunda, em campo vermelho, uma mulher de oiro, coroada, tendo na mão três dormideiras, também de oiro, sobre nuvens de prata, representando a Beneficência. Manuel José do Conde, visconde do Rosário. Escudo cujo segundo quartel tem, em campo azul, uma estrela de cinco raios de prata entre nuvens do mesmo metal e em contrachefe o mar, e sobre ele um navio mercante de sua cor, navegando à vela, tendo na popa, em letras de oiro, a palavra «Conde». Dois brasões parecem reunir em si virtudes de exemplo da moderna tendência. Jean Alexis Dauphin Duparchy, conde de Duparchy, construtor de pontes e caminhos-de-ferro, viu ser-lhe atribuído um escudo «talhado de vermelho e prata; na parte superior, em campo vermelho, um anjo de de oiro tendo na cabeça um facho também de oiro, na mão esquerda uma mira de prata e aos pés um compasso e uma régua do mesmo metal; na parte inferior, em campo de prata, uma montanha de sua cor e aberto nela um túnel de oiro, e saindo dele, uma locomotiva também de oiro. Coroa de conde. Timbre: uma flor-de-lis azul. Suportes: dois cavalos marinhos de bronze armados de oiro» (1896). O «naturalismo» que já vimos nas linhas anteriores associa-se a uma tentativa de preencher todo o campo do escudo com peças e figuras, e 139

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 140

Rui Graça Feijó

mesmo de o enquadrar com coroa, timbre e suportes – uma das tendências oitocentistas sublinhadas pelos heraldistas; 24 a outra consiste na introdução de figuras que até então não estavam presentes no vocabulário da heráldica portuguesa, e representam um contributo original deste período.25 Joaquim de Sousa Mesquita, visconde do Sorraia, súbdito brasileiro e químico industrial, recebeu uma carta de brasão de armas com a seguinte composição: «Escudo: esquartelado. No primeiro quartel, em campo de oiro, uma mesquita de azul, tendo sobre a cúpula um moiro vestido de vermelho com turbante azul e vermelho, e empunhando uma haste preta com bandeira vermelha; no segundo quartel, um rio de azul e prata que banha uma planície de sua cor, sobre a qual corre um trecho de via férrea, e ao fundo, limitando o horizonte, quatro montes de sua cor, sob o céu azul; no terceiro quartel, em campo de púrpura, seis faixas de oiro e, sobreposta, uma banda azul, carregada de sete flores-de-lis de oiro; no quarto quartel, em campo de prata, a esfera terrestre, apresentando de frente a América do Sul... Coroa de visconde. Timbre: uma estrela de oiro de cinco raios. Suporte: dois leões de oiro (1906). Dir-se-ia que aqui temos um compêndio de heráldica quase completo: armas falantes no sentido clássico (Mesquita), armas de recorte naturalista (via férrea, esfera terrestre), armas tradicionais (faixas e flores-de-lis); com timbre, coroa e suportes. Falta talvez a legenda... Mas qualquer indivíduo que olhasse este brasão, e conseguisse identificar as suas componentes, 24 Seria paradigmático desta tendência o escudo outorgado pela última carta de armas da monarquia, e usado por Duarte de Andrade Albuquerque de Bettencourt, conde de Albuquerque. Este escudo é esquartelado (o máximo que a a Lei Heráldica permitia), contendo as armas de Albergarias, Andrades, Câmaras e Bettencourts; sobre tudo isto, as armas dos Albuquerques, elas próprias esquarteladas de Portugal moderno com filete de bastardia e de vermelho com cinco flores-de-lis em sautor. Outro exemplo poderia ser o outorgado em 1882 a Francisco Pons Júnior: esquartelado, tendo no primeiro quartel, em campo de prata, uma banda vermelha, faixada de oiro, entre seis flores-de-lis azuis; o segundo quartel esquartelado, tendo no primeiro, em campo vermelho, um leão de oiro rompante, no segundo, em campo azul, um castelo de prata, e assim os contrários; o terceiro quartel igual ao segundo; no quarto quartel, em campo verde, um pelicano de oiro entre seis besantes postos em pala. Timbre: uma águia azul de duas cabeças com asas de oiro. Suportes: dois anjos de cor natural [sic!] alados e enroupados de azul e branco. O do conde de Lumbrales, Ricardo Pinto da Costa, atribuído «por Sua Majestade Católica», evidencia uma idêntica tendência, que sugere não ser esta um exclusivo da heráldica portuguesa. 25 Em várias circunstâncias, e nomeadamente na discussão que se seguiu à primeira apresentação deste trabalho, pude deparar com afirmações segundo as quais a heráldica deste período era «de má qualidade». Certamente, não me cabe um papel de avaliador da qualidade heráldica, que não pretendo discutir. Apenas sublinho aqui que esse comentário revela a percepção de uma diferença – e é precisamente essa diferença que me cumpre sublinhar. Sobre ela existe uma secção neste texto.

140

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 141

Vocabulário heráldico e gramática social Figura 7.8 – Armas do visconde do Sorraia

adivinharia o nome do seu titular, adivinharia a relação próxima com o Brasil, e especularia sobre as suas actividades económicas. Como bem referiu o estudioso da heráldica portuguesa Manuel Artur Norton, estamos perante evidência de que a característica marcante da armaria oitocentista é diferente da de outras épocas: «[o]nde se patenteia melhor o cunho original da armaria e da heráldica de novecentos [sic] é sem dúvida no aspecto naturalista das suas peças, nos arranjos paisagísticos dos seus escudos, e na introdução de novas peças de tal forma peculiar, que tornam este período original em relação aos anteriores» (Norton 1988, 124) O «naturalismo» aproxima-nos das clássicas armas falantes. Mas se nuns casos (visconde das Devesas) procura traduzir já não o apelido da família mas sim o seu título, a maior parte deles leva mais longe a ruptura com o princípio linhagístico associado ao nome: é a biografia do agraciado, não a dos seus antepassados, que é directamente revelada pela iconografia falante. Porque aqui se cultiva a transparência, a facilidade de leitura – complementada pela riqueza de detalhes e de elementos constitutivos, como se se quisesse compensar com este «barroquismo» a pobreza simbólica.

De re speculativa Após esta digressão pela re empirica, que poderemos recuperar para a discussão com que abrimos este ensaio? Se a heráldica pode ser lida como um auto-retrato de quem dela faz uso, no sentido sustentado neste ensaio, as páginas acima parecem indicar que tanto a nível da legenda ou motto, como na definição dos elementos 141

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 142

Rui Graça Feijó

gráficos que haveriam de compor o brasão de armas, os novos titulares portugueses manipulavam a gramática heráldica e o seu vocabulário, imprimindo-lhe um cunho novo. A leitura que se propõe sublinha que, no contexto da Monarquia Constitucional, a concessão de «cartas de brasão de armas» não pode ser liminarmente equacionada com a ideia de «imitação aristocrática», desprovida de uma linguagem – e de identidade cultural – própria por parte de sectores significativos da nova elite «burguesa» (comerciantes, industriais, profissionais liberais, etc.). Por outras palavras, o que esta manipulação parece desmentir é a ideia de que se trataria de uma «emulação social retardatária» no sentido de Friedland. 26 Pelo contrário, encontramos claros sinais de uma afirmação que se manifesta na manipulação dos símbolos heráldicos que absorvem um vocabulário inédito para veicular novos valores e marcar uma dupla distinção: a da pertença a um grupo restrito, e, no seio da elite portuguesa, a de um discurso moderno. A sugestão mais forte que emerge das páginas anteriores aponta no sentido de a heráldica constituir uma gramática estabelecida, conexa com o modelo monárquico de organização social e política, capaz de suportar uma manipulação do vocabulário, dos símbolos e sinais (concretos e individuais) aos quais fornece um quadro de referência e de sentido. Esse moderno vocabulário caracteriza-se pela inovação, ou seja, pela introdução de motivos de diferenciação relativamente ao «dicionário» clássico. Extrapolando: o alargamento da base social da nobreza titulada, condição indispensável para que esta pudesse manter o seu estatuto de modelo de referência e de organização maioritária das elites no quadro de uma alteração profunda das estruturas sociais, utilizou o quadro institucional próprio da Monarquia Constitucional – o processo de nobilitação e correspondente habilitação com cartas de brasão de armas. Para o fazer, teve de consentir e de adoptar um vocabulário heráldico em que a afirmação da novidade parece desempenhar um papel substancialmente mais importante que a imitação. É esta sua plasticidade que explica, em ultima análise, o seu sucesso – não tanto a retórica intemporal com que recobre a sua articulação com a «monarquia de setecentos anos», como se a «monarquia» de D. Carlos fosse a mesma de Afonso Henriques, do Príncipe Perfeito, ou de D. José. Vimos como essa novidade se insinua nas legendas adoptadas, operando uma deslocação de um quadro de referência sobretudo religioso,

26

Ver Martins (1998, 129).

142

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 143

Vocabulário heráldico e gramática social

teocêntrico, para um novo quadro em que a moral do esforço individual, do trabalho, da construção de fortuna material no exercício de uma actividade económica quotidiana, persistente, constitui a virtude capital que o brasão celebra. Vimos também como a formalização simbólica da tradução dos nomes em imagens, a escolha das imagens que haveriam de representar o indivíduo – e posteriormente a sua descendência – no seu brasão, passou a privilegiar uma linguagem estética de pendor «naturalista», acompanhando aliás o sentido estético global que muito bem foi acentuado nos estudos de José-Augusto França (por exemplo, França 1990), e que tanto havia de perdurar entrado já o século XX. A tradição das armas falantes foi recuperada – mas profundamente adaptada. E os episódios marcantes da vida de quem foi agraciado ganham relevo por contraposição a elementos intemporais ou linhagísticos. O campo de reflexão aberto por estas constatações está longe de poder considerar-se encerrado. Pelo contrário: há pistas que parecem dever ser seguidas, se para tanto houver engenho e arte. Por detrás do espelho espreita, de facto, uma nova elite portuguesa.

Bibliografia Abrantes, Marquês de. 1992. Introdução ao Estudo da Heráldica. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa – Biblioteca Breve. Baena, visconde de Sanches de. 1991 [1872]. Archivo Heráldico-Genealógico. Lisboa: Typographia Universal. Brasil, Américo. 1986. Corrupção e Incompetência no Cartório da Nobreza. Porto: Athena. Bourdieu, Pierre. 2010. A Distinção. Uma Crítica Social da Faculdade de Juízo, Introdução de Diogo Ramada Curto, Nuno Domingues e Miguel Bandeira Jerónimo. Lisboa: Edições 70. Cabral, Manuel Villaverde. 1976. O Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal no Século XX. Lisboa: A Regra do Jogo. Cohen, Abner. 1981. The Politics of Elite Culture: Explorations in the Dramaturgy of Power in Modern African Society. Berkeley, CA: University of California Press. Corte-Real, Miguel Maria Telles Moniz. 2003. Fidalgos de Cota de Armas do Algarve. Camarate: Edição do Autor. Coss, Peter, e Maurice Keen, eds. 2003. Heraldry, Pageantry and Social Display in Medieval England. Woodbridge: Boydell and Brewer. Ferreira, Guilherme Luís dos Santos. 1920-1923. Armorial Português, 2 vols. Lisboa: Livraria Universal. França, José-Augusto. 1990. A Arte em Portugal no Século XIX, 3.ª ed. Venda Nova: Bertrand. Friar, Stephen, e John Ferguson. 1999. Basic Heraldry. Londres: A&C Black Publishers. Gil, Duarte. 1968. Em Redor das Armas dos Távoras. Sintra: Edição do Autor.

143

07 MVCabral Cap. 7_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 144

Rui Graça Feijó Ginzburg, Carlo. 2001. «Representation». In À distance – neuf essais sur le point de vue en hstoire. Paris: Gallimard, 73-88. Godinho, Vitorino Magalhães. 1977 [1972]. Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa. Lisboa: Arcádia. Lefebvre, Henri. 1971. «Sociologie de la bourgeoisie». In Au delà du Structuralisme. Paris: Editions Anthropos, 165-193. Lima, Maria Antónia Pedroso. 2002. Grandes Famílias, Grandes Empresas. Lisboa: Publicações Dom Quixote. Little, J. P. Brooke. 1998. An Heraldic Alphabet. Londres: Chrysalis Books. Martins, Hermínio. 1998. Classe, Status e Poder e Outros Ensaios sobre o Portugal Contemporâneo. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Maza, Sarah. 2003. The Myth of the French Bourgeoisie – An Essay on the Social Imaginary, 1750-1850. Cambridge, MA e Londres: Harvard University Press. Monteiro, Nuno Gonçalo Freitas. 1998. O Crepúsculo dos Grandes. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Monteiro, Nuno Gonçalo Freitas. 2003. Elites e Poder. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Morazé, Charles. 1966. Os Burgueses à Conquista do Mundo. Lisboa: Cosmos. Nóbrega, Artur Vaz-Osório. 2003. Compêndio Português de Heráldica de Família. Porto: Mediatexto. Norton, Manuel Artur. 1988. «Da armaria e da heráldica portuguesa contemporânea», Boletim de Trabalhos Históricos, 39, 111-163. Norton, Manuel Artur. 2004. A Heráldica em Portugal, 2 vols. Lisboa: Dislivro Histórica. Pastoureau, Michel. 1997. Heraldry – Its Origins and Meaning. Londres: Thames & Hudson. Reis, Jaime. 1993. «José Maria Eugénio de Almeida, um capitalista da regeneração». In O Atraso Económico Português em Perspectiva Histórica: Estudos sobre a Economia Portuguesa na Segunda Metade do Século XIX – 1850-1930. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Serrão, Joel. 1959. Temas Oitocentistas I. Lisboa: Ática. Serrão, Joel. 1962 Temas Oitocentistas II. Lisboa: Portugália. Serrão, Joel. 1963-1970 Dicionário de História de Portugal, 4 vols. Lisboa: Iniciativas Editoriais. Slater, Stephen. 2002. The Complete Book of Heraldry. Leicester: Anness Publishing. Slater, Stephen. 2004a. The History and Meaning of Heraldry. Leicester: Anness Publishing. Slater, Stephen. 2004b. Living Heraldry. Leicester: Anness Publishing. Turnbull, Steven. 2002. Samurai Heraldry. Colchester: Osprey. Valdez. Ruy Dique Travassos. 1992 [1935]. As Cartas de Modernas. Porto: Livraria Esquina. Vasconcelos, Francisco de. 2003. A Nobreza do Século XIX em Portugal. Porto: Centro de Estudos de Genealogia, Heráldica e História da Família da Universidade Moderna. Velho, António José Vaz. 1958. Thezouro Heráldico de Portugal. Lisboa: Gabinete de Estudos Heráldicos e Genealógicos. Zuquete, Afonso E. M., e António Machado Faria. 1987. Armorial Lusitano. Lisboa: Editorial Enciclopédia.

144

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 145

Filipa Freitas

Capítulo 8

Jeunesses Syndicalistes: violence et action directe dans les années 20 La question de la violence, indissociable de la montée des luttes sociales et du républicanisme, est au cœur de la formation et de la brève existence de la République portugaise. Jusqu’en 1923, le mouvement ouvrier connaît un grand dynamisme. Mais très vite, la perte des effectifs, les scissions variées (entre CGT et PCP, partisans de l’ISR et pro AIT, partisans de la violence et modérés...), les défaites multiples (défaites des mouvements grévistes et surtout la fin du «pain politique»), la crise économique (chômage et inflation), et la bureaucratisation de la Centrale Syndicale plongent le mouvement dans la crise. Mais aux origines du reflux du mouvement ouvrier se trouvent aussi l’affrontement direct avec un mouvement patronal incisif, qui s’organise en somatenes et groupes armés d’intervention contre la CGT, et une forte répression gouvernementale (à titre indicatif, de 1919 à 1921, les effectifs de la GNR passent de 4575 individus en 1919 à 14341 en 1921) (Ramos 1993, 622). En réponse à cette répression, le mouvement ouvrier se morcelle et voit émerger en son sein des contre-groupes ouvriers d’action directe qui font appel à la violence et à l’attentat. Entre le 14 avril et le 14 mai 1924, O Século estime à plus de 100 le nombre de bombes trouvées dans les rues de Lisbonne.1 De même, près de 325 bombes auraient éclaté dans les rues de la capitale entre 1920 et 1925, ce qui nous permet de mettre directement en parallèle les cas de Lisbonne et de Barcelone, comme pôles européens de l’agitation révolutionnaire (Baena 2003, 17). Comme le suggère António José Telo, le terrorisme est davantage une conséquence du reflux du mouvement ouvrier qu’une cause de celui-ci. En effet, le nombre de grèves et d’attentats sont des données inversement proportionnelles, 1

O Século, 14 mai 1925, «Os dinamitistas».

145

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 146

Filipa Freitas

puisque tandis que le nombre de grèves baisse, le nombre d’attentats augmente de façon significative à partir de 1924. Ce recours croissant à la violence serait comme le prétend Charles Tilly un « thermomètre de la désaffection sociale ». Mais le terrorisme n’est pas non plus un phénomène qui s’explique par une seule et même cause (Tilly 2004, 9), comme nous allons le voir au travers du cas énigmatique d’un des groupes d’action directes les plus représentatifs de la période : celui de la Légion Rouge. Mais avant, cherchons à comprendre le rôle qu’a joué la Jeunesse Syndicaliste dans les épisodes de violence qui caractérisent ces années.

Les Jeunes Syndicalistes dans l’action directe L’implication des Jeunes Syndicalistes dans l’action directe n’est plus à prouver. L’explosion qui a lieu le 29 décembre 1921, au siège de la CGT et des Jeunesses Syndicalistes, en témoigne de façon flagrante. Alors qu’un mouvement insurrectionnel réactionnaire se prépare aux abords de Lisbonne, des militants des JS et des Jeunesses Communistes fabriquent des bombes au siège de la CGT, après avoir pris la décision de constituer un « Comité révolutionnaire de Défense sociale », le CDS, ayant comme objectif de « faciliter les moyens nécessaires à l’emploi de la violence révolutionnaire ».2 Une explosion accidentelle blesse quatre jeunes, Raúl dos Santos,3 métallurgiste, Agostinho das Neves,4 Castro Simões et Matias Sequeira. Trois autres jeunes, Joaquim Estrela, trésorier du noyau de Lisbonne, Armando dos Santos, ex-secrétaire de la FJS et membre depuis peu des Jeunesses Communistes, et Jaime de Figueiredo, secrétaire de la Fédération des JS, périssent dans l’explosion. L’implication des jeunes dans la fabrication de bombes est indéniable, d’autant plus que ceux qui se trouvent sur les lieux exercent des fonctions de responsabilité dans l’organisation juvénile. Cet épisode est donc la preuve que les jeunes fabriquent des bombes, mais il témoigne aussi de la collaboration initiale entre Jeunes Syndica2

AHS, Caisse 98, Lettre de la FJS à la Commission Administrative du syndicat unique des classes métallurgiques de Lisbonne, le 26 octobre 1921. La FJS y demande de l’aide financière pour le CDS. 3 Jeune Syndicaliste du noyau de Lisbonne, il est aussi délégué du noyau métallurgique au premier Congrès des jeunes. 4 Agostinho das Neves (25-5-1905, Leiria-1975, Paris) est ouvrier typographe et journaliste.

146

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 147

Jeunesses Syndicalistes: violence et action directe dans les années 20

listes et Jeunes Communistes. La complicité de la CGT ressort, malgré un rejet de façade de ce type de pratiques, l’accident ayant eu lieu dans son propre siège. Cette « ambiguïté au sujet de la violence » n’est pas propre qu’à la CGT: « elle caractérise les luttes pour le contrôle syndical ».5 D’autres épisodes corroborent l’implication des Jeunes Syndicalistes dans la lutte sociale. Grâce aux Archives, nous avons pu suivre les parcours caractéristiques de certains jeunes, et constater la porosité des frontières entre organisations syndicales. En mars 1922, une grève générale des transports à Lisbonne dégénère : de nombreuses bombes explosent et les tramways ne peuvent plus circuler. La police fait de nombreuses arrestations arbitraires, certaines même la veille de la grève. Ezequiel Seigo, Jeune Syndicaliste serrurier, qui devient plus tard Jeune Communiste, et qui est alors âgé de 17 ans, est arrêté le 13 mars, soupçonné d’avoir participé aux émeutes. Il a sur lui Le dernier jour d’un condamné, de Victor Hugo, et nie avoir participé dans la grève ou avoir posé des bombes. Il est finalement relâché. Quelques mois plus tard, en août, Ezequiel est de nouveau arrêté. La police l’accuse d’avoir lancé des bombes Avenue da Liberdade, devant la Compagnie des Eaux avec José de Melo, agitateur que nous pensons être José de Melo Aguiar, du noyau de Lisbonne. Les sept bombes utilisées leur auraient été fournies par Joaquim Atayde, sur lequel nous ne possédons aucune information. Ezequiel a un large casier: il aurait participé à l’attentat de la typographie de l’église de la Sé, qui tue un garde nocturne ; à celui des juges du Tribunal de Défense Sociale ; à celui de Sérgio Príncipe ; ou encore à celui de l’Avenue Fontes Pereira de Melo, où un policier est blessé. Lorsqu’il est arrêté, il est en possession d’un pistolet qui lui aurait été donné par Adriano de Figueiredo, révolutionnaire connu des autorités. Sans réserve, Ezequiel avoue être membre des Jeunesses Communistes.6 Il fait donc partie de cette portion de jeunes qui a quitté les Jeunesses Syndicalistes pour les Communistes, mais il retourne bientôt aux premières. En mai 1924, il sera fusillé par la police avec deux autres Jeunes Syndicalistes, à Olivais. João Gomes est un autre cas intéressant. Jeune Syndicaliste de Lisbonne et ouvrier de la construction civile âgé de 20 ans, il possède éga5

Elle « se trouve à la base du dualisme qui affectait la CNT depuis ses origines, aussi bien au niveau de son idéologie qu’au niveau de sa tactique », in Pradas Baena (2003), 79. Ces mêmes conflits se retrouvent en Espagne, et opposent bourgeoisie syndicaliste (Salvador Seguí et Angel Pestaña), avant-garde bolchevique (Andreu Nin, Joaquim Maurín), maximalisme anarcho-syndicaliste (Manuel Buenacasa) et anarchistes purs qui refusent la société bourgeoise. 6 ATT, PIDE/DGS, PSE, Procès n.º 1991.

147

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 148

Filipa Freitas

lement un lourd casier judiciaire.7 En juin 1923, il est accusé d’être un des auteurs de l’attentat visant l’usine de céramique « Lusitânia », réalisé en collaboration avec le charpentier Quirino Fernandes 8 et le Jeune Syndicaliste José Jorge.9 Il participe à plusieurs attentats contre la force publique pendant les grèves générales et lance des bombes le 10 mai 1923 contre les tramways qui refusent de faire grève. Il aurait par ailleurs projeté, avec Daniel Severino, Jeune Syndicaliste de Lisbonne âgé de 19 ans, et António Leitão, de lancer une bombe au café « Martinho », bombe qu’ils finissent par laisser dans la cage d’escalier d’un immeuble, près d’une boutique de timbres et dont l’explosion fait un mort et deux blessés. Toujours selon les Archives de police, le même João Gomes ferait partie du groupe d’action directe « Humanidade livre », spécialisé dans les attentats contre les forces de police. Ce groupe existe vraisemblablement, puisqu’il est mentionné dans un document trouvé par la PSE en 1927 sur Arnaldo Simões Januário, également jeune syndicaliste.10 João Gomes est par la suite arrêté alors qu’il rendait visite à des prisonniers au fort S. Julião da Barra, avec lesquels il aurait prévu de préparer d’autres attentats pour protester contre les nombreux emprisonnements policiers. Sa carte de membre de A Batalha et de la CGT figure dans les documents de son procès. Bien entendu, Gomes réfute toutes les accusations et nie tout en bloc. Ce Jeune Syndicaliste est de toute évidence lié à un groupe d’action directe et impliqué dans la pratique d’attentats ; mais il l’est aussi dans l’organisation juvénile : il fait partie de la Commission exécutive de son noyau, représente la Fédération des Jeunesses, participe aux Conférences de Porto et de Lisbonne et appartient à la Commission organisatrice du II Congrès des jeunes. Les activités illégales et organisatrices ne paraissent donc pas incompatibles, ce qui montre une fois de plus que l’action directe n’est pas exclusivement l’apanage d’une frange marginale des JS, qui ne suivrait pas les directives de la tête du mouvement, mais aussi d’éléments plus « responsables ». Les jeunes constituent une avant-garde révolutionnaire qui se réclame de plus en plus de l’anarchisme, à mesure que la distance se creuse entre 7

ATT, PIDE/DGS, PSE, Procès n.º 2045-A. Quirino Fernandes est un anarchiste souvent accusé de poser des bombes. Il a 21 ans en 1923. Nous ne savons pas s’il fait ou a fait partie des Jeunesses Syndicalistes, mais son implication dans le même attentat que Gomes prouve la collaboration déjà connue entre anarchistes et JS. 9 Jeune métallurgiste de la section de Meia-Laranja, de Lisbonne. 10 Arnaldo Simões Januário (6-6-1897 - 27-3-1938, Tarrafal) est barbier. Impliqué dans le mouvement juvénile et anarchiste, il fait partie de ceux qui organisent le mouvement du 18 janvier 1934. ATT, PIDE/DGS, PSE, Procès n.º 3046. 8

148

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 149

Jeunesses Syndicalistes: violence et action directe dans les années 20

les Jeunesses et un mouvement ouvrier en déclin qui fuit la conflictualité sociale: « Les JS sont la plus substantielle force du mouvement révolutionnaire. Elles furent organisées en vue de la formation des militants, alors que les autorités arrêtaient et déportaient les éléments en évidence ; mais elles ont évolué toujours vers l’extrémisme, développant une action et une propagande intransigeante et révolutionnaire [...]. Actuellement, les JS se considèrent anarchistes, et s’approchent peu à peu des caractéristiques fédératives des libertaires. Les JS comptent près de 3.000 adhérents, divisés en 29 noyaux éparpillés dans tout le pays, et librement regroupés dans leur respective Fédération. Les militants qui sortent de cette organisation rejoignent généralement les anarchistes, ou disparaissent car ils ne trouvent pas dans l’organisation syndicaliste un environnement propice à l’épanchement de leur esprit libertaire. [...] La tendance des JS est communiste-libertaire ».11 La collaboration entre certains Jeunes Syndicalistes avec le mouvement anarchiste – mais surtout avec les groupes anarchistes d’action directe Humanidade livre ou Os Emancipados, dont nous parlent les Archives policières – est une réalité. Les deux groupes existent bien : en 1927, Arnaldo Januário, ancien Jeune Syndicaliste et représentant de l’Union Anarchiste Portugaise, est arrêté, et une liste des groupes anarchistes appartenant à l’UAP est trouvée sur lui.12 Ce document très riche dépeint le réseau anarchiste : 26 groupes y sont en tout recensés, dont 24 représentants sont mentionnés. On constate que 11 parmi ces 24 noms – c’està-dire presque la moitié des effectifs ! – sont dirigés par des individus que nous avons recensé comme ayant fait ou faisant partie en 1926-27 des Jeunesses Syndicalistes.13 Cette proportion est considérable, et montre que les jeunes constituent un vrai pôle d’activisme social. Par ailleurs, le Comité National de l’Union Anarchiste Portugaise est constitué en 1927 par trois Jeunes Syndicalistes, Francisco Quintal, Fernando de Almeida Marques, travailleur de l’Arsenal de la Marine et an-

11 Comité nacional da UAP, «O que tem sido em Portugal o movimento anarquista», in A Comuna, n.º 40, 16 décembre 1923. 12 ATT, PIDE/DGS, PSE, Procès n.º 3046. Figure dans la liste quelques noms d’adhérents isolés : José Gomes da Costa, de Tomar ; Almeida Costa, de Coimbra ; Ernesto Cardoso, de Nelas ; José Francisco Monteiro et Bernardino José Janeirinho, de Serpa ; Álvaro da Costa Ramos et Flavio da Cruz, de Lisbonne. Dans notre liste de militants des JS, nous avons un Álvaro Ramos : s’agit-il du même individu ? 13 Cela toujours selon la liste de militants des JS que nous avons dressée, ce qui veut dire qu’il est fort possible que d’autres militants anarchistes parmi ceux mentionnés dans ce document soient liés aux JS.

149

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 150

Filipa Freitas Figure 8.1 – Réunion anarchiste : déjeuner commémoratif du premier anniversaire de A Batalha, à Benfica, en banlieue de Lisbonne

Les chiffres correspondent à : 1. Julio Luis ; 2. Ezequiel Seigo; 3. Avante ; 4. Francisco de Sousa ; 5. Jorge Campelo ; 6. Manuel Figueiredo ; 7. Carlos José de Sousa ; 8. Alfredo Neves Dias ; 9. Alexandre Vieira ; 10. Mário Domingues ; 11. João Pedro dos Santos ; 12. Joaquim Cardoso ; 13. Manuel Joaquim de Sousa ;14. Carlos Freire ; 15. Augusto Carlos Rodrigues ; 16. Consiglieri Sá Pereira ; 17. António Antunes ; 18. Padesca ; 19. Américo Vilar ; 20. António Henriques ; 21. Soares da Costa. Source: Biblioteca Nacional de Lisboa, AHS, N61, Caisse 117.

cien Jeune Syndicaliste de Lisbonne,14 et José Pires de Matos, qui proposent d’ailleurs la nomination d’Américo Vilar en tant que nouveau membre du Comité. De nombreux cas entérinent la collaboration formelle entre jeunes et éléments agités, que nous pouvons considérer comme « anarchisants ». António Maria Pedro, électricien, auteur de l’attentat de la rue de Bela Vista qui blesse deux mineures en 1923, est soupçonné d’avoir participé à des attentats avec «Gavroche» – Ezequiel Seigo, Jeune Syndicaliste – et lancé des bombes avec José Henriques – JS de Belém – et José de Melo, qui a été JS du noyau de Lisbonne. Il est arrêté avec des faux billets, qui

14 Fernando est très actif dans son noyau. Il est délégué au I Congrès des jeunes et représente les Jeunesses Syndicalistes au Congrès de Covilhã. Il exerce également les fonctions de délégué à la Fédération. En 1928, il rejoint les communistes.

150

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 151

Jeunesses Syndicalistes: violence et action directe dans les années 20

lui auraient été fournis par Alberto das Neves et «Avante» – José Gomes Pereira, autre Jeune Syndicaliste 15 assez célèbre dans les milieux syndicaux et policiers. António Luis, « O Vidraça »,16 Jeune Syndicaliste de 24 ans, est accusé par la police d’avoir fourni des armes pour l’attentat en 1923 du juge Virgílio Pinhão, organisé par «Gavroche» et Bernardino Coelho. Il organise avec «Avante» un attentat contre une usine d’espadrilles à Alcântara, en périphérie de Lisbonne, et contre deux boulangeries, dont une était située dans la rue du 1.º de Maio, pour lequel il est aidé par Manuel Bulquério ou Bulquere. Ce dernier est arrêté en 1927 lorsqu’il tente de s’évader vers l’Espagne, d’où il avait déjà été expulsé à deux reprises pour ses activités politiques : il faisait effectivement partie des Jeunesses Communistes et était reconnu comme un libertaire dangereux.17 La collaboration entre Jeunes Syndicalistes et anarchistes est une fois de plus évidente, d’autant plus que selon la police, António Luis était membre du noyau n.º 1 du groupe d’action directe anarchiste Emancipados.18 Il est bien entendu difficile de cerner la réalité dans l’amalgame d’informations qui nous sont fournies par la police. Le casier du cheminot Jorge da Silva Pinheiro est pour cela une source intéressante pour l’historien. Ce Jeune Syndicaliste qui finit fusillé par la police à Olivais en mai 1924 est accusé d’une série impressionnante de délits. Le 7 avril 1922, il aurait lancé une bombe rue António Augusto de Aguiar, tuant sur le coup le policier Raúl da Silva et le « bombiste » Raúl da Conceição. Peu de temps après, deux de ses bombes explosent, l’une dans une boulangerie de Olarias, blessant des boulangers, l’autre à l’église du Socorro, le 5 octobre ou le 17 novembre 1922. Entre-temps, il aurait attaqué un établissement de barbier de la rue S. Nicolau, dans le centre de Lisbonne, et la Vila Castelo de Paiva dans le Nord du pays, faisant de grands dégâts. Il aurait pris part à l’attentat contre Sérgio Príncipe en septembre 1922, pour lequel il est secondé par José de Melo (Aguiar ?), un certain Serdeira ou Cerdeira, Evangelino Domingos da Silva – Jeune Syndicaliste qui meurt aussi à Olivais –, Evangelino dos Santos Costa et José Soares – JS de Lisbonne, dont le pseudonyme est «Malatesta». 15

ATT, PIDE/DGS, PSE, Procès n.º 2002. « Le verrier», pseudonyme sans doute relatif à la profession de António Luis, qui travaillerait dans l’industrie du verre ou dans la construction civile. 17 Bulquério est un agitateur politique connu par la police et figure dans plusieurs procès. De par son jeune âge – 19 ans en 1924 – on peut penser qu’il est passé par les Jeunesses Syndicalistes. Voir son procès dans ATT, PIDE/DGS, PSE, Procès n.º 3671. 18 ATT, PIDE/DGS, PSE, Procès n.º 1988. 16

151

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 152

Filipa Freitas Figure 8.2 – L’église du Socorro après l’attentat de Jorge da Silva Pinheiro

Source: Arquivo de Fotografia de Lisboa – CPF/MC, O Século.

En plus de pratiquer des attentats lors des grèves générales, Pinheiro est soupçonné d’avoir fabriqué des bombes chez Adriano de Figueiredo, distribuées ensuite par José Henriques (JS), José Lopes, Domingos Paiva, Cerdeira, «Malatesta» (JS), Evangelino Domingos da Silva, Paulo da Silva, Manuel Russo et Zeferino. Pinheiro participe à plusieurs autres attentats, en compagnie de José Melo et Bernardo Costa,19 contre les bureaux de la 19

Bernardo Costa est considéré par la police comme le chef du groupe d’action directe « Os Emancipados ». O Século prétend que celui-ci fait également partie du Comité Exécutif des JS (O Século, 18 avril 1925, « Um assalto à mão armada »), mais nous ne pouvons être sûrs de la véracité de ces propos et considérer dès lors Costa comme un Jeune Syndicaliste, ce qui est cependant probable.

152

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 153

Jeunesses Syndicalistes: violence et action directe dans les années 20

CP – chemins de fer portugais – à Santa Apolónia, contre la maison du gouverneur civil de Lisbonne, ou dans les cages d’escaliers des rues Santo Amaro et da Estrela. On peut sérieusement se demander comment un individu avec un tel registre criminel peut-il encore continuer en liberté ? Pinheiro s’est évadé du fort S.Julião da Barra alors qu’il se trouvait en réclusion temporaire en 1922. Dénoncé par José Lopes, qui avoue faire partie du groupe d’attaque aux juges du TDS, il est de nouveau arrêté le 26 février 1923, après avoir, le 22 février, quelques jours à peine avant son arrestation, agressé le juge Ferreira de Sousa, déjà la cible de plusieurs attentats manqués. Lors de son procès, Jorge Pinheiro avoue –contrairement à la plupart des individus interpellés- faire partie des Jeunesses Communistes et du Parti.20 Il serait donc, comme Ezequiel Seigo, de ceux qui sont passés des JS vers les JC, à la recherche d’une action révolutionnaire plus « concrète ». Comme son camarade de lutte, il retourne plus tard aux Jeunesses Syndicalistes, déçu par la stratégie communiste. Malgré cette arrestation, Jorge Pinheiro est l’un des principaux auteurs de l’attentat qui a lieu quatre mois plus tard, le 7 juillet 1923, contre les juges du Tribunal de Défense Sociale, où il est blessé au dos par les éclats d’une bombe. L’évidence de cette preuve ne l’empêche pas de se retrouver près d’un an plus tard, en mai 1924, à Olivais, où il est abattu par la police. Le réseau de fabrication et diffusion des engins explosifs est ici décrit : José de Melo 21 et Bernardo Costa les fabriquent et les envoient à Faria et Castelo Serrano, qui les acheminent ensuite chez Paulo da Silva. Faria, comme Jorge Pinheiro, avoue avoir fait partie du PCP mais dit l’avoir quitté à cause des dissidences en son sein – il fait ici référence à la crise du Parti- et de l’orientation générale qu’il a pris. Toujours dans ce même procès, 22 on trouve une carte postale d’Adriano Guerra, envoyée de prison à José Faria, et où il est écrit : « Au moment où je t’écris, Domingos Pereira 23 a reçu 200.000 et les métallurgistes 275.000 ».24

20

ATT, PIDE/DGS, PSE, Procès n.º 1990. Des doutes persistent à propos de l’identité de cet individu, auquel les archives se réfèrent comme José Melo ou José de Melo. Il pourrait s’agir de José de Melo Aguiar, jeune syndicaliste et agitateur politique, considéré aussi comme le fondateur de la Légion Rouge. 22 ATT, PIDE/DGS, PSE, Procès n.º 2016. 23 Domingos Pereira est boulanger et membre auxiliaire des Jeunesses Syndicalistes de Lisbonne car il est âgé de 38 ans en 1925. Il est à cette date assassiné par la police, qui pratique la lei de fugas sur lui. Peut-être cela est dû à son implication dans les actes terroristes ? 24 ATT, PIDE/DGS, Ibid. 21

153

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 154

Filipa Freitas Figure 8.3 – Artur Pato Moniz, le portier du Club Bristol, blessé par balle par la Légion Rouge, le 19 avril 1925

Source: Arquivo de Fotografia de Lisboa – CPF/MC, O Século.

On peut imaginer ici qu’il s’agit de sommes d’argent : dans ce cas, d’où viennent-elles ? De vols de banques, de vols de percepteurs en plein jour, d’émission de faux billets, ou peut-être même s’agit-il du financement d’individus louches payés pour mener à bien des vengeances personnelles ou pour préserver un désordre social qui discrédite le gouvernement ? La citation semble en tout cas confirmer la pratique illégale de vol ou de financements obscurs au sein de certains groupes d’action directe anarchiste. Cependant, dans les Archives de l’Internationale, nous apprenons que le Domingos Pereira mentionné par Adriano Guerra, et qui est membre auxiliaire des Jeunesses Syndicalistes, fait également partie du PCP : « Il se disait communiste, il était même affilié au Parti, mais il avait très peu d’un communiste. Ses tactiques de lutte étaient bien anarcho-syndicalistes ; c’était un terroriste qui avait critiqué de nombreuses fois, menaces à l’appui, notre action de combat contre le terrorisme ».25 25 F.534, op.7, d.432, Doc.185, paquet 105, Caisse 6, au bureau exécutif de l’ISR par le CE des partisans de l’ISR, à Lisbonne, le 17 avril 1925, 110. On retrouve ici encore le témoignage de celui qui semble être un militant espagnol, ou un membre de l’IC envoyé pour encadrer les pro ISR portugais.

154

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 155

Jeunesses Syndicalistes: violence et action directe dans les années 20

Domingos Pereira correspond au type de militant qui aurait rejoint le PCP à la recherche de plus d’action immédiate. Dans cet intervalle, il a sans doute été lié aux Jeunesses Communistes – rappelons que Humbert Droz, les délégué de l’Internationale Communiste de Moscou, les a qualifiées de terroristes 26 – et peut-être même a-t-il fait partie du groupe révolutionnaire d’action directe communiste Vie nouvelle, auquel se réfère Pires Barreira,27 qui exerçait sur le Parti une constante pression pour qu’il suive ses directives. Pereira transite ainsi entre les Jeunesses, le PCP et l’organisation anarchiste, agissant toujours de façon informelle et se dérobant aux directives centrales.

La lutte entre les jeunes et le gouvernement Olivais L’épisode d’Olivais est un des plus marquants de l’histoire des Jeunesses Syndicalistes. Le 28 mai 1924, trois Jeunes syndicalistes sont fusillés par la police à Olivais : Ezequiel Seigo «Gavroche », Jorge da Silva Pinheiro et Domingos da Silva. Ceux-ci sont loin d’être pour nous des inconnus et les registres de la police nous ont déjà fourni toute une série de renseignements sur leurs activités illégales. Soupçonnés d’appartenir à la Légion Rouge et de préparer un attentat contre l’industriel gérant de la minoterie Castanheira de Moura alors qu’il se rendait au cimetière, les jeunes sont poursuivis par la police.28 O Século prétend, ce que nous ne pouvons pas confirmer, que les jeunes lancent l’offensive, en tirant des coups de feu aussitôt que la voiture de police s’approche. Domingos da Silva, « O Maneta », se défend et tue le policier Neves avant d’être à son tour abattu. Les deux autres jeunes sont capturés, tabassés et défigurés selon certaines sources, avant d’être achevés par balle. L’épisode nourrit la propagande conservatrice, qui s’en sert pour condamner la violence des révolutionnaires, qu’elle 26

Jules Humbert DROZ, AHS-IC, paquet 2, Caisse 1, p. 35. AHS-IC, Caisse 5, paquet 100, Document n.º 180 : lettre de Pires Barreira (secrétaire interne), de la Junta Nacional das Juventudes Comunistas, secção da região portuguesa da Internacional das JC, au bureau berlinois de l’Internationale Communiste des Jeunes, 31 janvier 1922. 28 Ils ont dû être dénoncés à la police. Francisco dos Santos Conceição, qui appartenait aux Jeunesses Syndicalistes, est un des potentiels délateurs: soit il avait été chargé de les espionner, soit il en est venu à la délation sous la menace ou le chantage de la police. 27

155

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 156

Filipa Freitas Figure 8.4 – L’épisode de Olivais vu par O Século, 30 mai 1924.

identifie comme étant des Jeunes Communistes, des « légionnaires », c’est-à-dire des membres de la Légion Rouge. O Século, journal conservateur, affirme que Neves est mort « à cause de la faiblesse du pouvoir et de la complicité du Parlement ».29 L’axiome du lien entre les actions des partisans de l’action directe et la Gauche Démocratique de Domingues dos Santos est une fois de plus repris par la droite putschiste. Les policiers qui ont pris part à la lutte contre les « légionnaires » et tous ceux qui ont « collaboré dans la lutte contre les ennemis de la société » sont récompensés par la compagnie de la minoterie de Lisbonne, gérée par Castanheira de Moura. La veuve de Neves reçoit un montant de 6.000 escudos, ses enfants plus jeunes reçoivent une bourse pour leurs études et les plus âgés sont employés dans la minoterie. Les funérailles de l’officier de police sont grandioses, et leur narration dans la presse 29

Cadernos da Revolução Nacional, « Passado, presente, futuro ». Ed. SPN, Lisboa, s.d., 28.

156

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 157

Jeunesses Syndicalistes: violence et action directe dans les années 20 Figure 8.5 – Olivais vu par A Batalha: un tout autre point de vue...

conservatrice n’épargne aucun détail, les individus qui s’y présentent et l’aspect du cortège étant minutieusement décrits dans un ton romanesque et pompeux : « L’enterrement a été aussi une imposante manifestation de protestation contre la vague de crimes qui menace de subvertir les plus sacrés principes de notre civilisation ».30 Ferreira de Amaral, alors déjà commandant de police, fait un discours hyperbolique exaltant les vertus de Neves : « L’habit en jeans avec lequel tu t’es déguisé pour surprendre les criminels était bien l’armure de fer d’un noble chevalier des temps légendaires ».31 Crispiano da Fonseca, chef de la Police, évoque les mesures d’exception et affirme « qu’autour du cadavre de Neves s’agite un grave problème de caractère social. Le crime doit être réprimé ».32 30

O Século, 2 juin 1924, « O sangrento combate dos Olivais ». O Século, 2 juin 1924, Ibid. 32 O Século, 2 juin 1924, Ibid. 31

157

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 158

Filipa Freitas

Entre-temps, la police refuse de rendre les corps des trois victimes à leur famille, et n’accepte de les restituer qu’en cercueil fermé. Des Comités de soutien s’organisent pour venir en aide aux familles des victimes des Olivais. Sept femmes se rassemblent pour récolter des fonds pour la veuve et les enfants de Domingos da Silva, mais deux d’entre elles sont arrêtées par la police.

L’attentat contre Ferreira do Amaral L’attentat qui vise Ferreira do Amaral est un autre épisode symbolique de la lutte entre forces de l’ordre et Jeunesses. Ce commandant de police a été l’organisateur de la grande vague répressive contre le mouvement ouvrier à partir de 1925 : il réorganise la police, la restructure et lutte férocement et arbitrairement contre l’action directe et les actions de la malfamée Légion Rouge. Selon les « Cahiers de la Révolution Nationale », publiés près de 10 ans après l’événement, cet homme a donné à la PSP « une conscience de sa force et de sa fonction, a transmis aux policiers timides les notions de courage et de responsabilité et les a transformés en excellents et dévoués éléments de lutte ».33 Dans l’autre camp, Emídio Santana décrit ainsi ce personnage : « Aux commandes de l’engrenage policier se détachait la figure schizophrène et hallucinée du colonel Ferreira do Amaral, qui menaçait la ville avec sa présence pathologique et ses ordres écrits, qu’il faisait fixer sur l’arcade du théâtre national, près du commissariat de police, et qui auraient souvent pu être un bon motif d’hilarité sans leurs conséquences sociales. La police faisait des fouilles et des prisons aléatoires avec carte blanche pour tous les abus» (Santana, 1982, 70). Le 15 mai 1925, Ferreira de Amaral est attaqué rue de la Escola Politécnica par un petit groupe d’individus armés, constitué de Diamantino de Anunciação, Jeune Syndicaliste peu après assassiné par la police, João Nunes Carreira, déjà connu des services de la PSP, le célèbre «Bela Kuhn» et un certain Paulo da Silva, également recensé dans les Archives de la PSE. Tous sont des jeunes syndicalistes. Ferreira do Amaral est touché par cinq balles, mais l’attentat échoue, et le policier parvient à faire fuir ses assaillants, manifestement à l’aide de sa canne. Cet attentat, loin de calmer les poursuites qui ciblaient la classe ouvrière, raffermit encore plus la politique du gouvernement en matière de répression. La Légion Rouge 33

Cadernos da Revolução Nacional, Ibid., 27.

158

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 159

Jeunesses Syndicalistes: violence et action directe dans les années 20

est immédiatement invoquée, et l’amalgame entre légionnaires, anarchistes, syndicalistes ou partisans de l’action directe se poursuit sans distinction : «Dans la lande furent arrêtés cinq membres de la «Légion Rouge», dont trois comptent parmi les plus dangereux. Ils appartiennent au groupe n.º 1 des «Émancipés».34 Dès le lendemain de l’attaque, le siège de la CGT est mis à sac, et le matériel typographique de A Batalha détruit. La poursuite de la police à António Joaquim Pereira – plus connu par son pseudonyme «Bela Kuhn» – alors qu’il tentait de s’enfuir en bateau, est relatée avec passion dans les pages de O Século. Le 18 mai, 55 ouvriers ont déjà été arrêtés et le 29, de nombreux individus sont directement déportés vers la Guinée. Entre 17 et 28 autres individus sont envoyés à Angra do Heroísmo, accusés d’être légionnaires. Fin mai, O Século énumère 25 noms de déportés, auxquels s’ajoutent dès début juin vingt autres. Nous reconnaissons dans la liste plusieurs partisans de l’action directe et de Jeunes Syndicalistes, comme Joaquim António Pereira, « Bela Kuhn », accusé d’être le sous-chef du célèbre groupe d’action directe n.º 1 des Emancipados, et membre du Comité Central des Jeunesses Syndicalistes, ou José Gomes Pereira, « O Avante », Jeune Syndicaliste accusé de fabriquer des faux billets et des bombes dans la boutique de son père et qui appartient au Comité Exécutif des groupes d’action directe. Dans l’amas complexe d’hypothèses et d’épisodes liés aux attentats, un nom revient de façon récurrente : il s’agit de celui de la « Légion Rouge ». Au moment de l’attentat qui menace la vie du Commandant de la Police de Sécurité de l’État, ce groupuscule terroriste est déjà très réputé. La propagande conservatrice l’invoque en permanence pour critiquer le gouvernement du Parti Démocratique et justifier la seule solution pour rétablir l’ordre social: la dictature militaire.

La Légion Rouge Nous avons vu comment des individus issus de sphères diverses – Jeunesses Syndicalistes, Jeunesses Communistes ou organisation anarchistecollaborent dans des groupes d’action directe, usant d’un recours croissant à la violence, particulièrement accentué à partir de 1923. La presse, aussi bien conservatrice que syndicale, commence alors à parler d’un groupe terroriste surnommé la « Légion Rouge », actif surtout dans la ré34

O Século, 18 mai 1925, « A obra da Legião Vermelha ».

159

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 160

Filipa Freitas

gion de Lisbonne. De petit groupe obscur, la Légion passe au rang de célébrité, instrumentalisée par les conservateurs qui lui imputent la majorité des violences urbaines de la période. L’association entre les Jeunes et la Légion est systématique. Cependant, l’histoire du groupuscule est peuplée de mystères. Est-ce tout d’abord possible qu’il ait réellement existé, et si c’est le cas, qui le composait et comment, pourquoi a-t-il été crée ? La Légion est-elle un de ces groupes d’action directe qui agissent dans la capitale et dont on extrapola la dimension et le pouvoir, de façon à permettre la forte répression qui s’abat sur le mouvement ouvrier ? Fut-elle une invention des conspirateurs anti-régime, qui invoquaient la menace rouge pour justifier leurs attaques au régime Démocratique et le recours à une solution de force ? Il est parfois difficile de fixer les limites entre le terrorisme social, le délit commun et l’action revendicative. Amalgame d’imbroglios, l’histoire de la Légion est confuse. Emídio Santana, ancien Jeune Syndicaliste auteur d’un livre de mémoires, parle de « confluence d’autres groupes », de « perméabilité » des groupes, « générant des confusions », ou encore de « complicités d’éléments infiltrés » (Santana, 1982, 70). Il est difficile de tracer des frontières d’appartenance nettes parmi les individus qui s’adonnent à l’action directe. Que ce soit entre Jeunes Syndicalistes et anarchistes, ou entre révolutionnaires civils, militants ou bandits, la perméabilité dont nous parle Santana ne nous permet pas de conclure sur une appartenance idéologique claire pour ce substrat d’individus divers. Cependant, cette confusion n’a pas empêché les historiens ou les témoins de l’époque de se prononcer, sans être parvenus pourtant à aucune certitude. En effet, les origines de la Légion Rouge sont obscures et leur interprétation varie selon qu’elle est faite par les conservateurs ou les syndicalistes. Selon José Pacheco Pereira, la LR proviendrait directement des Jeunesses Communistes : « Le grand vol en termes d’organisation de la JC fut la célèbre Légion Rouge, groupe terroriste où il est difficile de distinguer ce qui a réellement existé de ce qui a été inventé par la police comme prétexte répressif contre le mouvement ouvrier. C’est là que furent brûlées les espérances révolutionnaires qui pendant une période initiale animaient les JC et qui conduisirent certains jeunes à la mort et beaucoup d’autres à la prison et à la déportation » (Pereira, 1981, 707). L’historien rappelle combien la réalité et le mythe restent inextricables dans l’étude de la LR. En situant les origines de la LR dans les Jeunesses Communistes, il fait remonter la filiation des légionnaires jusqu’aux Jeunes Syndicalistes, car rappelons-le, les JC sont directement issues de la scission qui s’opère chez les JS. Cette thèse n’est pourtant que partiel160

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 161

Jeunesses Syndicalistes: violence et action directe dans les années 20

lement vraie, et la réalité devient encore plus complexe lorsqu’entrent en scène les témoignages des militants ouvriers. Emídio Santana partage l’opinion de Pacheco Pereira, car selon lui ce sont les «porteurs de la fascination de la prédication léniniste de la «révolution immédiate» et du modèle carbonario du parti de Lénine [...] comme parti de révolutionnaires professionnels, (qui) se disposèrent à une organisation de ce genre» (Santana, 1982, 74). Son témoignage n’est pas neutre, puisqu’il nie par ailleurs toute analogie entre les Jeunes Syndicalistes et la Légion Rouge, ce qui paraît très improbable. Il est évident que cet ancien JS ne veut pas que l’on associe l’organisation juvénile à une organisation de malfaiteurs. Santana, tout comme David de Carvalho, cite quelques-uns des membres fondateurs les plus connus de la LR: il s’agit de José Gomes Pereira, « O Avante », José Melo de Aguiar, José Soares, « O Malatesta » et Ezequiel Seigo, « O Gavroche », qui pour Santana, sont des dissidents des JS. Or, en observant notre recensement de militants, on constate que ces individus restent actifs dans l’organisation juvénile, même après la date de la scission communiste de 1923. Certains, comme Ezequiel ou José Gomes Pereira étaient sympathisants communistes. Les conclusions que nous pouvons tirer font écho à celles de Santana lorsqu’il évoque la confluence des groupes et la grande perméabilité qui existe entre les groupements. A la suite de l’échec organisateur des Jeunesses Communistes, des éléments sans doute issus de ses groupements d’action directe réintègrent les Jeunesses Syndicalistes et l’anarchisme, ou tout simplement transitent entre les organisations. Il devient impossible de nier l’existence d’un lien informel entre une portion marginale de jeunes plus agités, que l’organisation juvénile a du mal à contrôler, et la Légion Rouge, même si l’organisation juvénile dans son ensemble n’est pas mêlée aux activités du célèbre groupuscule. D’un autre côté, le communiste et partisan de l’Internationale Syndicale Rouge Augusto Machado prend parti en affirmant que le terrorisme est l’exclusivité des anarcho-syndicalistes. Il parle de banditisme, de lettres de menace aux juges du tribunal et même aux communistes, puis affirme que la CGT ne fait qu’obéir aux menaces des pistoleros et des Jeunesses Syndicalistes.35 Ces professionnels du crime exerceraient une pression sur la direction cégétiste, sans doute pour la forcer à leur donner son soutien, alors que la CGT cherche à prendre ses distances pour ne pas être assimilée aux « bombistes ». Il faut resituer ce témoignage dans le cadre de 35 APQ, IC, Caisse 6, Doc n.º 185, paquet 105, Lettre plus réaliste, 17 avril 1925 du comité exécutif des partisans de l’ISR, Augusto Machado, au bureau exécutif de l’ISR.

161

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 162

Filipa Freitas

la guerre qui fait rage entre d’un côté communistes et de l’autre syndicalistes révolutionnaires et anarchistes, où chaque camp chercher à reporter sur l’autre la responsabilité des actes du groupuscule si impopulaire et médiatisé. Qui exerce cette violence sociale, dénigrée par tous, mais pourtant bien réelle ? Essayons déjà dans un premier temps dresser un historique de la Légion Rouge et de comprendre qui en sont les membres.

La formation de la Légion Rouge David de Carvalho, Jeune Syndicaliste du noyau de Lisbonne, publie le règlement de la Légion Rouge dans O Despertar en mai 1923, après ce qu’il qualifie d’opération d’infiltration au sein du groupuscule terroriste. Les légionnaires décrivent dans ce document leurs objectifs et leurs moyens de lutte : ils affirment agir en défense des opprimés et des exploités, et participer à toutes les luttes insurrectionnelles ou révolutionnaires. Quant aux « traîtres à la cause », le châtiment est pour eux la peine maximale : ce sont ceux qui ont dénoncé leurs camarades ou désobéit aux préceptes de la LR, ainsi que les anarchistes ou les syndicalistes, considérés comme ennemis de la cause communiste et légionnaire. Les agressions de certains syndicalistes, comme Manuel Maria, prouvent la mise en place de méthodes punitives: Légion Rouge ou pas, certains groupes défenseurs de la cause communiste contre les anarchistes y ont recours, à l’instar du groupe d’action directe des Jeunesses Communistes, Vie nouvelle. La Légion Rouge ne se distingue pas particulièrement du groupement classique d’action directe, qu’il soit communiste ou anarcho-syndicaliste. Il n’est pas à exclure que ce document ait été publié par David de Carvalho de façon à discréditer les communistes, en pointant du doigt leurs pratiques : « Les agressions de certains éléments communistes qui critiquent l’orientation du parti ont collaboré à sa perte de prestige. Les menaces faites à de nombreux anarchistes et jeunes syndicalistes [...] ont aliéné au parti de nombreuses sympathies et fait perdre toute qualité révolutionnaire à qui se dit communiste. Autour de nous, ces prétendus révolutionnaires ont créé un environnement de menace qui justifie toutes les mesures de défense que nous pourrions prendre. Nous sommes parvenus à tomber sur un document d’une gravité extraordinaire, qui est venu prouver implicitement toutes ces informations ».36 S’agit-il du règlement de la Légion Rouge? En tout cas, ce document semble prouver, comme celui publié 36

O Despertar, n.º 20, 2 juin 1923, « Um artigo que se explica ».

162

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 163

Jeunesses Syndicalistes: violence et action directe dans les années 20

par David de Carvalho, l’existence d’un groupe d’action directe communiste chargé d’éliminer les traîtres, faisant écho au témoignage de Jules Humbert Droz (1983, 703). Selon certaines sources, la création de la Légion Rouge aurait été la conséquence d’un malentendu entre José Gomes Pereira, Jeune Syndicaliste aux affinités communistes, surnommé « O Avante », et Manuel Joaquim de Sousa, le reconnu dirigeant anarchosyndicaliste. Tout débute lorsque « Avante », fondateur supposé de la LR, soupçonné d’avoir collaboré avec la police et la Confédération Patronale, est la cible d’un attentat raté, organisé fin 1922, sans doute par d’anciens camarades. Tout indique que ce dernier fréquentait des groupuscules d’action directe où la stratégie d’élimination des traîtres était appliquée. « Avante », s’estimant injustement accusé, souhaite plaider publiquement son innocence et demande au journal A Batalha, alors dirigé par Manuel Joaquim de Sousa, de publier un manifeste. Mais ce dernier refuse, sans doute parce qu’il n’approuve pas la vie clandestine de son auteur. Outré, José Gomes Pereira publie alors le manifeste par ses propres moyens, en accusant le directeur de A Batalha de vouloir lui nuire.37 Le militant du PCP Neves Anacleto va même jusqu’à affirmer que la LR aurait été créée pour assassiner Sousa et Joaquim Cardoso, éditeur du journal confédéral (Santana, 1982, 75). La soif de vengeance de « Avante » est-elle à l’origine de la fondation du groupuscule terroriste ? Les noms de ceux qui se dévouent à l’action directe reviennent avec récurrence dans les Archives policières, souvent associés par la police à la Légion Rouge. « O Avante », « O Malatesta », « O Gavroche », José Melo, Bernardo Costa, António Luis, Manuel Bulquere ou Bulquério, António Augusto dos Santos, Domingos da Silva, Evangelino Costa, José Diniz, Jorge Pinheiro, José Faria sont toujours associés à la pratique d’attentats. L’on ne peut affirmer avec certitude qu’ils appartiennent à la Légion Rouge, mais ils ont fait partie de groupuscules d’action directe, probablement dirigés par un comité d’action : c’est pour cela qu’ils sont réputés « légionnaires ». O Século nous fournit un historique de la création de la Légion très intéressant. Selon le journal conservateur, 38 la Légion Rouge aurait été créée en 1914, et existait alors sous le nom de grupo de acção de defesa social. Plus tard, elle est l’auteur de l’attentat contre Sérgio Principe, avant de se retirer et de revenir sous le nom de Legião Vermelha. Quel est alors le fonctionnement du groupuscule ? Dans chaque association ouvrière existent 37 José Gomes Pereira, Manifesto ao povo trabalhador, Tipografia da Associação dos Compositores Tipográficos, in Arquivo Pinto Quartim, 44. 38 O Século, « A obra da Legião Vermelha », 15 juin 1925.

163

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 164

Filipa Freitas Figure 8.6 – Le manifeste de « O Avante »

« À propos d’un attentat au couteau ; l’action des réactionnaires ; l’inconscience ouvrière... la méchanceté de Manuel Joaquim de Sousa – lisez ! » Source: Espólio Pinto Quartim, AHS, Instituto de Ciências Sociais da UL.

des Comités communistes, dont le mieux organisé est celui des fabricants de pain, et qui se rassemblent en un groupe d’action directe, composé entre autres par Manuel Luis de Miranda, Joaquim Cardoso, Albertino Abrantes Castanheira, Alexandrino, et dont le trésorier est le futur dirigeant communiste et plus tard romancier catholique Manuel Ribeiro. Toujours selon O Século, le groupe crée alors un compte en banque où il dépose les sommes dont il se sert pour acheter les témoins et les exécutants des attentats. Il tente entre autres d’assassiner Ermeto Pires, le directeur de l’entreprise Portugal e Colónias, en mai 1924, et organise les nombreux attentats contre les boulangeries lisboètes. Lorsque la Légion décide d’éliminer le commandant de police Ferreira de Amaral, elle fait 164

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 165

Jeunesses Syndicalistes: violence et action directe dans les années 20

appel à de nouveaux membres, dont « Bela Kuhn », ou encore « Cavalaria 7 » 39 et Pedro de Jesus, qui appartenaient à un groupuscule qui organisait des vols, la Mão Fatal. Toujours selon O Século, la Légion se fait également appeler Socorro Vermelho (alors que celui-ci est un organisme d’aide aux victimes communistes de la répression). Le journal conservateur mentionne treize individus présents à une réunion: 40 Domingos Paulino, Paulo da Silva, Arsénio José Filipe, « Bela Kuhn », Hilário Gonçalves, Luis dos Santos Oliveira, Vasconcelos Silveira, « Cavalaria 7 », José da Silva, João Algarvio, Diamantino da Anunciação, José Godinho e Júlio Anunciação. Sur ces treize individus, six sont, selon nos sources, des Jeunes Syndicalistes.41 José de Melo Aguiar est considéré comme le chef de la Légion. Celle-ci serait donc le produit vague de l’association entre bolchevistes, Jeunes Syndicalistes et bandits et criminels en tout genre. Les fabricants de pain seraient les principaux responsables des explosions de bombes, de nombreux attentats ayant lieu devant des boulangeries, en guise de protestation contre la hausse du niveau de vie et du prix du pain. Pour O Século, la Légion est constituée par les groupuscules « communistes » présents dans chaque syndicat. Nous tenons ici la clé de la compréhension de ce que représente pour les conservateurs la Légion : elle est l’amalgame de tous les groupuscules d’action directe, elle est le nom générique donné à une réalité sociale concrète, celle de l’action directe. Même si en soi elle n’a existé que quelques mois, son nom a persisté comme référence de sens, comme représentation de l’imaginaire collectif conservateur : cause et symptôme de la décadence et de la « perte de personnalité ». ainsi que des valeurs du régime, terme repris par l’État nouveau salazariste. Dans une revue qui récapitule les étapes de la Révolution Nationale de mai 1926, les origines et les méthodes des légionnaires sont rappelées pour souligner les

39 O Século prétend que Cavalaria 7 était le membre n.º 607 des Jeunesses Syndicalistes (O Século, 2 juin 1925, « A obra da Legião Vermelha »). 40 Réunion peut être fictive ? O Século affirme que « Avante » et « Bela Kuhn » avaient alors décidé d’abandonner leur groupe d’organisation sociale et de garder le butin exclusivement pour eux. 41 Hilário Gonçalves, du noyau métallurgique et impliqué entre autres dans l’attentat dirigé contre l’industriel Carlos Reis en août 1924 ; Vasconcelos Silveira, mécanicien, âgé de 20 ans ; José da Silva – un certain José da Silva, de la section de Meia-Laranja, a été assassiné par le groupuscule fascisant des « Chevaliers de la lumière », qui menaçait de mort tous ceux qu’ils estimaient porter atteinte à l’ordre social ; Diamantino da Anunciação, assassiné par la police en 1925 ; sous réserve, « Cavalaria 7 », et finalement José Godinho, du noyau de Setúbal et d’Almada, accusé d’avoir participé à l’attentat contre Ferreira de Amaral

165

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 166

Filipa Freitas

bienfaits de la dictature militaire. La théorie de la constitution et du fonctionnement de la Légion est la même que celle de O Século : « Des groupes au nom romantique comme « le groupe des Émancipés », « le groupe des Nouveaux Horizons », etc. forment la Légion Rouge, dirigée par un Comité central qui planifiait les assauts et les assassinats, ensuite exécutés par les éléments des groupes. Ceux-ci étaient constitués par des individus recrutés parmi la classe ouvrière, désorientés par un endoctrinement criminel, qui les persuadait qu’ils remédieraient aux injustices sociales par les armes et la bombe ».42 La démarche audacieuse des légionnaires est montrée du doigt, que ce soit lorsque « Gavroche », « Bela Kuhn » et José de Melo envahissent le Parlement, ou lorsqu’ils se rendent directement à la rédaction du journal que l’on suppose être O Século pour menacer les journalistes qui les critiquent : « L’audace des sicaires rendus fous par l’endoctrinement du mal était telle que, malgré toutes les mesures prises par la police, ils sont allés à la rédaction d’un journal qui les combattait avec énergie pour, ont-ils dit, connaître et « marquer » les journalistes qui protestaient contre leurs crimes. Même lorsqu’ils étaient pourchassés par la police, ils faisaient des apparitions lors des séances parlementaires, pour faire de l’audience au gouvernement de José Domingues dos Santos, qui les soutenait ».43 Le discours réactionnaire se sert de la Légion comme d’un instrument servant à discréditer politiquement le gouvernement de la Gauche Démocratique : après l’affaiblissement de la CGT, c’est la Gauche Démocratique qui devient le principal ennemi de la classe conservatrice. En février 1925, Domingues dos Santos fait un discours où il affirme la souveraineté du peuple et où il questionne les fonctions de la Police d’État. Cet incident sert de prétexte à sa destitution. Par la suite, le viol par le gouvernement canhoto des institutions de l’État devient un des axiomes de la propagande conservatrice. La prise de position de la Gauche Démocratique contre les déportations permet aux « Cahiers de la Révolution » d’affirmer que lorsque les légionnaires étaient arrêtés de façon préventive, « la voix de José Domingues dos Santos ou d’un autre surgissait immédiatement pour exiger la libération de ces « travailleurs honnêtes ».44 Le soutien des légionnaires à Domingues dos Santos reste, bien entendu, une hypothèse surexploitée par la droite radicale.

42

Cadernos da Revolução Nacional, Ibid., 26-27. Cadernos da Revolução Nacional, Idem. 44 Cadernos da Revolução Nacional, Ibid., 7. 43

166

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 167

Jeunesses Syndicalistes: violence et action directe dans les années 20 Figure 8.7 – Autres « légionnaires »

Júlio de Almeida; Álvaro Damas; António Dias; Elpídio Duarte Silva; Luís Ferreira da Silva; Daniel Severino. Source: Arquivo de Fotografia de Lisboa – CPF/MC, O Século.

Activités clandestines des légionnaires Les méthodes de la Légion Rouge sont diversifiées, et ses actions ne se limitent pas au simple « bombisme ». Le groupuscule est aussi accusé de commettre de nombreux vols et attaques de banques. La fabrication de faux billets est une autre des occupations attribuées aux légionnaires dont « une grande partie a été destinée à la prodution de bombes et à l’achat d’armement pour les ennemis de la société ».45 Le journal affirme que Carlos da Almeida, charlatan qui semble jouir d’une certaine réputation dans les milieux lisboètes, s’est associé à la Légion, et qu’en-

45

O Século, 4 avril 1925, « Cédulas falsas ».

167

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 168

Filipa Freitas Figure 8.8 – Quelques légionnaires

Paulo da Silva, Abel Venâncio, Pedro Guia de Oliveira, Alfredo Pereira Vaz, Luis Santos de Oliveira, Paulo da Silva Ferreira e Carlos Ferreira, João Nunes Carreira e João Fernandes Pintor.

semble ils ont commencé à voler des banques et des maisons de jeux. Les groupes d’action directe se meuvent dans un contexte de délinquance organisée croissante et se trouvent souvent au croisement entre le terrorisme politique et la délinquance commune, comme le souligne Maria Amália Pradas Baena.46 Au début de l’année 1925, la Légion Rouge est soupçonnée d’avoir braqué Eduardo Costa, percepteur de la Compagnie Portugaise de la Pêche dans l’Avenue 24 de Julho. Les individus soupçonnés d’avoir commis ce crime sont des légionnaires réputés également Jeunes Syndicalistes, Álvaro Damas et Mário dos Santos Fontainhas, ce qui fait retomber une fois de plus les soupçons sur les Jeunesses. La Fédération proteste contre ces accusations et clame immédiatement l’innocence des Jeunes, mais elle s’autorise le bénéfice du doute puisqu’elle accepte la possibilité de l’implication de certains éléments dans le braquage. En effet, elle affirme qu’une épuration du noyau aura lieu si les soupçons se confirment, et lance dans le même article un rappel à l’ordre.47

46 Pradas Baena (2003, 200): A partir de juillet 1923, le groupuscule « Los Solidarios », dont le militant anarchiste Duruti fait partie, s’était illustré par une série de vols et braquages de percepteurs et d’employés municipaux. 47 A Batalha, 9 avril 1925, « O assalto ao cobrador da CP ».

168

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 169

Jeunesses Syndicalistes: violence et action directe dans les années 20

La vengeance personnelle et la menace figurent également dans les activités des légionnaires et sont largement portées par la presse. José Silva, militant confédéral, affirme avoir été agressé par un membre du corps rédacteur du journal anarchiste A Comuna, car il s’était dit communiste. Un élément de la Légion Rouge, réfugié alors à Porto et sympathisant communiste, veut prendre sa défense, et déclare « aller le chercher (l’anarchiste) pour lui mettre deux balles dans la tête » (Silva 1971). Plus tard, il sera arrêté par la police et déporté vers Timor. Cet épisode rappelle la rivalité, voir la haine, qui sévissent entre anarchistes et communistes, mais il tend aussi à nous faire croire que les membres de la Légion Rouge avaient une préférence pour le communisme. En revanche, pour les partisans de l’Internationale Syndicale Rouge, le banditisme légionnaire émane directement des secteurs marginaux cégétistes : « Après les attaques à main armée aux maisons de jeu interdites et aux banquiers, ils ont attaqué en plein jour le percepteur d’une société marchande lui dérobant des milliers d’escudos. La police les a poursuivis, et comme réponse est survenu le 15 mai l’attentat contre la vie de l’officier également commandant de la police. La presse bourgeoise proteste et réclame des mesures extrêmes contre les crimes de la Légion Rouge, nom par lequel sont connus les défenseurs de l’action terroriste. La police se sert de ses registres et chasse des dizaines d’éléments anarchistes, syndicalistes et communistes, et beaucoup d’entre eux sont agressés de façon barbare, un des prisonniers étant même devenu fou ».48

L’impunité des légionnaires Pour la police, l’assimilation entre jeunes ouvriers et légionnaires va de soi. Dans certains cas, il faut reconnaître qu’elle paraît juste. Mais dans d’autres cas, cette association relève de l’extrapolation, et les jeunes sont souvent poursuivis et arrêtés sans preuves à l’appui. Dans la guerre sociale qui fait rage, les autorités ne distinguent pas entre éléments modérés et extrémistes. Le 16 mai 1925, António Marques, âgé de 18 ans, est arrêté parce qu’il participe aux réunions des Jeunes Syndicalistes de son quartier: « L’individu en question fréquente assidûment l’association des piocheurs de Meia-Laranja, où se réunissent les jeunes syndicalistes, et on le soup48 AHS-ICS, Archives de l’IC, F.534, op.7, d.432, Doc.185, paquet 105, Caixa 6, Au Bureau Exécutif de l’ISR par le CE des partisans de l’ISR, à Lisbonne, le 17 avril 1925, 109. F.534, op.7, d.432, Doc.185, paquet 105, Caixa 6, au Bureau Exécutif de l’ISR par le CE des partisans de l’ISR, à Lisbonne, le 17 avril 1925, 96-115.

169

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 170

Filipa Freitas Figure 8.9 – Autres légionnaires

Manuel Francisco «Gavroche»; José Soares (« o Malatesta »); José Alves dos Santos; Domingos Paiva; António Augusto dos Santos; Manuel Tavares Source: Arquivo de Fotografia de Lisboa – CPF/MC, O Século.

çonne d’appartenir à la Légion Rouge ».49 En 1925, Joaquim Pintor da Silva, du groupe anarchiste Libertário de Odemira, part au Barreiro pour trouver du travail. Son groupe lui recommande de prendre contact avec les Jeunes Syndicalistes de la région : il est arrêté avec une brochure des JS et est immédiatement accusé d’être légionnaire.50 Peu après l’attentat contre Ferreira do Amaral, Hermínio Mendonça,51 du noyau de Lisbonne, est arrêté après avoir blagué sur le fait d’appartenir à la Légion Rouge.52 49

ATT, PIDE/DGS, Procès n.º 2590, António Marques. ATT, PIDE/DGS, PSE, Procès n.º 2814 51 Employé de commerce, âgé de 20 ans en 1925. Il fait partie du Conseil fédéral et de la Commission Exécutive de 1925. 52 ATT, PIDE/DGS, PSE, Procès n.º 2631. 50

170

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 171

Jeunesses Syndicalistes: violence et action directe dans les années 20

Mais bien des fois, les prétendus crimes des jeunes sont impunis. Selon le Comité des partisans de l’Internationale Syndicale Rouge, ce banditisme social, qui entraîne des persécutions de syndicalistes, anarchistes ou communistes souvent innocents, reste pourtant impuni: « Les tribunaux ont fini par ne pas juger et même par ne pas condamner les accusés de ces délits par peur des menaces qui ont été adressées à leurs membres dans des lettres anonymes, d’autant plus que certains juges ont été les victimes d’attentats. Cette impunité a rendu encore plus audacieux ces éléments que les dirigeants anarchistes de la CGT n’ont eu ni l’intelligence ni le courage de marginaliser de l’organisation, ceux-là allant même jusqu’à les menacer lorsqu’ils ne leur donnaient pas d’argent ou cherchaient à suivre un chemin un peu différent du leur. Ces pistoleros ont été les gardes du corps des dirigeants de la CGT contre ceux de notre tendance, et leur action terroriste a dégénéré en banditisme, comme cela a été le cas partout dans le monde ».53 Cette impunité est effectivement visible dans les procès de police. Le cas de Jorge Pinheiro, déjà mentionné, en est révélateur: il est arrêté en février 1923, mais réalise un nouvel attentat le 7 avril contre les juges du Tribunal de Défense Sociale puis, en mai de l’année suivante, il est fusillé par la police à Olivais. Comment se fait-il que malgré ses nombreuses implications criminelles, Pinheiro ait été remis en liberté à au moins deux reprises ? Cette logique a été suivie pour la majorité des individus dont les noms reviennent avec récurrence dans les Archives policières: Ezequiel Seigo, « Malatesta », « O Vidraça », José Faria ou encore Bernardo Costa, restent impunis malgré les accusations qui leur sont faites. Est-ce parce que les forces de l’ordre ne parviennent pas à les emprisonner de façon définitive? Une grande partie des partisans de l’action directe passe par les mailles de la police : comment parviennent-ils à s’en extraire aussi vite ? La fuite est une des possibilités. On peut citer le cas de Filipe José da Costa, immédiatement suivi par son camarade Alfredo dos Santos, tous deux impliqués dans l’attentat contre Quaresma de Moura. En mars 1925, les deux Jeunes Syndicalistes accusés d’être légionnaires parviennent à fuir la prison en faisant appel à la même stratégie : ils feignent la maladie et sont incarcérés dans un hôpital civil, les infirmeries des prisons ne leur permettant pas un bon accès aux soins. De là, leur évasion est rendue bien plus facile. O Século commente avec étonnement l’inaction 53 AHS-ICS, Archives de l’IC, F.534, op.7, d.432, Doc.185, paquet 105, Caixa 6, Au Bureau Exécutif de l’ISR par le CE des partisans de l’ISR, à Lisbonne, le 17 avril 1925, 109.

171

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 172

Filipa Freitas

des autorités devant le recours récurrent des prisonniers à cette même technique : « Les procédés de fugue sont toujours les mêmes, et malgré cela, les providences indispensables à éviter à ce qu’ils soient mis en pratique ne sont pas adoptées. Le prestige de l’autorité est menacé, car les pires criminels parviennent à retrouver la liberté avec une étonnante facilité ».54 Bernardo Costa, après avoir été arrêté à la suite d’activités « bombistes », parvient également à fuir le 24 novembre 1924, lorsqu’il est conduit de la prison du Limoeiro au Tribunal de la Boa-Hora. Il lance du café aux yeux de son geôlier, puis s’enfuit entre les balles jusqu’à une fourgonnette qui l’attend. La liste des légionnaires publiée par O Século en juin 1925 montre bien que ces individus ont été arrêtés pour certains près de vingt fois avant d’être condamnés à la déportation, ce qui nous amène à nous interroger sur les causes d’une impunité si évidente. A Batalha elle-même s’interroge : si les légionnaires sont de reconnus criminels, pourquoi ne sont-ils pas jugés dans les formes, et pourquoi des innocents continuent-ils en prison ? Comment un révolutionnaire civil récidiviste, réputé légionnaire, peut-il se faire arrêter une dizaine de fois sans être condamné ? Peut-on alors parler de connivence de la part des autorités? Quel est l’intérêt pour les services de l’ordre de laisser filer les poseurs de bombes? Sont-ils relâchés par peur de représailles? Le journal O Século répond à toutes ces questions. Tout d’abord, les légionnaires se servent de la menace pour se faire relâcher : « Lorsque la police les arrête, ils entament leur jeu de menace et de terreur. Plaignants, témoins, délégués, juges, jurés, tôliers et politiciens, tous reçoivent la lettre anonyme glauque [...] Ou les politiciens les font relâcher, ou les gardiens les laissent fuir, ou la justice ne se prononce pas par manque de preuves, ou finalement, les jurés les innocentent ou les condamnent à des peines dérisoires, même lorsqu’il s’agit des assassins les plus répulsifs ».55 Toujours selon O Século, l’impunité des légionnaires est liée à l’instabilité politique, puisque les nouveaux gouvernements ont pour habitude d’encourager la libération des prisonniers politiques. L’on trouve d’autres possibles réponses à ces interrogations dans l’Archive Historique et Sociale de la Bibliothèque Nationale de Lisbonne. Selon José Francisco, c’est l’intensité des poursuites systématiques de la police qui crée ce régime de criminels, incarcérés dix ou vingt fois à la suite : «Le Commissaire de police a répondu en persécutant les éléments les plus visibles de la 54 55

O Século, 4 mars 1925, « Fugiu mais um legionário ! » O Século, 10 avril 1925, « Lobos no povoado ».

172

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 173

Jeunesses Syndicalistes: violence et action directe dans les années 20

Jeunesse. Ces arrestations se maintenaient souvent par manque de preuves. Une fois libérés, ils étaient emprisonnés à nouveau quelques jours plus tard, formant de cette façon un groupe de jeunes plus tard considérés comme récidivistes. La déportation est organisée sans culpabilité formée et sans jugement, sans prévenir les familles».56 Ce point de vue est aussi celui d’un anonyme, exprimé dans une lettre à un certain Gonçalves: « Même si nous devons admettre que parmi les déportés, certains sont coupables de certains mauvais actes, beaucoup d’entre eux sont simplement des agitateurs dangereux parce qu’ils se sont fait remarquer lors de grèves ou d’autres mouvements, ce qui leur a valu d’être incarcérés plus d’une fois, et de devenir ainsi de célèbres récidivistes ayant fait vingt séjours en prison, etc. Mais est-ce de leur faute si on les arrête? ».57

La Légion Rouge et la police N’y-a-t-il pas un intérêt pour la police et pour la droite radicale à voir ces jeunes révolutionnaires libres, pour pouvoir ensuite invoquer la nécessité d’un recours à la force pour lutter contre le terrorisme ? Il faut dire que les attentats créent un climat de peur qui légitime le recours à l’ordre public mais qui permet aussi d’intensifier l’action répressive contre le mouvement ouvrier: « La police a inventé une Légion Rouge pour emprisonner et poursuivre les ouvriers au nom de l’ordre, en faisant croire aux incrédules qu’elle n’agit que contre ces criminels. Alors, la police pratique les crimes les plus horribles contre des ouvriers qui ont la malchance de tomber entre ses griffes ».58 José Maria da Cruz, prisonnier depuis un an au fort de Monsanto, déclare avoir été forcé sous la menace de signer un acte de déclarations stipulant qu’il était légionnaire et qu’il avait participé à l’attentat contre Ferreira de Amaral. Le journal Voz Sindical établit un parallèle avec la LR et parle d’une «Légion noire» pour se référer à la Légion des capitalistes, industriels et conservateurs, dont les crimes restent impunis.59 Certaines sources vont jusqu’à supposer que la police serait l’auteur des attentats imputés à la Légion. C’est ce que suggère A Batalha, en jan-

56

José Francisco, Erros que Custam Caro, Lisbonne, septembre 1978. Caisse 35, Lettre du 15 octobre 1926, Coimbra. 58 Voz Sindical, n.º 56, 21 juin 1925, « O regime do terror ». 59 Voz Sindical, n°53, 31 mai 1926, « Legião negra ». 57

173

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 174

Filipa Freitas

vier 1926, devant les paradoxes du discours des forces de l’ordre, qui après avoir déclaré publiquement la liquidation du groupuscule, revient sur sa parole en parlant de « nouveaux » légionnaires. La police semble plutôt profiter du désordre public, voir favoriser la vague de criminalité pour intensifier la répression, car le terrorisme nuit à la popularité du syndicalisme et des Jeunesses auprès des masses : «Devant les calomnies lancées par la presse bourgeoise qui traite les jeunes de légionnaires, alors que la Légion Rouge n’est qu’une fiction et un prétexte pour provoquer dans l’opinion publique une ambiance qui nous est défavorable, il ne nous reste qu’à affirmer une fois de plus que notre action ne se situe que dans le champ de l’éducation technique, morale et intellectuelle et dans la préparation révolutionnaire de la jeunesse travailleuse».60 En mai 1925, quelques jours après l’attentat contre Ferreira de Amaral et la vague déferlante répressive qui s’en suit contre le mouvement ouvrier, A Batalha pousse un cri de détresse et d’indignation en affirmant que « la CGT est composée de Fédérations et d’Unions de syndicats, et non de ces légions, vertes, bleus, rouges ou jaunes dont on parle tant ».61 Les protestations des jeunes s’avèrent inutiles devant l’étendue de la propagande conservatrice et le délitement syndical. Dans Voz Sindical, le manque d’action des jeunes est le produit de « la provocante et cruelle propagande faite par les journaux bourgeois qui, déformant la vérité, présentent les Jeunesses comme une bande de malfaiteurs, comme cela s’est produit avec la célèbre Légion Rouge, ce qui fait que les parents empêchent leurs enfants d’entrer dans les noyaux ».62 La réputation du groupuscule terroriste est telle, qu’en 1925, une bande de jeunes se sert de son nom pour extorquer de l’argent à loisir, avant d’être découverte par la police. En mai 1925, le fils de la gouvernante de la Comtesse Nobre de Carvalho se fait passer pour la Légion Rouge et menace de tuer le mari de celle-ci, afin d’obtenir de l’argent. Ces faits-divers illustrent la portée sociale du phénomène de la Légion et son instrumentalisation. Autre théorie légitime est celle de la collaboration entre légionnaires et police, qui explique selon Emídio Santana l’impunité des légionnaires. Ce témoin cite l’exemple de l’attaque contre les maisons de jeu –alors interdites- activité commune à la police et aux légionnaires, qui se faisait sous la couverture des forces de l’ordre. Les légionnaires pourraient donc

60 Le secrétariat central du noyau JS de Lisbonne proteste, « As perseguições », A Batalha, n.º 1989, 23 mai 1925. 61 A Batalha, n.º 1985, 17 mai 1925, « Entendamo-nos ! ». 62 Voz Sindical, février 1926, « Juventudes Sindicalistas, Sessão de propaganda ».

174

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 175

Jeunesses Syndicalistes: violence et action directe dans les années 20

aussi être des aventuriers dont se sert la police, auxquels elle donne des emblèmes, et qu’elle peut relâcher une fois qu’ils ont aidé à la capture d’éléments ouvriers. Peut-être est-ce pour cela que certains légionnaires passent si peu de temps en prison, rachetant leur liberté en dénonçant leurs complices ou camarades, ou en procurant du butin à la police. Mais pour ce faire, il faudrait qu’ils soient liés d’une façon ou d’une autre au mouvement confédéré, ce qui contredit un statut isolé d’aventurier. 63 Or, les individus impliqués dans l’action directe étaient bien plus qu’une bande de malfaiteurs et de bandits, bien qu’il y en ait aussi de cette sorte parmi eux. Santana cite ainsi des cas d’individus mêlés à la violence sociale, qui appartiennent d’ailleurs tous aux Jeunesses Syndicalistes. Daniel Severino, après avoir été dénoncé à la police par Manuel Tavares Adão, assassine celui-ci. L’on imagine que si Severino, reconnu légionnaire, collaborait réellement avec la police, il n’aurait pas réagi ainsi, puisqu’il n’aurait eu rien à craindre. On pourrait plutôt croire qu’il est chargé d’éliminer les traîtres, car déjà en 1923, il avait liquidé António Duarte, autre délateur membre des Jeunesses Syndicalistes. Santana considère ce dernier et Álvaro Damas comme des éléments pernicieux, trop « agités » : ils sont en effet tous deux assimilés à la Légion Rouge par la police. António Duarte, des JS, traître et délateur, se serait fait tirer dessus Largo de S. Domingos par Severino (Santana 1982, 75). Il mentionne aussi Filipe José da Costa,64 ancien élément du Comité de Défense Sociale – et donc du groupuscule d’action directe des JS – qui bien plus tard fait partie de la PIDE, tout comme Elpídio Duarte,65 jeune de la section cuirs et peaux du noyau de Lisbonne. Les exemples de Santana, loin d’innocenter les jeunes, témoignent une fois de plus de leur implication dans l’action directe. Ils ne prouvent pas non plus la collaboration de la Légion Rouge avec la police, mais révèlent l’existence d’hors-la-loi, de délateurs et d’opportunistes au sein du mouvement ouvrier. La complexité des liens qui existent entre police et potentiels légionnaires ressort une fois de plus. Francisco Quintal, ancien membre des 63 Emídio Santana a toujours cherché à nier l’implication des ouvriers confédérés et des Jeunes Syndicalistes dans l’action directe et à les distinguer de la Légion Rouge, raison pour laquelle il tient ce discours. 64 Jeune du noyau de Lisbonne, travaillant dans la construction civile. Lorsqu’il est arrêté avec Hilário Gonçalves, il affirme avoir été menacé de mort par la police. Comment se retrouve-t-il plus tard engagé dans les forces de l’ordre ? 65 Ce militant des Jeunesses Syndicalistes de Lisbonne occupe des fonctions syndicales, comme celle de remplaçant du Syndicat des Cuirs et Peaux, ou de membre de la Commission Exécutive de la section de Anjos.

175

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 176

Filipa Freitas

Jeunesses Syndicalistes, nous en fait part : « La Légion Rouge a été un mélange d’éléments variés, des gens jeunes, de plusieurs origines ; influencés par les événements de l’après-révolution russe, ils désiraient accélérer la révolution et la faisaient reculer. Je me souviens de certains garçons bien intentionnés et d’autres qui ont laissé ce milieu qui se souillait petit à petit. Même des éléments de la police, infiltrés, ont collaboré avec la Légion Rouge; des « Avantes », des « Bela Kuhn » (pseudonymes de guerre); des héros et des commandants de secte, des imitations de l’étranger! ».66 D’autres sources nous poussent à ne pas considérer la Légion comme une succursale des forces de l’ordre, à commencer par les Archives policières elles-mêmes. Manuel Viegas Carrascalão 67 témoigne de la violence des affrontements entre police et légionnaires. Lorsque « Gavroche » meurt, l’opinion publique s’empresse de dire qu’il a été assassiné par la Légion Rouge : Carrascalão accuse la police de ce meurtre ainsi que de ceux de Diamantino de Anunciação 68 et Domingos Pereira.69 De même, il affirme que certains policiers essayent de venir chercher les jeunes en prison pour les emmener et les assassiner : de même, lorsque Filipe José da Costa et Hilário Gonçalves sont incarcérés à la suite d’un attentat en 1924, la police leur dit que s’ils avaient été arrêtés par la brigade spéciale du Commissariat, ils auraient été assassinés.70 La réalité ne semble pas être celle d’une collaboration entre légionnaires et police, bien que des cas de délation ou d’infiltration aient existé. Les forces de l’ordre ont au contraire l’air déterminées à contrecarrer, voir à éradiquer, certains individus indésirables : elles en sont sans doute empêchées par les vices de procédure, l’habileté des révolutionnaires, ou par le manque de preuves.

La Légion Rouge et les conservateurs La Légion est surtout un outil aux mains des conservateurs, qui cherchent depuis 1924 à s’imposer par un coup d’État, justifié par la violence 66

AHS-BNL, N61, Caixa 28, artigo Diário de Notícias, n.º 198. Militant du noyau de Lisbonne, il est entre autres secrétaire de la Fédération des Jeunesses Syndicalistes en 1925 et participe à la Conférence de Lisbonne en mars de la même année. 68 Militant des Jeunesses de la région de Porto, assassiné en prison par la police. 69 Militant auxiliaire des Jeunesses Syndicalistes dont on a déjà parlé. Il est fabricant de pain et est également assassiné en prison. 70 Arquivo Pinto Quartim, Caixa 6: Carrascalão écrit du Fort de Monsanto, où il se trouve incarcéré, le 23 janvier 1927. 67

176

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 177

Jeunesses Syndicalistes: violence et action directe dans les années 20 Figure 8.10 – Affiche des années 40 sur les actions de la Légion Rouge sous la République

« Lisbonne a vécu pendant des années sous la terreur de la Légion Rouge : le Commandant de Police de Sécurité d’État, Ferreira do Amaral, arrêtait les criminels. La politique les relâchait. En 1924, il y a eu à Lisbonne 36 présences de bombes explosives parfois en quantités copieuses et 7 crimes sociaux d’autre nature. Le Portugal doit à l’État nouveau un temps de paix interne et de travail tranquille ». Source: Biblioteca Nacional de Lisboa, Iconografia.

sociale. Pour Raúl Proença, O Século se sert de la Légion pour faire campagne contre le mouvement ouvrier dans son ensemble, car pour le journal conservateur « le bolchevisme n’est qu’une couverture rouge sang ». Plus loin il réaffirme que « la Légion Rouge, loin d’avoir eu la complicité des hommes de la police et du gouvernement, a eu seulement la complicité des hommes de négoce » (Proença 1925). Il est effectivement possible que la droite conservatrice ait eu des hommes chez les légionnaires. D’un 177

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 178

Filipa Freitas

autre côté, le système législatif n’est pas dépourvu de certaines failles : les emprisonnements de courte durée, la libération des prisonniers en dépit de l’amoncellement de preuves, par faute d’enquête, les fuites ou l’armistice des prisonniers en sont des manifestations. Ces irrégularités du système favorisent incontestablement l’impunité des légionnaires ? L’hypothèse selon laquelle la Légion Rouge aurait été subventionnée par les conservateurs semble à écarter, mais le fait que les attentats servent directement les intérêts des partisans de la dictature militaire rend vraisemblable leur contribution sporadique dans ceux-là. C’est ce qu’avancent à la fois le secrétariat des JS de Lisbonne et le journal Seara Nova : « Les plaintes des forces vives contre le manque de tranquillité, contre le désordre constant, contre les « bombistes », contre l’indiscipline des révolutionnaires…et en fin de compte, toutes les révolutions avaient été subventionnées par des banquiers, des industriels. La Légion Rouge était sponsorisée par des banques et des clubs de jeu » (Massano 1925). La question est complexe et à ce jour, elle n’a abouti qu’à des spéculations, puisque si certains nient l’existence d’une Légion Rouge, d’autres stipulent qu’elle a été une invention de la police ou des conservateurs. Néanmoins, nous sommes aujourd’hui en mesure de fournir quelques renseignements complémentaires sur ce groupuscule qui a fait tant de bruit, et dont nous pouvons retenir quelques points fondamentaux.

Pour conclure : les liens entre police, jeunes syndicalistes, conservateurs et Légion Rouge... Il est tout d’abord hautement probable que la Légion ait existé à un moment donné, puis ait disparu, mais que son nom, de par son impact sémantique, ait été repris par la propagande conservatrice. Des groupes d’action directe du cet acabit ont agi dans la période, et c’est sans doute parmi eux que se trouvaient les responsables des crimes qui ont rendue célèbre la LR : des jeunes syndicalistes, communistes, anarchistes, mais aussi quelques individus sans idéologie. L’appellation de Légion Rouge sert donc avant tout à identifier ce que fut le phénomène d’action directe. Quant à l’existence de ces pratiques au sein du mouvement ouvrier, A Comuna résume parfaitement la situation : « C’est normal qu’il y ait des individus dans la Légion Rouge, si elle existe vraiment, qui se prétendent communistes, anarchistes, ou syndicalistes. Mais leurs actes disent l’opposé. Nous n’acclamons pas ces actions, mais nous n’avons pas non plus assez de force pour condamner des individus isolés : ils sont le fruit 178

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 179

Jeunesses Syndicalistes: violence et action directe dans les années 20

du milieu dans lequel nous végétons, ils sont le produit logique du système politique ».71 Il semblerait en tout cas que la Légion Rouge ait été très utile à la droite radicale, car elle lui a permis de discréditer le gouvernement de António Maria da Silva. En 1925, le Président de la République n’hésite pas à dire que son principal objectif est de lutter contre la Légion Rouge (Ramos 1993, 628). La Légion permet aux conservateurs et aux nationalistes d’attaquer la CGT et la Gauche Démocratique et de maintenir à la tête de la police, muni des pleins pouvoirs, le grand répresseur Ferreira do Amaral. En réalité, le terrorisme a permis l’unification des classes bourgeoises et a contribué à homogénéiser un bloc dominant. Les légionnaires, en exacerbant la conflictualité sociale, ont ainsi contribué malgré eux à la montée du fascisme. De par l’impact représentationnel qu’elle a dans la société des années 20, la Légion Rouge évolue très rapidement vers l’état de mythe, à l’instar des groupuscules «Somatén rojo» ou la « guàrdia roja » (Baena 2003, 87). En effet, elle devient « représentation collective mobilisatrice » (Sorel 1990, 86), et est encore évoquée dans les années 30 par la propagande salazariste, incarnant la période noire républicaine, caractérisée dans un discours simpliste et mystificateur par la violence, la corruption, la dépersonnalisation. Elle devient ainsi une composante de la mémoire collective conservatrice de la République, tandis que l’action directe est évacuée de la mémoire collective ouvrière.

Bibliographie Baena, M. A. P. 2003. L’anarquisme i les lluites socials a Barcelona 1918-1923: la repressió obrera i la violència. Barcelona: Publicacions de l’Abadia de Montserrat. Droz, J. H. 1983. Archives de Jules Humbert Droz. Les partis communistes des pays latins et l’Internationale communiste dans les années 1923-1927, t. II, sous la direction de Siegfried Bahne. Londres: Reidel Publishing Company. Massano, A. V. 1925. «As queixas das forças vivas». Seara Nova, 55. Pereira, J. P. 1981. «Contribuição para a história do partido comunista português na I República (1921-1926)». Análise social, 67-68-69. Proença, R. 1925. «O último movimento revolucionário». Seara Nova, 46. Ramos, Rui. 1993. A Segunda Fundação, (1890-1926). História de Portugal (vol. 6). Lisboa: Estampa.

71

A Comuna, n.º 110, 19 avril 1925, A Legião Vermelha.

179

08 MVCabral Cap. 8_Layout 1 6/24/13 8:54 AM Page 180

Filipa Freitas Santana, E. (1982). Memórias de um Militante Anarco-sindicalista. Lisboa: Edições Perspectivas & Realidades. Silva, J. 1971. Memórias de um Operário. Porto: Ed. Manuel Duarte. Sorel, G. 1990. Réflexions sur la violence. Paris: Ed. France loisirs. Tilly, Charles. 2004. «Terror, terrorism, terrorists». Sociological theory – Theories of Terrorisme, a Synposium, 22 (1).

180

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 181

Steffen Dix José Barreto

Capítulo 9

Um sociólogo oblíquo: a função social da religião e da arte e as reflexões políticas em Fernando Pessoa A sociologia indisciplinada em Fernando Pessoa Partindo de uma curiosa comparação entre os alemães e os portugueses que o fez concluir que ambos os povos eram excessivamente disciplinados, Fernando Pessoa declarou em Abril de 1915 que «Portugal precisa de um indisciplinador». O texto foi publicado na coluna «Crónica da vida que passa» do diário O Jornal, e o seu objectivo principal consistiu na crítica a um suposto excesso de disciplina e de colectivismo dos portugueses, que declarava serem «incapazes de revolta e agitação» (Pessoa 2011, 39-42).1 Era um grito de inconformismo e independência, um apelo à perturbação dos espíritos e à «anarquia» contra a «doença da autoridade» e a rotina ou indolência social e política que, na perspectiva de Pessoa, sempre marcou a história portuguesa. Mesmo a revolução de 1910 não significou, para ele, uma transformação essencial desta atitude. A agitação devia dirigir-se, como é característico em Pessoa, ao pensamento individual, livrando-se assim das cadeias do colectivismo. Portadores deste apelo à indisciplina, muitos dos seus textos continuam ainda hoje a ser capazes de «perturbar as almas e desorientar os espíritos», como Pessoa propunha (ibidem). E a maior parte da sua obra pode ser lida, actualmente, como um manual de pensamento individualista radical. No entanto, olhando para a totalidade da sua enorme obra teórica e ensaística, a palavra «indisciplinador» ganha indirectamente um outro sentido, 1 Para facilitar a leitura, a ortografia de Pessoa foi actualizada em todas as seguintes citações.

181

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 182

Steffen Dix e José Barreto

e em particular no que diz respeito às disciplinas científicas. Ou seja, as suas reflexões, ponderações ou considerações teóricas dificilmente se deixam classificar ou catalogar em termos das modernas disciplinas científicas. A teoria aparece em Pessoa cientificamente indisciplinada. No seu espólio encontra-se um enorme número de dissertações que podem ser associadas – numa perspectiva científica moderna – a uma grande variedade de disciplinas, tais como filosofia, história, ciência política, ciência das religiões, ciência da arte ou da literatura, filologia ou sociologia. Em rigor, Pessoa nunca foi um historiador, um sociólogo, ou um especialista em ciência das religiões. Era um autodidacta de vastas leituras e múltiplos interesses, não um académico. Nunca desenvolveu uma teoria coerente ou sistemática, e as suas considerações nunca, ou apenas raras vezes, corresponderam àquele requisito que Max Weber entendeu como o mais importante da ciência: uma análise absolutamente isenta de valores (wertfrei). Além disso, a vocação de Pessoa correspondia muito mais à de um artista do que à de um cientista, se bem que em 1935 ainda projectasse publicar uma «revista quinzenal de literatura e sociologia» da sua inteira lavra, que intitulou Norma (ver Barreto 2009, 269). Embora lhe tenha faltado, no sentido de Weber, a vocação para a ciência em geral e, em particular, para as ciências sociais ou políticas, Pessoa mostrou durante a vida inteira uma certa inclinação para estabelecer as suas observações num fundamento científico, revelando-se assim um intérprete bastante inovador, e muitas vezes surpreendente, das realidades sociais e políticas da Europa e, nomeadamente, de Portugal. No seu famoso texto «Die Wissenschaft als Beruf» («A ciência como profissão/vocação»), 2 Max Weber sublinhou a necessidade de uma especialização consequente do «trabalhador científico» e de uma produção de conhecimento utilizável (Weber 2002 [1919], 482), recusando abertamente uma aproximação ao incognoscível ou ao mistério que tanto encantou Pessoa. Contudo, em Pessoa existiu constantemente um interesse elevado em compreender a sua realidade circunstante, ou seja, uma forma de curiosidade que ele próprio designava como «a mãe da ciência» (Pessoa 1990, 591). Direccionando a sua curiosidade para o que hoje chamamos «realidade social», Pessoa revela em vários casos um raciocínio sociológico inovador. Já no título do seu primeiro artigo crítico (publicado em Abril de 1912 na revista A Águia e celebrizado pelo facto de anunciar um «supra-Camões na nossa terra») surge a sociologia como um meio de compreender o espaço, o tempo e a função da nova poesia portuguesa no território 2

Ver, a propósito, Cabral (2008).

182

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 183

Um sociólogo oblíquo

nacional. Um dos seus últimos textos publicados em vida, no Diário de Lisboa de 4 de Fevereiro de 1935, é uma intervenção política contra um projecto de lei sobre «associações secretas», apresentado na Assembleia Nacional pelo deputado José Cabral, que Pessoa acusa de ignorância histórica em relação à Maçonaria. Estes artigos revelam precisamente a cristalização de duas áreas temáticas que se tornaram, ao longo dos anos, importantes para o pensamento de Pessoa: a sociologia da literatura e a sociologia política. Na sua tentativa de compreender e apresentar a sua própria posição e função dentro da literatura portuguesa e europeia, Pessoa redigiu um grande número de textos sobre o papel social da literatura, analisando – às vezes de uma forma comparativa – a sua imagem na sociedade e a sua relação com a mesma. Ou, em termos sociológicos: de que maneira representa a literatura uma sociedade ou os processos sociais? Por outro lado, na confrontação com a instabilidade política do seu tempo e na tentativa de apresentar alternativas, Pessoa entra no campo da sociologia política. Reconhecendo que ele analisa e questiona directa ou indirectamente as condições sociais da ordem política, ou a função, a estrutura e as consequências de sistemas políticos, podíamos incluir alguns dos seus textos neste ramo sociológico, como aliás fez Joel Serrão (Pessoa, 1980). Além destes dois interesses sociológicos, devíamos acrescentar um terceiro. Trata-se da sociologia da religião, tendo em conta que Pessoa deixou um grande número de textos nos quais pretendia analisar a relação entre religião e sociedade ou a sua função nela. Embora haja também um certo número de textos que versam, num sentido mais lato e indirectamente, outros assuntos sociológicos (tais como a sociologia das elites ou a sociologia do conhecimento), são precisamente as suas sociologia da literatura, sociologia da religião e sociologia política – na sua feição indisciplinada – que pretendemos apresentar nas linhas seguintes. Mas antes disso seria útil questionarmo-nos sobre a base intelectual na qual Pessoa estabeleceu o seu pensamento sociológico.

O «período alquímico» da sociologia Embora Auguste Comte tenha inventado a palavra «sociologia» já nos meados do século XX, e Herbert Spencer seja considerado hoje em dia um dos clássicos da sociologia, a sociologia académica começou apenas com a geração seguinte, representada por contemporâneos de Pessoa tais como Max Weber, Émile Durkheim, Ludwig Gumplowicz, Vilfredo Pareto, Ferdinand Tönnies ou Georg Simmel. Contudo, Pessoa apontou as origens 183

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 184

Steffen Dix e José Barreto

da sociologia já em Aristóteles e Maquiavel, mostrando, ao mesmo tempo, uma consciência clara sobre a idade juvenil desta ciência. Num texto, publicado em Maio de 1919 no jornal Acção, lemos o seguinte: Tomando a imagem da química, podemos dizer que a ciência chamada sociologia está ainda no seu período alquímico. De forte e segura em matéria sociológica ou política, pouco temos – nós, humanidade em geral – a não ser a Política de Aristóteles, fruto de toda a experiência política da Grécia antiga, e O Príncipe de Machiavelli, fruto de toda a experiência política da Renascença. [...] Desde a Revolução Francesa, sobretudo, se perdeu por completo o senso das realidades sociais em proveito de teorias abstractas, de sentimentalismos vagos, de imperialismos místicos e mistos. E de então para cá, na era dos grandes estados e do internacionalismo crescente, que a progressiva facilidade de comunicações e de relações instaurou, ficou sendo completa a obnubilação do senso político. Foi em meios como estes que nasceram as modernas teorias sociológicas [Pessoa 1990, 593-594].

Este parágrafo revela, por outro lado, claramente que Pessoa teve consciência das origens pré-clássicas da sociologia cuja grande referência na viragem para o século XX ainda era Auguste Comte. Tendo em conta que Pessoa entende o progresso (ou pelo menos a definição dele) como um «dos pesadelos da sociologia», podíamos concluir que a sua crítica se dirige concretamente contra o positivismo de Comte, que o poeta português designou como um louco, embora capaz de «produzir uma obra disciplinada e coerente» (Pessoa 2006, 365). Além do progresso, há mais um outro conceito positivista que foi criticado ferozmente. Trata-se especialmente da «moderna preocupação da ordem» que significa, na perspectiva de Pessoa, «uma doença do espírito colectivo», comparável à neurastenia do indivíduo. Ou seja, uma sociedade sã não devia procurar manter a ordem, mas sim eliminar as causas da desordem. Pessoa sublinha que esta inquietação em relação à ordem apareceu da mesma maneira que o conceito de progresso, num período perturbado e anormal da política francesa (ou seja, a Revolução Francesa, na perspectiva de Pessoa), e que o seu «criador filosófico, o infeliz chamado Auguste Comte, toda a vida sofreu de alienação mental». (Pessoa 1990, 586).3 Não se encontra hoje na biblioteca privada do poeta nenhum livro de Comte através do qual pudéssemos verificar uma confrontação directa de Pessoa 3 Tendo em conta que o lema principal do positivismo consiste na frase «L’amour pour principe, l’orde pour base, le progrès pour but», Pessoa atacou exacta e repetidamente dois dos pilares mais importantes da visão sociológica de Comte.

184

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 185

Um sociólogo oblíquo

com o pensador francês. No entanto, ainda existem nela várias obras cujo conteúdo está ligado ao positivismo, apresentando o pensamento de Comte de uma forma crítica ou de uma forma muito elogiosa. Assim, no seu livro La philosophie positive (1904), Émile Corra, que se dedicou entusiasticamente à divulgação do positivismo, proclama os seis volumes do Cours de philosophie positive (1829-1842) como «livre d’or de l’Humanité» (Corra 1904, 16), defendendo o espírito positivista quase como uma espécie de salvação e celebrando o aperfeiçoamento evolutivo do espírito humano. Uma opinião bastante mais reservada encontra-se no livro Le Positivisme (1904?) de Georges Cantecor, no qual o autor tenta diferenciar o positivismo do comtismo. Já no início do livro (assinado, curiosamente, pelo semi-heterónimo Alexander Search), Cantecor salienta que Comte tem mais o aspecto de um pedagogo do que de um filósofo. Neste parágrafo, sublinhado por Pessoa (ou por Alexander Search), Cantecor afirma que Comte se sentiu, desde os primeiros dias, na posse de verdades essenciais, apenas tentando aplicá-las às necessidades intelectuais, morais e políticas do seu tempo (Cantecor 1904?, 10-11). Ao contrário do positivismo, que o autor reconhece de facto como um método científico, o comtismo é por ele descrito como um pensamento programático com elementos de uma religião. Ou seja, o comtismo significa um descuido das exigências empíricas ou uma espécie de usurpação do positivismo, provocado, de uma certa maneira, pelo próprio Comte. Um outro livro da biblioteca de Pessoa bastante entusiástico em relação ao positivismo é de John Henry Bridges, que divulgou o pensamento de Comte em Inglaterra através de várias traduções e interpretações, ou seja, através da «simplicity of language and a fullness of illustration which should make them easly intelligible even to the most unlearned» (como se lê no prefácio de Edward Spencer Beesly, V). Trata-se de um livro intitulado Illustrations of Positivism que foi publicado, pela primeira vez, em 1907 e representa principalmente uma reedição de vários artigos que Bridges já tinha publicado anteriormente na Positivist Review. Na biblioteca de Pessoa, encontra-se a segunda edição de 1915 desde livro que representa uma tentativa de mostrar o valor excepcional do positivismo em algumas das mais importantes áreas intelectuais da vida humana, tais como a biologia, a psicologia, a religião, a ética ou a filosofia. Hoje é difícil dizer até que ponto Pessoa se deixou influenciar por estes livros, tendo em conta que neles não há, ou apenas muito poucas, anotações ou marginalias que são em geral relativamente abundantes nos livros que Pessoa leu com interesse e atenção. Além destes três livros encontram-se na biblioteca de Pessoa dois outros que não estão exclusivamente ligados 185

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 186

Steffen Dix e José Barreto

com o positivismo comtiano, mas enquadram o seu pensamento na história das ideias. Estes dois livros têm um interesse particular, tendo em conta que neles se encontra uma certa acareação entre o positivismo de Comte e a filosofia sintética de Herbert Spencer, cujos individualismo e liberalismo foram algumas das bases mais marcantes e permanentes a partir das quais Pessoa construiu o seu próprio pensamento. O primeiro é Science et religion dans la philosophie contemporaine (1911), do influente filósofo francês Émile Boutroux, que conseguiu no início do século XX criar um grupo de alunos ilustres, tais como William James, Henri Bergson, Maurice Blondel ou Émile Durkheim. No livro, que está bastante sublinhado por Pessoa, Boutroux confronta directamente a «religião da humanidade» de Comte com o «incognoscível» (unknowable) de Spencer, sublinhando a sua incompatibilidade. Em relação a Comte, Boutroux salienta a contradição interna do positivismo, reconhecendo a ambiguidade da palavra «humanidade» que não é capaz de fornecer um primeiro princípio (Boutroux 1911, 75). Considerando que o homem é um ser à sua própria procura, um ser que se transforma, se modifica e se cria continuamente, a humanidade de Comte não ultrapassa uma fixação artificial e arbitrária de um estado transitório (ibidem, 76; os dois parágrafos foram sublinhados por Pessoa, o último afirmativamente). No capítulo sobre Herbert Spencer, Boutroux raciocina sobre um fenómeno que está permanentemente presente na obra pessoana, descrevendo a coexistência da religião e da ciência na obra de Spencer. Embora fosse sempre bastante crítico em relação à religião, Spencer reconheceu que os métodos empíricos da ciência têm os seus limites, sobretudo no que diz respeito à essência da realidade que é principalmente incompreensível ou ininteligível. Neste sentido, a ciência não tem meios nenhuns que possam afirmar ou negar as crenças fundamentais. Trata-se de um facto que pode parecer hoje em dia uma espécie de lapalissade. Contudo, na época de Pessoa houve várias tentativas de aproximação científica aos Welträthsel (Enigmas do Universo), das quais Pessoa teve conhecimento, pelo menos através Ernst Haeckel e do seu monismo. Provavelmente muito influenciada por Spencer, a obra teórica de Pessoa espelha os limites da ciência e afirma vivamente a presença omnipotente do ininteligível na vida humana. Além disso, as anotações de Pessoa no livro de Boutroux indicam nitidamente a sua muito maior afinidade com Spencer do que com Comte. Em 1920, a famosa editora Macmillan publicou o livro The Idea of Progress do historiador irlandês John Bagnell Bury. O livro discorre em vários capítulos temáticos sobre a origem e o desenvolvimento da ideia de progresso, começando com os franceses Jean Bodin e Louis Le Roy e aca186

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 187

Um sociólogo oblíquo

bando com o evolucionismo. O décimo sexto capítulo deste livro fala da tentativa de Comte em encontrar uma lei do progresso, e Pessoa sublinha neste texto uma afirmação que parece provavelmente a única concordância entre o pensador francês e o poeta português. A hipótese de que a história humana é governada pelas ideias (Bury 1920, 292; sublinhado por Pessoa) encontra-se também em Pessoa, tendo em conta que foi uma das suas intenções influenciar a história portuguesa através do seu sebastianismo racional, ou seja, através de uma ideia mitológica. Este livro mostra claramente que Pessoa continuou com um interesse elevado no progresso, ou seja neste mesmo fenómeno que ele tinha chamado um ano anterior o «pesadelo da sociologia». De uma maneira muito semelhante a Boutroux, o irlandês Bury salienta o ponto fraco do positivismo de Comte, que já foi encontrado por Spencer e que consiste na suposição arbitrária de que a natureza humana é um fenómeno constante e quase estático. Pelo contrário, num confronto entre estes dois pensadores, sustenta que a humanidade é uma complexidade infinita e permanentemente em transformações (ibidem, 337). Assim, Bury destaca que Spencer desenvolve uma sociologia bastante diferente da de Comte, acreditando que o progresso consiste na forma como os membros da sociedade se adaptam adequadamente a este lugar que está em consonância com a sua natureza. Também aqui encontramos um raciocínio que está constantemente presente no pensamento pessoano. Ou seja, uma sociedade apenas pode funcionar de uma forma melhor quando os indivíduos aceitam o seu lugar natural, e a falta de consonância entre o indivíduo e o seu lugar adequado na natureza ou na sociedade provoca uma desordem social. Parece que é exactamente neste confronto entre Comte e Spencer, tal como examinado nos dois livros de Boutroux e de Bury, que se desenvolve o pensamento sociológico, político e filosófico de Pessoa, mostrando uma proximidade nítida às ideias do teórico liberal da era vitoriana. No que diz respeito a Herbert Spencer, Pessoa possuía na sua biblioteca três obras do autor e uma introdução geral de William Henry Hudson, intitulada An Introduction to the Philosophy of Herbert Spencer (1904). As anotações neste livro evidenciam claramente que Pessoa teve um interesse especial pela filosofia sintética e pela sociologia de Spencer, e adoptou algumas das suas ideias principais, tal como a ideia de que a matéria se desenvolve da homogeneidade para a heterogeneidade, ou da simplicidade para a complexidade. Em relação a este progresso evolucionário, Spencer desenvolveu a sua concepção da sociedade enquanto organismo social que se torna cada vez mais complexo. Esta afinidade com Spencer é bastante clara na leitura de Pessoa das obras Seven Essays Selected 187

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 188

Steffen Dix e José Barreto

from the Works of Herbert Spencer (1907), Social Statics Abridged and Revised (1910), e The Man versus the State (1914). Na obra Social Statics, por exemplo, encontram-se algumas reflexões anotadas cujo conteúdo entrou nomeadamente em escritos de Pessoa sobre a «organização social», nos quais ele defendeu uma adaptação dos indivíduos às suas circunstâncias exteriores. Além disso, é fácil adivinhar que muitas reflexões políticas de Pessoa foram influenciadas por Spencer, sobretudo no que diz respeito aos diálogos sobre a tirania, à sua teoria de uma república aristocrática, e em geral ao seu liberalismo. Neste sentido, um dos livros mais importantes na formação intelectual e sociológica de Pessoa é The Man versus the State, representando quase uma fonte inesgotável para o entendimento pessoano do liberalismo, que significa principalmente a liberdade individual mais alta possível e a intervenção do Estado mais baixa possível. Embora Pessoa se distanciasse da tese da igualdade entre homem e mulher, defendida por Spencer, temos de dizer que o seu pensamento sociológico e político é incompreensível sem reconhecer a enorme influência deste filósofo inglês que está quase sempre presente nas suas reflexões sobre a vida social em Portugal e na Europa. Embora Comte e Spencer sejam considerados como os primeiros e grandes clássicos da sociologia, ambos perderam a sua importância com o advento da moderna sociologia académica que se tornou cada vez mais empírica, analítica e descritiva. Neste sentido, podemos supor que Pessoa ainda não estivesse a par dos modernos métodos sociológicos, conhecendo a sociologia de facto apenas no seu «período alquímico». Esta hipótese não se pode verificar, nem negar. Na maioria dos seus textos sociológicos, apenas dificilmente se pode distinguir entre uma análise imparcial do seu tempo e ideologia correctiva, além disso na sua obra não se encontram nenhuns textos puramente analíticos ou descritivos que pudessem revelar uma familiaridade com a metodologia da sociologia moderna. Assim, nos seus textos não há reflexões sobre o fait social de Durkheim, ou seja, um entendimento das acções humanas enquanto meio de criar um ambiente ou enquanto obrigação exterior que influencie necessariamente a vida do indivíduo. No entanto, na sua biblioteca encontra-se curiosamente um livro que descreve estas condições metodológicas da sociologia moderna. Trata-se do livro Le travail sociologique (1909) de Pierre Méline que reproduz de forma relativamente detalhada dois dos trabalhos mais importantes de Durkheim. Ou seja, no que diz respeito a uma das primeiras teorias sociológicas, Pessoa teve pelo menos indirectamente acesso à metodologia de Durkheim, elaborada em Les règles de la méthode sociologique (1895) e Le suicide: Étude de sociologie (1897). 188

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 189

Um sociólogo oblíquo

No entanto, trata-se de uma influência que não se revela claramente nos seus textos e pode levar-nos à conclusão de que Pessoa teve pouco contacto com autores considerados hoje em dia como fundadores da sociologia académica. Este facto, porém, não diminui necessariamente o valor do pensamento sociológico de Pessoa que revela, várias vezes, intuições surpreendentes em relação a alguns fenómenos que entraram apenas nos últimos anos no centro dos debates da sociologia contemporânea.

A arte e a literatura enquanto indicadores sociológicos Para Theodor W. Adorno, a arte tem a capacidade de indicar e apontar o espírito de uma sociedade dentro de um específico contexto histórico. Ela é uma «geschichtsphilosophische Sonnenuhr» (relógio de sol da filosofia da história), e sobretudo o modernismo, ao contrário da arte mais antiga e não é por acaso, é marcado pela desarmonia, dissonância e incoerência. Ou seja, a arte é um fait social ou um espelho, capaz de representar o estado de uma sociedade. Vários textos de Pessoa testemunham que ele teve consciência deste facto sociológico, tentando entender nomeadamente as relações entre literatura e sociedade. Nesta tentativa, Pessoa teve sobretudo dois antecessores famosos. Já em 1800, Madame de Staël publicou o livro De la littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales no qual ela defendeu a tese de que as obras literárias estão marcadas pelas circunstancias sociais (e também as climáticas e geográficas) nas quais nascem. Em 1864, Hippolyte Taine publicou os quatro volumes da Histoire de la littérature anglaise, salientando que uma obra literária pode ser explicada através da raça do escritor, do seu ambiente geográfico e social, e do seu momento histórico. Os dois livros não se encontram na biblioteca privada de Pessoa, mas as suas próprias reflexões revelam algumas semelhanças, visíveis, por exemplo, nas suas comparações frequentes entre a literatura nórdica com as suas paisagens nebulosas.4 Como já mencionado mais acima, o conteúdo do primeiro artigo publicado por Pessoa está ligado a uma análise sociológica da literatura e do seu tempo ou das suas circunstâncias sociais: [...] é evidente que aquilo a que se chama uma corrente literária deve de algum modo ser representativo do estado social da época e do país em que 4 Embora não seja possível prová-lo completamente, há muitos indícios de que Pessoa conhecia pelo menos a história literária de Inglaterra escrita por Taine.

189

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 190

Steffen Dix e José Barreto aparece. Porque uma corrente literária não é senão o tom especial que de comum têm os escritores em determinado período, e que representa, postas de parte as inevitáveis peculiaridades individuais, um conceito geral do mundo e da vida, e um modo de exprimir esse conceito, que, por ser tão comum a esses escritores, deve forçosamente ter raiz no que de comum eles têm, e isso é a época e o país em que vivem ou em que se integram [Pessoa 1990, 361-362].

Assim, a literatura é para Pessoa «um indicador sociológico», «um ponteiro para indicar a que horas da civilização estamos» (ou seja, uma espécie de «geschichtsphilosophische Sonnenuhr») que informa sobre o «estado de vitalidade e exuberância de vida em que se encontra uma nação ou época» (ibidem). Neste texto, Pessoa explica a relação estreita entre a literatura e o estado social de uma nação a partir da história literária na Inglaterra e em França, salientando nomeadamente três períodos. No caso de Inglaterra, Pessoa reconhece que o período isabelino representa uma espécie de renascença política e social que forneceu as melhores condições para um florescimento literário e artístico, representado sobretudo por Edmund Spenser, Shakespeare e Milton. Pessoa entende este florescimento como produto de uma vida política muito fértil que culminou nas aspirações republicanas de Oliver Cromwell, ou seja, na Commonwealth. O segundo período corresponde, grosso modo, ao século XVIII, que é para Pessoa artisticamente insignificante, devido a uma situação politicamente instável e socialmente volúvel. No que diz respeito à arte ou à literatura, o terceiro período, que começa por volta de 1780 e pode ser designado «o período moderno», também não é propriamente muito fértil, mas também não completamente infértil. Embora a Inglaterra tenha conseguido aumentar o seu território colonial e estabelecer a sua hegemonia geopolítica, Pessoa refere que o valor civilizacional do país nesta altura foi quase nulo. Desta situação política ou social resultam poetas que podem ser reconhecidos como grandes, mas não como supremos. Os exemplos enumerados por Pessoa são Coleridge, Shelley e Browning. De uma forma semelhante, Pessoa divide também a história literária da França em três períodos que não coincidem com os três períodos ingleses. O primeiro período corresponde politicamente ao Ancien Régime, o segundo período vai, grosso modo, até 1881 e está marcado pela «lenta consolidação republicana», e finalmente segue o terceiro período, no qual a França vive «o princípio de democracia republicana». No que diz respeito à literatura, apenas o segundo período se mostra fértil, representado sobretudo por Lamartine, Hugo ou Musset. Comparando estes períodos em França e em Inglaterra, Pessoa chega à conclusão de que os períodos de grande criação literária têm o seu equivalente 190

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 191

Um sociólogo oblíquo

nestes períodos políticos, marcados por uma certa inquietação política, ou seja, por épocas nas quais se iniciam ou aconteceram importantes mudanças ou criações políticas e sociais. Da mesma maneira como estas transformações políticas e sociais estão, em geral, marcadas por um forte carácter nacional, na literatura deste período tem de predominar necessariamente um forte «espírito nacional». Ou seja, as grandes correntes literárias surgem sobretudo nas «grandes épocas criadoras das grandes nações de quem a civilização é filha». Depois destas reflexões, Pessoa chega a uma conclusão algo lógica, e, neste sentido, pouco surpreendente. Com um remoque claro contra o republicanismo no estilo de Afonso Costa, Brito Camacho ou António José de Almeida, Pessoa constata neste texto de 1912 que Portugal se encontra num «período de pobre e deprimida vida social, de mesquinha política, de dificuldades e obstáculos de toda a espécie à mais quotidiana paz individual e social». Contudo, o novo movimento literário já esboça a visão de uma «renascença extraordinária», com «um ressurgimento assombroso» de Portugal. Isto é, também uma renascença da vida política que ia acontecer apenas «duas ou três gerações depois do auge da corrente literária». 5 Para Pessoa, em Portugal, o movimento poético seu contemporâneo coincidia com a literatura inglesa do primeiro período e com a literatura francesa do segundo período, ou seja, com o início de uma turbulenta e criadora vida política e social. Em consequência, não profetizava apenas o «supra-Camões», mas também o «supra-Portugal» (Pessoa 1990, 363-367). Embora seja hoje difícil concordar com algumas destas reflexões ou pactuar a posteriori com este entusiasmo juvenil e algo ingénuo, temos de reconhecer que Pessoa desenvolveu bastante cedo uma criatividade sociológica, tentando descrever o estado e o rumo de uma sociedade através das suas representações literárias. Ao complementar a sua sociologia literária, Pessoa desenvolveu também várias reflexões sobre o papel ou a função social do poeta, ou geralmente do artista. À maneira de um sapateiro ou de um político, o artista é submetido à divisão do trabalho social. Isto é, ele tem de praticar a sua arte da melhor forma possível, mas não deve importar-se «com o fim da arte, ou, antes, com o papel da arte dentro da vida social». A especulação sobre «o fim da arte na vida das sociedades» não é função do artista, mas sim do sociólogo (Pessoa 1990, 264). No entanto, esta opinião parece momentânea, considerando que Pessoa estava bastante 5 No espólio de Pessoa encontra-se um texto em francês no qual está explicada mais detalhadamente a relação entre a agitação social nos tempos de uma revolução e o aumento da produção artística. Assim, Pessoa entende especialmente as revistas A Águia e Orpheu como resultados típicos de uma época da qual surgem novas realidades sociais. (ver Pessoa 2009, 51-52).

191

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 192

Steffen Dix e José Barreto

consciente em relação ao fim da arte em geral e sobretudo da sua própria. No que diz respeito ao fim da arte, Pessoa encontrou a sua explicação no aumento da autoconsciência (Pessoa 2009, 153). As suas intervenções modernistas mostram que estas estavam em grande parte ligadas a tentativas de impulsionar um renascimento nacional. Pessoa nunca pronunciou explicitamente a ideia, mas muitas das suas publicações em vida testemunham que ele tentou influenciar a vida artística, social e política da sua geração. Um dos grandes estímulos artísticos de Pessoa consistiu sempre na tentativa de encontrar soluções para a reanimação de Portugal que nunca poderia acontecer, na opinião de Pessoa, a partir da Monarquia ou da República de Afonso Costa. Sumariamente, podemos verificar que Pessoa nunca desenvolveu um sistema completo da sociologia da literatura e algumas das suas esperanças não se verificaram posteriormente. Embora o início do século XX apareça hoje como um dos períodos mais fecundos em relação à produtividade artística, não surgiu em seguida, como Pessoa esperava, uma nova era da vida política e social de que a humanidade guarde boa recordação. Mas mesmo assim, Pessoa mostrou também na sua sociologia da literatura um pensamento bastante inovador.

Entre a primeira vaga de secularização e a pluralização do campo religioso Ao procurar uma explicação da função da religião numa sociedade moderna e ao observar algumas transformações sociais no campo religioso, Fernando Pessoa revelou durante a sua vida variadíssimas análises que podem ser incorporadas na sociologia da religião. Através da sua linguagem poética, Pessoa descreve já muito cedo formas de secularização europeia, anotando e testemunhando pessoalmente um declínio da força persuasiva da religião cristã e uma procura individual de formas religiosas alternativas. Assim, o seu semi-heterónimo Bernardo Soares entende a sua própria existência bastante influenciada pela racionalização da vida social que provoca um crescimento da insegurança no que diz respeito às convicções religiosas tradicionais: Pertenço a uma geração que herdou a descrença no facto cristão e que criou em si uma descrença em todas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda o impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas de ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados

192

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 193

Um sociólogo oblíquo só da beleza, outros tinham a fé na ciência e nos seus proveitos, e havia outros que, mais cristãos ainda, iam buscar a orientes e ocidentes outras formas religiosas, com que entretivessem a consciência, sem elas oca, de meramente viver [Pessoa 2010, 142].

Embora sempre procurasse na sua própria poesia e prosa espaços menos racionalizados, alguns textos de Pessoa revelam vestígios nítidos do conhecido desencantamento do mundo, e a religião tradicional torna-se nele de facto uma vítima do intelecto. E a busca de outras formas religiosas nos «orientes e ocidentes» é aliás um fenómeno que Pessoa já observou em Antero de Quental que, depois de ter perdido a sua fé católica, procurou alternativas religiosas e pseudo-religiosas, tais como um certo budismo helénico, ou na filosofia do inconsciente de Eduardo von Hartmann. Neste sentido, Pessoa não descreve apenas os primeiros sinais da secularização, mas também um facto que é discutido na actual sociologia da religião através dos conceitos de uma religião «bricolage» ou «à la carte» enquanto propensões para expressões religiosas ou espirituais da modernidade. Ou seja, trata-se de ocorrências contemporâneas que foram descritas por Pessoa já no início do século XX de uma forma literária. Não há dúvidas, Pessoa não ofereceu nenhuma análise sociológica do processo, mas a sua própria obra e as suas alusões a Antero podem ser entendidas como uma espécie de relatório da transição moderna da religiosidade tradicional para a espiritualidade individual. Este desenvolvimento da moderna cultura ocidental é descrito hoje em dia como o «subjective turn», e especialmente Eric Hobsbawm, Charles Taylor ou Ronald Inglehardt podem ser vistos como referências mais académicas e mais conhecidas em relação a este processo. Por outro lado, em Pessoa há inúmeros textos que podemos descrever claramente como uma espécie de sociologia funcional da religião, tendo em conta que a religião é entendida por ele, ou pelo menos pelo seu heterónimo António Mora, como o «phenomeno social mais representativo» que «define e exprime a civilização» (Pessoa 2002, 177-179). António Mora, o heterónimo mais teórico de Pessoa, apresenta várias definições funcionais da religião,6 declarando que a mesma está na origem de uma determinada prática social. Mora supõe que a religião inclui sempre uma 6 Contudo, em Pessoa encontram-se também algumas definições substanciais da religião. Embora não sejam muito úteis para uma fenomenologia académica, temos de reconhecer que são de uma beleza literária extraordinária. Assim lemos: «Pelo menos ela [a religião] é uma grande pândega metafísica, um divertimento transcendente, no teatro iluminado a estrelas do extraordinário universo» (ibidem, 251).

193

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 194

Steffen Dix e José Barreto

metafísica, uma estética e uma ética. Admitindo que as acções humanas têm uma dimensão religiosa, Mora aproxima-se claramente da famosa sociologia da religião de Max Weber, e dos seus precursores Karl Marx e Friedrich Nietzsche. A observação de Mora, a partir da qual o conteúdo metafísico de uma religião não pode ser separado do seu conteúdo social (ibidem, 305), tem alguma semelhança com a tese principal de Weber, tendo em conta que o sociólogo alemão sublinhou que a justificação ética de uma religião depende do seu fundamento metafísico. Ou seja, noções religiosas provocam formas específicas de uma ética que está na base de um desenvolvimento económico definido e de uma legitimação religiosa da riqueza. Contudo, Mora não se reduz simplesmente a uma análise da função social ou ética da religião. Usando quase os mesmos argumentos de Nietzsche, o seu objectivo principal consiste na demonstração de que o cristianismo (inclusive a sua metafísica, ética ou estética) prejudica gravemente a vitalidade de uma sociedade, ou a vida humana em geral. Nos textos de Mora, o cristianismo, apresentado como uma religião contraditória com virtudes antinaturais que reúne em si todos os elementos decadentes do Império Romano, incitou modernamente aos princípios da democracia, do imperialismo e do humanitarismo (ibidem, 286-290). E, parafraseando Karl Marx, Mora anota o seguinte: «Foi o Cristianismo que trouxe à civilização ocidental a necessidade de substituir o universo. Não seremos injustos se dissermos que o Cristianismo foi na civilização europeia a primeira forma conhecida do ópio ou da cocaína» (ibidem, 191). Partindo desta crítica, Mora procura um sistema religioso que corresponde com as suas ideias de uma sociedade moderna. Trata-se concretamente do paganismo cujo objectivismo está em concordância com a natureza: «[...] constatada que está pelo sociólogo a necessidade humana do fenómeno religioso para disciplina e orientação das sociedades, [...] consignemos, corolariamente, que mais disciplinará e orientará as sociedades aquela religião que mais próxima esteja da Natureza. [...] Ora é demonstrável, com facilidade, que a religião chamada pagã é a mais natural de todas». A argumentação seguinte é ao mesmo tempo ontológica, sociológica e política. Em primeiro, a pluralidade dos deuses corresponde à Natureza, tendo em conta que a experiência humana directa pode entender a mesma apenas como uma pluralidade. Em segundo, a pluralidade dos deuses corresponde à humanidade, tendo em conta que as acções divinas são, em princípio, idênticas às acções humanas. Ou seja, cada deus tem uma função definida que também está presente e é necessária na vida humana. E, finalmente, a religião pagã está estritamente ligada ao antigo sistema político da cidade-estado. Na visão de Mora, este 194

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 195

Um sociólogo oblíquo

sistema político pretende uma independência interior e está ao mesmo tempo aberto a influências exteriores. Isto significa, comparado com o do catolicismo, que uma cidade-estado não visa um universalismo. Ou seja, o sistema político da cidade-estado está em concordância com a pluralidade natural das coisas. Resumidamente, Mora declara: «O paganismo grego representa o mais alto nivel da evolução humana, [...] é a evolução para o equilíbrio que deve ser a evolução humana; esta e não outra» (ibidem, 179-181). De maneira semelhante como em alguns dos seus outros escritos sociológicos, os raciocínios de Pessoa sobre o papel social da religião não ultrapassam algumas reflexões gerais. Os textos raramente oferecem uma continuação sistemática de uma intuição inicial. Contudo, na maioria dos seus textos sobre o neopaganismo ou na sua tentativa de perceber a religião politeísta dos gregos antigos e as consequências de uma suposta modernização da mesma, o heterónimo António Mora toca indirectamente uma questão extremamente importante que está nos nossos dias no centro dos debates sociológicos. Como vimos, Pessoa observou já no início do século XX um declínio persistente do cristianismo tradicional. Trata-se de um processo que é conhecido através do conceito de secularização. Mas só nas últimas décadas se percebeu que este processo não provoca automaticamente um desaparecimento da religião, mas sim, pelo menos em alguns casos, uma pluralização do campo religioso. Na sua forma literária, Pessoa antecipou esta pluralização religiosa. E, de uma certa maneira, podíamos arriscar em dizer que o neopaganismo de Pessoa já se tornou modernamente realidade. Usando a metáfora do panteão, o homem moderno pode mover-se durante a sua vida de um deus para o outro, ou de uma religião para a outra sem ter necessariamente compromissos. Neste sentido, algumas ideias do heterónimo António Mora representam uma condição espiritual bastante moderna: «Hoje, o homem europeu, conhecedor de cinco ou seis sistemas religiosos, pode descer do Cristianismo para crer em qualquer dos outros sistemas; ou, não crendo em nenhum, tem todavia uma visão mais larga da importância da religião entre a humanidade [...]» (ibidem, 190). A partir destas afirmações, podíamos também concluir que Alberto Caeiro teve totalmente razão quando entendeu Cristo como um «deus que faltava». Ou seja, o deus cristão entrou com o início do século XX num panteão aberto, e é modernamente um deus entre uma multidão de deuses.

195

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 196

Steffen Dix e José Barreto

Os factos políticos enquanto indicadores sociológicos Como se disse acima, Fernando Pessoa não foi propriamente um sociólogo ou cientista social no sentido que estes termos têm hoje ou tinham já contemporaneamente, numa época em que a sociologia começava a afirmar-se como ciência e disciplina académica. Foi, sim, um pensador da sociedade e da política, um «raciocinador» (como ele dizia) de vasta cultura autodidacta e espírito crítico, muito cioso da sua independência. A educação britânica que recebeu na infância e adolescência, em contacto com a realidade sul-africana, alargou-lhe os horizontes mentais e, ao mesmo tempo, despertou-lhe um forte sentimento patriótico que constituiu permanente motivação para compreender o seu país e contribuir para o reformar. «Como reformar Portugal», título de um ensaio «sociológico» que publicou em 1919, poderia ter servido adequadamente como lema da sua actividade de publicista. Pessoa escreveu milhares de páginas sobre temas políticos e sociológicos, por vezes meras notas rabiscadas à pressa em pedaços de papel que cuidadosamente conservou. Dessa multidão de escritos só uma ínfima minoria viu a luz do dia em vida do autor. Foram, porém, numerosos os ensaios sobre esses temas que Pessoa projectou ou esboçou para depois, na grande maioria dos casos, os abandonar em embrião. O seu modo de vida, o trabalho diário para firmas comerciais de Lisboa, as constantes preocupações materiais e, sobretudo, a clara primazia dada à «arte», ao labor literário, não lhe deixaram muito tempo para desenvolver as suas reflexões e análises sob a forma de artigos ou ensaios publicáveis – para os quais, de resto, escassos leitores potenciais haveria e, provavelmente, ainda menos receptividade editorial, dada a singularidade e mesmo o carácter rebarbativo de muitas das suas ideias, teses e posições. Anticonvencional e, em geral, antitradicionalista, Pessoa quis assumir em Portugal, como se disse, a função de «indisciplinador», papel que reclamava para a aristocracia intelectual em que se incluía. A luta contra as ideias feitas e os «preconceitos» de toda a ordem, por vezes opostos entre si (o «preconceito da ordem» e o «preconceito revolucionário»), foi um traço fundamental da obra ensaística de Pessoa em diversos domínios do saber. A consideração dos factos políticos, religiosos e culturais como «indicadores sociológicos» foi instrumento privilegiado desse seu labor contestatário: acima das aparências e ilusões causadas pelas lutas partidárias e paixões sectárias, a sociologia, saber ao alcance apenas de uma reduzida elite, permitia compreender os fundamentos da realidade social e desmen196

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 197

Um sociólogo oblíquo

tir as visões parcelares ou deturpadas que dela tinham os diferentes actores sociais e políticos. A falta de conhecimentos sociológicos dos governantes (portugueses ou estrangeiros) foi muitas vezes invocada por Pessoa como a razão de medidas políticas erradas, como se pode ler num texto intitulado Old Age Pensions – A Sociological Study, em que também afirma: «There are excellent economists in power in several countries; astute and clever politicians – pure politicians, however – govern the world in many places. But there are, that one knows of, at present, no political sociologists in governmental seats; in no actual government is there at this moment any man capable of grasping soundly and clearly the sociological significance of political facts» (BNP/E3, 55C-84 a 85; inédito). O olhar crítico e independente com que Pessoa pretendeu abordar os fenómenos sociais e políticos, o raciocínio lógico e minucioso, as comparações históricas e internacionais, os modelos teóricos baseados em dicotomias conceptuais ou em tipologias e taxonomias por ele elaboradas eram os principais ingredientes do seu método «raciocinador», geralmente empenhado na demonstração de uma tese doutrinária de intuito reformador. A guerra e a paz, a grandeza e a decadência das nações, as formas de «patologia social», a tirania, o radicalismo político, as revoluções, o feminismo, a função política dos mitos e da religião, a religiosidade popular, a relação entre o indivíduo e o Estado, a disciplina, o individualismo, o igualitarismo, a opinião pública, o sufrágio político, as elites, a «crença democrática», o «misticismo» socialista ou bolchevista, o provincianismo, etc., foram alguns dos temas que mais interessaram a Pessoa na sua faceta de sociólogo da política. A preocupação de cientificidade estava já patente nos títulos dos dois primeiros ensaios que o jovem Pessoa publicou: «A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada» e «A nova poesia portuguesa no seu aspecto psicológico», ambos na revista A Águia (1912). Sociologia e psicologia eram então, para ele, disciplinas parcialmente coincidentes, pois considerava que a sociedade é uma «espécie psíquica» (BNP/E3, 55-1; inédito). Mas a faceta de «sociólogo» e «psicólogo» revelou-se ainda mais cedo, praticamente na adolescência. Segundo mais tarde escreveu, foi aos 17 anos que começou a ajustar contas com as suas ideias anarquistas, cuja falsidade lhe teria sido revelada pela sociologia. Será também com argumentação sociológica que Pessoa aderirá, por volta dos 18-20 anos, ao republicanismo radical, contemporâneo dos seus projectos O Phosphoro e O Iconoclasta. A obra ensaística mais extensa, em qualquer área temática, que Fernando Pessoa produziu em toda a sua vida – embora tenha ficado in197

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 198

Steffen Dix e José Barreto

completa e seja, ainda hoje, praticamente desconhecida – foi escrita por volta dos 20 anos de idade e destinava-se a um público de língua inglesa. O tema do projectado «livro», por ele descrito tanto como estudo sociológico como psicológico,7 era a vida política portuguesa nos anos finais da Monarquia, com relevo para a ditadura de João Franco, iniciada em 1907 e terminada, em 1908, com o duplo assassinato do rei D. Carlos e do príncipe herdeiro Luís Filipe. Intitulada History of a Dictatorship, a obra constava originalmente de três partes, das quais apenas a primeira ficou bastante adiantada, sob o título «Extent and Causes of Portuguese Decay». 8 O conceito-chave da obra era o de «decadência nacional», que o autor considerava, na peugada de Antero de Quental, Sampaio Bruno e outros, uma tendência multissecular da história de Portugal. Pessoa descrevia esse declínio da nação portuguesa como uma decadência simultaneamente «institucional» e «social», ou seja, um processo radicado não apenas em causas institucionais ou políticas, mas também nas próprias estruturas «económicas, industriais e morais» da sociedade. A noção de «decadência nacional» era, segundo Pessoa, a aplicação de um conceito da biologia às sociedades e às nações – «essas outras espécies de organismos» (BNP/E3, 92N-4; inédito). A revolução republicana de 5 de Outubro de 1910 interrompeu a elaboração do projectado livro, desviando o interesse imediato de Pessoa para sucessivos projectos, em parte ainda relacionados com aquele. São disso exemplo os textos que produziu após a revolução republicana sob as epígrafes Considerações Post-Revolucionárias e Da Ditadura à República, de que só uma minoria é conhecida. Nesses escritos passam a estar no foco da sua atenção as causas e as consequências da revolução que presenciou e cujo advento, aliás, previra. Sob a epígrafe Considerações post-revolucionárias, escreveu então: «O mero facto de se poder fazer uma revolução, uma sublevação vitoriosa, é de extraordinário alcance para o sociólogo» (BNP/E3, 92C-84; inédito). A evolução do posicionamento político de Pessoa, em direcção a um republicanismo conservador, afastá-lo-ia do estudo da decadência nacional enquanto referida ao período da Monarquia para projectar aquele fenómeno, sem quebra essencial de continuidade, no período da República, a qual, «anarquizando» uma nação já decadente, teria feito entrar a socie7 Num manuscrito em inglês datado de 5 de Setembro de 1908, em que fala do «livro» que estava a escrever, Pessoa afirma que o seu objectivo era fazer a «síntese da psicologia e da história psicológica da nação portuguesa» (BNP/E3, 138A-6r-v; inédito). 8 BNP/E3, 92N-1 a 120, 920-1 a 100 e parte das cotas 92P, 92R e 92S, totalizando 89 páginas dactilografadas e perto de duas centenas de páginas manuscritas (conjunto inédito).

198

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 199

Um sociólogo oblíquo

dade portuguesa num período de alegada «degenerescência». Este último conceito, importado da biologia evolucionista, da antropologia criminal e da psiquiatria do século XIX (Darwin, Haeckel, Morel, Lombroso, Maudsley, Charcot) por teóricos da degenerescência social como Nordau e outros, tornou-se numa das categorias nucleares da análise «sociológica» em que o jovem Pessoa fundamentou as suas teses sobre a sociedade e a política portuguesas. Por exemplo, na sua refutação do republicanismo radical, do socialismo, do anarquismo e do feminismo, Pessoa caracterizava esses movimentos sociais e políticos como manifestações de degenerescência social e rotulava os seus dirigentes e militantes como degenerados. Como se constatou já a propósito da definição pessoana do conceito de decadência nacional, o biologismo ou organicismo das teorias sociológicas do século XIX, nomeadamente as do já referido Herbert Spencer, teve notória influência sobre o pensamento sociológico do jovem Pessoa, cujos escritos viriam a revelar também uma adesão a teses típicas do chamado socialdarwinismo, incluindo certas ideias anti-humanitaristas extremistas, como a de que «um dos caminhos para o aperfeiçoamento da humanidade é a eliminação dos débeis, dos inaptos e dos inadaptados aos fins superiores da humanidade» (BNP/E3, 55-41), embora o não dissesse em defesa do eugenismo, que sempre condenou, mas como justificação para não se proibir as drogas, o álcool ou o jogo. Mais tarde, Pessoa distanciar-se-ia de algumas dessas teses, bem como das que davam uma «importância exagerada» à hereditariedade, citando o exemplo do conceito de raça, que, tal «como o empregaram e entenderam os antropólogos e os sociólogos da época pré-científica da sociologia», não passaria de uma «ficção biológica» e de um «mito» (BNP/E3, 55I-95, inédito).9 A «sociologia política» de Pessoa, evoluindo, de par com as suas sucessivas posições políticas, através de muitas hesitações e contradições, revela, contudo, um sentido constante de apologia do individualismo e do elitismo (ou «princípio aristocrático») e, por outro lado, de refutação das concepções humanitaristas, desde o cristianismo ao socialismo. O individualismo seria para ele a «substância de toda a civilização», como defende num curioso fragmento inédito em que rebate a opinião dos «sociólogos observadores, como Durkheim», que teriam concluído que o individualismo era a substância apenas da civilização moderna (BNP/E3, 55I-10; inédito). Largamente subsidiárias dessas constantes do 9 Trata-se de uma citação por Pessoa da obra de alguém identificado pelo apelido Wandschneider, suposto autor, em 1924, de uma História da Sociologia que não nos foi possível localizar em nenhuma biblioteca ou bibliografia nacional ou estrangeira, pelo que poderá ser ficcionada.

199

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 200

Steffen Dix e José Barreto

seu pensamento, as ideias antidemocráticas de Pessoa radicavam na convicção «sociológica» da inaptidão das massas, «forçosamente ignorantes e incultas», para decidir ou governar, pois elas seriam conduzidas por instintos e sentimentos, nunca por ideias. O governo da maioria não passaria de uma ilusão, de um embuste perpetrado por minorias políticas sedentas de poder. Assim, a «democracia moderna» seria sempre uma oligarquia, alimentada pela «crença democrática» que a minoria oligárquica incutia no povo, facilmente sugestionável. Mas, paradoxalmente, a crítica pessoana da democracia também se serviu de argumentos opostos aos da teoria da democracia como oligarquia: com efeito, Pessoa sustentava, em escritos sobre o tema da tirania, que esta era sempre exercida pela maioria sobre uma minoria – donde a sua caracterização da tirania como «uma democracia» e a sua insólita definição de democracia como uma «sistematização da tirania».10 Ao insistir sempre no termo «democracia moderna», Pessoa ressalvava a democracia do paganismo, da Grécia Antiga, porque baseada no individualismo e no aristocratismo, para ele os únicos verdadeiros geradores de civilização. «A verdadeira falência da democracia só começa quando, perto da nossa era, ela se começa a tornar cada vez menos individualista» – escreveu Pessoa num dos seus textos sob a epígrafe Contra a Democracia, escritos no final da Grande Guerra ou pouco depois (BNP/E3, 112-4; inédito). A coesão classista em torno de interesses parcelares ou egoístas, como no caso da sindicalização dos trabalhadores, seria uma forma «mórbida» de individualismo, causando o declínio do verdadeiro individualismo e, portanto, da verdadeira democracia, a antiga (ibidem). A «luta de classes» era, naturalmente, para Pessoa um conceito inexacto ou equívoco de uma teoria sociológica falsa – ainda que reconhecesse o papel determinante da luta e da conflitualidade na sociedade, mas opondo principalmente outros actores ou entidades, que não as classes sociais. «Aqueles socialistas que dão a civilização como essencialmente uma luta de classes, esbarraram com a Verdade de noite; era ela, mas eles não lhe viram as feições. Luta de classes, quasi; luta de grupos, sim – luta da eterna Minoria contra a Maioria eterna, luta do Masculino contra o Feminino, do Isolado contra o Gregário, do Rei contra o Povo» (BNP/ E3, 112-10; inédito).11 10 «Toda a tirania é uma democracia; não pode haver opressão do maior número, porque o maior número não deixa. Só temporariamente pode existir uma opressão da maioria. Só uma minoria pode ser tiranizada. Só uma maioria pode tiranizar. [...] A democracia é a sistematização da tirania» (BNP/112-11; inédito). 11 A frase «do Rei contra o Povo» tem sinal de redacção provisória.

200

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 201

Um sociólogo oblíquo

Na fase de máxima instabilidade política da Primeira República, por volta de 1919-1920, as teses sociológicas de Pessoa sobre a democracia tornam-se subitamente mais extremistas. Num conhecido artigo publicado em 1919, tentará provar, através de uma «análise escrupulosa do que seja a opinião pública», que a «democracia moderna» era radicalmente antipatriótica, antinacional, antipopular e anti-social, precisamente porque oposta à «opinião pública». Contra os democratas, os pacifistas e os humanitaristas, Pessoa afirmava no mesmo artigo, sempre fundado na sua «análise sociológica»: «Só a paz é infecunda, só a concórdia é improfícua, só o humanitarismo é anti-humanitário. E assim morre, ante a análise sociológica, o último dos falsos princípios da Democracia moderna» (Pessoa 1919). Em 1925, pela boca de Álvaro de Campos (numa entrevista intitulada «A situação da Inglaterra – A situação da Europa – A situação de Portugal»), dizia ainda Pessoa: «A maioria é essencialmente espectadora. [...] O eleitor não escolhe o que quer; escolhe entre isto e aquilo que lhe dão, o que é diferente. Tudo é oligárquico na vida das sociedades. A democracia é o mais estúpido de todos os mitos, porque nem sequer tem carácter místico» (Pessoa 1966, 415-424). Contudo, nada disto impediria o mesmo Pessoa, poucos anos depois, e por reacção contra os totalitarismos, de escrever: «Quem hoje prega a sindicação, o estado corporativo, a tirania social, seja fascismo ou comunismo, está dissolvendo a civilização europeia; quem defende a democracia e o liberalismo a está defendendo» (ibidem, 78).11 Assim passava a democracia de antiga força dissolvente da sociedade e da civilização, a baluarte de defesa e conservação das mesmas. Paradoxal? Pessoa pensava que não: «Quer isto dizer que não há doutrinas dissolventes senão por sua situação ocasional? Quer dizer isso mesmo. A mais ‘radical’ das doutrinas, desde que seja universalmente aceite, é uma doutrina conservadora; a mais ‘conservadora’, se nessa altura se opuser àquela, será radical» (ibidem, 77-78). Com todos os seus defeitos, a democracia passara aparentemente a força conservadora. Embora recorresse sistematicamente a postulados teóricos «sociológicos» – como «o facto fundamental do egoísmo humano» ou «o princípio do domínio de classe, essência da disciplina e da ordem sociais» – para alicerçar a sua apologia do individualismo e do antiestatismo e para fundamentar a sua refutação do humanitarismo cristão, do igualitarismo, do «misticismo bolchevista» e, até, dos sistemas nascentes de segurança e protecção social, 12 a verdade é que Pessoa proclamava, simultaneamente, que 12

Trata-se de um texto da década de 20 ou de 30, em qualquer caso posterior a 1922. Veja-se o aqui já citado Old Age Pensions – A Sociological Study (BNP/E3, 55C-84 a 85, inédito) e ainda Os Direitos do Trabalho (BNP/E3, 55-25 a 26; inédito). 13

201

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 202

Steffen Dix e José Barreto

não existia (ainda) uma ciência social, uma sociologia científica. Muitas vezes o sustentou, como no seguinte trecho: «Não há ciência social, não sabemos como nascem, como se conservam ou não conservam, como crescem ou decrescem, como se estiolam ou morrem as sociedades. A existência da humanidade, se por ela se entende qualquer coisa mais que a espécie animal chamada homem, é tão hipotética e racionalmente indemonstrável como a existência de Deus. [...] Que princípio social se pode erigir em fundamental? Todos e nenhum, conforme a habilidade do argumentador» (ibidem). Nestas condições, para Pessoa, um sociólogo era simplesmente, à sua própria imagem, um «raciocinador» livre, um «analisador sem preconceitos» dos factos e instituições sociais, com mais ou menos «habilidade de argumentador», ou seja, alguém muito próximo de um artista (ibidem, 75 e 78). Característico da sociologia política pessoana era ainda o visionarismo que lhe andava muitas vezes associado, aspecto flagrante das suas análises da figura de Sidónio Pais e do sidonismo, dos seus escritos sebastianistas, de ensaios como O Interregno. Defesa e Justificação da Ditadura Militar (1928) ou até de panfletos como o «Ultimatum» de Álvaro de Campos (1917) e obras poéticas como Mensagem (1934). Ajudará talvez a entender a peculiar noção que Pessoa possuía da sociologia o facto de, num texto animado também do habitual intuito provocatório, considerar o sapateiro Bandarra como «o único sociólogo português» (ver Barreto 2009, 224), enquanto num outro escrito se refere ao mesmo Bandarra como «o primeiro português que teve a visão profética dos destinos do país» (ibidem). Assim, sociólogo e profeta visionário podiam, para Pessoa, coexistir na mesma personalidade e na mesma mente, e ele próprio se esforçou por combinar em si essas duas facetas que, parecendo antagónicas, para ele não o eram. De facto, se não havia uma autêntica ciência social, então o sociólogo não passava, como o profeta, de um criador de mitos e de ficções úteis para fins políticos – como é o caso evidente, em Pessoa, do mito do sebastianismo e do Quinto Império.

A intersecção entre arte e sociologia Independentemente do seu conhecimento sobre alguns dos primeiros autores sociológicos, tais como Comte ou Spencer, e dos inúmeros conteúdos sociológicos dos seus textos teóricos, seria absolutamente abusivo concluir que Pessoa foi, mesmo segundo os padrões académicos coevos, um sociólogo. Neste ponto não há dúvidas. Os seus textos que abordam 202

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 203

Um sociólogo oblíquo

fenómenos sociais são caracterizados por observações lúcidas e por reflexões cuja actualidade ainda hoje em dia surpreende. Por outro lado, estes textos não satisfazem, por várias razões, as exigências científicas de uma sociologia moderna. Sob uma perspectiva académica, não há nestes textos uma metodologia clara, a análise empírica é muitas vezes perturbada pelo tom polémico, e os textos, por sua natureza fragmentários, acabam por vezes exactamente no ponto onde podia nascer a imagem clara de uma realidade social. Além disso, numa perspectiva moderna, a aversão de Pessoa à democracia (mesmo com as ambiguidades e contradições que as suas análises sobre o tema manifestam) pode chocar ou, pelo menos, desincentivar a leitura dos seus escritos sociológicos, que inclusivamente alguns estudiosos, a começar por Alfredo Margarido, consideraram, aliás infundadamente, anunciadores da ideologia autoritária triunfante com o Estado Novo. No entanto, isto não significa que estes textos não tenham nenhum valor intelectual. Pelo contrário, além do interesse histórico e literário que têm, constituem ainda um modelo no respeitante ao valor atribuído por Pessoa à independência (de que ele foi exemplo vivo) e à isenção. Em termos históricos, estes textos representam testemunhos atraentes sobre os acontecimentos políticos e ao ambiente sociopsicológico em Portugal nas primeiras décadas do século XX. Olhando para a totalidade destes escritos, Pessoa proporciona uma impressão nítida da atmosfera de uma época marcada por enormes conturbações políticas e por uma aceleração do processo de industrialização. Estes acontecimentos deixaram marcas na vida social e intelectual da sociedade portuguesa que se reflectem perfeitamente na obra pessoana. Assim, as reflexões de Pessoa sobre a situação política no seu tempo, e sobre a função da religião e da arte numa sociedade, continuam a ser intelectualmente estimulantes e permitem, paralelamente, uma visão detalhada e atenta sobre a história social e política do final da Monarquia, da Primeira República e do início do Estado Novo. Por outro lado, muitos dos seus textos teóricos sobre fenómenos sociais caracterizam-se por uma singularidade literária ou, indirectamente, filosófica. Em termos de teoria do conhecimento, Pessoa entendeu a realidade como o conjunto de dois fenómenos: o objecto real e a nossa sensação do objecto. Ou seja, no que diz respeito à objectividade da consciência, a mesma é sempre influenciada por uma componente individual. Para Pessoa, o conhecimento da realidade social ou do mundo exterior depende também de um determinado momento da percepção. Isto é, o espírito individual e a consciência do exterior fundem-se ou interpenetram-se em Pessoa. Por outras palavras, uma objectividade absoluta é impossível, considerando 203

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 204

Steffen Dix e José Barreto

que há sempre uma intersecção simultânea de diferentes níveis da mesma realidade. A existência exterior das coisas desdobra-se em Pessoa com a percepção interior do indivíduo, e o social está assim intercalado com o subjectivo: «A realidade da vida é a dupla consciência – a da alma e a das coisas ao mesmo tempo» (Pessoa 2009, 122-123). Se quiséssemos adoptar este entendimento para o trabalho científico, seríamos rapidamente confrontados com uma dificuldade hermenêutica, tendo em conta que assim precisávamos para a verificação de um conhecimento sociológico também de informações detalhadas sobre o estado de espírito e o temperamento do autor desse conhecimento no momento em que o mesmo foi produzido. Esta exigência é um grande desafio para os historiadores e os cientistas sociais, mas sabendo-o, não correremos o risco de entender estudos sociológicos como reproduções exactas da realidade social. No entendimento pessoano, esta realidade também podia ser um sonho. Esclarecendo, enfim, o título deste ensaio, diríamos que as considerações pessoanas sobre a função da religião e da arte e as suas reflexões políticosociológicas podem ser vistas como produtos interseccionistas de um artista-sociólogo que, assim, poderíamos chamar oblíquo – o poeta-sociólogo que, pouco antes da sua morte, no citado projecto irrealizado da revista literária e sociológica Norma, desejava que ela se pautasse pela regra da «harmonização de elementos contrários».

Bibliografia Barreto, José. 2009. «Pessoa e Fátima. A propósito dos escritos pessoanos sobre catolicismo e política». In Fernando Pessoa: O Guardador de Papéis, org. Jerónimo Pizarro. Lisboa: Texto. Boutroux, Émile. 1911. Science et religion dans la philosophie contemporaine. Paris: Ernest Flammarion. Bridges, John Henry. 1915. Illustrations of Positivism. Londres: Watts & Co. Bury, John Bagnell. 1920. The Idea of Progress. Londres: Macmillan. Cabral, Manuel Villaverde. 2008. «A investigação como vocação e como profissão». In Itinerários: A Investigação nos 25 Anos do ICS, orgs. Manuel Villaverde Cabral et al. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais. Cantecor, Georges. 1904?. Le positivisme. Paris: Paul Delaplane. Corra, Émile. 1904. La philosophie positive. Paris: Édouard Pelletan. Hudson, William Henry. 1904. An Introduction to the Philosophy of Herbert Spencer. Londres: Watts & Co. Méline, Pierre. 1909. Le travail sociologique. Paris: Librairie Bloud. Pessoa, Fernando. 1919. «A opinião pública». Acção, n.os 2 e 3 (19 de Maio e 4 de Agosto). Pessoa, Fernando. 1966. Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, orgs. Jacinto Prado Coelho e Georg Rudolf Lind. Lisboa: Ática.

204

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 205

Um sociólogo oblíquo Pessoa, Fernando. 1980. Ultimatum e Páginas de Sociologia Política, org. Joel Serrão. Lisboa: Ática. Pessoa, Fernando. 1990. Obra em Prosa, org. Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. Pessoa, Fernando. 2002, Obras de António Mora, org. Luís Filipe B. Teixeira. Lisboa: INCM. Pessoa, Fernando. 2006. Escritos sobre Génio e Loucura, org. Jerónimo Pizarro. Lisboa: INCM. Pessoa, Fernando. 2009. Sensacionismo e Outros Ismos, org. Jerónimo Pizarro. Lisboa: INCM. Pessoa, Fernando. 2010. Livro do Desasossego, t. I, org. Jerónimo Pizarro. Lisboa: INCM. Pessoa, Fernando. 2011. Crónicas de Vida que Passa, org. Pedro Sepúlveda. Lisboa: Ática. Spencer, Herbert. 1914. The Man versus the State. Londres: Watts & Co. Spencer, Herbert. 1910. Social Statics Abridged and Revised. Londres: Watts & Co. Spencer, Herbert. 1907. Seven Essays Selected from the Works of Herbert Spencer. Londres: Watts & Co. Weber, Max. 2002 [1919]. «Die Wissenschaft als Beruf». In Schriften 1894-1922, org. Dirk Kaesler. Estugarda: Kröner.

205

09 MVCabral Cap. 9_Layout 1 6/24/13 8:55 AM Page 206

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 207

Fernando Medeiros

Capítulo 10

Genèse et projet des Cadernos de Circunstância Para Manuel Villaverde Cabral, em homenagem ao colega eminente e ao emérito investigador como marca de uma longa e inabalável amizade. «Sei, como todos nós sabemos, como pesa o tempo vencido sobre quem se aventura a recompô-lo». José Cardoso Pires, O Delfim.

Préambule Cadernos de Circunstância (« Cahiers de Circonstance », CdeC, par la suite), c’est ainsi qu’un petit groupe d’exilés et d’opposants au régime autoritaire portugais et à la guerre coloniale a décidé d’appeler la revue réalisée à Paris avec les « moyens du bord » et en relative confidentialité entre 1967 et 1970.1 L’activisme qui la sous-tendait s’inscrivait dans les mouvances d’une gauche plutôt radicalisée mais sans attaches partisanes. Son objectif fut dès l’origine celui d’ouvrir un espace d’intervention assumant sans complexe l’importance que revêtait alors à nos yeux la collecte et analyse de données sociales, économiques et socio-politiques changeantes dont ne pouvait plus se départir l’engagement dans les combats contre la dictature (1926-1974) et dans la résistance aux guerres coloniales (1961-1974).

1 Le tirage en ronéotype a varié grosso modo du simple au triple pour les sept numéros parus, le 7è à plus de 1000 exemplaires acheminés au Portugal par sous-marin partant de Saint Nazaire.

207

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 208

Fernando Medeiros

L’époque a voulu cependant que la participation active des membres du groupe à des épisodes marquants des « événements de mai 1968 », en France, infléchisse les perspectives du projet initial en nous éloignant un peu plus des tropismes de l’opposition politique portugaise toujours très marqués, à l’époque, par l’emprise idéologique et organisationnelle du Parti Communiste Portugais (PCP). Les événements de 1968 nous mettaient aux prises avec les révoltes et contestations de l’ordre capitaliste « usinier » et pré-consumériste du système fordiste parvenu alors à son apogée dans les pays les plus industrialisés. Les luttes et mobilisations sociales qui s’y développaient avaient beau se manifester sous des formes inattendues et vouloir emprunter un nouveau vocabulaire des motifs elles restaient néanmoins pour nous, d’après notre grille de lecture marxiste, le prolongement des questionnements soulevés par les soubresauts de la « question ouvrière », plus spécifiquement ceux véhiculés par la re-prolétarisation du monde du travail ouvrier dérivant du recours massif à la main d’œuvre immigrée et de la féminisation croissante du salariat ouvrier. En première analyse, les transformations auxquelles nous assistions ne faisait qu’actualiser, sous des formes plus ou moins renouvelées, la vieille «question sociale». Cependant, si à l’Ouest la problématique resurgissait, en 1967-1968 sous la poussée du mouvement des jeunes générations, en Europe de l‘Est, aux pays du « socialisme réellement existant », elle allait connaître des rebondissements provoqués par des ressorts d’une toute autre nature, ceux de la contestation d’un ordre socialiste bureaucratique et «nomenclaturisé » qui était loin d’avoir été purgé des marques de fabrique trop vite mises sous le compte du seul stalinisme comme le montrerait une fois de plus, en août 1968, l’écrasement du « printemps de Prague » par les chars soviétiques. Et cela changeait beaucoup de choses. Au final, il serait incompréhensible que tous ces événements ne nous aient pas conduits à une distanciation critique à l’égard de l’imaginaire socialiste qui imprégnait alors peu ou prou l’opposition à la « dictature fasciste ». Si les CdeC ont laissé une petite marque dans l’histoire de la lutte contre l’ordre militaro-clérical et le nationalisme d’empire tenu par la répression « pidesque » 2 c’est parce qu’ils exprimaient et se faisaient portevoix d’un engagement qui comptait moins sur l’idéologie que sur la connaissance des problèmes et des aspirations des nouvelles générations. En premier venait, résolument et plus que jamais, l’engagement contre 2 De l’acronyme PIDE, la police politique de la dictature qui sévissait au Portugal depuis plus de trois décennies.

208

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 209

Genèse et projet des Cadernos de Circunstância

la guerre coloniale et l’avilissement auquel nous condamnait collectivement cette forme « fascisante » d’enfermement répressif. Mais c’était aussi un engagement plus diffus et plus large à la fois, qui intégrait d’autres approches des problématiques du changement social et était réceptif aux nouveaux accents libertaires des mouvements sociaux et contestataires alors émergents, ceux en particulier prenant pour cible l’autoritarisme sous toutes ses formes ainsi que les entreprises d’embrigadement menées à coups de promesses de « lendemains qui chantent ». Ce qui nous conduisait à nous positionner contre les conceptions ultra-dirigistes des orientations et modes de fonctionnement des partis communistes quand nous avons commencé à nous interroger sur le pourquoi de l’atonie et des divisions des oppositions au régime. L’expérience de l’exil permettait d’apercevoir l’enchevêtrement infernal des effets voulus et non voulus des stratégies politiques et des calculs politiciens qui, dans le jeu des forces en présence alors subordonné à la géopolitique des guerres coloniales, favorisait la place hégémonique que le parti communiste occupait pratiquement sur tous les terrains de l’opposition au régime, en métropole comme dans les colonies. C’était comme si la polarisation organisationnelle et partisane du camp de l’opposition correspondait, par temps de guerres coloniales, à la configuration secrètement souhaitée par les « durs » et les zélateurs du régime, de manière à ce que le pouvoir en place puisse jouer à fond, et sur tous les tableaux, la carte de l’anti-communisme et/ou de l’accusation de pro-soviétisme comme rempart ultime pour son maintien. Le fait est que le régime se servait autant qu’il pouvait de cette polarisation pour maintenir le statu quo et raffermir ses positions en utilisant pour cela les bénéfices de la rente récoltée de la guerre froide, y compris ceux qui se traduisaient, au sein de l’armée, par la mainmise des « faucons » sur les hauts commandements et le déroulement des opérations des guerres coloniales. Et plus cette configuration de la « situation » 3 se consolidait, plus l’opposition se retrouvait prisonnière d’un rapport de forces qui hypothéquait durablement sa recomposition interne et, du même coup, l’unité d‘action indispensable pour agir avec efficacité contre le régime. Du reste, la survie du régime autoritaire après l’épisode de l’ « ouverture » et les élections bidon de 1969 après la disparition de A. O. Salazar viendrait confirmer le diagnostic que nous avancions et ame3 De situação, terme du désignatif « a situação política » (la situation politique), un euphémisme pour désigner le régime – de dictature, s’entend – de manière relativement neutre et partant tolérée par la censure.

209

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 210

Fernando Medeiros

ner d’autres groupes, en exil ou de l’intérieur, à interroger plus volontiers les raisons pour lesquelles le régime se tirait d’affaire aussi facilement dans une passe où le navire tanguait déjà sérieusement. C’est pour toutes ces raisons – et aussi en pensant aux prolongements que cette situation complexe aura plus tard dans la trajectoire de la « révolution des œillets » de 1974 – qu’il m’a semblé utile de remémorer cet épisode de l’histoire des luttes contre la dictature de l’ «Estado Novo » au Portugal. Au-delà des ruptures idéologiques et des divergences politiques par lesquelles le groupe des Cadernos de Circunstância se démarquait du PCP en passant par la case « Marxiste-Leniniste » ou pas, selon les cas, il n’est pas sans intérêt de rappeler le contexte et les conditions dans lesquelles se déroula la formation de ce collectif pour comprendre ses prises de position et ses luttes, en particulier celles qui ont fait l’objet des attaques directes du Secrétaire Général du PCP dans un libelle de 1970 resté célèbre.4 On pourra ainsi mieux évaluer l’importance que revêtait alors pour le parti communiste le fait de combattre au plus près et sans ménagement toute contestation de la ligne politique à laquelle il avait réussi à agréger le plus clair des forces d’opposition au régime. Les CdeC affichaient ouvertement l’attitude d’insoumission à l’égard de ce pouvoir «contre-hégémonique», comme le dirait Boaventura S. Santos, raison pour laquelle ils constitueront une cible de choix pour les critiques aussi acerbes que tactiquement sur-jouées du charismatique dirigeant du PCP.5

4

Álvaro Cunhal, 1970, O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista (« La radicalité petite-bourgeoise de façade socialiste ») , comme l’écho lointain du célèbre « La maladie infantile du communisme « d’un certain V.I.« Lénine ». Zita Seabra racconte dans ses mémoires Foi Assim (2007, 164-165) l’incompréhension, sinon la « froideur » avec laquelle ceux de l’intérieur ont accueillit le « petit livre » du « Camarade », intégralement dédié, contre leur gré, à s’escrimer contre les gauchistes de Paris et leurs groupes et partis radicalisés passant sous silence les groupes radicalisés de l’intérieur qui donnaient du fil à retordre aux « fonctionnaires » du PC dans la clandestinité, dont Z. Seabra alors en charge du secteur de l’éducation. Je remercie António Garcia, de Radio F. Int., pour cette indication. 5 Notre objectif n’est pas de procéder ici à une présentation de l’ensemble des activités développées par le groupe des CdeC ni à une analyse de ce qu’a représentée historiquement l’expression de son activité militante. Ce travail commence tout juste à livrer les premiers résultats, comme l’atteste le livre de José Pacheco Pereira publié cette année de 2013. Notre tâche à nous, les «anciens», est celle de proportionner des retours réflexifs, les témoignages et les informations qui aideront les recherches à venir. Ce travail en honneur de Manuel V. Cabral est aussi une occasion pour contribuer à l’enrichissement de ce fonds lequel comporte déjà quelques pièces : le chap. 4 de l’autobiographie de João Freire (2007), les témoignages que Manuel a enregistré en 2010 pour l’Université Getúlio Vargas, Br, et son interview réalisée par José Neves en 2011, et, plus récent, le témoignage de Jorge Valadas, publié en fév. 2013 dans le blog http.vosstanie.blogspot.fr., auquel il a

210

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 211

Genèse et projet des Cadernos de Circunstância

Aussi, en cette année de commémoration du centenaire de Álvaro Cunhal comment trouver meilleure manière de m’y associer que de revenir sur l’épisode de ces années charnière qui ont conduit à la création des CdeC? Et pour ce faire, comment ne pas saisir cette occasion unique que représente, très spécialement pour moi, ce livre en l’honneur de Manuel Villaverde Cabral, l’ami de cinquante ans et le « circunstancialista » tout terrain depuis le début de cette aventure qui nous a tant marqués ? Le très cher et illustre collègue que nous honorons ici ne m’en tiendra pas rigueur, sur la foi des conceptions du travail historiographique que nous partageons depuis la leçon qu’ensemble nous reçûmes de Pierre Vilar, le directeur d’orientation de nos Thèses de doctorat. Enfin, c’est aussi en raison de la convocation de toute cette partie de notre mémoire, qui reste très vivace et bien accrochée à des lieux précis, que la langue française s’est imposée à moi pour cet hommage. Un clin d’œil complice à Manuel qui nous époustouflait par la maîtrise, très vite acquise du maniement du Français, notre première langue de travail, celle à laquelle nous sommes tous les deux redevables pour nos entrées dans les mondes de la recherche scientifique et universitaire.

Les CdeC: une histoire d’exil politique dans les Sixties C’est dans le courant de l’hiver 1965-1966 que commença à pointer l’idée, dans le milieux des exilés portugais de la région parisienne, d’une publication, type revue, consacrée à la présentation de matériaux d’enquêtes et d’informations sur les déroulements et les contextes des luttes et des actions de résistance contre la dictature de Salazar et les guerres coloniales. La proposition de départ venait d’Emílio Aquiles de Oliveira qui m’en a parlé pour la première fois quand nous faisions tous les deux partie d’une liste candidate à la direction de l’Union des Étudiants Portugais en France (UEPF), présentée contre celle établie par la direction sortante. Cette association avait été crée en 1963 sous les auspices de l’UNEF par un petit noyau d’étudiants portugais résidant en région parisienne et liés au PCP pour la plupart d’entre eux. 6 C’est à partir de cette joint un bref témoignage que je lui ai transmis. Enfin un récit de la formation du groupe des CdeC dédié à la mémoire d’Alfredo Margarido (1928-2010) « posté » cette année dans les blogs de Jacinto Rodrigues et celui d’Adelino Torres. 6 L’UNEF était bien connue des étudiants portugais qui s’en inspirèrent pour leurs propres luttes. D’ailleurs le livre de son Sécrétaire général, Pierre Gaudez : Les étudiants,

211

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 212

Fernando Medeiros

confrontation et des enjeux qu’elle comportait que l’on a vu monter l’effervescence dans le microcosme des exilés portugais en France et en Belgique, un événement qui allait favoriser une plus ample prise de conscience de la génération du grand exil des années soixante vis-à-vis de la situation historique dans laquelle elle se trouvait embarquée. La cassure politique avec le PCP survenue à cette occasion s’est déclarée sur fond d’une montée du malaise ressenti par un nombre grandissant d’opposants à la dictature, jeunes et moins jeunes et de sensibilités idéologiques diverses, face à une situation qui nous apparaissait sans issue et politiquement figée. Le climat morose et passablement défaitiste qui plombait alors toute l’opposition faisait aussi son œuvre en marquant son agenda au sceau de la seule « urgence » possible après les coups de massue assenés en 1963 par la grande répression des mouvements des étudiants, à savoir, l’«urgence» de se refaire et de se maintenir coûte que coûte, pour durer et endurer. C‘était le temps où les jeunes gens, de plus en plus nombreux à se positionner contre la «situation», et parmi lesquels se trouvaient désormais les militants les plus déterminés à en découdre, ressentaient un profond malaise face à cette véritable injonction paradoxale qui, dans leur ressenti de la situation, devenait chaque jour un peu plus une sorte d’urgence à attendre dans laquelle s’installait le gros des forces d’opposition au régime. Confrontée à ses faiblesses structurelles, tant sociologiques que politiques, l’opposition se trouvait dans une situation qui la contraignait à miser sur le «pourrissement» et une «fin de règne» ingérable auxquels s’exposait de toute façon la plus vieille dictature européenne. Une sorte de fatalisme attendant seulement qu’un tel processus accomplisse son œuvre pour débarrasser le pays du régime oppresseur et des guerres coloniales. L’anticonformisme des plus jeunes embarqués dans cette nouvelle vague d’exil politique, elle-même portée par la marée montante de la levée en

Paris, 1960, a eu une rapide traduction portugaise (1962 ?), probablement à l’initiative de la RIA, l’organe de la coordination du mouvement de grèves étudiantes au Portugal de la dictature pendant les années 1961-1962 et 1962-1963. Dans un texte présenté plus loin Aquiles de Oliveira, qui a participé à la coordination – RIA – du mouvement, et à laquelle j’ai été également mêlé en 1962-1963, relie les enjeux de la lutte pour la conquête de l’UEPF à des divergences qui avaient surgit au cours de cet important mouvement de grèves politiques des étudiants portugais. D’autres divergences se sont manifestées à nouveau lors de la mobilisation estudiantine de Coimbra, le « deuil académique » de 1969 et aussi celle des étudiants de Lourenço Marques, Mozambique, un peu plus tard, critiquées pour leur tiédeur « réformiste » par ceux du PC... et aussi par quelques uns situés dans l’orbite des CdeC, il faut dire. Je remercie Eduardo Medeiros, Mozambique (19581964). Tempo e Espaço de Vivências da Juventude, Coimbra 2011 (inédit).

212

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 213

Genèse et projet des Cadernos de Circunstância

masse de l’insoumission à l’armée qui se manifestait alors, contrastait de plus en plus avec la faiblesse de perspectives pour l’action collective. Il ne nous restait alors que la récusation quasi instinctive de cette attente sans but, telle celle de Godot, à laquelle nous vouait l’impuissance des oppositions peu ou prou sous influence du PCP. D’où les attaques, à la manière très reconnaissable du Lénine au mieux de sa forme « léniniste », qu’Álvaro Cunhal développera par la suite contre cette « impatience » petite-bourgeoise qu’il dénonçait chez tous ceux et celles qui, comme nous, ne se conformaient pas d’un tel attentisme ou, plus précisément, de ce qui nous apparaissait comme tel. Car à cette époque ni nous ni personne vraisemblablement dans l’opposition déclarée, ni même les militants du PCP, ne pouvaient imaginer à quel point le maintien des positions dans le camp des oppositions serait opportun et d’aussi bon allant à moyen terme pour la ligne générale suivie sans relâche par le PCP et ses puissants appuis. En fin de compte « O Camarada » (i.e. A. Cunhal, pour les membres du Parti) faisait bien ce qu’il fallait pour que le PCP continue à «contrôler toute l’opposition » pendant toutes ces années, contrairement à ce que croyaient ceux du PC de l’intérieur qui avaient vu d’un mauvais œil la publication par Cunhal, la seule «pendant toutes ces années là, de ce petit livre, convaincu qu’il était de [pouvoir maintenir le PC en situation de] contrôler toute l’opposition», selon Zita Seabra, op.cit., 64, ellemême au nombre de ces dirigeants critiques de l’intérieur qui ont été complètement déboussolés par l’énorme « confusion idéologique qu’avait générée ce livre » (ibid). Voila donc fixés ces quelques aspects marquants du contexte dans lequel a émergé le projet des Cadernos de Circunstância. Etant donné que la genèse de ce groupe se situe à un moment crucial de l’histoire des oppositions au régime et de la lutte contre les guerres coloniales je propose de rappeler les conditions socio-politiques qui ont proportionné les ressorts de l’engagement qui fut à l’origine de sa formation.

Entre ruptures idéologiques, changements d’horizons et effets de génération En ce qui concerne l’épisode de la tentative de conquête de la direction de l’UEPF, il s’agissait d’une liste de candidature voulue par le «Frente de Acção Popular» (FAP), liste conduite par Aquiles de Oliveira à laquelle participait Jacinto Rodrigues membre dirigeant du FAP. Cette fine équipe, à laquelle je participais aussi avec Marcos Gonçalves et José 213

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 214

Fernando Medeiros

Mário Branco, œuvrait à l’élargissement des bases et des alliances de cette organisation issue de la scission « marxiste-léniniste » au sein du PCP. 7 Le binôme fait du FAP et du «Parti communiste marxiste-léniniste» (PCML) s’érigeait ainsi en adversaire idéologique et en ligne stratégique alternative de combat à la dictature et aux guerres coloniales face au « frontisme » anti-fasciste lancé et très largement dominé du point de vue organisationnel et idéologique par le PCP. Cette nouvelle mouvance, d’orientation « pro-chinoise » affichée, visait, par la conquête de l’UEPF, à attirer à elle les déserteurs et les insoumis (les « refractários ») à commencer par les les plus politisés parmi eux, ceux qui refusaient la consigne d’intégrer l’armée. Rappelons que ce mot d’ordre du PCP visait à développer son organisation au sein des Forces Armées en vue d’y travailler à la préparation du « soulèvement national » (Cunhal, op. cit., 138), point d’orgue de la stratégie « frontiste » de la « révolution démocratique et nationale » à laquelle le parti voulait rallier toutes les oppositions au régime. Dans cette perspective, la dispute pour la direction de l’UEPF revêtait une importance certaine pour les nouveaux FAP-PCML, car ceux-ci y trouvaient une occasion en or pour contester avec fracas la ligne générale du PCP. Ce faisant, ils entendaient prendre le contrôle d’une pièce importantedu dispositif pour le recrutement et la formation de cadres du parti. En effet, l’UEPF avait aussi pour finalité pratique de servir de relais pour l’obtention et l’allocation de deux ou trois dizaines de bourses d’études mises à la disposition des étudiants portugais par les pays socialistes de l‘Europe de l’Est. En outre, la progression du FAP impliquait une urgente mobilisation de militants associatifs implantés en milieu ouvrier, raison pour laquelle ses dirigeants voulaient faire de l’UEPF, et des étudiants-travailleurs 8 qui la composaient, la cheville ouvrière du plan d’ « action de masses » tourné vers les dizaines de milliers d’immigrés qui affluaient alors de tous les recoins du Portugal en région parisienne. Ce plan d’action passait, entre autres, par l’élargissement des activités de l’ « Association des Travailleurs Originaires du Portugal » (ATOP) ce qui impliquait une conquête préalable de la direction de cette association fondée dans les années 50. Implantée dans une des « banlieues » industrielles de la 7 Cette scission était incarnée par deux figures emblématiques, Francisco Martins Rodrigues et le docteur João Pulido Valente, rejoints par Rui d’Espinay, M. Claro, Humberto Belo, etc... 8 La condition d’étudiants-travailleurs comportait souvent l’expérience du travail ouvrier non qualifié. Pour un témoignage de cette expérience, cf. João Freire, membre des CdeC à partir de 1968 : Pessoa Comum no Seu Tempo: Memória de um Médio-Burguês de Lisboa na Segunda Metade do Século XX, Porto, 2007.

214

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 215

Genèse et projet des Cadernos de Circunstância

région parisienne l’ATOP constituait le principal relais de l’organisation du PCP en France. En tant que telle, elle bénéficiait des appuis du PCF à travers les structures municipales des « banlieues rouges », et des sections locales ou d’entreprise de la CGT, la principale centrale syndicale française. Là encore le clivage politique et idéologique entre le FAP et PCP apparaissait nettement. Pour les PC portugais et français cette association devait œuvrer prioritairement pour amener les ouvriers portugais à se syndicaliser, de préférence dans la CGT pour compenser la désaffiliation syndicale provoquée par le progressif remplacement de la main d’oeuvre peu qualifiée française par une sous-classe «ouvrière immigrée». 9 En revanche, pour les militants du FAP la priorité était moins celle-là que de forger un activisme politique beaucoup plus offensif et clairement affiché contre le régime politique portugais et ses intérêts en France et, plus largement, dans toute l’Europe. Bravant les interdictions des autorités, l’activisme mis en avant devait englober les communautés de travailleurs portugais et, là encore, s’adresser prioritairement aux plus jeunes en situation d’insoumission, bref, ceux qui étaient les plus concernés par la situation au Portugal marquée par des guerres qui se propageaient à tous les territoires colonisés et dont beaucoup savaient qu’elles étaient là pour durer vu la nature et les intérêts vitaux du régime. Concernant ceci il n’est pas nécessaire de rappeler que ces intérêts étaient loin de manquer d’appuis et d’adhésions «populaires». Et pourtant, on a pu estimer à environ 50.000 le nombre de jeunes gens qui émigrèrent pendant la période 1962-1974, clandestinement – « a salto » – ou pas, fuyant l’inspection militaire ou l’appel sous le drapeau en se plaçant ainsi en situation d’insoumission, par défaut dans un cas ou déclarée dans l’autre. La France était, et de loin, la principale destination de cette débandade en masse. Une fuite en masse aussi silencieuse qu’humiliante, mue principalement par le réflexe du sauve qui peut pour échapper aux service obligatoire étant donné l’absence d’une ébauche de mouvement de désobéissance civile 9 Et qui plus est, en situation de très grande fragilité en raison de l’importance du phénomène de l’irrégularité dans la condition historique de l’immigration portugaise en Europe. Il faut se rappeler cette condition sociale indigne qui, en se concentrant dans les « bidonvilles » ou dans les « foyers » de travailleurs SONACROTRA d’assez triste mémoire, se rapprochait scandaleusement de celles d’un semi-servage et face à laquelle la réaction viscérale de rejet dans le monde ouvrier français fut celle d’une agressivité pas toujours contenue à l’égard d’une communauté que l’on ne tarderait pas à stigmatiser au moyen du sobriquet de « portos ». Les choses ont beaucoup évolué depuis lors même si les bourgeoises du XVIè arrondissement de Paris et consorts continuent de se réjouir des bons et loyaux services que leur apportent toutes ces gentilles et courageuses concierges et ces braves-portugais- travailleurs-courageux-et-toujours-si-serviables... Du bidonville et des campagnes lointaines à « la cage dorée », en somme, comme semble le suggérer le titre et le scénario de ce film français que vient tout juste de sortir (mars, 2013).

215

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 216

Fernando Medeiros

pouvant contribuer, peu ou prou, à sa conversion en un acte de prise de conscience collective et en actions de résistance contre un régime dictatorial aculé à des guerres coloniales pour sa propre survie. L’invisibilité qui la caractérisait la transforma inexorablement en un tombeau sans épitaphe pour l’ébauche de renaissance de l’esprit civique au Portugal apparue avec les mouvements étudiants de 1961-1963, à telle enseigne que cette déroute civique reste encore de nos jours, au Portugal, un pan refoulé de l’espace public et le grand absent dans le travail mémoriel sur l’émigration et les guerres coloniales. Cette immense vague d’insoumission honteuse, paresseusement ou mensongèrement remise sur le compte de l’émigration « économique », donne la mesure de l’ampleur de l’entreprise d’anéantissement à laquelle la « Ditatura do Estado Novo » avait voué les bases et les fondements de la société civile, pierre angulaire pour l’édification d’une société démocratique à venir. Le film français O Salto de Christian de Chalonge, sorti en 1967, a été le premier film – et le seul, jusqu’à présent? – à nous faire sentir, malgré les ambigüités, cette dimension tragique de l’immigration portugaise en France. On y entrevoit la tragédie collective tapie dans l’ombre portée de quelques trajectoires familiales, et ce en parfaite résonnance avec l’empreinte laissée par le magnifique Verdes Anos de Paulo Rocha (1963) qui, au-delà des Pyrénées et à travers des tragédies individuelles, « donn(ait) à voir Lisbonne et le Portugal comme espaces de frustration, espaces claustrophobes, sans issues, où tout tourne à la frustration et tout agonise dans une mort suave (branda) ».10 Il convient de rappeler, sans aucun pathos car leur – notre – sort restait enviable par rapport à celui des recrues, qu’à cette époque la condition sociale de beaucoup de ces jeunes travailleurs était marquée par des conditions de vie pénibles. Les plus chanceux d’entre eux n’ayant comme alternative à l’insalubrité des bidonvilles qui s‘étaient formés aux portes de Paris (Champigny, le plus connu de tous), que l’encasernement dans des dortoirs préfabriqués de la SONACOTRA.11 Ces « foyers » étaient un peu la version actualisée par les politiques d’immigration des anciennes « maisons d’hommes » des débuts de la révolution industrielle en Angleterre et en France au virage du 19è siècle, mais offrant quand même des conditions d’hébergement bien meilleures que celles imposées aux travailleurs « mi10 João Bénard da Costa, Histórias do Cinema. Lisboa: Europália 1991, Imprensa Nacional, consulté sur internet et ajouté ici le 4-6-2013: http://www.amordeperdicao.pt/basedados_filmes.asp?filmeid=104. 11 Entreprise très prospère détentrice à l’époque du monopole de la mobilisation des fonds sociaux issus des cotisations patronales pour la construction et la gestion des « foyers » de travailleurs migrants en France.

216

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 217

Genèse et projet des Cadernos de Circunstância

grants » dans les grandes mégapoles chinoises depuis la « révolution » de Deng Tsiao Ping, en 1978. Or il s’est trouvé, sous le coup d’un pur hasard historique, que l’une des actions remarquées de l’aile la plus radicale du mouvement des étudiants français consista, précisément, dans les dénonciations avec grand fracas des conditions d’hébergement dans ces établissements en préfabriqué rudimentaire et du montant exorbitants des loyers extorqués. C’était là un type d’action de base qui par certains aspects peut être considéré comme assez représentatif de ceux développés peu de mois après dont les fameux « comités d’action travailleurs- étudiants », les « CATE »,12 l’un des leviers du nouvel « esprit révolutionnaire » qui faisait irruption dans le mouvement de « mai 1968 ». Du point de vue des acteurs, ces nouvelles formes d’action cherchaient à contourner les pesanteurs, les freins et/ou les tentatives de « récupération » des organisations et des appareils politico-syndicaux, de manière à préserver le plus possible l’autonomie (l’auto-organisation) d’un mouvement double, social et culturel, dont l’irruption et la dynamique, créditées d’une spontanéité et d’une autonomie très valorisées par les activistes de 68, étaient largement étrangères sinon carrément hostiles aux méthodes organisationnelles et aux modes de fonctionnement des dits appareils. Lesquels « appareils », bien sûr, rendaient la pareille à ces « gauchistes » « provocateurs » et « groupuscules » « irresponsables » Il faut dire que l’entrée en relation d’univers aussi disparates que ceux des milieux étudiants et ceux des mondes du travail – surtout d’usine - constitue un marqueur majeur de « mai 68 » et, comme tout événement authentique, il comporte une dimension idéologique forte. Dans le cas présent, la contestation idéologique n’était pas que sociale et politique, au sens de la lutte pour la conquête de droits sociaux et/ou du pouvoir. Elle prenait pour cible quelque chose d’autre, à savoir, l’emprise grandissante des tecno-structures en tous genres qui, au nom de l’organisation rationnelle des systèmes productifs de l’économie, le «taylor- fordisme » et de la « grande distribution » dans la société de « consommation » de masse, tendaient à « coloniser » le « monde de la vie » comme disaient les auteurs inspirateurs des mouvements étudiants des années 60. Le pont jeté entre ces deux champs d’action, le social et le culturel, était essentiellement l’œuvre de la forme d’organisation non centralisée

12

Cf. Jacques Baygnac, Mai retrouvé, Paris 1978, sur ces « comités d’action » et leur rôle dans le mouvement social déclenché par l’irruption du mouvement étudiant de « mai 68 ».

217

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 218

Fernando Medeiros

des « comités d’action » que le mouvement avait adoptée très rapidement, comme dans le cas de celle expérimentée par les CATE. À la différence que ces derniers ont fourni une des rares plateformes du mouvement qui entendait assumer les fonctions de coordination de l’action collective après l’avoir circonscrite aux modalités, aux objectifs et aux moyens d’action définis dans un cadre d’action centré sur la coopération « travailleursétudiants ». Cette prise en compte des problèmes de la coordination de l’action (entre les multiples « comités » de base, comme ceux de « quartier », usine, « chantier », bureaux, administration, École/Lycée/ Université, hôpital, etc.), qui surgissaient à tout instant était au cœur des séances plénières de l’Assemblé Générale permanente des délégués des CA. À Paris, cette « AG », transformée en Forum, se tenait dans les locaux de la « Faculté de Censier » transformée pour l’occasion en une immense ruche d’activistes dès l’amorce des premières grèves d’ouvriers, tout de suite après la « nuit des barricades » du 6 mai, 13 qui devait déclencher le plus imposant mouvement gréviste que la France ait connu depuis le Front Populaire (1936). Pour les participants aux CATE la coordination de l’action dont dépendait à leurs yeux la dynamique du mouvement social passait par une organisation qui devait prouver constamment qu’elle pouvait fonctionner sans avoir à accorder des prérogatives de pouvoirs à des instances investies de foncions de coordination du mouvement social. Cette expérience d’un mode de fonctionnement du collectif clairement d’inspiration « syndicaliste-révolutionnaire, « impliquait un perpétuel va et vient entre l’action spécifique, développée à la base, et l’action de rassemblement qui, à travers ces premières ébauches de Forums, était portée par l’aspiration collective à des changements sociaux pérennes. On le voit, le vaste problème posé était bien celui qui relevait d’une utopie, celle de l’abolition ou du moins de la réduction radicale de la distance au pouvoir qui est au principe même de l’idée de démocratie ou de « communauté de citoyens » quand on la prend dans toutes ses dimensions. Cette expérience du mouvement 68 nous a appris, au moins, les difficultés tant empiriques que théoriques que soulève la coordination de l’ac-

13 Un souvenir personnel, celui d’avoir vu de chez moi, le 5è étage du n.° 13 de la rue Gay Lussac, les poursuites très musclées par les CRS (police de choc) des étudiants qui, après l’assaut donné par les forces de police aux barricades qui obstruaient cette artère du Quartien Latin, se réfugiaient dans les cours des immeubles et même chez les habitants, à l’étage, pour échapper aux mailles du filet. Le terme de « ratonnades », utilisé pendant la guerre d’Algérie, fut employé le lendemain par la presse pour qualifier la violence de l’action policière, ce qui ne contribuait pas qu’un peu à amplifier le mouvement de solidarité active avec les luttes des étudiants.

218

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 219

Genèse et projet des Cadernos de Circunstância

tion collective dans un mouvement social valorisant l’autonomie des acteurs. Et la difficulté consiste à tenir constamment ensemble les deux bouts de la chaîne des interdépendances que le mouvement va en élargissant par sa propre dynamique. L’un est rapporté à un niveau d’expérience dont l’observation et l’analyse serait plutôt d’ordre interactionnelle et microsociologique, tendanciellement côté « acteur », et l’autre, situé au plan de la saisie du sens ou orientation générale du mouvement, requérant d’être appréhendé, pour faire objet d’interprétations fouillées et compréhensives, par des analyses placées à un niveau plutôt d’ordre macrosociologique, s’approchant tendanciellement du côté « système ». Le fil que relie ces deux niveaux – ou les deux bouts de la chaîne – est l’élément clé de la dialectique du processus de l’action collective car c’est par son déroulé qui se dessinent les vastes réseaux d’interrelations et d’interdépendances qui se développent à partir de « brèches » historiques soudaines, du type de celle provoquée par l’ébranlement de « mai 68 ». De celles qu’appellent les coopérations nouvelles exigées par la résolution de problèmes eux aussi nouveaux, et qui sont toujours avant tout d’ordre pratique. Problèmes qui appellent souvent des réponses dans l’urgence, source inévitable de risques à pondérer et à couvrir ce qui soulève des problèmes encore plus redoutables en complexité à /pour l’action collective dès lors qu’entrent en jeux des variables temporelles et des échelles spatiales multiples, du local au glabal. C’est pourquoi cet aller-retour de l’un à l’autre des niveaux d’action considérés constitue le principe organisateur de l’action collective et c’est bien quelque chose de cet ordre là que les «comités d’action» expérimentaient dans la pratique pour régler les problèmes inédits que soulevait la conjonction entre luttes des étudiants et mobilisations revendicatives nouvelles de la part des « travailleurs ». Aux CdeC, la participation de la plupart d’entre nous à ces deux champs d’action nous a permis d’appréhender de manière concrète l’ébauche de ce processus d’auto-organisation d’un mouvement sociopolitique animé de ce nouvel « esprit révolutionnaire » , un événement dont les impacts pouvaient aller jusqu’à ébranler l’idée même de révolution, ce qui n’était pas rien dans un pays comme la France pour les raisons historiques que l’on sait. Car cette expérience permettait de voir qu’il s’agissait là d’une conjonction des plus complexes, très difficile à saisir dans sa dynamique propre tant les dimensions culturelles, sociales et politiques qui faisaient l’unicité du mouvement de « mai 68 » s’imbriquaient les unes dans les autres pour ne laisser qu’une marge infime à la formation/légitimation d’« avant-gardes ». En se déployant à travers la modalité des « comités d’action » aucune force politique n’avait la capacité à prétendre 219

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 220

Fernando Medeiros

préempter le sens et les objectifs que le mouvement produisait de luimême en progressant au rythme des délibérations des collectifs, des actions développées et des coordinations requises pour les solutions à apporter aux problèmes pratiques qui se posaient, concrètement. Les circonstances ont voulu que là où nous nous trouvions nous ne pouvions pas manquer d’être happés par un processus d’action collective dont les objectifs et les positionnements se révélaient pas à pas, au fur et à mesure que «les comités d’action» se répandaient et se diversifiaient. De telle sorte que le mouvement allait de l’avant tant qu’il récusait les grandes orientations de l’activisme politique alors finissant de l’ancien « esprit révolutionnaire », celui de la Révolution Française ravivé d’ici de-là par certains autres épisodes révolutionnaires grandioses – Octobre 1917, bien sûr, mais également le Mexique de 1910 qui le précéda (S. M. Eisenstein aurait-il voulu le montrer avec Que Viva Mexico ! , raison secrète de l’inachèvement de ce chef-d’œuvre ?) 14 et quelques autres. Mais ce que le « mouvement de mai 68 » manquerait de vaincre, en fin de compte, c’est la résilience de l’ancien « esprit révolutionnaire », ceci par les probabilités qu’il ouvre aux simulacres de «révolutions» en tous genres et en tous les domaines pour peu qu’ils soient à portée d’une bonne campagne de « marketing» et/ou d’un savant « benchmarking » manageriale.15 Ces luttes sociales-culturelles qu’en 68 se déployaient grandement dans des terrains jusqu’alors inconnus et/ou sciemment délaissés par les forces syndicales et politiques de la gauche instituée inauguraient en Europe, vers le milieu des années ’60, une forme de mobilisation sociale et politique complètement inédite, n’ayant bien évidement strictement rien à voir avec la « révo-cul » chinoise. Rien, en effet, si ce n’est que celle-ci, en tant que sanglant simulacre de révolution mis en branle en Chine par le maoïsme, engendrait par mimétisme des phénomènes apparemment 14 Cette hypothèse toute spéculative m’est apparue sous la forme d’une évidence, comme aimait tant les étudier notre regretté ami Fernando Gil. Et pour l’affermir j’ai eu recours à l’avis doublement expert de mon vieil ami Américo Nunes, celui du cinéphile formé à l’« école » du cinéclub de Beira (Mozambique) et l’auteur d’un ouvrage sur Les Révolutions du Mexique, 2009, 2è éd. Ab Irato, Paris. 15 C’est Jean Baudrillard, notre collègue à l’Université de Paris X – Nanterre, qui insistait sur cette emprise grandissante du simulacre dans la société du spectaculaire à outrance, quadrillée par les « jeux » d’acteurs et de rôles plus ou moins convenus et de plus en plus interchangeables. On n’est pas très éloigné ici des célèbres thèses de Guy Debord et des « Situationnistes » sur la « société du spectacle » qui ont insufflé poétiquement le mouvement culturel du « mai 68 », le double inséparable du mouvement social du même nom. Les CdeC, plutôt « mouv. social », se mettaient un peu en retrait par rapport à eux, ce qui ne fut pas sans quelques « frictions » avec les « situationnistes » portugais de Paris, des vieilles connaissances comme Chico Alves, entre autres.

220

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 221

Genèse et projet des Cadernos de Circunstância

semblables mais qui, du fait des contextes très différents dans lesquels ils se développaient, relevaient de processus très dissemblables en réalité et parfois même situés à l’extrême opposé l’un de l’autre.16 Or notre participation à cette expérience originale de mobilisation et d’action en milieu ouvrier du mouvement de mai 68 constitua une des expériences majeures pour faire évoluer les CdeC vers d’autres horizons, à la fois moins confinés dans le monde luso-portugais et surtout dégagés de l’idéologie et des pratiques staliniennes qui constituaient le fonds de départ de la formation à la politique de certains d’entre nous. Notons, pour conclure sur ce point, que toute cette aventure mériterait à elle seule de faire l‘objet d‘un développement détaillé car, à bien y regarder, ce n‘est pas pur hasard si les trajectoires des « gauchismes » français et portugais se situant dans la mouvance dite « prochinoise » émergent presque au même moment, en 1963-1964. D’un côté il y a l’aggravation du conflit sino-soviétique qui fournira le motif et le prétexte, mais de l’autre il y a aussi le fait que ces mouvements « prochinois» ne se sont développés avec autant de vigueur que dans les milieux de la gauche radicale des pays européens qui connaissaient ou venaient de traverser une période de guerres coloniales menées par des armées de conscription, comme ce fut le cas pour la France avec la guerre d‘Algérie (1954-1962) et le Portugal (1961-1974). Cette identité de situations – et d’épreuves – historiques produisait des effets semblables et le tournant clairement « tiers-mondiste » du radicalisme qui s’affirma à cette occasion et sous cette même modalité dans ces deux pays marquait de manière ostensible 16 Notre participation à ces actions organisées par le FAP fut une expérience très importante, bien que de courte durée – 1964/65. Personnellement j’y participais comme le « compagnon de route » que j’étais devenu de cette organisation en 1965 après un rapide passage par l’UNEMO (étudiants mozambicains) à Paris. Cette expérience vécue s’est concentrée le temps de ma participation à la « campagne » d’alphabétisation pour adultes organisée par Jacinto Rodrigues, réalisant des cours en catimini dans les locaux des foyers pour immigrés de la SONACOTRA. Il s’agissait d’un programme d’action militante inspiré de la démarche de Paulo Freire dans le Nordeste brésilien (P. Freire : « Conscientização e alfabetização – uma nova visão do processo », Revista de Cultura da Universidade do Recife, 4, 1963). Alberto Melo, travaillant déjà à l’OCDE, commençait lui aussi à se consacrer aux programmes de formation pour adultes. Mais ce n’est que trois ou quatre ans après que j’apprenais l’importance du courant de pensée du populisme russe (XIXè siècle). à travers des auteurs comme Vera Zazulich et Alexander Chayanov et grâce au travail pionnier de Franco Venturi (1966) [1952] : The Roots of Revolution. A History of Populist and Socialist Movements in Nineteenh Century Russia, New York). Manuel V. Cabral explique lui-même dans l’interview qu’il accorda à José Neves, (2011) l’importance qu’eurent pour lui ces auteurs. Le travail qu’il réalisa en 1983 à partir d’enquêtes en milieu rural, publié sous le titre « A economia subterrânea vem ao de cima ... » s’inspire explicitement de ces apports.

221

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 222

Fernando Medeiros

– avec une outrance maximale recherchée? – ce qui fut bien plus qu’une rupture idéologico-politique.17 Rétrospectivement, il n’est pas exagéré de dire qu’il s’agissait d’une dissidence des nouvelles générations avec les vieux appareils empêtrés dans les « contraintes » de la real politik imposée par le monde bipolaire de la confrontation Est-Ouest, celle-là même que les mobilisations contre la guerre du Viêt-Nam, après celles initiées en France contre la guerre d’Algérie, avaient développée renforçant ainsi nos propres mobilisations contre les guerres coloniales.18 Dans les deux cas, la ligne suivie par les PC était soumise aux mêmes logiques, celles qui faisaient passer pour pertes et profits les horreurs et les ravages des guerres coloniales vécues par les populations et imposées à des masses d’appelés du contingent.19 Du reste il est à noter que cette même expérience générationnelle nous a valu de bénéficier d’une solidarité de la part des Français et des Belges.

Le socialisme peut bien attendre... Oui, mais lequel au juste ? Pas étonnant alors que, face à de tels enjeux politiques et symboliques, la mobilisation pour la conquête de la direction de l’UEPF fut si intense, 17 Ces sources peu connues du « gauchisme » prochinois français qui a tant marqué le «mouvement de Mai 68 » ont été abordés par l’historien François Samuelson, 1979, Il était une fois Libé, Flammarion, Paris 18 La grande différence entre les cas français et portugais était, outre celle relative aux régimes politiques des deux pays, le fait qu’au Portugal nous n’en étions encore qu’à mi-parcours de tous ces combats d’arrière garde tandis qu’en France, après 1962, la génération de la guerre d’Algérie se confrontait aux séquelles d’un conflit très virulent qui a laissé des déchirures béantes dans la société. C’était une situation marquée par d’énormes tensions psychologiques, sociales et politiques dont l’accumulation silencieuse et la soudaine conjugaison expliquent, pour partie non négligeable, l’explosivité invraisemblable du « mai 68 » français. 19 On pointera, cependant, le fossé énorme qui sépare les processus de « digestion » de ces événements dramatiques dans les deux pays. On pourrait illustrer cela par le fait que ces événements ont constitué en France assez rapidement matière pour le cinéma. Le petit soldat, de Jean-Luc Godard, 1960, et qui resta interdit pendant plus de trois ans ; Muriel, d’Alain Resnais, de 1963 ; Avoir 20 ans dans les Aurès, de René Vautier, 1973. Au Portugal, combien de décennies a-t-il fallut attendre pour cela ? NB : on aura noté le recours fréquent à des références cinématographiques pour ponctuer et alléger cette contribution en l’honneur de M. V. Cabral. C’est un choix assumé en souvenir des débuts de notre amitié à Paris, peu après notre arrivée, et des échanges que nous proportionnèrent alors nos différentes expériences ciné-clubistes, lui à Lisbonne et moi, encore très jeune, à Beira, au Mozambique, en 1960-1961, où l’on visionnait tout ce qu’était interdit en Métropole le censeur de service simulant le sommeil profond pendant les projections pour faire semblant de ne s’être aperçu de rien d’anormal.

222

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 223

Genèse et projet des Cadernos de Circunstância

débordant largement du cadre local pour s’étendre pratiquement à toutes les communautés d’exilés portugais en Europe, pays de l’Est y compris, et toutes sensibilités politiques confondues. L’issue du vote, très incertaine jusqu’au dernier bulletin dépouillé, pencha de justesse du côté de la liste pro-PCP, 62 voix contre 60 pour la liste appuyée ouvertement par le FAP, mais cela seulement après que José Mário Branco, lui aussi un militant bien connu du FAP, ait remporté la présidence de l’« Assemblé Générale » lors du même processus de renouvellement des responsables de l’UEPF. Son élection avec une majorité significative (une dizaine de voix, si ma mémoire est bonne) 20 infligeait un camouflet sévère au PCP, et tout le monde convenait que ce revers était bien plus celui du parti à travers la défaite de Silas Cerqueira, son candidat battu.21 En effet, la reprise en main discrète des grandes manœuvres pour cette bagarre par le Secrétaire Général du PCP en personne, Álvaro Cunhal, contribuait plus que tout pour en faire une bataille mémorable, un « homérique » combat de « chefs » vu que dans le camp adverse son vis-à-vis, tout aussi discret, était le « scissionniste » Francisco Martins Rodrigues. En tout cas, même si Álvaro Cunhal n’y a guère laissé de plumes, l’issue très tangente de la grande bagarre de l’UEPF ne fut pas moins, pour lui et son camp, un succès mitigé, en fait bien trop près d’un revers humiliant pour un dirigeant communiste que l’on considérait comme un pilier solide du camp pro-soviétique du mouvement communiste international. Et comme cette bagarre constituait un épisode de plus des divisions fracassantes du dit mouvement il est clair que, dans de telles circonstances, cela ne pouvait pas passer inaperçu, car on voyait bien que chaque point de perdu ou de gagné comptait double pour chacun des camps rivaux.22 C’est donc dans un contexte de montée des incertitudes et dans un paysage politique lusitanien marqué par une relative érosion de cette hé20 Ce nombre de dix voix m’a été confirmé par Jacinto Rodrigues qui me précisait dans un mail que notre liste n’a pas gagné car deux de nos appuis ont dû quitter l’AG avant l’heure du vote pour ne pas rater le train qu’ils devaient prendre, tard dans la soirée, et il donne même les noms. 21 Ayant contacté E. Aquiles de Oliveira pour soliciter sa lecture de mon texte, il a rassemblé ses propres souvenirs dans une note brève qui est publiée ci-après en sa qualité d’hommage à Manuel V. Cabral, « Homenagem merecida porque ele foi a alma e o motor do projecto », écrivait-il dans le mail qu’il m’a envoyé. 22 C’est peut-être aussi un peu de ce goût amer laissé par ce succès mitigé qui aurait poussé Álvaro Cunhal à vouloir remettre les pendules à l’heure léniniste avec la publication du fameux libelle. En tout cas il est à noter que Zita Seabra passe entièrement sous silence dans le passage cité de ses mémoires cet épisode marquant, ce qui laisse à penser que les PC de l’intérieur étaient bien peu ébranlés par tous ces événements qui marquent le début de la fin de l’idéologie communiste qui les animait.

223

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 224

Fernando Medeiros

gémonie que le PCP exerçait dans pratiquement tous les domaines de l’action anti-salazariste que le projet des CdeC. a commencé à prendre forme.23 L’entrée en scène de nouveaux acteurs à un moment où le nombre des arrivées en exil de jeunes « réfractaires » explosait littéralement, marque le tournant du passage au premier plan des luttes contre les guerres coloniales, alors même que la démystification du « socialisme réellement existant » s’amplifiait de jour en jour un peu partout en Europe et plus singulièrement en France et en Belgique.24 D’ailleurs, bon nombre des boursiers placés en « pays socialistes » contribuaient à leur manière à cette démystification dans nos milieux d’exilés, notamment par les récits désabusés de leurs tribulations mi-cocasses mi-déprimantes en pays socialistes. Mais plus fondamentalement, le tournant politique induit par l’intensification des guerres coloniales et l’explosion de l’émigration clandestine portugaise vers la France, commençait à signaler la fin des illusions quant aux possibilités objectives de la formation au Portugal, en ce temps-là, d’un mouvement social susceptible de créer une nouvelle donne sociopolitique. C’est-à-dire, une ligne d’action dotée d’une programmatique capable de fertiliser le terrain pour la maturation d’un « soulèvement » démocratique et populaire dans et par lequel les dynamiques politiques et sociales appelleraient, tout en le subordonnant politiquement, le volant « national » ou patriotique (militaire, en fait) imposé par la nécessaire solution à trouver pour régler la question coloniale. En somme, une configuration qui est pratiquement l’inverse du processus auquel le « frontisme » du PCP avait l’intention manifeste de conduire dès lors que la stratégie poursuivie, reposant sur l’inversion de la hiérarchie des trois « moments » du processus mentionné, concentrait l’essentiel de la légitimité insurrectionnelle dans le « moment » (ou volant) « national-patriotique », c’est-à-dire, dans les mains tout simplement de ceux qui au moment décisif détiendraient les armes.

23 C’est aussi vers ces années là que le Frente de Libertação de Portugal installé à Alger se disloquait sous l’effet des onde de choc provoquées par l’assassinat par la PIDE du général Humberto Delgado et l’entrée en scène de l’action musclée de la LUAR. En revanche, c’est seulement en 1973 que le PS a été créé en exil. 24 Pour nous, qui évoluions dans l’univers francophone, notre élucidation en matière de stalinisme viendrait par les revues Socialisme ou Barbarie (Claude Lefort et Cornelius Castoriadis, en figures de proue), Arguments (Edgar Morin, K. Axelos, R. Paris, K. Papayanou...), Information et Correspondance Ouvrière – ICO (Claude Orsoni,...), Cahiers pour le Socialisme des Conseils , L’Internationale Situationniste.

224

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 225

Genèse et projet des Cadernos de Circunstância

En tout cas, avec les débuts de l’effondrement de ces illusions c’est toute la stratégie du PCP qui commençait à se dévoiler, en révélant du même coup comment le maintien à tout prix de l’ « antifascisme » comme unique et indiscutable bannière de ralliement dans l’engagement politique contre la dictature salazarienne et les guerres coloniales servait de tremplin au PC pour asseoir et maintenir son hégémonie politique et organisationnelle dans l’opposition au régime. Rétrospectivement, il faut bien admettre – mais à quoi servent les regrets ? – que le déroulement de la « révolution » du 25 avril suit d’assez près ce plan stratégique de prise du pouvoir, lequel reprend, presque caricaturalement, le scénario de l’après-guerre que connurent les pays de l’Est européen. La revanche posthume de l’ « ancien régime » aura été bel et bien celle d’avoir réussi à déjouer le développement de ce mouvement social de conquête des droits politiques et sociaux qui, l’histoire le montre, devait être au principe même du « soulèvement » populaire et, bien plus encore, placé en plein au cœur du processus de l’invention collective de la vie politique démocratique et d’un développement économique et social soutenable pour le Portugal de l’après dictature et postcolonial. Dans un tel « désert », la « révolution » ne pouvait être qu’un piteux simulacre révolutionnaire dont il ne reste, en fin de compte, pratiquement rien, sinon les yeux pour pleurer pour tous ceux, acteurs dupeurs – dupés qui, pris à leur propre jeu, ont été contraints de revenir pratiquement à la case départ.25 Pour revenir aux effets du changement de contexte évoqués plus haut, c’est au commencement du déferlement des lames de fond qui conduiront à ces grands bouleversements des années ’60 que l’on assiste à l’apparition d’initiatives comme celle des CdeC. 26 Ainsi, de l’idée initiale d’une revue se voulant, pour Aquiles Oliveira et moi-même, clairement engagée à gauche mais qui visait à adopter le modèle de revue du genre « faits et documents » et « informer avec objectivité » nous sommes passés, dans le mouvement de la dynamique politique, sociale et intellectuelle à quelque chose d’autre qui nous sortait du confinement pesant de la culture de l’ « antifascisme » en même temps que l’exil nous rendait un peu plus libres. Notre projet devenait moins centré sur le Portugal et davantage marqué par un engagement dans son ensemble plus gauchisant que celui pointé initialement mais d’un autre côté, beaucoup plus regardant en ce qui concerne les prétendues idéologies de l’émancipation 25 La meilleure preuve de cette régression est le redémarrage spectaculaire de l’émigration au Portugal, redevenue bientôt la planche de salut obligée pour plus de dix pour cent de la population active du pays, comme au milieu des années ’70. 26 José Pacheco Pereira revient sur toutes ces manifestations dans le livre qu’il vient de publier, As Armas de Papel, Ed. Círculo Leitores, Lisboa, Março de 2013.

225

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 226

Fernando Medeiros

mobilisées pour justifier d’autres situations de domination et de répression. Au plan des sensibilités idéologiques, justement, les premiers numéros des Cadernos recouvrent déjà un arc polychrome qui va de l’inspiration social-démocrate toute nord-européenne – ceci du côté de Aquiles Oliveira et, peut-être, de celui d’Alberto Melo – jusqu’aux sensibilités plus nettement « tiers-mondistes » comme celle du guévarisme vers lequel je penchais à l’époque ou encore celle d’Alfredo Margarido qui restait à une grande proximité – sans aucun abandon d’un sens critique qui pouvait être des plus caustiques et ravageurs – des mouvements de libération africains en lutte.27 Ces deux pôles se tenaient solidaires par un ciment dont les ingrédients principaux étaient l’anti-autoritarisme qui nous animait, la découverte de la richesse de l’histoire du mouvement social ouvrier redoublée d’un sens critique accru à l’égard des pratiques staliniennes dont nous sentions, bien plus de ce que nous savions le formuler alors, qu’elles érodaient l’espérance émancipatrice de l’utopie socialiste. C’était là un combat partagé par nous tous mais auquel Manuel Villaverde Cabral, mobilisé là-dessus dès la réunion fondatrice des CdeC se vouera plus à fond que tous les autres en assumant le pari risqué – oh combien, en ces temps là ! – de se coltiner la très problématique « question ouvrière » qui, nous le voyions fort bien et c’est justement ce qui nous unissait, hypothéquait toute notre perception de la question sociale, aussi bien portugaise qu’européenne (et même au-delà, pensaient certains d’entre nous).28

27

C’est du reste cette position, en cohérence avec la spécialité d’ «africaniste» qui était la sienne à l’EPHESS, qui l’a conduit à proposer le terme Viração pour le titre de la revue. Ce mot est celui du nom que les Brésiliens donnent à une brise côtière, alternant régulièrement entre « brise de mer » et « brise de terre ». Cette proposition était très savoureuse avec ce léger piquant surréaliste qu’Alfredo apportait toujours aux réunions des CdeC et il est vrai qu’il exprimait bien l’idée de « tournant » que nous voulions voir se produire dans la dynamique chancelante de l’opposition au régime. Mais il avait le petit inconvénient de pouvoir se prêter à des mésinterprétations, d’où l’option pour le titre plus neutre, et plus dans l’air du temps «existentialiste» de l’époque, celui de tendance davantage sartrienne et franz-fannonienne que camusienne en raison des divergences dans les positions prises – et refusées d’être prises – sur la guerre d’Algérie. La « question coloniale », toujours elle dans nos horizons d’alors ! 28 Les deux réunions fondatrices ont été réalisées chez Aquiles de Oliveira, à ArcueilLaplace, à côté de Paris, auxquelles ont participé Alfredo Margarido, Alberto Melo, Manuel V. Cabral, José Gil et moi. C’est lors de ces réunions que l’on décida la « ligne éditoriale », le premier cadrage thématique et les modalités de fonctionnement rédactionnel, lequel nous incitait à commenter plume à la main chaque article et/ou document proposé et signé par son rédacteur.

226

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 227

Genèse et projet des Cadernos de Circunstância

C’est à partir de ce socle que les Cadernos de Circunstância commencèrent à avoir des échos dans les milieux des jeunes plus politisés, se projetant au-delà des milieux étudiants vers les gens de l’Armée, les milieux syndicalistes ouvriers et autres, etc., tandis que de nouveaux venus aux CdeC mettaient la main à la pâte, et je pense à José Rodrigues dos Santos, Jorge Valadas, João Freire, José Maria Carvalho Ferreira e José Hipólito dos Santos. Chacun suivra par la suite sa propre route mais quel que soit le parcours je pense que ce que nous avons vécu au cours de ces quatre ou cinq années de CdeC a marqué profondément les cheminements de chacun de nous, y compris dans le cadre de nos activités professionnelles. Et sur ce plan, il suffit de voir le parcours de Manuel Villaverde Cabral dont maints thèmes et objets de recherche abordés et explorés au long de sa carrière de chercheur en sciences sociales prolongent, en les renouvelant, la priorité accordée dans son agenda aux problèmes sociaux et aux questions théorico-idéologiques auxquels il s’attaquait déjà dans les circonstances que je tenais à évoquer ici en son honneur, avec toute mon admiration et ma très grande estime. Saint Sauvant, mars-avril 2013

Mes remerciements à Valérie Facon-Medeiros et à Françoise Debiais-Neitzert pour leurs attentives lectures correctrices du français et Rose Marie pour son écoute patiente pendant mes doutes et avancées de l’élaboration du texte de cet hommage. Os meus agradecimentos à equipa técnica pelo trabalho de acompanhamento na laboriosa e importante tarefa das correções e das verificações do texto, com especial destaque para João Segurado que me ajudou a «puxar pela memoria» a partir das suas próprias recordações daqueles nossos tempos de Paris.

227

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 228

Fernando Medeiros

Emílio Aquiles de Oliveira

Homenagem acrescida Meu caro Fernando, [...] Pouco tenho a acrescentar sobre o teu escrito, salvo que talvez pudesse ser conveniente reforçar um pouco mais o papel do MVC nos conteúdos dos CdeC, uma vez que se trata de o homenagear. Talvez pudesses aproveitar para sublinhar o papel original do colectivo na preparação dos artigos (pelo menos dos primeiros números). Uma vez que decidiste – e com razão na minha maneira de ver – entrar em pormenores sobre a AG da UEPF, puxei pela memória longínqua e lembrei-me que ela se prolongou por 3 sessões e que na primeira estávamos claramente em maioria e por isso elegemos logo no início o José Mário Branco para presidir à mesa com os tais 10 votos de vantagem, mas não foi possível eleger o presidente da associação nessa AG porque o Marques dos Santos e o PCP conseguiram fazer adoptar uma moção a interrompê-la porque perceberam que estavam em minoria. A Assembleia foi retomada umas semanas mais tarde e a cena voltou a repetir-se, com o PCP a arrastar os pés porque o Marques dos Santos não conseguia ter mais votos do que eu. Já tarde, no terceiro prolongamento, o Marques dos Santos acabou por aceitar ir a votos numa altura em que vários colegas já se tinham ido embora e foi aí que ele conseguiu ganhar por 2 votos. Surpreendeu-me a atitude da então Acção Socialista (?) que alinhou com o PCP neste processo (refiro-me ao Fernando Loureiro, ao Dino Monteiro e outros cujo nome esqueci). Mais uma precisão: nessa altura eu fazia parte da FAP. Saí quando decidiram «invadir» Portugal, porque me pareceu uma loucura ao arrepio de tudo o que tinha lido sobre guerrilha, tanto do Che Guevara, como do Mao ou do Ho-Chi-Minh. Poderia não ser deslocado referir nos antecedentes dos CdeC a crise estudantil de 1962-1963 na qual participaram estudantes que estavam em Paris em 1967-1971, incluindo eu próprio, até porque já nela se podia vislumbrar a tentativa de hegemonização pelo PCP e o embrião da contestação pela esquerda, que depois veio a encorajar a cisão e a criação da FAP e do PCPML. [...] E se arranjares maneira acrescenta-me à homenagem ao nosso amigo Manuel Vilaverde Cabral, que lamentavelmente não vejo há anos. Um forte abraço do Aquiles 228

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 229

Genèse et projet des Cadernos de Circunstância

Bibliographie Baygnac, Jacques. 1978. Mai retrouvé. Paris: Robert Laffont. Bénard da Costa, João. 1991. Histórias do Cinema. Lisboa: Imprensa Nacional, Europália 1991. Cabral, Manuel Villaverde. 1983. «A economia subterrânea vem ao de cima: estratégias da população rural perante a industrialização e a urbanização». Análise Social, XIX (76): 199-234. Cabral, Manuel Villaverde. 2012. «Entrevista a Manuel Villaverde Cabral por José Neves». Análise Social, XLVI (200): 522-537. Cardoso Pires, José. 1988 [1968]. O Delfim. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 198. Samuelson, François. 1979. Il était une fois Libé. Paris: Flammarion. Cunhal, Álvaro. 1970. O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista. S. l.: Edições «Avante!». Freire, Paulo. 1963. «Conscientização e alfabetização – uma nova visão do processo». Revista de Cultura da Universidade do Recife, 4. Freire, João. 2007. Pessoa Comum no Seu Tempo: Memória de um Médio-Burguês de Lisboa na Segunda Metade do Século XX. Porto: Afrontamento. Gaudez, P. 1960. Les étudiants. Paris: Julliard. Medeiros, Eduardo. 2011. Mozambique (1958-1964). Tempo e Espaço de Vivências da Juventude. Coimbra (inédit). Melo, Alberto. 2012. Passagens Revoltas – 40 Anos de Intervenção. São Brás de Alportel: Assoc. InLoco. Nunes, Américo. 2009. Les révolutions du Mexique. Paris: Ab irato. Pereira, José Pacheco. 2013. As Armas de Papel. Lisboa: Círculo de Leitores. Seabra, Zita. 2007. Foi Assim. Lisboa: Alêtheia, 164-165. Venturi, Franco. 1966 [1952]. The Roots of Revolution. A History of Populist and Socialist Movements in Nineteenh Century Russia. New York: Alfred A. Knopf.

229

10 MVCabral Cap. 10_Layout 1 6/24/13 8:56 AM Page 230

11 MVCabral Cap. 11_Layout 1 6/24/13 9:21 AM Page 231

Antonio Negri

Capítulo 11

Una rottura italiana: produzione versus sviluppo In primo luogo, come cominciò a definirsi la «differenza» italiana nel quadro filosofico del dopoguerra europeo? 1 Cominciò quando, alla fine degli anni cinquanta, gruppi di intellettuali politicizzati (il fascismo si era tragicamente concluso solo da un decennio, la guerra fredda impazzava, la nuova democrazia cominciava a fare i conti con lo sviluppo economico capitalistico, le masse socialiste e comuniste premevano sul potere ma non riuscivano a farsi spazio) cominciarono a chiedersi qual fosse il grado di immanenza del lavoro allo sviluppo delle tecnologie capitaliste? Quali sono le trasformazioni che dall’interno della fabbrica moderna la forza-lavoro impone alle macchine? Il questionamento continuò poi a svolgersi a fronte dello sviluppo sociale impetuoso dei «30 gloriosi», e ci si chiese, passando dalla fabbrica alla società, quale fosse l’efficacia dell’attività umana nella strutturazione sociale. Da un lato: quale l’incidenza del comando capitalistico (e delle sue strumentazioni tecnologiche) sulla vita sociale? E vice versa: quali trasformazioni i movimenti sociali impongono alle strutture ed alle istituzioni del comando capitalista? A fronte di un potere capitalista, che si estendeva rapidamente nel controllo della vita sociale, fino a configurarsi come biopotere, quanto ampia ed efficace poteva essere la resistenza. Come si potevano vivere ed organizzare i rapporti biopolitici per creare forze alternative al biopotere? Sono convinto che questi siano stati i punti centrali attorno ai quali si è venuta formando in Italia una originale filosofia politica, nel quadro tormentato del dibattito marxista eterodosso ma con profondi agganci allo sviluppo delle scuole fenomenologiche italiane negli anni sessanta.

1 Questo scritto si presenta come appendice ad un mio opuscolo intitolato La differenza italiana (Nottetempo, Roma 2005).

231

11 MVCabral Cap. 11_Layout 1 6/24/13 9:21 AM Page 232

Antonio Negri

Queste ultime (che erano venute opponendo l’analisi della soggettività antagonista alla lagnosa – ma estremamente diffusa – filosofia heideggeriana che egemonizzava, a destra, la neoscolastica, e a sinistra, le ultime sirene del francofortismo) – la fenomenologia, dunque, di Paci, di Semerari, di Melandri (ed anche il nuovo positivismo critico di Preti e di RossiLandi) – si concentravano sul rapporto antropologico fra uomo e macchina, fra attività produttiva e linguaggio, fra percezione ed azione, rinnovando l’umanesimo di Merleau-Ponty e svolgendo intuizioni e prospettive già elaborate dal «marxismo occidentale» (da Lukacs a Kosic). Nel libro Radical Thought in Italy. A Potential Politics, pubblicato da Michael Hardt e Paolo Virno nel 1996 (comprendente saggi composti tra gli anni ottanta e novanta) ritengo essere già state indicate alcune piste di ricerca. In quel periodo, e successivamente, i temi sopra definiti (originalmente concepiti nel rapporto fra movimenti di classe e trasformazioni tecnologiche) vennero incrociandosi e nutrendosi del contatto con la letteratura filosofica poststrutturalista, soprattutto – ma non solo – francese. Attraverso questa ibridazione tematica, i problemi sopra nucleati sono divenuti centrali nel dibattito postindustriale, postmoderno e globalista. Se questo è il quadro generale dal quale venne configurandosi l’originale avventura degli autori della «differenza italiana» (e su questi autori nonché sulle «riviste del disgelo» che dal 1956 fino alla fine degli anni sessanta nutriranno il discorso, sarebbe importante che gli studiosi portassero l’analisi), permettetemi ora di concentrare la mia attenzione su un concetto, meglio, una «parola d’ordine» che fu al centro di quel periodo di ricerche e di attività politiche e che singolarmente ne riassunse sia il nucleo razionale sia l’«esprit de finesse». Intendo chiedermi che cosa significò davvero «rifiuto del lavoro»? A questo scopo rifletterò su alcuni concetti che, pur non riferendosi immediatamente a quella questione (il significato e senso del «rifiuto del lavoro»), ci saranno utili per approssimarne il chiarimento. Vorrei qui argomentare su alcune acquisizioni teoriche, rilevanti per il nostro problema, definitivamente espresse in Empire e sviluppate, soprattutto, in Commonwealth (mi scuso, evidentemente, per l’assunzione di concetti a posteriori, ma se dovessi percorrere l’intero sviluppo di questi concetti, il ragionamento diverrebbe troppo ingombrante). Argomentare cioè sulle forme nelle quali l’ontologia dell’operare umano, meglio, la potenza produttiva (così come essa è assunta nelle scienze sociali e politiche) viene storicamente prendendo forma e, conseguentemente, in questa forma determinata è dominata (intendo, assoggettata e sfruttata, disciplinata e 232

11 MVCabral Cap. 11_Layout 1 6/24/13 9:21 AM Page 233

Una rottura italiana: produzione versus sviluppo

controllata) oppure si mette nelle condizioni di rivoltarsi, di liberarsi e (come dicevano i Padri Fondatori) di perseguire la felicità. Lavoro e attività sono i termini con i quali in genere si qualifica lo svolgersi di questa potenza ontologica. Questi termini sono qui intesi come «lavoro» (manuale, industriale, valorizzante) e come «attività» (generica). La filosofia, l’etica ed il diritto della modernità hanno assunto questi termini alla base dell’economia politica e di ogni progetto di gestione della produzione sociale – alle origini del capitalismo e per l’a-venire. Nel postmoderno poi – argomentavamo in Empire – il lavoro (valorizzante, ossia il lavoro materiale industriale) e l’attività (generica, cioè l’attività produttiva intellettuale e/o cognitiva, immateriale, scientifica, linguistica, affettiva, ecc.) tendevano ad identificarsi sotto l’egemonia del principio di attività. Nel postindustriale e nel postmoderno, infatti, quando si compie la «sussunzione reale» della società nel capitale, ovvero il pieno assoggettamento del bios al potere, le divisioni canoniche del pensiero (e dell’operare) moderno (natura e cultura, lavoro e tecnica, fabbriche e società eccetera) non sono più date. Al contrario di quanto avviene in epoca industriale, si considera ora che la forza produttiva investa omogeneamente il contesto naturale e sociale. Di qui l’egemonia del «lavoro immateriale» o dell’attività (generica), in quanto diretti non a singole produzioni ma alla cooperazione sociale per la produzione del comune. [Intendiamoci bene: «lavoro immateriale» era concetto utile ma era solo indicativamente corretto. Esso interpretava l’urgenza di sbarazzarsi dell’essenzialismo proprio degli antichi discorsi sulla natura come sul lavoro, del naturalismo come del laburismo]. Dunque, nel momento nel quale investiva la totalità dell’esistenza naturale e sociale, il lavoro era ridotto ad attività generica: si comprende come, in conseguenza di questa genericità, la produzione risultasse priva di ogni normativa prestabilita e/o di ogni misura oggettiva e/o di ogni telos che non fosse convenzionalmente costruito. Perché? Perché la legge economica, la regola organizzativa, la norma etico-politica, quali Ricardo e Marx le avevano definite nella loro critica dell’economia politica, erano venute meno. Infatti, quando il rapporto temporale fra lavoro necessario, pluslavoro e plusvalore sia ormai irriducibile a misura; quando il lavoro intellettuale e scientifico, il sapere e la comunicazione, insomma, gli elementi immateriali divengono, rispetto a quelli materiali, sempre più centrali ed indispensabili nella valorizzazione delle merci e quindi sfuggenti alla disciplina dell’organizzazione del lavoro; dove infine la circolazione dei fattori produttivi diviene parte integrante del ciclo di produzione e riproduzione delle merci e distrugge 233

11 MVCabral Cap. 11_Layout 1 6/24/13 9:21 AM Page 234

Antonio Negri

l’unità spaziale della produzione, allora la realizzazione della «legge del valore» divieni impossibile, il rapporto fra tempo-lavoro e valore della merce, diviene inattuale. Questo, in prima istanza.2 Prima di ragionare attorno ad una «seconda istanza» nella nostra ricerca, notiamo che qui (attorno alla percezione di questa crisi) si era allora aperto, dal punto di vista capitalista, il discorso su una nuova «forma» dello sviluppo: non si poteva infatti accettare che la conversione della produzione dal lavoro industriale all’egemonia dell’attività sociale escludesse ogni misura della produzione. Voglio dire che il capitalismo ha, con grande tempestività, saputo adeguarsi a questa nuova situazione. Esso ha costruito nuove forme di accumulazione simmetriche ai nuovi processi di produzione sociale e cognitiva del valore. Esso ha introdotto nuove scale di valorizzazione e di misura del tutto astratte, monetarie e finanziarie. Ad esempio, al valore industriale (profitto) si sostituiscono le regole e le misure della rendita. Dalla rendita «energetica» a quella «immobiliare», e infine a quella «finanziaria», ecco come si configura una nuova misura economica dell’attività produttiva-umana generica. L’ordine è così ristabilito. Nella totale soggezione a valori astrattamente precostituiti, a referenze normative immobilizzate, a privilegi che taluno riconosce come «neofeudali» e a diseguaglianze sociali insieme abissali e assurde, si mette – per così dire – nuovamente in forma lo sviluppo. Naturalmente ciò avviene fra crisi e crisi, perché – come abbiamo prima sottolineato – ormai ogni valore reale è inaccessibile, e le temporalità del lavoro produttivo sono incessantemente interrotte. È forse solo la violenza che incarna il potere e ne organizza la permanenza e la ricomposizione continue? È il biopotere che fissa la governance degli assetti globali? Vorrei qui – per inciso ma non incidentalmente – stigmatizzare quelle mode che si presentano sulla scena della cultura politica pretendendosi alternative alla crisi della misura dello sviluppo – cioè quelle ipotesi culturali e politiche che, incapaci di ragionare in termini di energia, di potenza o di forma, assumono, come modello di ragionamento ed illusione di superamento, il ricalco della crisi ed il suo piatto rovesciamento. Allo sviluppo capitalista oppongono quindi la decrescita (ossia l’indebolimento del rapporto cultura-natura), o ancora, detto meglio, alla storicità del rapporto produttivo e politico oppongono la «natura» – come se fosse 2 Mi si perdoni questo così disinvolto riferimento alle categorie teoriche dell’economia politica classica e della critica marxiana: anch’esso riproduce il tempo storico ed il clima teorico nei quali emerse quella «differenza italiana».

234

11 MVCabral Cap. 11_Layout 1 6/24/13 9:21 AM Page 235

Una rottura italiana: produzione versus sviluppo

possibile disinvestirla, cioè liberare la natura da quell’investimento massiccio che essa ha subito e spesso autonomamente riprodotto; come se fosse dunque possibile disarticolare il mondo vissuto da quelle pratiche sociali che hanno trasformato la natura stessa e che l’hanno vista positivamente reagire – fra le quali, non ultime, le nuove figure della sessualità, gli effetti del femminismo, il godimento di un corretto apparato del welfare, i nuovi usi legati ai progressi della medicina e delle biotecnologie ecc. Comunque, nelle zone frontaliere fra il sociale ed il naturale, nelle regioni nelle quali più evidentemente il mondo vissuto si articola al mondo naturale, ben altrimenti che attraverso le insulse politiche della decrescita ed i dispositivi dell’estremismo ecologico, si dovrà reagire alla crisi indotta dall’affermazione del biopotere (attraverso la sussunzione della società nel capitale). Infatti, l’ipotesi di un «ritorno alla natura» non è alternativa, bensì conseguente, simmetrica a quella capitalista di una sua «domesticazione» integrale. Il discorso, qui come altrove, ritorna allora alla produzione – cioè a come riusciremo ad inventare valori e ad organizzare forze che permettano di separare, di sradicare non la natura dalla produzione, ma la produzione «dell’uomo per l’uomo» dallo sviluppo capitalista (liberandoci così, nel contempo, da ogni parassitaria utopia della decrescita). L’ipotesi che qui dovremo cercare di dimostrare è quella nella quale il lavoro non valorizza più il capitale industriale e l’attività sociale non genera più sfruttamento attraverso la rendita. Dovremo chiederci se sia possibile costruire una società nella quale la produzione da parte dei lavoratori non concluda più alla valorizzazione del capitale, cioè allo sviluppo del biopotere. Produzione contro sviluppo: si può giustificare questo slogan sul terreno teorico? [Sia chiaro che quando si dice produzione contro sviluppo, quel «contro lo sviluppo» non vuol dire «decrescita», ovvero esser contro la crescita della produzione di beni. Vuol dire esser contro l’assunzione del mercato a giudice della produzione, e della concorrenza come agente della sua direzione, e quindi contro la logica qualitativa e la quantificazione capitalista dello sviluppo. È possibile una logica non-capitalista del mercato? È possibile una pianificazione «dell’uomo per l’uomo», assumendo per esempio la trama dei beni indicati dal Welfare come direzione qualitativa e moltiplicatore quantitativo della produzione? In questo senso la produzione non è più contro lo sviluppo ma per il comune]. Quand’ero giovane ci provai a capire che cosa significava «lottare contro il lavoro». Non era un invito alla pigrizia, all’ozio, all’inopia. Significava invece rifiutare (e tentare di rompere) quell’unità organica, quel «sinolo» che nello sfruttamento, nello sviluppo capitalistico, univa (contradditto235

11 MVCabral Cap. 11_Layout 1 6/24/13 9:21 AM Page 236

Antonio Negri

riamente ma efficacemente) il lavoro vivo ed il lavoro morto, la fatica di essere sfruttati ed il capitale. Anche il lavoratore era prigioniero di questa dualità, introdotta dal rapporto salariale, nella sua coscienza. Non a caso Marx aveva indicato nella fine del capitalismo il momento nel quale la stessa classe operaia fosse distrutta. Quando poi lo sfruttamento fosse giunto ad esercitarsi anche a livello sociale e l’alienazione ovunque diffusa, per lottare contro lo sfruttamento e l’alienazione bisognava anche lottare contro il lavoro, contro l’industria e contro la società; e cioè non solo contro lo sfruttamento ma anche contro l’alienazione; conseguentemente, contro quelle corporazioni che si nutrivano e si inorgoglivano contrattando la misura dello sfruttamento; contro quei socialisti che, volendosi sostituire ai capitalisti, illudevano i lavoratori chiamando «pubblici» quegli stessi beni che i padroni possedevano privatamente e che il capitale comunque sfruttava, anche quando i padroni si fossero autonominati come «socialisti»; e contro lo Stato che garantiva e glorificava la soggezione delle masse (e qualche volta esemplificava in maniera estrema e purificante tale soggezione, massacrando quelle medesime masse in guerre cosiddette patriottiche, mostruose e crudeli). La mia generazione visse quella vicenda. Se la battaglia che la classe operaia allora lottò contro il lavoro, sia stata vinta o perduta, davvero non lo so: so tuttavia che, a partire dal termine del «secolo breve» (lo si collochi nel ‘68 o ‘89), il capitale fu costretto a sostituire (come soggetto di valorizzazione) l’attività sociale generica al lavoro industriale – ed il mercato all’industria, il popolo alla classe, l’individuo alla corporazione, la società globale allo Stato. Dati i rapporti di forza che la lotta operaia aveva determinato, muovendosi contro l’industrialismo, il capitale non poteva fare altrimenti. Molto era cambiato – e quasi nulla. Quasi nulla ad esempio quando le cose fossero guardate dal punto di vista dello sfruttamento. Certo, agli operai «dalle mani callose» erano seguiti gli informatici, a Detroit erano seguite l’IBM e l’Apple, ai lavoratori «a vita» i precari, e mille altre sorti di gente che faticava e migrava nei continenti… per faticare ancor più, ecc.. ed ai socialisti erano seguiti gli ecologisti. Ma si era sempre lì dentro al biopotere, anche se alla busta paga si era sostituita la carta bancaria, ed al salario il debito. Certo, la mobilità e la flessibilità dell’attività lavorativa generica mostravano qualche vantaggio rispetto alla mostruosa monotonia e ripetizione nelle galere del fordismo ecc ecc. Quasi nulla tuttavia era cambiato, anche se molto si era trasformato. Si avvertiva in particolare che ormai la schiavitù dello sfruttamento non colpiva tanto le individualità quanto la cooperazione, non si abbatteva solo sugli individui ma sulla moltitudine delle singolarità, non si distendeva sull’orario giorna236

11 MVCabral Cap. 11_Layout 1 6/24/13 9:21 AM Page 237

Una rottura italiana: produzione versus sviluppo

liero della fabbrica ma sulla durata e l’estensione della vita, non sulla privatezza ma sul comune. Ora era la vita, la vita comune che era subordinata alla moneta dei banchieri ed alla finanza degli Stati. La teorica «sussunzione reale» della società dentro il capitale, era ora pienamente divenuta – praticamente e storicamente – biopotere. Quale terribile miseria per quella vecchia classe operaia ora subordinata alla nuova figura del comando, per quella vecchia classe operaia che ormai si chiama povertà! Eppure quale terribile forza qui ora emerge! Le nuove generazioni del lavoro cognitivo hanno conquistato un’autonomia nel lavoro che solo con molta durezza possono essere assoggettate al comando capitalistico – ed anche le vecchie classi, la loro povertà, messe in questa condizione, non hanno altra strada che quella di distruggere la propria miseria, di andarsene dal capitale, di fare esodo da quella comune macchina di oppressione. Ma che cos’è questo «comune»? Eccoci alla seconda istanza del nostro ragionamento. Sappiamo che comuni sono l’acqua, l’aria, il mare e, secondo la Bibbia, anche la terra. Nulla di ciò tuttavia ci appartiene più. Il processo di accumulazione del capitale si è fin dall’inizio progressivamente appropriato di queste ricchezze naturali. Ma noi siamo piuttosto interessati al comune prodotto dall’uomo poiché esso, come il comune naturale, è stato sì riassorbito nelle/dalle strutture organizzative del capitalismo, ma esso si rappresenta come un vivente comune umano in qualche maniera inespropriabile. Certo, lo stesso milieu nel quale viviamo e ci riproduciamo, è stato espropriato dal capitale. Certo, il capitalismo è oggi capitalismo del comune. Lo abbiamo già detto: capitalismo cognitivo, finanza globale, la vita stessa organizzata e sfruttata come tale – è questa la nuova figura del comune. Il tutto mascherato da arcaici titoli di proprietà privata o pubblica, il tutto sussunto in ogni caso nel capitale. Ma quello che il capitale non è riuscito (e mai riuscirà ad appropriare) è tuttavia l’energia della forza-lavoro, meglio di quella forza produttiva che oggi si chiama attività cognitiva, sapere, invenzione, di quella moltitudine di singolarità che produce il comune. Il comune non è infatti solo l’insieme della ricchezza prodotta ma anche la forza produttiva per eccellenza. Si può senz’altro affermare che oggi non si da produzione senza che del comune, il comune la costruisca. Torniamo allora a noi. Se il modo in cui è messa in forma la potenza della produzione comune, o nel quale si mostra l’energia comune che oggi costituisce la storicità concreta, ci dispensa dal cominciare con una distinzione a priori fra l’ordine umano (bios) ed un eventuale ordine naturale (zoè), questa condizione non ci toglie alla necessità di riproporre, 237

11 MVCabral Cap. 11_Layout 1 6/24/13 9:21 AM Page 238

Antonio Negri

per questo comune, la stessa separazione che il lavoro vivo esige dal lavoro morto e la produzione dell’uomo per l’uomo impone contro la valorizzazione capitalista. Solo così sarà possibile riconoscere nella nostra esistenza singolare la forma del comune e, quindi, costruire l’esperienza (che può anche essere l’urgenza) di dare figura e forza politica a questo comune. Sarà questo rapporto costitutivo che si propone nel nome della moltitudine, il nuovo nome della democrazia? A noi verificarlo. Ma si potrà verificare solo attraverso una rivoluzione sociale. Democratica, laddove i nomi di rivoluzione e di democrazia siano compatibili. Ogni progetto di democrazia può oggi solo fondarsi sulla costruzione di nuovi diritti di riappropriazione e/o di proprietà sociale di beni comuni. Ed aggiungiamo che la forma di questa riappropriazione non potrà che rifiutare la concentrazione di potere, a favore della sua diffusione; non potrà che respingere ogni forma gerarchica (e/o competitiva), istituzionalizzando il comune come contenuto di un governo partecipato con spirito cooperativo, capace di promuovere ed assorbire sempre nuove comunità di produttori. Democrazia dei produttori, dunque, contro il lavoro e l’attività, egualmente sfruttati, contro lo sviluppo (e la decrescita). Ritorniamo a noi – cioè al «rifiuto del lavoro» – intendendolo ormai come matrice teorica della «differenza» italiana. È nel decennio fra 1956 e il 1966 che si realizza nell’ambito del marxismo italiano (ma non solo) una vera rivoluzione copernicana contro la tradizione sovietica del Diamat, accelerando la sua dissolvenza dopo il ventesimo congresso del PCUS. Dopo il ‘56 si dà un vero e proprio mutamento di paradigma del pensiero rivoluzionario. Conquistano l’egemonia una nuova antropologia ed una nuova sociologia (espresse da una esperienza militante che si esercita direttamente nelle fabbriche) che non sono più semplicemente quelle dell’uomo faber, del uomo produttivo nell’industria ed in generale nel rapporto con le macchine (non sono più semplicemente questo, anche se si tratta sempre di un pensiero rivolto contro ogni tanatologia, più o meno heideggeriana). Lo voglio ricordare in termini biografici. Il nostro problema, in quegli anni, fu quello di reinventare l’antropologia del lavoro. Il «rifiuto del lavoro» non era infatti un atto volontarista ma un’operazione che avveniva all’interno del sistema delle macchine; non era un’operazione culturale per la trasformazione della natura ma una costituzione natural-culturale nuova; non era semplicemente un atto politico ma un atto costitutivo di altra umanità. Vorrei qui invitare ad una ricerca che riattraversi (come in parte noi avevamo fatto) la sociologia e le filosofie antropologiche del 238

11 MVCabral Cap. 11_Layout 1 6/24/13 9:21 AM Page 239

Una rottura italiana: produzione versus sviluppo

primo novecento. Noi avevamo trovato, ad esempio, una forte sollecitazione nell’antropologia fenomenologica di Maurice Merleau-Ponty il cui pensiero incitava ad ibridare pratiche fenomenologiche ed analisi marxista. C’era un nuovo umanesimo, dopo la morte dell’uomo, che veniva qui costituendosi, un umanesimo comunista. Lo nota, ad esempio, polemicamente, Habermas quando ricorda che in Marleau-Ponty è fondamentale l’idea «di un soggetto capace di parlare e di agire che costituisce già un organismo socializzato, un rapporto già integrato prima di riferirsi in maniera oggettivante a qualcosa che esiste nel mondo». È il realismo di una trasformazione sociale, non alienata, del soggetto lavoratore – comune – che ha la forza di rompere con lo sfruttamento e quindi con lo sviluppo capitalista, di fare-produzione dell’uomo per l’uomo. In Italia, Enzo Paci, Giuseppe Semerari, Enzo Melandri ed altri insistono su questa «iperdialettica» fenomenologica. Era, come abbiamo detto, un nuovo umanesimo dopo la morte dell’uomo. Alla diagnosi heideggeriana e ad ogni pessimismo catastrofico o escatologico nella considerazione del rapporto fra tecnica e costituzione umana, si opponeva dunque una concezione che assumendo come indistruttibile il rapporto cultura-natura, uomo-macchina, operaio socializzato-struttura biopolitica proponeva un’antropologia liberatrice, una nuova praxis dentro questo rapporto. I saggi di Panzieri e Tronti, ed ancor di più le potenti aurorali ricerche di Alquati nei primi «Quaderni Rossi», definiscono appunto il «rifiuto del lavoro», descrivendo la produzione di lotte operaie (le loro forme e i loro cicli) contro lo sviluppo capitalista (le sue forme e i suoi cicli). Questa esperienza ci permette di rilanciare la ricerca sull’ontologia dell’operare, sul rapporto tra fenomenologia critica e pratica di intervento militante e rivoluzionario. Naturalmente questi temi riaprono anche il problema del rapporto fra sapere vero ed etica della trasformazione.

239

11 MVCabral Cap. 11_Layout 1 6/24/13 9:21 AM Page 240

12 MVCabral Cap. 12_Layout 1 6/24/13 8:59 AM Page 241

José Medeiros Ferreira

Capítulo 12

A Universidade e a crise do pensamento crítico Dedicado a Manuel Villaverde Cabral em homenagem ao seu espírito crítico e científico* O tema escolhido para esta despretensiosa «Lição» subordina-se ao título «A Universidade e a crise do pensamento crítico», tendo em conta os tempos difíceis que atravessamos, entre a sombra e a luz, entre as certezas dogmáticas do pensamento unidimensional e a necessidade de procurar mais além. Com efeito, o que caracteriza a vida colectiva, no espaço civilizacional em que nos encontramos, é a estadia persistente de uma vasta aporia do pensamento crítico quando mais ele seria necessário nestes tempos de crise geral. Há algumas dezenas de anos que os grandes meios de persuasão construíram um paradigma do saber que se designa como o domínio do «pensamento único». Pois, o pensamento crítico é o grande antídoto para os danos colaterais do pensamento único, assim como a instituição universitária é o melhor espaço para o cultivar e organizar, assumindo o confronto interno entre ortodoxias e heterodoxias em todos os saberes e suas disciplinas. Esta crise do pensamento alternativo ultrapassa, no entanto, a Universidade e estende-se à própria sociedade em geral. Houve como que um desaparecimento dos intelectuais críticos do espaço público. Hoje teríamos dificuldade em encontrar um Antero de Quental, um Karl Marx, um Ortega y Gasset, um Albert Camus ou uma Simone de Beauvoir, um António Sérgio ou um Norman Mailer. Mesmo Freud não de1

Com base num texto lido no âmbito das 100 Lições do Centenário da Universidade de Lisboa em 24 de Março de 2011.

241

12 MVCabral Cap. 12_Layout 1 6/24/13 8:59 AM Page 242

José Medeiros Ferreira

senvolveu os seus estudos sobre a psicanálise no seio da Universidade de Viena e sim no seu consultório. Os intelectuais foram quase todos integrados na disciplina social ou institucionalizados a vários títulos. Uns são universitários consagrados, outros contemplados pelas diferentes academias, muitos são ensaístas em perpétua viagem, os demais comentadores escutados nos órgãos de comunicação social, esses vorazes consumidores de opiniões efémeras. Todos repousam na paz do reconhecimento geral. Não sobra, assim, muita gente para a sistematização do pensamento crítico e muito menos para a criação de um pensamento alternativo. Mais uma razão para se pedir às Universidades que chamem a si essa função, aliás prevista na sua missão. É pelo menos o que gente responsável espera dela. Em Novembro de 2008, a rainha Isabel II perguntou aos economistas reunidos na London School of Economics: «Why did no one see the crisis coming?» (Porque foi que ninguém previu a chegada da crise?). A pergunta da rainha de Inglaterra aos economistas britânicos leva-nos em linha recta ao tema de hoje. Sempre que os conhecimentos inovadores se desenvolvem fora da Universidade é ela que está em causa. De facto, há uma crise para-mundial que começou por ser financeira, económica e social, mas que hoje é sobretudo uma crise de ideias e uma crise do pensamento alternativo. Um pouco à imagem do que aconteceu no fim da I Guerra Mundial em que, entre 1919 e 1929, só se pensava em regressar à normalidade anterior a 1914 – com os resultados que se conhecem. Ainda há meses era sinal de má educação – no sentido próprio e figurado – propor medidas de regulação dos mercados financeiros mundiais ou de supervisão das actividades bancárias que vieram a revelar-se as causadoras da crise financeira. A pergunta da rainha de Inglaterra é pois um desafio que urge relevar. Merleau-Ponty, no seu livro Humanismo e Terror, encimou as suas reflexões por uma inquietante e fértil observação: Há na História um malefício qualquer: ela solicita os homens, tenta-os, eles julgam caminhar no seu sentido e, de súbito, ela esquiva-se, os acontecimentos mudam e provam, na prática, que uma outra via era possível.

Será que estamos perante um desses períodos de esquiva histórica, depois de décadas de assimilação, conformidade e triunfo de um só modo de pensar? Sou dos que consideram as universidades instituições insubstituíveis no estímulo e no treino do pensamento crítico, pois que

242

12 MVCabral Cap. 12_Layout 1 6/24/13 8:59 AM Page 243

A Universidade e a crise do pensamento crítico

do que mais se precisa nesta época é de ter em stock, bem armazenados, processos inovadores e projectos alternativos. De outra maneira, as Universidades, como outras instituições, podem passar à História. Quando as Universidades claudicam no seu papel de inovação dos saberes, aparecem outras entidades a tomar o seu lugar e a chamar a si os novos desenvolvimentos do conhecimento de que as sociedades precisam. Foi assim no século XVIII com as Academias e com as Escolas Politécnicas, mais tarde com as Sociedades Científicas de todo o género e ainda com muitos institutos que se formaram fora dos muros da Universidade. Esse processo também aconteceu em Portugal quando só existia a já vetusta Universidade de Coimbra, embora sacudida pela reforma pombalina. Assim, logo no artigo 1.º dos Estatutos da Academia das Ciências, datados de 24 de Dezembro de 1779 (ia alta a maré revolucionária em França), atribuíam-se a esta os objectivos de «adiantamento da instrução nacional, perfeição das ciências e das artes e aumento da indústria popular». E, com efeito, na fase inicial da vida da Academia das Ciências, destaca-se a elaboração das «Memórias Económicas», «Memórias de Agricultura», além, claro, das «Memórias sobre História e Literatura». Era uma academia que se elevava contra a Universidade de Coimbra com as suas teologias, os seus juramentos em nome da Santíssima Trindade e os seus dogmatismos envolventes. Os primeiros «académicos», como o duque de Lafões, o abade Correia da Serra, os cientistas Avelar Brotero e Rosa Viterbo ou o historiador Alexandre Herculano, eram tudo menos partidários do «academismo», ou seja, de um saber estetizado por regras e esterilizado por formalismos. Foram cultores do pensamento crítico e do avanço do conhecimento científico contra a Universidade que abdicara de, ou não conseguira, ocupar o lugar de pioneira do saber científico, o nome que o pensamento crítico e experimental tomou na altura. Esta rivalidade, ou emulação, entre as Academias e as Universidades, pela disputa do prestígio da sabedoria, saldou-se, já no século XIX, pelo ressurgimento das Universidades ligadas à perspectiva crítica e ao conhecimento científico e experimental. Renascem as Universidades inglesas pelo culto da personalidade individual, e depois pela atracção internacional que a hegemonia imperial sempre suscita; a francesa, através do seu modelo napoleónico, virada mais para a sistematização das disciplinas e para o ensino, mas cercada pelas Grands Écoles politécnicas; e a Uni243

12 MVCabral Cap. 12_Layout 1 6/24/13 8:59 AM Page 244

José Medeiros Ferreira

versidade alemã com origem na de Berlim, com o culto de Humboldt pela investigação e pelo saber aplicado. Do outro lado do Atlântico, as Universidades americanas tacteavam os seus próprios caminhos até se consolidarem, entre as duas guerras mundiais, de uma maneira menos académica, menos formal e mais ligada aos grandes problemas do desenvolvimento do bem-estar da sociedade: a agricultura e as engenharias ocupam o primeiro lugar, só depois crescem a economia política ou as relações internacionais. E haverá melhor maneira de evocar o centenário da implantação da República em Portugal do que recordar o início da difusão pelo território nacional de novas universidades em Lisboa e no Porto, para além da reforma da Universidade de Coimbra? Pois, grande parte do nosso ensino científico, tecnológico, crítico sobre a História de Portugal começou então, com maior ou menor continuidade. Se as Universidades portuguesas se revelaram úteis para o país desde então até 1974 é uma outra história que não se fará aqui. Mas quem poderá negar o papel de outras instituições que supriram, aqui e ali, as deficiências da investigação e da diversidade científica em Portugal, como a Fundação Gulbenkian com a sua política científica e cultural, desde o seu aparecimento em 1956? Esse tempo será também o tempo em que as Associações de Estudantes desempenharam o papel de participação cívica, de formação do carácter, de estudo de temas novos, numa réplica muito lusa e rebelde do modelo britânico e norte-americano do campus universitário. Daí as lutas pela autonomia da Universidade e contra a banalização das cidades universitárias entre 1960 e 1974. O centenário da Universidade de Lisboa pode ser periodizado por vários critérios, como a separação por regimes (republicano, ditatorial e democrático) ou pelas reformas pedagógicas introduzidas, mas a defesa da liberdade de organização e autogoverno das Associações de Estudantes desde 1956 marcará sempre a vida da instituição. No último meio século, as Universidades sofreram, no espaço em que as portuguesas se inserem, duas grandes reformas: uma de baixo para cima, originada pela revolta estudantil ocidental dos anos 60 e outra, de cima para baixo, que se opera a partir do processo de Bolonha e está ainda em curso no espaço europeu. A reforma provocada pela revolta estudantil dos anos 60 foi por natureza empírica, basista, descentralizada, quiçá confusa, mas multiplicadora da pujança das Universidades que se propunham receber cada vez mais estudantes, aumentar o seu corpo docente, e estudar cada vez mais 244

12 MVCabral Cap. 12_Layout 1 6/24/13 8:59 AM Page 245

A Universidade e a crise do pensamento crítico

novos domínios do conhecimento. Também aí tudo principiou pela participação cívica. Lá fora assistiu-se a uma multiplicação de universidades, por cisão ou separação, mas sempre numa via crítica de extensão do Ensino Superior e de crescimento da sua importância para as sociedades envolventes. Só em Paris, assiste-se ao desdobramento de 13 Universidades. Na Bélgica assistimos à separação de Lovaina e Lovaina-a-Nova. No Brasil, temos o caso das Universidades de São Paulo e de Campinas. Podíamos multiplicar os exemplos. Em Portugal também se criaram e espalharam pelo território nacional novas Universidades na década de 70. A revolta estudantil de 1968 assentou na necessidade de democratização do Ensino Superior e, ao mesmo tempo, na vontade geral de fazer das Universidades o espaço privilegiado de transmissão do saber intergeracional. De certa maneira foi com as consequências de Maio de 68 que as Universidades atingiram o máximo da sua importância nas sociedades ocidentais: autónomas, influentes, atraentes para os jovens, empregadoras para os docentes e desafiadoras para os poderes constituídos. A avalancha de reformas que se operou foi bem a prova disso, com estudantes, professores e poderes públicos empenhados em respostas positivas aos desafios da democratização do Ensino Superior, da liberdade de investigação e da promoção de saberes críticos e inovadores, para não dizer revolucionários. Durante cerca de três décadas as Universidades viveram, no fundo, sob a protecção do movimento estudantil, dos estudantes e das suas famílias. Ganharam as Universidades. Em Portugal o atraso na democratização do Ensino Superior trouxe soluções sobretudo estatais, mas também com o objectivo de expansão: daí a criação de universidades novas e sua difusão pelo território nacional: Minho, Aveiro, Beira Interior, Algarve, Açores, Madeira, para além de novas entidades nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Os obstáculos centralizadores e financeiros, ligados ao início do processo, em 1973, foram depois varridos com as consequências do 25 de Abril de 1974. Desde a implantação da República que se não observava um crescimento tão significativo das Universidades em Portugal como o verificado na época inaugural do regime democrático actual. Quer as reformas universitárias no estrangeiro, quer as reformas portuguesas constituíram momentos de grande relevância para o Ensino Superior. As questões substanciais, como as condições de investigação e os conteúdos dos cursos, tiveram a máxima importância e foram deveras participadas por professores e estudantes, sendo ainda de realçar a abundante legislação e meios que os órgãos de soberania disponibilizaram. 245

12 MVCabral Cap. 12_Layout 1 6/24/13 8:59 AM Page 246

José Medeiros Ferreira

Nesse processo de difusão de Universidades pelo território nacional talvez tenha faltado alguma participação das comunidades envolventes – mais nas grandes metrópoles como Lisboa e Porto do que noutras regiões mais atentas à importância da fixação de Universidades no seu território para o seu próprio desenvolvimento económico e social. A Universidade de Aveiro é disso exemplo. Durante mais de 20 anos viveu-se grosso modo com este modelo. Já o processo de Bolonha foi o pretexto para uma intervenção dos poderes públicos de cima para baixo com uma filosofia tendencialmente uniformizadora. Durante algum tempo, esse espírito de Bolonha, ou pelo menos a sua aplicação prática entre nós, não aparecia harmonioso com a antiga e renovada tradição de autonomia e autogoverno das universidades ocidentais que tantas lutas suscitara em vários países do actual espaço de Bolonha. Com efeito, quer a nível europeu, quer a nível nacional, as atenções voltaram-se quase exclusivamente para as questões ligadas ao financiamento, à organização e administração das Universidades, e pouco se promoveu o debate sobre as reservas estratégicas de conhecimentos que essas instituições deviam produzir para a sociedade fazer face às surpresas da História, referidas por Merleau-Ponty. Ora as Universidades precisam de autonomia alargada em relação aos interesses imediatos e às encomendas, para cultivarem com tempo o pensamento crítico alternativo. Eisenhower, no seu Farewell Address de 17 de Janeiro de 1961, alertou surpreendentemente antes de muitos contestatários para os perigos que corria a Universidade submersa por financiamentos e encomendas: [...] the free university, historically the fountainhead of free ideas and scientific discovery, has experienced a revolution in the conduct of research. Partly because of the huge costs involved, a government contract becomes virtually a substitute for intellectual curiosity. [...] The prospect of domination of the nation’s scholars by Federal employment, project allocations, and the power of money is ever present – and is gravely to be regarded.

Paradoxalmente, essas preocupações de um Presidente dos EUA, conhecedor dos perigos que as Universidades anglo-saxónicas estavam a atravessar, não foram acauteladas pelos actuais reformadores de Bolonha. Se, na Magna Carta das Universidades, assinada, em Bolonha, por ocasião do IX Centenário da Universidade de Bolonha, pelos reitores das Universidades europeias em Setembro de 1988, ainda se refere no seu

246

12 MVCabral Cap. 12_Layout 1 6/24/13 8:59 AM Page 247

A Universidade e a crise do pensamento crítico

ponto 1 que «a Universidade [...] é uma instituição autónoma que, de modo crítico, produz e transmite a cultura através da investigação e do ensino», já no documento da Comissão Europeia, datado de Fevereiro de 2003 e intitulado «O papel das Universidades na Europa do conhecimento», esse modo crítico de produção do saber é ignorado e, em seu lugar, se assim se pode dizer, aparece o conceito de «excelência» enredado numa teia de objectivos que vão do processo de inovação às necessidades competitivas internacionais e à meta de criação de um espaço europeu de Ensino Superior que foi fixado para o ano de 2010. O processo de Bolonha, que surge depois da liberalização dos países de Leste e nas vésperas do grande alargamento da EU, inseriu-se assim num contexto de competitividade internacional que reduziu a importância do pensamento crítico, criou obstáculos, talvez involuntários, à diversidade e à autonomia, tendo servido de pretexto a muitas políticas centralizadoras e uniformizadoras, tendendo-se a criar um modelo paradigmático de Universidade. Nem o seu próprio sucesso, cifrado no número de Estados aderentes – 46 – nos deve desviar de uma maior vigilância crítica e da exigência de uma maior participação de todos tendente à correcção dos desvios que se observam nesta política europeia universitária. Em síntese: podemos então periodizar a História do último meio século das Universidades ocidentais, do seguinte modo: a) Um primeiro período que consistiu sobretudo nas respostas aos desafios da democratização do Ensino Superior, e em que as Universidades surgiram abertas, pujantes, se bem que tumultuosas, como organizações-chave na qualificação dos recursos humanos para as tarefas do desenvolvimento e da democratização. Foi um processo com assinalável participação universitária e cívica; b) Um segundo momento, que ainda decorre, marcado, entre nós, pelo processo de Bolonha, em que as atenções se centraram no modo de governar a Universidade, na ligação desta às comunidades e ao mundo empresarial, na competitividade internacional e na criação de um espaço europeu do Ensino Superior para 2010. Este processo foi mais centralizado e burocrático do que o necessário e o desejado, tendo em conta a natureza própria das Universidades; c) Um terceiro momento, que se iniciou com a súbita chegada, a nível mundial, da crise financeira, económica e social em 2008, e que leva ao questionamento da capacidade da Universidade para produzir pensamento crítico, preventivo e alternativo. 247

12 MVCabral Cap. 12_Layout 1 6/24/13 8:59 AM Page 248

José Medeiros Ferreira

De certa maneira, as Universidades ressuscitaram no século XIX e atravessaram pujantes grande parte do século XX, embora revelando disfunções. Que lhes trará o século XXI, «este século ainda tão pequenino» para repetir a expressão do intelectual austríaco Karl Kraus, quando assim olhou para o século XX, em vésperas da I Guerra Mundial? Não se trata, é claro, de propor a redução das missões da Universidade a esse objectivo central da minha preocupação de hoje. As funções clássicas da Universidade são de manter. Ora, tal como Talcot Parsons as definiu para a Universidade americana em 1973, essas funções são: 1.º – de investigação e formação científica específica de novas gerações; 2.º – de preparação para a carreira académica; 3.º – de formação geral; 4.º – de formação intelectual crítica – e aqui reencontramos a nossa problemática que, em nossa opinião, deveria até estar em primeiro lugar. Já a OCDE assinalou 10 funções para as Universidades, as quais seriam: 1.º – Providenciar educação post-secundária; 2.º – Desenvolver investigação e novos conhecimentos; 3.º – Fornecer as qualificações necessárias à sociedade; 4.º – Desenvolver formação altamente especializada; 5.º – Reforçar a competitividade das economias; 6.º – Funcionar como filtro de selecção para profissões altamente exigentes; 7.º – Contribuir para a mobilidade social; 8.º – Prestar serviços à comunidade; 9.º – Funcionar como paradigma de políticas de promoção da igualdade; 10.º – Preparar os líderes das gerações futuras. Em troca é minha opinião que as Universidades devem oferecer à OCDE, como organismo internacional intergovernamental, o gosto pelos cenários alternativos e pelo estudo mais diversificado das perspectivas de futuro.

248

12 MVCabral Cap. 12_Layout 1 6/24/13 8:59 AM Page 249

A Universidade e a crise do pensamento crítico

Conclusão O Ensino Superior, em Portugal, depois de um período de retracção, parece ter encontrado as medidas necessárias para retomar a expansão quantitativa de estudantes. É indiscutivelmente uma boa notícia, até porque se nota um aumento contínuo desde 2006, com mais de 10 000 ingressos entre 2005 e 2009 (em que se passou de 33 520 novos universitários para 45 277). É facto que esse aumento se deveu, em muito, à diminuição da idade de candidatura, para os chamados alunos não tradicionais, dos 25 para os 23 anos, assim como se assiste à chegada aos cursos de pós-graduação de seniores retirados precocemente da vida activa. Ora estes novos públicos são também uma nova oportunidade para as Universidades e um novo desafio à sua acção formadora de espíritos livres. Entre nós o pensamento crítico foi contrariado por vários factores históricos – desde a escassez de recursos materiais às perseguições aos elementos heterodoxos, quer religiosos, quer políticos, em grande parte da nossa vida colectiva. Costumo apresentar a figura do Velho do Restelo como símbolo do pensamento crítico e minoritário em Portugal – embora não o possa defender do ponto de vista da capacidade de inovação. Mas ele obriga-nos a reler as fontes da História de Portugal. Assim, João de Barros, logo na 1.ª Década da Ásia relata-nos um conselho geral realizado em Montemor-o-Novo em 1496 em que o rei D. Manuel «ouve muitos e diferentes votos, os mais foram que a Índia não se devia descobrir. Por que, além de trazer consigo muitas obrigações por ser estado mui remoto para poder conquistar e conservar, debilitaria tanto as forças do reino que ficaria ele sem as necessárias para a sua conservação. Quando mais que, sendo descoberta, podia cobrar este reino novos competidores». João de Barros explica então porque se tomou a decisão contrária: «Porém a estas razões houve outras em contrário, que, por serem conformes ao desejo de el-rei, lhe foram mais aceites.» Camões, pelo seu lado, apresenta o Velho do Restelo como [...] um velho, de aspeito venerando, Que ficava nas praias, entre a gente, Postos em nós os olhos, meneando Três vezes a cabeça, descontente, A voz pesada um pouco alevantando, Que nós no mar ouvimos claramente, 249

12 MVCabral Cap. 12_Layout 1 6/24/13 8:59 AM Page 250

José Medeiros Ferreira

C’um saber só de experiências feito Tais palavras tirou do experto peito: – Ó glória de mandar! Ó vã cobiça [...] Mas o seu papel de prudência crítica contrariava o impulso colectivo que se apossara do poder em Portugal como se de um pensamento único se tratasse. O Velho do Restelo é assim apresentado como o resultado de «um saber SÓ de experiências feito» e nesse advérbio reside a sua força mas também a sua fraqueza. Num «saber só de experiências feito» falta-lhe a dimensão global, geral, sistematizada, universitária. Ora as sociedades contemporâneas voltam a necessitar do cultivo de uma instituição para o pensamento crítico. O conformismo, parente próximo do amorfismo, leva em linha recta ao erro ou à estagnação e dificilmente abrirá espaços e meios para a inovação conceptual, científica e até técnica. Trata-se, no fundo, de saber se as Universidades serão capazes de, ao mesmo tempo, garantir a transmissão dos conhecimentos adquiridos e preparar as respostas alternativas ou preventivas à altura do desafio lançado por Isabel II aos economistas britânicos. Uma coisa é certa: caso não sejam as Universidades a fazê-lo, acabarão por surgir outras entidades. Manuel Villaverde Cabral distinguiu-se sempre pelo seu pensamento crítico, dentro e fora da Universidade. Foi um precursor e um elemento activo da internacionalização da Universidade portuguesa, nomeadamente da Universidade de Lisboa. Curiosamente recebeu esse impulso fora de Portugal quando esteve exilado e inaugurou os seus estudos universitários sobre a sociedade portuguesa. A sua opção pela Universidade foi também uma opção pela liberdade.

250

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 251

Hermínio Martins

Capítulo 13

O homo mercator e o princípio de electividade: limites do mercado, limites do liberalismo económico Manuel Villaverde Cabral tem debatido em muitos dos seus textos questões relacionadas com o liberalismo rawlsiano, com os limites do Estado, com as exigências da justiça social. Neste estudo para o livro em sua homenagem abordo temas afins, que terão, espero, algum interesse para ele, mesmo que discorde de quase o tudo que é afirmado aqui.

I O indivíduo moderno emancipou-se, pelo menos parcialmente, do enquadramento «holístico» de algumas grandes sociedades tradicionais (o homo hierarchicus de Louis Dumont), porque pertencia, ou podia pertencer, a uma multiplicidade de grupos e associações voluntárias, escolhidas por ele, mesmo as confissões religiosas (como as variantes de protestantismo que exigiam a adesão consciente dos adultos, em contraste com a entrada automática por meio do baptismo infantil predominante e mesmo quase universal por séculos na comunidade cristã da ecclesia católica ou ortodoxa), grupos e associações que se recortavam e não se constitutíam numa única hierarquia bem definida de valores e normas, ou de estatutos ônticos. A unicidade do indivíduo seria parcialmente definida pela mix singular de grupos e associações a que tivesse aderido (Simmel 1955 [1922]; Bouglé 1908). O indivíduo ocidental hodierno, que se denomine pós-moderno ou hiper-moderno (G. Lipovetsky), ou por outra locução, continua emancipado, mas tende a definir-se, especialmente desde a viragem político-económica dos anos 70, pela sua imersão em e dependência crescente de mercados, como agente e paciente, em todas as fases e facetas da vida, 251

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 252

Hermínio Martins

praticamente 24/7, com a ubiquidade e quase instantaneidade das telecomunicações e a compresença de ecrãs electrónicos também praticamente 24/7. Mercados essencialmente mutáveis, os de trabalho em especial flexíveis e precários como nunca para a grande maioria das populações nacionais (as duas palavras «flexibilidade» e «precariedade» são das que melhor caracterizam a época, e não só no mercado de trabalho, mas em todos os mercados, se quiserem, no Mercado).1 O mercado de trabalho, com um sistema de profissões e de éticas profissionais associadas, era relativamente estável, especialmente no que diz respeito às classes médias, em que as profissões liberais podiam definir a identidade pessoal, e até em termos hereditários para comunidades da classe operária (como os mineiros em alguns países ocidentais), mas o mundo do Beruf foi profundamente desestabilizado: todas as profissões foram abaladas, quando não destruídas, e as profissões liberais clássicas estão em crise, com a crescente mercantilização e o impacto da mudança tecnológica e científica acelerada, providenciada pelos expert systems e a substituição de conhecimentos e procedimentos de pesquisa por programas de software, pela internet, e a «desintermediação», pela obsolescência contínua dos conhecimentos e das aptidões, mesmo as adquiridas nas universidades (parte do que se já chamou a «explosão da ignorância» que acompanha necessariamente a mais famosa «explosão do conhecimento» e dos meios de aquisição de conhecimentos), as pressões para a virtualização de um leque cada vez mais amplo de actividades.2 Como disse um filósofo americano recentemente, no ambiente cultural dominante fica-se com a impressão de que valemos praticamente só como consumidores ou empresários.3 1 O sociólogo alemão Goetz Briefs, escrevendo nos princípios dos anos 30, caracterizou o proletariado como a classe social cujos membros «dependem exclusivamente ou principalmente para a sua subsistência de um mercado de trabalho instável e inseguro». Esta frase hoje não caracteriza só uma classe social específica, ou só os estratos sociais de baixa renda, mas tende a tornar-se uma condição quase-universal. 2 Já há décadas que se têm caracterizado os engenheiros americanos como pertencendo a uma «profissão sem comunidade». Condição devida em parte à impossibilidade do tipo de escassez artificial que os advogados conseguiram nos EUA, com rendimentos bem mais altos do que obteriam sem esta limitação de números. 3 O historiador Daniel Boorstin, no volume final da sua trilogia sobre os americanos, salientou a importância para dar sentido à vida no caso dos americanos no século XX, especialmente depois de 1945, com a sua alta mobilidade residencial e geográfica, das «comunidades de consumo», a partilha de gostos por certos tipos ou marcas de bens, que se sobrepõe à importância que a pertença a associações voluntárias, locais ou nacionais, religiosas ou seculares, já teve (Boorstin 1973). Os mesmos factos foram notados por Robert Putnam décadas depois, numa apresentação mais sistemática, tendo em conta também factos novos, como o aumento da média de horas trabalhadas por semana (contrariando as expectativas tão ampamente partilhadas nos anos 60 e 70, de uma Idade de Lazer, que

252

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 253

O homo mercator e o princípio de electividade

Mesmo as associações voluntárias, as confissões religiosas, as escolas, as universidades, os partidos políticos, as ONG, os movimentos sociais, o Estado, ou pelo menos a administração pública, os hospitais e as clínicas, os museus, etc., empresarializam-se, ou tendem a empresarializar-se, seguem cada vez mais os cânones genéricos das organizações económicas com fins lucrativos, os seus estilos de gestão, a linguagem do economês, as receitas das Business Schools ou Management Schools que se têm multiplicado dentro e fora das universiades ocidentais quando até há duas ou três décadas havia bem poucas, e nenhuma dentro das mais prestigiosas universiades ocidentais. Em primeira instância, ciência, artes, literatura, filosofia, todas as grandes modalidades da vida cultural, têm de se adaptar também aos mercados como o seu meio ou medium de existência, apresentar-se como «indústrias criativas», com algum peso na economia local ou no PIB nacional, ou pelo menos redefinir-se como técnicas, como «engenharia» ou «terapia», como é o caso até com a filosofia para alguns autores (o «Socrate-fonctionnaire», como foi assim caracterizado sarcasticamente o professor de Filosofia nos liceus e universidades públicas francesas, seria hoje o «Socrate-ingénieur»).4 Com a homogenização mercantil de quase todas as grandes modalidades de instituições sociais, estamos a reduzir os centros de autonomia intelectual, os centros de pensamento independente, que caracterizavam as sociedades liberais clássicas. Estamos a passar de uma ordem liberal policêntrica (Polanyi 1951) para um quase monismo ou totalismo de mercado, de um liberalismo de instituições (um liberalismo pluralista) para um liberalismo de mercado que subverte todas as instituições, do Mercado, em que a desinstitucionalização se propaga para todos os domínios da vida social. O liberalismo clássico opunha-se ao jacobinismo, que tipicamente era movido pelo ódio aos corpos intermediários, às associações e instituições que mediavam entre o indivíduo e o Estado, que considerava como intrínsecamente nocivas. Hoje, pelo mercado e pelas políticas estatais empenhadas em reduzir o papel dos sindicatos, a autonomia das universidades, a autonomia da ciên-

até colocaria problemas sociais sérios porque muitos não estariam preparados para o aumento de tempos livres), o tempo gasto na deslocação para o trabalho e regresso, e a TV (Putnam 1995). Recentemente, Putnam descobriu a vitalidade das associações religiosas, bem maior do que as outras modalidades de associação, na América contemporânea (Putnam 2010). 4 Sobre a mercantilização das universidades e as suas origens ideológicas, ver o meu artigo «The marketization of the universities» no site do Prof. Adelino Torres. Sobre a empresarialização e comercialização da ciência ver, entre outros, Mirowski e Sent (2001) e Greenberg (2007).

253

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 254

Hermínio Martins

cia, a redução da influência das Igrejas, estamos a viver uma espécie inédita, paradoxal, de jacobinismo de mercado. Pluralismo liberal no sentido clássico, ou jacobinismo de mercado? Valorização da autonomia das instituições, da ciência, das universidades, ou totalismo do mercado? Devemos escolher. Falar vagamente da «sociedade civil» não me parece suficiente (tanto mais que as associações não-lucrativas se assimilam cada vez mais às práticas das empresas normais do mercado). A economia de mercado hoje assimila tudo o que ainda não fazia parte de si, antes do paradigma-empresa triunfante, que se impõe mesmo a instituições prévia e relativamente autónomas, ou os serviços públicos de educação e saúde, em termos do seu espírito, códigos operacionais, protocolos, conceitos e categorias fundamentais. «O Mercado» significa, com as políticas de comércio livre, decorrentes do sistema de Bretton Woods e ainda mais do «Consenso de Washington», cujo «liberalismo incorporado» (embedded liberalism) transformou uma boa parte da economia política mundial (Blyth 2002), com os avanços da globalização, ou a «glocalização», ou pelo menos a «semiglobalização», também promovida pelas suas doutrinas e imperativos, o mercado-mundo (só nas últimas três ou quatro décadas é que o peso do comércio externo na economia mundial se pode comparar e aliás exceder o do período 1880-1913). Constituiu-se, numa escala mais ampla do que nunca, em termos quantitativos e qualitativos, o mercado-mundo (ou o mundo-como-mercado, ou como mercado de mercados), com todas as suas implicações com respeito ao offshoring e ao outsourcing da produção e das actividades económicas em geral, a «Era da Deslocalização» de país para país (nem sempre numa só direcção). Processos reforçados pela financialização das economias (mesmo a financialização do comércio de alimentos, da mineração, da produção de toda a espécie), com o sector financeiro contando cada vez mais como proporção do PIB, gerando 60% dos lucros da economica norte-americana em 2008 (os participantes no sector financeiro receberam as maiores remunerações da História). A extraordinária acumulação e as sofisticações do capital financeiro, com os «produtos», os «instrumentos» elaborados pela «engenharia financeira» e a «matemática financeira» e estudados pela «econofísica» nas últimas três ou quatro décadas, muitos dos quais se revelaram como «activos tóxicos» em grande escala, culminou na Grande Recessão, ou Crise Financeira Global, em que vivemos. A automatização das maiores Bolsas de Valores, já com mais de 75% de «robôs traders» («robôs» no sentido de algoritmos de software), ou high-frequency traders, e uma proporção constantemente decrescente de humanos, sem capacidade de lidar com rapidez robótica com o volume e o fluxo de informa254

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 255

O homo mercator e o princípio de electividade

ções financeiras que chegam a cada momento a esses locais, pode ter contribuído para a «eficiência» dos mercados de capitais, mas não impediu a volatilidade dos mercados financeiros com todas as suas consequências. Mercados sui generis na medida em que certos modelos matemáticos e fórmulas (como a famosa fórmula Black-Scholes) geram as próprias realidades a que supostamente se aplicam (MacKenzie 2006). O aprofundamento e o alargamento da mercadorização e da mercantilização 5 têm ocorrido em todas as áreas, facetas ou estratos da vida humana, numa dinâmica acelerada, acolhida, incentivada e mesmo exaltada por um certo número de Estados, especialmente a partir dos anos 70. Estas considerações justificam a denominação da nossa época por alguns estudiosos como a «Segunda Grande Transformação» do mundo socioeconómico. Será possivelmente tão decisiva nas suas consequências histórico-mundiais como a «Grande Transformação» iniciada em meados do século XVIII, analisada por Karl Polanyi na sua obra epónima de 1944, e ainda mais talvez no seu impacto ecológico planetário. Foi a partir dessa viragem, da Grande Transformação, que o Homem se tornou um agente geogónico de primeira ordem, inaugurando uma época geológica que foi denominada recentemente o Antropoceno: foi a partir dos fins do século XVIII que o consumo de combustíveis fósseis se tornou um factor significativo para a acumulação de CO2 na atmosfera. Devemos notar que o impacto humano na biosfera, ou, por outras palavras, o nosso «tecnometabolismo» (Boyden 1987) com a biosfera, através do nosso consumo de energia, só nos sessenta anos desde 1950, ultrapassa o total acumulado do impacto da nossa espécie em toda a sua História prévia, portanto mesmo o impacto entre 1750 e 1950. O contributo antropogénico para a mudança climática deve-se aos padrões dominantes de consumo, de bens intensivos em energia na sua produção (ainda mais com os transportes), e ao tecnometabolismo, à intensidade energética, petroquímica, na sua maioria, de produtos sem fim. Estes processos afectam também cada vez mais a litosfera, a biosfera, a atmosfera, a hidrosfera (em breve abraçando os oceanos nas suas profundidades), o Árctico,6 enfim todo o «Sistema Terra», exigindo grandes empreendimentos de

5 Parafraseando e estabelecendo um paralelo com os termos da ciência económica, já dos anos 20, capital widening and deepening. 6 Um exemplo de como a luta pela energia de hidrocarbonos está na fase extrema, extrema pelas grandes dificuldades geofísicas ou climáticas de acesso aos jazigos em questão, e pelas dificuldades geopolíticas de exploração em zonas de conflitos violentos e de ditaduras cleptocráticas, ou pelo menos em zonas geopolíticas onde podem ocorrer graves conflitos internacionais (Klare 2009).

255

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 256

Hermínio Martins

geoengenharia para o controlar, 7 e o espaço exterior (que já conta com grandes e crescentes quantidades de «lixo espacial», que é devolvido aos terráqueos de vez em quando). As intervenções humanas por esse meio, ou pela desvegetação e desflorestação, desembocaram no que alguns cientistas caracterizam em termos ecológicos como o «Homogenoceno», uma grande redução da diversidade biológica através do planeta, a Sexta Grande Extinção na história da vida, devido directamente ou indirectamente à «espécie imperial». Sucintamente, como disse o biólogo N. Eldredge, a espécie humana ocupa hoje, devido às suas próprias actividades tecnoeconómicas, pela primeira vez na história um único ecossistema, um privilégio bastante duvidoso. Parece-me razoável caracterizar as nossas sociedades como tecnomercantis, num sentido radical, dada a crucialidade das transformações tecnológicas em curso para a continuação do crescimento económico, hoje com a exigência de ser «sustentável», e a fomentação de novos mercados, sem falar da amplitude e profundidade das implicações ecológicas que referimos. Quem diz mercado, hoje, diz tecnologia, e, tendencialmente, o converso. No entanto, devemos certamente ter em conta que esta reciprocidade tem sido contida pelas mitigações da gratuitidade do Open Acess ou open source, em vários domínios, em que a partilha dos «bens digitais», a «riqueza das redes» (em vez de a «riqueza das Nações» ou a «riqueza da Natureza»), salvaguarda algum espaço para os «comuns electrónicos», ou os «comuns digitais», e poderá mesmo constituir uma «economia da dádiva» ao lado da economia de mercado, do capitalismo de investidores/accionistas 8 dominante (Benkler 2006; Leadbeater 2008; Lessig 2004; Raymond 2001). E «tecnologia» significa invenção/inovação tecnológica permanente facilitada pelos comportamentos em conformidade com a «Lei de Moore» e outras «leis» complementares, representada se não por novos produtos, por novas «gerações», versões 2.0 ou 3.0, ou pelo menos upgrades. O horizonte de expectativas neste domínio é dominado pelo discurso de «Revoluções» tecnológicas ou tecnocientíficas, como a Revolução Informacional, a Revolução Digital, a Revolução Molecular, a Revolução Biomolecular, a Revolução Biogenética, a Revolução Biolítica, 7 Toda uma série de grandes projectos, merecendo talvez o nome de mega-geoengenharia, especialmente tendo em vista o controlo do aquecimento global, foram concebidos nos últimos anos. Alguns vão ser experimentados nos próximos anos, como o PICE. Alguns projectos de geoengenharia serão talvez razoáveis e modestos para a mitigação do aquecimento global. 8 O «capitalismo total» na frase do empresário e estudioso J. Peyreval.

256

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 257

O homo mercator e o princípio de electividade

a Revolução Reprodutiva, a Revolução Reprogenética, a Revolução de Dados, a Revolução da internet, etc. Tipicamente, os bens e os serviços de consumo de massas (que se tornam necessidades, prioridades mesmo no orçamento pessoal ou familiar dos mais desfavorecidos, como foram a televisão, os telemóveis, e hoje os smartphones), mesmo os mais banais, são gerados por processos tecnologicamente sofisticados, baseados na física quântica, na microelectrónica e na fotónica, na genética molecular, na nanotecnologia, nas tecnologias de informação, etc. Cada «produto» representa o desfecho de modificações tecnológicas iterativas e recursivas, e cada vez que ocorrem essas modificações conta-se com «valor acrescentado», ou seja, novos fluxos monetários, novos rendimentos de capital: de certo modo consumimos tecnologia, mesmo no caso dos alimentos, o que é ainda mais óbvio no caso dos «nutricêuticos» (combinando alimentos e químicos farmacêuticos) e da «gastronomia molecular». Veja-se também como instrumentos-chave da vida quotidiana, como o computador e mesmo o telemóvel, serviam inicialmente finalidades limitadas, mas hoje providenciam numerosas e crescentes funcionalidades (especialmente nas sucessivas versões iPhone, com as centenas de milhares de apps. propiciadas, e muitas mais por vir, para todas as idades praticamente, algumas já para bébés de três meses), tipicamente subutilizadas, mas irrecusáveis, como também no caso dos automóveis, com capacidades muito para além do necessário, exemplificando o princípio de «maximalidade tecnológica», formulado pelo filósofo americano Robert McGinn (Martins 2006). Com os avanços das tecnologias computacionais todos os objectos e ambientes físicos se tornam inteligentes (smart), cada vez mais inteligentes, com interligações cada vez mais amplas entre si , sem mediação de humanos, culminando na «internet das coisas», e, através da ubiquidade de sensores, numa info-esfera global, com uma espécie de sensorialização do planeta. Imputamos a capacidade de auto-infinitização tanto à tecnologia como aos mercados, ou pelo menos apostamos tacitamente na continuação do crescimento exponencial, superexponencial mesmo, segundo Ray Kurzweil – das tecnologias de informação, que na sua capacidade de «metatecnologias», poderão monitorizar e potenciar todas as outras tecnologias e até, superando os paradoxos de auto-referência, a si próprias.

II As economias de mercado dependem da institucionalização de uma série de liberdades mínimas, entre as quais a liberdade de escolha dos consumidores e a liberdade de escolha de profissão, sem falar das liber257

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 258

Hermínio Martins

dades e dos direitos com respeito à propriedade. Para além destas liberdades mínimas não se pode prever mais, como os casos de autoritarismos de mercado de direita (o Chile de Pinochet) e do leninismo de mercado da China, demonstram suficientemente. As democracias liberais de mercado, no entanto, continuam a professar a validez das liberdades do liberalismo clássico, a liberdade de pensamento, de expressão, de associação, de reunião (nos espaços físicos, e não só no ciberespaço), condições necessárias para a vida cívica em democracia ou numa ordem liberal. Mas proclama-se mais genericamente, e sem referência especial à vida cívica, a liberdade de escolha de tudo e de todos (dentro do que está nas prateleiras dos supermercados, os banais, e os não-banais, como o «supermercado genético» e outros supermercados do enhancement humano em termos de drogas, próteses, implantes),9 a supremacia das opções pessoais, sem os constrangimentos das tradições e dos tabus, independentemente da alegada autoridade moral de quem quer que seja, a liberdade de recusar qualquer juízo de valor exterior sobre qualquer assunto, qualquer opinião ou comportamento, pura e simplesmente, e muitas vezes mesmo a autoridade científica ou biomédica, pelo menos nas suas versões mais exclusivistas (a própria palavra «judgmental» é pejorativa em Inglês coloquial: «non-judgmental» seria a atitude correcta praticamente todo o tempo). No liberalismo clássico europeu, essas liberdades foram defendidas de acordo com o princípio kantiano da autonomia da consciência moral (legitimado também por Renouvier, Durkheim e outros teóricos da educação moral e cívica laica da Terceira República francesa),10 o sentimento profundo da dignidade humana,11 e o culto do carácter sagrado da pessoa humana, o único culto necessário, indispensável e possível que as sociedades modernas poderão partilhar, segundo a sociologia durkheimiana. Na prática, o critério do «utilitarismo de preferências», a satisfação das preferências individuais, quaisquer que sejam (embora de facto as nossas preferências possam ser descobertas a posteriori, manipuladas, muito indefinidas, ou latentes, e o conceito de «escala de preferências» bem orde-

9 Sobre o «supermercado genético», ver Nozick 1974 (Nozick parece ter cunhado a expressão); e a apologia praticamente sem limites, para tudo e todos em Gavaghan 2007. 10 Com alguns reflexos na I República Portuguesa. Os escritos de John Stuart Mill sobre a educação frisam a importância do que se poderia chamar um «humanismo secular», uma versão liberal da «religião da humanidade». 11 No entanto um autor muito lido, grande expoente da psicologia evolutiva, professor prolífico de Harvard, Steven Pinker referiu-se há tempos à ideia da dignidade humana como uma ideia estúpida.

258

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 259

O homo mercator e o princípio de electividade

nada em termos de transitividade é simplesmente uma ficção metodológica), prevalece sobre o princípio do utilitarismo benthamita sobre a maximização do bem-estar do maior número ou pelo menos a maximização do bem-estar como critério da avaliação moral das acções, sem falar do imperativo categórico kantiano, da autonomia moral assim definida. Nos últimos anos, intermitentemente, alguns conselheiros dos governos do Reino Unido têm sugerido que o Estado se devia encarregar de promover a felicidade pública, devido menos a uma reconsideração da herança de Bentham do que ao surto da «economia da felicidade» (entendida como «o bem-estar subjectivo»),12 como um ramo dos estudos económicos/econométricos nas universidades britânicas e americanas.13 Seja como for, queremos escolher livremente, em todos os domínios da vida, sem ter de seguir cegamente ou piedosamente os mandatos da tradição, dos usos e costumes, do «ontem eterno», ou de qualquer autoridade, antiga ou nova, pessoal ou colectiva, carismática ou racional (mesmo do «carisma da razão»): em suma, tacitamente, ou explicitamente, agimos em conformidade com uma espécie de «princípio de electividade» como lhe chamou o sociólogo ítalo-argentino Gino Germani, na sua teoria da modernidade, privilegiando a escolha livre de tudo e todos, pelos indivíduos, que se torna a expectativa e exigência de base, por assim dizer (Germani 1960). Mas não se aplica só ao domínio do social ou do cultural, como nos tempos do liberalismo clássico, pois o escopo do domínio da electividade alarga-se constantemente, por meios, e numa escala, completamente imprevistos e impensados pelo liberalismo clássico e pelas doutrinas éticas associadas ao liberalismo. Graças a novas tecnologias que nos permitem escolher o que até recentemente não podia ser matéria para escolhas, só para sonhos e veleidades, decorrendo de processos naturais completamente fora do nosso controlo, sujeito a lotarias genéticas e outras, como, por exemplo, na área da reprodução, o sexo dos nossos filhos, ou ter filhos genéticos de pais ou mães mortos anos antes (o limite do tecnologicamente possível poderá aumen12 Um polímato notável, economista, sociólogo, filósofo, Otto Neurath, já tinha formulado um programa de estudos interdisciplinares nos anos 30 que denominou «felicitologia», mais amplo do que a «economia da felicidade» nos termos de «hoje. No entanto, a sociologia da felicidade não tem florescido em termos de publicações, ou de cursos. 13 O «utilitarismo de preferências», de facto, corresponde muito bem à análise económica dominante em que o conceito de «preferências», especialmente na forma de «preferência revelada», acima de tudo nas compras dos consumidores individuais, é absolutamente crucial, e que praticamente equivale ao de «escolha», metodologicamente decisivo e valor consagrado e legitimador (no entanto, desde um texto de 1913 de Otto Neurath sobre a escolha sem preferência, não podemos ignorar o facto de que não se equivalem).

259

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 260

Hermínio Martins

tar neste domínio significamente, até para bem além da procura), ou o «perfil genético» dos nossos filhos, os designer babies. A zona de electividade, já intoxicante pela sua grandeza e variedade, a extensão da área onde podemos escolher segundo as nossas «preferências», onde anteriormente seria impensável intervir, parece aumentar constantemente, com os avanços da tecnologia (especialmente das tecnologias moleculares ou da NBIC, sigla inglesa das tecnologias do mundo nano, engenharia biológica, informacional, cognoma, biológicas, nanobiotecnologia, da reprogenética, mas num futuro próximo da neuroengenharia também) ou da tecnoeconomia, e uma constante adiaforização ou neutralização das práticas com respeito ao que se considerava sagrado, ou interdito por vagas intuições morais, pelo resíduo de tabus vetustos, ou por leis anacrónicas.14 (Os limites tecnológicos de hoje à nossa autocriação ou autorecriação individual, por várias engenharias biomédicas, genéticas, genómicas, epigenéticas, morfológicas, ou neurológicas, parecem ser ultrapassáveis a longo prazo.) Nas «repúblicas da escolha» livre» 15 (que 14

Persiste inelutavelmente, no entanto, a assimetria de sermos capazes de escolher os nossos filhos biológicos, dentro de certos limites, mas não podermos escolher os nossos pais biológicos. Além da desinstitucionalização da família, pode também falar-se da «desnaturalização» da família, na medida em que uma proporção cada vez maior das famílias abrange stepchildren, sem laços genéticos com um ou outro dos pais, e filhos adoptivos sem laços genéticos imediatos com ambos os pais. Um fenómeno que exemplifica a mistura do natural e do artificial na reprodução humana é o número crescente de crianças que resultam da inseminação artificial por doadores anónimos. Já há casos de 150 crianças terem sido geradas por inseminação pelo mesmo doador de esperma, o que, distribuído por igual número de mães, significaria portanto 150 meios-irmãos biológicos. Um novo sultanismo genético, por assim dizer, ou uma espécie de poliginia reprodutiva virtual em grande escala. Ninguém pode emular Genghiz Kan hoje, excepto no que diz respeito à inseminação, pois a «indústria de fertilidade» propicia a alguns doadores façanhas semelhantes. A «indústria de fertilidade» tem funcionado como um mercado livre nos EUA, e resiste a regulação. Mesmo os que incentivaram o florescimento desta indústria começam a preocupar-se com as consequências para o gene pool destes desenvolvimentos. Note-se que a preocupação de muitos filhos de doadores em saber quem são ou foram, e mesmo encontrar os seus pais biológicos, foi uma surpresa para muitos bioeticistas, que tinham estipulado o anonimato dos doadores como uma regra sadia para estimular este mercado. 15 Seguindo o título de um livro americano, The Republic of Choice (Friedman 1990). Segundo este autor, o individualismo contemporâneo é completamente diferente do individualismo do século XIX (o mesmo se poderia dizer com respeito ao liberalismo do século XIX e as suas mais recentes formulações), com a sua ênfase na autodisciplina, no autocontrolo, na ética da responsabilidade individual e colectiva. Para o individualismo hodierno, que não critica, o que conta acima de tudo é a escolha individual, sempre revisável, sem compromissos duráveis com outros, à solta, por assim dizer, free-floating. Para a doutrina de filosofia política denominada «republicanismo», que goza hoje de uma certa renascença entre filósofos da polítca, com alguma influência sobre políticos, a expressão «republic of choice» implica um oximoro.

260

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 261

O homo mercator e o princípio de electividade

pode assumir o carácter de «hiperescolha»), onde supostamente o princípio de electividade é consagrado, em princípio, gozamos, ou devíamos gozar, não só das liberdades mais prezadas dos economistas, como a liberdade de escolha de profissão ou de bens de consumo (para alguns libertários consequentes, a «soberania do consumidor» pode e deve substituir a «soberania do povo», um mito político nocivo),16 mas de muitas outras liberdades, como a liberdade de escolha de parceiros entre adultos (com algumas restrições legais mínimas, enquanto uma ou outra forma de tabu de incesto ainda perdurar), a liberdade de exprimir opiniões, a liberdade de pensamento, a liberdade de religião ou irreligião, a liberdade de viajar dentro e fora do país,17 de mudar de nacionalidade, de mudar de nome,18 etc. São liberdades clássicas, defendidas pelo liberalismo burguês novecentista, embora a escolha livre de esposos fosse impedida devido às restrições legais ao divórcio que existiam em muitos países ocidentais, que hoje tendem para a promulgação do divórcio quase instantâneo, praticamente sem necessidade de justificação, simplesmente a pedido de um dos esposos; a liberdade de viajar na Europa sem passaporte acabou em 1914 com a morte da Europa Liberal.19 Claro que surgem restrições como as que dizem respeito ao «hate speech», ou ao assédio sexual, ou o «assédio moral» no trabalho, etc., e as leis liberticidas na sequência do 9/11 (11 de Setembro de 2001), mas sente-se sempre a necessidade de as justificar em termos do direito público ou da «segurança nacional» (existe no entanto a censura informal do «politicamente correcto»).

16 Uma fórmula equívoca, errónea ou mitológica para muitos liberais, senão quase todos os liberais. Talvez seja eliminada nas próximas décadas das constituições das repúblicas democráticas. 17 A exigência do passaporte interno, quer dizer, para viajar dentro do país, ao cidadão nacional, ainda vigorou, pelo menos no papel, em alguns países ocidentais até meados do século XIX, mas continuou, e não só no papel, na Rússia csarista e bolchevique e até depois do colapso do comunismo (os com sorte dispõe de dois passaportes, um para viajar for a do país, outro para viajar dentro do país). 18 No entanto, as restrições oficiais quanto à possibilidade legal de mudança de nome têm sido consideráveis, por exemplo, com respeito aos primeiros nomes que se chamavam nomes cristãos (nomes de santos e outros nomes canónicos), e mesmo nas repúblicas laicas, por outras razões, como por exemplo a aversão oficial contra nomes estrangeiros, especialmente plebeus. As restrições oficiais aos padrões de nominação dos recém-nascidos também têm estado a diminuir. A substituição de nomes pessoais por números, que foi descrita em várias distopias do século XX, como a de Zamyatine, nos primeiros anos do regime bolchevique, e ocorre em instituições carcerais, ainda não se generalizou nos estados contemporâneos europeus, surpreendentemente. 19 Excepto que dentro da União Europeia os cidadãos dos Estados-membros podem viajar com os seus bilhetes de identidade nacionais.

261

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 262

Hermínio Martins

As restrições ao consumo de certos bens nas democracias de mercado em tempo de paz, excepto em situações de emergência, defendem-se, em geral, em termos da saúde pública, ou da salvaguarda da saúde das pessoas individualmente, da «saúde e segurança», como as restrições legais à venda de tabaco, álcool ou drogas psicotrópicas, ou do pudor público, como as restrições à pornografia. Mesmo assim, todas essas restrições são objecto de ataques, não só pelos interesses comerciais em jogo, mas por libertários e liberais, em nome da livre escolha, contra o «paternalismo» (palavra feia, mas quase toda a gente evita falar de «maternalismo», embora exista, ou existiu, uma escola de «feminismo maternalista»), contra o «Estado-ama» (Nanny State), o que de facto terá mais sentido se se privatizarem os cuidados de saúde radicalmente, embora as externalidades negativas para a saúde pública do consumo de tabaco, por exemplo, não sejam tomadas em conta. Para os mais influentes defensores destas restrições trata-se de um «paternalismo leve» (Cass Sustein). As restrições podem ser defendidas em outros termos, como pelo «perfeccionismo liberal», o comunitarismo, o republicanismo e outras correntes de pensamento ético-político: no entanto, as objecções mostram até que ponto o liberalismo político ou económico se tornou libertário, o que não era o caso com pensadores como Aron, Berlin, Popper ou Dahrendorf. Outras liberdades, outras consagrações e legalizações da escolha livre, outros direitos em ainda outros domínios têm sido reclamados mais recentemente. De facto, ocorreu uma «revolução de direitos humanos», e de certo modo uma «revolução de direitos» tout court, uma inflação da linguagem de direitos (humanos e não-humanos).20 Mas as liberdades e os direitos promulgados em anos recentes representam só um subconjunto destas reclamações. Entre estas, podemos listar: a liberdade de escolher o género, que se tornou não-adstritivo, e de o mudar, até mais do que uma vez; a liberdade de optar na vida pessoal entre as 23 sexualidades já distinguidas 20

Na filosofia política americana, a centralidade dos direitos talvez seja um reflexo das peculiaridades da ordem constitucional do país, pois, estritamente, o utilitarismo, certamente o utilitarismo clássico de Bentham, como doutrina ética rejeita a categoria de direitos, certamente de direitos inerentes à pessoa humana ou de «direitos naturais». Para além dos direitos humanos, os direitos dos animais em geral ganharam ampla aceitação (embora muitas vezes se confundam os direitos dos animais com o bem-estar dos animais, que representam duas escolas de ética bem diferentes), o idioma «direitos da Natureza» tem sido amplamente aceite, e os direitos de entidades abióticas, como as paisagens ou «monumentos naturais» têm sido defendidos. No entanto é perfeitamente legítimo afirmar a importância do «respeito pela Natureza», e os nossos deveres mesmo com respeito à Natureza abiótica sem imputar directamente direitos a essas entidades (possivelmente só a noção mais fraca de «considerabilidade moral», quer dizer, como merecendo ser considerados, levados em conta, numa avaliação ética global das acções humanas com efeitos no meio ambiente).

262

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 263

O homo mercator e o princípio de electividade

por uma comissão australiana, ou mesmo de as combinar, ou de as permutar através do tempo, pois além da banal «monogamia/poligamia sequencial», expressão sociológica consagrada há décadas para identificar o padrão de casamentos e divórcios sucessivos nos EUA, poderíamos falar também das «polissexualidades sequenciais», que ganharam um pouco mais de espaço; o direito legal ao sexo indeterminado, uma categoria legal que se aplica hoje aos passaportes australianos, e o direito de assumir um sexo que contradiz as aparências fenotípicas, também reconhecido agora na Austrália; 21 a liberdade/direito de procriar, não procriar, ou desprocriar (pela IVG, não pelo infanticídio ou neonaticídio, ou pelo aborto selectivo de embriões simplesmente pelo seu sexo), também chamada «liberdade procriativa»,22 «liberdade reprodutiva», ou «autonomia reprodutiva» (Dworkin 1993); a liberdade de nos matarmos, com a descriminalização do suicídio (ainda sujeito a sanções pela indústria de seguros), embora ainda não a do «suicídio assistido», e talvez mesmo a de nos amputarmos (o estatuto legal da auto-imputação parece obscuro); a liberdade/direito de optar pela eutanásia (ou a «morte assistida por médicos») em certas circunstâncias, tópico de crescente interesse nas sociedades com proporções cada vez maiores de idosos, cuja qualidade de vida pode degradar-se significativamente (como noutros casos, as liberdades implicam deveres, tal como os deveres dos profissionais de seguir a vontade expressa e bem informada dos que escolheram a eutanásia, contra a sua consciência, o dever de deixar morrer, ou muito simplesmente, de acordo com alguns bioeticistas, o dever de morrer, como complemento deontológico ao direito de morrer).23 E também a 21

No Reino Unido a proposta de eliminar a entrada para «sexo» nos passaportes dos seus cidadãos chegou a ser considerada seriamente nos meios políticos. Devido a certas obrigações internacionais, ficou-se por uma medida mais limitada. A entrada fica, mas todos podem simplesmente registar um X, sem identificar o sexo/género a que pertencem, ou a que querem pertencer, ou que querem assumir normalmente. 22 Evocada em casos de conflito entre os pais biológicos sobre o destino dos embriões congelados, como resultado da fertilização artificial (FIV), umas centenas de milhares através do mundo, uma quantidade que irá aumentar significativamente nos próximos anos. Em alguns países, o consentimento dos dois pais biológicos é exigido para a implantação, mas num caso recente na Argentina os tribunais decidiram que a vontade da mãe, mesmo divorciada há anos do pai biológico, seria suficiente, não obstante a oposição do antigo marido, que não queria assumir qualquer responsabilidade pela criança futura, já que o vínculo com a mãe potencial tinha desaparecido. 23 Na bioética, as disputas sobre os critérios de determinação da morte humana não podem ser eliminadas pela decisão biomédica ocidental de optar pela morte cerebral como o critério soberano, ou o único racional. Mesmo o critério de morte cerebral aplica-se com significativas variações em diversos países, e no mesmo país entre hospitais e clínicas diferentes, com implicações, por exemplo, para a selecção de candidatos para a extracção de órgãos para transplante.

263

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 264

Hermínio Martins

liberdade, ou o que poderíamos chamar a metaliberdade, ou liberdade de segunda ordem, de mudar as nossas escolhas (quando não forem absolutamente irreversíveis), sobre qualquer dos seus objectos, sérios ou frívolos, a qualquer momento, sem necessidade de as justificar a quem quer que seja, se não nos apetecer (pelo menos como default, pelo menos em princípio): 24 embora muitas vezes esta liberdade seja defendida como um forma de «autonomia», não há absolutamente nada de kantiano nesta prática, que pode representar nada mais do que agir em conformidade com a imediatidade imperiosa das apetências,25 ou seja, a mais completa heteronomia moral do ponto de vista da ética kantiana, do princípio da soberania da razão moral.26 E há liberdades – direitos à livre escolha – ainda não conquistadas plenamente, nem sequer gozando da aprovação da maioria da opinião pública por enquanto, mas que se querem legitimar pelos mesmos critérios ou por analogia com os direitos já conquistados, com o apoio de bioeticistas proeminentes, sendo a defesa, mesmo a exaltação, de muitas variedades de «enhancement humano», um dos grandes temas da bioética «liberal» e do movimento trans-humanista. Liberdade e direitos à livre escolha, em função de novas possibilidades tecnológicas, biotecnológicas, reprogenéticas, biossintéticas (com respeito aos genes ou aos genomas), neurotecnológicas, de intervenção sobre seres humanos, não só para fins terapêuticos, mas para o seu enhancement, ou upgrading, a caminho dos Humanos 2.0 (e nesse caminho promovendo biomercados, a indústria de fertilidade, a engenharia genética humana e o mercado de alelos superiores, o neuromarketing, a neuroengenharia, etc.). Se chamarmos a do liberalismo clássico a primeira, e a segunda as da lista do parágrafo anterior, conquistadas depois da II Guerra Mundial, nos anos 60 e 70 em particular, poderíamos denominar este novo leque de liberdades/direitos putativas a Terceira Onda, pelo menos nos países da Europa Ocidental e nos EUA. Outras ordens de direitos têm sido reinvidicadas no antigo Terceiro Mundo, como os direitos culturais, os direitos ambientais, o di24 No entanto, o próprio conceito de «arrependimento» parece estar em vias de extinção: fala-se quase exclusivamente de «erros» cometidos, como se se tratasse simplesmente de questões cognitivas, dos resultados de cálculos mal feitos, de decisões baseadas em informações incorrectas (muitas vezes, na linguagem política oficial, «erros» equivale a um eufemismo grotesco para crimes, chacinas, democídios). 25 Modificando uma frase de Robert Merton: «the imperious immediacy of interest». 26 Recentemente, um discípulo de John Rawls procurou demonstrar a existência de um código moral universal comparável à Gramática Universal de Chomsky (Mikhail). O princípio de electividade e a «república da escolha» surgiriam como anomalias, mas que parecem gozar de um certo staying power.

264

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 265

O homo mercator e o princípio de electividade

reito à água, etc.: importantíssimos como são, e muito relevantes também no Ocidente, vou focar neste breve texto os direitos humanos putativos mais «vanguardistas» do Ocidente, que ao contrário dos direitos mencionados são direitos individuais, e não colectivos, direitos tão estreitamente associados com certas novas tecnologias, que se poderiam chamar direitos tecno-humanos. Nesta terceira lista cabem, por exemplo: a liberdade de mudar de aparência física radicalmente, mesmo de a mudar num sentido zoomórfico, através de cirurgias repetidas, para além do que já ficou aceite na prática da cirurgia estética ou plástica,27 ou a «liberdade morfológica»; liberdade de mudar o nosso património genético (somático ou germinal), e possivelmente o dos nossos filhos biológicos, a liberdade, o direito, que alguns bioeticistas já consideram mais que um direito, como um dever moral, de transgeneticização, com o advento dos humanos geneticamente modificados, ou HGM, a acrescentar aos tão polémicos OGM; a liberdade de escolher o sexo dos nossos filhos (optando entre os embriões disponíveis na FIV), que por sua vez terão a liberdade de escolher o seu género desde a adolescência, qualquer que seja a definição parental inicial; 28 a liberdade de consumir nootrópicos para o cognitive enhancement, com vista, por exemplo, a obter melhores notas nos exames (defendida por muitos bioeticistas), ou talvez na concorrência académica, mas em geral como o direito de mudarmos, de aperfeiçoarmos, o nosso «cognoma», em paralelo com o direito de mudarmos, de melhorarmos, o nosso genoma, ou pelo menos na medida do possível certos genes/alelos (em ambos os casos há bioeticistas que defendem a tese de que não se trata só de direitos, mas mesmo de deveres); o direito ao doping, especialmente no caso dos atletas, dado que o controlo das drogas se tornou vexatório e ineficaz, e o direito às próteses dos desportistas (questão que se colocou pelos êxitos de deficientes em certos desportos devido ao seu equipamento electromecânico); a liberdade de consumir drogas psicotrópicas à vontade, legalmente, liberdade esta também defendida como «liberdade 27 Já se afirmou que o acesso à cirurgia plástica ou estética, com a intenção de melhorar a aparência física das pessoas segundo os cânones fenotípicos locais, devia ser um direito social, possivelmente grátis ou a preços baixos para as camadas mais desfavorecidas (não só para as vítimas de acidentes, ou crimes contra a integridade física das pessoas, por exemplo). 28 Em algumas famílias europeias iluminadas, os pais recusam-se a definir o sexo dos filhos de qualquer modo, nas formas de tratamento e no comportamento, em termos da roupa, dos brinquedos, etc. Portanto partirão talvez do sexo neutro para um sexo definido, a não ser que consigam viver num meio sem sexo/género, e nesse caso não terão a necessidade de se definir neste respeito.

265

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 266

Hermínio Martins

cognitiva», ou o direito aos estados alterados da consciência por vias de drogas, não só episodicamente, mas como opção existencial, como forma de vida global, nas pegadas de Timothy Leary, guru da contracultura. Representam – o que provavelmente ninguém contesta – passos no caminho para a trans-humanização (o que não quer dizer que este desfecho seja inevitável ou predeterminado por estas práticas, muito generalizadas, mas não universais, em países como os EUA e o Reino Unido). Naturalmente, os seus defensores mais acérrimos são os bioeticistas, filósofos e publicistas trans-humanistas, o que justifica denominá-los «direitos trans-humanos».29 De facto, alguns deles afirmam mesmo que não só temos o direito, mas também o dever, a obrigação, como agentes morais esclarecidos, de nos esforçarmos o melhor possivel para perseguirmos o objectivo de nos trans-humanizar (pelos meios biotecnológicos, reprogenéticos, neurológicos, no caso do aperfeiçoamento biopsíquico ou de Inteligência Artificial, para a passagem à existência virtual), ou pelo menos de assegurar as condições para a nossa progénie, ou uma subespécie da nossa espécie, o poder fazer. Se, de facto, como tem sido afirmado, temos o dever moral, a obrigação moral de nos aperfeiçoarmos geneticamente, neurologicamente, em termos de cognoma, etc., então a implicação lógica dessa tese seria a de que já não temos o direito de permanecermos simplesmente humanos, ou, numa linguagem mais simples, não temos o direito de sermos humanos hoje, ou mais propriamente, não temos o direito de continuarmos a ser meramente humanos. Pelo menos, desde que começarmos a ter acesso aos meios de enhancement genético, por exemplo, seria imoral, seria falhar no cumprimento de uma obrigação moral, não optarmos por eles – segundo esta perspectiva trans-humanista. Seja como for, há vários biomercados humanos ainda não reconhecidos pela lei, mas que o poderão ser, como a venda de órgãos do nosso corpo (o que pelo menos reconhece que somos proprietários do nosso corpo, o que é negado pelos interesses comerciais em relação aos nossos genes, pelo menos com respeito aos mais de 20% dos genes humanos já patenteados ou com patentes associadas, percentagem que poderá crescer nos próximos anos: Koepsell 2009). Se assim for, o leque das nossas liberdades de escolha será ainda mais ampliado na era tecnomercantil radical. Mas obviamente todas as escolhas são constrangidas pelo universo de mercados dentro do qual vivemos, directa ou indirectamente, mesmo quando nos senti-

29

Um autor de trabalhos importantes de filosofia política escreveu recentemente, esboçando um programa para a Esquerda hoje, que a «divinização da humanidade é mais importante que a humanização da sociedade» (Unger 2009). Uma frase que nos deixa perplexo.

266

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 267

O homo mercator e o princípio de electividade

mos vítimas da «hiperescolha» superabundante, do l’embarras du choix, somos obviamente criaturas de modas, mais do que gostaríamos de pensar, sem excluir de maneira nenhuma os intelectuais e os académicos.30 Mercados que cobrem praticamente toda a vida humana: corpos, mentes, memes, órgãos, gâmetas, fertilização, gestação, genes, genomas, cadáveres, recordações, gostos, sentidos, sonhos, fantasias, desejos, prazeres, dores, emoções, opiniões, crenças, descrenças, religiões, aptidões, disfunções, identidades, imagens, capacidades ou incapacidades de toda a ordem, como a atenção, a memória e o esquecimento (e cada um dos mercados em questão promove tecnologias ou engenharias elaboradas para o efeito, ou em conjunção com as actividades comerciais respectivas, tal como a engenharia biológica, a reprogenética, a neuroengenharia e o neuromarketing, a gastronomia molecular, a «engenharia religiosa»). Não podemos obviamente optar por um mundo não-mercantil, não-empresarial, não-tecnológico. Optamos pelas mercadorias nos empórios reais ou virtuais, ou somos seduzidos pelas indicações das tecnologias que surgem, mas a expressão das «preferências» pelas «compras» que fazemos, dos «produtos» que obtemos (seja no mercado de telemóveis, de automóveis, de universidades, das religiões, das viagens, das promessas de salvação, das técnicas de meditação, das dietas milagrosas, e um sem-fim de outros) não revela qualquer conscientização profunda do eu, antes pelo contrário. As teses da unitaridade ou permanência do eu parecem bem duvidosas, rejeitadas pelo mainstream da filosofia da mente, em que o eu numenal de Kant ou o eu transcendental de Husserl não gozam de direitos de consideração. No entanto, a ciência económica postula a unitaridade dos agentes, a consistência e relativa estabilidade das «preferências» como ficção metodológica indispensável, certamente a ficção didáctica mais cómoda e rentável. De qualquer modo, o eu hodierno reconhece-se como mais do que simplesmente mutável (le moi ondoyant et divers de Montaigne), como «proteico», como assim foi classificado por alguns psicólogos da vida americana (Lifton 1993). Sempre o foi, e sempre nos demos conta disso, dir-se-á. A novidade consiste na fluidez inebriante vinculada aos mercados de bens de consumo, às modas e trends nos estilos e nos gostos, dos «produtos» novos, da tempestade permanente de «criação destrutiva» nos mercados, ou pelo menos pela obsolescência, programada ou não, de tantos «produtos», obsolescência devida em parte aos «bens 30 Um moralista francês do século XVIII, Vauvenargues, notou que a necessidade elimina o embarras du choix. Outro moralista francês coevo, Charles Duclos, constatou no seu livro Considérations sur les moeurs de ce siécle, publicado em 1751, o despotismo das modas intelectuais entre as pessoas cultas do seu tempo. O que continua hoje, e não só em França.

267

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 268

Hermínio Martins

posicionais», que se multiplicaram com o crescimento económico e que por sua vez o incentivam (um dos feedback loops centrais das economias de mercado contemporâneas).

III A relação binária que tende a prevalecer em todas as esferas da vida social, a arqui-relação, a matriz (template) de todas as relações fora da esfera privada, pelo menos tendencialmente, é a de empresa, ou dos seus agentes (vendedores, providers) e cliente (customer), a relação entre vendedor e comprador de bens e serviços (onde se dizia «paciente» diz-se customer; onde se dizia «viajante», diz-se customer; onde se dizia client – no sentido inglês – diz-se customer; onde se dizia «visitante» de um museu, diz-se customer; onde se dizia patron de um cinema, diz-se customer hoje, e cada vez mais onde se dizia «estudante», ou «aluno», também se dirá – já se diz – customer (o professor será um provider, como em qualquer outro campo de relações comerciais).31 Por exemplo, muitas cartas de agências do Estado no Reino Unido dirigem-se a cidadãos desse país em resposta a um pedido de renovação de passaporte, como «caro cliente» (linguagem que, até recentemente, faria pensar que o Estado se tornara numa empresa, ou consórcio de empresas: UK PLC): tratar os cidadãos como clientes/fregueses, esvaziando o próprio conceito clássico de cidadania. No Reino Unido somos «clientes» (fregueses, customers) dos nossos médicos,32 dos nossos professores, dos nossos estudantes, mesmo dos polícias,33 assim somos tratados em todo o tipo de situações, mesmo onde, de facto, não ocorreu 31 Na língua inglesa a palavra «client» referia-se em particular às pessoas que recorriam aos membros das profissões liberais, como advogados, solicitadores, contabilistas, médicos particulares, psiquiatras, etc., com quem tinham relações fiduciárias (por exemplo, o que o «client» dizia contava como «comunicação privilegiada» que, pela deontologia profissional, não se podia revelar a terceiros, como nas confissões aos padres católicos pelo direito canónico), e o próprio pagamento era denominado em termos fora da linguagem comercial normal. 32 Depois de escrever estas linhas encontrei um artigo de dois médicos americanos precisamente sobre este tema, com respeito às mudanças na linguagem da medicina, que segundo eles, «têm consequências importantes e deletérias. As relações entre médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde e os pacientes ao seu cuidado são definidos agora em termos comerciais. [...] Os pacientes já não são pacientes mas ‘clientes’ (customers) ou ‘consumidores’. Os médicos e os enfermeiros foram transmutados em ‘fornecedores’ (providers). [...] palavras reducionistas [...] que ignoram as dimensões essenciais, psicológicas, espirituais e humanistas da relação – os aspectos que tradicionalmente tornavam a medicina uma «vocação» (calling)» (Hartzband e Groopman 2011). 33 Pelo menos em certas cidades inglesas, quando ligamos à polícia para nos queixarmos de uma agressão física, ou de um roubo, por exemplo, quem nos atende é o pessoal do customer services desk.

268

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 269

O homo mercator e o princípio de electividade

qualquer transacção comercial, e essa definição pode ter sido uma surpresa completa para o denominado «cliente», que esperava um tratamento bem diferente – mas é a fórmula que parece governar as mentes comercializadas em toda a parte. As formas de tratamento linguísticas interpessoais, como práticas discursivas, as «instituições ceremoniais», que Herbert Spencer no seu sistema de sociologia considerava fundamentais para qualquer ordem social, revelam muito, e neste caso, a difusão extraordinária desta fórmula manifesta a comercialização radical em curso que plasma todos os tipos de relações fora da esfera privada, com empresas de todos os tipos, com associações e instituições na sociedade civil, com o Estado. Todas as relações sociais não-mercantis, todos os vínculos afectivos inter-humanos, extramercantis, de adstrição (ascription), como a família, a comunidade ou o país natal, ou contratuais sui generis como a do casamento e da família que constituímos (aliás em plena desinstitucionalização), a amizade, as relações pessoais de todo o tipo, de curta ou longa duração, poderão ser contaminados pela ubiquidade da customership, pois com o tempo pensaremos tudo, quase automaticamente, pelo prisma desta arqui-relação, cada vez mais estruturante. Curiosamente, as nossas relações afectivas com os animais de estimação, ou os animais em geral, estarão talvez menos sujeitas, em geral, à mercantilização ou ao discurso-mercado, e a nossa preocupação com o seu sofrimento revela a «expansão do círculo» de consideração moral, já notada pelo historiador W. E. H. Lecky há mais de um século, e reconhecida como um critério do progresso moral (Lecky 1877). As relações afectivas de humanos com robôs já estão no horizonte de expectativas de muitos cientistas, pois, com as capacidades de Inteligência Artificial que lhes serão introduzidas, a questão dos seus direitos, análogos aos direitos humanos, terá de ser colocada mais cedo ou mais tarde.34 Já há teses de doutoramento em universidades muito respeitáveis sobre as relações afectivas, amizade, amor e sexo entre humanos e os robôs do futuro, gozando do estatuto moral e legal de pessoas, e do estatuto teológico de seres com almas.35

34

Tal foi a tese de Sir David King, conselheiro científico do Governo de Sua Majestade Britânica há poucos anos, avisando-nos de que dentro das próximas duas ou três décadas vamos ter de reconhecer os direitos cívicos dos robôs mais inteligentes. 35 Mesmo no caso de robôs pouco inteligentes, programados simplesmente para tarefas específicas, como o reconhecimento de explosivos, há notícia de que soldados americanos choraram quando os seus robôs auxiliares foram destruídos por IEDs no curso da sua missão de detecção dos IEDs.

269

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 270

Hermínio Martins

Os economistas já havia décadas que tratavam as relações intrafamiliares como simili-empresariais ou simili-mercantis: as crianças, por exemplo, como bens de consumo duráveis (Becker 1991), por assim dizer, gerando «rendimentos psíquicos» (psychic income) líquidos, pois os «custos psíquicos», por assim dizer as «internalidades negativas» 36 na nossa vida mental, são muitas vezes consideráveis, quando outrora contavam também crucialmente para a força de trabalho familiar. Mais recentemente, a linguagem dos políticos quando falam do «investimento» nas nossas crianças implica a visão delas como bens de capital, a dar rendimentos no futuro, pelo menos para a economia nacional, não para a familiar. Não só os economistas, mas também os sociólogos, os antropólogos e os politólogos, há décadas que salientam o papel crucial na análise social de conceitos como: capital humano (a primeira modalidade de capital não-económico ou não-monetário, no sentido mais directo, a ser identificada formalmente pelos estudiosos com esse nome), capital social (em sentidos bem diversos, em Pierre Bourdieu, Robert Putnam ou James Coleman, os três autores mais citados sobre este assunto, ou antes deles Peter Blau),37 capital cognitivo, capital não-material, ou capital-conhecimento (no chamado «capitalismo cognitivo», «capitalismo do conhecimento», «economia do conhecimento», «indústria do conhecimento», ou «economia baseada no conhecimento»), capital cultural. Mas há muitas outras outras variantes putativas de capital também focadas na literatura das ciências sociais nos últimos anos. Sem pretender construir uma lista exaustiva, contam-se pelo menos as seguintes: o capital conversacional, o capital intelectual, o capital mental, o capital não-material (essencial numa economia do immatériel, onde conta acima de tudo o software e a propriedade intelectual), o capital organizacional, o capital estrutural, o capital relacional, o «capital de aptidões credencializadas»,38 o capital 36 Contrastando com as muito estudadas «externalidades negativas» das nossas práticas económicas, especialmente sobre o meio ambiente, ou sobre a saúde pública. 37 Numa obra pouco citada hoje, Exchange and Power in Social Life (Blau 1964). Comentários interessantes sobre o conceito e a sua aplicação na análise sociológica da economia em Fukuyama (1997). 38 R. Perrucci e Earl Wysong, A New Class Society: Goodbye American Dream? (2007). Segundo estes autores, a posição de classe na América hoje é determinada em boa parte pelo acesso a quatro fontes de capital: capital de consumo, capital de investimento (poupanças), capital social (definido como a rede de contactos com pessoas em posições privilegiadas), e o «credentialled skill capital», ou o acesso às universidades de maior prestígio, e as vantages que daí decorrem. No Reino Unido tem-se falado muito da importância dos soft skills para a mobilidade social para além dos diplomas académicos, em parte para explicar como a expansão das oportunidades educacionais, especialmente o maior acesso às universidades, não tem sido acompanhada por um aumento significativo da ascensão

270

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 271

O homo mercator e o princípio de electividade

emocional, o capital político, o capital moral, o «capital erótico» (Hakim 2011), como assunto da «economia do sexo» ou da «economia da beleza»,39 o «capital fisiológico» ou capital biológico,40 o capital genético, o capital espiritual, o «capital literário» (Stern 2011), o capital religioso. Curiosamente, o capital financeiro, o arquicapital por excelência, pelo menos nas suas versões recentes, com os novos instrumentos financeiros ultra-sofisticados da última década, para além da monetarização e seu impacto na vida mental, social e cultural, estudada por Simmel no seu livro famoso, não tem sido objecto de muitos estudos sociológicos recentes, nem tem servido até agora como uma fonte importante de analogias e metáforas nas ciências sociais.41

social das pessoas de origem social nas camadas de estatuto socioeconómico inferior. Talvez se possa falar de uncredentialled skill capital ou simplesmente skill capital, neste contexto, a relativa falta do qual supostamente funciona como um factor negativo significativo na ascensão das pessoas de origem social modesta. 39 Uma série de estudos sobre a «economia da beleza» ou a «pulcronomia» (pulchronomics) mostrou que uma espécie de reflexividade conta para os economistas profissionalmente: segundo um estudo sobre as eleições ao Comité da American Economic Association, controlando variáveis como o género e a produtividade académica, os mais bonitos tiveram melhores chances de serem eleitos. Em estudos feitos em populações universitárias na América e na Alemanha, verificou-se que os professores com melhor aparência física (segundo os estudantes) recebiam melhores avaliações dos estudantes pelos seus cursos do que os outros, notas que contam para a determinação do salário, e que portanto têm valor pecuniário (Hamermersh 2003; 2011a; 2011b). Os profissionais mais bonitos ganham mais centenas de milhares de dólares através da sua vida profissional do que os outros: a aparência física conta no mercado de trabalho, e, curiosamente, mais a favor dos homens do que das mulheres (do mesmo autor, ver a summa de vinte anos de investigação sobre o assunto, Beauty Pays: Why Attractive People Are More Successful, Princeton, NJ, 2011). No entanto, segundo o mesmo autor, a cirurgia plástica ou estética não ajuda a ganhar um melhor salário. Já há legislação em vários estados americanos e em Washington DC proibindo a disciminação no mercado de trabalho na base das aparências físicas, acrescentando o lookism à lista dos «ismos» pejorativos como sexismo, racismo, idadismo (Rhode 2010). 40 Conceito do historiador da economia, laureado com o Prémio Nobel de Economia, Robert Fogel, nos seus estudos sobre a evolução dos níveis de saúde, BMI, esperança de vida, etc., nas sociedades industriais especialmente desde meados do século XIX. 41 Proudhon pensava que uma transformação do sistema bancário poderia ser uma das grandes alavancas para criar uma nova sociedade, uma sociedade mutualista e cooperativa. Mas trata-se de um pensador pouco referido nas histórias da sociologia, e pouco citado pelos sociólogos em geral. Outro autor importante sobre o papel das finanças na economia foi Gabriel Tarde num tratado de Psychologie économique, aliás referido simpaticamente por Hayek. A obra clássica de Sohn-Rethel não pode ser esquecida, como os trabalhos como Money, Language and Thought. Os estudos de neuroeconomia nunca se relacionam com a neurociência social.Os mercados financeiros têm sido objecto de importantes estudos de sociólogos, especialmente Donald MacKenzie, Michel Callon, e colegas associados aos seus trabalhos (Mackenzie 2006; MacKenzie 2008).

271

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 272

Hermínio Martins

Seja como for, as ciências sociais nos seus estudos mais à moda e/ou mais encorajados pelo poder político tornam-se cada vez mais Ciências do Capital, das modalidades do capital, tal como as enumerámos no parágrafo anterior, nas suas variadas incidências sobre a estruturação das classes sociais, das relações entre os sexos, as instituições e associações políticas e culturais. No entanto, é pelo prisma de um ou outro conceito ou pelo menos através de rubricas de «capital» que se estudam os fenómenos e processos outrora referidos como formas de socialidade. Também poderíamos denominar as Ciências do Capital como Ciências dos Mercados, sejam os mercados de trabalho, os mercados políticos, os mercados do conhecimento (onde a contestação das leis de propriedade intelectual envolve lutas constantes entre Estados e movimentos sociais), os mercados religiosos (a concorrência de religiões antigas e modernas, ou de versões de religiões antigas adaptadas ao mercado hodierno, por exemplo, confissões cristãs que evitam o símbolo da cruz, e cujos templos parecem imitar shopping malls), os mercados da moda (estilos, design),42 os mercados internacionais de gâmetas, órgãos humanos, ou de adopção, o mercado global de arte e artefactos culturais em geral, etc., pois o objecto de estudo é sempre um mercado, actual ou potencial, substantivo ou fictício, real ou virtual (a todas as modalidades de capital enumeradas no parágrafo anterior – social, relacional, cognitivo, etc. –, correspondem naturalmente mercados de produção e de consumo). Não se encontra hoje qualquer ordem de fenómenos estudada pelas ciências sociais que não se procure abordar pelo prisma universal das categorias microeconómicas/mercadológicas omnicompetentes, entre as quais sempre uma ou outra modalidade de «capital». E não só ciências dos mercados, ou ciências mercadológicas, mas também, até certo ponto, o que se poderiam chamar «ciências-mercados» em que a actividade científica se descreve nos mesmos termos isomórficos aos dos mercados comerciais e como se os cientistas fossem também individualmente «egoístas racionais», embora o produto colectivo das suas actividades como cientistas sejam bens públicos (cada vez mais sujeitos a privatização, e a contestação, no entanto). E ciências orientadas para os mercados, pois exige-se «impacto» aos académicos e aos seus trabalhos

42 Trends podem ser mesmo vistos primariamente em termos da moda, do design, do estilo nas roupas e nos produtos de beleza, em especial, embora o estilo e o design contem também para uma vasta gama de produtos, e o conceito de trends, importante na sociologia desde os anos 20, praticamente reduzido a este universo. Um caso de sociologia do marketing para o marketing.

272

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 273

O homo mercator e o princípio de electividade

como condição de sobrevivência, de preferência em termos de lucros de empresas, mas faute de mieux, a atenção dos media.43 Já há três décadas que economistas, pelo menos os estudiosos da economia ecológica, e biólogos, discursam sobre o «capital natural», isto é, a Natureza como manancial de bens e serviços para os agentes económicos com preços determinados pelo mercado (ou pelo menos imputáveis em mercados virtuais). A clivagem principal com respeito às abordagens do capital natural define-se pela oposição entre os economistas para os quais o capital natural seria substituível pelo capital artificial gerado pela acção humana, especialmente pela tecnologia, sem limites insuperáveis («em última análise podemos dispensar os recursos naturais»), e os que insistem na conservação do capital natural. A expressão «recursos naturais», paralela à de «recursos humanos», data de ainda antes, embora alguns biólogos queiram estipular «não-recursos» naturais, que não devem ser apropriados como se fossem «recursos» para a economia. Não parece ser possível pensar hoje o social, o cultural, a biosfera, a Natureza (ou a «semi-Natureza» que nos resta: Marris 2011), tudo o que se pensava estar fora do escopo do mercado, pelo menos essencialmente, sem recorrer a um ou outro conceito de capital, e mesmo a outros correlatos da análise económica, especialmente microeconómica, como investimento, acumulação ou desacumulação, utilidade esperada, custos marginais, utilidade marginal, custo de oportunidade, produtividade, funções de produção, rendimentos, equilíbrio dos mercados, externalidades. E não simplesmente como analogias heurísticas, ficções metodológicas, ou metáforas pedagógicas, das mais iluminantes talvez para os cidadãos de uma sociedade comercial 24/7, mas com toda a seriedade, como se assim pudéssemos finalmente ir ao fundo das questões (o equivalente do bottom line financeiro). Portanto, não serão só as ciências sociais que se reconstroem como ciências do capital, como também algumas das ciências naturais, pelo menos na medida em que, nas ciências da vida, o objecto de estudo se reformula como «capital natural», capital genético, ou fontes de biomercados. E é aos seres vivos que vamos recorrer cada vez mais não só para 43 A avaliação dos académicos no Reino Unido vai ser feita em parte em termos do «impacto» extra-académico dos seus trabalhos (agora denominados «outputs»). Por «impacto» não se entende somente as aplicações industriais, comerciais, biomédicas, militares ou policiais dos seus trabalhos, os mercados mais óbvios, mas também as suas citações nos media, entrevistas na imprensa, documentários na televisão, menções na rádio e outros media, etc. Não ficou claro até que ponto a publicidade desfavorável em grande escala através do mundo, como por exemplo a que a LSE sofreu com respeito às suas ligações com o regime de Kadhafi (Martins 2011), a ridicularização de alguns trabalhos na imprensa, casos como climategate, etc., contam para esta avaliação.

273

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 274

Hermínio Martins

as utilizações clássicas, mas até como fontes de energia, através dos biocombustíveis, de químicos, e de biomateriais, até para a computação, se eventualmente pudermos construir um computador quântico biológico, e de qualquer modo já se trabalha com biocomputadores genéticos na biologia sintética. Uma biologização crescente da economia que representa ao mesmo tempo uma intensificação da economização/tecnificação/mercantilização da vida, do mundo orgânico, organismos, genes, bactéria, fungos. Antes da Revolução Industrial prevalecia de facto a utilização de matérias orgânicas em sectores-chave da economia, e mesmo os transportes terrestres eram assegurados pela energia animal e humana. Desde então até recentemente, a utilização de minerais e de substitutos de matérias orgânicas tem prevalecido. Hoje cada vez mais se recorre pela genética molecular, pela biologia sintética, pela engenharia biológica à utilização industrial em grande escala do orgânico, como uma nova Era Bioeconómica, Bioindustrial, ou do Biocomércio, em que a bioenergia e a biomatéria, ambos controlados pelo acesso à bioinformação genética, contam cada vez mais num novo mundo tecno-orgânico, da artificialização do orgânico. O regime de acumulação do tecnocapitalismo contemporâneo tende a ser um regime de acumulação do biocapital, a capitalização dos organismos e processos vitais para biocombustíveis, medicamentos, químicos, etc., através da reprogramação de genes e genomas, entre outros processos. Nessas transformações podemos ver uma espécie de contrapartida do trans-humanismo, a superação tecnológica das limitações biológicas do homo sapiens: uma espécie de transvitalismo, por uma transnatureza biológica dedicada exclusivamente aos nossos fins. Uma vertente importante do trans-humanismo que exalta a superação do humano pela inteligência artificial segue um caminho que rejeita o aperfeiçoamento do orgânico, em termos de biologia humana ou animal, e a linguagem que usa mostra bem o seu desprezo pelo orgânico, referindo-se ao cérebro humano como meatware, fleshware ou wetware 44 44 Alguns trans-humanistas demonstraram recentemente uma grande preocupação com as bioarmas, mais fáceis de criar, com métodos acessíveis a muita gente a baixo custo, uns poucos milhares de dólares, com inputs que se podem comprar na internet que outros tipos de armas de grande letalidade, especialmente as nucleares (já foi demonstrado que se poderiam preparam vírus bem perigosos desta forma). Talvez tenham lido o guião do novo filme Contagion, onde a sobrevivência da humanidade fica em perigo devido a um novo vírus. O movimento de «biohackers de garagem», «biohackers de quintal» ou de «biologia de do-it-yourself», literalmente em garagens, quintais, armários, ou em hackerspaces, ou outros laboratórios improvisados, que se estão multiplicando (com a colaboração de várias pessoas, possivelmente de dezenas), é perfeitamente legítimo, e capaz de contribuir para a ciência pública, mas o perigo existe.

274

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 275

O homo mercator e o princípio de electividade

(ou como dizia Steve Jobs, «computadores electroquímicos»), identificando a mente com o cérebro da maneira mais radical. Noutros tempos, já se pensou praticamente tudo, ou quase tudo, nas ciências sociais, na psicologia e na psicanálise, em termos de «trabalho», «força» ou «energia», em especial devido ao impacto da termodinâmica, a física da energia. Assim o Homem era pensado nesta perspectiva como um gerador de energia, como um motor (cuja eficiência tinha de ser melhorada continuamente pela «antropotécnica»), o psiquismo humano seria dominado por pulsões energéticas, a economia era fundamentada no comando de recursos energéticos, a dinâmica macro-histórica regida pela «luta pela energia», ou a luta pelo acesso aos recursos energéticos, por parte de populações, empresas, regiões, economias, Estados e Impérios, segundo a «lei de White». Mais recentemente, os modelos, os conceitos e as metáforas computacionais-informacionais gozaram de uma enorme difusão em muitos domínios das ciências e na vulgarização científica: em vez do «motor humano», vemos o cérebro, a mente, as sociedades, os organismos, as máquinas «inteligentes», em termos de information-processing (e portanto, até certo ponto como equivalentes funcionais). Mesmo assim, os esquemas conceptuais/categoriais e as metáforas/analogias/isomorfismos/modelos economicistas são pelo menos tão importantes como as computacionais-informacionais nas ciências sociais e mesmo nas práticas discursivas quotidianas de muitas profissões (código/mensagem, software/hardware, analog/digital, hard-wired, information-processing, boot/rebooting, etc.), embora as computacionais-informacionais se tenham difundido em todas as ciências, naturais ou sociais. Chegaram mesmo a ser cruciais em certas leituras da física e da cosmologia, física ou filosófica (por exemplo, na discussão sobre se vivemos todos numa simulação de computador). O indivíduo, ou melhor, a pessoa, já não é um locus de intersecção de grupos e associações variadas, aliás hoje cada vez mais impermanentes: o nosso tempo foi marcado pela emergência de flash mobs, flash crowds ou flash looters no «repertório da acção colectiva» (na vida profissional, onde a mobilidade espacial e organizacional é constante, surgirão talvez flash teams).45 E não necessariamente num sentido negativo como a «lei» do 45 A expressão flash looters foi usada nos jornais ingleses, talvez pela primeira vez na História, para caracterizar os participantes nos distúrbios em Londres, e em várias outras cidades inglesas (mais uma no País de Gales) em Agosto de 2011, onde a pilhagem de restaurantes, supermercados, lojas de roupa ou calçado, lojas de televisões, etc., ocorreu em grande escala durante quatro dias. Surgiram espontaneamente depois do fim dos distúrbios números consideráveis de residentes a limpar as ruas: trabalhos voluntários, cansativos, que duraram dias. A expressão «repertório de acção colectiva» deve-se ao sociólogo Charles Tilly.

275

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 276

Hermínio Martins

carácter negativo do comportamento colectivo, com respeito às multidões de outros tempos, físicas e não-virtuais. As expressões positivas (pelo menos para os autores que as cunharam ou difundiram) smart mobs, swarm intelligence, wisdom of the crowds, collective wisdom, hive mind, we-think, intelligence collective, co-intelligence, prediction markets, crowd sourcing (mesmo para resolver mais rapidamente alguns problemas científicos, em combinação às vezes com videojogos), indicam o contrário, ou melhor, as possibilidades para o contrário. No entanto, a tal «lei» continua a ser exemplificada pelo comportamento dos internautas, como se vê pela incidência de desinformação, de epidemias de teorias conspirativas, de calúnias sem fim, de fenómenos como o trolling e o flaming, a manipulação de entradas da wikipedia. Será mais realista ver o typus do indivíduo contemporâneo como um locus flexível de intersecção de empresas, projectos empresariais e mercados, efectivos ou virtuais, em mobilidade constante, num horizonte de precariedade infindável e obsolescência iminente. As associações ou instituições culturais ou filantrópicas com fins não-lucrativos, como as ONG ou as universidades públicas, tendem a ser sujeitas ao mesmo tipo de cálculo e de avaliações como as empresas comerciais (os «mercados internos» nas universidades ou no Serviço Nacional de Saúde, por exemplo, que na Inglaterra começaram há uns bons anos). O management-speak ou o executive-speak, tal como o economês, tornaram-se praticamente obrigatórios em toda a parte, mesmo nas escolas, ou nas universidades, a tal ponto que se poderia falar de uma managerial revolution discursiva (termos como benchmarking, targets, outputs, analytics, engenharia financeira, valor acrescentado, bottom line, brand, logo, etc.). As relações formalmente não-económicas são encaradas pelos experts como sujeitas a análise económica, especialmente microeconómica (abrangendo conceitos como oferta e procura, empresa e empresário, custos e benefícios, custo de oportunidade, custo marginal, maximização de lucros ou de outro maximando, efeitos de aglomeração, etc.), ou caracterizadas cada vez mais em termos de uma linguagem economórfica, afastando completamente qualquer outra linguagem, moral, ética, religiosa ou teológica, como se fosse a única linguagem a conferir inteligiblidade sobre os assuntos humanos (os sociólogos, como notámos, adaptam-se, rendem-se, a esta linguagem). No entanto, numa época recente uma outra lingagem supostamente amoral e científica, a linguagem psicanalítica, foi muito difundida nas classes médias americanas por algumas décadas, em termos da qual se analisavam as relações pessoais, a vida interior (aliás uma expressão banida por 276

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 277

O homo mercator e o princípio de electividade

certas escolas filosóficas), as emoções em geral, especialmente dentro da família, num mundo secularizado, mas ainda não avassalado pela linguagem economicista. A psicanálise freudiana era essencialmente uma teoria do auto-engano, uma «hermenêutica da suspeita» talvez, mas assumindo-se como uma suposta «ciência» da subjectividade, mesmo que a «cura da fala» fosse de facto de pouco valor terapêutico, ao passo que para o utilitarismo de preferências o auto-engano (self-deception, akrasia) não existe, ou pelo menos é colocado entre parêntesis, permanentemente. E no entanto o mercado está saturado de tentativas de manipulação de preferências, desde as inspiradas pela «pesquisa motivacional» no século XX, onde um sobrinho de Freud teve um papel importante, até às recentes sugestões oferecidas pelos neuroeconomistas ou neuromarketers nas base das tecnologias de produção de imagens do cérebro. Um exemplo da definição das relações pessoais em termos economicistas, em vez da linguagem das emoções do senso comum, ou da linguagem psicanalítica clássica, seria a proposta de conceber as relações entre os sexos em termos de oferta e procura, a oferta em particular dependendo dos processos de crescente igualdade – ou decrescente desigualdade – económica e profissional entre os géneros, segundo a «ciência económica do sexo».46 Os mercados estão sempre em expansão, em parte porque as soluções para os problemas económicos, sociais, culturais, educacionais, pedagógicos, dos cuidados médicos, políticos, ecológicos, pessoais, da solidão, do envelhecimento, da depressão, a que recorremos cada vez mais, consistem precisamente na extensão de mercados, na criação de mercados, pela privatização, a desestatização e mesmo a desvoluntarização, com o acompanhamento de produtos/objectos/sistemas tecnológicos. E para resolver os problemas económicos gerados pelos mercados, recorremos também a essas medidas. Medidas aliás tipicamente aplicadas em conjunto, em solidariedade, sinergia e co-legitimação, com a introdução de novas tecnologias, especialmente as últimas modas nas TICs. Por exemplo: a introdução de IPads, computadores (tablets, notebooks, qualquer que seja a última moda), ou a «computação ubíqua», videojogos, ecrãs electrónicos em toda a parte acessíveis a todo o momento, telelições, etc., na sala de 46

Segundo o economista Robert Shields (2011). O autor descreve a economia do sexo, a «sexonomia», em termos de oferta e procura, que determinam o preço de equilíbrio que corresponde à quantidade de sexo que efectivamente ocorre, pelo menos no mercado legal. Para a socióloga C. Hakim, na mesma linha de pensamento, as leis de oferta e procura aplicam-se perfeitamente às relações entre os sexos (Hakim 2011). Não fica claro o que poderá acontecer com a dessexualização ou desgenerização da sociedade. Será que se vai recorrer a outros biomarcadores?

277

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 278

Hermínio Martins

aula (real ainda talvez, mas tudo é virtualizável), mas cada vez com menos livros (ou sem livros), cada vez menos professores, pelo menos professores humanos, para reduzir os custos e acompanhar a privatização das escolas, a política governamental em alguns Estados: 47 os robôs-professores, ainda rudimentares, mas promissores, custam muito menos que os professores humanos, nunca se cansam, e não se filiam em sindicatos, pelo menos por enquanto. Quando antigamente se falava de «reformas» na política, ficava praticamente subentendido que se tinha em mente acima de tudo as reformas sociais, com vista ao melhoramento das condições de vida dos mais desfavorecidos: agora, o termo «reformas» no discurso político hodierno, quer seja em relação à educação, à saúde, à administração pública, ou a qualquer outra área com a qual os governos têm de lidar, significa predominantemente «reformas de mercado» (market reforms), e não, como antigamente era expectável, reformas sociais. «Reformas de mercado», quer dizer, a introdução, expansão ou liberalização de mercados, ou a redução dos óbices à expansão dos mercados, muito menos a regulação de mercados, ou a criação ou protecção de zonas económicas ou sociais fora do mercado, como na criação de direitos sociais no período histórico entre mais ou menos 1880 e 1980, ou, em termos marshallianos, o conflito entre a estruturação das classes sociais e a contracorrente da cidadania (Marshall 1950). A solução-mercado, ou melhor, a solução tecnomercantil na educação, nos serviços de saúde, na administração pública, etc., tornou-se assim a solução default para tudo, a receita universal (tipicamente, o esquema da Solução Tecnomercantil Universal consiste na transformação de empresas públicas em empresas privadas, ou no mínimo, inicialmente, uma pareceria privada-pública, combinada com a in47 Estou a referir-me ao que está a acontecer nos Estados Unidos e na Inglaterra. Algumas moddalidades de escolas permitidas pela legislação dos últimos anos na Inglaterra não têm fins lucrativos, pelo menos por enquanto, e recebem fundos do Estado central, mas com autonomia muito ampla («academias», «escolas livres») com respeito ao currículo, horário, calendário, disciplina, escolha de professores, avaliação de professores, etc. (curiosamente, essas escolas podem, ao contrário das escolas públicas, escolher pessoal docente e administrativo com baixas qualificações!). No entanto, todas as escolas ficam sujeitas a certos critérios mínimos. Mas esta descentralização e autonomizacão também podia ser permitida e mesmo incentivada nas escolas públicas. O que é preocupante é o espírito destas iniciativas governamentais que equacionam privatização como um manancial de boas coisas que podiam ser providenciadas no sector público sem despesas adicionais, e o desprezo pelo idealismo de muitos professores nas escolas públicas. Não se vê tambem como as medidas de desestatização poderão lidar com factos como o de um em cada seis professores no Reino Unido ter sido alvo de acusações sérias falsas, nada anómalo no panorama escolar contemporâneo.

278

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 279

O homo mercator e o princípio de electividade

trodução ou o reforço de tecnologias digitais de última moda). O ónus da prova fica sempre com que os rejeitam as soluções de mercado pontuais, nunca com os marketers, mesmo quando se apontam as «falhas dos mercados» (market failures) em situações análogas. Nos EUA certamente e até certo ponto no Reino Unido, qual tem sido o desfecho das políticas económicas seguidas a partir dos anos 70, um período que já foi denominado como o «segundo século XX» (Rosa 2006)? O aumento da desigualdade na distribuição da renda e da riqueza nas últimas décadas nos países onde mais se aplicaram políticas económicas neoliberais inverteu uma tendência de longo prazo que se chegou a ver como uma «lei» da evolução das democracias industriais, mas que afinal se revelou transitória. Em vez da figura do diamante para a estratificação social com a maior parte da população nas camadas intermédias, a concentração da riqueza no mais alto decil, mesmo no 1% do topo, e o enfraquecimento substancial das classes médias em termos de rendimentos, empregos e oportunidades profissionais, outra figura será necessária para representar a nova ordem distributiva (Perrucci e Wysong 2007). Alguns analistas do Citibank cunharam o termo «plutonomia» para a economia americana em que os milionários, mulitimilionários, bilionários, no seu conjunto, dada a porção substancial do PIB que desfrutam colectivamente, podem sustentar a economia sem depender crucialmente do consumo de massas como foi o caso anteriormente, especialmente no período de 1945 até aos anos 70-80, os últimos anos do «fordismo» clássico, como do «keynesianismo», em que os rendimentos per capita aumentaram e a desigualdade da renda e da riqueza diminuíram. Os contrapoderes clássicos não funcionam como antes, como resultado do que chamei o «jacobinismo de mercado» e a financialização extrema da economia. Economia política, pois os líderes políticos dos Estados democráticos hoje são responsáveis perante duas constituencies: a dos eleitores (eleitores nacionais, a cada quatro ou cinco anos), e a dos mercados financeiros globais «que os sujeitam a um referendum diário» (Rothkopf 2008, 127). Na situação de Crise Financeira Global, esta configuração de economia política afigura-se incompatível com a sobrevivência da democracia liberal, mesmo a médio prazo, certamente a longo prazo.

279

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 280

Hermínio Martins

Referências bibliográficas Becker, Gary. 1991. A Treatise on the Family. Cambridge, MA: Harvard University Press. Benkler, Yochai. 2006. The Wealth of Networks. Cambridge, MA: Yale University Pres Blau, Peter. 1964. Exchange and Power in Social Life. Nova Iorque, NY: Transaction Publishers. Blyth, Mark. 2002. Great Transformations: Economic Ideas and Institutional Change in the Twentieth Century. Cambridge: Cambridge University Press. Boorstin, Daniel. 1973. The Americans, vol. 3. Nova Iorque, NY: Weidenfeld & Nicolson. Bouglé, Célestin. 1908. Les idées égalitaires: étude sociologique. Paris: Ulan Press. Boyden, Stephen. 1987. Western Civilization in Biological Perspective: Patterns in Biohistory. Oxford: Clarendon Press. Dworkin, Ronald. 1993. Life’s Dominion. Nova Iorque, NY: HarperCollins. Friedman, Lawrence Meir. 1990. The Republic of Choice: Law, Authority and Culture. Cambridge, MA: Harvard University Press. Fukuyama, Francis. 1997. The End of Order. Londres: The Social Market Foundation. Gavaghan, Colin. 2007. Defending the Genetic Supermarket: Law and the Ethics of Selecting the Next Generation. Londres: Routledge-Cavendish. Germani, Gino. 1960. Politica y Sociedad en una Época de Transición. Buenos Aires: Editorial Paidos. Greenberg, Daniel S. 2007. Science for Sale: The perils, Rewards and Delusions of Campus Capitalism. Chicago, IL: University of Chicago Press. Hakim, Catherine. 2011. Honey Money: The Power of Erotic Capital. Londres: Allen Lane. Hamermersh, Daniel. 2003. «Beauty and the classroom: professors’ pulchritude and putative pedagogical productivity» NBER Working Paper no. 9853 Julho. Cambridge, MA: National Bureau of Economic Research. Hamermersh, Daniel. 2011a. «Beauty pays». Inside higher education, 15 de Agosto. Hamermersh, Daniel. 2011b. Beauty Pays: Why Attractive People Are More Successful. Princeton, NJ: Princeton University Press. Hartzband, Pamela, e Jerome Groopman. 2011. «The new language of medicine». New England Journal of Medicine, 365 (15). Klare, Michael. 2009. Rising Powers, Shrinking Planet: The New Geopolitics of Energy. Nova Iorque, NY: Henry Holt & Company Koepsell, David. 2009. Who Owns You?: The Corporate Gold Rush to Patent Your Genes. Oxford: Wiley-Blackwell. Leadbeater, Charles. 2008. We-think. Londres: Profile Books. Lecky, W. H. 1877. A History of European Morals. Londres: Ulan Press. Lessig, Lawrence. 2004. Free Culture: The Nature and Future of Creativity. Nova Iorque, NY: Penguin Group. Lifton, Robert Jay. 1993. The Protean Self: Human Resilience in an Age of Fragmentation. Nova Iorque, NY: Basic Books. MacKenzie, Donald. 2006. An Engine, not a Market: How Financial Models Shape the Markets. Cambridge, MA: MIT Press. MacKenzie, Donald, Fabian Muniesa, e Lucia Siu, orgs. 2008. Do Economists Make Markets? On the Performativity of Economics. Princeton, NJ: Princeton University Press. Marris, Emma. 2011. Rambunctious Garden: Saving Nature in a Post-Wild World. Londres: Bloomsbury Publishing.

280

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 281

O homo mercator e o princípio de electividade Marshall, T. H. 1950. Citizenship and Social Class. Cambridge: Cambridge University Press. Martins, Hermínio. 2006. «Dilemas da república tecnológica». Análise Social, 181. Martins, Hermínio. 2007. «The marketization of the universities and some cultural contradictions of academic capitalism», em: http//www.adelinotorres.com/sociologia. Martins, Hermínio. 2011. «Dear LSE: notes on an academic disaster». Society, 28 (4). Mikhail, John. 2011 «Moral grammar and human rights: reflections on cognitive science and Enlightenment rationalism». In Understanding Social Action, Promoting Human Rights, eds. Ryan Goodman, Derek Jinks e Andrew K. Woods. Oxford: Oxford University Press. Mirowski, Philip, e Esther-Mirjan Sent, eds. 2001. Science Bought and Sold: Essays in the Economy of Science. Chicago, IL: University of Chicago Press. Nozick, Robert. 1974. Anarchy, State and Utopia. Oxford: Wiley-Blackwell. Perrucci, R., e Earl Wysong. 2007. A New Class Society: Goodbye American Dream? Nova Iorque, NY: Rowman & Littlefield Publishers. Polanyi, Michael. 1951. The Logic of Liberty: Reflections and Rejoiners. Londres: Liberty Fund. Putnam, Robert D. 1995. «Bowling alone: America’s declining social capital». Journal of Democracy, 6. Putnam, Robert D., e David E. Campbell. 2010. American Grace: How Religion Unites and Divides Us. Nova Iorque, NY: Simon & Schuster. Raymond, Eric S. 2001. The Cathedral & the Bazaar: Musings on Linux and Open Source by an Accidental Revolutionary. Cambridge, MA: O’Reilly Media. Rhode, Deborah. 2010. Beauty Bias: The Injustice of Appearance in Life and Work. Nova Iorque, NY: Oxford University Press. Rosa, Jean-Jacques. 2006. The Second Twentieth Century. Stanford, CA: Hoover Institution Press. Rothkopf, David. 2008. Superclass: How the Rich Ruined Our World. Londres: Penguin. Shields, Robert. 2011. The Economics of Sex. Nova Iorque, NY: Fruitbat Books. Simmel, Georg. 1955 [1922]. «The web of group-affiliations». In Conflict and the Web of Group Affiliations. Nova Iorque, NY: Free Press, 127-195. Stern, Christopher, org. 2011. Literary Capital. Athens, GA: University of Georgia Press. Unger, Roberto Mangabeira. 2009. The Left Alternative. Londres: Verso.

281

13 MVCabral Cap. 13_Layout 1 6/24/13 9:00 AM Page 282

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 283

Salvador Giner

Capítulo 14

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica En honor de Manuel Villaverde Cabral

Prefacio La integración económica, política y cultural de la Europa meridional en el resto del Continente se ha consumado por fin, con todas las salvedades que quepa hacer. Más allá de las vicisitudes del proceso de unificación europea que ha ido desde el Tratado de Roma hasta la aparición efectiva del euro en 1999 y la crisis griega de 2010 – con consecuencias negativas para Portugal, y también para España e incluso Italia en 2011, el proceso se ha completado. La evolución histórica reciente de la Europa meridional suscita un número de interrogantes interesantes que no parecen fáciles de despejar. Este ensayo intenta dar algunas respuestas tentativas y, a no dudarlo, harto incompletas, a las incógnitas que plantea el estudio de la peculiar senda que la modernización ha tomado en esa región europea. Es un bosquejo de sociología histórica. Cuando compuse la primera e incipiente versión de este trabajo había una ausencia casi total de indagaciones comparativas, históricas y sociológicas, sobre la región mediterránea de Europa en su época moderna y contemporánea. Aunque no creo que la primera salida de estos papeles – o, mejor dicho, la de aquéllos papeles que dieron origen a éstos – paliara en mucho la carencia, lo cierto es que gozaron de cierta demanda. Ello

283

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 284

Salvador Giner

permitió su sucesiva publicación en varios países, y su ampliación y revisión consiguientes, a pesar de la modestia de sus objetivos. El estudio que sigue constituye sólo un somero intento de interpretación. En él se identifican tendencias, causas generales y rasgos comunes o diferenciales de varias de las sociedades que ocupan el flanco Sur de Europa a través de un período relativamente largo de tiempo. Como es natural el enfoque ensayístico impone limitaciones serias que algún estudio más extenso, riguroso y pormenorizado estará destinado a superar. Intento aquí esclarecer un haz de preguntas características acerca de la historia y el presente de las sociedades meridionales de nuestro continente. Preguntas acerca de su pobreza tradicional; la debilidad supuesta de sus sociedades civiles; la tardanza y deficiencias de su industrialización; la presunta inestabilidad de su vida política; la frecuencia histórica de sus gobiernos dictatoriales; la virulencia de sus conflictos de clase e ideología; la persistencia de características «arcaizantes» a pesar de los avances de la modernización. Se intenta también dar, en estas reflexiones, una explicación acerca de los procesos de transición que han ocurrido en esos países hacia la democracia liberal y hacia su consolidación posterior, al tiempo que se intenta determinar la naturaleza precisa de las politeyas que así han surgido. El enfoque es, amén de histórico, macrosociológico, es decir, se toman en consideración estructuras, características, acontecimientos y conductas humanas intencionales que atañen a sociedades enteras o por lo menos a grandes sectores dentro de ellas. Es, también comparativo, en el sentido de que intenta desvelar aspectos comunes (sin eludir jamás los rasgos diferenciales) que surgen entre varias sociedades, situadas en un espacio geográfico, económico y político identificable, la Europa meridional del ámbito occidental: Grecia, Italia, España y Portugal. Por esa razón se excluye la mayor parte de los Balcanes. Se hacen referencias a Turquía (que es y no es del todo un caso aparte) pero ese país no entra de lleno en la discusión. Mi intención ha sido identificar y analizar corrientes históricas comunes a los cuatro países y demostrar que, a pesar de todos los pesares, es posible e interesante analizar conjuntamente su trayectoria hacia la plena modernidad. La economía, el poder, la legitimación cultural del orden social, las clases y las escisiones, conflictos y modos de dominación predominantes son los procesos (con exclusión inevitable de otros) a los que se presta mayor atención. Se ha logrado descubrir así, a mi juicio, una unidad profunda y una comunidad de experiencia y vida sorprendentes para un conjunto de sociedades que coexistían aparte las unas de las otras, en aislada contigüidad. Se han desvelado también procesos his284

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 285

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

tóricos paralelos o convergentes, destinos comunes y desventuras y aventuras compartidas por todos los pueblos de la Europa Sur.

La senda de la modernización en la Europa sureña Los países de la Europa meridional parecían, no ha mucho, estar encallados a medio camino entre las naciones plenamente avanzadas y aquellas partes del mundo mucho más remotas de los centros históricos que iniciaron la modernización. Su paso lento y tardío desde un lugar intermedio en la industrialización y semiperiférico en la división mundial capitalista del poder y del trabajo a otra mucho más central las sitúa en una posición para el análisis histórico que difiere a la acostumbrada.1 Tal análisis se complica ya desde el principio a causa de las ambivalencias endémicas a la región. Así, ciertas zonas de esa parte de Europa han poseído por largo tiempo burguesías dotadas de una mentalidad abiertamente moderna, las cuales no necesitaron importar a su país ni el capitalismo ni la industria, sino que impusieron ambos por sí mismas. Estamos, además, ante sociedades que han sido siempre europeas en un sentido fundamental, y nada periférico o marginal, de la palabra, salvo tal vez en las mentes de algunos viajeros norteños, sedientos de exotismo. Dos de las naciones meridionales, España y Portugal, fueron metrópolis de vastos y muy duraderos imperios, con lo cual participaron en la forja del sistema mundial eurocéntrico de interdependencia económica y hegemonía política, si bien es cierto que otra, Grecia, no sólo no fue nunca potencia imperial sino que formó parte, hasta 1821, de un imperio oriental, el otomano. Los pueblos europeos meridionales han sido presa de la presencia simultánea en su seno de tendencias contradictorias, estadios dispares de 1 Los conceptos de «centro», «periferia» y «semiperiferia» son importantes para mi argumentación. Sin embargo, los empleo de un modo adrede pragmático, evitando las implicaciones que han llegado a tener ciertas escuelas (véase Shils 1975; Wallerstein 1979; Burke 1979). Para el modo en que la noción wallersteiniana puede aplicarse a la Europa meridional (véase Bayley 1981); otra versión neomarxista aparece en G. Arrighi (1985) y en Mouzelis (1986). Las dificultades (tal vez insuperables) de intentar usar los conceptos de «centro», «periferia», «semiperiferia» y «periferialización» (entre otros) con total nitidez se hacen evidentes al constatar los usos dispares que de ellos hacen quienes más los preconizan: véase G. Arrighi, ed., op. cit. Por otra parte mi uso del término «modernización» es igualmente pragmático. Me abstengo de referirme a la vasta bibliografía sobre la cuestión.

285

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 286

Salvador Giner

desarrollo económico y, en varios casos, de las tensiones que engendra la diversidad étnica cuando va unida a diferencias de riqueza o poder político. Se han afirmado en su seno las corrientes más diversas e irreconciliables entre sí: el universalismo moral que exige la modernidad y las lealtades locales y familiares que se plasman en el patronazgo; la legitimación religiosa de las instituciones públicas y el secularismo militante; la intransigencia política doctrinaria y las ideologías más pragmáticas y expeditivas; la industrialización dependiente de la inversión capitalista extranjera y el capitalismo autóctono, seguido más tarde por la intervención económica inversora del estado. Por todo ello las sociedades europeas meridionales no podían situarse fácilmente a lo largo de los contínuos imaginarios que, con desaliño, suelen usarse para clasificar a los países entre el primitivismo o, más a menudo, el atraso y la modernidad, el capitalismo preindustrial y el avanzado, el fatalismo tradicional y el individualismo emprendedor, la mentalidad religiosa acientífica y la racionalista y técnica. El enfrentamiento de estas fuerzas encontradas sobre la orilla norte del Mediterráneo, y las sucesivas soluciones antidemocráticas que han surgido históricamente en todos los paíeses de la región confieren a toda ella – a pesar de sus notorias variedades internas – una considerable unidad y hasta una entidad común en el seno del proceso europeo general en virtud del cual este continente ha originado y experimentado la gran mudanza histórica de la modernización. Esa unidad, junto a ciertas continuidades históricas y la situación económica y geopolítica compartida sobre el flanco sur de Europa permite avanzar algunas prudentes generalizaciones. Me propongo hacer tal mediante el análisis de algunos aspectos importantes de las estructuras de clase y poder que resultaron de las escisiones, dislocaciones y confrontaciones que caracterizan la historia reciente de la Europa meridional. Se trata de un ejercicio macrosociológico e histórico, que realizaré con la ayuda de una periodización adecuada para todas las sociedades en cuestión, es decir, para Portugal, España, Italia y Grecia. Con ello espero mostrar que sus en apariencia tortuosas historias respectivas poseen un grado de consistencia interna mucho mayor que el que suele atribuírseles. El hecho de que surjan ciertas pautas generales, comunes a paises y a estados, pone en cuestión la imagen de azarosa inestabilidad, volatilidad e imprevisibilidad tan corriente entre los observadores del mundo meridional europeo. El reconocimiento de estas pautas históricas no significa que todas las sociedades mediterráneas quepan en el mismo lecho de Procusto, sino solamente que poseen un número de rasgos comunes interesantes en los que respecta a su evolución histórica, a sus modos predominantes de do286

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 287

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

minación política, a la forma y al ritmo de su desarrollo (o estancamiento) económico y al sistema de relaciones clasista en que se han movido. Mediante una comparación y un contraste sistemáticos de sus rasgos comunes así como de sus divergencias nos encontraremos en mejor posición para averiguar no sólo porqué su desarrollo económico fue tardío, sino también porqué y cómo empezaron a romper el cerco del atraso o subdesarrollo, y en qué medida lo hicieron. Desdichadamente el tamaño de este ensayo – quizás ya largo de por sí – no me permitirá entrar en demasiados pormenores, pero espero poder referirme a suficientes hechos conocidos como para sustanciar mis argumentos. Como enser heurístico elemental, dividiré el proceso histórico entero desde principios del siglo XIX en la Europa meridional hasta hoy en cuatro períodos distintos, separados por tres modos de transición. Los criterios explícitos para tal división en fases atienden al régimen político y a la distribución social del poder, sin olvidar que ambos van directamente relacionados con el nivel de desarrollo económico (y grado y manera de dependencia exterior) así como con el modo de dominación clasista y de articulación de la desigualdad social en cada uno de los países observados. El notable grado de sincronía que puede constatarse cuando se coteja esta periodización con los datos será confirmado por el análisis ulterior. Las cuatro fases que propongo distinguir son las siguientes: 1. Gobierno oligárquico y exclusión popular extrema. La crisis súbita de los cuatro antiguos regímenes preindustriales de Portugal, España, Italia y Grecia, abre esta época. Esa crisis permitió una excepcional participación popular en las respectivas guerras de independencia contra Napoleón en España y Portugal y contra el Turco en Grecia. En estos países y en Italia – donde la dominaicón francesa fue más beningna – se produjeron momentos efímeros de acceso liberal radical al poder. Tales sucesos, sin embargo, fueron pronto seguidos por el acaparamiento oligárquico del gobierno y de la administración pública y la exclusión sistemática de las clases subordinadas de cualquier forma de participación institucionalizada y constitucional en la esfera política, en virtud de una franquicia electoral muy restringida (cuando existía de modo consolidado. la intervención militar y la reimposición violenta del absolutismo. Es un período de desgarramiento: sufre guerras civiles abiertas o situaciones de bandidismo e inseguridad crónica. El caso de mayor duración de la situación oligárquica parece ser el de Grecia. En ella dominó la corte y la tzakia o clan de los notables desde 1820 hasta 1869. Esta dominación oligárquica fue posible a causa del menguado tamaño de las burguesías locales, la primera penetración ca287

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 288

Salvador Giner

pitalista extranjera – que se apoyaba también en préstamos y trato directo de los inversores foráneos con los políticos de cada país –, la vastedad de la población rural y la ausencia de un estamento lo suficientemente voluminoso de gentes con la preparación técnica adecuada para las tareas del despegue industrial. A pesar de todo esto comenzaron a aparecer durante la fase oligárquica inicial ciertos procesos parlamentarios restringidos así como los rudimentos de una oposición política más o menos legal, junto a un primer y crucial planteamiento público, en cada país, del problema del «atraso nacional» y de la necesidad de superarlo. 2. Consolidación burguesa y exclusión popular. Llegó un momento en que la fachada de instituciones parlamentarias empezó a ser usada por las crecientes burguesías comerciales, rurales e industriales, aliadas a las clases medias «respetables». Estas últimas empezaron a encuadrarse en partidos modernos. La exclusión política popular y su falta de representación (persecución de los sindicatos, caciquismo electoral, franquicia restringida) permitió la creación de regímenes burgueses turnantes, de rotación gubernamental entre conservadores y liberales. Entre ambos copaban la esfera de la actividad política «legítima». Por ello los esfuerzos de los venizelistas en Grecia, los giolittistas en Italia, los mauristas en España, y otros movimientos parecidos hacia la «regeneración» nacional llevada a cabo desde el orden establecido estaban condenadas, de antemano, al fracaso dada su negativa a incorporar el campesinado, el proletariado y otras fuerzas populares en la esfera de la legitimidad. A fines de este período de hegemonía burguesa plena comenzaron a aumentar las excepciones a este modo de exclusión clasista y partidista de las clases subordinadas. Así, algunos partidos socialistas consiguieron su aceptación como partícipes legítimos de la política, aunque ello fuera a cambio de su relativa desradicalización. Ello no alteró la naturaleza eminentemente conservadora del período, que es también el de la industrialización relativa de toda la región. La transición a una fase siguiente ocurrió cuando el orden político de estos regímenes monárquicos, parlamentarios y enteramente burgueses demostró su incapacidad por conseguir dos cosas, (a) la incorporación (o por lo menos neutralización) de la creciente oposición radical, en muchos casos condenada a la esfera extraparlamentaria y, (b) la creación de un sólido estado nacional imperialista, privadamente financiado. Este último aspecto de la cuestión queda ilustrado por la derrota italiana en Abisinia (1895. la humillación portuguesa de Angola y Mozambique (rebelión de 1896. el desastre colonial español (guerra hispanoyanqui, 1898) y, más tarde, el holocausto griego en Asia Menor (1922). 288

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 289

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

3. Dictaduras fascistas y fascistoides. La transición a este período vino con los «desórdenes» creados por los asaltos de la pequeña burguesía radical excluída y perseguida, contra los viejos grupos hegemónicos, ahora confusos y desunidos a causa de sus propios fracasos políticos. Como respuesta al serio reto radical que en varios casos había conseguido establecer regímenes republicanos de inclinación revolucionaria aparecieron coaliciones reaccionarias con una política de «ley y orden» y apoyo militar o de partidos fascistas marcialmente organizados. Una vez en el poder estas coaliciones se esforzaron por complementar los defectos endémicos de la acumulación privada de capital mediante la intervención estatal inversora en la economía (Italia y España) y el proteccionismo. Así, a despecho del arcaismo cultural de algunas de las dictaduras tradicionalistas que surgieron (aunque el fascismo italiano no estaba falto de novedad) la modernización desde arriba continuó en todas partes, aunque ahora bajo nueva guisa. Las libertades civiles que habían existido precariamente durante la fase histórica precedente como parte esencial de aquél orden político dejaron de existir. 4. Orden constitucional democrático liberal en el marco del corporatismo capitalista. El agotamiento de la fórmula dictatorial tuvo lugar de maneras diversas. No obstante, pueden distinguirse factores que son comunes a varios países. Así, el aventurismo militar precipitó el fin de las dictaduras tanto en Italia como, más tarde, en Grecia y, en cierta manera, también en Portugal. Por otro lado en España, Grecia y, en menor grado en Portugal, el desarrollo de las clases medias, la urbanización, el éxodo rural, la prosperidad económica y otras tendencias fueron creando una creciente discrepancia entre régimen político dictatorial y estructura social. Todo ello dio lugar a una serie de crisis que pusieron fin a la era de las dictaduras y abrieron paso a los presentes regímenes parlamentarios de la Europa sureña. Aunque la retórica radical de la izquierda se mantuvo viva en el periodo de incorporación a la democracia liberal, su legitimación en la esfera política «aceptable» se realizó a cambio de su abandono casi completo de toda pretensión revolucionaria a corto o medio plazo. La oposición radical de izquierda – y en algún caso el gobierno de ese signo, como en Portugal tras 1974 y Grecia tras 1981 – aceptó así la permanencia de las distinciones clasistas y la exclusión económica de las clases subordinadas, base en la desigualdad social heredada – ambas a erosionar mediante reformas políticas y fiscales – como compensación por su incorporación en la esfera política legítima. Así, la moderación general en cuanto a las reivindicaciones políticas tradicionales de los radicales y un compromiso con un mínimo de política social pública benefactora 289

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 290

Salvador Giner

de las clases subordinadas (sanidad, educación, subsidios) formó la base de un nuevo consenso. Empero, dada la cultura política heredada, los niveles de disensión ideológica, de extremismo de todo género y de maximalismo, fueron más altos en todos estos países que los que hallamos en otras sociedades Europeas durante la misma época, aunque menores que los que antaño prevalecían en la zona mediterránea. La desradicalización subsiguiente del Sur fue unida a la participación de sus sociedades en las tendencias corporatistas de las economías y politeyas modernas. Así en los cuatro países examinados se produce un proceso tripartito de acuerdo entre gobierno, patronal y sindicatos, al tiempo que se detectan también otras características del corporatismo contemporáneo (En Portugal y España, además, ciertas corporaciones tradicionales, como el ejército, hicieron fuerte presión sobre la vida política tras la transición a la democracia, aunque con signo diferente y en marco jurídico distinto en cada lugar: en el primer país constitucionalmente, en el segundo al margen del ámbito estricto explícito de la constitución). Con las debidas salvedades se puede hablar, por lo tanto, de una medida de convergencia entre estas sociedades y el orden político y socioeconómico reinante en el resto del occidente europeo. Tal medida encontró refuerzo, primero en Italia, y después en los otros tres países con su participación en la unificación europea.

Capitalismo e industrialización en paises europeos de desarrollo tardio La historia política e intelectual de la Europa meridional en los tiempos modernos no se entiende sin la aguda «conciencia desdichada» de muchos de sus hombres – desde ciertos ministros ilustrados del antiguo régimen hasta los reformadores y educadores de la burguesía liberal - engendrada por el atraso crónico de sus países. Sus iniciativas prácticas para acabar con él van desde notables mejoras educativas, sanitarias y en materia de transportes hasta el más insensato aventurismo imperialista, desde la hábil y paciente introducción de la tolerancia y el liberalismo hasta el uso brutal de la dictadura para conseguir la acumulación violenta del capital, privado o estatal. La preocupación meridional con el atraso endémico y la ávida búsqueda de maneras de superarlo no apareció de forma súbita, como ocurriera con el concepto afín de subdesarrollo, el cual había de estallar en el seno de los países excoloniales de repente, a mediados del siglo 290

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 291

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica XX.2 Es irónico que las teorías del subdesarrollo y de la dependencia eco-

nómica nacidas del llamado Tercer Mundo estuvieran destinadas a ser extendidas a la región sudeuropea, que posee una antigua tradición en la explicación de su propio «subdesarrollo» (eufemismo para la castiza palabra atraso) muy a pesar de que la evolución de sus economías y vida política haya sido tan diferente de la suya. En todo caso, la conciencia dolorosa de su propio atraso llevó a muchos pensadores meridionales a una posición melancólica y pesimista acerca de las posibilidades de desarrollo de sus propios países, y hasta a unirse al desprecio que hacia ellos sentían, con característica arrogancia, ciertos ciudadanos de la Europa norteña que había logrado entrar de lleno en la era industrial. 3 Habiendo protagonizado antaño, ellos mismos, el surgimiento de estructuras sociales e innovaciones culturales que habían de transformar, andando el tiempo, la faz del mundo europeo, los pueblos sureños sufrieron un inmenso revés en sus fortunas hacia el fin del Renacimiento. Si bien la prosperidad general de la fachada atlántica europea benefició de algún modo a Castilla y Portugal a través de sus puertos de Sevilla y Lisboa, las grandes repúblicas patricias – las ciudades imperiales de Barcelona, Génova y Venecia – sufrieron daños irreparables con la expansión otomana, por no hablar ya de todo el mundo grecobizantino, que cayó totalmente bajo el poder de la Puerta. Los efectos inmediatos fueron graves. Por ejemplo, Cataluña, el hinterland de Barcelona, había llegado a ser una de las sociedades más avanzadas o «modernas» de la Europa renacentista.4 Excluida subsiguientemente de todo comercio con las colo2 La noción de sociedad atrasada, ligada a la creencia en el progreso al alcance de todos fue desplazada, en su día, por la de subdesarrollo, no menos cargada de ideología que ella. Los paises mediterráneos europeos poseen abundante literatura sobre el atraso. No toda ella propone modos de superarlo. El «que inventen ellos» proverbial de don Miguel de Unamuno es una de las reacciones interesantes. Ciertos movimiemtos sociales meridionales no pueden entenderse sin la conciencia desdichada del atraso. Ese es el caso del Risorgimento italiano. El liberalismo radical de Carlo Cattaneo (1961) y sus esfuerzos por modernizar su país ilustran esto. 3 Malefakis atribuye el desprecio de los meridionales hacia sus propios países al hecho de que ellos también hubieran aceptado la versión de la verdad histórica creada por los norteños. Cita la célebre observación de Cánovas en 1876 cuando definió a los espñaoles como «aquéllos que no podían ser otra cosa», la referencia de los griegos a su país como psorocóstena (caballo piojoso), a Giolitti refiriéndose a Italia como una jorobada que necesita un sastre especial. El pesimismo portuigués es el más notorio. Malefakis recuerda la frase de Eça de Queirós diciendo que el país sólo sirve para ponerse frente a él y tirarle piedras, así como una amarga observación de Pessoa (Malefakis 1992, 3-4). 4 I. Wallerstein (1979, 101). Irónicamente, subsiguientemente se produjo una restauración parcial del medievalismo en Cataluña: congelándolo los catalanes intentaron mantener sus libertades, fueros y privilegios, cf. Mackay (1977, 159-164) y Giner (1984, 1-13).

291

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 292

Salvador Giner

nias ultramarinas de la monarquía española, los catalanes se vieron obligados al confinamiento, lo cual exacerbaría sus revueltas contra la corona. El estancamiento comercial se combinó con la decadencia agrícola en la Europa del Sur precisamente en el momento en que comenzaron a introducirse innovaciones fundamentales en ambos terrenos en la parte Norte. 5 La revolución industrial comenzó en aquellos países (Inglaterra primero, seguida de Bélgica) que habían experimentado antes ciertas innovaciones de gran alcance en sus agriculturas. Aunque que la mayoría de los agricultores europeos en la era preindustrial eran campesinos pobres atados a sus parcelas o braceros de latifundio, la situación en los Países Bajos y Gran Bretaña había empezado ya a cambiar en el Siglo XVI. Hacia 1800, en ambos lugares encontramos ya los efectos de una profunda revolución agrícola, que había creado un sistema de explotación rural eficiente, capitalista y comercializado. A su vez ello redundó en el desarrollo, ya iniciado, del capitalismo no agrícola. En Inglaterra la existencia de yacimientos de carbón y hierro próximos entre sí acabó por precipitar la industrialización. En contraste con ello, los paises mediterráneos eran inmensamente pobres en recursos materiales. La industrialización de Italia, por ejemplo, a través del siglo XIX, y en lo que se refiere a industrias no textiles, se hizo con carbón importado. A causa de la baja calidad de su carbón, España, hasta la Primera Guerra Mundial, tuvo que abastecerse de carbón inglés en un 40% (Cafagna 1975; Fontana y Nadal 1975). Dada la escasez (y descrédito) de los conocimientos técnicos, la ausencia de ciertos recursos específicos y la debilidad de la presión por el consumo de bienes, puede decirse que la Europa meridional en aquéllos tiempos era pobre en términos tanto relativos como absolutos. Ello, además, hacía imposible su despegue económico e industrial por vía de la dependencia temporal, es decir, mediante el uso de las inversiones extranjeras como acicate para el desarrollo propio y modo de aprendizaje para la población – ingenieros, técnicos, contables – ligada a ellas. Como señalan algunos críticos de la teoría de la dependencia (según la cual los paises dependientes no se desarrollan «por culpa» de los paises inversores que no están interesados en ello. hay paises industriales importantes que han pasado primero por fases de dependencia. Francia

5 Produjéronse, naturalmente, excepciones en esta decadencia, como la notable capacidad de Venecia para sobrevivir y hasta continuar su prosperidad, o el desarrollo de la burguesía mercantil griega bajo nuevos amos. Sobre el origen remoto de la crisis general de la zona Braudel (1966).

292

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 293

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

misma obtuvo préstamos inmensos para la primera construcción de sus ferrocarriles y para su desarrollo en general (Berend y Ranki 1974; Gerschenkron 1962). Pero la preexistente estructura social francesa junto a sus recursos técnicos, científicos y administrativos, permitió a ese pais pagar sus deudas exteriores, comenzar a exportar capital y participar en la intervención hegemónica sobre la periferia europea y en ultramar. Es, por lo tanto, crucial percatarse del momento histórico, del grado de desarrollo tecnológico de la sociedad receptora y de su estructura social y cultura técnica para poder explicar porqué hay (o no) dependencia y si ésta es (o no) paralizante del desarrollo ulterior del país sobre el que incide. El auge formidable del capitalismo industrial y financiero en la Europa del Noroeste, seguido de una concurrencia internacional muy intensa entre sus diversas burguesías en busca de nuevos mercados y zonas de influencia, tuvo serias consecuencias para el desarrollo incipiente de la sociedad industrial burguesa en la semiperiferia europea, y en especial en el Sur. Las semillas de una sociedad de ese género habían sido plantadas mucho antes, y ya habían empezado a germinar en Cataluña, Lombardía y el Piamonte, así como entre las dispersas y poderosas clases mercantiles de la nación griega, sobre todo entre sus mercaderes fanariotas. Había, además, otros focos burgueses adicionales, como los de Oporto y Cádiz. Sin embargo, la intervención masiva capitalista extranjera, a través de la interferencia política o la imposición sin miramientos de poderosos compradores, inversores y vendedores extranjeros vino a romper o por lo menos a tregiversar seriamente toda posibilidad de desarrollo autónomo y competitivo en la región. En algunos casos, como ocurriera en Portugal y en Grecia, la promesa primeriza de un desarrollo autóctono fue cercenada por estas fuerzas. Así los esfuerzos griegos por crear una industria textil y naviera se hundieron antes ya de la guerra de independencia de 1821 contra el Turco (Mouzelis 1978, 4). Las reformas deciochescas de Pombal, a pesar de sus limitaciones intrínsecas, podrían haber conducido al país hacia un crecimiento no estrictamente agrícola y una modernización ligada al estado si Portugal no se hubiera visto obligado a convertirse en un país cliente con un imperio también cliente bajo tutela británica para poder sobrevivir con un cierto grado de autonomía, y sin desmembramiento de sus posesiones ultramarinas. En las sociedades mayores, España e Italia, tuvo lugar un proceso de desarrollo subordinado asaz especial, en el que no entraba la destrucción total del potencial autóctono de desarrollo capitalista industrial. Digo especial porque, la competencia y el desacuerdo entre las grandes potencias (y las compañías privadas e instituciones financieras que en 293

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 294

Salvador Giner

ellas operaban) permitió ciclos económicos relativamente independientes en ambos países, que habría de conducir a la consolidación de sendas industrias nacionales. Además, sus burguesías nacionales, atrincheradas tras sus respectivos estados - todo lo débiles e ineficientes que se quiera - consiguieron acopiar fuerzas al crear mercados en sus propios territorios. Esto les permitió a su vez penetrar los mercados internacionales cuando las condicones eran favorables. La consolidación de esta vía de expansión tuvo lugar en Italia durante el crecimiento de 1878-1889, cuando ocurrió el gran salto de los textiles – seda, algodón, lana – a la maquinaria ferroviaria y a la ingeniería. Ello abrió el camino a una transformación más completa en el primer decenio del siglo XX, cuando se estableció la industria química, la de maquinaría ligera y pesada y las primeras centrales hidroeléctricas. La menguada participación del capital extranjero durante aquellos años, debida en gran parte a la depresión económica mundial, muy grave, de 1889-1896, no hace sino resaltar lo que se afirma. Algo parecido ocurrió en España, aunque a la zaga en el tiempo y con menor alcance. Vemos allí la misma diversificación y paso de los textiles a la química, a la siderurgía y a la hidroelectricidad. Aunque el proceso empezó antes de la Primera Guerra Mundial, las condiciones favorables creadas por ella para la exportación en economías no beligerantes como la española fueron las que dieron a la industria el empuje necesario (Cafagna 1975; Fontana y Nadal 1975, 460-473).6 El auge tardío del capitalismo industrial en la Europa meridional antes y durante la Gran Guerra es el rasgo más visible de una corriente más profunda, el de la transformación cualitativa de todas esas economías en esferas de actividad comercial de mercado, con trabajo asalariado, proletarización y acumulación de capital. En muchos casos, naturalmente, acumulación «primitiva» de capital (Cabral 1979, 7-41).7 La derrota inicial de la revolución industrial en algunos lugares (Portugal, Grecia) y su éxito circunscrito en otros (Italia, España) significó que el capitalismo tuvo que quedar confinado por mucho tiempo a la esfera comercial y de bienes raíces. Digamos, simplificando la cuestión, que las sociedades sureñas habían dejado de ser predominantemente precapitalistas desde hacía tiempo, pero que su capitalismo era tosco, y en algunos casos letárgico. La transición al industrialismo pleno era bloqueada una y otra vez por las fuerzas a las que he hecho ya alusión y otras a las que me referiré con mayor por6 Las crisis económicas de la posguerra, dañaron pero no destruyeron del todo la base industrial así creada. 7 Sobre la transición al capitalismo sin expansión industrial o crecimiento cuantitativo de mercancías, cf. Vilar (1962), citado también por Cabral (1979, IX-X).

294

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 295

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

menor. Lo que ocurrió, pues, no fue que esos países vinieran a unirse tardíamente a la transformación industrial del capitalismo sino que sus burguesías fracasaron en sus esfuerzos por no irle en zaga, así como por sacar a la sociedad industrial de su confinamiento en enclaves reducidos o regiones muy delimitadas, como el triángulo de Lombardía, Piemonte y Liguria, en Italia y Cataluña y el País Vasco, en España (Nadal 1975, 226).

El estado periferico: la via hacia el despotismo reaccionario Cuando la Europa meridional entró en la era postnapoleónica su mapa político era muy vario. Pero pueden constatarse rasgos comunes en él. A pesar de varias reformas iniciadas (salvo en Grecia) bajo el Antiguo Régimen, los esfuerzos subsiguientes por continuarlas hallaron fuerte resistencia y notables contraataques, inspirados sobre todo por el aún considerable componente precapitalista y arcaizante que las agobiaba. Las fuerzas reformadoras y liberales consiguieron introducir innovaciones modernizadoras sólo de manera precaria y en momentos breves de poder. En general la reducida burguesía liberal pudo continuar el fomento del capitalismo sólo pagando el precio de una alianza contínua con los elementos más retrógrados de la sociedad. Ello significó que pronto abandonó o tergiversó aquéllos aspectos de la doctrina liberal que constituyen su civilización política peculiar y son esencia de su vida cívica. A cambio de esta concesión, las clases feudalizantes provenientes del Antiguo Régimen depusieron en gran parte su hostilidad al capitalismo más avanzado de la época, sin abrazarlo del todo ellas mismas. Así, su propia concepción de la maximización de los beneficios continuará siendo asaz pintoresca. La mentalidad señoril de los grandes terratenientes sicilianos o andaluces es un ejemplo clásico de este poderoso residuo socioestructural y económico, y muy paradójico por cierto, ya que los antiguos ligámenes de dependencia feudal habían sido más débiles en el Sur que en el Norte de Europa. Aparte de esto, la desfeudalización siguió las líneas de menor resistencia, como puede verse con la venta forzosa de bienes raíces eclesiásticos durante el siglo XIX. El proceso se asemeja por doquier, hechas las debidas salvedades. Así pueden llegar a producirse tomas liberales del poder que cumplen con varios de los requisitos de una auténtica revolución burguesa, pero estos son efímeros y van seguidos de una componenda con las fuerzas más conservadoras cuando no de un retroceso considerable. Así el pronunciamiento 295

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 296

Salvador Giner

de Goudi en 1909, en Grecia, que desencadenó la más genuina revolución burguesa conocida por la historia de aquél país, vino precedido y acompañado por una considerable proliferación de asociaciones civiles (mercantiles, industriales, sindicales) que en principio podrían haber consolidado la autonomía de la sociedad civil, sobre todo gracias a las reformas del Partido Liberal en 1914 y el venizelismo en general. Pero ya hacia 1920 la legislación antilaboral y en 1929 la Ley Especial o Idinym crearon condiciones muy adversas a una articulación autónoma de los intereses obreros o de otras clases y grupos sociales (Mavrogordatos 1983, 82, 90, 168 y 175). Algo parecido puede detectarse en la Península Ibérica. Desde 1908 a 1914 (y aún después) sus burguesías genuinamente liberales son demasiado reducidas y débiles para aspirar a cualquier supremacía política efectiva. Su opción permanente en Portugal fue el compromiso con una casta dominante inmovilista y patriarcal, que halló su único momento excepcional con la revolución antimonárquica de 1910, cuyo radicalismo republicano, retrospectivamente, parece haber anunciado lo que iba a ocurrir en Italia en 1919-1920, en Grecia en 1922-24 y en España en 1930-1931.8 Ese compromiso, inevitable en un país tan agrario y poco industrial, se agravó con su aceptación forzosa del «libre cambio» impuesto por su aliado británico, lo cual descartaba toda posibilidad de desarrollar una industria nacional (Pereira 1971). La sociedad española, más compleja y de mayor tamaño, ofrecía mejores posibilidades. No obstante, tanto la burguesía catalana como, más tarde, la vascongada, se hallaban ancladas en unos terrenos étnica y económicamente muy distintos de los del resto del país. Su capacidad por influir y controlar el pesado, remoto y arcaizante aparato de estado (según era visto por muchos de sus representantes) basado en Madrid era precaria y problemática. Consecuencia de ello fue que ciertos sectores significativos de la burguesía catalana pronto descubrieron los atractivos del regionalismo, lo cual les llevaría a exigir diversos grados de autonomía política. Ambas burguesías étnicas abrazarían el proteccionismo, pues éste les permitía gozar sin molestias de la explotación del mercado hispano, que a la sazón incluía algunas posesiones ultramarinas importantes. La protección arancelaria, sin embargo, reforzó la estructura familística del capitalismo catalán y, al eliminar la concurrencia foránea, hizo menos necesaria la innovación y la renovación industrial (Izard 1978).9 Ello aumentó

8

Como subraya Malefakis (1992, 33). Claro está que el proteccionismo, por sí solo, no resulta en la esclerosis del capitalismo: en los EEUU el proteccionismo tuvo consecuencias muy diversas. 9

296

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 297

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

aún más el atraso ya existente en España con respecto de las zonas extranjeras más avanzadas. En contraste con Grecia y la Península Ibérica, el caso italiano es, claramente, mucho más afín al patrón europeo. Ello ya se percibe en el momento de la Unificación en 1861. Mientras que los catalanes poseían una sociedad relativamente avanzada que se hallaba, sin embargo, subordinada a una unidad política preindustrial más amplia y poderosa, los piamonteses, lombardos y ligures formaban un núcleo a partir del cual se iba erigiendo una moderna estructura estatal. Nada ilustra mejor este contraste que los significados opuestos recibidos originalmente por las palabras «piemontesismo» y «catalanismo». La primera, en Italia, significaba la ocupación, por parte de los políticos y funcionarios piamonteses (o del norte, en general. de los cargos del estado recién fundado, sobre todo en el momento en que la capital se estableció en Florencia. La segunda, en España, indica la tendencia de los catalanes a separarse o hasta a independizarse del resto del país. Las élites norteñas italianas eran también, al principio, las élites del nuevo estado. Empero, la rápida inclusión de regiones atrasadas y de abundante peso demográfico pronto significó la pérdida de su control sobre la administración pública: el nuevo estado apareció como un vasto campo de oportunidades de empleo funcionarial para las clases medias urbanas de los estados papales y del reino de las Dos Sicilias. El favoritismo y el clientelismo característicos de aquéllos lugares vinieron a incrementar el personal administrativo. Mas la inflación burocrática no quedó confinada a Italia: en Grecia alcanzó aún mayores proporciones tan pronto como la nación pudo hacerse con un estado propio (Mouzelis 1978, 16-17). La iniciativa por reformar el estado, saneándolo, producía siempre el mismo resultado: un sector industrial muy menguado combinado con las necesidades de un estado pretendidamente moderno (es decir nacionalista e imperialista) y con una semidemocracia restringida a la oligarquía y a la clase dominante condujo a la sobrecarga de la administración pública con personal parasítico. Como quiera que, con frecuencia, éste dependía clientelísticamente de las fortunas del bando político al que se había apuntado, muchos funcionarios pasaban periódicamente a la peculiar situación de cesantes cuando «los suyos» no estaban en el poder. Con ello la imparcialidad y neutralidad de los funcionarios quedaban explícitamente negadas, con las consecuencias que la permanencia del fenómeno había de tener para la cultura cívica del Mediterráneo. Tal vez el mejor análisis de las implicaciones morales de la curiosa institución de 297

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 298

Salvador Giner

la «cesantía» por motivos políticos – sin culpa ni delito por parte del «cesante» – se halle en la novela prekafkiana Miau, de Benito Pérez Galdós. Andando el tiempo, y bajo circunstancias de exacerbación ideológica, la institución entraría en crisis a través del juramento de lealtad («adhesión al régimen» en España) y la persecución política de los funcionarios de bando vencido. Tras la caída de las dictaduras que habían fomentado esta situación no se pidieron responsabilidades políticas en ningún país. (Salvo en el caso de unos pocos miembros de la policía política portuguesa, de algunos golpistas helenos, y fascistas italianos, y ello sólo en el momento de euforia creada por la instauración democrática). La situación posdictatorial sin represalias creó tras 1945 en Italia, 1974 en Grecia y Portugal y 1975 en España, nuevas colectividades de cesantes o funcionarios parados (a veces con sueldo, como los otrora empleados en los Sindicatos Verticales franquistas) o bien un funcionariado poco afín al espíritu de la administración democrática, que fue extinguiéndose sólo con el transcurso del tiempo. El estado moderno, en sus fases primerizas, se abstuvo de entrar en el proceso productivo directamente. Sólo lo hacía de modo subsidiario en algunos terrenos faltos de inversión privada pero necesarios a los intereses de la burguesía. Los estados meridionales no estaban en condiciones de actuar como empresarios capitalistas aunque existieran tradiciones locales de inversión productiva estatal: Venecia misma había sido el primer estado empresario en Europa y el más duradero. Sin embargo, cuando por fin los estados sureños decidieron invertir, en pleno siglo XX, lo hicieron por todo lo alto. Pero hasta que ello ocurriera, bajo los auspicios de una ideología autárquica y fascistizante, los gobiernos se limitaron al proteccionismo arancelario, complementado por la inversión errática en obras públicas y el suministro de protección militar y policíaca al orden establecido. Mas ni siquiera el proteccionismo se hizo bien. Echó raíces penosa y azarosamente. Así, la introducción de la tarifa protectora en Italia data de 1887, fecha tardía y reveladora. La endémica debilidad financiera de sus erarios forzaba a los gobiernos a aceptar la inversión extranjera como única solución. Aunque admitamos que esto produjera algunos efectos benéficos sobre el nivel de vida de las gentes directamente afectadas, no se concibe cómo ello hubiera podido generar una economía del todo independiente y avanzada. A pesar de todo, produjéronse varios grados de éxito en la «nacionalización» de la inversión capitalista: Italia fue el país más eficaz en el desarrollo de una sólida clase capitalista; España le iba en zaga; Grecia poseía tan sólo una clase mercantil ausente, 298

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 299

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

una diáspora próspera, nada deseosa de domiciliar su riqueza en su patria; Portugal carecía de todo ello. Todo esto da lugar a una serie de cuestiones históricas sobre el desarrollo económico, la dependencia y la explotación internacional que no han sido aún resueltos.10 El largo camino que condujo a estos países hacia la autarquía fascistizante estaba empedrado con las frustraciones de una dependencia crónica de las potencias extranjeras. Las clases hegemónicas en los países del Sur sufrían de su propia ideología en favor del librecambio internacional desigual que intentaban compatibilizar con algunas dosis de proteccionismo. Los intereses librecambistas de sus exportadores (por ejemplo de los productores de vino; en el caso griego, de uvas pasas) y los de sus políticos (tan frecuentemente sobornables por los extranjeros) minaban la unidad de acción con los de los de sectores proteccionistas, como pasaba los intereses cerealistas que llevaron durante las dictaduras fascistas a la creación de importantes y duraderas instituciones como la Battaglia del Grano en Italia y la Campanha do Trigo en Portugal (Pais et al. 1978). El mismo Oliveira Salazar había escrito su primer trabajo universitario sobre esta profunda contradicción político-económica en estos países (Salazar 1916). Tampoco ayudaban las súbitas apariciones de competidores internacionales a los productos agrícolas. La inversión extranjera se produjo sin consideración alguna por las necesidades de la población y con harta frecuencia los beneficios se repatriarban sin reinversión sustancial en los países que la habían acogido. Con harta frecuencia y durante largo tiempo fueron explotadas grandes riquezas minerales por las compañías extranjeras con impuestos estatales ridículos. Todo ello muestra que los gobiernos meridionales no estaban equipados ni ideológica ni técnicamente para enfrentarse con el problema de la dependencia y del desarrollo dependiente. Para agravar las cosas, durante los estadios más cruciales de aquélla era económica, los paises del Sur estaban absortos en una lucha feroz contra sus periferias interiores atrasadas (contra el bandidismo en Grecia y el brigantaggio en Italia, o contra las partidas armadas carlistas en España) lo cual paralizaba sus recursos. A menudo se conseguían empréstimos del exterior, pero no para modernizar, sino para acabar con estas incómodas rebeliones. En contraste con Prusia, lanzada a transformación

10

Según Jordi Nadal y otros historiadores la propiedad extranjera de las empresas españolas estranguló el despegue industrial del país. Las enormes ganancias de los inversores extranjeros tuvieron efectos negativos para el desarrollo español. Charles Harvey ha intentado cualificar este argumento sin poderlo refutar del todo (Harvey 1982).

299

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 300

Salvador Giner

final de Alemania en una gran potencia industrial y libre – por lo menos desde 1848 – de cualquier disensión interna grave, los gobernantes de la Europa del Sur no podían ver más allá de sus preocupaciones inmediatas y angustiosas. Y si lo hacían – como de hecho ocurriera con sus expediciones bélicas imperialistas, en torpe imitación de las poderosas naciones norteñas – lo pagaban casi siempre de forma espectacular y grotesca. Hasta que la Gran Guerra viniera a cambiar sustancialmente el marco político de tantos países, el universo en que se movían las clases dominantes del Sur no era totalitario. Su ideal para el engrandecimiento nacional, la industrialización y el progreso era el de las grandes democracias parlamentarias, sobre todo la Gran Bretaña. Claro está que se iban forjando vías alternativas hacia la modernidad, como demostrara la Alemania bismarckiana y el Japón Meiji, pero su solución del problema mediante la «modernización desde arriba» no era aún visto como modelo a seguir en la zona mediterránea, por mucho que se copiaran algunas instituciones militares y financieras germanas. Las implicaciones de la naturaleza incipientemente liberal del orden político y de la estructura social en el Sur fueron peculiares. En los primeros momentos, cuando los estratos preindustriales provenientes del Antiguo Régimen eran aún muy poderosos, éstos intentaron gobernar mediante el orden atávico semifeudal. El conjunto de familias oligárquicas que rodeaban al trono griego (la tzakia) poseía y administraba literalmente el estado heleno. Es el ejemplo más extremo. La tzakia hasta consiguió sobrevivir las grandes reformas electorales de 1864 mediante el control de los votos, fenómeno paralelo al del caciquismo político de España. Aunque sería excesivamente simplista ver a cualquier país mediterráneo como dominado por unas pocas familias, por lo menos en un caso, el de Portugal, los linajes oligárquicos y las camarillas a ellos ligadas tuvieron un peso enorme hasta tiempos muy recientes. Algunos estudiosos afriman que la oligarquía nepotista lusitana vino a vivir simbióticamente con el salazarismo y que su poder aumentó a lo largo de aquella dictadura.11 Otros difieren, sin embargo, y aducen que en el siglo XX hasta en Portugal la situación se hizo demasiado compleja para permitir formas de dominación tan primitivas.12

11 Hacia 1960, según T. Gallagher, un círculo de veinte famílias controlaba el sistema políticoeconómico portugués (Gallagher 1979, 396). 12 P. Schmitter difiere en Graham y Makler (1979). Una interpretación de la revolución que cuestiona varios tópicos sobre su alcance verdadero es la de Manuel de Lucena (1978).

300

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 301

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

La fórmula política más duradera de las sociedades meridionales en los decenios anteriores al fascismo consistía en un acomodo de la pauta noroccidental europea (el gobierno burgués liberal) con su propia situación de atraso. Esa fórmula encontró su más clara expresión en la Italia pregiolittista (1878-1903) y giolittista (1903-1914) así como en la España de la Restauración (1876-1923. pero podría describir casi de igual manera la Grecia de Venizelos (tras 1910) así como amplios períodos de constitucionalismo portugués, de 1822 a 1926. Es esencial, empero, no entender estos regímenes, como se ha hecho tantas veces, como meras aberraciones de cierto ideal liberal europeo, pues éste existió sólo en el reino de la teoría política: fueron ante todo las formas concretas que tomó la dominación liberal y conservadora bajo las condiciones culturales, económicas y socioestructurales del Sur. Los elementos específicos de la fórmula política hegemónica burguesa en aquella región podrían esbozarse así: (a) El parlamentarismo excluyente, basado en un pluralismo político restringido a ciertas clases superiores, aunque en expansión. A la esfera política tenían acceso las clases altas y medias nada más, con exclusión de los elementos disidentes de las últimas. El reclutamiento de individuos procedentes de otras clases tenía lugar mediante su previa incorporación a una de las tres corporaciones reconocidas: iglesia, milicia y funcionariado. La estabilidad de este orden político ultraconservador dependía en parte de la extensión real o prometida de la franquicia electoral. Como en otros paises se erigieron ostáculos a su extensión según criterios de educación y propiredad, pero su demolición fue demasiado lenta y caprichosa para que pudiera tener lugar una asimilación política eficiente de las clases excluidas. Consecuencia de ello fue la radicalización de los intelectuales de clase media baja y de otros grupos estratégicamente significativos e igualmente marginados de la esfera política. La política de coto cerrado fomentó la desafección al orden burgués parlamentario y a sus alternativas golpistas y militares, sobre todo entre el creciente proletariado y el vasto campesinado, ambos más sujetos que nunca a las nuevas fuerzas del mercado. La crisis final sobrevino cuando las clases dominantes, atrapadas en su propia ideología ultraconservadora, se mostraron incapaces de hacer ya más concesiones, si bien es verdad que algunos gobernantes (Giolitti, por ejemplo) fueron maestros en el arte de la apertura y la concesión en el momento oportuno. (b) El liberalismo escindido. La sanción suprema del órden político de la época no era la autocracia. (Los dictadores militares, tras sus pronunciamientos, se veían a sí mismos como salvadores de emergencia de una 301

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 302

Salvador Giner

situación esencialmente burguesa y monárquica). La norma ideal era el credo liberal en su versión conservadora, aunque en algunos casos llegara a combinarse con doctrinas más radicales y hasta anticlericales. De hecho el radicalismo liberal llegó a funcionar como oposición aceptada. El desdoblamiento de la ideología liberal capitalista en dos ideologías - la conservadora y la radical - no conllevó un resquebrajamiento drástico de la vida política, salvo en los momentos iniciales, preindustriales, cuando la lucha se desarrolló entre absolutistas y liberales. (En Italia, merced a los objetivos de la unificación, ambas facciones pudieron aliarse más, en busca de fines compartidos). Con el tiempo la distinción se hizo menos intensa. Sus raíces se encuentran al principio mismo del período, por ejemplo en la yuxtaposición de la Joven Italia de Mazzini (secular, republicana, democrática) y el constitucionalismo de Cavour (monárquico y proeclesiástico). El dichasmós, o cisma, griego entre monárquicos y venizelistas (tras 1916) es otro ejemplo. La virulencia de la lucha entre las dos ramas del espectro político legítimo no debe cegarnos al hecho de su complementaridad y dominio en común de la esfera política. El problema, que había de conducir a la falla del sistema, era la incapacidad de ambas alas (y sobre todo de la radical) de abarcar o cooptar aquellos amplísimos sectores de la sociedad civil que caían fuera del credo liberal. En contraste con los socialdemócratas de la Europa central y del Norte, los anarquistas, los socialistas y otros movimientos similares en el Sur nunca consiguieron que se les ofreciera una oportunidad de integración, salvo quizás brevemente en Italia en 1910 y 1911. En aquél país, no obstante, la guerra de Libia acabó con ella. Una vez más se hacían sentir los efectos del colonialismo sobre los asuntos internos de países apenas capaces de practicarlo cabalmente. La oposición genuina radical fue, pues, sistemáticamente excluida. Ello había de conducir al enfrentamiento final y a la destrucción de toda posibilidad de plena modernización por la vía democrática. (c) El «dualismo» social. Bajo tales condiciones la reforma y la modernización ocurrieron de modo dispar y lento, sin aporte apreciable por parte de las clases dominantes, salvo de modo indirecto. La falta de apertura política, los sueldos de miseria, la agravación de la pobreza, la represión como respuesta a la discrepancia, hicieron que el maximalismo socialista o el milenarismo anarquista se hicieran plausibles y atractivos para muchos. De ese modo las transformaciones estructurales que son requisito de toda modernidad – como la reforma agraria – quedaron en suspenso (Malefakis 1970), con la excepción de zonas en las que factores externos forzaron al gobierno a ponerla en práctica, como en Grecia (Ya 302

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 303

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

en 1917 Venizelos había conseguido dividir los grandes latifundios de Tesalia, los chiftliks, pero más tarde, el desastre de 1922 creó una enorme presión sobre la tierra con el influjo de campesinos refugiados de Asia Menor). Mientras tanto, sin embargo, el sector industrial había seguido creciendo, con lo cual hizo su aparición un proletariado considerable y unas clases medias expansivas y celosas de sus derechos. En este sentido, ya que no en el macroeconómico, puede decirse que los países sureños poseían un notable grado de dualismo societario.13 Poseían, por un lado, una cultura política dispuesta a la ciudadanía y, por otro, otra inmersa en un mundo de amos y criados, o señores y campesinos, para simplificar, que ignoraba la existencia de la sociedad civil moderna como forma de convivencia. (d) El utopismo imperialista. Dentro de este incómodo marco florecían, inevitablemente, sueños imposibles de grandeza nacional y versiones cataclísmicas (catastrofistas las unas, milenariastas las otras) del futuro colectivo. Las élites gobernantes usaban el lenguaje y símbolos del expansionismo beligerante, a menudo con el fín de distraer al público de sus fracasos domésticos. En ello no faltaban tampoco aspiraciones imperialistas realistas, como ocurría con los intereses mineros españoles en las guerras del Rif, la participación portuguesa en la explotación económica de sus vastos territorios ultramarinos y el deseo de los industriales italianos de poseer mercados más amplios para una economía nacional que, a fines del siglo XIX, ya había alcanzado proporciones respetables. A pesar de ello sólo el orgullo zaherido – y no el cálculo político – puede explicar que los españoles enviaran su débil y anticuada flota contra los agresores yanquis en el Caribe y las Filipinas en 1898, o el desastroso ataque de los griegos al Imperio Otomano dos años antes, en 1897. Ello no impidió una nueva aventura griega en Anatolia (póstumamente bautizada como locura por sus críticos helenos) que puede considerarse caritativamente como menos insensata, ya que parecía razonable suponer la extrema debilidad de los turcos tras su derrota en la Gran Guerra. Y tal vez podría aducirse el éxito difícil pero real de la expansión italiana en Africa contra la afirmación de que el imperialismo meridional era utópico (Empero, la derrota del ejército italiano en Etiopía-Adowa, 1896 – la primera vez en que tropas africanas conseguían triunfar en serio sobre una potencia europea, debería haber prevenido contra estas ilusiones). No obstante, 13 Dualismo en el sentido de diferenciación complementaria de dos universos aparentemente opuestos y no el de que existieran cada uno por su parte. Sobre fases más recientes del dualismo meridional cf. Berger y Piore (1980).

303

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 304

Salvador Giner

solamente la percepción de la realidad nacional con la óptica tergiversadora de un etnocentrismo ideológico europeo triunfalista por parte de países que no podían permitirse tal lujo explica la conducta aventurista de aquellos gobiernos, incapaces de mejorar primero sus mercados interiores, aumentar el nivel educativo de sus pueblos y de promover una acumulación intensa del capital en sus propias economías. Fue así como sus gobiernos se embarcaron, en desastrosa emulación de las Grandes Potencias, en una serie de expediciones bélicas, cuya única ventaja era la de aplacar momentáneamente el descontento popular mediante la efímera fiebre de la exaltación patriótica. Las contradicciones de cada uno de estos cinco componentes – parlamentarismo excluyente, liberalismo escindido, reformismo frustrado, imperialismo utópico y nacionalismo impotente – condujeron irremisiblemente a cada una de esas sociedades a una forma muy específica de despotismo moderno: la dictadura fascista o fascistizante. Ello ocurrió cuando las mudanzas sociales generadas bajo la égida del recién descrito orden político se hicieron incompatibles con él. Era menester encontrar una nueva solución que, por una parte, permitiera la permanencia del sistema de desigualdad, el engrandecimiento nacionalista y la industrialización capitalista y que, por otra, destruyera los movimientos revolucionarios que, desde la izquierda, ponían en entredicho el orden establecido. El triunfo de esa solución, que no era otra que la dictatorial fascista (en todas sus variedades) significó el fin del viejo orden liberal burgués así como una redefinición de las funciones económicas y políticas del estado. Significó asimismo la muerte de la vía revolucionaria hacia la modernización en la Europa del Sur.

Fascismo y dominación de clase La naturaleza precisa del fascismo no es fácil de determinar. Tampoco lo es saber la medida en que Portugal, España, Italia y Grecia llegaron a ser fascistas (Woolf 1968; Pinto 1991). El fascismo posee un conjunto de rasgos que sólo se encuentran con varia intensidad en cada caso concreto. El fascismo «puro» – ¿el germano? – supone un culto político a un solo jefe; un modo de dominación clasista íntimamente ligado al control monopartidista de la sociedad; un nacionalismo extremista; la neutralización o liquidación de la oposición política; la política económica autárquica combinada con la empresa estatal; el mito de la superioridad nacional étnica o cultural; el anticomunismo extremo y la reducción de toda opo304

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 305

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

sición al comunismo; el imperialismo; la paranoia política. En la vida real, sin embargo, todo esto se combina con otras características y con fuerzas sociales menos explícitas pero no menos poderosas. No solamente el grado de «fascistización» sino la naturaleza de la experiencia fascista fue diferente en cada país. El modelo fascista se realizó en su forma menos adulterada en Italia, de 1922 a 1943. Por ello algunos observadores pueden concluir que solo Italia fue fascista y sólo ella tuvo un jefe supremo popular y carismático, que encarna esa ideología. Pero esto ignora el hecho desagradable de que tanto Salazar como Franco fueron, en amplias esferas, igualmente populares. Hasta podría sostenerse que ambos fueron más «legítimos» que su colega italiano pues se hallaban más identificados con ciertas actitudes y mentalidades de sus países respectivos que Mussolini: éste último se debía a su partido, a su movimiento político y debía sostenerse en mayor medida por la demagogia y la ideología militante. Además otros podrán objetar que sólo dos países de los cuatro examinados practicaron la autarquía económica fascista. No obstante, a pesar de éstos y otros distingos es notable la medida en que se asemejan unas a otras las dictaduras fascistas (o fascistizantes) mediterráneas. Aparte de la mussoliniana, fueron éstas la salazarista en Portugal (1926-1974) y la franquista en España (1936-1976). El régimen griego de Metaxas (1936-1940) compartía muchos rasgos importantes con los otros, aparte de que las creencias abiertamente fascistas del dictador dejaban poca duda sobre sus intenciones. Además, otros regímenes de la zona, precediendo o sucediendo al período central de los regímenes fascistas, fueron menos fascistas, pero deben ser analizados como esfuerzos protofascistas o de retorno al fascismo. Ese es el caso de la dictadura de Primo de Rivera en España (1923-1931) y la de los Coroneles en Grecia (1967-1974). Trátase pues de un largo y complejo período histórico, y no de un conjunto deslabazado de gobiernos pretorianos derechistas. La solución fascistizante en el Mediterráneo europeo fue ante todo un ciclo contrarrevolucionario identificable, no exento de discontinuidades en los casos español y griego y de larga duración, con características generales económicas, políticas y clasistas propias.14 Todas estas sociedades sufrieron la solución fascistizante en condiciones históricas relativamente similares. Básicamente las dictaduras fascistas y semifascistas surgieron cuando las fórmulas políticas tradicionales (dominación burguesa a través del parlamentarismo excluyente y la dictadura 14

Hago abstracción aquí de la insoslayable e incómoda cuestion de la medida en que el fascismo fue también una fuerza «revolucionaria». Cf. para ello Felice (1970).

305

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 306

Salvador Giner

militar ocasional) empezaron a resquebrajarse. Ello ocurrió tras la Primera Guerra Mundial, sin que faltaran «avisos» anteriores de lo que se avecinaba. (Semana Trágica de Barcelona, 1909; insurrección lisboeta, 1910, y proclamación de la República portuguesa). En el momento de las crisis respectivas el orden político tradicional no sabía ya cómo habérselas con las nuevas reivindicaciones y la militancia política organizada de los movimientos revolucionarios ligados a las clases subordinadas. El gran temor internacional creado por el Bolchevismo aumentó la polarización y forjó la resolución de los conservadores por optar por la solución extremista más o menos totalitaria. Surgió así un nuevo orden reaccionario, cuyas fuerzas habían triunfado una vez más por el golpe de estado, la guerra civil o el enfrentamiento violento. El orden fascista o fascistizante de la Europa meridional adquirió la características siguientes:15 (a) Dominación clasista fascistizante. En la Europa meridional el despotismo reaccionario que puede llamarse «fascista» o que adoptó cierta forma de «corporatismo estatal fascista», consistió en un modo de dominación clasista impuesto por una coalición política de derechas. Estos regímenes invariablemente pretendían representar los intereses de todos, y de ahí su uso frecuente del populismo nacionalista para el control de los medios colectivos de producción emocional. Empero, desde el principio se dedicaron a preservar y fomentar los intereses de la coalición reaccionaria a la que servían. Facilitaban así la acumulación capitalista según los deseos de las clases dominantes tradicionales, aunque este aspecto de la situación pronto halló dificultades al enfrentarse con otros imperativos. Todos los regímenes en cuestión neutralizaron a las clases obreras y a otros colectivos peligrosos (intelectuales disidentes, estudiantes, demócratas) y aseguraron la paz interior. Con la notable excepción de Italia, la coalición reaccionaria – formada por terratenientes, empresarios, financieros, militares – controló el gobierno por medio del ejército, cuya alta oficialidad fue ampliamente recompensada, si bien el modo concreto de articulación del ejército al resto de la politeya variara de país en país. Así, en España y Grecia la jefatura del estado quedó en manos militares, aunque no así en Portugal, salvo en el cargo de presidencia formal de la república. En Italia, la intensa militarización del partido fascista representa un caso claro de sustitución funcional: el aparato militarizado fascista suplió con creces el menor peso del ejército sobre la sociedad italiana. 15

Los orígenes del siguiente modelo de régimen reaccionario fascistizante fueron elaborados, para el caso español, en un ensayo aparecido en 1974 en los Cuadernos de Ruedo Ibérico, por el autor,en colaboración con Eduardo Sevilla. Aparece en forma más extensa en Giner y Sevilla (1980, 197-229).

306

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 307

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

El caso griego merece mención especial: allí las fuerzas derechistas siguieron un camino largo y tortuoso hacia la formación de una coalición firme. Así, la dictadura de Metaxas en 1936 suprimió temporalmente el dichasmos o divorcio entre los Venizelistas radicales de clase media y los monárquicos, pero estos dos bandos no se reconciliaron entre sí de verdad hasta que tuvieron que enfrentarse con un enemigo común durante la Guerra Civil posterior. Lo cierto es que la reconciliación completa tuvo que esperar a los años 70, bajo otra nueva dictadura, así como bajo la presión incesante de la mudanza social y el paso del tiempo. A la sazón, no obstante, la dictadura de los Coroneles enfocaba las cosas de modo distinto: su gobierno hizo esfuerzos extremos por cortejar a la burguesía y a los sectores de «poco fiar» de las fuerzas armadas – la Marina y la Aviación – si bien fracasó del todo en forjar una coalición reaccionaria sólida con todas las clases dominantes tradicionales. Esta seria debilidad estructural permitió que los notables de los partidos de derechas pudieran convertirse a la democracia y acceder al poder en 1974, a pesar de sus dudosos credenciales democráticos. Con ello, y por primera vez, abandonaron la ambivalencia política típica del gobierno pseudodemocrático helénico tradicional: gobernar bajo una constitución liberal con ayuda de leyes represivas, antiliberales e inconstitucionales, las cuales formaban, por sí mismas, un orden «paraconstitucional» enemigo de la libertad.16 (b) Ciudadanía restringida y pluralismo político limitado. En la medida en que toda coalición de clases y estratos se hallaba representada en la cúspide del poder político era de esperar que el espectro ideológico reconocido por cada régimen incluyera elementos de cada clase o sector de intereses colectivos a él incorporados. Por la misma razón la amalgama ideológica oficial excluia las ideologías y aspiraciones de los partidos y movimientos declarados fuera de la ley, si bien era posible que se hicieran concesiones retóricas y simbólicas al «bien común» y hasta a la misma democracia. Lo significativo es que la noción de ciudadanía dejó de existir o vivió una vida restringida y precaria. En el caso del fascismo la exclusión de la población políticamente no incorporada al partido o no perteneciente a los grupos dotados de respetabilidad oficial se realizó mediante un ataque propagandístico virulento y sostenido contra el comunismo y sus aliados reales o imaginarios. El comunismo fue satanizado,

16

Para un análisis que rompe con la noción corriente de que la historia política de Grecia contemporánea debe entenderse en términos de luchas personalistas, intervención extranjera y golpes militares, y en el que se concede especial importancia a la llamada «política de masas» como base de dicha historia, cf. Mavrogordatos (1983).

307

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 308

Salvador Giner

el gran culpable, a cuyo avance había puesto coto supuestamente la dictadura. En la Europa del Sur (como en tantos otros lugares) el comunismo fue definido como fuente de todos los males hasta en sitios donde era inexistente como amenaza interna real (como en Grecia, Idionym, o Ley Especial anticomunista de 1929) o cuando era una fuerza más entre otras liberales, socialistas, o sencillamente democráticas (como en Portugal antes de 1933). La Ley para la Represión del Comunismo y la Masonería, en España, parecía romper con esta monotonía obsesiva, pero de hecho el régimen asimiló a liberales y francmasones (entre otros) a la categoría de gentes manipuladas por el bolchevismo. Estas dictaduras meridionales tuvieron a su disposición un sustrato ideológico sincrético, que iba del fascismo al monarquismo ultramontano y legitimista pasando por actitudes conservadoras menos extremistas, del cual dictador y gobierno echaban mano pragmáticamente en cada coyuntura. Fue así como una de las tareas principales del jefe de estado era la de establecer equilibrios ideológicos sucesivos dentro de dicha amalgama y hacer énfasis en sus diversos aspectos según el lugar y el público. Uno de los objetivos de la operación era el de reconciliar la naturaleza esencialmente reaccionaria y (salvo en Italia) tradicionalista del régimen con expresiones de apoyo a las clases subordinadas, seguidas de una cierta política de protección a algunos de sus intereses. A todo esto corresponde un grado limitado de pluralismo, bastante significativo. Quedaba confinado a las clases dominantes y a las facciones y movimientos que componían la coalición reaccionaria. (Aunque en algunos casos, como en el de la Unificación de Falange y Carlistas en plena Guerra Civil española, se intentara en vano ocultar toda sospecha de pluralismo). (c) Coacción y control mediante clases de servicio. Las coaliciones reaccionarias victoriosas heredaron las administraciones públicas anteriores pero en cada caso se estableció un número señalado de instituciones para la represión política, el control económico, la educación, la neutralización de los obreros y campesinos, y la educación pública. Quedaba claro que una dictadura militar y burguesa tradicional ya no podía habérselas con la situación tal como se planteaba en Europa tras la posguerra de 1918. La naturaleza no totalitaria (o semitotalitaria) de estos regímenes se plasmaba en la licencia de existir concedida a instituciones y asociaciones de la sociedad civil aceptables por el gobierno. Las gentes y organizaciones no estigmatizadas por su actividad política anterior – la mayoría de la población - gozaban de la no interferencia del poder en sus asuntos privados. Una vez conseguido el poder, lo característico de estos regíme308

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 309

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

nes fascistizantes fue su escasa movilización política de la población y su fomento del apoliticismo popular, acompañado de un apoyo a instituciones tradicionales, como la iglesia, consideradas como baluartes o sostenes del orden legítimo. En Italia, el teatro político fascista exigió mayores movilizaciones populares controladas, para generar euforia belicista, pero aún allí la obediencia apolítica recibió sanción oficial. A pesar de la ausencia de totalitarismo estricto la expansión de los poderes gubernamentales y estatales fue muy considerable, y tuvo que ejercerse a través de un conjunto de clases de servicio (o Dienstklassen) 17 extraídas de un espectro relativamente amplio de la población. El fácil reclutamiento y lealtad de estos estamentos funcionariales estaban asegurados a causa de la naturaleza atrasada o semidesarrollada de la economía, que impelía a muchos a buscar seguridad en el empleo, ingresos regulares y ventajas médicas y de otra índole, como las conseguidas en los economatos en tiempos de penuria. Ello ayudaba también a sellar la alianza política entre los gobernantes y las clases medias. Parte del personal de esos estamentos no pertenecía directamente al aparato estatal. Ese era el caso de los legitimadores religiosos del régimen reaccionario, clérigos católicos y popes ortodoxos, aunque en el caso de los primeros haya que hacer matizaciones por región y período histórico.18 Los sectores de las clases de servicio dedicadas a la represión política lo hacían según criterios específicos de selectividad concordes con la fórmula política no totalitaria de estos despotismos modernos, de «vivir y dejar vivir» siempre que el dominio de régimen no se viera amenazado.19 El terror político tendía así a ser selectivo, si bien alcanzó grados muy elevados y trágicos en todos los países en cuestión en las fases de enfrentamiento o represalia agudos. No obstante nunca llegó a alcanzar las proporciones cataclísmicas de los estados policías nazis o stalinistas. (d) Cooptación política y obediencia pasiva. Por todo ello la incorporación a la esfera del empleo estatal y de los cargos políticos tendió más hacia lo pragmático que a lo ideológico, sobre todo tras la fase de consolidación de cada régimen. Los miembros de las clases de servicio debían expresar su fidelidad al jefe y orden establecidos, pero en la mayoría de los casos no se les pedía particular militancia. Catedráticos, alcaldes, altos y medios

17

«Clase de servicio» en el sentido de Dienstkalsse como aparece en Renner (1953,

119). 18

Para la evolución de la Iglesia como clase de servicio, Hermet (1981). Sobre represión selectiva en Portugal, cf. Gallagher (1979). Sobre la ideología inicial de extermino del enemigo, cf. Tapia (1979). 19

309

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 310

Salvador Giner

funcionarios consiguieron – pasadas las purgas políticas iniciales, eufemísticamente llamadas depuraciones – desempeñar y gozar de sus cargos rutinariamente y sin militancia. Esta incorporación no militante tuvo su contrapartida en la represión selectiva recién mencionada y en la exclusión sistemática de las «clases peligrosas» – obreros, estudiantes politizados – de la participación en el reparto de beneficios políticos. La exclusión de clase se agravaba en algunos países – especialmente España – con la exclusión étnica y la discriminación (y hasta persecución) de culturas minoritarias como la catalana y la vasca. Pero lo que los regímenes fascistizantes buscaban era la obediencia pasiva de la población, no su movilización. El control de prensa y radio (más tarde también televisión) se realizaba no para movilizar sino para neutralizar, filtrar información, y manipular los ánimos hacia la legitimación sin exaltación multitudinaria que podría conducir a una catástrofe, aunque se celebrasen ciertos festejos públicos de apoyo ritual al régimen. En la medida en que el régimen italiano fue el más fascista de los cuatro, la baja movilización popular parece estar ausente allí. No obstante, la movilización y penetración de la sociedad civil por el Partido Fascista italiano no fueron tan profundas como las del Nazi en Alemania y declinaron muy notablemente hacia fines del decenio de 1930. Además el partido italiano, en un país sin tradición de gobierno pretoriano como la que existía en Grecia y España, se veía obligado a cumplir varias de las funciones de marcialización social. Así, su peso militar (y en la conducta de la guerra) fue superior al de la Falange española, la cual estuvo siempre subordinada a mandos militares durante la guerra civil y, en cierto sentido, también después. De igual manera puede entenderse que el Partido Fascista italiano formó parte de la coalición reaccionaria como la indicada. En su caso tal coalición se hundió tras Stalingrado y la invasión aliada de Sicilia. Que esa coalición no estaba aún dispuesta a aceptar la democracia pluralista puede verse en la prohibición inmediata de todo partido político proclamada por Badoglio tras la deposición de Mussolini en 1942. No obstante, bajo presión de los Aliados y con apoyo comunista al pluralismo constitucional (la svolta di Salerno de Togliatti en 1943) Italia vino a ser el primer país de la Europa meridional que entró en el campo parlamentario y liberal sobre una base relativamente sólida.20

20 Para las masivas concesiones realizadas por los comunistas italianos, cf. Ginsborg (1990, 42-48 y passim). El precio se pagaría con la disolución definitiva del Partido Comunista en el siglo XXI.

310

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 311

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

La legitimación en las politeyas meridionales Aunque la participación de varios países mediterráneos en la Ilustración no fuera precisamente menguado, las tensiones y enfrentamientos desencadenados por la era y guerras napoleónicas pusieron fin a la posibilidad de que continuaran por la senda reformista tomada por ellos durante el siglo XVIII.21 El último esfuerzo de modernización sin caos ni violencia revolucionaria ni contrarrevolucionaria fue quizás el de las Cortes de Cádiz en 1812. La Constitución allí proclamada, sabido es, tuvo repercusiones internacionales muy amplias. Las ocurridas en el Sur de Europa incluyen la inspiración de la portuguesa de 1822, tras la revolución de Oporto 1820, el influjo sobre el alzamiento napolitano también de 1820, y el levantamiento y constitución piamonteses de 1821. Pero Cádiz no abrió un proceso reformista sin soluciones serias de continuidad, sino una época histórica torturada y tortuosa. Y es que el trasfondo cultural era demasiado arcaico para otra cosa. La inmensa fortaleza del edificio cultural creado por la Contrareforma no quedaba confinada al apoyo religioso y clerical a los intereses de unas clases dominantes atrasadas, menos unidas de lo que parece en sus actitudes ante la emergente modernidad. (Así, en Portugal y España si bien estaban interesadas en mantener la esclavitud, pues ello era vital para la economía ultramarina azucarera o de cafetales, sus ideas sobre las formas nuevas de acumulación capitalista industrial eran a veces vagas y hasta hostiles a ella, salvo en los enclaves burgueses avanzados). El conservadurismo extremo gozaba de un poderoso apoyo popular (y, más tarde, populista) en regiones con una población piadosa rural abundante. Ello era menos cierto en zonas permanentemente enzarzadas en sus rivalidades endémicas ancestrales (Sicilia) o «descristianizadas» (Andalucía) y dotadas de un campesinado de braceros sin tierra, pero no faltaron amplias regiones en las que la vieja piedad haría posible una mesiánica hueste dispuesta a todo, por «Dios, Trono y Altar». La secularización a penas había afectado a estas gentes, que entraron la fase crucial de la modernización sin distinguir bien entre lo profano y lo religioso y sin entender del todo qué virtudes o ventajas podía tener para ellos la tolerancia política. Sin mucha o ninguna preparación se sintieron pronto amenazados por una serie de poderes satánicos, es decir por gobiernos liberales, masónicos, ateos, y aparentemente dedicados a hacer añicos la suprema unidad del poder terreno 21 P. Hazard La pensée européenne au XVIII e siècle (1946) y R. Herr The Eighteenth Century Revolution in Spain (1958).

311

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 312

Salvador Giner

y religioso. Es esta una constatación elemental si queremos comprender la virulencia y la amargura de la tensión entre lo secular y lo religioso en el Sur de Europa y los elementos no clasistas de los partidos confesionales en ella, tanto durante el siglo XIX como durante una buena parte del XX, en los tres paises latinos (Linz 1979).22 El caso de Grecia, que puede parecer excepcional, dada la naturaleza de su cristianismo ortodoxo y de su iglesia nacional, sin las implicaciones políticas de la católica romana, tal vez lo sea menos, cuando consideramos la identificación de sus varias dictaduras con el esencialismo helénico bizantinista. La ausencia del protestantismo que, en varios lugares del Norte europeo había hallado al final una fórmula de conciliación con el catolicismo y había fomentado así el pluralismo ideológico, dificultó en el Sur las relaciones pacíficas entre creyentes y librepensadores. El pluralismo religioso que precedió al laico en el Norte, le preparó el terreno: tal preparación no existía en el Sur. Difícil es exagerar las consecuencias. Tal vez la falta de pluralismo explique, en buena medida, el arraigo que en nuestros países llegaron a alcanzar las sociedades secretas con fines políticos: los carbonarios italianos, el sinedrio portugués y los masones españoles, sin olvidar, en Grecia, la Filikí Etería, sociedad secreta que organizó la rebelión independentista helénica, ya durante la época napoleónica. Los Carbonarios italianos, por ejemplo, se vieron obligados a adoptar la posición conspiracional contra aquellas instituciones que precisamente gozaban del apoyo de la inmensa mayoría de la población. La resistencia vaticana a la unificación del país no sólo exacerbó la confrontación sino que creó una escisión entre dos dimensiones primordiales de la conciencia colectiva comunitaria: la identificación nacional y la fidelidad religiosa. En otros países, como Irlanda y Polonia, ambas cosas iban y siguen yendo juntas. En la Europa meridional su unidad llegó a ser sido esencial para la identidad colectiva del pueblo vasco y también lo fue para los griegos, por lo menos mientras duró el yugo otomano. En Grecia, no obstante, el antagonismo de la jerarquía de la Iglesia Ortodoxa contra la guerra de liberación nacional también hizo inevitable la escisión, a pesar de que existan notables diferencias entre el anticlericalismo occidental y el oriental en el Mediterráneo. La oportunidad de sanar las heridas del abismo entre liberales y socialistas anticlericales, por un lado y tradicionalistas por otro se perdió en los decenios de gobierno parlamentar conservador anteriores a 1914. 22 Sobre la relación entre religión y política en Italia y España, cf. F. Garelli (1996), 11-100 y S. Giner y S. Sarasa (1997), 101-154 en D. Hervieu-Léger (1992).

312

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 313

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

El reformismo predicado por los políticos más sensatos se estrelló contra la mentalidad intransigente que ya había cristalizado. El cinismo político y la apatía cívica habían hecho estragos de los que no era posible recuperarse con rapidez. En consecuencia, el cinismo institucionalizado empapaba el «rotavismo» portugués, o alternancia en el poder entre los Regeneradores (conservadores) y Progresistas (liberales) durante el período 1861-1889 y el turno entre liberales y conservadores españoles durante la Restauración española. Y en ambos países iba ello unido al caciquismo, al pucherazo y a otras añagazas políticas. Ese cinismo halló su ejemplo supremo en el «transformismo» italiano, según el cual los gobiernos se formaban sin tener en cuenta la pertenencia a los partidos de sus miembros ni sus supuestos principios respectivos: por el simple poder los diputados elegidos para formar gobierno abandonaban completamente su mandato electoral. Aunque se produjeron algunos esfuerzos significativos para reformar esta situación, nunca tuvieron éxito (Kolinski 1979, 17; Punset 1979). El cinismo institucionalizado dio al traste, al final, con la poca democracia y libertad de que se gozaba. Los intelectuales liberales dieron prontas señales de desencanto y anunciaron indirectamente los albores de la solución fascista, muchas veces sin caer ellos mismos en esta moderna barbarie. Así Joaquín Costa en España empezó a inclinarse hacía una teoría tecnocrática del gobierno y la reforma económica, mientras que Vilfredo Pareto en Italia elaboró una teoría de las élites políticas que cortaba todo ligamen con el liberalismo progresista. La debilitación de la fibra moral liberal, atrapada entre la negación de la legitimidad del estado (tal como la expresaban por ejemplo los anarquistas) y una resistencia feroz a la reforma cultural secularizadora por parte de las fuerzas reaccionarias fue un factor decisivo en el triunfo final de la fórmula fascistoide. Algunos analistas han señalado muy cuerdamente que ni el fascismo ni la dictadura estaban destinados por la fatalidad a acabar con la democracia (Linz 1978). Aunque siento grandes simpatías por esta idea que tanto peso atribuye a la estrategia hábil de los gobernantes demócratas y corrige los excesos del determinismo, uno se ve obligado a ser bastante pesimista en cuanto a las posibilidades reales del republicanismo liberal y progresista en la zona estudiada y en aquélla época, que aún no había visto las transformaciones económicas y socioestructurales necesarias para el confinamiento del extremismo a sectores minoritarios y poco poderosos. Las formas ideológicas adoptadas por el fascismo consistieron en una amalgama de mitos históricos, doctrinas racistas, sublimaciones de frustraciones imperiales y cocciones de concepciones históricas pseudocien313

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 314

Salvador Giner

tíficas. Hoy parecen ridículas, y lo eran ya cuando se proclamaron, pero en las circunstancias de la época, y apoyadas en la fuerza bruta de los enemigos de la democracia y de la sociedad civil autónoma alcanzaron no poco predicamiento. Sus orígenes son ya prefascistas. Así, hacia 1914 un mitólogo portugués ya afirmaba que sus paisanos no eran ni hominii euoropeii ni espécimenes del homo mediterranesis sino miembros del imaginario y superior homo atlanticus. Tal ensueño sería secundario para el pragmatismo salazarista posterior, pero ello no impediría a aquél régimen predicar la misión universal cristiana y civilizadora de la nación lusitana, por encima de cualquier otra, como doctrina central justificadora. Parecidas doctrinas conformaban la ideología franquista de la Hispanidad. La megali idea griega, que procedía de las ilusiones y frustraciones panhelénicas iniciales, vino a ser parte esencial de la doctrina reaccionaria de aquél país y tergiversada completamente. Las nociones fascistas de imperio romano y civiltà son demasiado bien conocidas para necesitar comentario. En todos estos casos no parecían importar falacias y contradicciones. El único consuelo que cabe es que los viejos pueblos mediterráneos, nunca desprovistos del todo de su vieja y sabiduría y escepticismo, jamás cayeron, como hicieran los alemanes, en una convicción casi totalmente generalizada de la rectitud de tales ideologías. En algún caso la incredulidad popular fue muy aguda, como cuando los Coroneles griegos, desde 1967, proclamaron que sintetizaban los valores (esencialmente contradictorios) de la Hélade antigua y de Bizancio. Su dictatura se hundiría tras haber sufrido la irrisión y el sarcasmo populares. La dictadura de los Coroneles acaeció en una época ya culturalmente posfascista, cuando el gran ciclo de las dictaduras fascistizantes daba sus últimas boqueadas en un mundo neoliberal próspero. Superado ese ciclo, y dejadas atrás ya las guerras anticomunistas en Italia, España y Grecia, las tres penínsulas mediterráneas entraron en una última fase – que exploraré en seguida – en la que se produjo finalmente una instauración (no sin restricciones) del liberalismo. Pero en ella no aparece éste encarnado en un partido, sino como cultura general para el consenso político. Su legado radical de secularismo militante y reformista fue heredado por comunistas y socialistas, no sin readaptaciones importantes. Se debieron éstas entre otras cosas, a la desaparición del anticlericalismo (sustituido por la indiferencia) y a la aparición de una cultura consumista y lúdica de espectáculos deportivos y televisivos constantes. Estos últimos fenómenos deberían haberse tenido más en cuenta por parte de quienes llegaron a afirmar, en los años 80, que, en contraste con el Norte, en el Sur de Europa la izquierda había creado una verdadera cultura alternativa a 314

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 315

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

la dominante. Los acomodos con la Iglesia, el cristianismo, y el liberalismo difuso fueron siempre muy considerables desde el primer momento. Cuando Enrico Berlinguer lanzó en 1973 la política del por él llamado «compromiso histórico» la cosa no era tan sólo un movimiento táctico de su partido sino que reflejaba esa adaptación profunda y rompimiento con un pasado de auténtica confrontación antiburguesa. El llamado Eurocomunismo propuesto por Santiago Carrillo en su fase posestalinista reflejó un fenómeno parecido de aparente conversión a la cultura liberal otrora aborrecida, al margen de si ella había penetrado o no las filas comunistas. La aceptación de éstas y parecidas actitudes – como la del mantenimiento socialdemócrata del capitalismo avanzado – no trajo consigo una desaparición de la oposición, como afirmó algún crítico (Tarrow 1979). Lo que sí auguró el fin de la gran escisión de la cultura política tradicional así como un lento y nada fácil resurgir de una legitimación amplia del orden político constitucional. Es éste un buen contexto en el que entender la militancia extremista: la lucha armada contra el «orden burgués», el terrorismo, e incluso ciertas formas de oposición extraparlamentaria, a pesar de importantes diferencias entre sí. La aparición de grupos terroristas a ambos extremos del espectro político así como la formación de movimientos políticos minoritarios revolucionarios puede relacionarse con la debilitación de la escisión política tradicional y su sustitución por un grado apreciable de consenso. A su vez, cada acto de violencia – terrorismo neofascista, separatista, estatal, militarista, etcétera – forja mayor unidad entre los partidos constitucionalistas. El apoyo masivo al parlamentarismo y la constitución que generó el asesinato del Primer Ministro Aldo Moro en Italia en 1978 (apoyo iniciado por el Partido Comunista) halló paralelos parecidos en demostraciones populares democráticas y antigolpistas en España, tras la intentona anticonstitucional de Febrero de 1981. En ese país la táctica de ETA reforzó la unidad y resolución de los partidos constitucionales, en vez de dividirlos, y constituyó el mejor pretexto para los elementos golpistas en el Ejército. Media pues un abismo entre las discrepancias interpartidistas de la época democrática iniciada allí en 1976 y las que enfrentaban a los partidos antes de 1936. Las fisuras y polaridades en el universo políticocultural de la Europa sureña no se limitan a la confrontación del consenso con el desafío extremista. Son también las que genera la naturaleza de mosaico de sus sociedades respectivas. La pluralidad étnica y lingüistica de la Península Ibérica, junto a la distinción entre Norte y Mediodía en Italia, son los casos paradigmáticos. Con implicaciones distintas existe también una división 315

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 316

Salvador Giner

importante en Portugal a lo largo del Ribatejo, aunque quizás el mundo cultural lusitano se divida con mayor claridad en el Mondego, en Coimbra. Aunque hay congruencias aquí entre religión, mentalidad, y otros aspectos culturales, por un lado, y estructura económica, por otro, parece evidente que es muy difícil establecer correlaciones sólidas. Más bien parece que en discontinuidades y dualismos se entrecruzan y superponen en la zona de modos distintos en cada lugar y país. El conflicto político se exacerba cuando existe una superimposición de agravios, como ocurriera en el Alto Adige o Bajo Tirol y más tarde, y con mayor virulencia, en el País Vasco. En esos lugares confluyen inmigración laboral y funcionarial, dificultades económicas, falta de autonomía, malgobierno, etnia diferente y otros factores que, juntos, conducen a la exasperación popular y a la tragedia civil. Existen además otras discontinuidades socioestructurales. Una de las más notables es el abismo tradicional entre la ciudad altamente civilizada y su trasfondo inmediato atrasado, abismo hoy en crisis avanzada. Nápoles es característico en ello, pero también lo fueron Barcelona y Bilbao, con sus «hinterlands» carlistas y antiliberales en pleno florecimiento industrial y burgués. Ello ha sido un rasgo fundamental de estas sociedades durante siglos, quizás milenios, y sería insensato afirmar que ciertas características aparentemente perennes de la antropología social mediterránea vayan a desaparecer de la noche a la mañana, o que no vayan a afectar como lo hicieron antaño, a la vida política y económica de esos países (Baroja 1966; Barzini 1980; Allum 1968).

Transición económica, transición política Dos sucesos, paradójicos en sus resultados, condujeron, junto a otros, a la Europa del Sur hacia un orden político liberal democrático mucho más sólido y duradero que cualquiera de los que le precedieron: (a) el agotamiento de la legitimación patrimonial despótica y reacionaria del poder a través de la propia ideología fascistoide y (b) las mudanzas en la estructura misma de la economía producidas, en no poca medida, por la misma política de las dictaduras. Vimos ya cómo, en el marco del orden represivo y reacionario descrito más arriba las dislocaciones provocadas por la naciente sociedad industrial engendraron una oposición política de talante revolucionario y no meramente radical. Los esfuerzos por incorporar al socialismo moderado en el sistema político establecido fracasaron al final bajo la tenaza que formaba, 316

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 317

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

a su izquierda, el movimiento revolucionario y, sobre otro flanco, la represión reacionaria o, más tarde, fascista. Esa fue la historia desde la época de las ocupaciones de fábrica en Turín durante el Bienio Rojo (1919-1920) – que condujeron a la fundación de un partido revolucionario por Gramsci y sus colegas – hasta la derrota de socialistas, comunistas, anarquistas y liberales por las fuerzas militares franquistas en España, en 1939. Todo ello culminó en el descalabro de los comunistas griegos en otra guerra civil (1946-1949). Había de ser la última de la Europa meridional, hasta que estalló la de los Balcanes en 1991, con la descomposición de Yugoslavia. Fue coronada en Grecia por el pseudoliberalismo y la reacción. En la mayoría de los casos los liberales preferían aliarse a la extrema reacción o al más puro fascismo a aliarse con los socialistas o a aceptarlos así: en Noviembre de 1922 un parlamento predominantemente liberal votó abrumadoramente en favor de Benito Mussolini. El modo de hundimiento de cada una de las dictaduras reacionarias varió de país en país: no hay un único modo de transición al pluralismo parlamentario capitalista y de estado asistencial. Así, fue la derrota en la guerra aventurera e insensata la que acabó con el fascismo italiano en 1943 y el aventurismo, tras la intervención griega en Chipre, con el régimen de los Coroneles en 1974. En España el franquismo se fue desgastando a través de su propia política económica desarrollista, sobre todo desde 1959, que le permitió adaptarse con singular tino a un mundo cambiante, y desplazar del primer plano político a los sectores clericales anticuados y a los falangistas autarquizantes. Cuando Franco murió en 1975 la ideología oficial ya se había evaporado. En cuanto a Salazar, fue el más ladino de los jefes fascistoides: desde el primer momento se percató de los peligros de la modernidad para la estabilidad de su poder y consiguió mantener a la población en una admirable ignorancia de las vanidades del mundo tecnológicamente avanzado y pecaminosamente secularizado. Aparte del siempre especial caso del fascismo italiano – dada su originalidad y la desconfianza ante Vaticano característica de ciertas fuerzas políticas de aquel país desde Garibaldi – el fracaso ideológico de estos regímenes fue muy espectacular. En ninguna parte fue mayor que en el régimen clericalista franquista, donde se vaciaron los seminarios y decayó la piedad pública bajo su propia égida, amén del poderoso movimiento de oposición democrática que iniciaron para escarnio suyo, los mismos cristianos demócratas de izquierda. Los despotismos reacionarios del siglo XX en la Europa meridional se imbricaron en el aparato estatal de modo nuevo. Lo usaron para complementar los débiles esfuerzos del capital privado en la tarea de la acu317

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 318

Salvador Giner

mulación capitalista en gran escala, en la industrialización, en la creación de una infraestructura económica y en la urbanización de la población, entre otros objetivos. Los métodos que emplearon en conseguirlo – y en especial el de la acumulación violenta del capital sobre un campesinado subyugado y una clase obrera sin sindicatos libres- son conocidos. Con la parcial excepción de la economía salazarista prekeynesiana, las demás dictaduras mediterráneas se adentraron por la senda de la expansión capitalista privada y pública y por la de la producción estatal monopolista. Bajo el signo de la autarquía nacional, Italia y España crearon vastos holdings estatales, el Instituto per la Ricostruzione Industriale (IRI, fundado en 1933) y el Instituto Nacional de Industria (INI, establecido en 1941) que los regímenes parlamentarios posteriores no intentaron desmantelar. (Sólo llegados los años 70 y 80, ambos gobiernos iniciaron privatizaciones parciales y comenzaron a revisar su concepción de estos entes públicos, coincidiendo con la oleada privatizadora internacional y obligados, en algunos casos, por los reglamentos de la Comunidad Europea). Los orígenes de esta tendencia distan de ser estrictamente fascistas o de encajar en su ideología inicial. En Italia se encuentran en intervenciones públicas de remedio, surgidas a raíz de la crisis de 1929 (Maraffi 1980). Por su parte, sucesivos gobiernos griegos mostraron tendencias intervencionistas muy pronunciadas, sobre todo a través de la banca (cuyo poder sobre la economía llegó a ser tan grande si no mayor que en España) que representaban allí un enorme programa de inversión pública. En todos los países en cuestión, tras ciertas fricciones y tensiones con el sector privado, el legado estatal del difunto estado fascistoide se fue ido acoplando con relativa facilidad a las nuevas formas de capitalismo avanzado occidental. Funcionó, durante el auge del keynesianismo, como en cualquier otra parte de ese mundo: el estado absorbía a veces empresas enfermas, financiaba las políticamente convenientes, y hasta llego a ser el amo de algunas compañías eficientes y, en ciertos períodos, no deficitarias, como líneas aéreas o empresas de ingeniería civil. Tras la aparición de las inversiones extranjeras masivas en los años 60 (ya antes en Italia) combinada con la penetración de las empresas multinacionales en la Europa meridional, la función económica del estado se desplazó hacia la coordinación y arbitraje de la economía, con una reducción notable de su peso inversor como empresario. El estado empezó a garantizar la repatriación de capitales y beneficios y, en las dictaduras, la disponibilidad de una clase obrera dócil y barata. Las consecuencias políticas de Yalta y la victoria de 1945 descartaron la posibilidad del socialismo en los cuatro países. Sus gobiernos eran dic318

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 319

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

tatoriales en España y Portugal; parlamentarios de derecha en Italia, con conatos de democracia tergiversada en Italia, como ocurriera con la legge truffa, inspirada por De Gasperi en Italia y abrogada un año después de las elecciones de 1953, y que había poseído un inquietante parecido a la ley Acerbo mussoliniana de 1923; reacionarios y de «democracia guiada» en Grecia. Ninguno de estos regímenes tuvo otra opción que la de la apertura al capitalismo internacional. La estabilidad y la mano de obra barata permitieron que continuara el ensanchamiento, de Norte a Sur, del mundo europeo industrializado capitalista en busca de mano de obra barata. En el caso de Grecia, además, ello permitió que el capital de la diáspora volviera finalmente al redil. Toda resistencia a la inversión extranjera (o esfuerzos de nacionalización, como fuera el caso de la compañía Barcelona Traction tras el triunfo franquista) se había esfumado en 1970, sino antes. Hubo una efímera excepción en el caso de Portugal, impelida por la euforia del golpe democrático de 1974, pero acabó con el plan de estabilización de 1978, cuando la economía volvió a criterios de acumulación de plusvalía y el gobierno obtuvo de nuevo la confianza internacional capitalista (Schmitt 1981). La entrada de Grecia en el Mercado Común (1980) fue seguida por la de los dos países ibéricos, en 1986. En sus esfuerzos por acceder a él sus gobiernos procuraron homologar sus economías a las del centro industrializado de cuya semiperiferia empezaban por fin a dejar de formar parte. En todo este proceso subyacen importantes tendencias de internacionalización del capital, transferencias de tecnología, migraciones laborales internacionales, europeización del mercado de trabajo y transnacionalización del proceso productivo que no pueden ser descritas en este lugar, pero cuyas consecuencias para la integración socioestructural europea son muy considerables (Nikolinakos 1976). En el análisis de esa integración hay que ir con cautela en lo que se refiere a la idea del colonialismo económico del Norte (y los EE UU y Japón) sobre el Sur de Europa. Así Italia posee sus multinacionales y algunas industrias importantes en los demás países son internacionalmente competitivas: la expansión industrial y comercial de Grecia y España en el extranjero es un hecho, aunque su alcance pueda parecer comparativamente limitado (parte de esta expansión, como en el caso de la industria aeronáutica española, va unida parcialmente a la de empresas extranjeras). En todo caso el paso de la semiperiferia al centro está ocurriendo con una característica mezcla de subordinación y autonomía, típica de la región desde principios del largo período histórico aquí considerado. El proceso no se completó durante los años 90, a pesar de que hubo paises como España, cuyo gobierno socialista lanzó en 1991 un duro plan 319

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 320

Salvador Giner

de convergencia con los países de la Comunidad Europea más avanzados. La crisis económica posterior, iniciada en 2008, mostró hasta qué punto alguno, como Grecia, pero también Portugal, no estaban en plenas condiciones, como se vio claramente en 2011. Todo ello entrañó mudanzas en la fuerza y posición relativa de las clases sociales tradicionales. Así la creación de una clase obrera industrial meridional en el Norte de Europa (frenada desde 1973) fue uno de los fenómenos más espectaculares (seguido por la aparición de sectores inmigrantes extraeuropeos, no sólo en el Norte de Europa sino en su propio Sur). También lo fue el establecimiento de industrias en el Mediterraneo, donde las multinacionales hallan ahora una mano de obra especializada, y una infraestructura de autopistas, telecomunicaciones, aeropuertos y sanidad tan conveniente como en sus países de origen. En medio de tales cambios las burguesías financieras e industriales nacionales que ya habían visto su poder complementado (y hasta circunscrito) por el auge del capitalismo estatal tienen que enfrentarse ahora con la competencia extranjera o bien, como suele suceder, subordinarse a ella o ceder del todo, vendiendo sus propiedades. Dada la autonomía política de sus respectivos estados – a pesar de las erosiones sufridas por la progresiva unificación impuesta por la Comunidad Europea – ello ha redundado en un aumento de poder para grupos de presión de toda índole, partidos y sindicatos, sin olvidar las nacientes «burguesías de estado» y los conglomerados industriales y financieros con intereses propios y distintos de las burguesías tradicionales. El colapso de la ideología dictatorial en conjunción con estos cambios en la economía abrió las puertas a una política pluralista (con las limitaciones con que debe usarse el término) semejante a la practicada en el resto de Europa occidental, aunque difiera de ella en ciertos sentidos. Así, en el centro y la derecha continuan siendo importantes los partidos controlados por notables, dotados de una ideología sincrética y orientados hacia la colonización del estado (Palma 1979). La metamórfosis de la vieja clase política reaccionaria en un partido o partidos democráticos cubriendo el centro y la derecha fue posible, como indiqué más arriba, en virtud de la composición clasista de los regímenes dictatoriales, no totalitarios, que precedieron a la situación constitucional. Ello se aplica tanto al partido Nea Demokratia de Karamanlís en Grecia como a la Unión de Centro Democrático que forjara Adolfo Suárez en España. Sus plataformas electorales (maltrechas posteriormente por el ascenso del socialismo en ambos países) presentan algunas similitudes faccionales, ideológicas y de clase. Tras el interludio pretoriano y socialista en Portugal, las victorias 320

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 321

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

de 1979 y 1980 de la coalición conservadora de Sá Carneiro (capitaneada luego por Pinto Balsemão) parecían anunciar una convergencia relativa de todos los gobiernos mediterráneos con la fórmula establecida en Italia en 1948, que permitió allí una hegemonía ininterrumpida de derechas en los decenios subsiguientes. No obstante, la formación de un gobierno de coalición en Italia (que incluía a los socialistas. la victoria del Pasok en Grecia en 198l, y los triunfos socialistas en Andalucía y otros lugares de España – que en 1982 auguraban una victoria en la elecciones generales siguientes – parecían indicar el advenimiento de lo que muchos observadores consideran como la madurez política de la región Sur del continente. En ese sentido madurez es no sólo la existencia legal de una vigorosa oposición democrática de izquierdas, sino su acceso pacífico al poder, seguido de gobierno pacífico y aceptado sin hostigamiento ilegítimo ni anticonstitucional por parte de las fuerzas conservadoras. En ninguno de esos países tuvo lugar una transición de la dictadura a la democracia a través de la revolución. En todos los casos la transición ocurrió con una medida notoria de «democratización desde arriba» aunque no fuera esa la intención del dictador ni de sus sucesores inmediatos.23 En Italia la transición comenzó con fuerza casi revolucionaria en el interior, empujada por el vasto movimiento partisano en lucha contra el fascismo y los ocupantes alemanes, pero fue precipitada por la invasión extranjera. La intervención aliada puso fin a las aspiraciones radicales de los partisanos y de la izquierda antifascista en la derrota electoral del Frente Popular en 1948. En España los planes de «ruptura democrática» con la dictadura se mantuvieron vivos hasta 1977 pero se hicieron superfluos cuando ciertos grupos políticos estratégicamente emplazados en el régimen la forzaron a hacer concesiones y fueron apoyados por los dirigentes de la oposición para la creación de una política consensual. Ni siquiera en Portugal se produjo una ruptura revolucionaria con el pasado: el clamor inicial de justicia contra el régimen derrocado y la incorporación de los ideales socialistas en la Constitución no fueron suficientes para ello. Una de las razones de esta falta de ruptura fue que el golpe militar fue conspiracional, y se desarrolló al margen de todo movimiento popular (Schmitter 1976). La división de la izquierda entre un socialismo democrático mayoritario y un comunismo stalinista poderoso permitió el reagrupamiento de la derecha y la continuidad del arbitraje militar. En Portugal, como tres decenios antes en Italia, el orden militar, económico y político internacional de Occidente hubiera creado muy serias dificul23

Ibid., 43.

321

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 322

Salvador Giner

tades a un cambio socioestructural más profundo aún que el sufrido. Este, en algunos terrenos, como el de la reforma agraria, no dejó de ser importante, a pesar de sus limitaciones.24 La estrechez de las opciones con las que se enfrentaron todas las formaciones políticas en los cruciales momentos de la transición ha hecho que algunos observadores crean que la Europa del Sur está emergiendo una forma «consociacional» de democracia. Aún suponiendo que sea indiscutible la existencia del consociacionalismo en politeyas como la de los Países Bajos, parece problemático aplicar esta categoría a la Europa sureña. El consociacionalismo entraña compromiso y acuerdo entre élites capaces de controlar a sus seguidores y preocupadas por establecer una línea común de acción para evitar la polarización, la confrontación y otras estrategias mútuamente destructivas, pero ello sólo ocurre cuando todos son igualmente libres en elaborarla (Lijphart 1968). En el Mediterráneo, en contraste con ello, las diversas fuerzas políticas entraron en acuerdos y concesiones mútuas bajo una poderosa vigilancia externa o superior (los Aliados en el caso de Italia, la ingerencia extranjera en el caso de Grecia, los «poderes fácticos» militares en Portugal y España). En cada caso hubo árbitros que impusieron condiciones a la naturaleza de la transición. Las fuerzas políticas entraron en ella de modo claramente asimétrico, de un modo congruente con las estructuras de clase, poder y privilegio preexistentes y sin ir más allá de lo que se les permitía desde fuera. Suponer pues que, a pesar de que hay algún elemento cuasi-consociacional en la política española (creado por ejemplo por la presencia de partidos en las nacionalidades de Cataluña y el País Vasco. la política de ese país es consociacional puede ser equivocado. Estas reservas pueden extenderse a otros países. Así en Italia tanto la apertura a sinistra en 1962 como el compromesso storico de 1973 podrían interpretarse como esfuerzos de entendimiento consociacional, con la intención de mantener la democracia, pero ello olvidaría el hecho decisivo de que ambas estrategias ocurrieron después, y no antes, de que todas las partes fueran obligadas a hacer concesiones y darse garantías mútuas en los años clave de 1943 a 1948. El partido Nueva Democracia, de Karamanlís, por su parte, impuso la constitución sobre las demás fuerzas políticas, sin negociación sustancial con ellas. Y el caso portugués es demasiado obvio para precisar comentario.25 24 Para el verdadero alcance de la reforma agraria portuguesa y las ocupaciones de tierras latifundistas, cf. Barros (1981). 25 Para un análisis temprano de los procesos de desradicalización en la Europa Sur, cf. Giner (1984).

322

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 323

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

Entre la libertad y el corporatismo La caída de las dictaduras en la Europa meridional posee interés, no sólo por su importancia intríseca, sino por el momento histórico en que ocurrió. Las nuevas democracias parlamentarias europeas estables no vinieron a unirse al mundo liberal de antaño sino al universo liberal democrático. Ese mundo se apoya en una sociedad que con la debida cautela podría llamarse corporativa, y que es tecnológicamente avanzada y políticamente competitiva. En Occidente la sociedad corporativa se caracteriza por una medida de pluralismo ideológico y partidista, por la existencia de derechos civiles individualistas y por la representación democrática (rasgos todos heredados por el liberalismo) pero también por el desarrollo constante de amplias organizaciones formales (corporaciones) en todos los niveles. Naturalmente, estos últimos rasgos están en contradicción con el primer conjunto de características. De estas corporaciones la más señalada es el estado mismo, pero descuellan también los grandes sindicatos, los partidos, las asociaciones patronales, las compañías multinacionales, las instituciones financieras, los servicios públicos sanitarios. Es pues una sociedad en la que el conflicto de clase, el mercado económico, la integración personal y colectiva están mediatizados y filtrados por las más diversas corporaciones: sindicales, militares, administrativas, financieras, religiosas, educativas, políticas. Esa sociedad, por lo tanto, no puede ser definida solamente en términos de intervención estatal en la economía, o mediante la presencia de la relación tripartita entre el gobierno, los sindicatos y los patrones, aunque sea ésta uno de sus rasgos estructurales. Por lo tanto su orden no puede confundirse con el del «corporativismo» fascista. Los «estados corporativos» italiano, portugués, y de otros lugares, eran meras fachadas, a las que no correspondía una realidad social tangible. La entrada de la Europa sureña en el «centro» corporatizado desde la semiperiferia económicopolítica en que se hallaba tuvo lugar también cuando el nivel de vida, la distribución de los ingresos, la urbanización, la educación, la salud, las tendencias demográficas y tantos otros indicadores sociales casi han alcanzado en ella cotas nordeuropeas o tienden a alcanzarlas. No cabe duda que la distancia que separa en estas cosas a Franconia de Sicilia, a Andalucía de Gales y a Tesalia de Jutlandia es aún muy grande, pero lo significativo es que se va cerrando en varios sentidos. Para ser más preciso: lo que se está cerrando primero es la distancia entre las zonas en desarrollo o ya industrializadas del Sur y las que están estancadas, deprimidas, o sufren desindustrialización en el Norte. En todo 323

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 324

Salvador Giner

caso, la Europa mediterránea ha dejado de formar parte definitivamente de la semiperiferia del sistema económico mundial.26 Aceptar estos hechos no significa aceptar también nociones simplistas de convergencia global entre sociedades. Para empezar, el centro capitalista avanzado, industrializado, dotado de estados asistenciales y claros elementos de corporatismo se ha ido extendiendo al Sur sin diluir siempre sus estructuras clasistas, ni sus culturas locales, redes de patronazgo y lealtades locales o étnicas (Al contrario, algunos nacionalismos «minoritarios» pueden entenderse en parte como respuestas a esta modernización intensificada). Ninguno de estos rasgos ha permanecido intacto, pero su notable resistencia han mantenido desigualdades sociales y geopolíticas, y en algunos casos hasta quizás las hayan agravado. En otras palabras, mientras que es posible afirmar que ha ocurrido un proceso de integración (y hasta de convergencia) al nivel corporativo entre las naciones europeas, apenas lo ha habido al nivel de las clases, la comunidad y el privilegio y el poder locales. En esto último las sociedades mediterráneas son tan singulares como siempre, y tan distintas entre sí como lo fueran ayer. Las generalizaciones transnacionales entre ellas son harto difíciles, y este ensayo no las ha eludido en ningún caso, sólo ha querido poner de relieve algunos elementos interesantes de comparabilidad. Las diferencias entre Andalucía y Sicilia, por ejemplo, son inmensas, como nos dirá cualquier antropólogo que busque bajo el manto delgado de las obvias semejanzas. Y cuando situamos estos países a lo largo del contínuum imaginario del desarrollo económico capitalista, también vemos cuán arduo es hacerlo. Así, Italia sería el más avanzado, seguida de España, y ésta quizás de Grecia, con Portugal en zaga. Pero ello ignoraría ritmos y modos diferentes, cualitativos, de mudanza, por no hablar de las excepciones. Ciertas partes de Italia – Calabria, Basilicata – son enclaves de arcaismo y pobreza pocas veces igualados en el Mediterráneo europeo. En el polo opuesto hallamos zonas industriales avanzadas, como Setúbal o Salónica, enclaves de una especie contraria, y rodeadas de un mundo aún muy rural, con bajo poder adquisitivo y una estructura social atrasada. La actual política de «cohesión» de la Unión Europea no ha sido capaz de reequilibrar por sí sola diferencias regionales de tal gravedad. Acuerdos como los de Maastricht, de 1992, no tuvieron envergadura suficiente aunque fueran admitidos y ratificados por los parlamentos de 26 Una medida precisa de la modernidad de los problemas con que se enfrentan la Europa meridional actual nos la da Jerónimo (2010).

324

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 325

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica

cada país. Por otra parte, a partir de 1998, la expansión hacia el Este ha significado un encogimiento de los «fondos de cohesión» destinados a un Sur cada vez menos pobre o atrasado, política expresada con vigor por Alemania y secundada claramente por Francia e Inglaterra (y con la que no pocos europeos meridionales están calladamente de acuerdo, puesto que la retirada de fondos podría incentivar la competitividad de sus países, al evitarse la mentalidad del subsidio permanente). Parece, además, que la aparición de nuevas zonas de considerable prosperidad e innovación en el Sur – como el arco Milán-Turín-Niza-Marsella-Montpellier-Barcelona-Valencia – se deba a procesos históricos profundos preexistentes, para los aparatos políticos y administrativos sirven, a lo sumo, de agentes agilizadores. Las sociedades corporativas occidentales a las que se han sumado plenamente las mediterráneas (aunque ellas mismas posean aún un grado menor de corporatización) son muy distintas de lo que fueran ayer. Sus partidos, opinión pública y ahora vigorosas sociedades civiles 27 tienen que habérselas hoy con monopolios y oligopolios, y con la expansión incesante del aparato estatal y de las burocracias. En ellas, y por extensión, en las del Sur, el corporatismo genera contracorrientes importantes que pueden conducir a la descentralización política y a oposiciones comunitarias muy notables, así como movimientos populares ligados a reivindicaciones no clasistas, como las pacifistas, feministas, ecologistas, y otras semejantes. A ellas hay que añadir nacionalismos étnicos potentes y regionalismos (como las Ligas norteñas italianas en los años 90, el nacionalismo corso, la vigorosa autonomía de Cataluña) (Moreno 1997) que desean replantear las relaciones centro-periferia dentro de sus propios estados sobre otros criterios de los hasta el momento prevalentes. Y todo ello sin ignorar la permanencia de los males perennes del Sur, empezando por la corrupción política – notablemete en Italia dada su extensión y arraigo, que ha exigido una reestructuración constitucional, pero también en la democracia hispana – y acabando por la dificultosa e inacabable senda de estos países en su afán por atrapar a los norteños en la producción de capital humano. Las dificultades del mundo occidental – el paro, la inflación, el peso de la militarización, la presión fiscal, la competencia de focos industriales 27 Prácticamente existe unanimidad sobre la ausencia o debilidad endémica de la sociedad civil en la región. Algunos ejemplos: Pizzorno (1980); Schmitter, piensa que aparte de ciertos enclaves, el Sur no tiene una «viable civil society» (O’Donnell y Schmitter 1986, 187); Mavrogordatos (1988, 5 y passim), Grecia, afirma que «civil society is debilitated, if not simply pulverized»; véase también Donati (1997).

325

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 326

Salvador Giner

ultramarinos – son ya también las dificultades de la Europa mediterránea. Sus incertidumbres son las de todos los europeos (VVAA 1998). Por ello esta somera exploración de su evolución reciente debe acabar con un interrogante. Ninguno de los males que turban hoy la vida de esos países, sean o no endémicos, puede ya aislarse del marco más anchuroso del que forman parte. La interdependencia política y económica de toda la Europa occidental es ya una verdadera interpenetración. Los países de la Europa meridional han dejado de ser islas, si es que alguna vez lo fueron de verdad. A esta nueva situación ha contribuido en no poca medida el cada vez más dilatado período de consolidación democrática y de reformas políticas a que ninguno de los paises de la Europa meridional aquí considerados ha sido ajeno en los últimos tiempos. Merced a ello los europeos del Sur son, por fin, ciudadanos, equiparables en muchos sentidos a los demás europeos occidentales. Con ellos comparten ahora tanto sus responsabilidades y sus problemas como sus anhelos colectivos, en el marco de la civilización común que a todos ha forjado.

Bibliografía Arrighi, G., ed. 1985. Semiperipheral Development: the Politics of Southern Europe in the Twentieth Century, Beverly Hills, CA: Sage Publications. Allum, P. 1968. «Ecologia politica di Napoli». In Partiti politici e strutture sociali in Italia, eds. M. Dogan y O.M. Petracca. Milán: Comunitá, 49l-542. Bayley, A. 1981. «The anthropology of Southern Europe: towards an integrated explanatory framework». Critique Of Anthropology, 16: 56-57. Baroja, C. J. 1966. La Ciudad y el Campo. Barcelona: Alfaguara. Barros, A. 1981. A Reforma Agrária em Portugal. Oeiras: Fundação Calouste Gulbenkian. Barzini, L. 1980. «Una grande calamità». New York Review Of Books, 7 de Febrero: 43-45. Berend, I. T., y G. Ranki.1974. Economic Development in East-Central Europe in the 19th and 20th Centuries. Nueva York: Columbia University Press. Berger S., y M. J. Piore.1980. Dualism and Discontinuity in Industrial Societies. Cambrige: Cambridge University. Burke, P., ed. 1979. The New Cambridge Modern History. Vol. XII, 318-361. Braudel, F. 1966. La Mediterranée et le monde mediterranéen à l’époque de Philippe II. Vols. I y II. Paris: Armand Colin. Cabral, M. V. 1979. Portugal na Alvorada do Século XX, Lisboa: A Regra do Jogo. Cafagna, L. 1975. «Italy 1830-1914». In The Emergence of Industrial Societies, I Parte, comp. C. Cipolla. Londres: Collins (Fontana Economic History of Europe). Cattaneo, C. 1961. La società umana, Milán: Mondadori, 21-48 Diamandouros, N. et al. 1986. A Bibliographical Essay on Southern Europe and its Recent Transition to Political Democracy. Florencia: Instituto Universitario Europeo, working Paper 86/208.

326

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 327

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica Donati, P., comp. 1997. La società civile in Italia. Milán: Mondadori. Felice, R. 1970. Le interpretazioni del fascismo, Bari: Laterza. Fontana, J., y J. Nadal. 1975. «Spain 1914-1970». In Contemporary Economies, II Parte, comp. C. Cipolla. Londres: Collins (Fontana Economic History of Europe). Gallagher, T. 1979. «Controlled repressionin Salazar’s Portugal». Journal Of Contemporary History, 14: 385-402. Garelli, Franco. 1996. Religione e Chiesa in Italia. Bologna: Il Mulino. Gerschenkron A. 1962. Economic Backwardness in Historical Perspective. Cambridge, MA: Harvard University Press. Giner, S. 1984. The Social Structure of Catalonia. Sheffield: Sheffield University. Giner, S., y E. Sevilla.1980. «From despotism to parliamentarianism: class domination and political order in the Spanish State». In The State In Western Europe, comp. R. Scase. Londres: Croom Helm, 197-229. Giner, Salvador, e Sebastián Sarasa. 1997. Buen Gobierno y Política Social. Barcelona: Ariel. Ginsborg, P. 1990. A History of Contemporary Italy. Londres: Penguin Graham, S. L., y H. M. Makler, comps. 1979. Contemporary Portugal: the Revolution and Its Antecedents. Austin, TX: Texas University. Hermet, G. 1979. «L’éxotisme superflu: Réflexion sur les systèmes politiques de l’Europe du Sud». Politique Etrangère, 44: 127-142; Trad. castellana «Reflexión sobre los sistemas políticos de la Europa del Sur». Arbor, 1981 425: 8-25. Hermet, G. 1981. Les Catholiques dans l’Espagne franquiste. 2 vols. París: Fondation Nationale des Sciences Politiques. Harvey, C. 1982. The Rio Tinto Company: an Economic History of a Leading International Mining Concern, 1873-1954. Londres: Alison Hodge. Hazard , P. 1946. La pensée Européenne au XVIIIe siècle. Paris: Fayard. Hervieu-Léger, D. et al. 1992. La religione degli europei. Turín: Fondazione Agnelli. Izard, M. 1978. El segle XIX: Burgesos i proletaris. Barcelona: Dopesa. Jerónimo, H. M. 2010. Queimar a Incerteza, Lisboa: ICS. Kolinski M. 1979. Continuity and Change in European Society. Londres: Croom Helm. Lijphart, A. 1968. The Politics of Accomodation: Pluralism and Democracy in the Netherlands. Berkeley, CA: University of California. Linz, J. J. 1978. «Crisis, breakdown and reequilibration». In The Breakdown Of Democratic Regimes, vol. I, eds. J. J. Linz y A. Stepan. Baltimore, MD: Johns Hopkins, 11-13. Linz, J. 1979. «Europe’s southern frontier: evolving trends toward what?». Daedalus, 108 (1): 175-210; Trad. castellana «La frontera sur de Europa: tendencias evolutivas». Revista Española De Investigaciones Sociológicas, 1980, 9: 7-52. Lucena, M. de. 1978. O Estado da Revolução: A Constitução de 1976. Lisboa: Sojornal. Lucena, M. de. 2002. «Reflexões sobre a queda do regime salazarista e sobre o que se lhe seguiu». Analise Social, 162: 7-46. Lucena, M. de. 2006. Contradanças: Politica e Arredores. Lisboa: ICS. Mackay, A. 1977. Spain in the Middle Ages: from Frontier to Empire. New York: St. Martins Press. Malefakis, E. 1970. Agrarian Reform and Peasant Revolution in Spain. New Haven, CN: Yale University. Malefakis, E. 1992. «Southern Europe in the 19th and 20th centuries: an historical overview», Estudios/Working Papers. Madrid: Instituto Juan March de Estudios e Investigaciones.

327

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 328

Salvador Giner Maraffi, M. 1980. «State/economy relationships: the case of Italian Republic enterprise». British Journal of Sociology, XXXI (4): 507-524. Maravall, J. M. 1992. «What is left? Social democratic policies in Southern Europe». Estudios/Working Papers. Madrid: Instituto Juan March de Estudios e Investigaciones. Martins, H. 1971. «Portugal». In Contemporary Europe, comp. S. Giner y M. S. Archer. Londres: Weidenfeld, 60-89. Mavrogordatos, G. Th. 1983. Stillborn Republic: Social Coalitions and Party Strategies in Greece, 1922-1936. Berkeley, CA: University of California Press. Mavrogordatos, G. 1988. From Dictatorship to Populism: Organizaed Interests in Greece. Multicopiado, estudio para el Proyecto «Organized interests in Southern Europe», Instituto Universitario Europeo, Florencia. Maxwell, Kenneth. 1986. «Regime overthrow and the prospects of democratic transition in Portugal». In Transitions from Authritarian Rule: Prospects for Democracy, eds. G. O’Donnell e P. Schmitter. Baltimore e Londres: Johns Hopkins University Press, 1986, 109-137. Mazower, M. 1993. Inside Hitler’s Greece: the Experience of Occupation (1941-1944). New Haven, CN: Yale University Press. Moreno, L. 1997. La Federalización de España. Madrid: Siglo XXI. Mouzelis, N. 1978. Modern Greece: Facets of Underdevelopment, Londres: Macmillan. Mouzelis, N. 1984. «The rise and decline of Southern European socialism». New Left Review, 146: 37-52. Mouzelis, N. 1986. The Semiperiphery: Early Parliamentarism and Late Industrialization in the Balkans and in Latin America. Londres: Macmillan. Nadal, J. (1975. El Fracaso De La Revolución Industrial En España, Barcelona: Ariel. Nikolinakos, M. 1976. «Die Internasionaliesirung Des Arbeitsmarktes Imnerhalb Der Europaischen Gemeinschaft, International Labour Migration Project, Berlin: Wissenschaftszentrum, International Institute For Comparative Social Studies, Octubre. O’ Donnell G., y P. C. Schmitter, comps. 1986. Transitions from Authoritarian Rule. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press. Pais J. M. et al. 1976-1978. «Elementos para a história dos campos: a «Campanha do Trigo» (1928-1938)». Análise Social, XII (46): 400-474; XIV (54): 321-389. Palma, G. 1979. «Italia, Portogallo, Spagna: ipotesi su tre regimini alla prova». Prospettiva Settanta, III (1): 44-48. Pereira, M. Halpern. 1971. Livre-Câmbio e Desenvolvimento Económico: Portugal na Segunda Metade do Século XIX. Lisboa: Cosmos Pinto, A. Costa. 1991. The Salazar ‘New State’ and European Fascism. European University Institute working papers in history, 91/12. Pizzorno, A. 1980. I soggetti del pluralismo: classi, partiti, sindacati. Bolonia: Il Mulino. Punset, R. 1979. «Maura y el maurismo: perspectiva histórica de la revolución desde arriba». Sistema, 33: 129-141. Renner, K. 1953. Wandlungen der Modernen Gesellschaft. Viena: Arno Pr. Ribeiro, O. 1987. Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, 5.ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa. Salazar, António de Oliveira. 1916. A Questão Cerealífera: = Trigo. Coimbra: Imprensa da Universidade. Schmitt, H. O. 1981. Economic Stabilization and Growth in Portugal. Washington, DC: Fondo Monetario Internacional. Schmitter P. C. 1976. «Liberation by golpe: retrospective thoughts on the demise of authoritarian rule in Portugal». Armed Forces And Society, 2 (1): 5-33.

328

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 329

La modernización de la Europa Meridional – una interpretación sociológica Shils, E. 1975. Center and Periphery. Chicago, IL: Chicago University. Tapia, A. R. 1979. «Consideraciones metodológicas para el estudio de la represión franquista en la Guerra Civil». Sistema, 33: 99-128. Tarrow, S. 1979. «Italy 1978: where everybody governs, does anyone govern?». In Legitimation of Regimes, ed. B. Denitch. Londres: Sage, 229-248. Trigilia, C. 1992. Sviluppo senza autonomia: effetti perversi delle politiche nel mezzogiorno. Bolonia: Il Mulino. Tsoucalas, C. 1969. The Greek Tragedy. Londres: Penguin Vilar, P. 1962. La Catalogne dans l’Espagne moderne. París: SEVPEN. VV. AA. 1979. «Cambio social en la Europa Mediterránea». No. monográfico de Papers, Revista De Sociología, 11. VV. AA. 1998. Parabole sociali tra certezze e incertezze: dove va la società italiana. Milán: Franco Angeli. Wallerstein, I. 1979. The Capitalist World Economy. Cambridge. Cambridge University. Woolf, S. J., comp. 1968. The Nature of Fascism. Londres: Weidenfeld.

329

14 MVCabral Cap. 14_Layout 1 6/24/13 9:01 AM Page 330

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:30 AM Page 331

José Machado Pais

Capítulo 15

Das casas de família às casas de alterne: em Trás-os-Montes com Manuel Villaverde Cabral Um dia, depois de um magnífico almoço de casulas secas com carnes de variadas espécies, de entre as quais merece destaque o butelo (chouriço confeccionado com ossos esmagados), dei comigo a digerir pensamentos de casula. O proprietário do restaurante recomendara-me o prato, considerado uma especialidade transmontana. Perante a minha confessada ignorância, explicou-me que, em Trás-os-Montes, o nome de casula é dado às cascas de um feijão corrente. Consultado o dicionário verifiquei que o nome também é dado à vestimenta sacerdotal que se coloca sobre a alva e a estola e que, no género masculino (casulo), tanto pode designar o invólucro filamentoso construído pela larva do bicho-da-seda e de outros insectos, como a cápsula que envolve as sementes ou mesmo a divisão de madeira onde as pombas chocam os ovos. Etimologicamente supõe-se que o termo derive de casa e, de facto, nos seus variados usos, o seu significado remete para a ideia de protecção, envolvimento, cobertura. Nestes pensamentos de casula, regados por vapores de um verde tinto, comecei a pensar no lugar da casa nas relações sociais dos transmontanos. Sabemos que, na maioria das sociedades, o matrimónio se encontra fortemente associado ao intercâmbio de bens.1 Mas que lugar tem nesta complexa associação o prazer erótico? Que relação poderia haver, por 1

Ver, por exemplo, J. Goody, Bride Wealth and Dowry (Cambridge: Cambridge University Press, 1973) e Brian Juan O’Neill, Proprietários, Lavradores e Jornaleiros. Desigualdade Social Numa Aldeia Transmontana, 1870-1978 (Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983).

331

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:30 AM Page 332

José Machado Pais

exemplo, entre as casas familiares e as casas de alterne que recentemente começara a frequentar, com propósitos escrupulosamente científicos? Há tensões entre a propriedade e o prazer? Engels escreveu há bastante tempo uma obra clássica sobre a origem da propriedade e da família.2 A mim interessa-me mais o conflito entre uma e outra e a hipótese de a propriedade nem sempre se aconchegar à felicidade do casal que, sói dizer-se, constitui a essência da família.

A casa O que falta [...] para que percebamos claramente o modo como os indivíduos foram, até há muito pouco tempo, brutalmente subordinados às casas [...] é um estudo sobre as sanções a que eles estariam sujeitos caso não se submetessem à ferocidade das estratégias colectivas [Manuel Villaverde Cabral, «Trás-os-Montes entre as máscaras e a roda da fortuna», Análise Social, XXI, 1 (1985): 161].

Em Trás-os-Montes, como em muitas outras regiões de Portugal, a unidade social primária ainda continua a ser a casa. Não é por acaso que no Norte do país persiste ainda um «individualismo familista, enquanto vivência obsessiva da casa e na casa».3 E como «quem casa quer casa», é compreensível que o casamento seja orientado pelo projecto da casa e dos «interesses» que a circundam e que envolvem não apenas os que entre si se cortejam tendo em vista o casamento, mas também as respectivas famílias. Hoje, evidentemente, o jogo de interesses viciou-se por efeito do abalo na rigidez das estruturas sociais, mais permeável à mobilidade, em grande parte possível devido à emigração e à escolarização. Um casamento significava casamento de famílias, um acasalamento de bens e posses. Jorge Dias, no seu célebre estudo sobre Rio de Onor, acenava: «O casamento é quase sempre combinado entre as famílias, quando os futuros noivos ainda são crianças, pois convém olhar sempre aos interesses da 2 Friedrich Engels, A Origem da Propriedade, da Família e do Estado (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil (1995 [1.ª ed.: 1884]). 3 José Madureira Pinto e João Queirós, orgs., Ir e Voltar. Sociologia de uma Colectividade Local do Noroeste Português (1977-2007) (Porto: Edições Afrontamento, 2010), 375.Ver também: Manuel Carlos Silva, «Casa e casas em espaço rural minhoto: o poder doméstico», Cadernos do Noroeste, 4 (6-7), (1991): 79-99; João de Pina-Cabral, Sons of Adam, Daughters of Eve: The Peasant Worldview of the Alto Minho (Oxford: Clarendon Press, 1986); João Ferreira de Almeida, Classes Sociais nos Campos: Camponeses Parciais numa Região do Noroeste (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 1982).

332

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:30 AM Page 333

Das casas de família às casas de alterne

casa. A afeição virá depois».4 Neste modelo de família, que entretanto se esbateu, a casa era uma «entidade mítica», símbolo de transmissões patrimoniais que unificavam gerações: «a necessidade de manter a casa (conjunto de haveres) intacta [originava] o casamento tardio, o celibato de grande parte dos filhos, as heranças desiguais, favorecendo um dos filhos que será o herdeiro da casa».5 As normas da endogamia não apenas limitavam a autonomia individual como serviam para regular e salvaguardar a gestão patrimonial nos seus fluxos geracionais, por efeito das heranças. À luz desta lógica, o matrimónio perfeito era aquele em que as fortunas de ambas as partes se encontravam numa relação de equilíbrio, como fundamento de uma negociação equitativa.6 As estratégias de reprodução social apareciam protegidas pela instituição do matrimónio. O celibato dos filhos primogénitos não correspondia apenas a uma afirmação excessiva da autoridade dos pais, assegurava também a protecção do património económico, uma vez que evitava o fraccionamento das terras, consolidando a propriedade na órbita da «casa». Porém, a exclusão do casamento não significava uma «recusa do acesso à sexualidade»,7 como bem sugerem as significativas percentagens de filhos ilegítimos. A salvaguarda dos «interesses da casa» era assegurada colocando em lugares distintos os filhos bastardos e os legítimos. Teresa Albino, ao pesquisar mães solteiras numa aldeia transmontana, sugere a existência de dois modelos de sexualidade: «uma sexualidade socialmente controlada e uma sexualidade ilícita e ‘amorosa’ entre membros de grupos económicos diferentes».8 A sexualidade extramatrimonial, sinalizada pela elevada percentagem de mães solteiras, acabava por assegurar a reprodução da mão-de-obra nos campos, graças aos filhos bastardos, também conhecidos por «filhos das ervas», geralmente concebidos nas eiras e leiras, fora do espaço doméstico, isto é, da casa. Nesta, lugar sacro da família, concebiam-se os filhos legítimos. Fora de casa, nos lameiros, surgiam os deslizes, os filhos ilegítimos, os zorros. Adiante veremos que a casa de alterne não é propriamente um equivalente dos lameiros e jeiras. Mas a sua apro4 Jorge Dias, Rio de Onor. Comunitarismo Agro-Pastoril, 3.ª ed. (Lisboa: Editorial Presença, 1984). 5 Id., ibid., 318. 6 Theodore Zeldin, Histoires des passions françaises, 1848-1945: Ambition et amour, vol. 1 (Paris: Seuil, 1980). 7 Paula Godinho, O Leito e as Margens. Estratégias Familiares de Renovação e Situações Liminares em Seis Aldeias do Alto Trás-os-Montes Raiano (1880-1988) (Lisboa: Edições Colibri, 2006), 198. 8 Teresa de Jesus Albino, «Mães solteiras numa aldeia transmontana», Análise Social, XXII, 92-93 (1986): 683-695.

333

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:30 AM Page 334

José Machado Pais

ximação é dada por uma comum exterioridade em relação ao espaço da casa, em ambos os casos havendo lugar para uma sexualidade ilícita. Umas vezes havia falatório fofoqueiro sobre a provável paternidade dos filhos ilegítimos, apontando-se a dedo o causador do deslize. Outras vezes a paternidade era assumida e os rumores desapareciam. Outras vezes, ainda, invocavam-se «manigâncias diabólicas» para abafar sussurros de málíngua sobre alguns suspeitos. Numa aldeia transmontana corria a crença lendária de que o Diabo se disfarçava de padre – o Senhor Padre Bento, um «santo homem» – e, astutamente, esperando as mulheres pela caída da noite, junto a uma fonte, o maganão atraía-as para trás de umas carvalheiras para logo as possuir. Era tamanha a tentação do demónio que as mulheres, mesmo sem necessidade de água, lá iam à fonte, como que arrebatadas pelo magia do diabo, mascarado de Padre Bento.9 O acesso a um bom casamento dependia da disponibilidade de património.10 Num livro desse grande romancista transmontano que é Pires Cabral (A Loba e o Rouxinol), a personagem central é um antigo marçano, posteriormente caixeiro, que depois de muito amealhar, lá conseguiu comprar a mercearia da viúva onde trabalhava. Só então se atreve a aproximar-se daquela com quem viria a casar-se: «O estatuto social autorizava agora a ousadia: um simples caixeiro nunca se atreveria, um merceeiro sim.» 11 Os casamentos eram realizados por conveniência, segundo uma regra simples de isogamia: «tanto tens quanto vales». A casa aparecia sempre como o núcleo de união do parentesco com a propriedade. Assim sendo, os casamentos não podiam colidir com os interesses da casa. A relação entre património e matrimónio na região transmontana foi bem evidenciada por Brian O’Neill,12 ao mostrar como o acesso à terra e ao trabalho ia a par com o acesso ao casamento e à herança. Numa recensão ao seu marcante livro – Proprietários, Lavradores e Jornaleiros –, Manuel Villaverde Cabral antevia, contudo, uma pista por explorar: «O que falta nesta pesquisa para que percebamos claramente o modo como os indivíduos foram, até há muito pouco tempo, brutalmente subordinados

9 Cláudio Amílcar Carneiro, Pelo Nordeste de Trás-os-Montes (Mem Martins: Edições do Jornal Amadora-Sintra, 2001), 216. 10 Robert Rowland, «Sistemas matrimoniales de la Península Ibérica (siglos XVI-XIX). Uma perspectiva regional». In Demografía Histórica en España, orgs. Vicente Perez Moreda e David-Svens Refer (Madrid: El Arquero, 1988), 72-137. 11 A. M. Pires Cabral, A Loba e o Rouxinol (Lisboa: Âncora Editora, 2004), 24. 12 Brian O’Neill, Proprietários, Lavradores e Jornaleiros. Desigualdade Social numa Aldeia Transmontana, 1870-1978 (Lisboa: Publicações Dom Quixote, colecção «Portugal de Perto», 1983).

334

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:30 AM Page 335

Das casas de família às casas de alterne

às casas nesta comunidade é um estudo sobre as sanções a que eles estariam sujeitos caso não se submetessem à ferocidade das estratégias colectivas.»13 A insubordinação às casas podia ocorrer em dois momentos distintos: antes ou depois do casamento. Antes do casamento, a «ferocidade das estratégias colectivas», nomeadamente das estratégias familiares, criava barreiras complicadas de ultrapassar em relação a todos aqueles que pretendessem casar fora do seu círculo social. As violentas reprimendas funcionavam, na maior parte dos casos, como sanções inibitórias de todos aqueles que ameaçassem os «interesses da casa». As fontes literárias dão-nos sugestivos exemplos dessas sanções dissuasoras. A título de exemplo, vejamos como uma jovem, convicta dos seus sentimentos, se enfrenta com a sua exaltada mãe: – Sua cabra! De todos os rapazes que te andam a cheirar o rabo, só se havia de agradar daquele valdevinos. – Que é que vossemecê quer? – tornava a filha, muito fouta e desenganada – Fique sabendo que o bem-querer não se compra nem se vende. Só quero àquele rapaz e, se não casar com ele, descanse que nenhum outro se gozará de mim.14

Se antes do casamento as reprimendas aparecem como uma força dissuasora, depois do mesmo os «interesses da casa» correm riscos quando um dos cônjuges – normalmente o marido – ameaça desmembrar o património da casa por efeito de traições conjugais ou viciação na chamada «má vida». Por aqui vemos que enquanto o casamento aparece como uma instância que assegura a permanência da «casa» e da «propriedade», o putedo é uma espécie de vendaval que ameaça essa permanência, ao contrário do que acontecia quando o património – simbolizado pela casa – era assegurado através do celibato masculino, daí derivando o elevado número de mães solteiras e filhos ilegítimos. O movimento das Mães de Bragança que tanto brado deu 15 pode interpretar-se como um grito de revolta de mulheres traídas quando os homens que as levaram ao altar fogem às suas responsabilidades económicas perante a «casa».

13 Manuel Villaverde Cabral, «Trás-os-Montes entre as máscaras e a roda da fortuna», Análise Social, XXI, 1 (1985): 161. 14 A. M. Cabral, O Diabo Veio ao Enterro. Contas do Nordeste, 2.ª ed. (Macedo de Cavaleiros: Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros, 2000), 40. 15 José Machado Pais, «‘Mães de Bragança’ e feitiços: enredos luso-brasileiros em torno da sexualidade». Revista de Ciências Sociais, Universidade Federal do Ceará (2010), 41 (2): 9-23.

335

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:30 AM Page 336

José Machado Pais

Aliás, a favor da casa mobilizam-se sacrifícios que chegam a perigar o equilíbrio emocional da família. Um padre de Bragança deu-me o exemplo de uma família da sua paróquia: «Fizeram investimentos em casa própria, contraíram empréstimos bancários, mas com a crise económica vivem com dificuldades. Às vezes aparecem-me: ‘Se pudesse arranjar alguma coisa para os meus filhos que já não comeram ontem’... Há muita gente que tem um bom carro até, um bom apartamento ou uma vivenda, mas hoje não tem de comer. A banca absorve-lhe os rendimentos.» Se as dificuldades económicas podem levar a família a uma situação de crise, dados os investimentos excessivos na casa, há também quem sugira que os interesses da casa não raramente se sobrepõem aos interesse dos casados, no que respeita ao relacionamento afectivo e sexual. O proprietário de um acolhedor restaurante de Bragança falou-me dos «casamentos arranjados» que normalmente não funcionam bem: «têm casas, bens… mas na cama são dois sacos de palha». E explicou-me a razão de ser das maleitas conjugais: «Depois de casado o homem tem vergonha da mulher. A mulher pode ser muito honesta, mas depois de casar engorda, as mamas ficam descaídas, não dá importância à sexualidade.»

As cabras Mais vale a sólida teoria espontânea do indígena do que a rebuscada interpretação do colono cultural que o cientista social inevitavelmente é [Manuel Villaverde Cabral, «Trás-os-Montes entre as máscaras e a roda da fortuna», Análise Social, XXI, 1 (1985): 159].

A oposição entre a casa (lugar do lícito) e o que se passa fora dela (onde o ilícito ocorre) – no fundo, uma dualidade entre o dentro e o fora – reproduz-se a uma outra escala territorial quando uma dada comunidade (aldeia) se opõe ao exterior (aldeias vizinhas). O sentido da comunidade é sinalizado pela existência de baldios comunitários, onde se faziam roçadas, subsistindo ainda hoje uns quantos «moinhos do povo». Em algumas aldeias existia, outrora, um trabalho comunitário gratuito, a chamada tornajeira. Embora, sob a pretensa unidade anunciada pelo termo «comunidade», exista, na verdade, uma diversidade de situações e relações sociais, o certo é que em muitas regiões do Norte de Portugal eram abundantes os ritos celebradores desse espírito de comunidade. Em algumas aldeias do concelho de São João da Pesqueira (Santo Tirso), na época natalícia, rapazes e homens, armados com chuços e espingardas, iam fora da aldeia roubar árvores para queimar em fogueiras. Pelo caminho de re336

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:30 AM Page 337

Das casas de família às casas de alterne

gresso, davam tiros para que ninguém se abeirasse das janelas das casas, afastando assim a possibilidade de servirem de testemunhas. As árvores eram queimadas em grande festa, no adro da igreja, com grande ajuntamento de gente.16 O roubo executado fora da aldeia e comemorado na mesma era um pretexto de celebração para a comunidade. Este espírito comunitário desencorajava namoros e casamentos entre rapazes e raparigas de aldeias vizinhas. Esta era uma realidade de muitas aldeias de Trás-os-Montes e de outras aldeias do Norte de país e das Beiras. Um escritor transmontano relata num dos seus livros: «Uns anos atrás foi para a minha aldeia um peliqueiro de Argozelo, já casado e com filhos. Quando estes chegaram à idade núbil foram procurar consorte à terra paterna, onde haviam nascido, à excepção de uma rapariga que se enamorara de um rapaz da aldeia onde vivia e casara, quebrando assim a tradição e contrariando a vontade parental. Ia-lhe custando cara a desobediência! O pai, que, como aos demais filhos, lhe havia dado quinhentos contos, ameaçara tirar-lhos e expulsá-la de casa entes do casamento.» 17 O mesmo escritor assevera: «namorar em terra alheia não era nada fácil nem aconselhável... mesmo nada... Estava-se sujeito a ser malhado como ferro em brasa na bigorna do ferreiro».18 O escritor, natural de Chacim, conta a história de uma «moça de bem» de quem se aproximou um modesto zagalinho de uma aldeia vizinha. Num dos primeiros encontros saíram-lhe logo a caminho dois rapazes da terra «intimidandoo a entrar na próxima taberna e pagar o vinho, como era costume quem namorava em terra alheia».19 Os rapazes consideravam as raparigas de suas aldeias como propriedade interdita aos forasteiros. Em Barroso (Trás-os-Montes) exerciam uma espécie de «direito» sobre as moças da terra que consistia em as «apalpar» quando circulavam pelas ruas: «Um rapaz passa por uma moça, na rua pública, seja diante de quem for, embora haja recato diante dos pais dela, e apetece-lhe passar as mãos pelas mamas ou tetas das moças e agarra-a pelos dois braços e ela, embora barafuste e estrebuche, ele sabe que não há mal e toca a apalpar.»20 No entanto, em relação aos rapazes de fora da 16 Augusto C. Pires de Lima, «Tradições populares de Santo Tirso». Revista Lusitana, 22 (1919): 3-74. 17 Cláudio Amílcar Carneiro, Pelo Nordeste de Trás-os-Montes (Mem Martins: Jornal Amadora-Sintra (2001), 27. 18 Idem, ibidem, 171. 19 Idem, ibidem, 174. 20 António Lourenço Fontes, Etnografia Transmontana I: Crenças e Tradições de Barroso (Vilar de Perdizes: ed. do Autor, 1974), 106. Reedição (Lisboa: Editorial Domingos Barreira, 1992).

337

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:30 AM Page 338

José Machado Pais

aldeia, o direito somente era concedido contra o pagamento de vinho e bacalhau: «botam-no ao poço se não paga».21 A «endogamia aldeã» revelava-se «a forma mais segura de arranjar noivo».22 Os que arriscavam casar fora da sua aldeia sujeitavam-se a penalizações. Um dos mais interessantes estudos sobre estas sanções foi publicado na Análise Social, por Mário Lages.23 A pesquisa sobre «casamentos exolocais» numa aldeia do concelho de Vila Nova de Paiva (Aldeia de Touro), de onde o autor é natural, apresenta-nos uma rica etnografia sobre o chamado «pagamento da cabrita». À época em que realizou a pesquisa (finais dos ano 70, inícios de 80) ainda perduravam traços culturais desse rito, também denominado «pagamento do vinho». O rito do «pagamento da cabrita» projecta-se num universo de significações onde impera a ideia de ordem prescrita. Ao descobrir-se que uma rapariga se embalava pelo arrastar de asa de um rapaz de fora, um grupo de rapazes da aldeia, liderado por um coxo, assaltava a casa dos pais da rapariga quando o noivo lá estava, para o obrigar a sair junto dela e pagar as inevitáveis rodadas de vinho à rapaziada. Se não viesse a bem viria a mal, portando o coxo uma corda para o amarrar e arrastar se necessário fosse. Em caso de resistência ou insubmissão, surgiam «actos violentos»: pancadaria expressa em «capuchadas», «estadulhadas» ou mergulhos na fonte ou numa poça do rio. Convencido o noivo, rumavam todos para a primeira taberna que encontrassem, o noivo à frente e os rapazes atrás, a cantar. Lá chegados, o noivo pagava vinho a toda a gente, um carrolo de trigo da altura dele e (mais recentemente) outro de bacalhau, da mesma altura. Depois peregrinavam por todas as tabernas, em todas elas beberricando e comendo. O noivo transportava o pão e o bacalhau. A descrição de Mário Lages aponta para um «ritual de rapazes». Um dos intervenientes disse-lhe: Isto era só com rapazes. Mulheres e raparigas podiam, às vezes, estar na porta a ver, mas entrar num entravam. Os homens tamém num entravam nisso. Se às vezes estivesse um homem dentro da taberna, podia tamém bober um copo. Mas era história de rapazes: mulheres e homens num entravam no assunto [p. 647].

Como o próprio Lages reconhece, o rito tinha existência em outras paragens, como em Vila Cova-a-Coelheira, onde o noivo de fora tinha igualmente de pagar o carrolo, constituído por vinho à discrição e pão, 21

Idem, ibidem, 106. Paula Godinho, O Leito e as Margens... 190. 23 Mário Lages, «O casamento exolocal numa aldeia da Beira Alta». Análise Social, XIX, 77-78-79 (1983): 645-665. 22

338

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:30 AM Page 339

Das casas de família às casas de alterne

para além de bacalhau ou sardinhas, sendo o elemento característico do carrolo as aguilhadas, onde eram enfiados bolos de trigo até ao limite da altura do rapaz (p. 649). Este só era obrigado a pagar «a mal» se reagisse negativamente, o mesmo acontecendo em aldeias dos concelhos de Meda, Tarouca e Castro Daire, onde o ritual tinha a designação de piso, termo também comum na Galiza, sendo que em várias aldeias transmontanas também se usava a designação de robra.24 Lages refere o levantamento etnográfico do Abade de Baçal 25 que salienta a «obrigação» do noivo que casa com uma moça de povoação diferente se ver obrigado a pagar a robra, constituída por vinho, trigo e cigarros, sendo maltratado e espancado se vacilasse em cumprir a obrigação. O Abade aludia também a um «foro» ou «indemnização», isto é, o «preço com que o nubente compra o direito de escolher noiva em povo estranho». O termo robra – equivalente ao de patente – é ainda referido pelo padre Firmino Martins, também citado por Lages.26 Como sabemos, o ritual é um domínio privilegiado para desvendar as cristalizações sociais de uma cultura, bem assim como as suas transformações. No seu interessante artigo, Lages desfia várias pontas do sentido do rito, dando relevo à leitura que dele fazem os seus participantes, bem como às «funções aparentes que ele desempenha na vida comunitária» (p. 654). As justificações dos participantes remetem para a tradição – «sempre assim se fez» – e para a dimensão sociabilística, de cariz comunitário, o que leva Mário Lages a valorizar as «funções utilitárias do rito»: beber «à custa de outrem», fazer «uma pândega, uma borga» (p. 655). A hipótese da inclusão, defendida por Mário Lages, é consistente. O pagamento da cabrita é, certamente, um rito integrativo. Porém, arrasta também funções de simbolização e sinalização de um status quo relativamente a agentes perturbadores da ordem social: forasteiros que vêm à caça das raparigas da aldeia. Por isso, o rito faz sentido porque ordena a desordem. Confere aos actores sociais os meios para controlar essas perturbações. De facto, o rito em análise contribui para o reforço da vida comunitária, viabilizando a inclusão de um estranho a ela, o noivo forasteiro. Neste sentido, o rito cumpre efectivamente uma função integrativa. Mas não se trata de uma integração plena. Mesmo tendo pago a «cabrita», o noivo continua a ser olhado como «de fora». Se um rapaz que já tivesse 24

Francisco Manuel Alves (Abade de Baçal), Memórias Archeológicas-Históriicas do Distrito de Bragança, vol. IX, (1934), 317, citado por Lages, (p. 650). 25 Idem, ibidem, citado por Lages (p. 651). 26 Firmino Augusto Martins, Folklore do Concelho de Vinhais, vol. II (Lisboa: Imprensa Nacional, 1939), 426, cit. por M. Lages, «O casamento exolocal...», 651.

339

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:30 AM Page 340

José Machado Pais

pago a cabrita por namorar uma rapariga de aldeia alheia viesse a namorar com outra da mesma aldeia, teria de pagar nova cabrita. Esta ocorrência é um claro indício de que a integração não é plena. Aliás, em Rio de Onor, onde o rito é conhecido como «pagar al piso», Jorge Dias mostra que o pagamento do direito a namorar tinha uma validade limitada: não mais de três meses, findos os quais se exigia nova cobrança: «Regra geral, os rapazes não gostam que venha [um] pretendente de fora namorar as raparigas da terra. Se algum for descoberto a namorar é obrigado a pagar al piso. Desde que tenha pago al piso pode namorar à vontade durante três meses. Passado esse prazo, eles voltam a cobrar os seus direitos, e assim sucessivamente até ele casar ou desistir. Se o rapaz se recusasse a pagar, podia ser espancado e arremessado ao rio.» 27 Pelo exposto, parece-me necessário valorizar não apenas os aspectos conjuntivos do rito mas também os seus aspectos disjuntivos.28 Por isso, na interpretação do rito do pagamento da cabrita, não descartaria a hipótese punitiva, como aliás a propôs Jorge Dias e o próprio Abade de Baçal. Lages não concorda com Jorge Dias 29 quando este, em Rio de Onor, é levado a considerar o pagamento do vinho como uma «multa» e replica: «Este conceito [o de multa] implica necessariamente a existência de uma regra que é infringida. De que norma sociológica, porém, se trata? A da endolocalidade do casamento? Mas, se tal é o caso, por que razão não é multado o infractor, o pai da noiva, mas sim o beneficiário da infracção, o noivo? E como é que alguém de fora da comunidade pode estar sujeito às suas regras antes de fazer parte dela?» (p. 657). Não vejo por que razão o pai da noiva devesse ser obrigado a pagar multa, já que não o considero como o principal infractor, embora possa ser moralmente responsabilizado pelo comportamento da filha. Em contrapartida, o noivo, justamente por ser beneficiário da infracção, fica obrigado a pagar a multa. E mais, o noivo paga a multa para poder ser aceite na comunidade. Por isso se compreende que alguém de fora da comunidade possa estar sujeito às suas regras antes de fazer parte dela. O pagamento da multa funciona como uma espécie de rito de passagem para uma provisória integração na comunidade. Provisória porque caso arranje uma outra rapariga da aldeia tem de pagar nova multa. A hipótese punitiva, defendida por Jorge Dias, é também partilhada pelo Abade de Baçal, ao fazer associar o pagamento do vinho (ou robra) aos conceitos de foro e indemni-

27

J. Dias, Rio de Onor..., 185. C. Lévi-Strauss, La Pensée Sauvage (Paris: Plon, 1962). 29 J. Dias, Rio de Onor... 28

340

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:31 AM Page 341

Das casas de família às casas de alterne

zação que nos remetem, e bem, para um quadro jurídico-legal. Foro que se pode tomar no sentido de imunidade, protecção, livre-trânsito; indemnização que mais directamente remete para a ideia de multa. A questão problemática é a de saber por que razão é que o noivo que vem de fora namorar ou casar com uma rapariga da aldeia se vê obrigado a uma punição. Uma via de acesso ao significado dos ritos é a compreensão dos termos por que é conhecido.30 Vejamos então quais são esses termos. Em Quadrazais (também em Vinhais e Touro) dá-se o nome de patenta ao pagamento do pão e do vinho. O que significa, em termos gerais, a patente ou patenta? Significa uma contribuição que é paga pelos que entram numa sociedade em benefício dos mais antigos. Quanto ao termo robra, usado em Bragança, procurei-o, como Mário Lages, em dicionários de Português e não o encontrei. Mas encontrei-o em dicionários de Espanhol, pois é um termo da língua de Cervantes. Não espanta que em Bragança se usem termos da língua da vizinha Espanha, dada a proximidade da fronteira. Qual o significado de robra? O seguinte: «alboroque, refeição que se dá, quando se faz um contrato; luvas, o que se dá a título de presente, além do preço ajustado num contrato».31 Na língua portuguesa existe o termo alboroque ou alborque, de origem árabe (al-buruk) e que remete para o mesmo significado: refeição que se dá quando se fecha um contrato: «Feito o negócio, bebeu-se o alboroque, acompanhado de um bilhós.» 32 Equivalente a robra surge, na língua portuguesa, o termo rebora que aparece associado à confirmação de contratos ou doações, designando também o vinho que os contratantes bebem nas feiras depois de fechado o contrato. Mário Lages questiona-se sobre quem receberia primitivamente a robra: se os rapazes ou o pai da noiva, uma vez que acha estranha a relação contratual entre rapazes e noivo «já que de um contrato se tratava e é difícil compreender as relações entre o noivo e os rapazes sob tal figura».33 Do meu ponto de vista, talvez não seja tão estranha essa relação contratual e direi porquê. Para o efeito importa que nos questionemos sobre o significado do termo «cabra» ou «cabrita», no dito pagamento da mesma. Estamos perante um verdadeiro enigma como Mário Lages o reconhece, sugerindo, entretanto, a provável hipótese de que «uma pequena cabra» poderia ser «partilhada pelos convivas de um banquete».34 Tenho dúvidas 30

M. Lages, «O casamento exolocal...», 658. Dicionário de Espanhol-Português, por Julio Martínez Almoyna, da Real Academia Galega (Porto: Dicionários Editora, 1979). 32 C. A. Carneiro, Pelo Nordeste de Trás-os-Montes..., 20. 33 M. Lages, «O casamento exolocal...», 660. 34 Idem, ibidem,, 660. 31

341

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:31 AM Page 342

José Machado Pais

sobre a plausibilidade desta hipótese. Penso que a decifração do enigma pode passar pelo significado que o termo «cabra» ou «cabrita» possa ter. Na linha das ideias wittgensteinianas, o significado de uma palavra deriva justamente do uso que dela é feito em situações concretas. Recentemente, de passagem por algumas aldeias de Sátão e Penalva do Castelo, onde também existia o mesmo rito com a designação de «pagamento da cabra», questionei algumas pessoas sobre o significado do termo «cabra»: Era uma cabra que o noivo tinha de pagar? Em risadas, negaram-me convictamente a hipótese, tendo-me alguns sugerido que a cabra era uma «ovelha tresmalhada», ou seja, a rapariga que tinha rejeitado os rapazes da aldeia para se casar com um de «fora». Suspeitando da minha desconfiança em relação à credibilidade do que me diziam («teoria espontânea do indígena»), perguntaram-me depois se não conhecia a «cabritinha» do Quim Barreiros. Ao responder-lhes que não, imediatamente me recomendaram, em tom malicioso, que ouvisse então a melodia.35 Também no Brasil Colonial eram popularmente designadas por cabras todos os indivíduos que resultassem de indesejáveis misturas sociais. O atributo de cabra, por esse motivo, era depreciativo.36 Aqui chegados, que representa, afinal, o pagamento da cabrita? Tudo leva a crer que o ritual traduza uma necessidade social, a ordenação das relações sociais quotidianas. Mas não sabemos até que ponto estaremos perante uma recomposição das formas simbólicas que outrora caracterizavam o rito. O que parece inquestionável é a necessidade de simbolização das relações sociais através do referente cabrita. Esta parece assumir uma dupla valência: quer como valor de transacção (equivalente geral de trocas), quer como objecto transaccionável (associado a um valor de uso). Ora bem, se a cabra – em termos simbólicos, evidentemente – representa a rapariga que saltou a cerca da sua comunidade de origem, então justifica-se a relação contratual entre os rapazes da aldeia (que perdem a cabrita) e o noivo (que a ganha) através de um pagamento que representa, nem mais nem menos, que o preço da cabra. A hipótese do tresmalhamento faz algum sentido, até na medida em que sabemos que os pastores que guardam rebanhos consideram as cabras muito mais difíceis de controlar do que, por exemplo, as ovelhas, mais submissas. Por outro lado, a designação de cabra também é dada a uma mulher de comporta35 Logo que retornei a Lisboa comprei um exemplar do tão badalado CD, em cuja capa aparece o tal Quim Barreiros, com um farfalhudo bigode, a ser beijado por uma cabrita: Quim Barreiros, A Cabritinha (CD com o mesmo nome), discográfica Espacial. 36 Júnia Ferreira Furtado, Chica da Silva e o Contratador dos Diamantes (Companhia das Letras, 2003), 49.

342

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:31 AM Page 343

Das casas de família às casas de alterne

mento duvidoso, suspeito, indigno. Aliás, puta e cabra são palavras frequentemente usadas como sinónimos.37 O mesmo acontece com a designação de cabrita – aplicado a uma mulher ou rapariga dissoluta. Acima víramos, num romance transmontano (O Diabo Veio ao Enterro. Contas do Nordeste), que uma mãe, desgostosa por ver que a filha se abeirava de quem não devia, também a chamava de «cabra». Cabra também era o nome que antigamente se dava a quem tivesse comportamentos dissolutos, como se pode inferir da seguinte sentença judicial da primeira metade do século XIX, em Sergipe (Brasil): O adjunto de promotor público, representando contra o cabra Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Nossa Senhora Sant’Ana quando a mulher do Xico Bento ia para a fonte, já perto dela, o supracitado cabra que estava em uma moita de mato, sahiu della de supetão e fez proposta a dita mulher, por quem queria para coisa que não se pode trazer a lume, e como ella se recuzasse, o dito cabra abrafolou-se dela, deitou-a no chão, deixando as encomendas della de fora e ao Deus dará. Elle não conseguiu matrimonio porque ella gritou e veio em amparo della Nocreto Correia e Norberto Barbosa, que prenderam o cujo em flagrante. Dizem as leises que duas testemunhas que assistam a qualquer naufrágio do sucesso faz prova. CONSIDERO: QUE o cabra Manoel Duda agrediu a mulher de Xico Bento para conxambrar com ella e fazer chumbregâncias, coisas que só marido della competia conxambrar, porque casados pelo regime da Santa Igreja Cathólica Romana; QUE o cabra Manoel Duda é um suplicante deboxado que nunca soube respeitar as famílias de suas vizinhas, tanto que quis também fazer conxambranas com a Quitéria e Clarinha, moças donzellas; QUE Manoel Duda é um sujetio perigoso e que se não tiver uma cousa que atenue a perigança dele, amanhan está metendo medo até nos homens. CONDENO: O cabra Manoel Duda, pelo malifício que fez à mulher do Xico Bento, a ser CAPADO, capadura que deverá ser feita a MACETE. A execução desta peça deverá ser feita na cadeia desta Villa. Nomeio carrasco o carcereiro. Cumpra-se e apreguem-se editais nos lugares públicos. Manoel Fernandes dos Santos. Juiz de Direito da Vila de Porto da Folha Sergipe, 15 de Outubro de 1833.38 37

Ver, por exemplo, Catherine Millet, A Vida Sexual de Catherine M. (Porto: Asa, 2001). A sentença judicial foi-me gentilmente cedida pelo jornalista carioca Romildo Garrante que me indicou o Instituto Histórico de Alagoas como fonte da mesma. 38

343

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:31 AM Page 344

José Machado Pais

Dito isto, não creio que a ideia de resgate se deva imputar apenas à libertação da rapariga. Muito menos que seja uma obrigação do pai da mesma. O resgate creio dever-se imputar tanto à rapariga quanto ao noivo. A rapariga é libertada logo que se faça o pagamento da cabrita mas o pagamento corresponde também a uma forma de libertação do noivo relativamente aos constrangimentos de acesso à noiva que lhe são impostos. A ideia de resgate remete-nos para o conceito de ritual de passagem, tal qual Van Gennep 39 o conceptualiza, isto é, constituído pelas fases de separação, liminaridade e agregação. O noivo é um estranho, vem de fora, encontra-se separado da comunidade. A integração na comunidade (agregação) é precedida de uma fase crítica (liminaridade) em que o perigo de ser sovado e escorraçado é iminente. O resgate – entendido como conquista de liberdade, redenção, salvação – é conseguido através da liquidação de uma espécie de multa. O pagamento da cabrita, do vinho ou da robra é, pois, o tributo a pagar pelo noivo para assegurar a sua reabilitação, a fuga do cativeiro, que pode ser o fundo de uma poça ou de um rio.40 O rito do pagamento da cabrita exorciza o perigo de se ser sovado, ao separar o noivo do seu antigo estatuto (alguém de «fora») para, em seguida, o conduzir publicamente às sociabilidades comuns dos homens da terra e que, geralmente, tomam lugar nas tabernas – mais recentemente nos cafés e também nas casas de alterne. O «pagamento da cabrita» corresponde a uma forma de negociação que tende a atenuar as distâncias sociais e simbólicas entre quem é da terra e quem vem de fora, sem necessariamente produzir um nivelamento imediato entre uns e outros. A hipótese de resgate é mais bem entendida se a cruzarmos com a hipótese da hostilidade. Ela é levantada por Teófilo Braga, citado aliás por Mário Lages, quando refere o que ocorria em Sendim, concelho do Tabuaço. Os termos usados por Teófilo Braga remetem explicitamente para a «hostilidade de tribos»: «quando um rapaz de fora da aldeia vai pedir uma moça para casar, correm-no à pedrada, e, ao casar, quando vêm da igreja, embaraçam o caminho por onde ele tem de passar, tendo necessidade de resgatar-se com algum dinheiro».41

39

Arnold Van Gennep, Les Rites de Passage (Paris: E. Nourry, 1981 [1909]). Creio que o resgate nos casamentos exolocais tem um sentido diferente do resgate nos casamentos endolocais. No primeiro caso está em causa a passagem de «fora» para «dentro» de uma comunidade, para além do que ocorre no segundo caso: a passagem de uma condição social a outra, isto é, de solteiro a casado. 41 Teófilo Braga, O Povo Português nos Seus Costumes, Crenças e Tradições, vol. I (Costumes e Vida Doméstica) (Lisboa: Livraria Ferreira, 1885), 244, citado por M. Lages, «O casamento exolocal...», 650. 40

344

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:31 AM Page 345

Das casas de família às casas de alterne

Ao discutir a equivalência da mulher com a cabrita, Mário Lages confere a ambas um estatuto de domesticidade: As cabras e as suas crias são animais domésticos que relevam sociologicamente da actividade feminina. [...] As cabras que não faziam parte de rebanhos pertenciam ainda mais estritamente ao âmbito doméstico, não só porque eram habitualmente recolhidas nos fundos das casas de habitação, mas também porque eram apascentadas exclusivamente por mulheres e crianças (p. 661).

A minha leitura explora mais um outro sentido, depois da conversa que tive com aqueles aldeões que me levantaram a hipótese do tresmalhamento. Ou seja, a cabra, tal qual a rapariga que se deixa levar por um de «fora», caracteriza-se por uma comprovada rebeldia à domesticidade. Embora presas nos «fundos das casas» (as cabras) ou, em sentido alegórico, nas próprias casas (as raparigas que têm noivo de fora), o que parece caracterizar ambas é o risco da evasão que exige uma contrapartida, uma pena, uma multa ou mesmo uma retaliação. Um conto alentejano que versa sobre «A cabrinha do padre-cura» ilustra bem essa sede de vingança, para além de fazer equivaler a cabrita à mulher malcomportada. A morte da cabrita do padre-cura («Mi padre furtou a cabrinha del curito / E matou-a nel curralito)» representará, simbolicamente, o assassinato da cabra da mulher que foi dormir com quem não devia («El cura dormiu com mi madre, / Isto mê padre lo sabe»). Vejamos a história: Era duma vez um espanhol que furtou uma cabrinha que tinha o padre-cura muito sua estimada. O filho do espanhol pôs-se à porta a cantar: «Mi padre furtou a cabrinha del curito / E matou-a nel curralito.» O padre não sabia quem lha tinha furtado e, depois que ouviu o rapaz, chamou-o e convidou-o para que no domingo, à hora da missa, fosse cantar para o adro da igreja, quando estivesse cheio de gente. Ele, o rapaz, contou isso ao pai e o pai ensinou-lhe que cantasse no adro, quando estivesse bastante gente: «El cura dormiu com mi madre, / Isto mê padre lo sabe.» O povo assim que ouviu isto começou à pancada ao padre e deitaram-no fora da igreja. 42

Por que razão é socialmente culpabilizado o noivo e não a rapariga quando se dá um namoro ou casamento exolocal? É possível que ao rapaz seja atribuída a principal responsabilidade do desencaminhamento, uma vez que, tradicionalmente, lhe cabia a iniciativa da conquista. Por essa 42 António Thomaz Pires, Contos Populares Alentejanos Recolhidos da Tradição Oral. Colecção, edição crítica e introdução de Mário F. Lages, 2.ª ed. aumentada (Lisboa: Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, Universidade Católica Portuguesa, Colecção Estudos e Documentos, 11, 2004), 28-29.

345

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:31 AM Page 346

José Machado Pais

razão é ele que é obrigado a pagar o tributo e não a rapariga ou o pai dela. É ele que, supostamente, atrai a rapariga, deitando-lhe o laço e, no rito do pagamento da cabrita, é ele que acabará por ser enlaçado, eventualmente atirado a um poço. O noivo, vindo de fora, soube convencer a rapariga a juntar-se a ele. Depois é o noivo que acaba por ser convencido a efectuar uma compensação – o pagamento da cabra – o que não deixa de corresponder a uma subjugação que contrabalança a resignação dos conterrâneos da rapariga ao vê-la partir da aldeia para mãos alheias. Entre a subjugação e a resignação, o rito assegura um acordo, uma conformação que é equilibrada num balanço de ganhos e perdas. O facto de, na caminhada pelas tabernas, o noivo ir à frente e os rapazes atrás, a cantar, que pode significar? A prova de integração do noivo na comunidade? Ou, antes e muito mais do que isso, a exibição pública do condenado, um canto de vitória com a ostentação do infractor à frente, para melhor ser ostentado e controlado? Por outro lado, a obrigação de ser o noivo a carregar com o pão e o bacalhau sugere a sua transformação em moço de carga, em serviçal. Mas a humilhação tem uma contrapartida: ele ganha a noiva e a aceitação dos conterrâneos dela, logo que o casamento se consuma. Qualquer das hipóteses levantadas surge num terreno onde há uma clara oposição entre «os de cá» e os de fora»; «nós» e «eles», oposição presente em muitos ritos e tradições populares, como nos festejos de São João, em Valongo (aldeia do Sobrado), onde há um enfrentamento entre grupos rivais designados por Bugios (representando cristãos) e Mourisqueiros (representando forasteiros), ambos os grupos compostos por rapazes solteiros.43 Esta oposição manifesta-se em alguns ditos populares que se disparam entre povos vizinhos. Por exemplo: «Eu casei-me na Mutela com uma moça de feição; de bonita não tinha nada, pobre sim, honrada não.» Este dito, recolhido por Jorge Dias, no seu estudo sobre Rio de Onor,44 equaciona o valor da mulher em função de três parâmetros: o estético («de bonita não tinha nada»), o económico («pobre sim») e o moral («honrada não»), parecendo desencorajar os casamentos exolocais, o que é sinalizado em outras máximas e versejos populares da região transmontana: Amores d’além rio, Não os quero nem de graça; Logo dão por desculpa Que o rio já se não passa.45 43

Hélder Ferreira e Teresa Perdigão, Máscaras em Portugal (Lisboa: Mediatexto, 2003). J. Dias, Rio de Onor..., 293. 45 Francisco Manuel Alves (Abade de Baçal) e Adrião Martins Amado, Vimioso. Notas Etnográficas (Coimbra: Publicação da Junta Distrital de Bragança, 1968), 276. 44

346

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:31 AM Page 347

Das casas de família às casas de alterne

Os próprios bailes de aldeia colocam os rapazes forasteiros na situação de indesejáveis. Aliás, nos bailes durante as festas dos rapazes («ciclo dos 12 dias») a presença de forasteiros era mesmo proibida, como acontecia em Varge, onde a participação era interdita aos rapazes que não fossem da aldeia.46 Dava-se um fechamento da comunidade, embora agora a lógica seja outra. O fechamento da comunidade dava-se, entre outras razões, para impedir que os rapazes de fora da aldeia viessem divertir-se com as suas conterrâneas.47 Por outro lado, a intromissão de forasteiros poderia provocar desequilíbrios num ficcionado mercado matrimonial. Aliás, na realidade, a falta de mulheres ainda hoje é lamentada em muitas loas que, noutro bem conhecido rito transmontano – a Festa dos Rapazes – têm por alvo as moças solteiras.48 A expressão «lançar os jogos à praça» anuncia o propósito de impor uma ordem nas regras de jogo que regulam as aproximações matrimoniais. Os deslizes de algumas moças são publicamente denunciados porque o que importa é a preservação de uma ordem moral, localmente valorizada por contraposição às comunidades vizinhas. O tresmalhamento é criticado na convicção de que «quem fora vai casar ou foi enganado ou vai enganar». Como se sugeriu, o apodo de cabrita às raparigas que preferem os rapazes de fora da aldeia, reflecte um sentimento de perda por parte dos conterrâneos. Perda contrabalançada com a conquista do vinho. Esse efeito de compensação – vinho no lugar das mulheres – parece também estar presente em algumas festas de rapazes, como a que acontece em Vinhais, em quarta-feira de cinzas. Nesse dia, conhecido como o «Dia dos Diabos», os rapazes mascaram-se de diabretes (marafonos), percorrendo as ruas, de chicote empunhado, em perseguição das mulheres, a fim de as vergastar. Entre os diabos, vestidos de vermelho, surge uma outra figura, vestida de negro, com uma gadanha na mão, representando a morte. Ao cruzar-se com algum transeunte, a morte obriga-o a ajoelhar-se e a beijar a gadanha. Porque é que os rapazes, representando o diabo, são designados marafonos? Na verdade, o termo assume correntemente o género feminino – marafona – designando uma mulher de «má nota», de 46 Paula Godinho, «A festa dos rapazes: nova arquitectura do género num meio em mudança». Cultura. Revista de História e Teoria das Ideias, vol. X (Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, 1998), 244 (241-254). 47 Fonte de frequentes rixas entre rapazes de aldeias vizinhas. Ver José Machado Pais, «De Espanha nem bom vento, nem bom casamento: Sobre o enigma sociológico de um provérbio português». Análise Social, XXI, 86, 1985): 229-243. 48 Paula Godinho, «As ‘loas’ que contam uma festa: permanência e mudanças na Festa dos Rapazes. In Rituais de Inverno com Máscaras, coord. Benjamim Pereira (Instituto Português de Museus: s. l., 2006).

347

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:31 AM Page 348

José Machado Pais

comportamento suspeito, enfim, uma prostituta. Será que os rapazes são chamados marafonos por o diabo corporizar características atribuídas à marafona ou vice-versa? Como quer que seja, no ritual, as perseguições e assaltos de chicote têm uma função catártica, ao dirimirem tensões sociais. A dimensão do castigo parece evidente em algumas descrições etnográficas destes rituais: «Cuidavam os diabos de castigar toda a rapariga que nesse dia ousasse sair à rua, ‘chamando-a à pedra’, isto é, arrastando-a até ao Largo do Arrabalde, onde ela era açoitada, a maior parte das vezes de forma simbólica, mas uma vez ou outra sem sombra de meiguice.» 49 Como se depreende, o «chamamento à pedra» antecipa um castigo – o açoite, no caso – sendo a absolvição dada por um acto de contrição, expresso em rezas ou ladainhas que deixam transparecer, não obstante, uma propensão para o pecado: «Padre-nosso, caldo grosso, carne gorda não tem osso; Salve Rainha, mata a galinha, põe-na a cozer, dá cá a borracha que quero beber.» Por que razão os diabos perseguem as moças, a ponto de assaltarem as suas casas por vãos de telhados ou janelas arrombadas, vasculhando armários e arcas de farinha? O que procuram os pobres diabos? Mulheres, pão ou vinho? O desfecho do ritual parece apontar para uma satisfação compensatória anunciada pela ladainha («dá cá a borracha que quero beber»). Na tradição do ritual, as arremetidas terminam em «grande comezaina, com os diabretes a empanturrarem-se com os enchidos e o vinho da casa».50 Cá temos, de novo, um possível efeito de compensação ou associação: vinho e mulheres. O pagamento da cabrita ou as robras sugerem que a pretensa integração ou comunitarismo das aldeias transmontanas tem as suas limitações. Os ritos em questão, embora agregativos, ocorrem num terreno de tensões sociais. Desde logo, as que derivam das desproporções de género no mercado matrimonial. Conta-nos o Abade de Baçal que, em algumas aldeias bragançanas, na noite de Entrudo, os rapazes se juntavam em torno de uma grande fogueira, e dois deles, fazendo de «juízes», começavam a dar em casamento as raparigas que em segredo lhes eram pedidas. Se algum dos rapazes pedisse uma rapariga já escolhida por outro – «já dada» – teria de se resignar com uma segunda escolha, a menos que a disputasse, a dinheiro, com o pretendente que já a tinha tomado por primeira opção.51 O produto pecuniário dos regateios revertia a favor dos «gastos

49

http://www.bragancanet.pt/vinhais/ousilhao/contents,htm, em 26 de Março de 2009. Idem, ibidem. 51 Francisco Manuel Alves, Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, IX (Bragança: Museu do Abade de Baçal, 1982), 320-322. 50

348

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:31 AM Page 349

Das casas de família às casas de alterne

da patuscada». Embora a disputa a dinheiro pareça ter por finalidade a angariação de ajudas para a «patuscada», é também admissível a hipótese de o ritual poder reflectir a disputa real pelas raparigas num ficcionado mercado matrimonial, em que a dimensão económica não está de maneira nenhuma ausente. Esta hipótese traduzo-a com o conceito de disputa afectiva de pago efectivo, isto é, esboçada como uma troca económica (na língua espanhola, os pagamentos em dinheiro são ditos «pagamentos em efectivo»). Mas estes «casamentos tentativos» 52 arrastam uma outra particularidade não desprezível: a de se saber como eventuais desequilíbrios na atribuição das moças aos rapazes são contornados. O Abade de Baçal informa que sempre que surjam raparigas sem pretendentes, os juízes atribuem-lhe moços que estão ausentes do «festanço». Esta solução ritual sugere a hipótese de «casamentos exolocais», 53 que seria tentado a traduzir com o conceito de calibragem de défices conjugais, o qual aponta para a necessidade de ordenação de desequilíbrios entre a oferta e a procura no mercado conjugal. A calibragem, como reposição de uma ordem em desequilíbrio, sai reforçada se atentarmos em que a divulgação pública dos casamentos por encomenda – isto é, a publicitação dos pares formados – só é feita quando se tem a certeza de que todas as raparigas solteiras estão desposadas. Só então é que surgem os rufos de tambor e a proclamação das uniões. A disputa afectiva de pago efectivo é celebrada quando, a cada proclamação de casamento, se segue a proclamação berrada dos dotes efectivos que consagram, ludicamente, cada uma das alianças afectivas. À proclamação de cada casório, os juízes, em altos berros, dão o mote para o dote: «Que se lhe há-de dar?» E um coro de rapazes ululando, a cada pedido: Uma terra no Cierão Que não dá palha nem grão Uma terra do Lagedo É boa: canta lá cuco cedo A burra branca e cega dos Barnabés Para quem nem ele nem a burra tornem cá a pôr os pés.54

52 Como lhes chama Mário F. Lages, Práticas Simbólicas do Povo Português (obra inacabada e inédita a cujos conteúdo tive acesso no âmbito das suas «Provas de Agregação»). 53 M. F. Lages, «O casamento exolocal...» 54 F. M. Alves, Memórias..., 322

349

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:31 AM Page 350

José Machado Pais

A proclamação destes dotes, como o próprio Abade de Baçal reconhece, ocorre em «formas ridículas e escarninhas».55 Mas o que o rito põe em evidência é, exactamente, a realidade que pretende ridicularizar. Uma realidade onde os dotes económicos pesam – e de que maneira – nos arranjos matrimoniais. Porém a emigração – cujos fluxos se acentuaram nos anos 60 do século passado – terá originado uma reconfiguração das tensões do mercado matrimonial de que os filhos ilegítimos eram, outrora, uma consequência. Qual o significado do desaparecimento de rituais como a festa dos rapazes – só mais recentemente ressuscitada por efeito de uma reinvenção da tradição – ou do pagamento das cabrita, em manifesta via de extinção? Muito provavelmente, a emigração terá oferecido oportunidades de mobilidade social aos «excluídos da linha património-matrimónio» que alimentavam a «reprodução das linhagens ilegítimas».56 Se assim é, a simbologia destes rituais sugere um domínio de sentidos cujos significados ocultos bem se poderão revelar ao convocarmos factores demográficos e económicos que nos ajudem a decifrar os enigmas que esses rituais encerram nos seus próprios processos de adaptação a realidades em mudança. É para a relevância do material na interpretação do simbólico que Manuel Villaverde Cabral nos chama a atenção quando, em Trás-os-Montes, confronta as «máscaras» com a «roda da fortuna», optando declaradamente pela segunda das duas metáforas.57

Das casas de família às casas de alterne A partir de meados de Oitocentos a emigração nortenha funciona como um indicador fiel da penetração das relações capitalistas no campo [Manuel Villaverde Cabral, Materiais para a História da Questão Agrária em Portugal – Séculos XIX e XX (Porto: Editorial Inova, 1974), 52].

Bom, e lá vamos para as casas de alterne de Bragança e redondezas, numa região – Trás-os-Montes – cujo nome sugere uma territorialidade demarcada, um além e um aquém dos montes. Feudo dos duques de Bragança, a cidade foi uma importante fortaleza no período da monar55

A questão dos dotes surge também na efabulação de acasalamentos de gatos, durante o período de cio. Na lengalenga da história, o miau do gato: Eu dou-te uma saia... Miau da gata: Mas eu não a quero! De novo o gato: Eu dou-te um saiote... E a gata: Mas eu não o quero!, etc. 56 Hipótese levantada por Manuel Villaverde Cabral, «Trás-os-Montes entre as máscaras e a roda da fortuna», Análise Social, XXI, 85: 161 (157-162). 57 Idem, ibidem.

350

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:31 AM Page 351

Das casas de família às casas de alterne

quia. As montanhas circundantes constituíam uma defesa morfológica contra invasores e perigos externos. Aliás, o Norte do país é muito zeloso da sua identidade, por isso se diz que «para além do Marão mandam os que lá estão». Atributos de carácter são também reivindicados. Como me dizia um bragançano, «nós aqui somos de cepa rija, é do frio» – como se o frio obrigasse o corpo a mexer-se para que os músculos não entorpecessem nas gélidas noites das chamadas Terras Frias. Um padre da diocese de Bragança referiu-me em entrevista: «Temos de nos situar. Vivemos numa cidade relativamente pequena, trinta mil habitantes a residir, incluindo estudantes do ensino superior. A família é muito tradicional. A maior parte das pessoas conhecem-se nesta cidade. Se não sabem o nome, pelo menos já nos cruzámos, já nos vimos.» A denominação de casado remete, não por acaso, para a posse de casa. Mas com a visibilidade do fenómeno da prostituição – com decisivo contributo das «Mães de Bragança» cujo movimento invadiu as páginas dos jornais 58 – passam a estar dois tipos de casas em disputa. De um lado, as casas resultantes do casamento, pois, como o povo diz, «quem casa quer casa»; de outro lado, as «casas de alterne» que, frequentemente, desengonçam os arranjos patrimoniais assentes em alianças matrimoniais. Os homens casados nem sempre gerem, com sucesso, a coabitação das diferentes casas. Nem todos têm as mesmas destrezas de actuação. Em casa e no espaço público exige-se que sejam corteses, reservados, discretos. Nas casas de alterne tudo o contrário: espera-se que sejam carnais, promíscuos, depravados. Muitos deles consideram a casa de família uma espécie de santuário do qual a mulher faz parte; nas casas de alterne encontram-se com as «outras», as das fantasias sexuais. Separando os dois mundos, alguns homens conseguem ocultar da mulher com quem casaram as vivências ocorridas nas casas do alterne. Outros não conseguem camuflar a vida paralela. Chegam das casas de alterne a cair de bêbados, a horas tardias, «cheirando a putas». Por outro lado, o dinheiro que faz falta na casa dos filhos desaparece na casa das outras. A questão intrigante é de interpretar a razão do rebuliço social originado pelo surgimento das casas de alterne. Será que os homens, até então, tinham um comportamento imaculado? Não tinham vícios, não bebiam, nenhum ia às putas? As socializações sempre promoveram exclusões recíprocas no que se refere aos territórios que devem ser ocupados 58

José Machado Pais, «‘Mães de Bragança’ e feitiços: enredos luso-brasileiros em torno da sexualidade». Revista de Ciências Sociais, Universidade Federal do Ceará, vol. 41, n.º 2, 2010: 9-23.

351

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:31 AM Page 352

José Machado Pais

por homens e mulheres. As festas e as romarias, embora de âmbito religioso, sempre tiveram o condão de conjugar o sagrado com o profano. No distrito de Bragança ainda persistem muitos retiros de jogo. É o que acontece durante as festividades religiosas da serra da Nogueira, em homenagem à Senhora da Serra. A romaria realiza-se todos os anos de 30 de Agosto a 8 de Setembro. Diz a lenda que o povo de Rebordãos e aldeias vizinhas pretendia construir-lhe um templo mas não havia consenso sobre o local. Então, a «Senhora» apareceu a uma pastorinha dizendo-lhe onde efectivamente desejava ficar. Se muitas das mulheres que ocorrem à romaria são mobilizadas pela sua religiosidade, muitos homens são mobilizados pelo vício da batota. Em alguns restaurantes, fora do horário das refeições, joga-se arduamente à sueca, à bisca, ao sete e meio, ao jogo do fito ou do copinho. Para o jogo, preferem-se as «cartas espanholas». No entanto, a imprensa regional dá conta de que outrora se jogava para «passar o tempo», agora joga-se «a doer», isto é, a dinheiro. Há lances «onde centenas de euros andam em cima de uma carta ou outra». O retiro religioso é simultaneamente um retiro de jogo. Como nas casas de prostituição, existe a prática de «subir» (não para ter relações sexuais mas para jogar à batota). Os pisos térreos dos estabelecimentos frequentados pelos romeiros acolhem os cafés e as tascas onde se come a «posta na brasa». Os pisos superiores são espaços semiclandestinos de jogo. O padre responsável pela parte sagrada do retiro decidiu pôr cobro às cerimónias, lamentando-se: «Toda a gente sabia que ali se jogava a batota [...]. Deixavam-se ali verdadeiras fortunas.» Explicou-me depois como o sagrado convive bem com o profano: «Aquilo é como se fosse um retiro espiritual. Durante nove dias. Tem oração da manhã. Tem missa ao meio da manhã, tem terço a meio da tarde, tem depois uma novena, tem depois outra missa, uma procissão… E as pessoas estão ali precisamente para rezar, para ter paz… A parte da batota é sobretudo à noite, a partir das onze da noite... é gente que vem de todos os lados... e de todas as classes sociais. Em outros santuários acontece o mesmo. É um jogo ilegal, típico daqueles momentos. As pessoas dizem: ‘Uns vêm rezar durante o dia, outros vêm à noite para a batota!’ Para perderem tudo! Há muita gente que ficou lá sem nada! Mesmo sem os carros.» Também na cidade de Bragança encontrei algumas casas de jogo. O jornal Nordeste chegou a fazer uma reportagem sobre um estabelecimento de diversão nocturna, funcionando, no centro da cidade, como um «verdadeiro casino ilegal». Em dias de feira, abre mesmo durante o dia «para que ninguém volte à aldeia sem matar o vício». Em Santa Comba de Rossas cheguei a assistir a um torneio de sueca com vários prémios: uma vitela (1.º 352

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:31 AM Page 353

Das casas de família às casas de alterne

prémio), dois cabritos (2.º), três coelhos (3.º), duas garrafas de whisky (4.º) e duas garrafas de vinho do Porto (5.º). Em Rebordelo há uma imponente procissão a um santo que «espanta trovoadas», São Venâncio. Quando as trovoadas ameaçam toca-se o sino da Igreja e reza-se ao santo, para que elas se dissipem. Um aldeão assevera: «É o som do sino que leva a trovoada para longe e que salva as vinhas, as oliveiras e todas as culturas.» Na cave de um prédio da cidade alguns devotos do santo costumam reunir-se: há bebidas com fartura e jogo para todos os gostos: jogo de cartas, «banca francesa», «jogo de dados». Algumas fortunas perdem-se no jogo. Um dos mais bem-sucedidos empresários da região, facturando milhares de euros em negócios de cash & carry, viu-se obrigado a abandonar a cidade devido à pressão dos credores. Regressou depois, como empregado de mesa. Como explicar a configuração epidémica desta crescente delapidação do património? Provavelmente, a «roda da fortuna» associada a trajectórias de mobilidade ascendente, por efeito da emigração, poderá fornecer-nos uma de muitas possíveis pistas. Os custos da «interioridade» levaram muitos bragançanos a migrar para o estrangeiro ou para o litoral do país, principalmente a partir de finais do século XIX. Retornavam apenas em Agosto, mês de férias e romarias: «As nossas aldeias perdem-se na solidão dos velhos que gastam os olhos à espera que apareçam em Agosto breve os filhos que demandaram a Europa à procura de pão.» 59 Um velho emigrante, que agora é proprietário de um restaurante em Bragança, desabafava-me: «Quando vinha de França vinha para um enterro.» Antigamente, a novidade procurava-se extramuros. Os homens recorriam às prostitutas saindo da aldeia. Um jornal de Bragança (A Voz do Nordeste) referiu mesmo que noutros tempos era frequente ouvir «narrativas empolgadas de experiências de homens e rapazes que, idos ao Porto ou a Lisboa, exibiam troféus junto dos conterrâneos». Outro imigrante, mais novo (pouco mais de 30 anos), assinalou-me um dado significativo. Recordando a sua experiência e a de seus conterrâneos, asseverou-me que lá fora os emigrantes, abundantes na região, levam uma «vida de sacrifícios» para «juntarem o mais que podem». Mas quando regressam de férias a Portugal, exibem comportamentos ostentatórios. O proprietário de uma casa de alterne de Bragança, ele próprio imigrante, corroborou-me: «É engraçado, aqui os portugueses, aqui podem ser tudo e mais alguma coisa. Aqui gostam da noite, gostam da farra e gostam pouco de trabalhar. No 59 Fernando Calado e Orlando Bragança, O Dito e o Feito. A História das Empresas de Bragança (Bragança: Revista Amigos de Bragança, 1996), 8.

353

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:31 AM Page 354

José Machado Pais

estrangeiro toda a gente gosta de trabalhar. As pessoas acho que emigram por causa do dinheiro. São capazes de vir aqui num mês e gastarem o que ganharam num ano. E lá [no estrangeiro] não saíam. Já os filhos dos emigrantes, esses é diferente. Tanto se lhes dá como se lhes deu. Já não querem fazer casas nem comprar terrenos na aldeia [...]. Agora esses velhos não, são capazes de vir aqui [às casas de alterne] e gastar uma fortuna. E lá não saíam. Poupadinhos, direitinhos. É engraçado.» O que aqui temos é uma mudança geracional que não se circunscreve ao domínio dos valores e atitudes sociais. Há um não desprezível pano de fundo de mudanças sociais de básica económica. Por exemplo, Bragança foi dos municípios portugueses a experimentar, nas últimas décadas, um embate mais chocante entre tradição e modernidade, por efeito, também, das novas vias rodoviárias. Em 1970, mais de 70% da população activa do município de Bragança estava concentrada no sector primário (agricultura), trinta anos depois rondava apenas os 10%. Depois da «revolução dos cravos» a área urbana triplicou em 30 anos. A expansão urbana acompanhou o crescimento da população da cidade que, na década de 1970-1981, aumentou 55%. A partir dos anos 80 o ensino superior atraiu também um considerável número de jovens.60 Por outro lado, o crescimento urbano da cidade contribuiu para o crescimento do sector dos serviços e do comércio. Se em 1974 a capacidade hoteleira da cidade se circunscrevia a 246 camas, trinta anos depois passa para 1234.61 Todo este desenvolvimento, abrupto e incontrolável, provocou um choque entre estruturas morais e económicas, tradição e progresso, conservadorismo e desregramento, demandas morais e desmandos carnais. Os cercos da prostituição assentaram arraiais na cidade, sabido que a prostituição não é indepente das dinâmicas urbanas e económicas.62 O desenvolvimento económico criou um aumento do poder de compra, uma capacidade económica para a «compra do sexo».63 Ao discutir, há tempos, a problemática da mudança social, Nisbet remetia o conceito de mudança para uma «sucessão de diferenças no tempo» reportadas a uma «identidade persistente» 64 mas, ao mesmo

60

O Instituto Politécnico de Bragança foi criado em 1984 e o ISLA em 1985. Armando Fernandes, coord., Contrastes e Transformações na Cidade de Bragança: 1974-2004 (Bragança: Câmara Municipal de Bragança, 2004). 62 Phil Hubard, Sex and the City. Geographies of Prostitution in the Urban West, Aldershot, Ashgate, 1999. 63 R. Weitzer, ed., Sex for Sale. Prostitution, Pornography, and the Sex Industry (Nova Iorque: Routledge, 2000). 64 Robert Nisbet et al., Cambio Social (Madrid: Alianza Editorial, 1979), 12. 61

354

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:31 AM Page 355

Das casas de família às casas de alterne

tempo, negava a possibilidade de a mudança poder ser engendrada por forças intrínsecas à identidade persistente. É aqui que podemos pensar no papel relevante da imigração ao fazer girar a «roda da fortuna». As «máscaras» – como acontece nas festas dos rapazes – persistem, mas, bem vistas as coisas, mascaram realidades diferentes. Outrora a «cabra» (hipótese que levantei baseado na «teoria espontânea do indígena») correspondia à rapariga que fugia da aldeia nos braços de um forasteiro que, por isso mesmo, se via compelido ao «pagamento da cabrita». Hoje as chamadas «cabras» vêm de fora, para nas casas de alterne desencaminharem os maridos. Por isso, as trabalhadoras de sexo que aportam a Portugal vindas do exterior são alvo de múltiplas descriminações: enquanto mulheres, estrangeiras, imigrantes e prostitutas. A sua representação como intrusas ameaçadoras resulta da constatação de uma «outridade» como perigosa, caótica, indutora de desordem e insegurança. Por essa razão são apodadas de cabras, tendo desencadeado, no auge do movimento das «Mães de Bragança», fervores patrióticos, nacionalistas, chauvinistas, xenófobos: «Voltem para o vosso Brasil multicolor. Portugal é dos portugueses.» Na imprensa mais conservadora surgem patrióticos manifestos de apoio ao movimento das «Mães»: «Vós, Mães de Bragança, bradais aos céus aquilo de que sois vítimas. Sois vítimas das mulheres de vida fácil que vos tornam difícil viver [...]. Ignorai as vozes do Inferno e socorrei vossos maridos e filhos de se afogarem nos vícios da droga e dos feitiços que os mantêm escravos do desejo. Meretrizes! Hereges! Fogueira!» As trabalhadoras de sexo – maioritariamente brasileiras – aparecem como «bode expiatório». Elas são consideradas mirongueiras, cheias de artimanhas e denguices. Culpabilizando-as, remete-se o pecado para fora de portas. A casa de família é o lugar da mulher recatada e casta; a casa de alterne é o território da maldade erotizada. Nestas, contudo, também se desenvolvem dinâmicas relacionais que podem albergar-se no conceito de communitas 65 – espaço favorecedor de uma integração aparentemente à margem da moral dominante. Em certa medida, as casas de alterne são territórios de coagulação sociabilística que, como outros espaços profanos (tabernas ou cafés), se instituem como eixos de referência e de afirmação da identidade masculina. Esta afirma-se por indicadores quantitativos: rodadas de copos de vinho ou de cerveja, mulheres conquistadas, práticas sexuais havidas ou imaginadas. Afirma-se, também, pela difusão das façanhas feitas, entre pares. O álcool permite avivar rituais de identidade 65 V. Turner, The Ritual Process. Structures and Anti-Structures (Londres: Routledge and Kegan Paul, 1969).

355

15 MVCabral Cap. 15_Layout 1 6/24/13 9:31 AM Page 356

José Machado Pais

social,66 o mesmo acontecendo com as idas às casas de alterne. O que muda é a ânsia de novidade. Os proprietários das casas de alterne apregoam, todas as semanas, a chegada a Portugal de «fruta fresca» do outro lado do Atlântico. A expressão é usada para atrair a clientela, ávida de «caras novas». Esta busca da «novidade» explica que as trabalhadoras de sexo transitem por vários lugares e estabelecimentos, normalmente na mão de um mesmo proprietário. O confronto entre «mães» e «putas» pode ser lido como decorrente de uma oposição entre ordem e desordem. O factor perturbador da ordem é sempre exógeno à mesma. Como Simmel 67 bem sugeriu, quando o «estrangeiro» aporta a círculos sociais que se encontram relativamente delimitados, acaba por interferir nas «regras do jogo» que aí imperam: introduz comportamentos e visões que diferem das rotinas quotidianas. Por essa razão há quem os veja como «inimigos» da coesão social. Pela mesma razão, os discursos contra a prostituição têm por alvo as prostitutas e não tanto os clientes ou os proprietários das casas de alterne. Elas – as prostitutas – são vistas como os agentes perturbadores de uma ordem sexual que coloca em causa o lugar da «casa de família» e também o da mulher traída. A prostituta tem esse poder de fazer questionar o lugar da subalterna. O estigma que a prostituta carrega acaba por sinalizar o controlo patriarcal nas relações de género, canalizando carradas de desconfiança em relação à sexualidade feminina. As boas para casar reivindicam o papel de mãe, opondo-se às boas para o «prazer»: porque hiperssexuais, lascivas, disponíveis. Ou simplesmente: «putas», «cabras».

66

Mary Douglas, Constructive Drinking. Perspectives on Drink from Anthropology (Cambridge: Cambridge University Press, 1978). 67 G. Simmel, «Sociedad y Espacio», Sociología 2. Estudios sobre las Formas de Socialización (Madrid: Alianza, 1977 [1908], 643-740.

356

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 357

José Gil

Capítulo 16

O corpo-espelho-de-forças e o acaso 1. Vou introduzir este texto sobre a operatividade de um conceito – em relação ao que poderíamos chamar o «surgimento» do acaso – com a referência a um problema sobre o ready-made de Duchamp. Esta referência mostrará um aspecto desse surgimento num espaço indefinível, talvez, entre a estética e a não-estética, espaço que nos levará para outros domínios – em que reina o acaso. 2. Como se sabe, um ready-made «escolhe-se», como diz Duchamp, não se «cria» nem se «produz». O urinol, o pente, o seca-garrafas foram «escolhidos por acaso». Só assim Duchamp conseguia abolir toda a motivação de gosto ou de interesse estético na apresentação de um objecto. Introduz-se o acaso para criar a indiferença ao gosto ou «uma total anestesia» dos sentidos. Mas a expressão «escolha por acaso» não é contraditória? Duchamp inventa um procedimento, uma verdadeira técnica de surgimento do acaso que torna a escolha do objecto inteiramente aleatória. Vejamos os requisitos para que tal suceda: escolhe-se o ready-made; a) reduzindo a margem de subjectividade na escolha; b) reduzindo as propriedades (em particular, «retinianas») do objecto à sua existência pura e nua. Como se opera a primeira redução? Antes de decidir que objecto escolher, determina-se o mês, o dia, a hora, o minuto em que se deve efectuar a escolha. Marca-se esse ponto no calendário. Depois, «pode-se escolher com todo o tempo para o fazer». Lê-se, na Caixa Verde (Boîte verte): «Ao projectar para um momento a vir (tal dia, tal data, tal minuto), ‘inscrever um ready-made’. – O ready-made poderá em seguida ser procurado (com todo o tempo [délais]». 1 Ao fixar esse ponto no tempo da maneira mais precisa, obriga-se o acto da escolha a tornar-se automático. Desvia-se a atenção 1

Marcel Duchamp, Duchamp du Signe (Paris: Flammarion, 1975), 49.

357

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 358

José Gil

do gosto pelo objecto para o momento exacto da escolha. A atracção pelas formas, beleza, qualidades estéticas do objecto, é combatida pela atracção de vector diferente, que é o imperativo de escolher naquele instante. De certo modo, esta neutralização do gosto contribui para a indiferença, definida aqui como distância imposta, relativamente ao próprio interesse pelo objecto. Por outro lado, como é impossível fazer coincidir absolutamente o gesto da escolha (que é um gesto de pensamento) com o seu tempo cronológico, há sempre um elemento de desfasamento que os separa. Essa distância leva a escolha, que é o ponto fixo da corrente de pensamento, a conter necessariamente uma carga de aleatório. Aquele seca-garrafas que procurei e que escolhi para as 15h 03 não é o seca-garrafas que tinha no pensamento. Surgiu um outro seca-garrafas, real, num tempo de acaso. Porque jamais o seca-garrafas que procurei e escolhi com o pensamento e a imaginação coincidirá com o seca-garrfas que irrompeu no tempo exacto das 15h 03 (não porque o empírico não corresponda precisamente ao inteligível ou o real ao ideal, mas porque os dois planos de tempo – de pensamento e das coisas e gestos – não poderão coincidir). Produz-se o acaso da escolha fixando precisamente no tempo cronológico a data dessa escolha; e o objecto escolhido é quase indiferente por deslocação e afastamento da atenção ao (ou atracção pelo) gosto. Mais importante é o tipo de «domínio» em que se coloca o objecto que se escolheu. Numa entrevista a Alain Jouffroy, eis o que diz Duchamp: «Pergunta – Em suma, essa espécie de desprendimento que preconiza relativamente ao objecto é mais do que humor com esse objecto… Resposta – Ah! sim... é uma das reinstaurações do objecto num novo domínio; assim, o seca-garrafas que já não traz garrafas e que se torna uma coisa para a qual já nem se olha, mas que se sabe que existe, que se olha voltando a cabeça, e cuja existência foi decidida por um gesto que eu fiz um dia. É esta espécie de completa indiferença que me interessa mais...» 2 Duchamp visa o despojamento total do objecto que não deve apresentar, para o sujeito, quaisquer qualidades sensíveis. Como o conseguir? «Reinstaurando o objecto num novo domínio»: a descontextualização num espaço de exposição tira-lhe a sua funcionalidade utilitária («um seca-garrafas já não é um seca-garrafas»), acarretando a abolição de todo um aparato de formas e propriedades que adquirem o estatuto de «ima2 «Conversations avec Marcel Duchamp». In Une révolution du regard, A. Jouffroy (Paris: Gallimard, 2008), 119 (doravante AJ).

358

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 359

O corpo-espelho-de-forças e o acaso

gem-nua». O objecto deixa de ser alvo de qualquer interesse (repare-se que Duchamp não se refere à sua inserção num contexto de exposição, como escrevemos; apenas fala de um «domínio outro», em que ele perde a sua funcionalidade habitual). O que lhe resta então? A sua existência enquanto objecto, a ideia-lembrança que nos fica da sua existência. Não é um objecto a contemplar – como diz Duchamp dos seus ready-mades. Por isso é um objecto que «se olha voltando a cabeça», como apenas para se constatar que existe. Como diz ainda numa outra entrevista, o ready-made não deve sequer ser olhado, não é para ser olhado. Consegue-se assim «uma completa indiferença» perante as qualidades do objecto, o que apaga as motivações do gosto na sua escolha. Mas não se trata apenas de abolir o gosto no momento da escolha: essa «anestesia» sensorial tem de permanecer para sempre. Eis como Duchamp descreve a dificuldade da questão: «Mas há ainda um outro elemento [que distingue os ready-mades de Duchamp dos de Arman e outros]. Elemento na minha opinião muito importante, é que a escolha do ready-made foi o grande problema. Era preciso chegar a escolher um objecto, se quiser, com a ideia de não ser impressionado por esse objecto, segundo um deleite estético de nenhuma ordem. Além disso, era preciso também que o meu gosto pessoal fosse completamente reduzido a zero. Portanto, difícil de escolher um objecto que não me interesse absolutamente nada e não apenas no dia em que o escolho, mas para sempre e que não tenha nunca nenhuma oportunidade de se tornar belo, bonito, agradável ao olhar, ou feio. Mas o perigo, é que qualquer coisa [n’importe quoi] pode tornar-se muito belo ao fim de pouco tempo se se repete a operação vezes de mais, e tive, por essa razão, de limitar o número dos meus ready-mades!...» 3 Na dificuldade de escolher um objecto não impressionável há que distinguir o que torna o objecto indiferente no momento da escolha, e o que o faz durar para sempre nesse estado. Ora, as razões que Duchamp dá para conservar a anestesia da percepção do sujeito – o facto de limitar o número dos ready-mades – são extrínsecas à escolha por indiferença. A limitação do número de ready-mades é um requisito para a indiferença se tornar duradoura, não constitui um elemento inerente à escolha do objecto. O que há, então, nessa escolha que torna o ready-made indiferente «para sempre»? Antes de abordarmos a questão, retenhamos, do que já dissemos, que a indiferença, a anestesia do gosto pelo objecto provém, afinal, do acaso. Não só porque a fixação de uma data para a escolha vai necessariamente, 3

Idem, 118-119.

359

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 360

José Gil

como vimos, fazer irromper o acaso no encontro com o objecto, mas porque o olhar particular com que o olhamos no momento da escolha é como que um encontro por acaso com aquele objecto sem qualidades. É um encontro com a existência de uma coisa, existência nem sequer empírica (pois não afecta os sentidos), pois o carácter empírico está reduzido a um signo e um índice (Peirce) de uma existência como ideia, quer dizer, de uma existência não-empírica. Este estatuto ontológico paradoxal da «existência» dada pelo olhar que resulta de «voltar a cabeça» para se certificar de que o objecto existia, mas ao qual não se dava a menor atenção, define precisamente uma atenção desatenta. Desatenta ou por acaso ou melhor ainda, acaso momentâneo, instantâneo, infinitamente fugidio da atenção. Como um encontro casual que se desencontra imediatamente. É evidente que de um tal tipo de encontro decorre um acaso que dissolve qualquer propriedade ou qualidade do objecto. Porque o acaso é não-empírico, remetendo para a sem-razão da existência. Mas como é possível um olhar assim, que faz desaparecer as qualidades sensíveis do objecto, reduzindo-o a um signo, mas signo existente da sua existência concreta e não-empírica? Como se olhássemos um corpo, ali, à nossa frente, e o desmaterializássemos, lhe tirássemos todas as suas propriedades materiais, mas continuando a ver o corpo (agora, como se víssemos apenas a sua existência pura, sem que lhe atribuíssemos a mínima importância). Um tal olhar seria permanentemente por acaso. Realizaria o acaso em cada instante. A atenção desatenta que cria o acaso que cria a anestesia do olhar implica um corte (teoricamente total) entre o corpo do observador e «o corpo» da coisa olhada. O objecto pode, com efeito, ser uma coisa, um animal, um outro humano. Em todos os casos eles possuem um «corpo», no sentido em que o olhar ou a percepção em geral supõe necessariamente o devir-corpo do objecto percepcionado. Fenómeno que deriva de o corpo (humano) ser um corpo-espelho-de-forças, ou seja, um corpo que emite intensidades que se projectam no objecto e o «animam», permitindo que se lhe atribua vida. É o que a antropologia clássica apelidava de «animismo», propriedade também suposta existir nas crianças (que atribuem uma «alma» a tudo com que lidam). Entre dois corpos estabelece-se imediatamente um laço de forças em espelhamento. Não há só uma reversibilidade de formas (o que Merleau-Ponty descreveu longamente), mas uma reversibilidade de forças. Não apenas «ver é ser visto», mas «emitir forças é receber forças». Para nos referirmos à fenomenologia diremos que a condição de toda a intencionalidade (de toda a espécie) é a intencionalidade reversível das forças do 360

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 361

O corpo-espelho-de-forças e o acaso

corpo. Esse constitui o substrato – a condição de possibilidade – de toda a intencionalidade da consciência. A intencionalidade reversível das forças corporais não é consciente. Tem o estatuto de um fenómeno inconsciente, tal como o ter um corpo, o existir ou durar no tempo. Trata-se de um inconsciente não recalcado (portanto, não freudiano). É condição de possibilidade de toda a intencionalidade da consciência porque essa «intencionalidade» corporal, reversível e inconsciente, compõe o primeiro laço humano de um corpo com o mundo. (Mesmo na simbiose mais arcaica do bebé com a mãe – que Daniel Stern mostrou comportar já uma distinção não simbiótica entre um e outro – existe um embrião de reversibilidade inconsciente de forças.) Assim sendo, a atenção desatenta que rompe os laços entre o corpo do observador e o ready-made, opera um corte no investimento de forças do corpo-espelho-de-forças, ou melhor, o observador «retira» o investimento primeiro afectivo que projectou no objecto quando o escolheu («com todo o tempo» para isso, escreve Duchamp). Para tanto, basta ausentar-se do seu corpo, cortando o seu espírito do seu corpo. Ausentando--me de mim, assim, o meu corpo deixa de emitir forças e de «animar o corpo» do outro. Na verdade, o processo é mais complexo. Uma boa descrição da reversibilidade perceptiva (interrompida, neste caso) implica não só o espelhamento e a reversibilidade do corpo projectado pela visão e pelo tacto no corpo do outro, como notou Merleau-Ponty, mas todo um jogo de cruzamentos entre o espelhamento visual e táctil e o espelhamento do corpo-espelho-de-forças. Entre as formas que se trocam e as forças que se reenviam. Sem entrarmos agora na análise desses cruzamentos, digamos somente que o espelhamento de formas pode ser tanto mais intenso quanto o for o espelhamento de forças (e tanto menos intenso quanto este o for). O corte deste último provoca um efeito no primeiro: ao retirar-se do corpo no qual se projectou (tendo-se previamente retirado de si, o que corresponde à desatenção da atenção desatenta), o corpo-espelho-de-forças isola-se, deixando de comunicar com o outro corpo. As funções sensoriais continuam a exercer-se, mas de modo particular e estranho: vê-se, ouve-se mas não se toca – e a visão e a audição não «tocam» mais também. O outro corpo fala, ri, gesticula, mexe-se, mas é como se todas essas funções deixassem de me afectar. Estão num outro mundo, separado do do meu corpo por uma parede de vidro. Assim desmaterializo e desvitalizo o corpo do outro conservando-lhe a pura existência. Porque faço desaparecer para o outro o meu próprio corpo, desligando-me dele por um mecanismo comum a muitos psicóticos. Abolindo-o do meu mundo, se, por 361

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 362

José Gil

um instante e por razões que desconheço, ele faz irrupção e eu o olho, não verei dele senão uma forma vaga que me indica que ele existe. Mais: descubro-o por acaso. Que é o acaso puro da sua existência para mim. «Fazer irrupção» num espaço de onde se estava ausente implica a reinstauração de laços com o corpo-espelho-de-forças, laços não de forças (afectivas ou estéticas), mas minimamente sensoriais. É o corpo, espelho de formas e qualidades, que irrompe e se impõe nesse espaço. De certa maneira, reactiva o corpo-espelho (de formas) amortecido pelo corte operado pelo corpo-espelho-de-forças. E impõe-se face à desmaterialização que tinha sofrido: por um instante, as formas dominam as forças que as negam, impondo-se ao olhar contra essas mesmas forças. Mas quando o olhar as atinge, nenhum fio (de sentido narrativo, afectivo ou estético) emana dos sinais sensoriais para se ligar aos fios que de mim partem (mas não para as formas desse corpo que se desmaterializou e do meu-corpo-para-o-seu-corpo que eu desmaterializei). Por isso, a irrupção do corpo espelho de formas ocorre por acaso, faz aparecer o acaso revelador da indiferença, da não ligação do meu olhar às qualidades do corpo, da anestesia retiniana que se apodera de mim. O acaso põe a nu a ligação não legítima entre as forças e as formas, entre o corpo-espelho-de-forças e o corpo mimético da visão e do tacto. A «ligação não legítima» ou a não-ligação que se operou entre os dois termos. 3. Esta não-ligação parece uma excepção, um acontecimento raro na acção quotidiana dos corpos. O acaso surge quando duas séries de causas se cruzam sem que uma terceira, englobante, venha a formar-se inserindo-o em si e oferecendo-lhe sentido (causalidade ou finalidade). Encaremos a causalidade de qualquer série física como o produto de uma elaboração altamente complexa da sobreposição coincidente das forças e das formas. Por outras palavras: qualquer que seja a série de coisas, ela resulta de operações primitivas em que a projecção das forças e o seu espelhamento pelo objecto investido desposam perfeitamente a projecção e o espelhamento das formas. Na percepção de um objecto, as suas formas adequam-se, correspondem às, e emanam das, forças espelhadas, confundindo-se com elas. Situação extrema de coincidência absoluta entre sentido, causa e motivação, definindo a imanência absoluta sem acaso (ou de acaso absoluto no «jogo ideal»). No outro extremo, o acaso também não existe, mas por razões contrárias: porque as séries de forças e formas divergem tanto que nunca se encontram. 362

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 363

O corpo-espelho-de-forças e o acaso

Qual a situação habitual? Aquela, já sugerida, em que as séries se cruzam, o acaso sendo imediatamente recoberto por uma terceira série que capta o acaso e o insere numa sequência nova de causas e efeitos. No comportamento individual e colectivo, no extraordinário edifício que o homem construiu no plano tecnocientífico, institucional, jurídico, moral, político, cada elemento dessas máquinas sociais tem por fim captar o acaso ou impedi-lo de se exprimir ou desenvolver, domesticando-o sob uma regra, uma lei, uma norma. No entanto, basta remeter a acção ou o acontecimento para o plano radical onde se cruzam todas as séries – o plano do nascimento ou da morte – e perguntar: «Porque me acontece isto, a mim?» ou «Tinha mesmo de me acontecer isto a mim!», para que a pertinência inquestionada da causalidade se desmorone, pondo a nu a latitude de acaso que atravessa uma vida ou a dinâmica social inteira. Por outro lado, nos comportamentos quotidianos, qualquer escolha é, neste sentido, aleatória. Porque o que decidimos no pensamento e depois realizamos na acção não é nem o que decidimos nem o que realmente fazemos. Basta pensar nas mil séries inconscientes que interferem: jorram microacasos que, acumulando-se, vão resultar em grandes diferenças, mais tarde. Por isso se desfazem os casamentos, por exemplo: escolhe-se ou é-se escolhido não por gosto mas por indiferença ao outro (quer dizer, sempre com um certo grau de desmaterialização do outro). Escolhe-se o outro como se escolhe um ready-made. Na «situação normal» são as formas que comandam as forças. São elas que as recobrem e as transformam. Na simples percepção dos corpos e dos objectos nos espaços sociais, as formas visuais ocupam desmesuradamente o campo perceptivo e a consciência que o acompanha. Para o indivíduo comum, é difícil «sentir» nesse mesmo momento as forças que emite e recebe do espaço e dos outros corpos. Por um lado são atenuadas nas suas intensidades, ou desviadas nos seus investimentos, por outro deixam quase totalmente de ser «sentidas». Contudo, os trajectos que o corpo adopta, a sua situação no espaço, a miríade de acções e reacções emocionais aos objectos e aos corpos que o rodeiam – tudo isso indica uma densa rede de forças que quase se não manifestam sob a ofuscação que as imagens e as formas provocam. Mais: como dissemos, estas últimas moldam e manipulam aquelas, transformando-as. Em particular, as formas e as imagens possuem um poder de absorção das forças que levam a que estas pareçam emanar das figuras e dos seus movimentos. Pode-se, pois, considerar que, no estado habitual da organização das relações humanas em sociedade, o exercício do corpo-espelho-de-forças é codificado e ocultado pela pregnância hegemónica das formas e qualidades 363

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 364

José Gil

no plano macroscópico dos corpos. E que esta ocultação das forças e hegemonia das formas macroscópicas servem a máquina das relações de poder. O poder visa a mutação e o estrangulamento das forças por um lado e a manutenção das máquinas que expulsam o acaso do campo social. Assim se explica que o sistema do espelhamento das formas esteja organizado para impedir a irrupção do acaso. Ora, acontece que sob (e no meio) da superfície social das formas fervilha um mundo intenso de forças que liga a desliga os corpos directamente. Por exemplo, estamos constantemente a fazer irromper forças informes, criando séries independentes que se cruzam com as séries de imagens, produzindo acasos. A cada instante retiramos investimentos na relação com os outros corpos, desmaterializando-os, relegando-os para um «outro mundo» dentro do nosso. A desmaterialização microscópica, parcial, do corpo do outro tem infinitas modalidades, entre a imanência dos corpos uns aos outros e a sua total divergência. Entre estes dois extremos estende-se a gama infinita da desmaterialização microscópica. Esta, como vimos a partir da escolha do ready-made de Duchamp, faz desaparecer o corpo (ou parte dele) criando, para a percepção, a pura existência, indiferente e nua, do objecto. Mas se considerarmos a desmaterialização microscópica como um mecanismo muito mais geral a que se podem submeter os corpos, verificamos que existem três destinos possíveis para ela: a) A desmaterialização como meio de disciplinar os corpos. Fazer desaparecer certas forças e movimentos, extraí-los para os dirigir para fins bem determinados. Aqui a desmaterialização não produz acaso, mas gela-o e insere-o numa série finalizada de formas e qualidades. O acaso, melhor, a ocasião do acaso é captada, entrando numa cadeia causal. – Poderíamos dizer que este mecanismo é próprio das «sociedades disciplinares» segundo a classificação de Foucault. b) Um outro destino da desmaterialização microscópica está agora em pleno desenvolvimento. A desmaterialização dos corpos é operada por dispositivos que os virtualizam, esvaziando-os das suas forças. O plano de acção e circulação de forças transfere-se dos corpos para os dispositivos tecnológicos, ao mesmo tempo que a microscopia da escala de desmaterialização se transforma em macroscopia. O espelhamento das forças não vai de corpo a corpo, mas de dispositivos que constroem formas virtuais aos corpos reais que as «incorporam». Já não se «espelham» forças, mas «enxertam-se», «implantam-se», «redesenham-se» formas reais nos corpos supostos fornecerem a energia (e não as forças) de que precisam. A supremacia das formas sobre as forças está-se a confirmar cada vez mais. – Se a microscopia sofreu uma reversão para a macroscopia, o acaso deixou de 364

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 365

O corpo-espelho-de-forças e o acaso

ter lugar na imperceptibilidade, na excepção, na raridade, vindo ocupar intensamente o campo social. De certo modo, o acaso daquela «atenção desatenta» de Duchamp generalizou-se à escala macroscópica. Mas não é alguém que olha agora por acaso e desatentamente o objecto, são os dispositivos tecnológicos que insuflam energia nos corpos esvaziados que a reflectem. Assim, são miríades de grandes acasos «objectivos» que ocorrem na vida de todos os dias – acasos que resultam dos múltiplos cruzamentos entre as séries de forças emitidas pelas máquinas (que nos «marcam») e as séries de corpos dirigidas pela «vida residual» que neles persiste. O movimento geral dos seres nesta sociedade de controlo torna-se aleatório – mas o controlo provém da desordem e do acaso generalizados. A maneira como se «escolhe» um trabalhador assemelha-se ao modo como se deve olhar, «voltando a cabeça para o lado», para um ready-made. O trabalhador está reduzido a índices de existência que são os currículos, e mais nada. A precariedade do trabalho e da vida em geral testemunha a importância decisiva do acaso na construção do poder da nova ordem globalizada. c) Enquanto nos dois casos ou destinos da desmaterialização que acabámos de referir a separação, o corte que desmaterializam gelam o afecto – e é isso que faz desaparecer a vida dos corpos –, há sempre uma outra possibilidade que decorre da própria natureza do acaso. Que faz o acaso? Perturba a ordem do mundo, regulada pela crença na previsibilidade dos fenómenos submetidos a cadeias causais. Quando duas cadeias se interseccionam e brota o acaso, este abre um espaço ao mesmo tempo indeterminado e aonde é sempre possível reduzir o fenómeno ocasional a um efeito determinável. Ou seja, é sempre possível determinar o indeterminado encaixando-o numa terceira série mais vasta em que o aleatório ganha sentido. É o que se chamou captura do acaso. Mas o gesto de captura vem depois do surgimento do acaso, depois do cruzamento das séries. Por exemplo, as imagens dos sonhos e as emoções que as atravessam formam séries ocasionais ou, já de si, elementos que acontecem por acaso – até ao momento em que a interpretação vem recobrir e integrar o conjunto de elementos psíquicos ocasionais numa narrativa que lhes aufere sentido porque os encadeia num fio intencional. No entanto, só a hipótese metafísica do determinismo universal pode fazer perder aos elementos psíquicos o seu carácter aleatório. Os elementos dos sonhos são ocasionais – ontologicamente ocasionais, por assim dizer – porque se enraízam na singularidade da individuação do inconsciente de um corpo. Assim, o acaso abre, no campo das formas e qualidades, um espaço onde podem irromper forças livres, livres porque ocasionais. Este é o ter365

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 366

José Gil

ceiro destino possível da desmaterialização microscópica. Sucede, então, um movimento contrário à desmaterialização: os corpos enchem-se de forças afectivas que emitem e recebem partículas, o corpo-espelho-de-forças prima o espelhamento das formas e o acaso reina na circulação dos afectos. O que permitiu tudo isto foi o cruzamento ocasional das séries que abriu um espaço vazio à volta do acontecimento que surgiu; ao mesmo tempo que se prestava a ser ligado, captado e inserido numa outra série causal. Mas o próprio facto de ser susceptível de captura mostra que pode não ser capturado – pondo a nu o vazio, a não-ligação de direito, o espaço, afinal, aonde pode nascer o kairós e, de novo, as forças que o corpo projecta e o mundo espelha. Como nos diz Deleuze, não há fechamento e captura sem abertura de linhas de fuga. 4. Há dois domínios em que se vê particularmente bem a articulação entre o corpo-espelho-de-forças e o espaço de indeterminação onde nasce o acaso: são a magia (e a feitiçaria) e a arte. Referir-nos-emos apenas ao primeiro. Que faz a magia? Se considerarmos os rituais terapêuticos, dos mais simples como os que «tiram» o mau-olhado na área mediterrânica, aos mais complexos como os estudados por Victor Turner nos Ndembu da África Central, 4 verificamos que as técnicas (mágicas) utilizadas visam controlar o acaso. Trata-se de reduzir o mau-olhado, que, em geral, se resume para a vítima num conjunto de sintomas que apareceram por acaso, numa «causa», melhor, num motivo determinado. É a «bruxa» (em Portugal, Espanha – e que toma muitos outros nomes em Itália, Albânia, Líbano, Líbia) que diagnostica a razão dos sintomas e fixa o tipo de tratamento. Uma vez conhecida a «causa», assim como o autor intencional – ou não – do «ataque» de feitiçaria que provocou a doença, prepara-se e executa-se o ritual que, se tem sucesso, expulsa o agente patológico e repõe a normalidade e a ordem no corpo do doente. As representações e crenças mágico-religiosas que suportam estes rituais parecem, pois, não admitir o acaso: a «bruxa» ou o adivinho que faz o diagnóstico da doença decifra – por meio de códigos e da sua própria intuição – uma mensagem encriptada na maneira como a gota de azeite se fragmenta ou não na água – no caso do mau-olhado –, ou nos sinais das entranhas de um animal, etc. Essa mensagem vem de um saber transcendente e esotérico (que apenas os antepassados ou as potências divinas possuem) e ao qual só tem parcial e ocasionalmente acesso o feiticeiro ou o 4

Ver, por exemplo, V. Turner, Les tambours d’affliction (Paris: Gallimard, 1972).

366

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 367

O corpo-espelho-de-forças e o acaso

medicine-man. Mas a adivinhação, tal como o processo de cura, podem falhar – por razões desconhecidas, ou mesmo incognoscíveis. Por exemplo, o medicine-man pode não possuir a «força» ou «poder» suficiente para lutar contra a outra força, causa do mal. Ora, este factor não é redutível nem constitui uma doença tratável. É, por assim dizer, um elemento da potência própria (e, portanto, da competência) do feiticeiro. É ocasional. Se bem que parecendo não admitir o acaso, a feitiçaria e a magia situam-no no espaço de contingência que separa o saber esotérico das instâncias divinas do saber exotérico do homem comum. O acaso existe, mas eventualmente (não necessariamente) o homem pode dominá-lo e aboli-lo temporariamente. O ritual terapêutico forma um dispositivo destinado a controlar o acaso. Mas como é sempre possível que o processo de cura falhe (por acaso), ele abre, afinal, um espaço de indeterminação em que se decide o destino dos homens. A magia reconhece que há um factor aleatório ontológico na sua tentativa de controlar o acaso. Neste sentido, diremos que a feitiçaria e a magia, ao captar e domar o acaso, mostram como ele se liberta, assim como o espaço de indeterminação incodificável aonde se liberta. É o espaço da luta e da guerra, já que no pensamento primitivo a feitiçaria é assimilável a um combate. O mesmo se diria do jogo como procura de controlo e libertação do acaso. Ora, para que a prática mágica funcione, é preciso que se opere uma transferência de forças. O mau-olhado, a possessão, são pensados como incorporações de forças que quiseram penetrar e alojar-se num corpo. No centro desta «transferência psicótica» (para nomearmos o fenómeno com a terminologia psiquiátrica) trabalham devires. Por exemplo, a possessão como um devir-antepassado do paciente possuído. Na cura (suponhamos, pelo transe), o devir-antepassado é activado ao extremo, até o antepassado espectral ser expulso do corpo. Se há devir, é porque resulta do espelhamento de forças, ou seja, da acção do corpo-espelho-de-forças. Na possessão, o corpo auto-espelha-se como antepassado e «joga» gestual e verbalmente esse antepassado incorporado em que devém. Existe uma expressão francesa, da linguagem da feitiçaria, mas também da linguagem comum, que exprime bem o duplo factor de intencionalidade e de indeterminação em acção no acaso: «jeter un sort», que se pode traduzir imperfeitamente por «rogar uma praga», no sentido de suscitar a «má sorte», a desgraça. A sorte, é em português, em geral, o bom acaso. «Ter sorte» à lotaria, a um jogo, é ganhar graças à acção de uma instância indeterminada, mas a que se atribui um poder, precisamente, o poder de escolher o seu alvo. «Jeter un sort» é uma expressão paradoxal: se se lança 367

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 368

José Gil

qualquer coisa, a acção é motivada, intencional – visa-se prejudicar alguém; mas o que se lança é a «sorte» como acaso, um factor de certa maneira incontrolável. «Jeter un sort» ou «rogar uma praga» ou «lançar o mau-olhado» pode ou não resultar: significa também tentar a sorte, tentar acordá-la, tentar induzir nessa instância que não obedece a nenhuma lei uma intencionalidade precisa. É tentar provocar o acaso, fazê-lo agir como uma causa – mas, de certo modo, este tentar, porque não passa de uma tentativa, não se desprende inteiramente do acaso. Repare-se que tudo isto supõe que se dota o acaso de força, poder e autonomia. De certa maneira, personifica-se atribuindo-lhe mesmo – tacitamente – uma vontade própria. Mas não se lhe atribui nem tempo nem territórios exclusivos (o acaso existe «por aí», na «atmosfera», como acreditam os Azandé).5 A autonomização e personificação do acaso resulta da projecção-espelhamento de forças do corpo-espelho-de-forças. Por exemplo, no mau-olhado, as forças de inveja canalizadas pela expressão, o olhar, o gesto, são «lançadas» mas ao mesmo tempo «atiradas ao ar» para ver se a pessoa visada as atrai e apanha. Essas forças repartem-se, pois: investidas na expressão ou no olhar, veículo do mau-olhado, emitem um excesso que se investe no acaso e que pretende cruzar-se com a série de faltas que, por seu turno, emana da vítima. Se se cruzam, dá-se o acaso que é simultaneamente reduzido, inserido numa terceira série causal que integra as duas primeiras – a das invejas e do excesso de forças livres, e a das faltas –, e as incorpora: as forças das invejas penetram e aprisionam a força vital da vítima. Quando a expressão que canaliza as forças do mau-olhado é «atirada ao ar», entra no espaço de indeterminação do acaso, tornando-se ela própria ocasional; simetricamente, é o que acontece às «faltas» que se vão cruzar com as invejas. Relação de forças que parte dos corpos que se espelham – as «faltas» espelham os «excessos», e a instância sem rosto «acaso» forma-se, porque fixa uma parte das forças em jogo, mas desinvestidas. Seria interessante analisar como uma terapia psíquica moderna, como a psicanálise, exclui o acaso do seu processo terapêutico, e como, apesar de tudo, o acaso insiste e persiste em interferir, exigindo novos conceitos para descrever a complexidade da sua acção. Veríamos que teríamos de pensar diferentemente o sonho, o inconsciente, a transferência – como o sugere, num brilhante artigo, Adam Phillips.6 5 Ver E. E. Evans-Pritchard, Sorcellerie, oracles et magie chez les Azandé (Paris: Gallimard, 1972). 6 Ver Adam Phillips, «Nos hasards et le Contingent Self». Nouvelle Revue de Psychanalyse, 48, 1993).

368

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 369

O corpo-espelho-de-forças e o acaso

5. Convém agora descrever melhor os mecanismos do espelhamento de forças, se queremos, afinal, responder às perguntas: como nasce o acaso desse mecanismo? Como interfere na formação das formas, a partir das forças? – problema decisivo para a compreensão de tantos fenómenos na área da estética, da terapia, da micropolítica ou da retórica. O espelhamento de forças foi já referido por Espinosa, que lhe chamou «imitação afectiva», tendo o seu estudo sofrido recentemente uma forte reactivação através da psicologia cognitivista. Daniel Stern, por exemplo, chama-lhe «accordage affectif», que se poderá talvez traduzir por «concordância» ou «correspondência afectiva», ou ainda «aparelhamento» ou «contágio de afectos» [«appariement d’affects», «contagion d’affects»] – que Stern e outros investigadores estudaram em bebés, a partir dos nove meses, quando o contágio afectivo começa. Nós consideramos o espelhamento de forças como um fenómeno geral do corpo – da criança como do adulto – de tal modo importante que entra na sua definição. O espelhamento de forças tem por origem uma propriedade do corpo: a de emitir forças (partículas intensivas) que um outro corpo recebe e acolhe como suas. Qualquer corpo, pois, incorpora forças emitidas por um outro corpo e espelha-as, emitindo outras forças ou exprimindo-as: assim as lágrimas provocam lágrimas, a força da alegria ou da compaixão são contagiantes, a violência suscita uma reacção recíproca, etc. Fundamentalmente, quer dizer, enquanto substrato nu desta reemissão de forças determinadas, a emissão de intensidades projecta vida no outro corpo. Porque não se trata de forças inertes puramente físicas, mas de forças de vida. É por isso que o corpo-espelho-de-forças possui a propriedade de espelhar e de fazer o outro corpo espelhar: porque dá, antes de mais, uma vida ao outro corpo ou ao objecto inanimado. Esse constitui o núcleo do espelhamento de forças: sustém as forças particulares que são enviadas, em espelho, pelo corpo (por isso Daniel Stern atribui um papel primordial aos «afectos de vitalidade»7 na sua «concordância afectiva»). Esta propriedade central do corpo justifica, pela sua importância, que falemos num «corpo-espelho-de-forças». Referimo-nos já ao seu papel nos devires. Olhemos com mais atenção. Dissemos que não há devires 7 Ver Daniel Stern, Le monde interpersonnel du nourrisson (Paris: PUF, 1999), 77. Os afectos de vitalidade estão ligados a processos vitais «como respirar, ter fome, sair do sono, sentir a passagem das emoções»; são afectos vitais ligados à força de vida; diferem dos «afectos categoriais « ou «darwinianos» (como a cólera, a tristeza, a felicidade, etc.), compõem-se de «certas propriedades das pessoas e das coisas, tais como a forma, o nível de intensidade, o movimento, o número e o ritmo» (p. 77). São apreendidos directamente como atributos perceptivos globais e amodais.

369

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 370

José Gil

sem espelhamento. Acrescentemos: o devir é um espelhamento de forças. Se entre o indivíduo que devém e o animal ou objecto em que devém nasce uma zona de indiscernibilidade, é porque as forças emitidas e as que se reflectem se confundem – não porque as imagens de um e outro dificilmente se distinguem. O espelhamento de forças não constitui uma reflexão de tipo «imagem no espelho», uma imitação. A força reflectida ao «entrar» no espelho (no corpo-espelho) mistura-se necessariamente com outras forças corporais, mudando de ritmo e de intensidade. A violência que sai do corpo que foi violentado não é uma cópia ou uma imagem desta última, mas o produto de um metabolismo que sofreu no corpo da vítima. Mudaram certas determinações (como a intensidade e a modulação da energia), mas sobretudo o laço de pertença: já não é uma força do indivíduo que a emitiu que ressurge espelhada por um outro corpo; aparece, é uma força que emana de um outro que lhe pertence. Ou seja, o espelhamento de forças cria a singularidade da força reflectida. Porque a primeira projecção é incorporada no outro corpo dando-lhe vida, quer dizer, vida autónoma e singular. Se a criança, o pintor ou o poeta são capazes de dar vida a uma pedra, é porque o fluxo de forças foi cortado para que a pedra, agora «animada», apareça como singular, individuada, própria. A singularização da vida do animal ou do objecto representa um requisito essencial para a criação de uma zona de indiscernibilidade do devir: aí, a minha singularidade mistura-se com a do animal (ou da pedra, ou da árvore) porque esta emite forças a partir de uma singularidade diferente. Se o espelhamento reflectisse forças que eu reconhecesse só como minhas, não haveria diferença e, portanto, indiscernibilidade. Podemos então avançar com a afirmação recíproca da que acabámos de fazer: o espelhamento de forças é um devir. Ora, o devir é um factor decisivo na emergência do acaso. Note-se que Daniel Stern tem a mesma ideia da sua «concordância afectiva»: ela também não é puro reflexo em espelho. «‘A resposta em espelho’ ou ‘em eco’ representa os termos e os conceitos mais próximos da ‘concordâncoa afectiva’. O sentido destes termos tropeça no problema da fidelidade do comportamento imitado do original. ‘A resposta em espelho’ apresenta o inconveniente de sugerir um sincronismo temporal completo.» 8 O espelhamento de forças não é uma pura imitação reflexiva. Mas também não é identificável com a empatia. Esta supõe «a mediação de processos cognitivos», ao passo que a «concordância afectiva» 8

Idem, 188-189.

370

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 371

O corpo-espelho-de-forças e o acaso

de Stern é uma correspondência imediata, um modo de «reproduzir imediatamente o estado afectivo interno do outro. Num caso clínico descrito por Stern, «a mãe ‘desliza para o interior’ do estado emocional do bebé, de modo suficientemente profundo para o captar». 9 Segundo Stern e a sua equipa, «três características de um comportamento preenchem as condições [para que ocorra um «aparelhamento sem imitação»] (podendo, por conseguinte, servir de fundamento à concordância). [...] São a intensidade, o ritmo e a forma». O autor vai mostrar como estes factores se desdobram em seis tipos de aparelhamento: intensidade absoluta, perfil de intensidade, pulsação temporal, ritmo, duração, forma. Por exemplo, a «intensidade absoluta. O nível de intensidade do comportamento materno é o mesmo do que o do bebé, quaisquer que sejam o modo e a forma do comportamento. Por exemplo, a força de vocalização materna poderia igualar a do movimento brutal do braço feito pelo bebé [num caso em que o bebé agita de baixo para cima o braço e a mãe tenta acordar-se-lhe afectivamente com vocalizações numa gama de sons ‘de baixo para cima’]». 10 E Stern lembra o caso que descrevera já da mãe que transpusera o movimento do bebé para o movimento da sua própria cabeça, que ela agita de baixo para cima. «Forma não quer dizer a mesma forma, senão seria imitação.» Assim, pela forma se aparelham duas emoções. Acrescentemos que «o processo da concordância tem lugar essencialmente fora da consciência».11 Esta descrição interessa-nos particularmente porque nos permite mostrar como na percepção de um corpo ou de uma coisa se forma um caos – onde nascem a imprevisibilidade e o acaso. Em toda a percepção – no bebé como no adulto – age o espelhamento de forças e o espelhamento de formas. Podemos considerar a «concordância afectiva» de Stern como um espelhamento de forças, que ele considera como o substrato mais importante do que apelida de «intersubjectividade» e também da formação do Self. Ora, o que se passa na percepção? O espelhamento de forças (afectivas) diz respeito sobretudo à intensidade e ao ritmo das forças, mas também à «forma». Se entro numa relação com um corpo atribuo-lhe a intensidade e o ritmo dos meus afectos (nomeadamente dos «afectos de vitalidade»). Mas a projecção dessas forças sofre uma reflexão que transforma o corpo investido num corpo também emissor. Emissor de forças, 9

Idem, 193. Idem, 190. 11 Idem, 193. 10

371

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 372

José Gil

como já vimos, diferentes, se bem que resultantes de um espelhamento. Consideremos dois corpos numa relação dual, formando um sistema. As forças espelhadas vão afectar o corpo A (primeiro emissor), de tal maneira que este já não se situa fora da relação com um sujeito emissor face a um objecto B (corpo receptor). Agora A é também receptor, e é-o enquanto continua a emitir – o mesmo acontecendo, simétrica e reciprocamente, com B. A intensificação das trocas vai baralhando cada vez mais a posição emissora de A e a posição receptora de B, voltando-as ao avesso, confundindo-as. Dá-se então um efeito de «retroacção» tal que pode produzir o caos – por exemplo, o resultado pode ser uma osmose total das forças de A e B e a perda da sua autonomia, de tal modo que não saberíamos dizer quem é emissor e quem é receptor. No campo psiquiátrico entrar-se-ia numa relação classicamente qualificada de «fusional» susceptível de gerar uma psicose. Suponhamos que o sistema não se compõe apenas de A e B, mas de A, B, C ou mesmo n elementos em relação osmotizante. A confusão torna-se imparável em direcção ao caos. Como se viu, adoptámos, de passagem, o modelo da teoria física do caos. O processo de espelhamento gera turbulência, quer dizer, caos. Em termos concretos, isto significa que toda a percepção, porque implica um espelhamento de forças, contém o germe de uma situação caótica. Por retroacção das forças emitidas, quer dizer, por espelhamento do espelhamento das forças emitidas e de outras projectadas por B, pode ocorrer uma situação tal, que a oscilação entre um estado de A de mais forte pregnância de emissão relativamente à recepção torne imprevisível a posição de A e de B. O que leva à indistinção das forças na percepção. Neste sistema há dois atractores estranhos, os corpos A e B, à volta dos quais se desenvolve a turbulência e a imprevisibilidade do trajecto, da posição, da intensidade e do ritmo das forças. Mas na percepção não intervém apenas o corpo-espelho-de-forças, mas também o corpo-espelho de formas, a reflexão das formas. Não de formas idênticas mas de, por assim dizer, «formas de forças», formas de ritmos, de intensidades; e o aparelhamento faz-se por transferências amodais (fora das modalidades sensoriais) comprometendo afectos de vitalidade (mais dos que os afectos categoriais). Destes dados tiram-se várias conclusões: 1. É o espelhamento das forças que permite o espelhamento das formas. Pois antes de uma forma do objecto tomar vida, é preciso que uma projecção e captação de uma forma de força se realize. Para que «ver» seja «ser visto», é necessário que uma força de vida, uma «forma de força», uma forma do ritmo de um 372

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 373

O corpo-espelho-de-forças e o acaso

afecto de vitalidade se inscreva no corpo do outro – para que o meu possa «ser visto», quer dizer, para que uma forma particular do corpo empírico possa tornar-se percepcionada. 2. Na situação de caos para que tende o espelhamento de forças – na percepção, no pensamento, no psiquismo, na criação artística –, este provoca uma desestruturação das formas (tanto de A como de B). A força predomina sobre a forma que se fragmenta e atenua a sua intensidade própria. No espaço caótico, as forças circulam aleatoriamente e os pedaços de formas, soltos, desprendidos, livres, flutuam ao acaso (não investidas por forças). É neste meio turbulento e imprevisível que, por vezes, os fluxos de forças encontram e são atraídos por fragmentos de formas. Como? Pelo cruzamento ocasional de «formas de ritmos», quer dizer, de formas de forças como formas extra-sensoriais. Num momento crítico do duplo espelhamento de forças e de formas, as primeiras são atraídas pelas segundas como uma força é atraída por outra, diferente, mas que tem o poder de devir-imagem, imagem que, por contracção, por absorção, tende a condensar em si todas as forças do corpo. Deste cruzamento entre estes dois tipos de espelhamento nasce o acaso de uma nova forma de que emana uma nova força. É, pois, esse cruzamento que faz nascer o acaso. Resta-nos perguntar: porque é que os fragmentos de imagens e formas atraem as forças? Qual a razão e o agente dessa atracção? Antes de responder, lembremos a multiplicidade de domínios que esta problemática atravessa: na estética, a relação forças-formas está no cerne do processo criativo; na psicanálise, em que a mesma relação determina o objecto do fantasma, o duplo movimento da transferência e da contratransferência ou o elemento gerador do sonho; na vida quotidiana, na atracção amorosa, nos jogos da criança, no carisma político, na formação de híbridos, por exemplo. Em todos estes casos nasce a pergunta: porque é que aquela forma foi «escolhida» entre inúmeras outras possíveis? De onde vem a sua pregnância intensiva? O que tem ela para atrair aquele particular feixe de forças? No meio caótico povoado de pedaços de imagens e de forças que circulam – meio que resultou da desestruturação da forma macro graças ao espelhamento de forças –, a fragmentação caótica intensifica as imagens parciais e as formas que circulam à deriva, livres. Porquê? Porque o caos liberta energia e porque, nesse meio, as transferências transmodais de forças afectivas ocorrem com muito mais frequência, intensidade e variedade (como Stern reconhece para o bebé) – passando um afecto de vitalidade de uma imagem táctil para uma imagem visual, por exemplo – 373

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 374

José Gil

de tal maneira que tal imagem pode tornar-se um atractor preferencial dessas transferências. As quais acontecem, pois, por atracção. Como é também por atracção que essa imagem, particularmente intensa, chama a si as forças de espelhamento vindas do outro corpo. Como se processa a atracção? Em suma, o processo já descrito descrito resume-se e continua assim: 1. O espelhamento de forças reflecte forças diferenciadas. Por intensificação e aceleração, as forças tendem a esboçar formas. 2. O espelhamento de formas solta fragmentos de formas que atraem forças e afectos amodais de outros fragmentos graças ao ritmo que os traduz uns nos outros. As formas tendem a transformar-se em forças, por esbatimento e desmaterialização das suas propriedades formais; tendem a emitir cada vez mais forças. 3. As «formas de forças» entram em tensão de atracção (ou repulsão) com as formas intensificadas. O ponto crítico do acaso dá-se quando os ritmos de um e outro lado se atraem porque se entretecem. Como escrevem Deleuze e Guattari, o ritmo «é o Desigual ou o Incomensurável, sempre em transcodificação. [...] Ele não opera num espaço-tempo homogéneo, mas com blocos heterogéneos». 12 Aqui, com forças e formas. A tradução rítmica dá a impressão de compor um só ritmo, um só corpo, mas o que resulta é uma diferenciação rítmica maior e a diferenciação mais complexa dos corpos. As forças de A vão ritmar as formas de B porque estas vão intensificar, traçar melhor, intensificando-as, as «formas das forças» de A. O que é um encontro? É um encontro casual. Para que ocorram tais encontros, é preciso produzir o acaso ou antes, criar as condições para que o acaso surja num encontro. Voltamos ao princípio, quando descrevíamos como Duchamp queria produzir o acaso num encontro rigidamente marcado [um rendez-vous]. Mas agora não se trata de desmaterialização dos corpos, mas da sua caotização. As melhores condições para que aconteça um encontro casual residem na produção do caos. Melhor, na provocação da emergência do microcaos que já está em nós. Essa é a primeira condição. A segunda é a projecção do caos, quer dizer, de forças caóticas num outro corpo, que as receberá como por acaso. A desestruturação das suas formas macro e da hegemonia destas sobre as forças, o vir à tona do caos num e noutro corpo, cria um campo de atracção de forças e de formas, segundo os processos que descrevemos. O ponto crítico da dupla reversibilidade das forças e fragmentos (séries divergentes) irrompe como o momento em que a corrente «pegou» entre os dois. Esse é o ins12

G. Deleuze e F. Guattari, Mille plateaux (Paris: Éd. Minuit, 1980), 385.

374

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 375

O corpo-espelho-de-forças e o acaso

tante do surgimento intensivo do acaso. O Ritmo entreteceu o desigual no desigual, o diferente no diferente, graças ao Desigual e à Diferença, criando um contínuo de forças sem princípio nem fim. Produziu-se a osmose de afectos, a «concordância afectiva». Se o encontro é amoroso, então um e outro, querendo traduzir a linguagem molecular dos espelhamentos diferenciais e do acaso intervalar em linguagem molar, dirão: «Esperei desde sempre por ti» ou «Estávamos destinados a encontrarmo-nos.» Dirão assim, com e sem razão, porque o acaso puro, que não existe, engendra a imagem do seu avesso impossível, no espelhamento absoluto. Mas, na verdade, eles estão falando das suas diferenças que se encontraram, não se sabe como (definir o acaso é aboli-lo), mas de modo certeiro, como o quer uma boa prática do acaso.

375

16 MVCabral Cap. 16_Layout 1 6/24/13 9:33 AM Page 376

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 377

Parte III Política

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 378

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 379

Renato Lessa

Capítulo 17

Manuel Villaverde Cabral e os casulos do conhecimento político Não creio ser exagerado afirmar que a prolongada situação de ditadura ultraconservadora vivida pelo país tornou, durante perto de cinquenta anos, extremamente difícil pensar cientificamente a esfera política. Ditadura mais desmobilizadora do que mobilizadora, designadamente após a II Guerra Mundial, o salazarismo lançou como que um interdito generalizado sobre a política e os próprios políticos. Reduzindo a zero ou quase os níveis do comentário e da análise e monopolizando o nível do pensamento, o regime apenas deixou produzir uma retórica essencialmente legitimadora, quando não puramente hagiográfica. Se, hoje, vai ganhando algum sentido ponderar essa literatura do regime, na altura, porém, a sua leitura era não só indigesta como, de certo modo, imoral.1

Abertura Reproduzo, à partida, o parágrafo de abertura de inspirado ensaio, elaborado por Manuel Villaverde Cabral, a respeito do desenvolvimento da reflexão política em Portugal. Ali, creio, está contido o núcleo do argumento desenvolvido ao longo do texto do qual foi retirado: o ambiente do salazarismo, para pôr as coisas em tom moderado, não foi propício à constituição de um domínio propriamente político, sendo antes um experimento dissolvido em injunções de natureza pré-política ou, até mesmo, antipolítica; tal invisibilidade do político, se assim posso referir, tornou inviável a expressão, ou o próprio desenvolvimento, de uma 1

Cf. Manuel Villaverde Cabral, «História e política nas ciências sociais portuguesas, 1880-1980». In A Ciência Política nos Anos 80, org. Bolivar Lamounier (Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1982), 251.

379

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 380

Renato Lessa

forma sistemática de conhecimento a respeito da vida política e da organização do Estado, fora de um marco de puro administrativismo, no Portugal daqueles anos; sendo assim, tal conhecimento sistemático – chamemo-lo de Ciência Política – viria a ser um apanágio dos anos posteriores à revolução democrática do 25 de Abril de 1974. Antes de passar à inspecção do argumento, alguns dados de circunstância. A peça em questão foi apresentada em colóquio organizado pelo cientista político brasileiro Bolivar Lamounier, havido em São Paulo, no não mais existente IDESP, 2 no já longínquo ano de 1981. O evento reuniu cientistas sociais de países diversos, em torno ao tema «A Ciência Política nos Anos 80», expressão-título da obra colectiva que viria a lume no ano seguinte. A par da discussão mais geral sobre aspectos conceptuais e institucionais da disciplina, o encontro considerou particularidades nacionais, entre as quais a do estado da arte da Ciência Política em Portugal, no colóquio tratada por dois dos seus representantes: além de Manuel Villaverde Cabral, Luís Salgado de Matos, ambos investigadores do então Gabinete de Investigações Sociais (GIS), matriz do futuro Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa, implantado em 1982. Ensaio já antigo, de mais de 30 anos, do texto de Manuel Villaverde Cabral pode ser dito que já não conta mais como avaliação actualizada do estado da arte da Ciência Política portuguesa, que muito avançou no espaço de tempo havido desde então. No entanto, e como de hábito no autor em questão, há um excesso benigno, tanto em termos analíticos como na mobilização da inteligência, no referido texto. Embora datado, pelos exemplos e objectos considerados, o texto mantém-se íntegro como referência possível para reflectir sobre alguns padrões cognitivos centrais do campo da Ciência Política. É neste sentido que desejo aqui considerá-lo. Além do que, como será adiante reconhecido, o desenho então proposto como retrato coevo das perspectivas do conhecimento político não veio a mostrar-se de todo inadequado. Em termos mais precisos, motivado pelo ângulo e pelos argumentos apresentados por Manuel Villaverde Cabral, pretendo estabelecer uma conversa e uma analogia com relação a aspectos que estiveram presentes 2 Instituto de Estudos Sociais e Políticos de São Paulo, uma instituição de pesquisa independente, criada em 1980 e encerrada na década de 90. Foi, no seu tempo, uma das principais instituições de pesquisa no âmbito das ciências sociais, no Brasil. Por ali passaram quadros importantes das ciências sociais no Brasil, tais como o próprio Bolivar Lamounier, Eduardo Kugelmas, falecido em 2006, Maria Tereza Sadek e Sergio Miceli, entre outros.

380

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 381

Manuel Villaverde Cabral e os casulos do conhecimento político

na configuração da Ciência Política no Brasil.3 Em particular, dois pontos parecem-me passíveis de exploração, a partir da reflexão original e originária do autor ora sob inspecção, a saber: (i) os efeitos exercidos pela natureza do regime político sobre as possibilidades de reflexão sobre a vida política e (ii) a presença de factores de encapsulamento do conhecimento político e as estratégias de, digamos, «desencasulamento» ou, em outras palavras, de autonomia disciplinar e de distinção dos objectos. Antes de tudo, porém, iniciarei o registo das minhas impressões com a apresentação do que designarei como Argumento Villaverde Cabral, através dos seus dois componentes hipotéticos básicos e já aqui referidos: (i) os efeitos sobre a natureza do regime sobre as condições de emergência de um pensamento político – vale dizer Ciência Política – e (ii) os padrões específicos de encasulamento que a ele se impuseram e os modos possíveis de desencasulamento. A seguir, apresentarei uma sucinta versão a respeito da experiência brasileira com relação a ambos os factores, para concluir com uma reflexão sobre diferentes padrões de encasulamento/desencasulamento e suas implicações possíveis para a constituição de um campo cognitivo que se ocupe do entendimento e da interpretação de fenómenos políticos.

O Argumento Villaverde Cabral O suposto básico do Argumento Villaverde Cabral sustenta-se na ideia de que uma ciência da política, dotada de referências conceptuais e procedimentos metodológicos próprios, requer, como condição mesma de possibilidade, a percepção da singularidade e da autonomia do seu objecto. Ambientes políticos, culturais e intelectuais nos quais o político não se mostra – isto é, não se apresenta como domínio dotado de um mínimo de visibilidade e autonomia –, seriam maus hospedeiros de uma ciência dos fenómenos e processos políticos. Em tais ambientes, ao con3 Para uma avaliação do campo da Ciência Política no Brasil, ver a análise pioneira de Bolivar Lamounier, no livro por ele organizado e já referido, no seu ensaio «A Ciência Política no Brasil: roteiro para um balanço crítico». In Bolivar Lamounier (org.), op. cit., 407-433. Ver, ainda, Maria Cecília Spina Forjaz, «A emergência da Ciência Política no Brasil: aspectos institucionais». Revista Brasileira de Ciências Sociais, 2 (35), 1997. Para uma avaliação recente, ver Renato Lessa, «O campo da Ciência Política no Brasil: uma aproximação construtivista». In Horizontes das Ciências Sociais no Brasil: Ciência Política, org. Renato Lessa (São Paulo: Editora Sumaré/ANPOCS, 2010), e Renato Lessa, «Da interpretação à ciência: por uma história filosófica do conhecimento político no Brasil». Lua Nova, 82, 17-60, 2011.

381

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 382

Renato Lessa

trário, a dimensão política permaneceria fixada e asfixiada no casulo de narrativas não expressamente políticas. A suposição, com certeza de modo não intencional – dadas as características biográfico-intelectuais do autor –, parece seguir uma antiga regra dos cépticos: não se pode descrever aquilo que não se mostra. Não que ali, nos referidos ambientes, não haja qualquer sensibilidade para assuntos que sabem à política e que, por esta via, produzem impacto sobre a experiência pública e comum. É antes o modo de com eles lidar que mobiliza energias cognitivas e formas epistémicas difusas. Para o caso português, Manuel Villaverde Cabral refere-se ao uso mítico e hagiográfico da história e à presença de uma narrativa moralizante a respeito do que significa a experiência nacional. Com efeito, o regime salazarista possuía da política, como aspecto «inerente à sua natureza», uma «concepção moral, para não dizer transcendente».4 Menos do que um regime fundado num ímpeto autoritário activo – ou, segundo alguns, mais do que autoritário –, o salazarismo parece ter reencenado crenças escolásticas, presentes na ideia de que o poder, antes de tudo, deve estar voltado para preservar o habitual. O poder, sob tal óptica, não releva do que acrescenta à experiência social, mas do que a faz ser tal como sempre foi. Pelo contrário, uma atmosfera de elogio da aurea mediocritas não combina com uma cultura de voluntarismo autocrático, na qual a ostensão permanente do âmbito político faz do exercício do poder um vector – real ou imaginário – de aceleracção social. Uma interessante formulação, neste mesmo sentido da adesão ao habitual, pode ser encontrada num autor italiano do início do século XVII – Antonio Palazzo – que, com aberto cariz escolástico, sustentava que a razão de Estado consiste na «essência mesma da paz e na regra de viver em repouso».5 Trata-se de regra segundo a qual o político não se constitui como entidade extrínseca e independente, a exigir uma administração própria, orientada para a sua própria manutenção e engrandecimento. A desfixação do político com relação ao habitual teria sido decorrência de forte mutação, na aurora dos tempos modernos, no âmbito do que significava, na altura, a ideia de razão de Estado.6 A partir de autores 4

Cf. Manuel Villaverde Cabral, op. cit., 251. Cf. Antonio Palazzo, Discorso del governo e dela ragion vera di stato, Veneza, 1601. Trad. fr. de A. de Vallières, Discours du gouvernement et de la raison vraye d’État, Douay, 1611, I, 1, 4. 6 Referência obrigatória para esta discussão está contida em Friedrich Meinecke, L’idée de raison d’État dans l’histoire des temps modernes (Genebra: Droz, 1973). Ver também o excelente livro de Michel Senellart, Les arts de gouverner (Paris: Éditions du Seuil, 1995). 5

382

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 383

Manuel Villaverde Cabral e os casulos do conhecimento político

tais como Maquiavel e Bodin, a dinâmica da razão de Estado passou a exigir uma forma de conhecimento – e de tratamento de questões públicas – assente no aspecto da dominação como núcleo inerente à própria ideia de política. Dois aspectos passam a ocupar lugar central nas novas concepções a respeito da razão de Estado: (i) o facto da dominação, como inerente a interacções políticas, e (ii) uma ideia de governo fundada no exercício intrínseco do poder político. O paroxismo desta representação poderá ser encontrado, já no século XX, nas obras de Carl Schmitt, em particular no seu Conceito do Político, no qual o âmbito político é caracterizado pela presença de uma oposição que lhe é exclusiva – a que se dá na tensão amigo vs. inimigo –, irredutível a domínios tais como a economia, a moralidade e a estética, caracterizados por outras ordens de oposição.7 Nas modalidades, digamos, pré-modernas de representação do âmbito do político – e. g., as principais direcções do pensamento político medieval, de Agostinho a Tomás de Aquino, sem excluir a variante franciscana –, a dimensão política aparece, invariavelmente, inscrita em narrativas moralizantes mais amplas segundo as quais não é próprio do animal humano a vida política como substrato distintivo. O aparecimento tardio da Política, de Aristóteles, no Ocidente – apenas no século XIII, e cujos efeitos se sentirão no pensamento político do Quatrocentto –, em comparação com o acesso anterior a outras partes do corpus, com certeza privou o pensamento medieval do usufruto de uma hipótese antropológica segundo a qual o homem é um animal político capaz de exercer a respeito da política uma forma de conhecimento prático, sem tinturas transcendentais. As bases da concepção moralizante a respeito do que deve significar a vida pública são, se quisermos prosseguir na escavação, pré-escolásticas. Se fosse o caso de dar azo ao ânimo arqueológico, poderíamos encontrar gente como Gregório de Nazianza – no seu Discurso Teológico, escrito em 362, ou, ainda mais cedo, como o papa Gregório, o Grande, com a sua Regra Pastoral, composta por volta de 590.8 Michel Senellart captou com acuidade o núcleo desse pensamento: [...] o regimen eclesiástico designa [...] um governo não violento dos homens que, pelo controlo da sua vida afectiva e moral, pelos segredos do seu coração e pelo emprego de uma pedagogia finamente individualizada, procura conduzi-los à perfeição.9 7 Cf. Carl Schmitt, The Concept of the Political (Chicago: The Chicago University Press, 1996). 8 Cf. Michel Senellart, op. cit., 27. 9 Idem, 29.

383

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 384

Renato Lessa

Não se trata, é evidente, de sugerir que o salazarismo, enquanto experimento de dominação, se ajuste de modo incontroverso à classificação, sugerida por Senellart, de «governo não violento» – uma expressão que, na verdade, sabe a oxímoro, segundo os ditames da moderna razão de Estado. O que vale, penso, no comentário de Villaverde Cabral é a indicação da presença de um modo de apresentar a dominação como se ela fosse calcada em factores de natureza não expressamente política e, por meio de tal simulação, assim exercê-la. Também não parece ser o caso de atirar tal pretensão à vala comum da ideologia – sobretudo se pensada na surrada chave da falsa consciência – e supô-la, desta forma, descartável pela revelação do seu truque e da sua suposta verdadeira intenção. A apresentação do regime como experimento moral é, antes de tudo, uma pretensão de sentido dos hierarcas do salazarismo, capaz, como tal, de produzir efeitos, digamos, reais. Um deles pode bem ser o da não constituição – ou constituição incipiente – de uma forma de vida na qual a dimensão política não apresenta saliência com relação ao que se define como o habitual. Contraste-se, para fins de maior clareza no argumento, com as experiências autoritárias brasileiras – tanto a de 1937-1945 como, sobretudo, a de 1964-1985. Em ambas a sobreeminência do âmbito político, pela ostensão do Estado como acelerador social e inventor da nação, acabaram, a despeito dos evidentes défices de liberdades públicas, por «politizar» a experiência ordinária. De forma alguma se poderia dizer de uma invisibilidade da política. Antes o contrário: o «excesso da política» – pelas mãos de um Estado que se cria ubíquo – acabou por criar condições para que o tema da autonomia do Estado e do seu papel pretendido de configurador da sociedade passassem a ser cláusulas pétreas na análise académica e política. Tal como veremos adiante, Brasil e Portugal parecem ter tido experiências distintas, do ponto de vista dos impactos de seus sistemas autoritários sobre a estruturação geral do campo das ciências sociais em geral e da Ciência Política em particular. Quando menciona o modo específico de dominação exercido pelo salazarismo, Manuel Villaverde Cabral associa-o de modo claro à presença de injunções de carácter moral: A forte coacção, imposta por tão prolongadas circunstâncias políticas fez com que todo o espectro da opinião pública, durante a vigência da ditadura, se deixasse compelir a uma simétrica visão moral de acção política.10

10

Cf. Manuel Villaverde Cabral, op. cit., 251.

384

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 385

Manuel Villaverde Cabral e os casulos do conhecimento político

Ainda que breve, a passagem é importante para a inteligibilidade do argumento. A não visibilidade do objecto da política aparece como associada de modo forte à natureza do regime político. Se tal natureza é tal que a sua dimensão propriamente política não se mostra, os seus modos de representação e de ostensão revestir-se-ão, de forma necessária, de uma roupagem não-política. De modo inverso, a visibilidade da política dependerá de mudança substancial na natureza do regime: Só o declínio do regime movido mais pela dinâmica social e económica de longo prazo, do que por quaisquer factores exógenos, inclusivamente as guerras coloniais – permitiu, já entrada a década de 60, que esta situação começasse a alterar-se timidamente e a política começasse a sair do seu casulo moral.11

Antes do marco histórico do 25 de Abril de 1974, a reflexão política portuguesa, quando não asfixiada pelo experimento do salazarismo, apareceu, portanto, imersa num «ciclo de embeddedment», por meio do qual narrativas políticas se encontravam encerradas – embebidas, enraizadas ou envolvidas – em «casulos» estabelecidos pela narrativa histórica mítica e remota. Mais do que descrever um processo histórico específico, a imagem do embeddedment presta-se bem a desenvolver o tema do processo de autonomização de qualquer campo cognitivo, e de definição dos seus objectos próprios. A ideia de embeddedness, originalmente aplicada por Karl Polanyi para descrever a relação entre circuitos de troca económica e vida social, num mundo anterior aos século XIX e, portanto, ainda intocado pelo «credo de mercado», aqui emerge como marcador da posição ocupada pela reflexão política, diante de outras modalidades narrativas a respeito da experiência social.12 Karl Polanyi, de forma lapidar, mostrou como as relações económicas estiveram, antes do predomínio do credo na excelência do mercado auto-regulado, envolvidas – embedded – num conjunto de injunções não económicas. Tal padrão de embeddedness sustentava-se em formas institucionais e normativas que acabaram por configurar o modo de lidar com questões económicas. O próprio modo de tratar e narrar fenómenos económicos, anterior aos efeitos dos moinhos satânicos, implicava a consideração de factores posteriormente tidos como não económicos, associados, de modo lato, 11

Idem, 251. Para a ideia de embeddedness, ver Karl Polanyi, A Grande Transformação (Rio de Janeiro: Campus, 1978). 12

385

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 386

Renato Lessa

à tradição e ao âmbito mais amplo das crenças e da cultura. Nesse sentido, o surgimento da Economia Política, entre as décadas finais do século XVIII e as iniciais do século seguinte, tal como bem notou Marx, relevava não apenas de mutações no campo do pensamento, mas, de algum modo, referia-se também a movimentos por ele designados como «reais». Já nos Manuscritos Económicos e Filosóficos, de 1844, o vínculo aparece de modo claro: a Economia Política é uma forma de «conhecimento alienado», não por irrealismo, mas, ao contrário, por excesso de realismo, se assim posso dizê-lo, por crer que a forma da sociedade que se estava a gerar era a forma da sociedade tout court. De qualquer modo, com ou sem Marx, aprendemos com Karl Polanyi que a nova ciência da Economia se afirmou como conhecimento tão desembebido quanto os fenómenos que ela procurava explicar. Nesse aspecto específico, a análise polanyiana da destruição do sistema de Speenhamland é magistral: uma teoria moral da economia, no que diz respeito ao que significa o salário, é substituída por uma teoria puramente económica segundo a qual o preço do trabalho deve resultar da flutuação «natural» de variáveis estritamente económicas, tais como a oferta e a demanda por mão-de-obra. A aproximação com a imagem polanyiana, pelas mãos de Villaverde Cabral, manifesta-se na afirmação de que, mesmo antes do experimento do Estado Novo português, política e história [...] têm-se aliado em Portugal, de há cem anos a esta parte (1981), não só anulando as respectivas especificidades, como ainda remetendo permanentemente uma para a outra, tornando virtualmente impossível o exame científico, quer de uma quer de outra. É o que poderíamos chamar uma concepção universal da política como historically embedded, parafraseando a concepção de Karl Polanyi da economia como embedded no tecido social.13

A história concebida, em tal perspectiva, é sempre percebida como «past politics e como ultima ratio da argumentação política».14 A historiografia, mesmo que por meio de interpretações distintas, teria sempre operado por meio de um «círculo vicioso», segundo o qual todo o presente a um só tempo explica e confirma o passado. Entre vários e copiosos exemplos, Villaverde Cabral menciona o de António Sérgio, tanto no ensaio As Duas Políticas Nacionais – Transporte e Fixação, de 1925, como 13 14

Cf. Manuel Villaverde Cabral, op. cit., 253. Idem, 253.

386

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 387

Manuel Villaverde Cabral e os casulos do conhecimento político

anteriormente na Antologia dos Economistas Portugueses, de 1924. Em ambos os esforços, tratar-se-ia, para Sérgio, de sair «em busca de sua tradição», num claro trajecto voltado para constituir «uma espécie de legitimidade histórica»15. Vários personagens-autores frequentam o proscénio da análise de Villaverde Cabral, que bem vale como óptima introdução ao pensamento político-histórico português: Henriques Nogueira – «o primeiro cientista político português a debruçar-se criticamente sobre o liberalismo» 16 –, Júlio de Matos, Agostinho Fortes, Jaime Cortesão, entre tantos, para não deixar de mencionar o revivalismo, no século XX, em torno da obra e da trajectória de Oliveira Martins. Este, para Villaverde Cabral, aparece como formulador de um elogio à «tradição orgânica» do país, presente na ideia de que a inteligibilidade nacional requer incursões às «profundidades históricas». É a fusão dessa espécie de obsessão atávica historicista com um ânimo nacionalista que constitui a imagem de um regime no qual o autoritarismo significa – e exige – a constante reposição do passado. Por essa via, a historiografia política, na refutação ou na defesa de tal autoritarismo regressista, acaba por recorrer sempre à história, como abrigo de fundamentos irrecorríveis. Para os opositores, capturados na armadilha do historicismo, refutar o regime exige a desconstrução das suas pretensões históricas e, por maioria de razão, a fixação de modalidades de narrativa histórica alternativas. Com a Ditadura, o casulo histórico associou-se a um casulo ético, tal como já indicado. Mas, novos casulos estavam à espreita. Com efeito, até que a «sua recente e precária libertação» se efectivasse, a partir dos anos 70, «a esfera política havia de passar, nas mãos dos historiadores, por outras formas de encapsulamento». Diz-nos, ainda, Manuel Villaverde Cabral: [...] até finais dos anos 60, princípios dos anos 70, vigorará ainda o casulo da economia e da sociedade, no seio do qual a política, se não se dilui, surge apenas como reflexo dos movimentos sociais e das transformações económicas.17

São os ecos variados dos diferentes marxismos que parecem exigir, na altura, direitos de cidade. A esses novos casulos, Villaverde Cabral acres15

Idem, 255. Idem, 253. 17 Idem, 264 16

387

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 388

Renato Lessa

centa, ainda, a presença, nas ciências sociais portuguesas, de um «terceiro casulo bastante idiossincrático, a saber, o casulo cultural».18 Não importa tanto, aqui, seguir a riquíssima e variada colecção de pistas, proporcionada pelo vívido exercício de etnografia intelectual apresentado por Villaverde Cabral. Em sentido diverso, trata-se de observar a dinâmica mesma da tensão entre encasulamento e desencasulamento. Os efeitos do encapsulamento proporcionado pela Ditadura podem, por fim, ser resumidos da seguinte maneira: na análise das relações entre história e política – e, por extensão, entre historiografia e Ciência Política em Portugal – notam-se os efeitos nefastos exercidos sobre elas pelo regime ditatorial, «não só exacerbando as tendências patologicamente anticientíficas anteriores à Ditadura, como impedindo autoritariamente quaisquer tentativas para separar positivamente história e política».19 Não sem optimismo, o estado da arte, safra 1981, foi assim descrito por Villaverde Cabral: As tendências intelectuais predominantemente nacionalistas, isolacionistas e dogmáticas em vigor até 1974 estão, hoje, cedendo rapidamente o passo a saudáveis tendências cosmopolitas e eclécticas. Presentemente, o centro de debate nas ciências sociais gira em torno da busca de um ponto de equilíbrio entre o pendor teorizante das gerações mais velhas e as exigências de verificação empírica dos novos pesquisadores. Pode dizer-se que, actualmente, todos os grande paradigmas das ciências sociais à escala internacional encontram os seus cultores em Portugal, assistindo-se mesmo ao crescimento das correntes neoliberais em detrimento dos marxismos ortodoxo e estruturalista.20

Do ponto de vista temático, a agenda de pesquisa e de reflexão apresenta, ainda segundo o nosso autor, os seguintes itens principais (ainda na óptica de 1981): problemática do fascismo e do autoritarismo (como movimentos sociais e ideológicos e como sistemas políticos); partidos políticos, sistemas partidários, comportamento eleitoral; determinantes estruturais dos comportamentos políticos e eleitorais. Tanto a apresentação do resumo do estado da arte como a listagem de temas não diferem do que, de modo efectivo, veio a acontecer, não apenas na Ciência Política em Portugal, como em outras paragens. Em particular, a presença do que Villaverde Cabral designou, na altura, como «correntes neoliberais», com efeito, acabou por se afirmar como vertente hegemó18

Idem, 265. Idem, 279. 20 Idem, 280. 19

388

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 389

Manuel Villaverde Cabral e os casulos do conhecimento político

nica, ao menos para a Ciência Política mainstream, de cariz neo-institucionalista. Mas, se a análise é acertada na antecipação da gestalt a ser seguida nos trinta anos seguintes pelo campo da Ciência Política, não deixa de ser curiosa a selecção de exemplos de livros representativos da Ciência Política portuguesa «enfim liberada» dos casulos arcaístas. A maior parte dos exemplos seleccionados é composta por obras de cariz eminentemente histórico. Uma pequena amostra de alguns dos autores e títulos mencionados parece-me suficiente: Oliveira Marques, A Primeira República Portuguesa – para uma Visão Estrutural; Vasco Pulido Valente, «Ramalho Ortigão e a questão do Estado», «As duas tácticas da Monarquia Portuguesa, 1908-1910» e a idiossincrática tese de doutoramento O Poder e o Povo: A Revolução de 1910; Fernando Pereira Marques, Exército e Sociedade em Portugal no Declínio do Antigo Regime e Advento do Liberalismo; Manuel de Lucena, A Evolução do Sistema Corporativo Português; Manuel Braga da Cruz, As Origens da Democracia Cristã e o Salazarismo, entre outros. Na listagem, mesmo incompleta, é notável a presença do que poderíamos designar como temas históricos, numa proporção inconcebível para a Ciência Política brasileira, na mesma altura e, sobretudo, nas décadas subsequentes. No Brasil, os politólogos optaram por uma forma de conhecimento orientado para a sincronia e, não raro, para a acronia. O estudo da história não tem feito parte de sua formação regular. Não chega a ser surpresa o facto de que são poucos os esforços de análise para os quais a dimensão da duração – dos tempos longos e médios – aparece como relevante. Parece-me que tal resistência dos objectos dotados de historicidade, além da resiliência de considerá-los sob ópticas históricas, longe de ser um factor de imaturidade da Ciência Política em Portugal, deve ser considerado como recurso e marca positiva específica.

Autoritarismo e casulos a sul da linha do Equador 21 Se a Ditadura em Portugal exerceu sobre as Ciências Humanas e Sociais um efeito de asfixia, tal juízo, caso aplicado ao Brasil poderia ser, no máximo, tomado como meia verdade. Não há como obliterar a sanha repressiva inerente ao regime implantado no Brasil em 1964, mas é forçoso o reconhecimento de que as transformações ocorridas na dinâmica 21 Os argumentos centrais desta sessão foram retirados de meu ensaio «Da interpretação à ciência: por uma história filosfófica do conhecimento político no Brasil», op. cit.

389

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 390

Renato Lessa

política e social brasileira no pós-64 afectaram profundamente a substância e as formas de organização das Ciências Sociais no país.22 Para além dos impactos regressivos e repressivos, o novo regime reestruturou progressivamente o ambiente institucional da ciência brasileira. O próprio sistema nacional de pós-graduação, implantado pela reforma universitária de 1968, como notou Maria Cecília Spina Forjaz, em análise da história recente da Ciência Política no Brasil, ampliou enormemente o mercado de docentes universitários, pesquisadores, bolsas de estudo, bibliotecas, laboratórios e todos os outros aparatos necessários ao desenvolvimento científico num leque bastante diversificado de áreas de conhecimento, expansão com a qual as Ciências Sociais em geral, e a Ciência Política em particular, também foram beneficiadas.23

A experiência do regime autoritário no Brasil exerceu sobretudo efeitos distintos, no que se refere à constituição de um âmbito público e de um ambiente de reflexão sistemática a seu respeito, dos que se apresentaram em Portugal durante a vigência do Estado Novo. Facto, é evidente, que diz de modo eloquente das fundas diferenças entre os dois regimes. Do ângulo específico deste ensaio, importa indicar a ausência de efeitos de encapsulamento similares aos que se apresentaram em Portugal. Na verdade, o regime brasileiro exerceu efeitos estruturantes, tanto pela reconfiguração institucional do ambiente científico, como pelo facto do autoritarismo: um regime activo e modernizador exibe, por maioria de razão, os seus efeitos de reestruturação da sociedade. A própria linguagem do planeamento e da legitimação técnica das políticas governamentais, ubíqua naqueles anos infelizes, implicava em algum padrão de ostensão do político, ainda que em chave autoritária. Se as condições para autonomização de um âmbito político, e de constituição de um ambiente intelectual orientado para sua avaliação, em Portugal dependeu da superação do regime autoritário, no caso brasileiro deu-se exactamente o contrário: o regime autoritário acabou por criar ambas as circunstâncias, pela visibilidade do político e pela criação do ambiente institucional da pesquisa e da pós-graduação. Deu-se, sob o regime autoritário, um processo de progressiva fixação no domínio da universidade e dos centros de investigação da produção sistemática de conhecimento sobre a vida política e social no Brasil. A longo e médio 22

Para uma compreensão mais apurada desse processo, ver Sergio Miceli, org. História das Ciências Sociais no Brasil (São Paulo: Idesp/Vértice, 1989). 23 Cf. Spina Forjaz, op. cit., 3.

390

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 391

Manuel Villaverde Cabral e os casulos do conhecimento político

prazo decretava-se, na altura, a obsolescência do intelectual diletante e não profissionalizado. De modo mais preciso, o que viria a ser designado como a «institucionalização da Ciência Política» no Brasil esteve fortemente vinculado ao desenho e à montagem de um sistema de pós-graduação. Além de alterações institucionais imediatas, no campo da vida universitária e da ciência, os novos tempos caracterizar-se-iam, de modo mais geral, pela afirmação progressiva do papel do Estado na configuração da sociedade brasileira. Se os temas do desenvolvimento, da questão nacional e das reformas de base, na primeira metade dos anos 60, se constituíram como atractores quase compulsórios para a reflexão política, o quadro a partir dos idos de março de 1964 será um tanto distinto. A partir da segunda metade da década de 1960, o macrotema que se impõe, a interpelar a capacidade analítica dos cientistas sociais, é o da crescente presença e preeminência do Estado em praticamente todos os processos sociais. Não é que o tema «Estado» estivesse ausente na reflexão anterior a 1964. A diferença no pós-64 é a de que ele passa a ser considerado menos como um domínio fixado na dinâmica social mais ampla, e resultante de processos históricos de longo prazo, e passa a ser percebido como arena autárquica na qual múltiplos processos decisórios têm lugar. O deslocamento teve, por certo, precedentes na Ciência Política norte-americana, na qual a ideia de Estado, julgada metafísica e sociologicamente contaminada, cede lugar a «governo», a «administração» ou ao «sistema político» (quando não a «caixas pretas»...). Falar-se-á cada vez menos em «Estado» e cada vez mais em «processos decisórios» e em «políticas públicas», expressões acrescentadas nos anos 70 ao vocabulário político brasileiro, com presença ubíqua no vocabulário dos agentes políticos e sociais, extrínsecos ao âmbito académico. Para além das alterações ocorridas na agenda de política científica e na própria configuração do espaço público, há que acrescentar o fenómeno da socialização de uma importante geração de cientistas sociais – a variante política aí incluída – nos temas e nos padrões disciplinares da Ciência Política norte-americana, a partir de fins da década de 1960 e na seguinte, ainda afectados pelos efeitos da autodesignada revolução behaviorista. Vários dos aspectos ressaltados como constitutivos da identidade da disciplina a partir da década de 1970 estão associados a esse nexo, em particular o da profissionalização e o da postulação ontológica de um âmbito da política autónomo com relação a outras dinâmicas sociais. Em outros termos, parece ter ocorrido forte complementaridade entre a experiência de um regime caracterizado pela ostensão da política, sem subs391

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 392

Renato Lessa

trato social e sem historicidade, e a socialização intelectual dos fundadores da moderna Ciência Política brasileira num ambiente marcado pela cláusula pétrea da autonomia da política e do mundo institucional. Um tanto triunfalista, a expressão «revolução behaviorista» designou uma reorientação ocorrida no campo do conhecimento político nos Estados Unidos, a partir dos anos 50. Tratava-se de afirmar tal conhecimento como uma «ciência», com protocolos distintos dos praticados pela filosofia política, percebida como contaminada por fortes componentes historicistas e normativos. A reorientação proposta pretendia, ainda, executar uma virada empírica e positiva, sustentada em bases realistas e «experimentais», a dispensar referências de ordem normativa. A defesa de uma ciência descontaminada das querelas ideológicas e apegada a procedimentos de descrição rigorosos, por parte dos campeões do behaviorismo, mal podia camuflar os seus pressupostos normativos. Os termos de Easton eram claros: trata-se de desenvolver uma ciência capaz de estabelecer um novo quadro de referência. Tal quadro, para os autores envolvidos no «movimento», era constituído por valores e práticas afirmadas como «democráticas» e inscritas na tradição política e institucional norte-americana. Ciência cum democracia, esta última definida nos termos de um modelo civilizatório então ameaçado por alternativas apresentadas como «totalitárias». Há que acrescentar, contudo, o terceiro termo: além de ciência e democracia, Guerra Fria. O próprio Easton dirá, em texto publicado em 1991, que o macarthismo, ícone da Guerra Fria, representou poderoso estímulo para o desenvolvimento de uma Ciência Política mais objectiva e científica, na medida em que ao proporcionar uma «protective posture for scholars», de não envolvimento político e ideológico, teria resultado em algum ganho para a disciplina, mesmo se for the wrong reasons.24 Não se insinua, aqui, a presença de uma necessária adesão aos «valores» e à cultura paranóica do macarthismo, por parte dos cientistas políticos behavioristas. Trata-se menos de adesão ideológica ao macarthismo e mais de uma crença numa ciência descontaminada do seu passado ideológico e numa cultura intelectual de insulamento, ainda que comprometida com o facto da democracia, como objecto e como âncora cívica. Charles Lindblom, em ensaio inspirado, chamou a atenção para o conflito constitutivo presente nessa versão cientificista do conhecimento 24 Cf. David Easton, «Political science in the United States: Past and present». In Divided Knowledge: Across Disciplines. Across Cultures, eds. David Easton e Corrine Schelling (Newbury Park: Sage, 1991), 44.

392

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 393

Manuel Villaverde Cabral e os casulos do conhecimento político

político: ao mesmo tempo em que cultua valores epistemológicos assépticos, afirma o seu compromisso com a democracia.25 Não é de surpreender, portanto, que o tratamento, digamos, teórico do tema da democracia venha a ser apresentado como subordinado a «teorias descritivas» e não a concepções «maximizadoras», tal como posto num dos textos mais importantes e inspirados da Ciência Política nos anos 50.26 Ainda assim, o apego à democracia, como objecto e como ideal, ainda que deflacionado, opera como cláusula normativa evidente.27 Para além de seus resíduos normativos, o behaviorismo não reinou de forma exclusiva e absoluta. Até certo ponto constitui uma caricatura supor que o «movimento» tenha sido capaz de organizar e subordinar todo o campo cognitivo devotado de modo sistemático a questões de natureza pública. O próprio Easton registou em meados da década de 1980 os factores que, a seu juízo, estiveram presentes numa virada pós-behaviorista, já nos anos 60: o movimento pelos direitos civis, pelos direitos da população negra e de outras «minorias», protestos contra a guerra do Vietname e, em termos mais amplos, o que designou como a «revolução da contracultura».28 Outro importante cientista político, também envolvido com movimento behaviorista – Charles Lindblom – destacou, além do desafio provocado pelos aspectos mencionados por Easton, a presença do que designou como um «Pollyannaism», caracterizado pela produção de «interpretações benignas» a respeito do sistema político norte-americano. Para Lindblom, tais interpretações prendiam-se a aspectos funcionais e internos dos «sistemas» – e o próprio termo «sistema» é o operador por excelência dessa perspectiva –, ignorando questões tais como a exclusão racial e a desigualdade social.29

25 Cf. Charles Lindblom, «Political science in the 1940s and 1960s». In Thomas Bender e Carl Schorske, eds., op. cit., 243-270. 26 Refiro-me ao incontornável livro de Robert Dahl, Preface to Democratic Theory (Chicago: The University of Chicago Press, 1956). 27 Para uma consideração dos pressupostos normativos da ciência eastoniana, ver Tracy Strong, «David Easton: reflections on an American scholar». Political Theory, 26, 3: 267-280. Os limites e as implicações da perspectiva behaviorista foram tratados no artigo seminal de Sheldon Wolin, «Political theory as a vocation», American Political Science Review, LXIII, 14: 1062-1082. Igualmente importante é o ensaio de Gabriel Almond, «Clouds, clocks, and the study of politics». In A Discipline Divided: Schools and Sects in Political Science (Newbury Park: Sage, 1990), 32-65. 28 Cf. David Easton, «Political science in the United States. Past and present». International Political Science Review, 6 (1): 133-152 (141). 29 A referência foi feita por Thomas Bender, no seu ensaio «The new rigorism in the human sciences». In American Academic Culture in Transformation: Fifty Years, Four Disciplines, orgs.Thomas Bender e Carl Schorske. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1988.

393

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 394

Renato Lessa

Os efeitos no Brasil da cultura científica estabelecida pela virada behaviorista foram, por certo, muito fortes. Ao contrário de narrativas, típicas do universo mental anterior a 1964, nas quais a política era percebida como embebida e encapsulada em dinâmicas sociais e históricas mais amplas, a nova cultura científica tenderá a pôr em relevo a autonomia dos fenómenos políticos e institucionais. Uma importante coorte de cientistas políticos brasileiros dedicou-se a uma verdadeira arte de desencapsulamento. Algumas das teses de doutoramento, produzidas por cientistas políticos e sociais brasileiros já expostos ao clima intelectual mencionado, ilustram o ponto, por meio da opção por modelos explicativos internalistas, pelos quais a política deve der explicada por «variáveis políticas». Wanderley Guilherme dos Santos, por exemplo, na sua tese elaborada em Stanford – The Calculus of Conflict: Impasse in Brazilian Politics and Crisis of 1964 (defendida em 1979) – procurou demonstrar como o padrão interno de interacções no Legislativo brasileiro – marcado segundo o autor pela presença de uma «paralisia decisória» –, durante o governo de João Goulart, foi um factor decisivo na crise de 1964.30 Olavo Brasil de Lima Jr., em tese elaborada em Michigan e defendida em 1980, construiu uma engenhosa interpretação do sistema partidário brasileiro, entre 1945 e 1964, com base em factores estritamente internalistas: dimensões institucionais e legais, racionalidade política das alianças eleitorais, sistema de representação e o papel dos «subsistemas» partidários.31 Para ambas as análises, o ambiente social mais amplo, assim como «variáveis» de natureza histórica ou cultural, não cumpriram papel relevante na configuração dos seus objectos de investigação. Ambas as obras viriam a sinalizar para os futuros cientistas políticos brasileiros, «empiricamente orientados» – tal como se convencionou designar –, os exemplos a seguir. Entre os vários traços decorrentes da cultura científica estabelecida pela «revolução behaviorista», há que destacar a presença de forte preocupação com relação a aspectos definidos como «metodológicos», com imensa ênfase quantitativa. O termo «treinamento» passou a fazer parte do jargão constitutivo dos praticantes da disciplina. Mais do que isso, e o que é mais fundamental, afirma-se a presença imperiosa de uma «dimensão metodológica» autónoma, com foros de independência com relação aos objectos e aos temas substantivos em questão e ao domínio mais amplo da teoria

30

Ver Wanderley Guilherme dos Santos, O Cálculo do Conflito: Estabilidade e Crise na Política Brasileira (Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003). 31 Ver Olavo Brasil de Lima Jr., Partidos Políticos Brasileiros, de 45 a 64 (Rio de Janeiro: Graal, 1983).

394

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 395

Manuel Villaverde Cabral e os casulos do conhecimento político

do conhecimento.32 Provém, certamente, de tal demarcação, o carácter progressivamente a-filosófico da formação dos novos praticantes do campo do conhecimento político, assim configurado. A par da virada metodológica, aprofunda-se o tema da autonomização da política, vale dizer do desencasulamento do conhecimento político. A ênfase marxista na precedência do «económico» – e, por extensão, do social – aparece como índice de grave reducionismo e hiperdeterminismo. Ainda que haja bons argumentos para sustentar a crítica, o abandono de hipóteses marxistas acabou por gerar uma desconsideração geral a respeito de quaisquer perspectivas fundadas em narrativas históricas e sociais, como cruciais para a inteligibilidade da política. O declínio e o desprestígio da Sociologia Política, no âmbito das ciências sociais brasileiras, assim o indicam. O próprio vínculo com a economia, como dimensão estruturante da política, é redefinido pela virada empírica da Ciência Política na direcção da sua distinção e desencasulamento progressivos: não se trata mais de uma «variável» de contexto mais amplo que impacta, do exterior, a dinâmica da política, mas sim, e a um só tempo, de uma antropologia e de uma linguagem. A primeira – a antropologia – revelaria as motivações reais dos sujeitos sociais, definidos como «máquina global de maximização», para aqui empregar a fórmula feliz de Jon Elster.33 A segunda – a linguagem – permitiria que se descreva tal sujeito tal como se supõe que ele deva ser, sem metafísica ou projecção na direcção do que não é. A nova incursão da economia como inspiração para o entendimento da política afirma-se por meio de circularidade invencível: as suas explicações são verdadeiras, na medida em que os agentes sociais se comportam de acordo com os fundamentos das explicações. Tal percepção da política foi difundida, a partir dos anos da década de 1970, a partir de autores e textos tais como Anthony Downs – An Economic Theory of Democracy –; William Riker – The Theory of Political Coalitions; e Mancur Olson Jr. – The Logic of Collective Action. Todos os três de leitura obrigatória nos principais programas de pós-graduação em Ciência Política no Brasil dos anos 70 e 80. Contudo, o rebatimento da experiência americana sobre o espaço brasileiro trouxe bem mais do que simples replicação. A própria difusão da

32 Para uma reflexão crítica a respeito da obsessão metodológica, ver o ainda seminal artigo de Sheldon Wolin, «The vocation of political theory», American Political Science Review, 63, 4, 1062-1082. 33 Cf. Jon Elster, Ulysses and the Sirens: Rationality and Irrationality (Cambridge: Cambridge University Press, 1984), 10.

395

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 396

Renato Lessa

literatura sistémica e behaviorista, de modo não infrequente, foi acompanhada da introdução de alguns de seus antídotos. Isso talvez se deva ao facto de que a exposição aos temas do behaviorismo, por parte da geração que «fez a América», se tenha dado nos quadros do que poderia ser designado como um «behaviorismo tardio», numa altura na qual pressupostos do movimento, vigoroso durante a década de 1950, se encontravam largamente atacados nos Estados Unidos. O facto é que parte expressiva da geração de estudantes de pós-graduação em Ciência Política, no Brasil de fins da década de 1970, ao mesmo tempo em que foi apresentada ao novo cânone, teve acesso à crítica radical que vociferava contra a sua desatenção ao carácter estreito da definição do que sejam os «processos decisórios» e aos processos de geração permanente de «não decisões».34 O pós-behaviorismo norte-americano, com efeito, praticava uma crítica aberta a uma concepção de «política apolítica»,35 esvaziada de conteúdos normativos, e defendia a retomada – ou simplesmente a continuidade – de um programa de reflexão no qual os fundamentos normativos da ordem política sejam considerados.36 Se retrocedermos ao contexto dos anos da década de 1980, vale o juízo de que certo ethos de militância – política, cívica ou social – se inscrevia no horizonte existencial de parte expressiva dos praticantes do campo da Ciência Política no Brasil. Há que considerar, ainda, outro aspecto que viria a ter forte impacto sobre a fixação no Brasil de uma cultura científica positiva e empiricamente orientada. No modelo original disseminado pela experiência norte-americana, a ideia de uma Ciência Política empírica, orientada para descrever a democracia na sua inerente positividade, supunha a presença de uma fusão entre horizontes factuais e normativos. Em termos directos, tratava-se de estudar – e promover – a democracia como objecto realmente existente, e não como fabulação doutrinária. No rebatimento desta tradição sobre o Brasil, a nova ciência, configurada em não pequena medida pelos valores de uma ciência positiva e empírica, acabou por investigar não a democracia, mas o «autoritarismo» e, por essa via, vislumbrar formas de superação. 34

Ver o artigo clássico de Peter Bachrach e Morton Baratz, «Two faces of power». The American Political Science Review, 56, 947-952. Na mesma chave inscreve-se o livro de Peter Bachrach, The theory of democratic elitism (Boston: Little Brown & Co., 1966). 35 A expressão aparece em Charles McCoy e John Playford, Apolitical Politics: A Critique of Behavioralism (Nova Iorque: Thomas Y. Crowell Co., 1967). 36 Ver a esse respeito, Sheldon Wolin, Politics and Vision: Continuity and Innovation in Western Political Thought (Boston: LittleBrown & Co., 1960).

396

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 397

Manuel Villaverde Cabral e os casulos do conhecimento político

Para dizê-lo de modo claro, uma «teoria empírica da democracia» acabou por exigir, em terras brasileiras, uma «teoria empírica da ausência de democracia». É evidente que tal passagem deu-se por meio de operadores de ordem normativa, a valorizar de modo positivo a democracia, ainda que a descrevessem mais como conjunto de procedimentos do que como materialização de valores e crenças e, menos ainda, como experimento fundado em requisitos de reconfiguração social. Tratou-se de um processo de certo reencapsulamento político, pelo qual alguns dos objectos que passam a ser tratados pela disciplina – e. g., processos de transição para a democracia – pressupunham alguma aproximação com o que se passava no mundo da política real. A partir da década de 1990, uma nova cultura científica se constitui no campo do conhecimento político no Brasil. Como toda a novidade, foi antecedida por episódios intelectuais propiciadores, já aqui referidos e associados à cultura científica da «revolução behaviorista». Nessa reafirmação de valores já estabelecidos, tratou-se de aprofundar os processos de autonomização dos objectos e de distinção com relação a domínios cognitivos pertencentes aos campos das Ciências Sociais e das Humanidades. A atenção aos processos de democratização, e seus requisitos, deu progressivamente passagem à análise das instituições, percebidas como de consideração compulsória para avaliar o modus operandi da própria democracia. O tema genérico das transições para a democracia, que exigia atenção a sequências históricas, assim como a factores sociais e culturais de condicionamento, dá lugar à inspecção de como «operam», em oceano calmo, as chamadas «instituições da democracia». A rotinização política do Brasil, do ponto de vista institucional, deu, assim, azo a uma sensibilidade analítica atenta aos factores de permanência e de estabilidade. A democracia, julgada «consolidada», converte-se num facto, mais do que em processo, propósito ou valor. No domínio das Ciências Sociais, a Ciência Política adquire fisionomia crescentemente mais conservadora. Ademais de ciência das instituições e de seu funcionamento, mais do que da sua transformação e da sua historicidade, apresenta dificuldades analíticas crescentes para dizer algo de significativo a respeito do mundo extra-institucional. Há como de certo modo a presença do que poderia ser designado como um oficialismo ontológico. Se Hegel, em certa altura, disse que «todo o real é racional», o politólogo «médio», egresso dessa nova cultura científica, aprenderá que todo o real é institucional – ou oficial. O próprio registo do que significam as instituições é restrito e confunde-se com o mundo oficial, por meio de um raciocínio abertamente circular: as instituições são o institucional. 397

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 398

Renato Lessa

A tautologia, neste sentido, pode ser tomada como sintoma de um verdadeiro paroxismo do desencasulamento.

As duas tácticas do desencasulamento É possível sustentar que todo o processo de autonomização disciplinar resulta de uma recusa a padrões prévios de embeddness. Nesta suposição, o segmento com pretensões à autonomia deve ser apresentado como domínio dotado de qualidades ontológicas próprias, que justificam o destaque com relação a conjuntos mais amplos que, até então, determinavam o seu sentido, o seu alcance e, no limite, o seu silenciamento. O contrário, contudo, também pode ser sustentado: a recusa de padrões de autonomização exibe uma adesão a vínculos mais totalizadores, sem os quais o sentido do fragmento esmaece. No campo do conhecimento político tal raciocínio revela a presença de uma oposição entre narrativas que compreendem os fenómenos políticos como embedded em redes de causalidades mais amplas – históricas, culturais, sociais – e narrativas que os encerram em circuitos restritos e autónomos, com relação ao que se considera como não dotado de relevância propriamente política. Tal contraste, no meu juízo, deve ser levado em consideração diante da questão de saber como se constitui o conhecimento da vida política. A constituição de um saber da política parece exigir algum trânsito na direcção do que Bolivar Lamounier, em ensaio incluído na obra colectiva aqui já mencionada, designou como busca de «autonomia». Na designação está implícita a ideia de que, para que algum conhecimento político seja possível, um determinado conjunto de objectos, assim como uma tradição intelectual regularmente devotada à sua interpretação e à sua observação, é requisito de presença necessária. O termo «autonomia» pode, assim, ser pensado como algo que sugere ausência de efeitos de embeddness, responsáveis pela dissipação da sensibilidade analítica com vistas a fenómenos políticos, tal como os indicados pelo Argumento Villaverde Cabral. Os assim chamados factores estritamente políticos, em chave na qual não mais estão submetidos à dissipação, apareceriam – ou teriam sido constituídos, para utilizar terminologia filosoficamente menos ingénua – de modo não encerrado ou embebido em narrativas de outras ordens, que os vinculariam a dinâmicas não estritamente políticas. Tal suposição de pregnância entre a disciplina e o seu objecto estrito, por outro lado, 398

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 399

Manuel Villaverde Cabral e os casulos do conhecimento político

traz consigo a ideia de que a constituição do campo exige procedimentos de transfiguração, pelos quais efeitos de descontaminação e depuração são exercidos. A crença implícita é a de que há correlação positiva entre «desencasulamento», isolamento analítico de fragmentos cada vez menores e precisos, e progresso cognitivo. Em outros termos, «autonomia» significa que os fenómenos a serem observados devem ser retirados de «casulos» e percebidos no que revelam de intrinsecamente políticos. A questão toda é a de que, para pôr o problema em termos adultos, não há como estabelecer propriedades intrínsecas de qualquer conjunto a não ser pela operação de critérios extrínsecos de primeira ordem. Há mais, no entanto, a ser explorado com relação ao tema do embeddedness, a partir do texto seminal de Manuel Villaverde Cabral. De modo mais directo, é necessário distinguir dois padrões distintos de embeddedness. Uma coisa é dizer de uma dissolução – ou apagamento – da sensibilidade analítica para fenómenos políticos por força das artes de um regime hiperautoritário, que impõe e fixa como narrativa compulsória a respeito da experiência nacional uma forma retórica mítica e hagiográfica. Coisa outra, e muito distinta, diz respeito à presença de uma atenção analítica efectiva a temas políticos, porém atada a hábitos intelectuais segundo os quais narrativas políticas não exigem o desvincular-se de outras modalidades de expressão. Tal distinção parece-me crucial para entender o próprio processo brasileiro de afirmação de um pensamento político. Se for verdade que, desde os primórdios da reflexão política no Brasil, nas décadas iniciais do século XIX, uma atenção ao carácter distintivo da política se fez presente, por outro é importante considerar que o tratamento intelectual de temas políticos não implicou, no contexto dessa origem, na constituição de um saber específico e autárquico da política. Ao contrário, a tradição do ensaísmo brasileiro, fortíssima até os anos 60, e ainda não de todo extinta, ao considerar temas de natureza política, fê-lo de um modo tal que narrativas históricas, literárias, filosóficas, sociológicas, económicas e de outras extracções comparecessem à análise. «Autonomia», nesse caso, implicava apenas o reconhecimento de um domínio de objectos a considerar, o dos fenómenos políticos, mas não a adesão a um saber distinto e independente das demais narrativas sobre a experiência histórica, cultural e social. Se a primeira forma de autonomia – a dos objectos – é condição necessária para que falemos de política, a segunda – a dos procedimentos cognitivos – parece ser algo a depender da mediação de crenças específi399

17 MVCabral Cap. 17_Layout 1 6/24/13 9:53 AM Page 400

Renato Lessa

cas. De modo mais preciso, a depender do trabalho exercido sobre o pensamento por parte de crenças que sustentam que a vida política deve der explicada por dimensões estritamente políticas. Por tal via, o caminho de um conhecimento desencapsulado parece prometer algo que para Aristóteles se revestia do estatuto de verdade absoluta e infalsificável: uma tautologia. Mas, ainda sob efeito do vulto de Aristóteles, é mesmo o caso de perguntar: pode um saber de natureza prática sustentar-se sobre premissas tautológicas? Política é algo que se constitui, na medida em que se fala a respeito; não é algo que se conheça cientificamente. A questão toda consiste em saber o que está a ser constituído no âmbito da política, quando se pretende conhecer a política cientificamente. Ou seja, há sempre um casulo, de cujo interior se observa o mundo que ele dá a ver (e do qual não se observa o mundo que ele não dá a ver). Como bem atestou o filósofo norte-americano Nelson Goodman, a nossa capacidade de não ver as coisas é infinita.37 Milão/Turim, Dezembro de 2011/Janeiro de 2012

37 Cf. Nelson Goodman, Ways of World Making (Indianapolis: Hackett Publishing Company, 1978).

400

18 MVCabral Cap. 18_Layout 1 6/24/13 9:55 AM Page 401

Philippe C. Schmitter

Capítulo 18

The impact of «real-existing» democracy – on the European Union and Central & South Eastern Europe Manuel Villaverde Cabral has been a point of reference for me since I began (unexpectedly) working on the democratization of Portugal. His work has consistently focused on a realistic conception of democracy – and on the tensions this implies with its more etymologically correct and ethically appealing definition as «rule by the people». Portugal with its Revolution of 1974 experienced a brief moment when this idealistic conception of democracy seemed within reach – the closest approximation to the Paris Commune in the latter part of the 20th Century – and then it turned toward the much less exhilarating task of consolidating what I call «real-existing» democracy. Villaverde Cabral reliably and consistently followed this transformation and I hope that this essay is adequate compensation for what I have learned from him. First, a definition: A «Real-existing» Democracy (or RED in my terminology) has three characteristics: (1) it calls itself democratic; (2) it is recognized by other self-proclaimed democracies as being «one of them»; and (3) most political scientists applying standard procedural criteria would probably code it as democratic. Its relationship to democracy as advocated in normative theory or as described in many civics texts is coincidental. All REDs are the product of a complex sequence of historical compromises with such other ideas and practices as liberalism, socialism, monarchism, and, of course, capitalism. They are certainly not governments «of» or «by» the people, as is implied by the etymology of the generic term. What is sure is that they are «governments by politicians» who may (or may not) act «for» the people. 401

18 MVCabral Cap. 18_Layout 1 6/24/13 9:55 AM Page 402

Philippe C. Schmitter

Second, a (venerable) observation: Heraclites, the father of historiography, famously observed that no one steps twice into the same river. And so it is with democracy. The concept has somehow survived but its «real-existing» practice has changed enormously — and continues to change, as I speak. Which means that when a given population steps into it may be at least as important as how and why such a change in political regime occurs. And so it is with the European Union (EU) and Central and SouthEastern Europe (CSEE). With the collapse of «real-existing» communism, these polities entered a very different stream of political evolution than their predecessors. They do not have to go through the processes that produced «real-existing» democracy in the past. They have to cope with «real-existing» democracy in the present. My task in these remarks is to make sense of this venerable observation.

The Challenges Robert Dahl is famous (among many other things) for the observation that «real-existing» democracy (that he called polyarchy) has radically transformed itself – re-designed itself, if you will – over the centuries. The same word, democracy, has prevailed while its rules and practices have changed greatly. In other words – those of de Lampedusa – only by changing has it remained the same. And Dahl does not even hesitate to label these changes as «revolutionary» – even if most of them came about without widespread violence or institutional discontinuity.1 Dahl identifies three such revolutions in the past: The first was in size. Initially, it was believed that RED was only suitable for very small polities, i.e. Greek city-states or Swiss cantons. The American constitution re-designed the practice of democracy by making extensive use of territorial representation and introducing federalism – thereby, irrevocably breaking the size barrier. The second revolution was in scale. Early experiments with democracy were based on a limited conception of citizenship – severely restricting it to those who were male, free from slavery or servitude, mature in age, literate or well-educated, paid sufficient taxes and so forth. Over time – some times gradually, other times tumultuously — these restrictions were

1

Robert Dahl, Polyarchy (New Haven: Yale University Press, 1971), 248.

402

18 MVCabral Cap. 18_Layout 1 6/24/13 9:55 AM Page 403

The impact of ‘real-existing’ democracy

re-designed until, today, the criteria have become almost standard and include all adult «nationals» regardless of gender or other qualifications. The third Dahlian revolution was in scope. REDs began with a very restricted range of government policies and state functions – mostly, external defense and internal order. Again, over time, they became responsible for governing a vast range of regulatory, distributive and redistributive issues – so much so that a substantial proportion of gross domestic product is either consumed by them or passes through their processes. Dahl makes a second important general observation about these revolutions. Most of them occurred without those who were involved being aware that they were acting as «revolutionaries». Democratic politicians most often responded to popular pressures, externally imposed circumstances or just everyday dilemmas of choice with incremental reforms and experimental modifications in existing policies and these accumulated over time until citizens and rulers eventually found themselves in a differently designed polity – while still using the same label (democracy) to identify it. Indeed, one could claim that this is the most distinctive and valuable characteristic of democracy: its ability to re-design itself consensually, without violence or discontinuity – even sometimes without explicitly diagnosing the need for such a «radical» change in formal institutions and informal practices. The contemporary challenge is precisely to make that diagnosis and, thereby, to guide the selection of the future institutions and practices of the EU and C&SE European national politics so that they will improve and not undermine the quality of RED. A few brief comments on these three «Dahlian» revolutions with regard to our cases: Size: The EU will be — if it is ever democratized — one of the world’s largest and most diverse polities and there is no reason to assume that simply copying the existing institutions, e.g. federalism, of its largest and most diverse member-states will do the job. CSEE has the opposite problem: its units are, on the whole, smaller in territory and population and more socially and linguistically homogeneous than their predecessors in Western Europe. The «trick» will be to combine the two so that small polities can also be large, and the largest polity can incorporate but still protect the peculiarities of its smaller members. Scale: Both the EU and CSEE have inherited the same general expectations with regard to the scale of citizenship: all adults equally and without discrimination according to gender, class, religion or language. The «revolutionary» challenge stems from the un-precedented number of for403

18 MVCabral Cap. 18_Layout 1 6/24/13 9:55 AM Page 404

Philippe C. Schmitter

eigners living (legally or illegally) within their borders. The response that seems to be gradually emerging is to distinguish between nationality and citizenship and to allow legally resident adults ( «denizens») equal rights, at least initially at the local level. Scope: In terms of this revolution, the situation seems to have inverted itself. Instead of adapting democracy to a greatly expanded range of public interventions, subventions and entitlements, the contemporary challenge for both the EU and CSEE polities is how to down-size these collective commitments. Globalization has imposed new constraints on the autonomy of national or supra-national polities to tax, regulate, subsidize and channel the economic behavior of its citizens (and even more so of its producers). The EU has reacted ambivalently by both trying to protect the so-called «European Social Model» while making itself and its members into «the world’s most competitive economy.» The new CSEE democracies have found themselves trapped between these objectives — not to mention between the «hard» neo-liberalism of the United States and international financial institutions and the «soft» neo-protectionism of the EU.

The New Revolutionary Challenges I am convinced that we are (again) in the midst of a democratic revolution – in fact, in the midst of several simultaneous democratic revolutions. Two of them seem to have exhausted their innovative potential and already become well-entrenched (and irrevocable) features of politics – at least, in Europe and North America. Two others are still very active in their capacity to generate new challenges and opportunities, and have still to work their way into the process of re-designing contemporary polyarchies. And a third has only recently made its appearance and has still to develop into a significant revolution, although it is threatening to do so. The first of these «post-Dahlian» revolutions concerns the displacement of individuals by organizations as the effective citizens of REDs. Beginning more or less in the latter third of the 19th Century, new forms of collective action emerged to represent the interests and passions of individual citizens. James Madison and Alexis de Tocqueville had earlier observed the importance of a multiplicity of «factions» or «associations» within the American polity, but neither could have possibly imagined the extent to which these would become large, permanently organized and professionally run entities, continuously monitoring and intervening in the process of 404

18 MVCabral Cap. 18_Layout 1 6/24/13 9:55 AM Page 405

The impact of ‘real-existing’ democracy

public decision-making. Moreover, whether or not these organizations of civil society are configured pluralistically or corporativistically, the interests and passions they represent cannot be reduced to a simple aggregation of the individuals who join or support them. They have massively introduced their own distinctive organizational interests and passions into the practice of REDs and become their most effective citizens.2 EU: It has been in the forefront of such changes, if only because its sheer size makes it so difficult for individual citizens to access and influence its proceedings. An entirely novel layer of supra-national associations and movements has installed itself in Bruxelles and Strasburg and it has gained privileged access to the Commission and, more recently, the European Parliament. The challenge, however, comes not from its existence (although the fact that significant portions of it are subsidized by EU institutions is an anomaly from the perspective of orthodox liberal democratic theory), but from the highly skewed nature of the interests being represented. Certain groups have always been «privileged» in the voluntaristic process of self-organization due to their small numbers, compact presence, and greater resources. But in the EU, business, professional and technocratic interests are much more influential when compared to labor and consumer interests. CSEE: Here the emerging situation is obviously more varied given the diversity in points of departure. These units may all have been governed by «real-existing» communist parties, but by the time that regime transition began at the end of the 1980s, their capacities for self-organization, i.e. their civil societies, if you wish, had become quite different. In some cases, the monopolistic power of the single-party had declined considerably and various class, sectoral and professional interests had gained considerable autonomy — even in the case of Poland been capable of enrolling and mobilizing a substantial proportion of the entire society! Almost everywhere, something like a «parallel society» of personal and private connections had emerged. Even if these «partialitarian» developments proved incapable of bringing about a transition from soviet-style autocracy — most of these regime changes initiated from within the dominant party — they were bound to have an influence on the type and quality of democracy that emerged. The subsequent literature on «civil societies» in CSEE seems to lead one to the conclusion that they are

2

Johan P. Olsen, Organized Democracy, Political Institutions in a Welfare State — the Case of Norway (Oslo: Universitetsforlaget, 1983), 246.

405

18 MVCabral Cap. 18_Layout 1 6/24/13 9:55 AM Page 406

Philippe C. Schmitter

weak — I have never lived in or worked on a country whose civil society was not considered somehow deficient — but this may be misleading. Everywhere, the traditional modes of organized representation — political parties and trade unions especially — have been declining in membership and mobilization capacity and it would be extraordinary if the new democracies in CSEE succeeded in defying such trends. But what is more important from our «revolutionary» perspective is that new forms of collective action in defence of interests and ideals have been emerging — especially via the Internet. From this perspective, CSEE does not look so exceptional. The second «post-Dahlian» revolution has to do with the professionalization of the role of politician. Earlier liberal democratic theory presumed that elected representatives and rulers were amateurs — persons who might have been somewhat more affected by «civic» motives, but who were otherwise no different from ordinary citizens. They would (reluctantly) agree to serve in public office for a prescribed period of time and then return to their normal private lives and occupations. While it is difficult to place a date on it, at some time during the Twentieth Century, more and more democratic politicians began to live, not for politics, but from politics.3 They not only entered the role with the expectation of making it their life’s work, but they also surrounded themselves with other professionals – campaign consultants, fund-raisers, public relations specialists, media experts, and – to use the latest term — «spin-doctors.» Whether as cause or effect, this change in personnel has been accompanied by an astronomical increase in the cost of getting elected and of remaining in the public eye if one is so unfortunate as to become un-elected. What is peculiar about the EU is precisely the absence of such professionals at its level of aggregation. The European Parliament is full of professional politicians, all right, but they are not Europeans. They do not expect to fill out their careers at that level. They are and mostly remain strictly national in expectations. They are nominated by national parties and they expect to return to these parties as soon as possible. Many are merely filling out a (well-paid) term in Strasbourg and Bruxelles due to some misfortune at home — usually an electoral loss. Participation 3 H. Best and M. Cotta, «Between professionalization and democratization: a synoptic view in the making of the European representative», in Parliamentary Representatives in Europe 1948-2000. Legislative Recruitment and Careers in Eleven European Countries, eds. H. Best and M. Cotta (Oxford University Press, 2000); J. Borchert and J. Zeiss, eds., The Political Class in Advanced Democracies (Oxford: Oxford University Press, 2003); P. Esaiasson and S. Holmberg, Representation from Above (Dartmouth: Aldershot, 1995).

406

18 MVCabral Cap. 18_Layout 1 6/24/13 9:55 AM Page 407

The impact of ‘real-existing’ democracy

in EU politics is only a temporary sideline for them and not one that is worthy of too much effort. Levels of abstention and turn-over in candidacies are higher than in almost all national legislatures. I am not familiar with the data on professionalization of politicians at the national level in CSEE, but my rough impression is that these polities do not constitute an exception. Obviously, those who filled the initial positions during the transition must have included an unusual and substantial number of amateurs who had held no previous position (except as dissidents, exiles or prisoners) in the ancient regime. Whether or not these outsiders soon developed a taste for subsequently remaining in politics, I do not know. What I do know, however, is that in a surprisingly short time, almost every one of these new democracies found themselves being governed by politicians who had held such positions, although this time they ruled under different labels and proved to be respectful of the new rules of the game. What become clear is that, however immediately discredited was the previous «real-existing» communist regime, its nomenklatura had not disappeared. Quite the contrary. They proved capable of exploiting their previous professional connections and expertise (not to mention, the economic resources they often acquired during the transition itself) in order to return to power and to contribute to a new professionalism among politicians. In my view, these two revolutions seem to have run their course, but still pose serious normative challenges. There are signs of a reaction against them settling in among mass publics. The usual permanent organizational representatives of class, sectoral and professional interests – especially, one has to admit, trade unions – have declined in membership and even in some cases in number and political influence. New social movements have emerged that proclaim less bureaucratic structures and a greater role for individual members – even some enhanced mechanisms for practicing internal democracy. Candidates for elected public office now frequently proclaim that they are not professional or partisan politicians and pretend as much as is possible to be «ordinary citizens.» Movements have emerged in some countries, especially the USA, to limit the number of terms in office that a politician can serve. Whether these trends will be sufficient to stop or even invert these two «post-Dahlian» revolutions is dubious (to me), but they do signal an awareness of their existence and of their (negative) impact upon the quality of REDs. And, now, let us turn to a diagnosis of the two more recent – indeed, contemporary and simultaneous – revolutions going on within REDs. The first regards (again) the scope of decision-making in democracies. 407

18 MVCabral Cap. 18_Layout 1 6/24/13 9:55 AM Page 408

Philippe C. Schmitter

And, again, I can borrow a concept from Robert Dahl. Over the past twenty or more years – indeed, much longer in the case of the United States – REDs have ceded authority to what Dahl has called «guardian institutions».4 The expression is taken from Plato and refers to specialized agencies of the state – usually regulatory bodies – that have been assigned responsibility for making policy in areas which politicians have decided are too controversial or complex to be left to the vicissitudes of electoral competition or inter-party legislative struggle. The locus classicus in the contemporary period is the central bank, but earlier examples would be the general staffs of the military, anti-trust agencies or civil service commissions. In each case, it is feared that the intrusion of «politics» would prevent the institution from producing some generally desired public good. Only experts acting on the basis of (allegedly) neutral and scientific knowledge can be entrusted with such a responsibility. A more cynical view would stress that these are often policy areas where the party in power has reason to fear that if they have to hand over office in the future to their opponents, the latter will use these institutions to punish the former or to reward themselves. The net effect of guardianship upon REDs is rather obvious – although usually well-concealed behind a rhetorical «veil of ignorance», interwoven with claims to «Pareto-Optimality» or scientific certainty, namely, that contemporary polyarchies have been increasingly deprived of discretionary action over issues that have a major impact upon their citizens. «Democracies without choice» is the expression that has emerged, especially in neo-REDs, to describe and to decry this situation. Even more potentially alienating is the fact that some of these guardians are not even national, but operate at the regional or global level – vide the «conditionality» imposed by the IMF or the EU. EU: it is in the very vanguard of this process of ruling through the extension of guardianship. So much so, that Giandomenico Majone has not hesitated to classify as a pure «regulatory state» that has (or should have had) excluded itself from engaging in distributive or re-distributive policies.5 And when the EU has been compelled to distribute or re-distribute resources across sectors (e.g. agriculture) or member-states (e.g. regional and structural policies), it has raised much more controversy and

4

Robert Dahl, Democracy and its Critics (Yale: Yale University Press, 1989). Giandomenico Majone, Regulating Europe (London: Routledge, 1996); Giandomenico Majone, Dilemmas of European Integration: The Ambiguities and Pitfalls of Integration by Stealth (Oxford: Oxford University Press, 2005). 5

408

18 MVCabral Cap. 18_Layout 1 6/24/13 9:55 AM Page 409

The impact of ‘real-existing’ democracy

even damaged its legitimacy. Meanwhile, the number of its independent regulatory agencies (to use the American expression) has proliferated and one of them, the European Central Bank, has become (admittedly with some difficulty) the core institution of «economic governance» – at least, claiming with its Growth and Stability Pact to impose performance criteria on the member states of the Euro-zone. CSEE: On this dimension, I am completely un-informed. One would have to have followed closely the evolution of rather obscure national administrative agencies and practices, but my rough impression is that this revolution of guardianship has been largely taken over by the EU and the imposition of its regulations, as well as (eventually) conformity to the decisions of the ECJ based on them. The enlargement/accession process imposed rather strict management criteria on the candidate states and the general public seems to have accepted the notion that something called «Euro-compatibility» was an integral component of both capitalist and democratic success. Whether national states of the CSEE after accession will actually accept their subordinate status to EU technocrats and judges and therefore implement faithfully the constraints on their policies embedded in such supra-national quardianship remains to be seen. Which brings me to the second contemporary revolution within REDs – or, better, with particular intensity among European REDs: multilevel governance.6 During the post-World War II period, initially in large measure due to a shared desire to avoid any possible repetition of that experience, European polities began experimenting with the scale or, better, level of aggregation at which collectively binding decisions would be made. The most visible manifestation of this is, of course, the EEC, EC and now European Union (EU). But paralleling this macro-experiment, there emerged a widespread meso-level one, namely, the devolution of various political responsibilities to sub-national units – provinces, regioni, Länder, or estados autonómicos. As a result, virtually all Europeans find themselves surrounded by a very complex set of authorities, each with vaguely defined or concurrently exercised policy compétences. The oft-repeated assurance that only national states can be democratic is no longer true in Europe, even though in practice it is often difficult to separate

6 L. Hooghe and G. Marks, Multi-level Governance and European Integration (Lanham, MD: Rowman & Littlefield, 2001); G. Marks and L. Hooghe, «Contrasting visions of multi-level governance», in Multi-Level Governance, eds. Bache and Flinders (Oxford: Oxford University Press, 2004), 15-30; Piattoni, Simona (2009). «Multi-level governance: a historical and conceptual analysis». European Integration, 31 (2): 163-180.

409

18 MVCabral Cap. 18_Layout 1 6/24/13 9:55 AM Page 410

Philippe C. Schmitter

the various levels and determine which rulers should be held accountable for making specific policies. European politicians have become quite adept at «passing on the buck,» especially at blaming the European Union (or the Euro) for unpopular decisions. New political parties and movements have even emerged blaming the EU for policies over which it has little or no control – for example, over the influx of migrants from nonEU countries. Multi-level governance could, of course, be converted into something much more familiar, namely, a federal state, but resistance to this is likely to remain quite strong for the foreseeable future – viz. the rejection of the EU’s draft Constitutional Treaty by referendums in France and the Netherlands and the Lisbon re-draft by the Irish citizenry. Which means that the confusion over which policy compétences and the ambiguity over which political institutions are appropriate for each of these multiple levels will persist. And, when it comes to the design question, there seems to be a general awareness that the rules and practices of real-existing democracy at each of these levels can not, should not be identical. Especially when it comes to ensuring the accountability of a polity of the size, scale, scope and diversity of the European Union. This demands a literal re-invention of democracy, a task that was not even attempted by the Convention that drafted the unsuccessful Constitutional Treaty or by the committee that produced the revised Lisbon version.7 No need to comment further on the impact of MLG (and PCG) upon the EU and CSEE since it is their interaction that is at the very vanguard of this revolution. At the risk of overkill, there may well be a third contemporary revolution stalking the future of REDs, namely, (good) governance. It is too soon to judge whether the extraordinarily rapid and broad diffusion of this concept among practitioners and scholars is merely a reflection of fashionable discourse (and their mutual desire to avoid mentioning (bad) government), or whether it actually signifies (and moreover contributes to) a profound modification in how decisions are being made in REDs. If the latter, this would have (at least) seven major implications: (1) «stakeholders» determined by functional effect would replace citizens grouped in territorial constituencies as the principal agents of participation; (2)

7

P. Schmitter, «Participation in governance arrangements: is there any reason to expect it will achieve ‘sustainable and innovative policies in a multi-level context’?», in Participatory Governance: Political and Societal Implications, eds. J. R. Grote and B. Gbikpi (Opladen: Leske and Budrich, 2002), 51-69

410

18 MVCabral Cap. 18_Layout 1 6/24/13 9:55 AM Page 411

The impact of ‘real-existing’ democracy

political parties would have no recognized (and certainly no privileged) access to participation in governance arrangements and would be replaced by individual or collective stakeholders; (3) consensus formation among representatives with unequal functional capacities would replace various forms of voting by individuals or deputies with equal political rights as the usual decision-making mechanism; (4) executive or administrative authorities would normally take over the role of «chartering» such arrangements – delegating their scope and determining their composition – rather than the competitively and popularly elected representatives of the legislature; (5) the «liberal» distinction between public and private actors would be deliberately blurred in terms of responsibility for making but also for implementing publicly binding decisions; (6) the substantive compromises that underlie the process of consensus formation would have to be reached confidentially through opaque combinations of negotiation and deliberation between stakeholders – and only subsequently be legitimated publicly in terms of their (presumably beneficial) functional impact; (7) Elections would increasingly become «civic rituals» with less and less impact upon the substance of public policy and, presumably, less and less popular participation. Needless to say, all of these implications pose serious challenges to the legitimating principles of contemporary REDs. EU: It has literally staked its future legitimacy on its credibility as a, (if not the) provider of good governance. In its Green Paper on the subject, it has attempted to justify — knowing that «real-existing» democracy will not suffice — its peculiar way of doing politics as an example of how governance can replace government.8

Conclusion Faced with these insidious revolutions, my guiding presumption has been that the future of «real-existing» democracy, both in the EU and in CSEE, lies less in fortifying and perfecting existing formal institutions and informal practices – say, by increasing citizen participation or by encouraging citizen deliberation within them – than in changing them. What is needed is not more of the same democracy, but a different type of

8 Commission of the European Communities, Governance in the European Union: a White Paper (Brussels: European Union, 2001).

411

18 MVCabral Cap. 18_Layout 1 6/24/13 9:55 AM Page 412

Philippe C. Schmitter

democracy. In other words, in order to remain the same, that is to sustain its legitimacy, democracy as we know it will have to change and to change significantly and this is likely to affect all of Europe’s multiple levels of aggregation and sites of decision making. I conclude: «real-existing» democracies can be reformed and improved in conformity with the two enduring core principles that embody «rule by the people»: the sovereign equality of citizens and the political accountability of rulers. This has happened several times in the past and I see no reason to believe that it cannot happen again. For that is the true genius of democracy – the capacity to reinvent itself for the future by consensually using the rules of the present. Which is not to say that it will be easy. Trying to convince politicians who have won by one set of rules to change those rules has never been easy – although a crisis that threatens to make everyone worse off can help. And we have plenty of that at the present moment.

412

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 413

Leonardo Morlino

Capítulo 19

Do authoritarian legacies account for quality of democracy? Additional remarks on Southern Europe A difficult, thorny topic such as the legacies of the past in contemporary democracies has been analyzed by social scientists, historians included, with due attention to specific cases (see, e.g. Aguilar Fernández 1996 and 1999, Passerini 1987, but also Barahona de Brito, GonzálezEnríquez and Aguilar Fernández 2001, Costa Pinto and Morlino 2011). A comparative systematic analysis that is particularly focused on the legacies in the political culture of elite and people in Southern Europe is still to be carried out. That is, although the works on the politics of memory or other analyses such as the one by Pérez Díaz (1993) and by Larsen (1998) are useful and well worthwhile of consideration, that research has still to be carried out following largely uncharted paths.

What authoritarian legacies Thus, first of all, we recall that the authoritarian legacies encompass all behavioral patterns, rules, relationships, social and political situations, but also norms, procedures and institutions either introduced or strongly and patently strengthened by the immediately preceding authoritarian regime. Authoritarian legacies influence a broad range of political, economic, and social institutions (see Cesarini and Hite 2004). Authoritarian legacies are often most visible in the workings and behavior of the security forces. They also include patterns of social domination, as well as highly unequal access to legal and political institutions. Authoritarian 413

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 414

Leonardo Morlino

legacies may take the form of repressive memories that are latent, but activated and manipulated by social and political actors at particular moments. They may be supported by specific actors, interests, or identities. Several aspects of these legacies must be signaled. First, an authoritarian legacy carries three key internal dimensions that are strongly related but may be present only in part in the new democratic arrangement. They are: (a) a set of beliefs, values and attitudes; (b) one or more public institutions, agencies or simple organizations; and (c) the subsequent behavior emanating from the relationships between the first two dimensions. In processes of political change, these dimensions internal to legacies produce several scenarios: the beliefs, values and attitudes can fade away or disappear under the democratic establishment, but the institutions or organizations with their vested interests persist; the beliefs may persist in spite of the change of regime, while the institutions disappear; or behavior may persist because of inertia when either beliefs, institutions, or both, have disappeared. Of course, the higher is the number of dimensions that persist, the stronger the legacies, and the slower and more difficult the fading away. Second, as suggested by the above definition, there are two fundamental kinds of legacies: (a) those that refer to values, institutions and behavior introduced by the authoritarian regime; and (b) those that reinforce, strengthen, or entrench previous values and existing institutions by setting up new institutions, agencies or organizations and creating or reproducing subsequent behavioral habits. The second kind of legacy is well-embedded in political culture and is usually stronger and more persistent. As authoritarian regimes are often the institutional transposition of conservative coalitions (Linz 1964), this second kind of legacy is a more recurrent one. There are also more innovative regimes in terms of institutions, and they are usually regimes with totalitarian features, such as Italian fascism. From an empirical perspective, in order to be considered an authoritarian legacy, the second, more historically embedded kind of legacy has to have been clearly supported by the decisions and policies of the immediately preceding authoritarian regime. Third, a legacy always implies continuity with a previously existing phenomenon. In broader terms, a legacy could also be considered a reaction to that previous phenomenon. For example, state-crafters of the democratizing regime clearly perceive the need to differentiate the new regime from the previous one, and this specific reaction, while discontinuous, is also a form of legacy. A good example can be found in the Italian Constitutional Charter. As suggested by the debates in the com414

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 415

Do authoritarian legacies account for quality of democracy?

mittee that drafted it, several of the proposals and decisions represented attempts to shape governmental institutions as an extreme counter to the Fascist regime. One key outcome in this regard was the prominent tasks allocated to the parliament vis-à-vis the cabinet, resulting in decisional inefficacy once the strongly dominant role of the Christian Democratic party ended in the mid-1950s. As suggested by Bermeo (1992) and later on by Pridham (2000), such a reaction may be more appropriately labeled «political learning». For the sake of clarity, we tend toward the narrower meaning of the term of legacy. This means that legacies chiefly involve continuities from the past, though it is difficult to disentangle analytically political learning processes from legacies. Moreover, authoritarian legacies are located in both formal-legal institutions and, perhaps just as importantly for our cases, in those interstices linking civil society’s engagement with political society and the state, including cultural practices and «lived» experiences (Dirks et al. 1996). Thus, in addition to discussing authoritarian enclaves that continue to pervade formal political institutions, we should examine the influence of authoritarian legacies on both organized and unorganized interests and on identities in political and civil society. The exploration of authoritarian legacies of the «structuration» or routinization of everyday life, as reflected through political consciousness, discourse, and practice as suggested by Giddens (1984) should also be encouraged. We emphasize this latter exploration of authoritarian legacies and structuration because it may be here where authoritarian legacies are the deepest and most enduring, at the level of personal autonomy as a civil and political right and as a fundamental condition for democratic citizenship and the rule of law (O’Donnell 1998, Held 1997, Giddens 1984). Remnants and memories of these regimes present an interesting set of paradoxes. On the one hand, memories of repressive patterns and action can continue to inhibit political discourse, political participation, and individual notions of political efficacy, associability, and trust. On the other hand, for the cases of Portugal and Spain, memories of the military regimes also evoke associations with a desire for order, efficiency and predictability, often in the economic as well as political arenas. For the three Southern European cases, Italy included, partially positive attitudes toward the authoritarian pasts still are present, as singled out by several surveys conducted during last decades. Moreover, to varying degrees, authoritarian regimes have overseen the restructuring of labor-state or capital-labor-state relationships, as well as the restructuring of the political representation of labor. 415

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 416

Leonardo Morlino

Authoritarian legacies as «silencers» are difficult to operationalize, yet they are harbors of a structural violence that weighs heavily (though unequally) on the polity and society (Habermas 1986). Preferences for stability and order over debate and dissent reflect a lingering fear of polarization under previous democratic regimes and of brutal state response to conflict. Moreover, as Maravall (1981) has suggested for the Spanish case, it is quite rational for citizens to turn away from politics in the wake of political abuses.

Links and key factors Once the key definition has been recalled, another step is possible by connecting legacies and democratic quality. We can start by stressing that we cannot assume that every authoritarian legacy limits democratic expression. On the contrary, there are legacies such as that of efficiency or the building of an effective civil service that are positively related to a «good» democracy. Thus, not every legacy is against a good democracy. Thus, a key question is: when do authoritarian legacies constrain or impede the best expressions of democracy? The influence of authoritarian legacies on democracy depends upon three basic dimensions, or sites, for strategic action: 1) the durability of the previous authoritarian regime; 2) the innovation of that regime; and 3) the mode of transition from authoritarianism. By innovation under authoritarianism, we mean both the degree of transformation and institutionalization of authoritarian rules, patterns, relationships and norms, often symbolized by a new constitution (Aguero 1998), by the setting up of new institutions, but also by the degree of strengthening or weakening of particular organized interests or identities (Hagopian 1995). By mode of transition, we mean the ways in which the transition from authoritarian rule privileged particular incumbents and/or challengers, altered (or left in place) authoritarian institutional rules and procedures, influenced political elite appeals to their constituencies (Munck and Leff 1997; Linz and Stepan 1996; Karl and Schmitter 1991), and/or were characterized by some degree of violence that made discontinuity more probable. Here we can highlight prerogatives for the military and other authoritarian incumbents, pact making, rules governing elections and political parties, and the roles and positioning of organized and unorganized civil society interests in the transition process. We argue that continuous or discontinuous modes of transition mediate whether and 416

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 417

Do authoritarian legacies account for quality of democracy?

how authoritarian legacies endure. By durability, we mean the span of time of the authoritarian regime. If a regime is innovative, then the span of time is less relevant. If, on the other hand, the regime is not innovative, then the regime must be in power for at least fifteen to twenty years, that is, for at least a generation, to be a salient dimension. While we do not examine this here, we are conscious of the importance of exploring transformations in the sites of traditional political socialization under authoritarian regimes, including family, church, and educational institutions, which become the primary referents for political socialization in the absence of a public sphere. We argue that the intensity of authoritarian legacies in the post-transition period depends in good part on the enduring shock and penetration of authoritarian rules, norms, and practices in the private sphere as well as the public sphere. There are also important connections between innovation and the mode of transition. If the transition is discontinuous, institutional innovation may be less salient, as the new political elite transforms authoritarian institutions. If the transition is continuous, then authoritarian regime innovation is much more relevant, for path dependency is essentially established. Now, how we can relate regime innovation, duration and mode of transition to the Southern European democracies in the post-transition period. We focus on how such legacies have affected the new democratic institutions as well as the modes of political incorporation. That is, we chiefly examine and analyze political parties, including internal party organization and the relationships between parties and interests (see Morlino 1998). We will also explore a range of indicators regarding citizens’ assessments of their democracies and specific political institutions, as well as their sense of efficacy and investment in their governments’ decisionmaking processes regarding the economy and other key issues. Moreover, we will explore the state and reach of political discourse and of discursive practices as indicators of the parameters and constraints on a democratic public sphere (Arendt 1958). When possible, we may examine the links between contemporary political organization and action and authoritarian legacies, including strategies for ameliorating or working with the constraints particular authoritarian legacies have represented. Table 19.1 maps some of the main legacies that authoritarian regimes may transmit to democracies, focusing attention on the most relevant democratic features. We suggest a rough distinction among regime institutions and rules, elite actors, social groups, political culture and the mass level. For each domain, we suggest what legacies may constrain the 417

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 418

Leonardo Morlino Table 19.1 – Authoritarian legacies as constraints to democracy Dimension

Legacy

Regime institutions and norms

Authoritarian legal rules Poor or no rule of law Barely independent judiciary Large public sector of economy

Elite actors

High military prerogatives Poor or no efficiency of police Radical rightist groups No party elite accountability

Social groups/institutions

Gleichschaltung*

Culture & mass level

Statism Passivity/conformism/cynicism Fear/alienation from politics Non democratic attitudes Rightist radical party/ies

* This term is intended to refer to the extreme leveling of cultural/social differences, a policy carried out by the Nazi regime.

achievement of a «good» democracy. Thus, for example, a statist authoritarian tradition is largely present in the new democracies of Southern Europe (Morlino 1998), resulting in low political interest and participation. Poor or no rule of law may have already existed in the countries’ pasts. In Giolittian Italy at the beginning of this century, there was a saying: «For friends what they want, for enemies the law». Yet the Italian authoritarian regime strengthened such uncertainty regarding due process, and it thus persists as a key legacy that makes the guarantee of equal political and civil rights for all citizens far more difficult. To flesh out our conceptualization of authoritarian legacies and their influence on the quality of democracy in post-authoritarian regimes, we compare the Southern European cases: Italy, Spain, Portugal and Greece. We will thus start with Southern Europe, beginning with Italy, whose experience and long number of years elapsed since the transition provide a meaningful field for research regarding both authoritarian legacies and their fading away.

Comparative considerations Here, we identified authoritarian legacies that also are hindrances to the development of democracy. Before entering into a comparative dis418

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 419

Do authoritarian legacies account for quality of democracy? Table 19.2 – Dimensions influencing authoritarian legacies, per country Countries Factors

Italy

Spain

Portugal

Durability

X

X

X

Institutional innovation

X

X

X

Continuous transition

Greece

X

cussion of such legacies, we will review the contextual dimensions that influence and condition the authoritarian legacies in each country. Table 19.2 lays out the presence and the salience of these dimensions. We use a capital X when we judge the stronger salience of the dimension and a small x when it is less salient, but nonetheless present. An empty cell indicates the absence of any saliency of the dimension. The «durability» dimension is particularly relevant for Portugal and Spain, and as said, it is more relevant when it is accompanied by institutional innovation, as is the case in Portugal. Regarding institutional innovation — the chief aspect of innovation we consider — again, Portugal stands out as highly innovative regimes. Curiously, for this case, there was a recurring reference to Italian Fascism, that is, to the third case where there was strong innovation. Spain was also fairly innovative regimes, though to a lesser extent in comparative terms. In both cases, again, durability works to enhance the strength of the relative innovation. For Spain the modes of transition are continuous. And again, as expected, this was an important dimension when we account for the presence of authoritarian legacies. Finally, the Greek authoritarian experience between 1967 and 1973 is neither long enough nor institutionally innovative to be really relevant by itself vis-à-vis the other cases. Political leader Constantinos Karamanlis, who re-established democracy in July 1973, was already a prominent politician during the previous limited democracy, and he immediately moved to hold the military accountable. Trials, condemnation, and convictions were conducted in the months immediately following democratic reestablishment. The symbolic and real impact of the Greek court decisions was very effective. On the whole, based on our dimensions, we expected to have a stronger, more salient set of legacies in Spain, with Portugal and Italy on a second tier and Greece at the bottom of a possible rank order. Such expectations are confirmed by our empirical analyses, as we will see below. Regarding specific, expected authoritarian legacies themselves (see Table 17.1 at the outset), we discern legacies both in the formal rules of 419

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 420

Leonardo Morlino

governance and in dramatic, explicit assertions of power by unequivocal authoritarian actors. But legacies are also less easy to detect – and even more difficult to measure – in the day-to-day political patterns and daily routines that condition democratic representation and participation. In point of fact, authoritarian legacies pervade most societies, and in spite of the difficulties, attempts to identify them have to be pursued: particular authoritarian legacies become serious hindrances to democracies when agents give legacies unchallenged or unchecked expression, visibility, or power. However, the key conclusion we can draw from the connection between the analyses summarized in Tables 19.2 and 193 is in the intertwining between modes of transition, institutional innovation and durability, on the one hand, and the three dimensions of legacies, on the other. Italy and Spain present their own different characteristics. In Italy a few important constraints are present in spite of the discontinuity of transition. The main reason is that in many ways the Fascist institutional innovation was very persistent and prominent as it partially regarded the very building of a more modern state. In Spain the strength of the three influencing dimensions is attenuated by the moment of transition and the immediate insertion of the Spanish democracy within the European democratic area. The discontinuous transition in Portugal partially softens the strong authoritarian innovation and the longest duration of all authoritarianisms. Greece is comparatively the case where the actual authoritarian resilience is a result of past decades rather than of colonels’ regime. Regarding more specifically regime institutions and norms, Italy is the country where authoritarian legal rules remain present in the postauthoritarian period. We also find the legacy of a large public sector of the economy in Italy and Portugal. During Portugal’s 1974-1982 transition there was massive nationalization of the economy, later transformed radically by Cavaco Silva in the late 1980s. Italy possessed resilient, large public sectors that have been shrunk in part only recently. The extremely developed public sector in Greece again comes from the previous period rather than that of military regime. Undoubtedly, the lack of full civilian control of the army over a sustained period is one of the most important legacies. This is the case of Portugal for virtually a decade after the establishment of a different regime. But they are not the cases of Italy and Greece where respectively the lost war and the incapability of confronting the Turkish army laid solid bases for the civil control of army. The poor efficiency of police, so 420

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 421

Do authoritarian legacies account for quality of democracy?

relevant for the guarantee of civil rights, also emerges as an important legacy. As comes from the Greek case, it is clear that the military regimes exacerbated this legacy. The rightist radical groups are strongly relevant and influential in the Italian political arena. If we simply consider elite accountability in terms of the possibility of alternation and incumbency, then in different ways, Italy, Spain, and Portugal showed little or no accountability and in Greece a sort of polarized accountability that sometimes is translated into a paralysis, as in 1989-1990, but the first alternation already in 1981. In Italy, there was no real possibility of alternation until the breakdown of Christian Democracy in the early 1990s. In Spain, there was a long period of socialist dominance given a not fully «clean» right, stigmatized by the Franco regime. Finally, in Portugal, there was an even longer period of no alternation until the mid-1990s. The third set of legacies concern cultural levels. These legacies are deeper and more pervasive and refer to the basic problems of the modes of incorporation, or the ways citizens have been involved and socialized into politics. By statism, we refer to the constant, continuous reference to public institutions, as well as to people’s expectations that the state will initiate and be responsible for every aspect of their lives. Statism has been highly related to the lengthy authoritarian experiences of all Southern European countries. Passivity, conformism, and cynicism represent the single set of attitudes toward politics that is most widespread throughout all countries as well. These two aspects together – statism on the one hand, and passivity, on the other – make accountability much more difficult to achieve. Accountability, in fact, is more effective only when there is an active civil society. Of course, these two aspects were also well-embedded in the pre-authoritarian regime political cultures of all these countries. Nevertheless, the authoritarian experiences exacerbated these dimensions. Table 19.3 summarizes this discussion. In survey studies, we find widespread non-democratic attitudes across the four Southern European countries. This is so in different ways and to a different extent in each of the cases. In Italy, for example, such attitudes have been present for years, including well into the 1990s, but they relatively less present in Greece. Radical right-wing parties were present in Italy until the late 1980s, early 1990s (Morlino 1996), but not in the other countries. All five aspects converge to represent political cultures less than conducive to civic democracy (see also Cesarini and Hite 2004). This can be better seen if we explore more in depth key attitudes toward the past in our countries. 421

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 422

Leonardo Morlino Table 19.3 – Authoritarian legacies as constraints to a ‘good’ democracy, per country Dimensions

Legacy

It

Regime institutions and norms

Authoritarian legal rules Poor or no rule of law Barely independent judiciary Large public sector of economy

X

Elite actors

Culture & Mass level

High military prerogatives Poor or no efficiency of police Radical rightist groups No party elite accountability Statism Passivity/conformism/cynicism Fear/alienation from politics Non democratic attitudes Rightist radical party/ies

Sp

X

Pt

Gr

X

X

X X X

X

X

X

X X

X X

X X

X X

X X

X

X

An excursus on attitudes toward the past legacy When the evaluation of the authoritarian past is more closely explored (see also Morlino ch. 3. 1998), the results are only apparently ambiguous and puzzling. First of all, in the survey conducted in 1958 by LaPalombara and Waters (1961), which in Italy broke the taboo on Fascism, 59.8% of those interviewed expressed positive attitudes toward the past considering Fascism either «an excellent thing for our country» (5.7%) or «an excellent thing for our country if it had stayed out of war» (27.5) or even ‘a blessing for Italy if there had not been so many traitorous acts committed within and against it’ (26.6%). A negative evaluation of such a past is given by only 34.2% of respondents. However, there is no consistency between the opinion on Fascism and the pro-democratic attitudes. In fact, by combining the answers on democracy with those on Fascism, 53.7% appear pro-Fascist and pro-democratic at the same time and 27.3% anti-Fascist and anti-democratic. Consequently, positive evaluations of the past and the related inconsistency have both to be explained. It is only obvious that with the elapsing of time the Fascist experience appears more and more distant with a poorer salience and impact on contemporary politics. Thus, among the surveys carried out in the 1960s, one of the best, conducted in 1968 (see Barnes 1972), addressed the issue of the Fascist legacy in terms of mass attitudes and political behavior. By adopting several indicators, and through an insightful analysis, Barnes (see 422

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 423

Do authoritarian legacies account for quality of democracy?

pp.17-18) concluded that: «...our most important finding is that very little of contemporary Italian political attitudes and behavior can be linked to Fascism». Finally, from the 1970s through the 1990s surveys usually ignored such a question. On the rare occasion when a question dealt with the Fascist past, Fascism appeared as a distant, but not a despised experience for most of people. In 1972 another opinion survey showed that 21.5% of the respondents retained positive or fairly positive attitudes towards Mussolini (Doxa 1972), that is, a much higher percentage than the share (8.7%) of the extreme right-wing party, Movimento Sociale ItalianoDestra Nazionale (MSI-DN), in the elections of that year. In a 1985 survey, which included questions on fascism, only 6.5% of Italians responded that the Fascist experience was a good thing, but – interestingly enough – again inconsistent results appear when these responses are compared with others (see Morlino 1998, ch. 3). Thus, on the whole, in Italy during the 1950s there was a low mass consensus, a few aspects of alienation, but widespread positive opinions about the past Fascist experience, particularly among the youth. Building on La Palombara and Waters’ survey, one may stress the existence of that decisive group of people who had a «conditioned» vision of democracy, that is, the 30% believing in democracy only as a system allowing economic development and staying in between the 40% more openly prodemocracy and the 24% against it. But among this 30% there are young people who are still sympathetic to Fascism, despite the war, millions of deaths, and severe economic problems. The simplest explanation of this inconsistency in people who maintain pro-Fascist attitudes and pro-democratic ones and belong to both groups (those conditionally democratic and those more strongly democratic) is that most Italians accepted (and some of them even praised) their non-democratic past, but at the same time, in a different historical moment and after a bloody war, also accepted the democratic reality, by itself or as a path towards economic development in the contemporary international context, characterized by the Marshall Plan, the alliance with the USA, and the beginning of an European agreement, but with low enthusiasm and many doubts. The same data analyzed above suggest that at the same time there were strong sympathies for Fascism and the impossibility of making it an actual alternative because of the previous negative collective memories of the war and the modalities of democratic installation through an antiFascist alliance among all democratic and non-democratic party leaders. That is, those sympathies could be expressed in an anonymous survey, but not translated into actual behavior: Fascism was an experience im423

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 424

Leonardo Morlino Table 19.4 – Attitudes toward democracy according to left-right self-placement in Italy (1958) (%)

Pro-democracy Anti-democracy N.A.

Left

Center

53.0 42.5 4.5

87.0 12.4 0.6

Right

48.0 48.0 4.0

Source: La Palombara and Waters (1961).

possible to propose openly. The Italian Social Movement (MSI), that is, the same party with a neo-Fascist ideology was considered anti-regime and had no potential for cabinet coalition. There were weaker sympathies for a leftist alternative, also with an anti-democratic component (see Table 19.1), but again the support for such a Communist alternative could be declared, but not actually translated into consistent behavior: again the modalities of installation with the participation of some liberal, moderate forces and the whole left, in addition to the international context with Italy in the NATO alliance, are sufficient factors to explain such an impossibility of «translation». Even in the center there was an anti-democratic component (see again Table 19.4), with evidently no autonomous alternative proposal, but which additionally weakened the democratic one. Thus, to put it briefly, at a mass level three political alternatives received the sympathies of three consistent groups of people: the existing democratic arrangement, the Fascist one, and the communist one. But the second one was part of an intensely hated past, which was also impossible to implement, and the third one was weaker for international reasons. Moreover, the two alternatives blocked one another giving an indirect, strong boost to the relatively weak democratic choice. In this way the same anomaly pointed out by Almond and Verba is better explained. The 1985 survey mentioned above with reference to Italy is the Four Nation Survey (directed by Julián Santamaría and Giacomo Sani), which is also important to get a good picture of the other three countries. Table 19.5 presents the distributions of attitudes in the four countries, with the addition of Italy in the 1980s. For this country there is a key, crucial difference in the authoritarian preference and the opinions of the past, above all in the evaluation of the Fascist past, which in 1985 was much different and more negative than in 1958. With regard to the opinions of the past, Portuguese, Spanish, and Italian respondents expressed some degree of ambiguity or ambivalence. Added to these mixed opinions 424

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 425

Do authoritarian legacies account for quality of democracy? Table 19.5 – Attitudes towards the past (1985) It

Sp

Po

Gr

37 3 6 14

28 44 17 11

30 42 13 15

59 31 6 4

Opinions on the Past: Bad Part Good, part bad Good D.k., n.a. Source: The Four Nation Survey.

there are higher percentages of positive evaluations of the past in Portugal and Spain (13% and 17%, respectively). These higher percentages, however, come as no surprise if we consider the duration of Salazarism (almost half a century) and Francoism (about forty years) and the inevitable attachment to a regime of such duration, particularly among the older generations. As also stressed by Sotiropoulos, the Greek attitudes are largely different: the Greeks who consider negatively the colonels’ experience are almost the double than Italians, Spaniards and Portuguese. A comparison of pro-authoritarian responses reveals an interesting pattern. In Italy – it may be recalled – the 6.5 per cent who evaluated the authoritarian past as positive may be matched with the 13 per cent who stated that ‘an authoritarian regime, a dictatorship, is preferable’ in some cases. That is, during the almost thirty years between 1958 and 1985 most positive opinion on Fascism disappeared, but limited new authoritarian attitudes have emerged. The reverse appears to have been true of Spain and Portugal, where fewer respondents found an authoritarian regime preferable in the abstract (9% and 10%, respectively) than favorably evaluated the previous authoritarian regimes (13% and 17%). This would suggest that some nostalgic supporters of the past in Spain and Portugal converted to pro-democratic commitments (on this see below, and Morlino and Mattei 1992, 142-143). These findings accord with those of other studies, showing that most of those who had positive attitudes towards Franco and were ideologically identified with Francoism also accepted the new regime: only 4 percent of respondents interviewed by DATA in 1981 totally identified with Francoism and maintained clearly antidemocratic positions (see Linz et al. 1981, 614). In this sense the explanation is the same as was given for Italy in 1958: not a refusal of the past, but an adaptation to the new democratic situation. It is, however, worth recalling other data on the positive perceptions of the past. As for Spain, Linz stresses that in 1978 39.6% of the Spaniards 425

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 426

Leonardo Morlino

considered positively or fairly positively Franco’s regime (Linz et al. 1981, 589). That percentage becomes even higher, very close to 50%, in a survey conducted the following year, 1979, that is, in a phase of crisis of legitimation in Spanish democracy (see Gunther, Sani, and Shabad 1986). Finally, in Portugal in 1978 35% still considered that Salazar’s and Caetano’s were the regimes or governments which had governed the country best (Bruneau 1984, 113; and Bruneau and Macleod 1986, 93). In Portugal in 1984, that is, one year earlier than the Four Nation Survey, 35% is still the percentage of those praising Salazar and Caetano’s governments (Bruneau and McLeod 1986, 94). In Greece, because of the short duration (7 years) and the low acceptance and legitimacy of the military regime led by Papadopoulos (see above), the positive attitudes towards the authoritarian past are almost absent. Other additional data point out that, unlike Italy in 1958, in the Southern Europe of 1985 there are no alternatives to the democratic arrangements: not only is the historical past definitely over, but there are also no longer any serious challenges to the democratic regime from authoritarians. In this aspect Southern Europe has become similar to other European countries. During the 1980s or early 1990s, support for democracy has strengthened in all three countries, but at the same time the preference for authoritarianism remained basically stable: in Italy it grew from 13 to 14 per cent; in Spain went from 10 to 9 per cent; in Portugal it stayed at the 9 per cent; and in Greece went from 5 to 4 per cent. Preference for democracy or for authoritarianism in 1992 were close to the average for the European Community (78 per cent and 9 per cent, respectively) in three of the four Southern European countries, and Italy’s score of 73 percent was below the European average by a wide margin (see Morlino and Montero 1995, 238). A better understanding of the picture can be gained by looking at the links between the presence of the collective memory of the past among people and the contemporary problems. In the first perspective, the point is what is actually left of the past political experience and what has gone forever. Such a question was also shown to be still particularly relevant in Germany during the 1980s. As in Germany, Southern Europe had dramatic and long experiences with authoritarianism, which were often inextricably related to several other aspects. Fascist Italy ended in an international war and a civil war, yet Fascism was widely accepted and supported in early 1940 up to the first defeats and the bombing of Italian towns and the civil war affected the North, but not the South. Francoism lasted for forty years and in spite of everything was still in power when 426

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 427

Do authoritarian legacies account for quality of democracy?

Spain had its economic growth in the 1960s. Portugal had been an authoritarian regime for 48 years: for most people there was no other known political reality. A long colonial war, however, laid the bases for the coup d’état of April 25, 1974. Furthermore, the coalition at the grassroots of the new Italian democracy was, first of all, an anti-Fascist coalition; the new democratic regime in Portugal profoundly changed the previous political élite, the rules and, on the whole, in this country there is a limited sense of continuity with the past; only in Spain were most of the personnel and rules of Francoism transmitted to the new democracy. The short duration of colonels’ regime in Greece makes these considerations irrelevant for that country. Moreover, for at least two countries (Spain and Greece) the salient past is also the political situation that immediately preceded the authoritarian regime. Conversely, the pre-authoritarian years are virtually irrelevant for Portugal because of temporal distance from the Republic, the length of authoritarianism, and – very important – the lack of strong determining episodes of civil war or bloody conflicts and deaths. They were also not especially relevant in the case of Italy at the mass level: the position of the Catholic Church is very different in the 1940s from what it was in the 1920s and Catholic hierarchy decided to support wholeheartedly the new democracy, but the installation of Fascism happened in a context of semi-legality and no strong negative memories are attached to it. This is not so for the other two countries. The large widespread consensus, the same acceptance of the past and of democracy at the same time, the moderation of workers that Pérez Díaz (1987), Fishman (1990) and others found in their research, can be only explained by the profound presence of the memory of the radicalization of the Second Republic and the subsequent civil war in Spain (see Aguilar Fernández 1996). This country seems to be in a classic situation where the learning process worked efficaciously at a collective level. These data, however, leave partially unexplored the most important aspects that should be searched in the near future, that are how and to what extent the attitudes, which are the legacies of the past, become grounded on the present emerging problems without solution of continuity. Here, we can only propose a few preliminary considerations that show how previous analyses and established relationships inevitably become much more confused. When the last decade is taken into account in several European countries, among other cultural and socio-economic problems three of them immediately stand out: the negative impact of economic globalization on the employment and on the standard of liv427

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 428

Leonardo Morlino

ing of a once well-off middle class, which are magnified by the economic crisis; the dramatic phenomenon of immigration into the most developed of those countries from far Eastern Europe and North Africa; the perception of a declining personal safety in only yesterday safe towns and neighborhoods because of terrorism of Islamic or different origin as well as the immigration. While we take for granted that in performing their tasks the media also magnify the mass perception of those phenomena, we can see the electoral success of rightist, xenophobic, anti-immigration and not only anti-politics parties and of conservative parties in almost all last European elections in several countries. There is research done on these subjects as there is research on the persistence and growth of cultural attitudes of passivism and alienation. Of course, if not for tiny, fanatic minorities, today no one in Europe makes openly authoritarian statements, but the problems mentioned above have a priority in the mentality of people, a good part of which had become accustomed to a more comfortable life. Consequently, there are new forms of disguised authoritarianism characterized by the shifting to the backstage of the traditional democratic values of freedom and, for a part of the public opinion, equality and solidarity and the coming to the center stage of key material necessities even at the cost of muting those values. This new form of authoritarianism has been around for some decades now and has no solution of continuity vis-à-vis the previous neoauthoritarianism that was only fed by the remembrances of the past.

Concluding remarks At the end of this analysis, still some unsolved analytical challenges should be emphasized. First, as we have pointed out, authoritarian legacies are often related to pre-authoritarian experiences. It is impossible, for example, to analyze the beliefs, attitudes and behavior at the mass level in Spain developed under authoritarianism without considering the Second Spanish Republic and Civil War in Spain. This may also account for positive assessments of the authoritarian past during the present democratic regimes. Second, on several occasions, for all four countries, it is very difficult to separate analytically the influence of authoritarian legacies from the influence of political learning on democratization processes. Such was the case of Italy in the first year after the war, but this is also relevant for the Spain and Greece, given the contexts of severe repression under authoritarianism. 428

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 429

Do authoritarian legacies account for quality of democracy?

Moreover, the problem of the fading away of legacies is still largely open. First, the fading away by itself cannot be taken for granted. The kinds of attitudes and beliefs at the mass level that we raise in Table 19.3 may continue, even when the elapsed time would suggest their disappearance. As mentioned at the end of last section, such attitudes and beliefs continue not because of Fascism, Salazarism, Francoism, or also some military regime, but rather because of new features of modernity or of new contemporary phenomena. As stressed above, for example, passivity, conformism, cynicism, and alienation are features that are both shared and reproduced in contemporary democracies as well as in authoritarian regimes. In Italy, this same passivity, indifference, and negative feelings toward politics are perpetuated because they are part of specific cultural traditions and are reproduced by the anti-politics of the new millennium. Similar mechanisms can be envisaged in other countries, including Spain. Moreover, the statism that was characteristic of some authoritarian regimes and that is not reproduced by dominant contemporary cultural and economic paradigms tends, however, to reemerge under the strong influence of European Union policies that have to be implemented at domestic level. To conclude, ultimately we cannot always be sure that the fading away of the legacies discussed in these conclusions is always positive for democracy. It cannot be taken for granted that the moderation and low radicalism that have been fundamental components of Spanish democratic consolidation are not inextricably related to the indifference and passivity that have been ever-present tendencies inside these political cultures. The fading away of the latter may imply the disappearance of the former. Besides, it is well known that those who have no memories of the past lose their identities and are condemned to make the same mistakes (see, among others, Bendix 1984). Thus, when we emphasize that some legacies, although hindrances to a «better» democracy, were helpful or very helpful for democratic consolidation, one could conclude that is wiser to maintain those legacies or – even better – strong memories of them.

429

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 430

Leonardo Morlino

Bibliographical references Agüero, F. 1995. Militares, Civiles y Democracia. La España Postfranquista en Perspectiva Comparada. Madrid: Alianza Editorial. Aguilar Fernández, Paloma. 1996. Memoria y Olvido de la Guerra Civil Española. Madrid: Alianza Editorial. Aguilar Fernández, Paloma. 1999. «Institutional legacies and collective memories: Stateness problems in the Spanish transition to democracy», Working Paper 7, New York, Columbia University, ILAIS. Aguilar Fernández, Paloma. 2001. «Justicia, política, y memoria: Los legados del Franquismo en la transición española», Estudio/Working Paper 163, Instituto Juan March de Estudios e Investigaciones. David Altman, and Anibal Perez-Linan. 2002. «Assessing the quality of democracy: Freedom, competitiveness, and participation in 18 Latin American countries». Democratization, 9 (2): 85-100. Arendt, Hannah. 1958. The Human Condition. Chicago: University of Chicago Press. Barahona de Brito, Alexandra, Carmen González- Enríquez, and Paloma Aguilar Fernández. 2001. The Politics of Memory. Transitional Justice in Democratizing Societies. Oxford: Oxford University Press. Barnes, S. 1972. «The legacy of fascism: generational differences in Italian political attitudes and behavior». Comparative Politics, 5 (1): 41-57. Beetham, David. 1994. «Key principles and indices for a democratic audit». In Defining and Measuring Democracy, ed. D. Beetham. New York: Sage Publications, 25-43. Bendix, Reinhard. 1984. Force, Fate and Freedom: An Historical Sociology. Berkeley: University of California. Bermeo, Nancy. 1992. «Democracy and the lessons of dictatorship». Comparative Politics, 24 (3): 273-291. Bruneau T. C. 1984. «Continuity and change in Portuguese politics: Ten years after the revolution of 25 April 1974». In The New Mediterranean Democracies: Regime Transition in Spain, Greece and Portugal, ed. G. Pridham. London: Frank Cass, 72-83. Cesarini, Paola, and Katherine Hite. 2004. Authoritarian Legacies and Democracy in Latin America and Southern Europe. Notre Dame: University of Notre Dame Press. Costa Pinto, António, and Leonardo Morlino, eds. 2011. The ‘Politics of the Past’ in Southern European Democracies. Comparative Perspectives. London: Routledge. Dahl, R. A. 1971 Poliarchy. Participation and Opposition. New Haven: Yale University Press. Diamond, L. 2002. «Thinking about hybrid regimes». Journal of Democracy, 13 (2): 21-35. Dirks, Nicholas, Geoff Eley, and Sherry Ortner, eds. 1996. Culture/Power/History: A Reader in Contemporary Social Theory. Princeton: Princeton University Press. Doxa Bulletin. 1972. Milan. Fishman, R. 1990. Working Class Organization and the Return to Democracy in Spain. Ithaca and London: Cornell University Press. Giddens, Anthony. 1984. The Constitution of Society. Berkeley: University of California Press. Gunther, R., G. Sani, and G. Shabad. 1986. Spain After Franco. The Making of a Competitive Party System. Berkeley, CA: University of California Press.

430

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 431

Do authoritarian legacies account for quality of democracy? Habermas, Jurgen. 1986. «Hannah Arendt’s Communications Concept of Power». In Power, ed. Steven Lukes. New York: New York University Press, 5-93. Hagopian, Frances. 1995. «After regime change: Authoritarian legacies, political representation, and the democratic future of South America». World Politics, 45 (April): 464-500. Held, David. 1997. Models of Democracy. Stanford: Stanford University Press. Karl, Terry Lynn, and Philippe Schmitter. 1991. «Modes of transition in Latin America, Southern Europe and Eastern Europe». International Social Science Journal, 128 (May): 269-284. Kitschelt, H. et al. 1999. Post-Communist Party Systems: Competition, Representation and Interparty Cooperation. Cambridge: Cambridge University Press. LaPalombara, J., and J. B. Waters. 1961. «Values, expectations, and political predispositions of Italian youth». Midwest Journal of Political Science, 5 (1): 39-58. Larsen, S., ed. 1998. Modern Europe After Fascism, 2 vols. New York: Columbia University Press. Lijphart, A. 1999. Patterns of Democracy. Government Forms and Performance in Thirty-Six Countries. New Haven: Yale University Press. Linz, Juan J. 1964. «An authoritarian regime: The case of Spain». In Cleavages, Ideologies and Party System, eds. E. Allardt and Y. Littunen. Helsinki: Westermarck Society, 291-342. Linz, Juan J., et al. 1981. Informe Sociológico sobre el Cambio Político en España 1975-1981. Madrid: Euramerica. Linz, Juan, and Alfred C. Stepan. 1996. Problems of Democratic Transition and Consolidation. Baltimore: Johns Hopkins University Press. Maravall, José María. 1981. La Política de la Transición. Madrid: Taurus. Merkl, Peter H., and Aurel Croissant. 2000. «Formal institutions and informal rules of defective democracies». Central European Political Science Review, 1 (2): 31-47. Morlino, Leonardo. 1996. «Crisis of parties and change of party system in Italy». Party Politics, 2 (1): 5-30. Morlino, Leonardo. 1998. Democracy Between Consolidation and Crisis. Parties, Groups and Citizens in Southern Europe. Oxford: Oxford University Press. Morlino, Leonardo, and F. Mattei. 1992. «Vecchio e nuovo autoritarismo nell'Europa Mediterranea». Rivista Italiana di Scienza Politica, 22 (1): 137-160. Morlino Leonardo, and J. R. Montero. 1995. «Legitimacy and democracy in Southern Europe». In The Politics of Democratic Consolidation. Southern Europe in Comparative Perspective, eds. Gunther, Diamandouros and Puhle. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 231-60. Munck, Gerardo, and Carol Skalnik Leff. 1997. «Modes of transition and democratization: South America and Eastern Europe in comparative perspective». Comparative Politics (April): 343-362. O’Donnell, Guillermo. 1994. «Delegative Democracy». Journal of Democracy 5 (1): 55-69. O’Donnell, Guillermo. 1998. «Polyarchies and the (un)rule of law in Latin America: A partial conclusion». In The (Un)Rule of Law and the Underprivileged in Latin America, ed. Juan E. Méndez et al. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 303-337. O’Donnell, Guillermo. 1999. Counterpoint: Selected Essays on Authoritarianism and Democratization. Notre Dame, Ind.: University of Notre Dame Press. Passerini, Luisa. 1987. Fascism in Popular Memory. Cambridge: Cambridge University Press.

431

19 MVCabral Cap. 19_Layout 1 6/24/13 9:57 AM Page 432

Leonardo Morlino Pérez Díaz, Victor. 1993. The Return of Civil Society. Cambridge: Harvard University Press. Pridham, Geoffrey. 2000. «Confining conditions and breaking with the past: Historical legacies and political learning in transitions to democracy». Democratization, 9: 36-64. Schmitter, Philippe, and Terry Karl. 1993. «What democracy is... and is not». In The Global Resurgence of Democracy, eds. Larry Diamond and Marc Plattner. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 45-46.

432

20 MVCabral Cap. 20_Layout 1 6/24/13 9:58 AM Page 433

Robert M. Fishman*

Capítulo 20

The Iberian divergence in political inclusion In this essay I examine the Iberian divergence in political inclusion, a pattern of contrast in the way politics is conducted in Portugal and Spain which I attribute to the routes to democracy taken by these neighboring countries. In doing so I rely on an eclectic methodology – in the tradition of Manuel Villaverde Cabral and other great social scientists such as Juan Linz – a strategy which I consider by far the best approach for understanding empirical reality as it genuinely is. Given the wellknown critical abilities of Villaverde Cabral I also take up several possible objections to my central argument and offer considerations on why Portugal has suffered from relatively high levels of income inequality despite the tendencies of the political system toward broad inclusion of the poor and socially disadvantaged.

Fundamental claims Historically oriented social science that focuses on large-scale transformations – such as those capable of remaking social hierarchies, economic structures, cultural expression and political organization – may appear to represent a fundamentally different approach to the pursuit of knowledge than survey research with its examination of individual-level variation at one point in time, but I argue here that at a deep level these two research traditions hold much in common and can prove highly complementary to one another. Both historical analysis and survey research serve as vehi-

* The intellectual debts I have accrued in the work underlying this essay are too numerous to mention in full here.

433

20 MVCabral Cap. 20_Layout 1 6/24/13 9:58 AM Page 434

Robert M. Fishman

cles for constructing a type of social science knowledge which addresses large theoretical questions while acknowledging the immense complexity of the empirical world and its stubborn refusal to adhere perfectly to expectations deductively extracted from abstract theories; historical and survey-based research share an underlying affinity for the Weberian approach to social science with its simultaneous commitment to theory construction and the building of knowledge about the world as it really is – in all of its complexity (Fishman 2007). Perhaps this is why the scholarly work of a surprising number of major social scientists is characterized by both of these methodological forms – rather than just one. Manuel Villaverde Cabral, the great Portuguese social scientist who began his career as a historian (Cabral 1974; 1976; 1977; 1988), and went on to lead in the development of survey research in his native country, is a prime example of this broader tendency and much the same can be said for the great Spanish sociologist and political scientist, Juan Linz. Much of Villaverde Cabral’s work deals with the themes of social inclusion, participation and justice – and I will take up those themes here, attempting to build an argument in the spirit of much of his work, even if he would not fully agree with all of my specific claims. On the basis of a wide range of evidenciary sources including survey data, historical documents, qualitative interviews and ethnographic fieldwork I will take up the question of the relative degree of political inclusion characterizing the neighboring countries of the Iberian Peninsula in the decades following the demise of authoritarian rule in the 1970s. I seek to build a methodologically eclectic basis for answering the large question of how well Portugal and Spain manage to provide genuine political equality for their citizens despite the large economic inequalities found in these (and other) societies. I argue that the Iberian Peninsula neighbors of Portugal and Spain have manifested a fundamental divergence in their propensity toward political inclusion of the poor – and powerless – in the nearly four decades since they inaugurated the worldwide turn to democracy of the twentieth century’s final quarter (Fishman 2011). I attribute this difference, and its implications for the attainment of democracy’s promise of full political equality among citizens (Dahl 1998; Somers 2008), to the sharply dissimilar roads to democracy followed by the two cases in the mid-1970s. Whereas Portugal reached democracy through a social revolutionary process (Bermeo 1987; Hammond 1988; Maxwell 1995; Durán Muñoz 2000; Palacios Cerezales 2004) which transformed not only political institutions but also social hierarchies and cultural repertoires, 434

20 MVCabral Cap. 20_Layout 1 6/24/13 9:58 AM Page 435

The Iberian divergence in political inclusion

Spain moved from authoritarianism to democracy in a consensus-oriented process of reform which changed the country’s political regime but left state, societal and cultural structures far less open to challenge than in post-April 25 Portugal (Fishman 1990a). I contend that these contrasting pathways to democracy created a sustained basis for greater political incorporation of the poor in Portugal than in Spain, and that this inclusionary orientation operated not only through institutionalized forms of politics but also through social movement and protest dynamics. Before presenting this argument I turn first to an inescapable issue which might seem to place in question this reading of the contrast between the Iberian neighbors.

Examining the paradox of income inequality in Iberia The relationship between socio-economic inequality and democratic politics in the neighboring countries of the Iberian Peninsula presents us with a large paradox. Although Portugal is characterized by substantially greater public consensus in support of the principle that state policies should diminish inequality, Spain is currently currently appears to be the less unequal of the two societies – if we rely on the most widely used measure, namely the Gini coefficient. Survey data collected and analyzed by Manuel Villaverde Cabral and his collaborators (Cabral et al. 2003, 54) show that in 1999 an overwhelming 69.3% of the Portuguese public – but only 31.7% of Spaniards – agreed fully with the proposition that government has the responsibility to diminish income inequality among persons. Indeed, Portugal is a world leader in the breadth of public support for policies intended to promote income equality; those holding this position include not only supporters of left-oriented parties but also many within the electorate of the two parties located to the right of the Portuguese center. Yet the country’s overall income distribution is among the most unequal in western continental Europe and is only slightly less unequal than the level found in the United States – where high and growing inequality (Bartels 2008; Hacker and Pierson 2010) has failed to produce a broad consensus in favor of state-led redistribution. In their broadly cross-national analysis of social costs of inequality, Wilkinson and Pickett (2010) identify Portugal as an instance of relatively unequal distribution. Spain, in contrast, has managed to attain a lower Gini, evidence suggesting that the larger Iberian case holds at least a moderate ad435

20 MVCabral Cap. 20_Layout 1 6/24/13 9:58 AM Page 436

Robert M. Fishman

vantage over Portugal in income distribution (Huber and Stephens 2012). The empirical reality of this paradox seems quite clear but that element of clarity sheds little if any direct light on the causes of this disjuncture or on its implications for this essay’s broader argument on political inclusion which assigns to Portugal the more egalitarian position. I rely here on a methodologically eclectic approach to make sense out of the paradox and to offer a broad claim on historical reasons why the neighboring democracies on the Iberian Peninsula deal with inequality in quite different ways. Several factors help to explain why Portuguese income inequality has been greater than that of Spain despite the political approach to equality of the two democracies. Indeed, I argue that the fundamental political divergence between the cases is the reverse of what the income distributional contrast might lead one to expect. I identify several outcomes on which Portugal has addressed the needs of the poor to a greater extent than its larger Iberian neighbor and specify the mechanism that accounts for those outcomes, namely a form of political practice – rooted in the polity’s revolutionary origins – which enhances the openness of institutional power holders to social protest. As I develop at greater length elsewhere (Fishman 2011), the democratic practice of Portugal provides a substantially more central role to mobilizations articulating the demands and concerns of poor, and seemingly powerless, actors than that of Spain. The comparison of the two Iberian Peninsula cases holds great theoretical relevance precisely because they shared numerous historical and structural parallels for centuries prior to their nearly polar opposite pathways to democracy in the 1970s. Granted, the authoritarian regimes which ruled the two countries for several decades in the mid-twentieth century were not identical (Fernandes 2007), nor were the processes of democratic breakdown (Linz 1978; Schwartzman 1989; Wheeler 1978) in the interwar years. An exhaustive accounting of all the ways in which these countries’ political histories have shaped their relative degree of political inclusion in the early twenty-first century would require an analysis not only of the critical juncture, or turning point, constituted by their polar opposite democratization scenarios in the 1970s but also of critical antecedents (Slater and Simmons 2010). The history of the two cases prior to the 1970s clearly does matter, and the two histories were not identical despite their many similarities. But in purely political terms, and when the Iberian countries are contrasted against other national cases, what stands out is the extraordinary series of historical parallels in their development prior to Portugal’s Carnation Revolution and Spain’s consensus436

20 MVCabral Cap. 20_Layout 1 6/24/13 9:58 AM Page 437

The Iberian divergence in political inclusion

oriented process of reform in the mid-1970s. However, if we focus instead on socio-economic development broadly construed, the Portugal-Spain parallel prior to the 1970s is much less close1 – and this point is of crucial relevance for understanding the magnitude of the challenge faced by the two democracies in their ongoing efforts to address inequality. Portugal and Spain are still shaped by a double legacy encompassing the enduring effects not only of their 1970s transitions to democracy but also of their prior experiences under authoritarianism (Costa Pinto 2010). The most important enduring legacy of the authoritarian period for the configuration of the current stratification system in the two countries is that of educational access. Whereas universal primary-level schooling of children was not implemented in Portugal until the mid-1950s (Candeias 2007), and the broad-based expansion of education beyond the primary level came later (Vieira 2007), in Spain these developmental objectives were attained, or at least approximated, decades earlier. As the data analyzed by Huber and Stephens (2012) demonstrate, contemporary Portugal still shows the mark of this late start in universal schooling, and structurally embedded educational inequality – resting above all on low levels of schooling among those above the age of sixty – stands as a major constraint limiting the society’s approximation to the goal of relative income equality. Given the continuing demographic presence of large numbers of people with very low educational attainment, Portugal has faced a classic Kuznets-curve dynamic generating an increase in pre-transfer inequality as the number of Portuguese with high levels of educational attainment grew quickly in the decades following the carnation revolution. Until the legacies of historical backwardness – especially in educational access – have been thoroughly overcome, improvements concentrated in younger age cohorts can paradoxically lead to rising inequality in the population at large. Another likely cause of Portugal’s difficulty in approximating relative income inequality concerns an unfortunate side-effect of the country’s relative success in incorporating women into the labor force following the Carnation Revolution (Fishman 2010; Ferreira 1998). Esping-Andersen has shown that high levels of labor force participation by both men and women can contribute to the growth of household income inequality under conditions of marital homogamy – even in the relatively egalitarian social democratic cases (Esping-Andersen 2007). Where marital or

1

I am indebted to Tiago Fernandes for emphasizing the importance of this point.

437

20 MVCabral Cap. 20_Layout 1 6/24/13 9:58 AM Page 438

Robert M. Fishman

household partners share relatively similar positions in the occupational hierarchy, labor force participation by both marital partners amplifies household income inequality beyond what it would be if households held only one income earner each. For this reason, Portugal’s advantage over Spain in the incorporation of women into the labor force is paradoxically likely to increase the magnitude of pre-transfer household income inequality in the smaller of the two Iberian cases. Thus, structural features of the two societies help to explain the Iberian paradox in income distribution. One important quantitative indicator provides a more favorable image of Portugal than the Gini data. Eurostat data on poverty in 2008, released on December 13, 2010,2 report that the proportion of the Portuguese public considered at risk of poverty (on the basis of earnings below 60% of the national median income) was 18.5%. Although that figure is higher than the EU27 average of 16.5%, it is the lowest incidence of poverty in southern Europe in the Eurostat report. The comparable figure for Spain in 2008 was 19.6%. The figure for Italy, at 18.7% of the national population, was only marginally higher than Portugal but the proportion of the population at risk of poverty was 20.1% in Greece. Thus Portugal’s efforts to reduce income inequality have made a large impact in the bottom two deciles of the income distribution, reducing poverty to a lower proportion of the national population than in the rest of southern Europe. It should be stated that this most recent data on poverty continues a pattern manifested in prior years. In a related vein, both taxation and social spending have represented a higher proportion of GDP than in Spain although they are both lower than in the Nordic social democratic welfare states. One fundamental component of government transfers, and of their impact in changing the pre-transfer distribution, deserves emphasis. Given Spain’s chronically higher unemployment, in the larger Iberian case unemployment insurance has played an especially large role in state social expenditures and in configuring the impact of government transfers on income distribution. The greater efforts of Portuguese policy makers to focus on employment creation or protection (Fishman 2010) have diminished the need for unemployment insurance payments – at least relative to Spain. In this sense, the positive impact of Portuguese state policies on distributional outcomes is not limited to income transfers per 2 See Eurostat news release 190/2010, posted on the Eurostat website on December 13, 2010 and still available there.

438

20 MVCabral Cap. 20_Layout 1 6/24/13 9:58 AM Page 439

The Iberian divergence in political inclusion

se but instead also encompasses employment creation endeavors embodied in public efforts to promote financing for small and medium enterprises along with other employment enhancing measures. The importance of this contrast should not be underestimated. Except for a brief period of time in late 2006 and early 2007 – when Spain’s unsustainable property and construction bubble had generated over-trend economic performance in that country juxtaposed chronologically with a period of below trend economic performance in Portugal – the larger Iberian case has been subject to substantially higher unemployment for virtually the entire post-authoritarian period. Given this enormous divergence between the cases in a pre-transfer outcome subject to influence by government policy, the impact of state initiatives on the distributional profile of the Iberian cases is not fully captured by government transfers – important though they are. Government policies influencing economic and labor market performance are also highly relevant for distributional outcomes and here the record of Portugal under democracy has been quite literally more inclusionary than that of Spain, drawing a substantially higher proportion of the polity into the ranks of those with paid employment. Along with employment policies and outcomes I take at least two other issue domains – housing policy and initiatives shaping the access of the broad public to cultural and civic capacities – as crucial for assessing the polities’ relative degree of incorporation of the poor and powerless. On these three outcome variables there is evidence – some of it manifested in survey work by Villaverde Cabral – of more favorable and inclusionary outcomes in Portugal. Yet the most fundamental contrast I argue for in the Iberian cases concerns the very substance of political life and practice. It is a matter more of process than of outcomes (although differences in outcome also exist). In both Iberian cases, much important political life takes place in the streets and in the form of public protest. Whereas formal organizations such as unions and parties – and the institutionalized political life which they channel – have been relatively weaker than in many long-established democracies, protests in the streets and other forms of uninstitutionalized politics have played a much larger role in the Iberian cases than in many other democracies. It is on this terrain of fundamental importance to both Spain and Portugal that the cases have sharply diverged. In Portugal, institutional office holders have been relatively open to social protests – even those led by the poor – and have treated protestors as actors included within democracy’s conversation. In contrast, in Spain institutional office holders have been far less open 439

20 MVCabral Cap. 20_Layout 1 6/24/13 9:58 AM Page 440

Robert M. Fishman

to the voices of protestors, thus leaving the poor with a substantially weaker impact on public policy and on matters of direct interest to them. Spanish political elites have been more inclined toward exclusionary practices; even within the Socialist Party, a virtual fault line has separated local leaders open to the voices of social movements from others quite antagonistic toward extra-institutional dissent from below, essentially denying its legitimacy (Fishman 2004). This contrast between the neighboring countries on the Iberian Peninsula is rooted in the historical process constituting democratic practice in the two cases, the theme to which I now turn.

The distinctiveness of the social revolutionary path to democracy The Portuguese case of democratization is of great comparative and theoretical significance not only because of its differences with the historically and geographically proximate case of Spain but more importantly and in a broader sense because it constitutes an archetypical instance of democratization through social revolution – a historically unusual but nonetheless important pathway to political freedom. Other cases which fit within the relatively small universe of democracies which emerged from social revolutionary processes include France, arguably Nicaragua,3 and in parts of the national territory El Salvador (Wood 2003). Of course, social revolution, where it occurs (Skocpol 1979; Goodwin 2001) is no guarantee that democratic arrangements will triumph. Democracy requires an institutional set articulated around free and competitive elections as well as a bundle of rights and legal guarantees without which elections would stand as a hollow enterprise (Shapiro 2003). Yet the basic institutional framework required for democracy is, on its own, no guarantee of the quality and depth of democracy or of attaining genuine political equality among citizens, and herein lays the theoretical significance of the Portuguese case. In post April 25 Portugal, the design and launching of representative political institutions overlapped in historical time with a social revolution which strongly shaped the more strictly political and (formal) institutional dimensions of democratization.

3

Scholars continue to debate the Nicaraguan case. For a recent argument which classifies the regime as a «semi-democracy» see Mainwaring and Pérez-Liñan (2005).

440

20 MVCabral Cap. 20_Layout 1 6/24/13 9:58 AM Page 441

The Iberian divergence in political inclusion

For this reason, I argue that one cannot fully comprehend the aspects of political reality revealed by survey data for Portugal – and their contrasts with neighboring Spain – without understanding how in this case political attitudes and practices are embedded in a system historically shaped by revolution. A comprehensive analysis of contemporary Portuguese politics requires not only the reliance on conventional institutional and survey analysis, important though such mainstream forms of social science are, but also the intertwining of the evidence culled from such research with insights rooted in historical and cultural analysis. The Skocpolian state crisis unleashed in 1974 by the Estado Novo’s anachronistic effort to maintain Portugal’s colonial possessions in Africa quickly generated two characteristic features of social revolution: a partial inversion of social – and political – hierarchies coupled with a thorough reconfiguration of cultural repertoires and structures. The challenge to hierarchies which initially emerged in the Armed Forces, where captains famously played the central role in the country’s «liberation by golpe» (Schmitter 1975), quickly spread to other state institutions as well as schools and universities, private enterprises, agricultural estates and to some degree social relations within the family. Emblematic of the partial inversion of hierarchies were the purges which took place in schools where students themselves participated in assemblies intended to oust teachers thought to be supporters of the old regime (Costa Pinto 2006). At the same time the revolution gave birth to a process of widespread cultural renovation which included the emergence of new symbols, forms of expression and discourse, a remaking of unstated assumptions about what constitutes normal practice, and – alongside these «bottom-up» phenomena – a «top-down» effort of revolutionary authorities to transform cultural and civic practices through the cultural dynamization campaign (Vespeira de Almeida 2007) and a broad project of educational transformation (Stoer 1982; 1986). This widespread reconfiguration of cultural repertoires and structures crucially took place in the context of the challenge to hierarchies discussed above. The cultural renovation produced by April 25 and its aftermath accentuated social inclusion, participation and more or less egalitarian principles. Many analyses of the legacies of revolution focus more or less exclusively on important indicators located squarely within the formal institutional arena – encompassing issues such as the ownership structure of enterprises – but I argue that important legacies of democratization scenarios, and especially of the social revolutionary pathway, are located within the cultural sphere and are manifested in practices which can prove more or 441

20 MVCabral Cap. 20_Layout 1 6/24/13 9:58 AM Page 442

Robert M. Fishman

less inclusionary than the formal design of official institutions would suggest. It is precisely in the culturally constituted terrain of democratic practice where I locate the largest enduring contrast between Portuguese and Spanish democracy – a divergence rooted in the two countries’ virtually polar opposite pathways to democracy in the 1970s. Through the term democratic practice I refer to the way in which actors within a democracy understand and make use of opportunities for political action and influence, and interact with other participants in the polity. Democratic practice, in this sense, involves not only what goes on inside parliaments, government ministries and voting booths but also what transpires in demonstrations, schools and the newsrooms of the communications media – to name only some of the venues where democratic practice can be observed and studied. Democratic practice is shaped both by what sociologists of culture have called implicit culture (Wuthnow and Witten 1998), that is unstated understandings of what constitutes normal action, and by explicit culture with its symbols, discourses and often elaborate efforts to imbue life and institutions with meaning. Whereas April 25, and the social revolution which it initiated, brought socially subordinate actors – and demonstrators – into the center of political activity in democratizing Portugal, transition by reform in Spain placed a series of more or less firm limits on the ability of bottom-up initiatives to shape the design of the new system. This is not to say that Spain’s transition can be reduced to a series of elite-level pacts, and the most complete theorization of the Spanish pathway to democracy (Linz and Stepan 1996) incorporates a broader array of actors and processes into its conceptualization of the post-Franco transition, but that said, the important contribution of social pressure to the Spanish transition (Fishman 1990b; Threlfall 2008; Herrera and Markoff 2011) was politically contained in ways that stood in stark contrast to the Portuguese experience. The important comparative analysis of Rafael Durán Muñoz (2000) shows that the initial demands of workers in the context of democratization were remarkably similar in the neighboring countries but the initial parallelism quickly gave way to an ongoing divergence in the nature of worker mobilizations as a result of the juxtaposition of state crisis in Portugal with state continuity (but regime change) in Spain. The style and substance of popular mobilizations as well as their relevance for system-wide political developments diverged fundamentally between the two cases. It is in this light that we can understand the testimony of Mário Murteira, a left-oriented economist and government minister in revolutionary Portugal, who relates an experience in which 442

20 MVCabral Cap. 20_Layout 1 6/24/13 9:58 AM Page 443

The Iberian divergence in political inclusion

he and then Prime Minister Vasco Gonçalves were powerfully influenced by popular demonstrations. In the words of Murteira, «Várias vezes quando estava em grandes conversas com o general Vasco Gonçalves, no gabinete, íamos à janela ver o que se estava a passar com as manifestações. No fundo, e em larga medida, éramos mais espectadores de uma grande movimentação popular do que actores.» (Silva et al. 2006, 105). The unwritten assumptions which undergirded the emergence of the new democracy through a revolutionary process made demonstrators – including those of limited economic resources and power – into significant actors, whereas the assumptions underpinning the Spanish pathway to democratic freedoms left such actors at a far greater distance from the center of political life. I now turn to contemporary practice in the two Iberian cases to illustrate the enduring nature of the differences which emerged in the 1970s.

Contemporary democratic practice Perhaps no type of «contention» or protest better captures the fundamental contrast between the two systems than the mobilizations of immigrants and other economically disadvantaged actors with grievances about housing. The metropolitan areas of both Lisbon and Madrid have seen the emergence of large areas of «informal» housing in which immigrants and others lived in dwellings that lacked a fully legal status. Informal housing – much of it providing homes for immigrants – has been especially prevalent in the large area known as the Cañada Real outside Madrid and in certain Lisbon-area neighborhoods in the municipality of Amadora and other suburban communities. In both countries many of those residing in informal housing have been expelled from their homes and the structures demolished. But the two political systems have responded in highly dissimilar ways to the voices and demands of those affected. In greater Lisbon, those expelled from their homes in January 2006 organized a broad campaign in favor of o direito à habitação. They marched on the Assembleia da República, gained a hearing from major news media outlets and sought meetings with political parties in the parliament. Crucially – and in a fashion which clearly reflects the parameters of Portuguese democratic practice – all of the parties present in the parliament agreed to meet with the immigrants in need of housing to discuss their situation. Various other instances of housing related protests confirm this general pattern (Fishman 2011). Institutional office holders in 443

20 MVCabral Cap. 20_Layout 1 6/24/13 9:58 AM Page 444

Robert M. Fishman

Portugal have been repeatedly willing to meet with poor and socially marginal demonstrators who appeal to the constitutionally guaranteed right to housing. In a very real sense, demonstrators and institutional office holders have formed part of one democratic conversation. This has afforded the poor and socially powerless with a measure of political equality that is greater than what is to be found in many other democratic systems. Moreover, this inclusionary tendency in Portuguese democracy cannot be easily captured by the description or design of formal institutions. Instead, it is on the terrain of practice itself where the inclusionary nature of Portuguese democracy is especially visible. Despite the presence of numerous points of similarity between the two Iberian societies, Spanish democratic practice has been remarkably different. The cross-national difference is clearly manifested in numerous important and more or less parallel historical episodes in which structural similarities of events taking place in the two societies have not led actors to confront problems and processes in the same way. In Spain, the immigrants who in 2008 lost to demolition their Cañada Real homes in the outskirts of Madrid could find no negotiating partners inside official governmental institutions to parallel the access of their counterparts in Portugal to political parties present in the Assembleia da República. Indeed, the former residents of informal housing outside Madrid were forced to move into a Catholic parish in southern Madrid where the activist priest welcomed them and championed their cause.4 In a more broadly systemic sense, one point of contrast between the cases is highly illustrative: Whereas Portuguese demonstrators routinely take their causes – and their voices of protest – to the steps of parliament or even inside the building – Spanish demonstrators are legally prohibited from doing so and are typically kept at a distance from Madrid’s Congreso de los Diputados. Perhaps as a result, Spanish protestors are less inclined than their Portuguese counterparts to seek out dialogue with governmental office holders. This pattern of cross-national differences in the form taken by housing protests and in their treatment by office-holders is to be found in numerous instances in both countries. Whereas the Okupas who take over unoccupied dwellings have often been dealt with harshly by the police in Spain, in Portugal municipal authorities in Lisbon and Okupas protestors have searched for avenues of dialogue and accommodation. The relative openness of institutional power holders to voices of dis4

I discuss this episode in Fishman (2011).

444

20 MVCabral Cap. 20_Layout 1 6/24/13 9:58 AM Page 445

The Iberian divergence in political inclusion

sent in Portugal is reflected in many other ways. When the Assembleia da Republica organized a thirtieth anniversary commemoration of the post-April 25 democratic Constitution in the spring of 2006, photographs of demonstrators protesting government policies were given many prominent spaces in the official exhibit and the glossy catalogue which aimed at «showcasing» the anniversary commemoration. The contrast between the national cases – and the more inclusionary nature of Portuguese democratic practice – manifests itself not only within the nexus between representative institutions and protestors but also in the conduct and coverage of the news media. Portuguese journalists regularly report the voices and concerns of protestors – many of them people of limited resources and social standing – whereas Spanish protestors have often been ignored or under-emphasized in the news media, as the important work of Víctor Sampedro (1997; 2004) has shown. In this respect the news media is not only reflective of the forces shaping the broader pattern of democratic practice but also in part generative of that pattern and its reproduction. News coverage in Portugal contributes to the legitimacy and salience of social protest, helping make it possible for voices in the streets to remake the broader political agenda.

How broadly shared and how durable is the Iberian divergence in political inclusion? This essay argues for a systematic difference between the Iberian cases in their propensity toward political inclusion of the poor but critical and careful readers will surely ask themselves at least two obvious questions: How broadly based – within each society – are the predispositions favoring the forms of democratic practice briefly introduced here? And, in a related vein, how durable will these two national patterns prove to be? The first question directs our attention above all to the Portuguese center-right and the Spanish center-left, to see whether the political parties so situated are more reflective of the national tendencies formulated here or of the ideological proclivities of similarly situated parties in other polities. The second question raises the issue of mechanisms of «reproduction» and change in culturally rooted practices. But in purely empirical terms the analytical distinction between these two questions largely vanishes and it is to the relevant empirical terrain that we now turn. Despite the obvious and expected presence of some differences be445

20 MVCabral Cap. 20_Layout 1 6/24/13 9:58 AM Page 446

Robert M. Fishman

tween and within political parties, I argue that on balance the differences between the two countries on the issues discussed here are greater than the differences between the largest parties within each country. Much evidence in favor of that claim is to be found precisely in one of the central mechanisms for the reproduction of the Portuguese form of inclusionary democratic practice, namely the annual commemorations of the country’s Carnation Revolution of April 25, 1974. The commemoration is a regular opportunity for the advocates of a revolution-based conception of democracy to make their arguments and to tie those positions to the symbols and memories of the country’s historical pathway to democracy. It would hardly be surprising if the commemorative endeavors were limited to parties of the Left but that is not the case. Indeed it was a representative of the PSD, Victor Cruz, whose official remarks in the 2004 commemorative session of parliament ended with the evocative assertion that politics was never so close to poetry as in April. And it was a local leader of the PSD in the town of Maia who asserted in 2007, on the anniversary of the revolution, that the best way to uphold the spirit of April is by practicing an inclusionary, participatory democracy. The project of remembering, celebrating and interpreting «April» has been a broadly shared one in Portugal and the polity’s openness toward the voices of the poor and the disadvantaged has been equally broad and non-partisan – at least if one compares the country to others, such as Spain. This is not to argue that differences between parties are lacking in significance but rather that such differences fit within a broader national pattern in which much is shared. In the case of Spain, the tendency of many within the Partido Popular to deny the relevance and legitimacy of voices of protest in the streets is often matched by the perspective of some – but not others – within the PSOE. The response of many institutional power holders to the 15-M movement which emerged in 2011 in Spain is just the most recent exemplar of these tendencies. The most obvious and straightforward evidence for this pattern is to be found in the official prohibition on demonstrations on the steps of the parliament building in Madrid. But even at the local level, parties to the left of the Spanish center, to say nothing of those on the right, have often displayed a deep discomfort with social protest and extra-institutional forms of expression. The principal parties in both of the Iberian Peninsula cases seem inclined to reproduce the pattern of contrast presented here. This is not the place to present a lengthy analysis on the societal outcomes which are shaped by the cross-national divergence in inclusion, but I do want to suggest that many outcomes both in public policy and 446

20 MVCabral Cap. 20_Layout 1 6/24/13 9:58 AM Page 447

The Iberian divergence in political inclusion

in citizen capacities are best understood in this light. Survey research of the sort carried out by Villaverde Cabral is one of the best places to look for such effects but public policies themselves are another prime area for research. The Portuguese case, and its contrasts with Spain, provides much evidence in favor of the approach to the study of «successful societies» elaborated by Hall and Lamont (2009) with their emphasis on the interaction of political, cultural and socio-structural dynamics.

An important cautionary note The analysis presented here might encourage one to think that countries should «choose» to follow the Portuguese road to democracy, but the reality is that countries, and political actors within them, enjoy relatively little space to choose among sharply divergent strategies for change. In the concrete cases of Portugal and Spain, neither country could have successfully «chosen» to adopt the pathway followed by the other. Numerous features of the political history of the two cases would have made it essentially impossible for either one of them to follow the 1970s pathway to democracy of its neighbor. Efforts at regime liberalization from within the structures of power proved unable to lead to democracy in the Portuguese case (Fernandes 2007) and the scenario of state crisis which underpinned the carnation revolution was to have no basis or plausibility in Spain. The Armed Forces in the two countries were radically different and had the Spanish Armed Forces carried out a coup, as sectors of the country’s military did attempt in February 1981, it would have clearly been a right-wing initiative thoroughly unlike the left-oriented coup of April 1974 in Portugal. And had popular sectors in Spain acted as if their country was in the midst of a revolution instead of a consensus-oriented transition by reform, the radical mobilizations which would have resulted could well have generated pressures inside the military for such a coup attempt well before the one which did take place in February 1981. The historical openings and constraints which shaped the possibilities available to political actors were thoroughly different in the two cases. In closing, it is appropriate to put in perspective this essay’s claim that Portuguese democracy is more inclusionary than that of Spain. This claim – if one accepts it – does hold real significance for the evaluation of the two systems and for the large theoretical question of political equality among citizens, but it does not afford any automatic guarantee of success for the Portuguese polity in its pursuit of other objectives. Clearly the 447

20 MVCabral Cap. 20_Layout 1 6/24/13 9:58 AM Page 448

Robert M. Fishman

Portuguese polity and society continue to face significant challenges of many sorts and all such challenges need to be carefully studied and understood through precisely the sort of methodologically eclectic work promoted and practiced by Villaverde Cabral. If this essay’s argument is largely valid, in such research the legacies of Portugal’s carnation revolution will often be found to exert a positive and socially inclusionary role in shaping how the country confronts its challenges.

References Bartels, Larry M. 2008. Unequal Democracy: The Political Economy of the New Guilded Age. Princeton: Princeton University Press. Bermeo, Nancy. 1987. The Revolution within the Revolution: Workers’ Control in Rural Portugal. Princeton, NJ: Princeton University Press. Cabral, Manuel Villaverde. 1974. Matérias para a História da Questão Agrária em Portugal, Sécs. XIX-XX. Porto: Inova. Cabral, Manuel Villaverde. 1976. O Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal no Séc. XIX. Lisboa: Regra do Jogo. Cabral, Manuel Villaverde. 1977. O Operariado nas Vésperas da República, 1909-1910. Lisboa: Editorial Presença. Cabral, Manuel Villaverde. 1988. Portugal na Alvorada do Século XX: Forças Sociais, Poder Político e Crescimento Económico de 1890 a 1914. Lisboa: Editorial Presença. Cabral, Manuel Villaverde, Jorge Vala, and Andre Freire. 2003. Desigualdades Sociais e Percepções de Justiça. Lisboa: Imprensa de Ciencias Sociais. Candeias, António, et al. 2007. Alfabetizaçao e Escola em Portugal nos Séculos XIX e XX, 2.ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Candeias, António, et. al. 2007. Alfabetização e Escola em Portugal nos Séculos XIX e XX, 2.ª ed. Lisboa: Fundaçao Calouste Gulbenkian. Costa Pinto, António. 2006. «Authoritarian legacies, transitional justice and state crisis in Portugal’s democratization». Democratization, 13 (2). Costa Pinto, António. 2010. «Coping with the double legacy of authoritarianism and revolution in Portuguese democracy». South European Society and Politics, 15 (3). Dahl, Robert. 1998. On Democracy. New Haven, CT: Yale University Press. Durán Muñoz, Rafael. 2000. Contención y Transgresión: Las Movilizaciones Sociales y el Estado en las Transiciones Española y Portuguesa. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. Esping-Andersen, Gosta. 2007. «Sociological explanations of changing income distributions». American Behavioral Scientist, 50 (5): 639-658. Fernandes, Tiago. 2007. «Authoritarian regimes and pro-democracy semi-oppositions: The nnd of the Portuguese dictatorship (1968-1974) in comparative perspective». Democratization, 14 (4). Ferreira, Virginia. 1998. «Engendering Portugal: Social change, State politics, and women’s mobilization». In Modern Portugal, ed. António Costa Pinto. Palo Alto, CA: The Society for the Promotion of Science and Scholarship.

448

20 MVCabral Cap. 20_Layout 1 6/24/13 9:58 AM Page 449

The Iberian divergence in political inclusion Fishman, Robert M. 1990a. «Rethinking State and revolution: Southern Europe’s transition to democracy». World Politics, 42. Fishman, Robert M. 1990b. Working-Class Organization and the Return to Democracy in Spain. Ithaca, NY: Cornell University Press. Fishman, Robert M. 2004. Democracy’s Voices: Social Ties and the Quality of Public Life in Spain. Ithaca, NY: Cornell University Press. Fishman, Robert M. 2007. «On being a Weberian (after Spain’s 11-14 March): Notes on the continuing relevance of the methodological perspective proposed by Weber». In Max Weber’s ‘Objectivity’ Reconsidered, ed. Laurence McFalls. Toronto: University of Toronto Press. Fishman, Robert M. 2010. «Rethinking the Iberian transformations: How democratization scenarios shaped labor market outcomes. Studies in Comparative International Development, 45: 281-310. Fishman, Robert M. 2011. «Democratic practice after the revolution: The case of Portugal and beyond. Politics & Society, 39 (2). Goodwin, Jeff. 2001. No Other Way Out: States and Revolutionary Movements, 1945-1991. Cambridge: Cambridge University Press. Hacker, Jacob S., and Paul Pierson. 2010. Winner-Take-All Politics. New York: Simon and Schuster. Hall, Peter, and Michele Lamont, eds. 2009. Successful Societies. Cambridge: Cambridge University Press. Hammond, John, L. 1988. Building Popular Power: Workers’ and Neighborhood Movements in the Portuguese Revolution. New York, NY: Monthly Review Press. Herrera, Antonio, and John Markoff. 2011. «Rural movements and the transition to democracy in Spain». Mobilization, 16 (4):455-474. Huber, Evelyne, and John D. Stephens. 2012. Democracy and the Left: Social Policy and Inequality in Latin America. Chicago, IL: University of Chicago Press. Linz, Juan. 1978. The Breakdown of Democratic Regimes: Crisis, Breakdown and Reequilibration. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press. Linz, Juan, and Alfred Stepan. 1996. Problems of Democratic Transition and Consolidation: Southern Europe, South America and Post-communist Europe. Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press. Mainwaring, Scott, and Aníbal Pérez-Liñan. 2005. «Latin American democratization since 1978: Democratic transitions, breakdowns and erosions». In The Third Wave of Democratization in Latin America: Advances and Setbacks, eds. Frances Hagopian and Scott Mainwaring. Cambridge: Cambridge University Press. Maxwell, Kenneth. 1995. The Making of Portuguese Democracy. Cambridge: Cambridge University Press. Palacios Cerezales, Diego. 2003. O Poder Caiu na Rua. Lisboa: Imprensa de Ciencias Sociais. Sampedro, Víctor. 1997. «The Media Politics of Social Protest». Mobilization, 2(2): 185-205. Sampedro, Víctor. 2004. «Nunca máis: la marea, el dique y el bunker». In La red en la calle ¿cambios en la cultura de movilización?»: Cambios en la Movilización: Anuario de Movimientos Sociales 2003, eds. Elena Grau and Pedro Ibarra: Barcelona: Icaria. Schmitter, Philippe. 1975. «Liberation by golpe». Armed Forces & Society, 2 (1). Schwartzman, Kathleen C. 1989. The Social Origins of Democratic Collapse: The First Portuguese Republic in the Global Economy. Lawrence, KS: University of Kansas Press.

449

20 MVCabral Cap. 20_Layout 1 6/24/13 9:58 AM Page 450

Robert M. Fishman Shapiro, Ian. 2003. The State of Democratic Theory. Princeton, NJ: Princeton University Press. Silva, Manuela et al. 2006. Memórias de Economistas. Paço de Arcos: Exame. Skocpol, Theda. 1979. States and Social Revolutions. Cambridge: Cambridge University Press. Slater, Dan, and Erica Simmons. 2010. «Informative regress: Critical antecedents in comparative politics». Comparative Political Studies, 43 (7). Somers, Margaret R. 2008. Geneaologies of Citizenship. Cambridge: Cambridge University Press. Stoer, Stephen. 1982. Educação, Estado e Desenvolvimento em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte. Stoer, Stephen. 1986. Educação e Mudança Social em Portugal: 1970-1980. Uma Década de Transição. Porto: Edições Afrontamento. Threlfall, Monica. 2008. «Reassessing the role of civil society organizations in the transition to democracy in Spain». Democratization, 15 (5). Vespeira de Almeida, Sónia. 2007. «Campanhas de dinamização cultural e acção cívica do MFA: una etnografia retrospectiva». Arquivos da Memória, 2, Nova Série. Vieira, Maria Manuel. 2007. «Recém-chegados à Universidade: entre constrangimentos sociais e projectos individuais». In Escola, Jovens e Media, ed. Maria Manuel Vieira. Lisboa: Imprensa de Ciencias Sociais. Wheeler, Douglas. 1978. Republican Portugal: A Political History 1910-1926. Madison, WI: University of Wisconsin Press. Wilkinson, Richard, and Kate Pickett. 2010 [2009]. The Spirit Level: Why Greater Equality Makes Societies Stronger. New York, NY: Bloomsbury Press. Wood, Elisabeth Jean. 2003. Insurgent Collective Action and Civil War in El Salvador. Cambridge: Cambridge University Press. Wuthnow, Robert, and Marsha Witten. 1998. «New directions in the study of culture». Annual Review of Sociology, 14.

450

21 MVCabral Cap. 21_Layout 1 6/24/13 10:00 AM Page 451

Roger Jowell Alison Park

Capítulo 21

British young people and politics: a disengaged generation? * Introduction In the 11th century a celebrity known as Peter the Hermit is said to have delivered these rather irritable thoughts: «The world is passing through troubled times. Young people have no reverence for their parents; they are impatient of all restraint; they talk as if they alone know everything; what passes for wisdom with us is foolishness for them.»

He was, of course, referring to the well-worn belief – even then apparently - that the young are a generation apart, not only with silly, newfangled ideas but also with little or no interest in the important things in life – that is the things that interest ordinary people (who are naturally not young and possibly never were). Some ten centuries later, we cannot pick up a newspaper that does not either bemoan or rejoice in a newlydiscovered putative youth culture, sometimes referred to as the product of «Generation X», which has heterodox views and habits that will soon engulf us all. The question we address here is whether «things are what they used to be», or whether the «generation gap» has become more (or less) marked, and – if so – in what respects. This is a large question to which we will only attempt partial answers. Unlike Peter The Hermit, we confine * An earlier version of this paper was published by the Citizenship Foundation London in 1998 in «A Report of a Colloquium on the values, attitudes and behaviour of young people in the 1990s».

451

21 MVCabral Cap. 21_Layout 1 6/24/13 10:00 AM Page 452

Roger Jowell & Alison Park

most of what we say to Britain alone, from where our data derive. We leave it to others to draw conclusions about whether the same phenomena apply to their countries and cultures.

Defining our terms Before referring to our findings, we must – as others have done before us – define our terms, because the term «generation gap» is used in three quite different ways, which often causes confusion. On the one hand, it is used to describe variations in attitudes or behaviour that merely reflect the different interests of particular age groups at that point in their lives. For instance, young people tend to be more interested in pop music and going to clubs, they tend to play more sport, to be more sexually active and – perhaps as a result! – to be less interested in, say, gardening or home improvements. As they get older they will gradually tend to cast aside these youthful activities and begin to act their age, that is, their new age. A caricature, yes, but these are not generational differences between young people and older ones, merely chronological ones. We would never describe as a generational difference the fact that young people tend to be parents of younger children than older people do. It was always thus and there are solid reasons why it always will be. These merely chronological differences are of course «life cycle differences». Ever-present, they say nothing about changes in society. On the contrary, as long as they remain valid, they are indicators of stability rather than change. They confirm the fact that people alter in predictable ways as they get older. The second way the term «generation gap» tends to be used is even more misleading, in effect merely describing differences in the world that the young and the old jointly inhabit. So it may well be true that young people in Britain nowadays are, say, less anti-German than young people in the 1950s used to be. Well, yes, but so too are old people are less antiGerman than they were during the war years. This is no generational effect but the result of changed circumstances or context between one period and the next. The change may affect young and old slightly differently but it is nonetheless not so much a function of a new age gap in society as of a change in society itself between the two measures. These sorts of differences are «period differences». The third, and in this context the correct, use of the term «generation gap» refers to distinctive attitudes or behaviour patterns among the young that do not then disperse with chronological age but instead adhere to 452

21 MVCabral Cap. 21_Layout 1 6/24/13 10:00 AM Page 453

British young people and politics: a disengaged generation?

that group of people over time. So as one age cohort replaces another over time, these characteristics of young people gradually infuse those of society and become ordinary rather than exceptional. Take sexual permissiveness for instance. If the young nowadays are more permissive than the young in the 1980s were, how likely is it that they will become less permissive as they get older. The evidence suggests that on these sorts of issues, people tend to carry their attitudes or values with them into older age and – in the process – they foreshadow changes in society. These sorts of differences, and only these sorts of differences, are what we would describe as «generational differences» indicating as they do that, via cohort replacement, long-term changes are in store. The problem as always – referred to in this case by scholars in the field as the «identification problem» – is that it is often difficult to distinguish between these sorts of differences (Heath and Park 1997). Period effects in particular are difficult to neutralise since lifestyles, standards of education, political circumstances and society itself are ever-changing. Similarly, although in retrospect it is sometimes a little easier to decipher, it is impossible to be certain in advance which values or modes of behaviour are going to adhere to a particular generation and which ones will disperse as they age. There are often many clues to use, so that we can hazard pretty good guesses, but we always have to bear in mind the inherent distinction between life cycle, period and cohort changes. The distinction matters because simply to know that the young and the old are different is a classic «gee whiz» phenomenon: «Look at how different they are: fancy that!» But these differences alone tell us nothing more than that the old and the young can be distinguished by factors other than chronological age. Whoever doubted it? When an otherwise intriguing think tank report (Wilkinson and Mulgan 1995) tells us, for instance, that women over 55 are three times as attached to their neighbourhoods and traditional values as are those under 35, we remain none the wiser as to whether this is a life cycle or cohort difference. If society is changing in these respects, it would signify that neighbourhood ties were bound to weaken. If on the other hand it is just one among many ways in which younger and older people hold different things dear at different times of their lives, then there is nothing to worry about. So our job here is to examine the extent to which society is really changing or just re-playing its same old theme tunes. To make it simpler for us, we resisted going back to the 11th century and Peter the Hermit, but chose to look instead at differences between the last generation of young people and the present one. How much do 453

21 MVCabral Cap. 21_Layout 1 6/24/13 10:00 AM Page 454

Roger Jowell & Alison Park

they really differ from older people in their values and behaviour patterns? But again we must first define our terms, however arbitrarily. By «the young» for these purposes we mean anyone between around 18 and 24 (though for some purposes we will refer to people between 12 and 18 too). We will then look for evidence to help us disentangle whether any differences we find seem to be the result of life cycle factors (or chronological ones), period effects (the whole of society changing), or generational differences (younger cohorts carrying their values with them as they age). We start by looking briefly at the context, that is how British society itself has been changing between the 1980s and now – from one generation to the next – and, as it turns out, during the period spanning a longstanding Conservative government followed by a longstanding Labour government.

Changes since the 1980s One of the most important changes between earlier generations and now has been a diminishing expectation among young people that a job, still less a choice of jobs, is automatically available to them. The spectre of unemployment is on the whole a great deal more prominent nowadays than it was in the 1960s and 1970s and now more so than even in the 1980s. Unfortunately, however, the method of calculating unemployment statistics in Britain has also changed – several times – over the last thirty years so that earlier figures are not directly comparable. Even when we allow for these changes, however, the proportion of young people classified as unemployed has risen sharply over the years (Bone 1997). On the positive side, the proportion of people without any qualifications at all has halved – from around 60% in the mid-1970s to around 30% now (General Household Survey 1995). And these changes have implications for the composition of the labour force, which now contains fewer young people than it did (both because of increased youth unemployment and increased participation in further and higher education). There have also been changes in the structure of the job market itself, with the proportion of people in manual work falling from 55% of the workforce in the 1970s to 44% in the 1990s (General Household Survey 1995). The group which has suffered most from these changes is, of course, young men – particularly those with few qualifications. In past genera454

21 MVCabral Cap. 21_Layout 1 6/24/13 10:00 AM Page 455

British young people and politics: a disengaged generation?

tions these young men would have been more or less assured of a lifetime job; now they are not even sure of getting a first job, still less of keeping it. The same source showed that 1 in 6 men between 18 and 24 were unemployed, around double the proportion of young women (General Household Survey 1995). If we were looking for signs of disengagement among this group of young men, an obvious starting point would be crime. During the last decades of the twentieth century crime continued to rise in Britain (though the trend has changed in recent years), and as always most crimes were committed by young men. The Home Office’s British Crime Survey which records all crimes experienced as victims, as opposed to those reported to the police, shows that crime went up by 83% between the 1980s and 1990s (Mirrlees-Black et al. 1996). Even so, different crimes do of course tend to be committed by different sorts of people. When it comes to crimes of violence, for instance, over four out of every five convictions for muggings are committed by men under 25, as are almost two-thirds of cases of violence against strangers. (Older men apparently come more into their own with crimes of violence against people they know!) Victims of stranger violence are equally more likely to be young men (ibid). But, beware, although these differences are impressive and alarming, it is also the case that young men have always been the main perpetrators of crime. So even though the crime rate has increased, the proportion of crimes now committed by young men is probably no greater than it always has been. Again, it is actually very difficult to compare these statistics from one period to the next, because the use of informal cautions versus the prosecution of juvenile offenders in Britain has also varied over time. Although it would be unwise to infer that the simultaneous rise in young male unemployment and in the crime rate are inextricably linked (especially as a more insecure labour market has also been accompanied by a rise in the proportion of young people who go into further or higher education), it is surely safe to infer some relationship between crime and young male unemployment. The fact is that young men these days cannot look forward as their predecessor generations did to a job-market in which semi-permanent work of one sort or another is a reliable expectation. In that respect life has clearly become more difficult and insecure, in particular for young under-qualified men. On the other hand, as Inglehart (1990) pointed out, the present generation of young men have not had to contend with the traumas of going to war so that in some re455

21 MVCabral Cap. 21_Layout 1 6/24/13 10:00 AM Page 456

Roger Jowell & Alison Park

spects at least life has become a good deal more secure for young men than it was for their parents. Although young women have not suffered to the same extent from unemployment, the world they now inhabit is also quite different from the one their predecessors faced. In particular, they are now much more likely to enter higher education and the labour market than they used to be. In the two decades following the 1970s for instance, the proportion of all women in the labour market rose from 33% of the workforce to 44%, despite obstacles to this rise exercised by the increased presence of young women in post-compulsory education (General Household Survey 1995). So society has changed; it always does. And it is in that context in which we must look at the attitudes, behaviour and values of its younger members. To do this we must first establish whether, how much and in what ways young people’s value systems actually do differ significantly from those of their elders? Only having established that can we begin to speculate which of these differences presage a brave new world and which ones merely confirm the obvious - that young people aren’t yet like their elders in the way they see themselves and their world. In this regard, some will recall the words of W.S. Gilbert in Iolanthe: I often think it’s comical How nature always does contrive That every boy and every gal That’s born into the world alive Is either a little Liberal Or else a little Conservative

In what ways are young people distinct? One primary part of our investigation was to test the much-repeated charge that young people nowadays are uninterested, ignorant and uninvolved in conventional politics. A famous Harvard professor is said to have asked of one of his star students whether it was true that the young were apathetic about politics. His student replied that he neither knew nor cared! Nonetheless, we will try to answer the Harvard professor’s question in relation to British young people. Do, for instance, disproportionate numbers of young electors not bother to vote in elections? And do the 456

21 MVCabral Cap. 21_Layout 1 6/24/13 10:00 AM Page 457

British young people and politics: a disengaged generation? Table 21.1 – Reported general election turnout and political interest, by age

All 18-24 25-34 35-54 55+

% reporting vote in general election

% with «a great deal» or «quite a lot» of interest in politics

69 45 48 70 86

31 30 21 28 39

Source: NatCen’s British Social Attitudes Survey (2010).

young differ from their older counterparts in their political interest, values and the extent of their party identification? We will also look at the notion that, even if young people reject politics, whether it is only conventional politics they reject or whether they have their own, new political agendas consisting of issues such as the environment and sustainability. We ignore for the time being whether any differences we find are merely a concomitant of chronological age and will return to that later. The primary question here is whether there are differences in the first place. The short answer to that question is a resounding «yes». According to data from the British Social Attitudes survey (2010), new electors were much less likely than average to say they had voted in the general election of that year. Although we know that the proportion of people who say they vote is always higher than the proportion who actually do vote, our interest here is more in the difference between younger and older people rather than the fairly constant discrepancy between word and deed. So the fact that there is a substantial difference is all that matters for now. And there is such a difference (see Table 21.1). The fact is that new and new-ish voters, far from revelling in their recently acquired democratic rights, are apparently reluctant participants in elections. As Table 21.1 also reveals, young people are correspondingly less likely than average to identify with a political party or to have strong anti-feelings towards any party. In short, they have much less political interest. And this is by no means just an affliction (if it is an affliction) of British youth. Eurobarometer surveys have shown for years that this phenomenon also applies in many other European countries. But what about even younger people? Looking back to prior data, the 2003 British Social Attitudes survey included 12 to 18 year olds in its sam457

21 MVCabral Cap. 21_Layout 1 6/24/13 10:00 AM Page 458

Roger Jowell & Alison Park

ple, allowing us to investigate the early stages of political socialisation and value formation (Park, Phillips and Johnson 2004). Not surprisingly perhaps, 12 to 18 year olds were even less interested and less knowledgeable about politics than were 18-24 year olds. True, there were some variations. Those from middle class households were a little less apathetic than others, boys were a little more knowledgeable than girls of a similar age and class, but the differences were not pronounced. A little more impressive were the similarities between young people and their own parents that were uncovered in a still earlier study (Park 1995). True, the literature on political socialisation tells us that young people learn their party allegiances – their party identification – from their parents during their childhood. Even so, the extent to which British teenagers were party political clones of their parents in the 1990s was surprising, perhaps even alarming. Of course, we are referring here only to those teenagers who identified with a party and, it must be said, a third of them did not (nearly three times the equivalent proportion of adults). Still, among those teenagers who did express a party preference, their allegiances were highly correlated with those of their own parents. So whoever it is who claims that parents these days have little or no influence on their children is clearly at least partly mistaken. Three-quarters of Labour-identifying teenagers in Britain had a Labour-identifying parent, and two-thirds of Conservative teenagers (a smaller group), had a Conservative parent. W.S. Gilbert seems to have been right after all. In case all this disinterest in politics among the young appears to be bad news for democracy, it does also contain some good news for young people themselves. Lack of involvement seems to have the benefit of protecting them against the danger of unfulfilled expectations of politicians and governments. After all, successive British Social Attitudes surveys show new electors to be the least likely age group in the population to be worried by their own lack of political clout. Rather, they believe more than others do that their voice would be heard by governments. And they are also less likely than are their more cynical elders to distrust the motives of politicians and civil servants more generally. Whereas around one in four people take the view that government can «almost never» be trusted to put the country’s interests above party interests, only around one in six young people take this negative view. So it seems that the young are certainly less involved in conventional politics than are their elders. Does this mean that, like the Harvard student, they just don’t give a damn? Not so, according to various commentators, who suggest that young people simply have a different and 458

21 MVCabral Cap. 21_Layout 1 6/24/13 10:00 AM Page 459

British young people and politics: a disengaged generation?

distinctive political agenda (Inglehart 1990; Wilkinson and Mulgan 1995). What may appear to be disengagement, they say, is in reality a rejection of old-style politics in favour of a new politics consisting of emerging issues such as the environment. This, they argue, is post-modernism or post-materialism at work, not apathy. But evidence from the British Social Attitudes survey series suggests the contrary. It turns out that 18-24 year olds are in fact no more likely than other groups to support more spending on the environment and are less likely to «do what is right for the environment». Meanwhile, on a range of other policy issues relating to green matters, the young are frankly almost indistinguishable from other age groups. The only exceptions to this are animal testing and fox hunting, where young people are disproportionately more opposed. The findings of another recent British survey of young people (Industrial Society 1997), confirm that we should not attribute young people’s lack of interest or participation in politics to a sense of disengagement from old-style politics alone. A more plausible explanation is that 18-24 year olds just feel they have rather more important things to do with their time, such as finding partners, homes and jobs. As far as political interest is concerned then, clear differences exist between young and old. But when it comes to party allegiance, the differences are less marked, partly of course because of the similarities between the young and their parents. However, if age differences in values are our primary focus, then we need look no further than at attitudes to sexual morality. When we compare 18-24 year olds with people over 55 on these issues, we find that they could easily inhabit different planets. The British Social Attitudes series taps people’s feelings towards a number of different moral issues. On attitudes to homosexual sex, for instance, people over 55 are less than half as likely as those in younger age groups to find nothing wrong in it (see Table 21.2), just as they are considerably less likely to find nothing wrong in premarital sex. We shall examine shortly whether these differences reflect life cycle or cohort changes. The picture on abortion is rather different. Here, the group most strongly in favour of abortion «on demand» – or, as our question puts it, «where the woman simply does not wish to have the child» – is not the youngest group, but those aged between 25 and 34. Without pursuing this finding exhaustively, this appears to be a preference based at least partly on the age at which the issue becomes most salient. Those even younger are also more permissive than average on abortions, but the vari459

21 MVCabral Cap. 21_Layout 1 6/24/13 10:00 AM Page 460

Roger Jowell & Alison Park Table 21.2 – Attitudes to homosexuality, by age % homosexual sex «not wrong at all»

All 18-24 25-34 35-54 55+

45 56 58 52 26

Source: NatCen’s British Social Attitudes Survey (2010).

ation is less stark. More dramatic is the rise – of 22 percentage points between 1983 and 2008 – in the proportion of all people who think that abortion in these circumstances should be allowed. This change, which seems to have affected all age groups more or less uniformly, is thus a good example of a «period effect» at work. Finding many further key differences by age is, however, surprisingly difficult. While class remains an excellent discriminator on many political issues in Britain, and while gender and region are good discriminators on a few issues, age is curiously selective in its impact on attitudes and values. This is of course one of the reasons that British society tends to change rather slowly. Just as our parents are similar in many ways to their parents, so we too are in many ways similar to our parents, despite our occasional protests. On the other hand, among the few remaining differences we find between the young and their elders in Britain, some have the potential to have an important positive impact on society. For instance, the young are less likely than their older counterparts to report to be racial prejudiced. Although the gradient between young and old is perhaps not quite as steep as we might have imagined (with 24% of 18-24 year olds classifying themselves as «a little» or «very» prejudiced, compared with 32% of the over 55s), there is nonetheless an unmistakable gap. However, all the differences between age groups we have reported so far are minor in comparison with those on religion. The young in Britain seem to be irresistibly less religious than are their elders. We will look in a moment at whether this signals a radical change in society or just a passing phase, but meanwhile it is worth dwelling briefly on the extraordinarily steep gradient. Going from older to younger, just over a third of those over 55 do not regard themselves as belonging to any religion (see Table 21.3 below). This rises to comfortably more than a half of those aged between 25 and 460

21 MVCabral Cap. 21_Layout 1 6/24/13 10:00 AM Page 461

British young people and politics: a disengaged generation? Table 21.3 – No religious affiliation, by age % with no religious affiliation

All 18-24 25-34 35-54 55+

50 64 57 56 36

Source: NatCen’s British Social Attitudes Survey (2010).

54, and to almost two-thirds among 18 to 24 year olds. These sorts of differences between age groups are among the largest on any topic. Nor is this simply a British phenomenon. According to Eurobarometer data over the years, the same trend applies in many European countries: not only is religious belief often in decline, but similar age differentials are also opening up. So, having identified some of the major differences between the young and their older counterparts, we can now at last turn to examining whether present differences are likely to be only temporary or more longstanding.

Life-cycle, generational or period effects? What we have shown so far is merely that the young differ from their elders in a number of ways in addition to their chronological age. We have not said much about whether this implies a moving picture, with society itself changing, or just a snapshot showing a constant cross-section of different layers. Put another way, the key question now is whether the attitudes of the young will adhere to them or disperse as they get older, leading either to a brave new world or simply more of the same. To answer this question ideally requires panel data which follow the same people as they age. But a regular series of cross-sectional surveys, such as the British Social Attitudes series, also enables us to compile a profile of a particular age group at one period, and to compare it on precisely the same measures some years later. This is another way to see whether or not the attitudes of a particular cohort tend to change as it ages. If instead we were just to compare the attitudes of, say, 18 to 24 year olds at two points in time, we could certainly discover whether the views of that age group had changed, but we could not then decipher whether this was just a reflection of youth itself or instead the early signs of a cultural 461

21 MVCabral Cap. 21_Layout 1 6/24/13 10:00 AM Page 462

Roger Jowell & Alison Park

change. To make this distinction, we must compare the attitudes of a «moving» cohort. As always we were limited by the data we had. Properly comparable data relating to different time periodsare rarely available. Nonetheless we can investigate the clues we have via the British Social Attitudes time series. We start with politics.

Politics As noted, we have uncovered the fact that young people turn out to vote less, are less likely to have any party allegiance or identification, and are low on political interest. The big question remains as to whether it always thus or whether we have a new phenomenon of disengagement at work. A helpful measure of disengagement is the extent to which people care which party wins elections. A wholly apathetic and disengaged society would not care who wins, nor would its citizens bother to vote or take an interest in politics. Such a society would also not be vigilant about internal political developments. Yet political differences and attentiveness matter in a thriving democracy because of their capacity to encourage peaceful participation and engagement. Elections matter too. In 1983, when the British Social Attitudes series started, we had uncovered the differences between age groups in the extent to which they cared which party would be elected. We found at the time that fewer than two thirds (62%) of 18 to 24 year olds cared. This was of course the period during which Mrs Thatcher and Mr Foot were the respective Conservative and Labour leaders, thus offering an unusually clear contrast of viewpoints. In contrast, in the same election period, nearly 80% of other age groups said they cared who won. Here then was a clear age gradient. But when looking at that same young age cohort fourteen years later – at the time of the 1997 election when the contrasts between leaders was less stark (Blair vs. Major) – 77% of this cohort (by then aged between 32 and 38) cared which Party won. No appreciable change had taken place among the older cohorts. So, here again is evidence of the life cycle at work, as opposed to generational or cohort change. New young voters do not seem to care much about elections. As they mature, however, both as voters and citizens, they begin to care more. If on the other hand a cohort change had been at work, the apathy of the young age group would have been retained as they aged, thereby changing society in the process. 462

21 MVCabral Cap. 21_Layout 1 6/24/13 10:00 AM Page 463

British young people and politics: a disengaged generation? Table 21.4 – «None at all» or «not very much» interest in politics (%) Date of birth 1959 – 1965 1945 – 1951 1931 – 1937

1986

2010

46 (aged 21-27) 34 (aged 35-41) 36 (aged 49-55)

37 (aged 45-51) 32 (aged 59-65) 26 (aged 73-79)

Source: British Social Attitudes Surveys.

Up to this point at any rate then, things appear to be what they used to be. Society is not shown to be changing its familiar patterns. What then of political interest? In the year before the 1997 British general election, when a change of government was in the air and national political interest might be said to have been at its height, some 37% of the British electorate still reported little or no interest in politics. Indeed, there had been a precipitous drop of about 20 percentage points in overall political interest from the level we had found a decade earlier in 1986. Table 21.4 above shows the trends in political indifference within various cohorts over the last 24 years. Looking first at the cohort who were in their early twenties in 1986 and in their late forties by 2010, we find clear evidence of a life cycle effect. In the intervening quarter of a century, their political indifference had fallen from 46% to 37%, not very far from the proportion of their older counterparts who felt the same. Time and aging had brought about a greater similarity between the two cohorts even though the cohort in their late thirties in 1986 had not changed much in the same period. Surprisingly in view of their higher electoral turnout (see Table 21.5), political interest among the oldest cohort in this analysis – those in their early 50s in 1986 and in their 70s by 2010 – did reduce. Was it perhaps that this cohort, more than others, tends to vote more out of duty than interest or attentiveness, or could it just be that politics itself has become duller nowadays than it used to be in the mid-1980s? As for turnout and party identification, here the story is a little more worrying for those who believe in the virtues of a participatory democracy. The good news is that, overall, turnout in general elections fluctuates trendlessly and has done over a number of decades – sometimes up (as in the British general election of 1992, and sometimes down, as in 1997) with no clear pattern (Butler and Kavanagh 1997). We also know from independent evidence of validated turnout reports that young voters actually do abstain more than their elders do. But the bad news to emerge from our cohort analysis is that abstention tends to become a habit. 463

21 MVCabral Cap. 21_Layout 1 6/24/13 10:00 AM Page 464

Roger Jowell & Alison Park Table 21.5 – Age cohort reporting voting in general election (%) 1983

1997

Date of birth 1959 – 1965 73 (aged 18-24) 1945 – 1951 84 (aged 32-38) 1931 – 1937 88 (aged 46-52)

74 (aged 32-38) 83 (aged 46-52) 87 (aged 60-66)

2010

73 (aged 45-51) 84 (aged 59-65) 90 (aged 73-79)

Source: British Election Studies (1983; 1997); NatCen’s British Social Attitudes (2010).

As Table 21.5 above shows, the young cohort who were relatively disinclined to vote in the 1983 election, their first opportunity to do so, were still less inclined than others to vote in both the 1997 and the 2010 general elections, by which time they were in their late forties. The differences are perhaps not quite clearcut enough to demonstrate an unarguable secular decline in electoral participation, partly because turnout itself is so variable from one election to the next. But they certainly represent worrying evidence that lower turnouts by young cohorts may then become normative among the cohort as they age.A similar generational pattern applies to party identification. Again it may be only rather slight and slow, but there appears to be a decline in party attachment over time as younger generations succeed older ones in the electorate as a whole. A small period effect (or at any rate a context effect) may also be at work here, with the parties themselves being less likely than in the past to engender fierce loyalties a consequence perhaps of more blurred class-party boundaries. As noted, party identification theory tells us that people learn their politics at their parents’ knees and then reinforce their identification with their first vote. That being so, it is not surprising that an habitual failure to vote is accompanied by a rising absence of party identification.

Moral matters How about moral issues? We hear a lot about sharp rises in permissiveness, giving way to sharp falls as reaction set in. But that is to a large extent no more than tabloid media talk. Reports of both the sharp rises in permissiveness and the outraged general public reaction to them are often based more on speculation than evidence. On the other hand it is also the case that most western societies have indeed become more permissive about sexual matters over time as taboos are removed and rarely reinstated. As we have seen, there are considerable differences between the young and the old on these matters and in this case they do at last 464

21 MVCabral Cap. 21_Layout 1 6/24/13 10:00 AM Page 465

British young people and politics: a disengaged generation? Table 21.6 – Age cohort thinking pre-marital sex «not wrong at all» (%) 1983

Date of birth 1959 – 1965 64 (aged 18-24) 1945 – 1951 63 (aged 30-36) 1931 – 1937 38 (aged 42-48)

1997

2010

68 (aged 30-36) 58 (aged 42-48) 34 (aged 54-60)

68 (aged 45-51) 60 (aged 57-63) 42 (aged 69-75)

Source: NatCen’s British Social Attitudes surveys (1983; 1997; 2010).

reflect unambiguous and deep-seated generational differences, not just the life cycle at work. Young people with permissive attitudes do not tend to turn into middle-aged prudes, not even when they have children of their own. Thus, as older more censorious generations die out, society as a whole becomes more permissive by virtue of cohort replacement. There is also almost certainly a period effect at work, by means of what the German sociologist, Wolfgang Jagodinski, refers to as the «contagion« effect. That is, nobody can help becoming a little less prudish when they are exposed both to unprudish people and more explicit images all around them. In short, they become de-sensitised. The clearest example of an age gap on moral issues can be seen in attitudes towards premarital sex (see Table 21.6 above). Almost two-thirds of 18-24 year olds in 1983 considered that there was nothing wrong in it, compared with only 38% of those aged over 55. But our cohort analysis between 1983 and 2010 shows that each cohort broadly retains its former general degree of permissiveness or censoriousness from one decade to the next. (This is, however, a little less true of the oldest cohort who seem to be slowly adopting majoritarian more permissive viewpoints). In general, there is clearly a cascade at work here, with each cohort’s attitudes displacing the previous cohort’s as they assume their new places in the age hierarchy, thus resulting in a slowish overall rise in permissiveness overall.

Religion Finally we return to the always complicated subject of religious adherence. We have already revealed that young people are far less likely than older ones to define themselves as belonging to a religion. But this could reflect either a tendency for people to turn to religion as they get older, or an important generational change. Our data suggest the latter. As noted, Britain is becoming a more secular society. 465

21 MVCabral Cap. 21_Layout 1 6/24/13 10:00 AM Page 466

Roger Jowell & Alison Park Table 21.7 – Age cohort who do not belong to particular religion (%) 1983

Date of birth 1959 – 1965 56 (aged 18-24) 1945 – 1951 36 (aged 31-37) 1931 – 1937 25 (aged 44-50)

1997

2010

50 (aged 31-37) 41 (aged 44-50) 30 (aged 57-63)

51 (aged 45-51) 45 (aged 59-65) 28 (aged 73-79)

Source: NatCen’s British Social Attitudes surveys (1983; 1997; 2010).

The overall proportion of people in Britain professing no religion has increased fast – from 31% in 1983 to 46% in 1996 and 50% in 2010. This is an impressive change, particularly as we would not really expect any individual to change so rapidly such fundamental values. We realise, however, that individual changes are not on the whole responsible for this trend. Few adults in Britain tend either to change their religion or selfconsciously to renounce all religion. And relatively few, people, compared for instance to the US or the Islamic world, tend suddenly to ‘find’ religion in their adulthood. It is therefore not surprising to find from our cohort analysis that the change in overall religiosity over time comes instead from cohort replacement (see Table 21.7 above). Thus, because younger cohorts tend to start off with less self-conscious religiosity than their elders presumably did, and then carry this lack of religious feeling with them as they age, a cascade of generational replacement takes place and brings about an overall reduction in religious identity in Britain. Again, perhaps because of the «contagion» effect, there are signs of a more general weakening of religious feeling among other cohorts too, particularly the older ones who have furthest to go.

Conclusions So what does all this add up to? First, as far as the historically intertwined issues of sexual mores and religion are concerned, the changes in society are unambiguous. We are becoming more permissive and less religious, though we do not suggest that the former is caused by the latter. Even so, it is clear that the young are have become increasingly and possibly irreversibly disengaged from religion. Some see dangers in that trend; others do not. But, whether we like it or not, we seem to be witnessing a not very secular shift in Britain towards a more secular society. We commiserate with those who might diagnose these trends as a moral crisis or as clear evidence of terminal societal decay. On the other 466

21 MVCabral Cap. 21_Layout 1 6/24/13 10:00 AM Page 467

British young people and politics: a disengaged generation?

hand, we know that most religions have remarkable powers of endurance and that they are by no means facing oblivion. It may also be reassuring to some to know that at least some sense of religious feeling (such as belief in a higher power) is till apparent in around two in every three British people. We have also found persuasive evidence of increasing permissiveness among successive generations – to the extent that in some respects at any rate the fundamental differences of the past between the young and their older counterparts seem gradually to be reducing. More worryingly for those interested in active citizenship and the virtues of democratic participation, we have found a clear trend towards less engagement in politics among the young, which appears to signify a generational change rather than just the life cycle at work. It could be partly explained by temporary phenomena, such as that British politics might itself be a little less engaging than it used to be and this will vary from time to time. And it is as well to remember that young adults have always been less interested in politics than their elders, partly no doubt because they have more pressing things on their minds – such as the remains of adolescence and the pursuit of partners, jobs and homes. Interest in politics still begins to assert itself more strongly as people become taxpayers, mortgage-holders and the like. After all, politics has always had at least as much to do with self interest as with altruism or a sense of citizenship. With all those caveats, however, it seems to be unalterably the case that active citizenship is a habit that needs to be acquired early in life and then reinforced, its absence becoming increasingly difficult to rectify as one gets older. So eventually this trend might well amount to a serious democratic deficit. People may increasingly discover that a failure to vote does not cause the world does not collapse, in which case why bother in the future? Even so, the young have have certainly not been abandoning politics in droves. And, as recent US experience testifies, electorates have the capacity to boost their electoral turnout in response to exciting new electoral phenomena. We are thus not yet witnessing the development of a large new breed of apathetic, inactive citizenry. On the contrary, the evidence we have examined shows no dramatic sea change, no cultural revolution, no crisis. Rather it reassuringly reveals a society simply going through its familiar business of adjusting itself to changing circumstances in a changing world.

467

21 MVCabral Cap. 21_Layout 1 6/24/13 10:00 AM Page 468

Roger Jowell & Alison Park

References Bone, M. 1997. «United Kingdom». In SIENA Group Monitoring Report: A Statistical Portrait of Youth Exclusion, eds. S. Lugaresi, G. Jones and M. Frustaci. Siena: Italian National Institute of Statistics. Butler, D., and D. Kavanagh. 1997. The British General Election of 1997. Basingstoke: Macmillan. General Household Survey: Living in Britain. 1995. London: The Stationary Office. Heath, A., and A. Park. 1997. «Thatcher’s children?». In British Social Attitudes: the 14th Report, eds. R. Jowell, J. Curtice, A. Park, L. Brook, K. Thomson and C. Bryson. Aldershot: Dartmouth. Industrial Society. 1997. Speaking Up, Speaking Out! The 2020 Vision Programme Research Report. London: The Industrial Society. Inglehart, R. 1990. Culture Shift in Advanced Industrial Society. Princeton, NJ: Princeton University Press. Jowell, R., C. Roberts, R. Fitzgerald, and G. Eva. 2007. Measuring Attitudes Cross-Nationally: Lessons from the European Social Survey. London: Sage Publications. Mirrlees-Black, C., P. Mayhew, and A. Percy. 1996. The 1996 British Crime Survey, Home Office Statistical Bulletin Issue 19/96. London: Home Office. Park, A., M. Phillips, and M. Johnson. 2004. Young People in Britain: The Attitudes and Experiences of 12 to 19 Year Olds, London: Department for Education and Skills. Park, A. 1995. «Teenagers and their politics». In British Social Attitudes: the 12th Report, eds. R. Jowell, J. Curtice, A. Park, L. Brook and D. Ahrendt. Aldershot: Dartmouth. Wilkinson, H., and G. Mulgan. 1995. Freedom’s Children, Demos Paper No. 17. London: Demos.

468

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 469

Pedro C. Magalhães

Capítulo 22

Legitimacy, disaffection, and dissatisfaction: trends and structure in attitudes towards portuguese democratic politics Introduction One of the prevalent narratives about the political attitudes of citizens in advanced democracies has revolved around the notion of «democratic dissatisfaction». According to this narrative, citizens’ support for democracy as a regime has remained at high levels in the last decades, suggesting the absence of a «legitimacy crisis», quite unlike some had feared in a not so distant past (Crozier et al. 1975). Instead, a crisis of a different sort seems to be in the making. It is one that is characterized by increasing popular dissatisfaction with the way democracy works among Western publics. The interpretation of such crisis has been mostly benign. As Norris puts it, the growth of «democratic dissatisfaction» is also a growth in the number of «critical citizens [...] who want to improve and reform the existing mechanisms of representative democracy» (Norris 1999, 21) and are «more actively engaged via alternative mechanisms of political expression» (Norris 2002, 222). «These trends in public opinion», it is argued, «can be expected to prove healthy if they fuel pressure for major institutional reforms designed to strengthen representative and direct democracy» (Norris 1999: 270). Thus, dissatisfied democrats «may well be the hope for the future of democratic governance» (Klingemann 1999, 56). Another way of retelling this would be to use Hirschman’s (1970) seminal tipology of «exit», «voice», and «loyalty.» Citizens in modern

469

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 470

Pedro C. Magalhães

democracies seem to be facing a decrease in the quality of democratic performance, or at least a degraded relationship between their expectations about democratic regimes and what those regimes seem to be able to deliver. However, without any obvious preferable and legitimate «exit» option available, they seem to have remained loyal to democracy and, thus, more likely to invoke their voice options, turning their dissatisfaction with the quality of democratic performance into political action aimed at expressing discontent, exerting influence, and seeking reform. In previous works (Magalhães 2004 and 2005), I examined these general claims and the extent to which they can be said to apply to the Portuguese case. Using data from the first Portuguese election study, I showed that, indeed, the Portuguese public combined widespread attitudes of support for democracy as a regime («legitimacy») with high levels of dissatisfaction democratic performance. Such dissatisfaction had, indeed, some behavioural correlates: the more dissatisfied citizens, while less likely to vote in the elections, were more likely to resort to both conventional and unconventional forms of political participation. However, I also found that another prevalent attitudinal syndrome among the Portuguese public was one of political disaffection, a «subjective feeling of powerlessness, cynicism and lack of confidence in the political process» (Di Palma 1970; Torcal 2001). Disaffection was defined both by an affective component – lack of interest towards politics - and by a cognitive component – beliefs about one’s inability to influence political decisions and office-holders’ unavailability to allow themselves to be influenced by citizens (Magalhães 2005: 978). Quite like what happened with dissatisfaction, disaffection was, by 2002, widespread among Portuguese citizens, as previous studies by Manuel Villaverde Cabral had already shown (Cabral 1997, 142-148; Cabral 2000, 156). But disaffection had much stronger behavioural correlates than dissatisfaction: it led to much lower exposure to political news through the media; much lower levels of political knowledge; and much lower levels of both conventional and unconventional participation. In other words, the expression of «voice» on the part of the Portuguese dissatisfied democrats coexisted with another response to political frustration, that revisions of Hirschman’s typology (Rusbult, Zembrodt and Gunn 1982) have defined as «neglect»: silence, inaction, abandonment, and reduced effort and attention in the relationship with the political realm. In this paper, I revisit these conclusions on the basis of an extended dataset provided by the continuity of the Portuguese election study since 2002, namely through two additional post-electoral surveys conducted in 2005 and 2009, complemented by earlier studies conducted in 1985 470

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 471

Legitimacy, disaffection, and dissatisfaction

(the Four Nations Study, focusing on Greece, Spain, Italy, and Portugal) and the 1999 European Values Study. More specifically, this paper has two main goals. First, it discusses whether the basic findings about the correlates of democratic legitimacy, dissatisfaction, and disaffection obtained using the 2002 data are supported by additional survey data, both from earlier and later periods. Second, with the use of the pooled data from various surveys conducted in different points in time, it is now possible to test new hypotheses about the causes of these attitudes, particularly in what concerns the detection of cohort, life-cycle and period effects, allowing us to determine whether any observable trends are the result of changes in the composition of the Portuguese electorate of, instead, if they are more likely to be related to macro-level changes in Portuguese society and politics.

Legitimacy, dissatisfaction, and disaffection The main finding of earlier works on Portugal was that, like in many other countries were similar data is available (Gunther and Montero 1997), legitimacy, dissatisfaction, and disaffection constituted three autonomous dimensions of Portuguese citizens’ political attitudes, at least on the basis of the 2002 election survey. The analysis of additional survey data confirms this finding. In Tables 22.1 and 22.2, we can see the results of factor analyses, per survey, where the dimensionality of these attitudes is explored. One difficulty we face is that not all questions were available in all surveys. Nonetheless, the findings confirm the general picture that had emerged from the analysis of the 2002 survey. First, in all surveys, we can see that internal inefficacy, external inefficacy, and disinterest in politics constitute a single factor. In what concerns dissatisfaction, there is one survey – 2005 – where dissatisfaction with the way democracy works, instead of forming a single factor with evaluations of government or the economy, ends up clustered with attitudes we hypothesized would capture regime legitimacy, support for democracy and support for political parties. However, it loads much more weakly in that factor than the remaining variables, and constitutes the single exception within our surveys. Finally, support for democracy and support for parties emerge as a third dimension of political attitudes. In 1999, when we have no question on support for parties, support for democracy loads more strongly on a second factor capturing dissatisfaction. However, here, again, the factor 471

.76

.65

.09

.20

–.11

472

Explained variance

27.51%

23.16%

18.65%

.01

.84

.74

.35

–.07

.76 .66

–.09 .09

–.30

.35

.03 –.05

17.86%

–.01

.19

–.25

.76

.74

–.36

.28

.04

Factor 2

17.28%

.76

.64

.61

.06

–.08

–.03

.10

–.10

Factor 3

2002: PT Election Study Factor 1

Negative evaluation of government performance 23.82%

–.13

.66

.64

Factor 2

1999: EVS Factor 1

Negative retrospective evaluation of economy

Dissatisfaction with democracy

32.25%

.76

–.08

Support for democracy

Support for parties

.77

.71 .02

Disinterested in politics

.08

.67

–.03

.82

External inefficacy («Politicians don’t care»)

Factor 2

Internal inefficacy («Politics too complicated»)

Factor 1

1985: Four Nations

Table 22.1 – Factor analysis, Varimax rotation (1985-2002)

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 472

Pedro C. Magalhães

.29 .04

Support for parties

Dissatisfaction with democracy

Negative retrospective evaluation of economy

473

Explained variance

20.66%

–.05

.76

.19

Support for democracy

Negative evaluation of government performance

.73

.58 –.22

Disinterested in politics

18.12%

.06

.07

.48

–.27

.11

–.10

.78 .74

Internal inefficacy («Politics too complicated»)

External inefficacy («Politicians don’t care»)

Factor 2

17.07%

.77

.79

.21

.03

.08

.07

.10

–.05

Factor 3

2005: PT election study Factor 1

Table 22. 2 – Factor analysis, Varimax rotation (2005-2009)

21.07%

.77

.73

.67

–.09

–.03

.02

.32

–.09

Factor 1

–.04

.02

–.20

.75

.79

–.33

.08

.06

Factor 3

17.90% 16.73%

.09

–.13

.23

.07

–.13

.58

.56

.83

Factor 2

2009: PT election study

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 473

Legitimacy, disaffection, and dissatisfaction

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 474

Pedro C. Magalhães Figure 22.1 – Support for democracy as a regime 100%

50%

0% 1985

1999

2002

2005

2009

Figure 22.2 – Dissatisfaction with the way democracy works 100%

50%

0% 1985

1999

2002

2005

2009

loading is small (.35) and is only marginally higher than that obtained for factor 1. In other words, analysis of the five surveys – from 1985 to 2009 – suggests support for the notion that, throughout this period lasting for almost a quarter of a century, legitimacy, dissatisfaction, and dis474

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 475

Legitimacy, disaffection, and dissatisfaction

affection constitute three independent dimensions of the way the Portuguese have related to the realm of democratic politics. The second major finding of earlier works on Portugal was that, on a purely descriptive level, support for democracy as a regime has been strong among the Portuguese citizens, but has coexisted with equally strong levels of disaffection and dissatisfaction. Figure 22.1 shows the percentages of respondents in each survey that declared that democracy was the «best regime» (vis-à-vis the alternative answers of «not making a difference» and of «authoritarian regimes being sometimes better for a country like ours»). Figure 22.2 plots the percentages of respondents who declared they were «somewhat» or «very dissatisfied» with the way democracy works in Portugal. Finally, Figure 22.3 analyses disaffection, displaying the percentages of citizens who declare little or no interest in politics and agreement with the sentences «Political issues are so complicated I can’t understand them» (internal inefficacy) and «Politicians don’t care about what people like me think». Figure 22.1 shows that, after an apparent increase between 1985 and 1999, support for democracy has remained at relatively high levels (between 81 and 87 percent of respondents) and shown a trendless fluctuation since, at least, 1999. That democratic legitimacy should probably be seen as independent from satisfaction or dissatisfaction with democracy results quite clearly from an observation of Figure 22.2, that plots the percentage of «somewhat» or «very» dissatisfied respondents. From 1999 to 2002 (the question was absent from the 1985 survey), it seems beyond doubt that levels of dissatisfaction have increased quite sharply. Since 2002, it has continued to increase, although less sharply, to the point where, by 2009, the majority of Portuguese citizens expressed dissatisfaction with the performance of their democratic regime. Figure 22.3 plots levels and trends in our indicators of disaffection since 1985. Interpretation requires great care, as the scales used are not exactly similar for all variables throughout the entire period (in the case of internal and external inefficacy, a four-point scale was used up to 2002, and a five-point scale ever since). In spite of this, the results suggest that levels of disaffection have dropped since 1985. However, two things need to be noted. On the one hand, clearly more than half (or close to half, in the case of interest) of citizens continued to display strong feelings of disengagement vis-à-vis politics and the perception that their views and interests are not taken into account by political elites. On the other hand, we should be wary of describing what has happened in the last two decades and a half as a 475

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 476

Pedro C. Magalhães Figure 22.3 – Political disaffection 100%

50%

0% 1985

1999

2002

2005

2009

Little or no interest in politics «Political issues are so complicated I can’t understand them» (agreement) «Politicians don’t care what people like me think» (agreement)

secular trend of decline in disaffection. Changes since 2002 have been modest in one of the indicators and, in all cases, there seems to have been a new increase in disaffection from 2005 to 2009. We will have more to say about this as we advance to a multivariate analysis of these trends. In sum, a clear majority of Portuguese citizens perceive no viable alternatives to democracy as a regime, a phenomenon that seemed to be perfectly consolidated by the end of the last century. On the other hand, however, that widespread attitude coexists with two other prevalent attitudes: a high (and increasing) level of dissatisfaction with the way democracy works; and prevailing disaffection vis-à-vis the political realm.

The social correlates of legitimacy, dissatisfaction, and disaffection Earlier works on the Portuguese case had revealed important differences in the way these attitudes were socially rooted. Democratic legitimacy seemed to be socially widespread and diffuse, and mostly unrelated 476

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 477

Legitimacy, disaffection, and dissatisfaction

to ideological and partisan preferences. There was very little that sociodemographic variables and measures of basic political predispositions could do to help predict whether a particular individual was likely to support democracy or not. Dissatisfaction was somewhat different from this point of view, as it seemed to be related to party identification – partisans of the incumbent party were less dissatisfied – and positively related to education: greater levels of education were linked to higher levels of dissatisfaction, a finding that lent support to the «critical citizens» hypothesis. Finally, disaffection was clearly the dimension of citizens’ views about democratic politics that was most firmly rooted in social cleavages: disaffection was clearly stronger among women, rural populations, poorer, and less educated respondents (Magalhães 2004 and 2005). The availability of additional surveys allows us to address this issue in different way. On the one hand, unfortunately, not all of these surveys have all the variables we were able to use in 2002 – namely, party ID, habitat, and post-materialism. On the other hand, however, the ability to use of pooled dataset, and especially one that spans two decades and a half, allows us to systematically address an issue that we were unable to address previously: the potential co-existence of life-cycle, cohort, and period effects. Life-cycle effects concern the possibility that people’s views about politics change as they age. Cohort effects concern the possibility that differences between individuals are explained by the fact that they grew up and were socialized in different circumstances. Finally, period effects concern the possibility that individuals differ on the basis of the specific context in place during which their attitudes were measured. With cross-sectional data, the three variables are perfectly related: age (life-cycle) is equal to the subtraction of year of birth (cohort) to current year (period). However, if a pooled dataset is available where observations were obtained in different moments in time, we can explore it to ascertain the different effects. First, we identified, in each sample, three cohorts. The first is composed by all individuals who were born before 1949. This means that, by 1974, the date of the initiation of the Portuguese transition to democracy, they were at least 26 years old. If we consider the ages of 10 to 25 as the crucial period in one’s political socialization, this cohort is characterized by having been politically socialized strictly under a non-democratic regime. The second cohort is composed by those individuals who were born after 1972. By 1982, they were less than ten years old. In other words, their crucial period of political socialization took place exclusively in a context where democracy was fully consolidated. The third cohort, 477

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 478

Pedro C. Magalhães

our reference category, is composed by the remaining group of individuals. Obviously, in each cross-sectional sample, the age of respondents is perfectly correlated with our cohort dummy variables. However, in the pooled sample, people belonging to the same cohort throughout the different surveys will be of different (increasing) ages. Thus, we can estimate a model where age dummies for cohorts and age allow us to distinguish between life-cycle and cohort effects. Furthermore, by introducing «year of survey» dummy variables, we can also estimate period effects, i.e, whether people interviewed in different points in time are likely to display different attitudes independently both of their age and of the cohort to which they belong.

Legitimacy Table 22.3 shows the result of such a model where the dependent variable takes the value of 1 if respondents believe that democracy was better than the alternatives and 0 otherwise. We estimated it by means of a binary logistic regression with robust standard errors. The model includes not only age, cohort and time effects, but also a series of socio-demographic covariates and a measure of left-right ideology (and also its square, to capture curvilinear effects). We can see immediately that only one of the socio-demographic covariates are statistically significant here: university graduates are more likely to support democracy than the remaining individuals. Furthermore, there is a relationship between ideology and democratic legitimacy, with individuals who place themselves at either end of the scale (ideological extremists) to display lower support for democracy. Finally, one of our cohort dummies and all time dummies are significant. In order to provide a more intuitive picture of the relationship (and of the size of that relationship) between these variables, I created graphs plotting the predicted probability of supporting democracy under different values of each main independent variable and as all other independent variable are kept constant at their mean values. In other words, we can visualize the effect of each particular independent variable in the likelihood of supporting while the effects of other variables are controlled for. Figure 22.4 shows the relationship between education and democratic legitimacy. As we can see, although individuals with completed university education display higher levels of support for democracy when all other variables are taken into account, the difference is modest: a mere 0.04 (4 percentage points) increase in probability. 478

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 479

Legitimacy, disaffection, and dissatisfaction Table 22.3 – The determinants of democratic legitimacy Democracy is best system (0,1)

Gender Age Married Secondary University Income Working Church attendance Left-right self–placement Left-right self-placement squared Pre-transition generation (born before 1949; more than 25 years old by 1974) Post-consolidation generation (born after 1972; less than 10 years old by 1982) 1985 1999 2002 2005 Constant

.04 (.10) .004 (.006) .05 (.11) –.001 (.14) .51 (.21)* .07 (.06) –.01 (.05) –.18 (.15) 1.48 (.62)* –2.19 (.57)*** .10 (.20) –.59 (.18)** –.59 (.18)** .48 (.19)* .11 (.22)*** 1.20 (.19)*** 1.62 (.36)***

Data: 1985, 1999, 2002, 2005, and 2009 surveys Valid N = 4567 Pseudo r 2 = .08

Figure 22.5 provides the same information for the relationship between ideological self-placement and legitimacy. Clearly, those who place themselves ideologically away from the extremes tend to lend greater support for democracy, particularly in comparison with those who place themselves further to the right. However, no predicted value falls below .75, meaning that, even among the extremes, there is an overwhelmingly strong tendency to support democracy vis-à-vis its alternatives. As we saw in the Table 22.3, there is no relationship between age and democratic support, if we conceive age as capturing one’s position in the life-cycle. The same is not the case if we focus on age cohorts. As Figure 22.6 suggests, the individuals whose crucial period of political socialization took place before the democratic transition are no different from those who were born between 1949 and 1971. However, individuals who were exclusively socialized under a fully consolidated democracy do display different features: strikingly, they are less likely to perceive democracy to be superior to its alternatives. To be sure, the difference is not very large, and support for democracy remains strong among that cohort. 479

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 480

Pedro C. Magalhães Figure 22.4 – Education and democratic legitimacy (predicted probabilities) 1.00

0.75

0.50

0.25

0 Less than secondary

Secondary

University

Highest completed education

Figure 22.5 – Left-right self-placement and support for democracy (predicted probabilities) 1.00

0.75

0.50

0.25

1

2

3

4

5

6

7

Left-Right self placement

480

8

9

10 Extreme Right

0 Extreme Left

0

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 481

Legitimacy, disaffection, and dissatisfaction Figure 22.6 – Cohort effects and democratic legitimacy (predicted probabilities) 1.00

0.75

0.50

0.25

0 Born before 1948

Born between 1949 and 1971

Born after 1972

Cohorts

However, this finding is interesting in and of itself, as it can conceivably be related to a finding in a previous study, where we saw that higher levels of post-materialism tended to generate lower support for democracy (Magalhães 2005). Since we were unable to control for that variable in the pooled sample, it is possible that this is one of the mechanisms through this cohort effect is taking place.

Dissatisfaction I conducted a similar analysis conducted for dissatisfaction. The Table (22.A1) with the regression results – in this case, an ordinal logistic regression, given the ordinal nature of our dependent variable, a four-point scale – can be found in the appendix. We focus exclusively now on those variables that proved to be statistically significant. Three major findings emerge. First, contrary to what we had detected when we focused exclusively on the 2002 survey, there is no evidence that more educated people tend to be more dissatisfied with democracy. In fact, when we used the pooled dataset and control for age, cohort, and period effects, such relationship is inverted: more educated people display a lower (rather than 481

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 482

Pedro C. Magalhães Figure 22.7 – Education and dissatisfaction with democracy (predicted probabilities of «somewhat» + «very dissatisfied») 1.00

0.75

0.50

0.25

0

Less than secondary Secondary Highest completed education

University

Figure 22.8 – Left-right self-placement and dissatisfaction with democracy (predicted probabilities of «somewhat» + «very dissatisfied») 1.00

0.75

0.50

0.25

1

2

3

4

5

6

7

Left-Right self placement

482

8

9

10 Extreme Right

0 Extreme Left

0

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 483

Legitimacy, disaffection, and dissatisfaction

higher) propensity to share feelings of dissatisfaction with democracy, as we can see in Figure 22.7. Gender also produces a significant – albeit minor – effect: even after controls, the probability than a woman answers that she is «somewhat» or «very dissatisfied» with democracy is 0.04 higher (4 percentage points) than that of a man. Ideology is also a consequential variable here: again, like in what concerns (lack of) democratic legitimacy, levels of dissatisfaction tend to be higher at the extremes of the left-right continuum, as we can see in Figure 22.8. Generally speaking, however, the pseudo r 2 of the dissatisfaction model, .04, is extremely low, even lower than that of the legitimacy model (.08), suggesting that the variables we have been using to explain these attitudes do not to a great job at predicting how people are likely to position themselves in this respect, probably, to a large extent, due to the absence of party identification in the model.

Disaffection Disaffection presents quite a different picture from this point of view. In the appendix, Table 22.A2 displays the results of ordinal and binary logistic regressions where a scales of disinterest is treated as a dependent variable and internal and external efficacy are converted, for purposes of longitudinal comparability, into dummy variables, with people who position themselves in the two highest points of the scale (agreement) coded as 1. Education and income both help explaining the likelihood of exhibiting feelings of political disaffection. In what concerns education, as we can see in Figure 22.9, individuals with lower levels of education attainment tend to display much higher levels of disinterest and inefficacy. For example, the difference between college graduates and individuals without secondary education in the probability of providing the two highest points in the disaffection scales amounts to 28 percentage points in the case of internal inefficacy and 23 in the case of disinterest, dropping to a smaller (but still significant) 14 points in the case of external inefficacy. Income is also, for the first time in the analyses made so far, highly significant. In comparison with individuals at the highest level of income, those at the lowest levels are more likely to express disinterest in politics (a 28 percentage points difference), to agree with notion that «politics is too complicated» (a 37 points difference) and to agree with the notion that «politicians don’t care» about what they think (a 18 percentage points difference). And women are also much more likely than men to exhibit 483

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 484

Pedro C. Magalhães Figure 22.9 – Education and disaffection (predicted probabilities of answering in the two highest points of the scales) 1.00

0.75

0.50

0.25

0

Less than secondary Secondary Highest completed education Disinterest

Internal inefficacy

University

External inefficacy

disinterest vis-à-vis politics and feelings of internal inefficacy, even when education and income are controlled for. Finally, the search for life-cycle and cohort effects does not produce strong results. In the cases of disinterest and internal inefficacy, we detect a life-cycle effect through which, as individuals age, their disaffection visà-vis politics also increases. Cohort effects are only relevant in the case of disinterest: controlling for education, income, gender, life-cycle and other effects, the «post-transition» generation displays signs of greater disengagement with politics than previous generations. However, none of these effects are particularly strong. In other words, disaffection seems to be powerfully driven by resources, with education and income producing the strongest effects in the model.

The behavioural correlates of dissatisfaction and disaffection The third major finding of previous studies on Portugal, besides confirming the dimensionality of political attitudes vis-à-vis democracy and determining the different socio-demographic correlates of those dimen484

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 485

Legitimacy, disaffection, and dissatisfaction

sions, concerned the behavioural consequences of dissatisfaction and disaffection. Were dissatisfied citizens resorting more to «voice» that those who expressed no such dissatisfaction? And what about the behavioural consequences of disaffection: were they similar or different to those of dissatisfaction, larger or smaller? What we found, based on the 2002 survey, was that, indeed, dissatisfaction seemed to be linked to lower levels of electoral participation and higher levels of other forms of political action. However, such relationship was not very strong, and was dwarfed by the strength with which disaffection was correlated with behaviors. High levels of disaffection resulted in much weaker levels of exposure to the media and lower resort to any form of political participation, including voting and all other forms of both conventional and unconventional action. Do these findings stand in light of our additional surveys? I conducted binary and ordinal logistic regressions where dissatisfaction with democracy and a standardized index of disaffection (the mean value, for each individual in each survey, of the disinterest, internal inefficacy, and external inefficacy) variables are used as explanatory variables of three sorts of behavioural phenomena. First, indicators of exposure to political news, either by television, radio or newspapers. Second, indicators of what one may call «representational participation», i.e., forms of participation that have elected representatives as the their main target. These include voting and contact with a politician. Finally, indicators of extra-representational participation, i.e., forms of political action that «do not have representative officials as their main target of influence» (Teorell, Torcal and Montero 2007, 341). These include, in our case, whether respondents attended a protest or demonstration, wrote a petition, or wrote a letter to a newspaper. Figure 22.10 displays the predicted probability of obtaining political news through newspapers, radio and TV three days a week or more, depending on the values of our dissatisfaction and disaffection variables. «Low», in this cases, signifies the mean minus one standard deviation, while «high» represents the mean plus one standard deviation. As we can see, dissatisfaction has no relationship with the extent to which one is more likely to seek political information through the media. In contrast, disaffection clearly does. Individuals with high levels of disaffection are significantly less likely to end up being exposed to political news, an effect that is particularly large in the case of newspapers. Figure 22.11 looks at «representational» forms of participation, including voting in the most recent election and having contacted a politician. Again, dissatisfaction is unrelated to this form of participation. And 485

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 486

Pedro C. Magalhães Figure 22.10 – Dissatisfaction, disaffection, and exposure to political news Newspapers: 3 D/Week or more Low disaffection

0,5

High disaffection

0,25

Low dissatisfaction

0,38

High dissatisfaction

0,41

Radio: 3 D/Week or more Low disaffection

0,32

High disaffection

0,18

Low dissatisfaction

0,26

High dissatisfaction

0,25

TV: 3 D/Week or more Low disaffection

0,87

High disaffection

0,67

Low dissatisfaction

0,82

High dissatisfaction

0,8 0

0,5

1

again, the same does not occur with disaffection: citizens exhibiting high levels of disaffection are less likely to vote and less likely to contact politicians. Figure 22.12 now looks at «extra-representational» forms of participation, including participation in protests and demonstrations, signing petitions and writing letters to newspapers. One aspect of the results should look, by now, unsurprising: disaffection decreases, again, the likelihood of participation. But unlike what occurred with either media exposure or representational participation, dissatisfaction is, here, consequential. In comparison with individuals with low levels of dissatisfaction, highly 486

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 487

Legitimacy, disaffection, and dissatisfaction Figure 22.11 – Dissatisfaction, disaffection, and representational participation Turnout in Leg. Elections Low disaffection

0,89

High disaffection

0,78

Low dissatisfaction

0,86

High dissatisfaction

0,84

Contacted a Politician Low disaffection

0,09

High disaffection

0,03

Low dissatisfaction

0,05

High dissatisfaction

0,06 0

0,5

1

dissatisfied citizens, even when controls are added for socio-demographic features and levels of disaffection, are more likely to engage in extra-representational forms of participation. In what concerns demonstrations, the different is small and not-significant. But dissatisfaction increases the likelihood of having signed a petition and of having written a letter to a newspaper. In the latter case, although the baseline figures are quite small, the probability for highly dissatisfied citizens is twice as large as it is for low dissatisfaction citizens. In sum, a look at the behavioural consequences of our two attitudinal syndromes – dissatisfaction and disaffection – generates several interesting conclusions. On the one hand, disaffection – that seems to characterize the majority of the Portuguese population – contributes to drive down all forms of cognitive mobilization and political participation. On the other hand, however, dissatisfaction is not deprived of behavioural consequences either. However, such consequences seem to be limited to forms of participation that dispense with efforts to influence elected officials directly. Besides, such consequences have a positive sign: more dissatisfied citizens are more likely to engage in extra-representational forms of participation. 487

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 488

Pedro C. Magalhães Figure 22.12 – Dissatisfaction, disaffection, and extra-representational participation Attended Protest/Demonstration Low disaffection

0,11

High disaffection

0,04

Low dissatisfaction

0,06

High dissatisfaction

0,08

Signing a Petition Low disaffection

0,26

High disaffection

0,11

Low dissatisfaction

0,14

High dissatisfaction

0,21

Wrote Letter to Newspaper Low disaffection

0,05

High disaffection

0,02

Low dissatisfaction

0,02

High dissatisfaction

0,04 0

0,5

Secular trends? In the section «Legitimacy, dissatisfaction, and disaffection», we showed aggregate level data displaying trends observable from 1985 until 2009 in the levels of democratic legitimacy, dissatisfaction, and disaffection in Portugal. Basically, we saw that democratic legitimacy seemed to have increased from 1985 to 1999, having remained relatively stable since then. Dissatisfaction displayed a strong upward trend since at least 1999. And our disaffection indicators provided some contradictory evidence. 488

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 489

Legitimacy, disaffection, and dissatisfaction Figure 22.13 – Trend in disaffection with democracy 1.00

0.75

0.50

0.25

0 1985

1999

2002

2005

2009

Year of survey

Levels of interest and, to a lesser extent, internal efficacy, have shown signs of increase since the mid-1980s. However, external (in)efficacy seems to have remained mostly stable. And at the aggregate level, from 2005 to 2009, there are signs of an increase in all disaffection indicators. The reasons for such changes throughout such a long period of time can be many. On the one hand, changes in the composition of Portuguese society in terms of education, income, ideological placements and the overall weight of different cohorts can, as we saw early on, be of relevance to aggregate levels, as they seem to have important individuallevel consequences. On the other hand, however, such changes can be occurring independently, or «above and beyond» compositional factors. Are there unspecified macro-level factors that might be driving changes through time in political attitudes independently of individual-level and compositional effects? In other words, are there period effects we can identify? The regressions used to estimate individual-level correlates of legitimacy, dissatisfaction, and disaffection can also be used to estimate these period effects, which we can estimate on the basis of the year dummies’ coefficients. These coefficients tell us to what extent levels of the three types of independent variables have changed when we control for individual-level features of individuals and, thus, the overall composition of 489

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 490

Pedro C. Magalhães Figure 22.14 – Trends in political disaffection 1.00

0.75

0.50

0.25

0 1985

1999

2002

2005

2009

Year of survey Desinterest

Internal inefficacy

External inefficacy

each survey sample and the way it has changed from one survey to the next. Figure 22.14 shows the predicted probability of being dissatisfied with democracy in each year when controlling for individual-level variables. No novelty here: the rise of dissatisfaction is confirmed and shown not to be a function of any major change in sample composition. Figure 22.14 shows the same trends for our indicators of political disaffection. In a previous study (Magalhães 2005), it was argued that the slow decline in the levels of disaffection observed in Portugal since 1985 had two major components. The first was an increase in levels of education, which, has we had seen there and confirmed here, are one of the major factors that increases individuals’ engagement with politics and perceptions of political efficacy. The second was an unspecified component that was driving a decline of disaffection through time, independently of education. Our present analysis does not entirely disconfirm the previous findings. Although indicators of external inefficacy did not continue to decline after 1999, levels of disinterest and internal inefficacy had reached by 2005, their lowest levels ever, even after controlling for any compositional effects (including individual levels of education).

490

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 491

Legitimacy, disaffection, and dissatisfaction Figure 22.15 – Trend in democratic legitimacy 1.00

0.75

0.50

0.25

0 1985

1999

2002

2005

2009

Year of survey

However, the results also caution us against assuming that such decline is inevitable: by 2009, all indicators of disaffection had again significantly increased. Finally, figure 22.14 shows the most intriguing result. As we had seen previously just looking exclusively at aggregate results, there are clear signs of an increase in democratic legitimacy from 1985 to the late 1990s and the early 20th century. The novelty here, however, is that there has been a drop in support for democracy from 2005 to 2009. This drop is statistically significant and it has occurred independently of any of the major aspects of the socio-demographic and ideological composition of the samples. We cannot exclude the possibility that such variation is a function of particular features of the survey, coverage and response rates, and other omitted variables. However, the fact that the regression controls for several individual socio-demographic features suggest that, at least, this decline is not due to sample representativeness problems, at least from the point of view of basic socio-demographic composition.

491

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 492

Pedro C. Magalhães

Conclusion Our revisit of the findings of the previous studies, conducted on the basis of the 2003 survey, suggests a few basic conclusions. The first is that the characterization of the political attitudes of the Portuguese vis-à-vis democratic politics as consisting on high support for the regime, high levels of dissatisfaction, and high levels of disaffection continues to be true. In the case of dissatisfaction, that trend has become even clearer since 2002. In the case of disaffection, in spite of indications of a decline since 1985, such trend is not clear and may even have been reversed since 2005. And in the case of democratic legitimacy, more than 4 out of 5 Portuguese are supporters of democracy vis-à-vis other regimes. The second main conclusion is that, while legitimacy and dissatisfaction are largely diffuse attitudes, disaffection is more strongly rooted in social cleavages. Education, income, and, to a lesser degree, gender and the position in the life-cycle, are clearly consequential to the extent to which individuals are likely to feel disengaged from politics and share feelings of political inefficacy. The third main conclusion relates to the consequences of dissatisfaction and disaffection. One of the most recurrent findings about Portugal in comparative research concerns the exceptionally low levels of political participation, well below even the average of Southern or Eastern European countries (Torcal and Magalhães 2010). So does Portugal escape the syndrome described in the literature, through which high levels of «democratic dissatisfaction» should lead to greater «voice» in the public realm? The answer is no. As we have seen, the Portuguese dissatisfied democrats, while no more or less likely to seek political information in the media or to exert influence through representational channels, are indeed more likely to resort to extra-representational forms of participation. However, this movement in the direction of greater voice is strongly countervailed by the high levels of disaffection, which leads to disengagement in all modes of cognitive mobilization, individual or collective political action. And although one might expect that the increase in the cognitive abilities and resources of citizens might contribute to a decrease of disaffection through time, there are signs that other unspecified factors are contributing to keep disaffection at high levels. Finally, we found that support for democracy as a regime has declined from 2005 to 2009. We should not rush to conclusions on the basis of just two surveys. But it is interesting to note how an attitude that was thought to be unconditional upon government performance and economic outputs 492

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 493

Legitimacy, disaffection, and dissatisfaction

has exhibited some amount of change. In a forthcoming study (Magalhães 2013), I explore the relationship between support for democracy and good governance, and suggest that a decline in the quality of governance in Portugal may be linked to this somewhat unexpected change.

References Cabral, Manuel Villaverde. 1997. Cidadania Política e Equidade Social em Portugal. Oeiras: Celta. Cabral, Manuel Villaverde. 2000. «O exercício da cidadania política em Portugal». In Trabalho e Cidadania, eds. Manuel Villaverde Cabral, Jorge Vala and João Freire. Lisbon: Imprensa de Ciências Sociais. Crozier, Michel et al. 1975. The Crisis of Democracy: Report on the Governability of Democracies to the Trilateral Commission. New York, NY: New York University Press. Di Palma, G. 1970. Apathy and participation: Mass politics in western societies. Nova Iorque, NY: Free Press. Hirschman, Albert O. 1970. Exit, Voice, and Loyalty: Responses to Decline in Firms, Organizations and States. Cambridge, MA: Harvard University Press. Klingemann, H.D. 1999. «Mapping political support in the 1990s: A global analysis». In Critical Citizens: Global Support for Democratic Government, ed. Pippa Norris. Oxford: Oxford University Press. Magalhães, Pedro C. 2004. «Democratas, descontentes e desafectos: as atitudes dos portugueses em relação ao sistema político». In Portugal a Votos: As Eleições Legislativas de 2002, eds. A. Freire, M.C. Lobo and P.C. Magalhães. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Magalhães, Pedro C. 2005. «Disaffected democrats: Political attitudes and political action in Portugal». West European Politics 28 (5): 973-991. Magalhães, Pedro C. 2013. «Government effectiveness and support for democracy». Working paper. Montero, J.R., R. Gunther, and M. Torcal. 1997. «Democracy in Spain: legitimacy, discontent, and disaffection.» Studies in Comparative International Development, 32 (3): 124-160. Norris, Pippa. 1999. Critical Citizens: Global Support for Democratic Government. Oxford: Oxford University Press. Norris, Pippa. 2002. Democratic Phoenix: Reinventing Political Activism. Cambridge: Cambridge University Press. Rusbult, C.E., I.M. Zembrodt, and L.K. Gunn. 1982. «Exit, voice, loyalty, and neglect: Responses to dissatisfaction in romantic involvements». Journal of Personality and Social Psychology 43 (6): 1230. Teorell, J., M. Torcal, and J.R. Montero. 2007. «Political participation». In Citizenship and Involvement in European Democracies: A Comparative Analysis, eds. Jan W. Van Deth, José Ramón Montero, and Andreas Westhold. London: Routledge. Torcal, Mariano. 2001. «La desafección en las nuevas democracias del sur de Europa y Latinoamérica». Instituciones y desarrollo, (8) 7.

493

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 494

Pedro C. Magalhães Torcal, Mariano, and Pedro C. Magalhães. 2010. «La cultura política del Sur de Europa: un estudio comparado en busca de su excepcionalismo». In La Ciudadanía Europea en el Siglo XXI. Estudio Comparado de sus Actitudes, Opinión Pública y Comportamiento Políticos, ed. Mariano Torcal. Madrid: CIS.

494

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 495

Legitimacy, disaffection, and dissatisfaction

Appendix Table 22.A1 – The correlates of dissatisfaction Dissatisfaction with democracy

Gender Age Married Secondary University Income Working Church attendance Left-right SP Left-right SP sq Pre-transition generation Post-consolidation generation 1999 2002 2005

.20 (.07)** –.01 (.01) –.04 (.07) –.12 (.09) –.28 (.11)* –.05 (.04) –.01 (.26) –.12 (.10) –1.57 (.41)*** 1.47 (.30)*** .12 (.14) –,19 (.13) –1.83 (.13)*** –.60 (.11)*** –.30 (.10)** Data: 1999, 2002, 2005, and 2009 surveys Valid N = 3546 Pseud r 2 = .04

495

22 MVCabral Cap. 22_Layout 1 6/24/13 10:01 AM Page 496

Pedro C. Magalhães

Table 22.A2 – The correlates of disaffection Disinterest in politics Internal inefficacy External inefficacy 1985-2009 1985-2009 1985-2009

Gender Age Married Secondary University Income Working Church attendance Left-right SP Left-right SP sq Pre-transition generation Post-consolidation generation 1985 1999 2002 2005

.56 (.06)*** .01 (.004)* –.14 (.06)* –.65 (.08)*** –.96(.10)*** –.24 (.03)*** .01 (.02) .11 (.08) 1.55 (.36)*** –1.28 (.34)*** –.39 (.11)** .32 (.10)** 2.02 (.12)*** 1.16 (.12)*** .31 (.11)** –.05 (.10) Valid N = 4854 Pseud r 2 = .11

496

.52 (.07)*** .01 (.004)* .19 (.09)* –.73 (.09)*** –1.35 (.12)*** –.33 (.04)*** –.02 (.03) .38 (.10)*** .28 (.43) .10 (.41) –.07 (.14) .14 (.12) .65 (.14)**+ .23 (.14) .41 (.13)** –.29 (.12)*

.12 (.07) .005 (.005) .08 (.08) –.36 (.10)*** –.73 (.12)*** –.21 (.04)*** –.01 (.03) .06 (.11) –.11 (.47) .05 (.45) .06 (.16) .12 (.13) .25 (.16) –.55 (.15)*** –.52 (.14)*** –0,48 (.13)***

Valid N = 4739 Valid N = 4663 Pseud r 2 = .14 Pseud r 2 = .05

23 MVCabral Cap. 23_Layout 1 6/24/13 10:02 AM Page 497

Diego Palacios Cerezales

Capítulo 23

¿Despotismo administrativo o Estado débil? Policía, fiscalidad y sus efectos en la cultura cívica portuguesa Una de las líneas de investigación de Manuel Villaverde Cabral (MVC) durante los últimos 20 años se ha ocupado por las relaciones entre la ciudadanía política y la equidad social en Portugal, siempre en una perspectiva de comparación internacional. Como rasgo específico de la configuración de la ciudadanía portuguesa, en 1997 identificó la remarcable distancia al poder en la que vivía buena parte de la población. Constató también que los recursos que estaban distribuidos de manera más desigual entre los portugueses no eran los bienes económicos, sino el poder social y político (Cabral 1997, 2003). Siguiendo su interpretación, después de dos décadas de democracia, en Portugal prevalecía, de modo más generalizado que en otros países europeos, una cultura política caracterizada por el «familismo amoral»: [...] ese conjunto de representaciones y prácticas que favorece, – en el contexto formado por grupos domésticos rurales de escasos recursos socioculturales y una economía casi autárquica orientada a la maximización del rendimiento familiar – que las relaciones con el exterior del grupo doméstico, y en especial con el Estado y el mercado de trabajo, tomen una forma vertical y asimétrica (de dependencia clientelar) en detrimento de relaciones horizontales organizadas y estables, particularmente la participación cívica, el asociativismo y la movilización colectiva, en suma, los dispositivos convencionales del ejercicio de los derechos de ciudadanía política [Cabral 2006].

En paralelo a lo que le sucedió a Robert Putnam en Making Democracy Work, la constatación de la relativa independencia de las variables de la 497

23 MVCabral Cap. 23_Layout 1 6/24/13 10:02 AM Page 498

Diego Palacios Cerezales

cultura política respecto a los determinantes socioeconómicos, le llevó a buscar una explicación histórica; en el caso de MVC, eso significaba vestir de nuevo los ropajes del historiador y buscar una explicación en el «horizonte histórico-fenomenológico del Estado portugués». Rechazando la idea de que hubiera una peculiaridad cultural de lo portugués que pudiera ser explicativa de la baja propensión de los ciudadanos portugueses a movilizarse y participar en política, propuso que la variable independiente estaría en la configuración histórica del Estado y la administración pública, una configuración que caracterizó como «autoritarismo de Estado» y «despotismo administrativo». El familismo amoral, si bien podría corresponderse en sus orígenes remotos con situaciones de privación económica, se habría mantenido y reproducido por la configuración excluyente de la participación y la acción colectiva, monopolizadas por las elites.1 En este texto propongo contribuir a esa investigación histórico-fenomenológica sobre el Estado portugués y sus efectos sobre la configuración a largo plazo de la cultura cívica de los portugueses. Sin embargo, para hacerlo desplazaré algunos de los elementos de la explicación adelantada por MVC y recurriré a las variables del desarrollo político que en distintas tradiciones analíticas próximas han sido denominadas «penetración del Estado» (Binder, Pye, Verba, LaPalombara, Coleman y Weyner 1971), «grado de gobierno» (Huntington), «poder infraestructural» (Michael Mann) o «capacidad del Estado» (Tilly) (Huntington 1968; Binder et al. 1971; Einsenstadt y Rokkan 1973; Tilly 1974; Mann 1984; Tilly 2006). Se trata en este ejercicio de proponer un esquema muy estilizado de relaciones históricas entre administración pública, elites sociales y conjunto de la ciudadanía; en suma, de realizar un análisis del desarrollo político de Portugal e identificar algunas variables clave que pueden estar detrás de la formación de un rasgo dominante de esa cultura cívica: la distancia al poder. Mi principal desplazamiento respecto la explicación que propone MVC está en poner el acento en la debilidad del Estado, en vez de en su carácter despótico. Esa debilidad fue fundamental para impedir que el Estado recaudase impuestos y tuviese recursos para el desarrollo de políticas públicas, como la educación, que a largo plazo podrían haber capacitado a la ciudadanía para el ejercicio de sus derechos. Pero sobre todo, fue una debilidad provocada y aprovechada por las élites sociales terratenientes,

1 Este autor entiende el «familismo amoral», en la estela de Banfield (1958) e Cabral (2006, 147-151). Sobre la baja participación cívica de los portugueses ver también Cruz (1995).

498

23 MVCabral Cap. 23_Layout 1 6/24/13 10:02 AM Page 499

¿Despotismo administrativo o Estado débil?

que manteniendo débil al Estado lograban monopolizar recursos económicos y simbólicos, sustituyendo con su poder social los mecanismos imparciales de la administración de justicia o la administración fiscal. Despotismo y debilidad son rasgos compatibles en la configuración de poder del Estado. De hecho, un Estado fuerte necesita la colaboración de la población, ampliando el arco de los grupos con los que hay que negociar el uso de los recursos. Siguiendo a Michael Mann, un estado fuerte renuncia a poder despótico a cambio de incrementar su capacidad infraestructural, por lo que más que enmendar las propuestas de MVC lo que hace este ejercicio es cambiar los énfasis (Mann 1984).

Desarrollo político y penetración del Estado Surgidas en la década de 1950, las teorías de la modernización se dedicaron a analizar la formación de espacios políticos nacionales. Analizaban la relación entre desarrollo económico y desrollo político, y vinculaban éste con lo que denominaban la «movilización de la población», que entonces no se entendía como la participación en acciones colectivas, sino en su desarraigo de un mundo de vida local y tradicional y su integración en un espacio social y político más amplio. Atendiendo a que, en la mayor parte de las sociedades preindustriales, la población vivía en comunidades locales débilmente vinculadas al centro político, entendieron la modernización como una integración de esos grupos locales en una comunidad nacional. Como principales motores, situaron el desarrollo institucional, la mercantilización de la economía y la acción de las elites, que, desde un centro, movilizaban a las poblaciones, quebraban las solidaridades locales, estamentales o familiares, seducían a la gente con nuevas formas de vida y ofrecían incentivos a la integración. Mediante ese proceso, grupos de población con una cultura política parroquial podían transformarse – en el transcurso de las generaciones y por la actividad del Estado – en ciudadanos activos de una comunidad política nacional. Es decir, en ciudadanos que, en vez de limitar su horizonte político a reconocer a algunos intermediarios locales – patronos o caciques – pasaban, imbuidos de cultura cívica, a «encarar el conjunto del sistema político como un todo». Como rasgo distintivo, las teorías de la modernización y del desarrollo político El entrecomillado en Almond y Verba (1970 [1963], 37); v. también Deutsch (1966), Bendix (1974); Una buena reseña de los esfuerzos de la teoría clásica de la modernización para vincular ésta con la movilización y la llamada nacionalización de las masas se encuentra en Chazel (1975). Un estudio histórico paradigmático de este proceso en Weber (1976). Una aproximación histórica en términos próximos, para el caso español, en Álvarez Junco (2001).

499

23 MVCabral Cap. 23_Layout 1 6/24/13 10:02 AM Page 500

Diego Palacios Cerezales

partían de una perspectiva comparada.2 En los modelos clásicos de modernización política, el caso francés ha sido la vara de medir más habitual. La educación, el reclutamiento militar, los servicios públicos, la justicia estatal imparcial y la equidad administrativa habrían sido las claves del éxito francés a la hora de generar lealtad en la población hacia la comunidad política nacional, así como una cultura cívica participativa (Riquer I Permanyer 2001). En comparación, el desempeño del Estado español del siglo XIX habría sido limitado. La red de escuelas públicas era insuficiente y se mantuvieron hasta muy tarde altas tasas de analfabetismo. Además, el servicio militar nunca fue realmente universal y en vez de generar legitimidad, a menudo era visto como una exacción injusta sobre los pobres (Álvarez Junco 2001). En el caso portugués, la debilidad de la penetración del Estado fue aún más acentuada, pues todo indica que fueron más graves la inequidad del reclutamiento militar y la falta de esfuerzo estatal en la alfabetización. Respecto al reclutamiento, el Estado no cumplía sus propios objetivos. Con las exenciones, los favores, las autolesiones y la emigración ilegal, llegaban a los cuarteles un 27% menos de soldados de los que el gobierno se proponía.3 Respecto a la alfabetización, el esfuerzo para lograr una escolarización generalizada en Portugal fue comparativamente deficiente, y Portugal entró en el siglo XX con una tasa de analfabetismo superior a la de cualquier otro país de su entorno (74% en 1900, frente al 53% de España o el 46% de Italia) (Reis 1993). La debilidad de la penetración del Estado portugués se reflejaría en la poca socialización de la población en una cultura cívica participativa; una población que siguió siendo mayoritariamente analfabeta, incapaz de tratar provechosamente con un Estado atrincherado en procedimientos burocráticos – esotéricos para el no alfabetizado– y, consecuentemente, políticamente inactiva o dependiente de las elites que mediaban entre las comunidades locales y el Estado. La falta de alfabetización permitió que se mantuviera limitada la politización «pela restrição do acesso a ese instrumento de poder que é o saber adquirido através da escolarização» (Cabral 2002). Uno de los pocos esfuerzos en integrar sistemáticamente el caso portugués en los estudios sobre desarrollo político lo emprendió Walter Ope-

3 Media para los años entre 1856 y 1873 calculada por Pedro Tavares de Almeida. Ese déficit medio estaba muy desigualmente distribuido en el territorio, en función de la fuerza de los mecanismos de patrimonialización local del poder (Almeida 1995, 240-241 y 410-413)

500

23 MVCabral Cap. 23_Layout 1 6/24/13 10:02 AM Page 501

¿Despotismo administrativo o Estado débil?

llo. Sin embargo, este politólogo, fijándose en las instituciones del absolutismo, fechaba en el siglo XVIII la superación de la «crisis de penetración del Estado», es decir su capacidad de llegar con la administración, la ley y las políticas públicas al conjunto de la población y el territorio (Opello 1985). Esa caracterización era demasiado superficial. La centralización legislativa del Marqués de Pombal y la creación de la Intendencia de Policía en 1780 – los logros que cita Opello – sin duda reforzaron la capacidad del Estado, pero en gran medida la centralización siguió por mucho tiempo siendo una mera imagen del Estado, y no una realidad institucional dotada de un organigrama sobre el territorio capaz de llevar adelante las políticas del gobierno (Hespanha 1988). Además, las crisis, revoluciones y guerras que se sucedieron entre 1808 y 1847 desarticularon las formas tradicionales de presencia del Estado. La sustitución de la administración del Antiguo Régimen por la nueva administración liberal se produjo durante la guerra civil, con frecuentes sustituciones de magistrados, cambios de la planta administrativa y uso de la violencia, facilitando patrimonializaciones locales del poder con las que tuvo que negociar la reconstrucción constitucional del poder público. Casos célebres de cooptación de guerrilleros-bandoleros, como Soares de Albergaria, Quingostas o João Brandão (Sobral 1990), que se erigieron en representantes del poder político liberal en zonas remotas del país, simbolizan en su extremo una tendencia generalizada del nuevo Estado liberal a ceder ante aquel que fuera capaz de controlar un territorio, renunciando a penetración a cambio de paz social (Bonifácio 1999, 224; Batalas 2003; Sousa 2007; Valente 2007; Palacios Cerezales 2011). 4 La debilidad del poder infraestructural del Estado portugués resalta más claramente si observamos cómo se configuró el organigrama administrativo portugués de la segunda mitad del siglo XIX, una vez superada a «Era de la Revolución». La planta administrativa siguió un patrón napoleónico común a muchos otros países de la Europa continental, con su división en distritos encabezados por gobernadores civiles dependientes del Ministerio do Reino y la centralización de la mayor parte de las funciones estatales. Sin embargo, a esa planta napoleónica le faltaba algo. ¿Cual es el principal rasgo distintivo de la administración portuguesa?. La ausencia de una gendarmería. Esa falta de una gendarmería epitomiza la debilidad del Estado. 4 Una macro-evaluación histórica de los mecanismos de patrimonialización del poder y sus efectos corrosivos en las instituciones políticas en Fukuyama (2011)

501

23 MVCabral Cap. 23_Layout 1 6/24/13 10:02 AM Page 502

Diego Palacios Cerezales

Portugal es el único país Europeo de planta napoleónica que careció durante toda la segunda mitad del siglo XIX de una fuerza de policía de ámbito nacional, especializada en la patrulla rural y en llevar la presencia del Estado a cada rincón, poblado o despoblado, del país. Después de su creación revolucionaria en Francia y su reformulación napoleónica, una gendarmería existió en Baviera y Prusia desde 1812, mientras que en 1814 llegó el turno a los Países Bajos, el Piamonte y el Tirol y la Lombardía austriacas. La Guardia Civil española se creó en 1844, primero con rasgos civiles, pero rápidamente se convirtió en una gendarmería. El gobierno de Viena amplió en 1849 el despliegue de su gendarmería al conjunto del imperio austro-húngaro. Además, tras la experiencia del Piamonte, los Carabinieri se convirtieron en uno de los pilares de la homogeneización administrativa de la Italia unificada. Para Gran Bretaña, el gobierno del Reino Unido optó por fuerzas policiales civiles con tutela mixta entre el gobierno central y el local, pero también organizó gendarmerías como policía rural de Irlanda – Royal Ulster Constabulary –, Canadá – la policía montada – y otros territorios coloniales, mientras que Texas organizaba sus famosos Rangers (Broers 1993; Emsley 1993, 1999; Luc 2002). Si atendemos a que en Portugal la Guardia Nacional Republicana sólo se creó en 1911 y que su antecesora sólo operaba en las ciudades de Lisboa y Oporto, el caso portugués se revela como una excepción en el contexto europeo: modelo de Estado napoleónico sin su correlato de una fuerza de gendarmería, una configuración que le asemejaría a las repúblicas hispanoamericanas, que como Portugal también contaron con algunas fuerzas urbanas en las capitales, pero eran incapaces de penetrar policialmente en el resto del territorio, es decir, en donde vivía la mayor parte de la población. La ausencia de una gendarmería es un dato diferencial clave para al menos sesenta años fundamentales, los de la vida política liberal en el marco pacífico de la monarquía constitucional. Durante la segunda mitad del siglo XIX el resto de la administración civil del Estado, tanto central como periférica, no era cuantitativamente deficiente en comparación con la de otros Estados europeos de la época (Almeida 1995, 2007). Aunque cuantitativamente la presencia de la administración civil portuguesa fuese similar a la de otros países, cualitativamente era muy distinta. En Portugal, la fuerza de negociación del Estado central con las elites provinciales estaba lastrada por esa ausencia de una gendarmería. Como en otros países, la administración trabajaba apoyada y articulada en las elites de provincias, entre las cuales se reclutaban los adminis502

23 MVCabral Cap. 23_Layout 1 6/24/13 10:02 AM Page 503

¿Despotismo administrativo o Estado débil?

tradores, los presidentes de la cámara municipal, los miembros de las juntas de contribuyentes, etcétera, aunque muchas veces el poder social fuese más importante que el ejercicio de un cargo público (Sousa 1998; Silveira 1997; Branco 2003, 105-106). Para colaborar con el gobierno central, esas elites negociaban prebendas, patrimonializaban el nombramiento de funcionarios y ponían límites a la voluntad del Estado de reclutar soldados o recaudar impuestos, impidiendo entre otras cosas el desarrollo de los instrumentos catastrales que podrían haber servido para un reparto equitativo de la fiscalidad agraria. Ese fenómeno no era exclusivo de Portugal, pero las bazas [os trunfos] con que contaba el Estado en la negociación eran pocos, debido a esa ausencia de gendarmería. El Estado portugués no estaba presente de la misma manera capilar que en otros países. No hay que imaginar la ocupación del territorio por parte de las gendarmerías decimonónicas como análoga a la de las densas mallas policiales de la actualidad; pero en España, por ejemplo, en las vísperas de la revolución de 1868 el despliegue de la Guardia Civil (creada en 1844) ya abarcaba el conjunto del territorio, y los 13.780 efectivos se distribuían en una red de tercios y cuarteles que seguía las principales vías de comunicación.5 En Portugal, sin gendarmería, la ley nacional y las decisiones judiciales dependían, en un grado superior, de la colaboración de las elites locales: ellas monopolizaban la información local y la capacidad de llegar hasta los ciudadanos. En otros países, la gendarmería era un instrumento con el que los gobernantes podían observar el territorio y respaldar la ejecución de las políticas públicas; un instrumento independiente de las relaciones de poder locales y, por lo tanto, susceptible de aminorar las ilegalidades y las injusticias producidas por la patrimonialización local del poder. Como en 1862 exponía Martens Ferrão, uno de los más decididos defensores de que se creara para Portugal algo similar a la Guardia Civil española: É para dar força às autoridades [...] que é indispensável a polícia [...]. A autoridade judicial não tem força, e se quer cumprir com o seu dever vê a sua vida correr grande risco; o júri mais de uma vez tem sido coacto; escuso de produzir exemplos que todos conhecem... Estes factos sucessivos praticados no país hão-de vir em breve tempo a tornar impossível o serviço pú-

5 Los mapas de su despliegue en 1868, elaborados por Enrique Martínez Ruiz, en López Corral (1995, 168-169). 6 Martens Ferrão, Diário da Câmara dos Deputados (DCD), n.º 92, 14 de junio de 1862, 1645.

503

23 MVCabral Cap. 23_Layout 1 6/24/13 10:02 AM Page 504

Diego Palacios Cerezales blico, e por isso a administração.6

Poniendo su vida en riesgo, los administradores, jueces, fiscales o interventores [escrivães] de hacienda, daban cuerpo a una débil presencia territorial del aparato periférico del Estado. Para el fracaso de la penetración del Estado, en términos comparados, fue fundamental la ausencia de gendarmería. Es difícil medir los efectos del despliegue de una gendarmería sobre la creación de un espacio político nacional. ¿Cómo hubiesen sido las cosas en Francia, o en España, sin su presencia? No lo sabemos, pero no es difícil aventurar que la sociedad y la vida política hubiesen sido diferentes (Emsley 1999, 145-146). Si atendemos al modelo clásico de la creación de espacios políticos nacionales, estos cuerpos ejercen, en primer lugar, un servicio público integrador: prevención o resolución de crímenes, protección de las vías de comunicación y auxilio a la población en caso de incendios u otras calamidades. Las gendarmerías fueron en muchas localidades europeas los primeros servicios provistos directamente por el Estado, que protegía a los locales de los ladrones y forasteros, recuperaba ganado extraviado o se volcaba en el combate a las catástrofes. Además, la existencia de un cuerpo policial nacional favorecía la desvinculación de la interpretación de la ley de los intereses de los notables locales, permitiendo a las poblaciones emanciparse de su tutela y hacer uso directo de los instrumentos legales del sistema jurídico. También reforzaba la independencia y la eficacia del sistema judicial. La fiscalización exterior sobre las elites locales, reforzada por una gendarmería, a su vez, permitiría disminuir el fraude fiscal, pudiendo generar círculos virtuosos de compromiso con el bien público. Finalmente, en un régimen representativo, la coerción policial sobre las poblaciones que se resisten a las determinaciones del gobierno también puede tener efectos positivos sobre la integración política y la generación de vínculos de ciudadanía. La coerción no sólo protege puntualmente a las autoridades, sino que hace posible que éstas actúen de forma efectiva. De esa manera, pueden contemplarse los resultados de su acción y, eventualmente, exigírseles responsabilidades o retirarles la confianza política. La coerción pública, cuando está institucionalizada, además de impedir o castigar comportamientos tenidos por ilegales y de permitir que los gobernantes ejerzan su mandato, genera la posibilidad de formas ampliadas de cooperación social. La vigilancia del cumplimiento de la ley y los contratos, y la certidumbre del castigo a los transgresores, generan confianza entre los ciudadanos y un escenario favorable a la actividad económica. Y también aumentan la confianza de los ciudadanos en los 504

23 MVCabral Cap. 23_Layout 1 6/24/13 10:02 AM Page 505

¿Despotismo administrativo o Estado débil?

gobernantes, facilitando su cooperación en la producción de bienes públicos y su consentimiento hacia las obligaciones que les imponen los gobernantes (Levi 1988, 1996, 1997; Braithwaite y Levi 1998).

El despotismo de la sociedad civil En Portugal, durante el siglo XIX, el estado se expandió, sin duda, «penetrou cada vez mais no territorio e no dia a dia das populações», pero lo hizo de forma «não linear, negociada e soluçante» (Branco 2003, 106; Justino 1988). La debilidad del Estado generó, en contraste, lo que podemos llamar una sociedad civil fuerte – que no equivale a una sociedad civil virtuosa. «Em muitos concelhos do país a força mais importante contra a maior eficácia e justiça da contribuição predial», escribía en 1880 Pedro Augusto de Carvalho, director general de las contribuciones directas: São os grandes proprietários e influentes locais [...] São estes os que [...] malquistam os pequenos contribuintes contra o fisco e os agentes fiscais. Preponderando com a influência que lhes dá a riqueza e com as influências em que mantêm os povos, [...] hão-de ter o escrivão de fazenda e o administrador do concelho de sua escolha, as autoridades de sua eleição, a administração nas suas mãos, e quando esses elementos lhes faltam armam-se então as resistências populares, promovem-se as representações, desacreditam-se os empregados e recorre-se a todos os expedientes até conseguir o fim único de deixar as coisas no mesmo estado. 7

Los grandes propietarios, los influyentes y «os povos» configuraban una sociedad civil fuerte. Pero como le gustaría recalcar a MVC, se trataba de una sociedad civil real, en los términos expresados por Jeffrey Alexander, no la ideal de los teóricos liberales (Alexander 1998): una sociedad estructurada de modo desigual y clientelar, capaz de movilizarse para impedir la transferencia de recursos privados hacia la generación de bienes públicos, organizando la resistencia antifiscal y controlando en su beneficio el proceso político.8 Como correlato a la debilidad policial del Estado portugués vino la debilidad fiscal. En Francia la presencia de la gendarmería acabó con los motines contra los impuestos directos en la década de 1820 y pacificó la 7

Cit. en Sousa (2007). Sobre las sociedades civiles fuertes y las dificultades que presentan a la construcción del Estado (Migdal 2001). 8

505

23 MVCabral Cap. 23_Layout 1 6/24/13 10:02 AM Page 506

Diego Palacios Cerezales

relación entre las poblaciones rurales y las autoridades; en el resto de Europa esos episodios se dieron por última vez en torno a las revoluciones de 1848, cuando ya eran una rareza (Houte 2008; Lignereux 2008). En cambio, fueron una constante en la segunda mitad del XIX portugués, con importantes oleadas en 1861-1862 y 1867-1870 contra el «arrolamento predial» (Miranda 1996; Ferreira 2002; Palacios Cerezales 2007, 2011; Silva 2007). En Portugal no hubo catastro de la propiedad en todo el siglo XIX; los motines paralizaron los esfuerzos por dotar al Estado portugués de un conocimiento fiscalmente útil de la riqueza agraria del país y pudieron salir victoriosos porque ese mismo Estado carecía de una fuerza de gendarmería que abortase en su nacimiento los pequeños altercados – evitando su crecimiento –, conociera a las gentes que se movilizaban y pudiera respaldar la actividad del poder judicial. Cuando en 1867-1868 se diagnosticó la debilidad del Estado y el gobierno propuso una amplia reforma administrativa y fiscal que también contemplaba la creación de una Guarda Civil, se produjo una amplia movilización en su contra que culminaría en la Janeirinha. En la campaña de contra el gobierno, el despliegue de una gendarmería fue estigmatizado como caro e inútil, como un lujo autoritario contra los pueblos. La Janeirinha se reveló enemiga de todo crecimiento de la capacidad del Estado que redujera la patrimonialización del poder por las elites terratenientes. «O abysmo do arrolamento», como lo llamaba un diputado,9 impidió durante algunos años que el Partido Histórico, en el que militaban algunos de los más ardientes defensores de un catastro de la propiedad, se aproximara al Partido Reformista, una coalición de radicales urbanos e intereses agrarios que se oponía a cualquier incremento fiscal. Las elites agrarias podrían haber estado interesadas en una gendarmería si hubiera surgido un movimiento de trabajadores rurales que hiciese peligrar su preeminencia, o si los niveles de delincuencia fueran muy altos, pero durante toda la segunda mitad del XIX mantuvieron su capacidad de patrocinio local y en los campos no hubo un conflicto de clases articulado (Pereira 1983; Cabral 1989). Cuando en 1883 el Ministerio del Reino sondeó a los gobernadores civiles sobre la posibilidad de que en sus distritos surgiera algo parecido a la Mano Negra andaluza, la respuesta fue de plena incredulidad.10 En esas circunstancias, una gendarmería, a ojos de las elites agrarias, en vez de para defender su propiedad, sólo podría servir para reforzar la fiscalización del gobierno. 9

DCD, 9 de diciembre de 1870, 369. Colecção de Correspondência recebida, AMR-ANTT, mç 2813, L 33 n.º 324.

10

506

23 MVCabral Cap. 23_Layout 1 6/24/13 10:02 AM Page 507

¿Despotismo administrativo o Estado débil? Tabla 22.1 – Rendimiento del aparato fiscal en Europa (1851-1913), indicado por los ingresos públicos en porcentaje del PIB Portugal

1851-1859 1860-1869 1870-1879 1880-1889 1890-1899 1900-1913

3,5 3,6 4,0 4,4 4,9 5,5

España

Italia

Francia

Reino Unido

7,8 10,6 9,5 8,6 8,9 9,3

n.e 7,9 10,6 13,3 13,7 11,8

8,4 8,4 9,8 13,1 11,8 10,8

9,4 7,5 6,3 7,0 7,3 8,2

Fuente: Rui Pedro Esteves «Finanças Públicas» en Pedro Lains y Álvaro Ferreira da Silva, Nova História Económica de Portugal, 2005, Lisboa. Vol 2, 325.

Como resultado de la débil penetración del Estado, la capacidad recaudatoria del Estado portugués se situaba notablemente por debajo de la de otros países europeos: recaudaba un porcentaje menor de una economía también de menor tamaño (tabla 22.1). La injusticia fiscal y la preeminencia de los intereses de los grandes propietarios frente a los del Estado marcaron el desarrollo político del país. La resistencia antifiscal surtía efecto y, como señalaba Augusto Fuschini, la tributación indirecta, en especial los derechos aduaneros, debía seguir primando en Portugal sobre la directa, por la mera razón de que «pela sua natureza e incidencia excita menos a opinião pública».11 En 1893, siendo ministro de hacienda en el gobierno de Hintze Ribeiro y João Franco, Fuschini había pretendido aumentar la recaudación directa e, inicialmente, el proyecto había contemplado aumentos en la contribución territorial, la industrial y la de timbre [selo]. Sin embargo, la cámara de diputados bloqueó el aumento de contribución la territorial y concentró el agravamiento de la carga impositiva en las otras dos partidas. Es muy posible que la preponderancia de los intereses agrarios, que dominaban la elección de diputados, explique esa decisión (Santos 2004, 158). 11 Cit. Mata (1993, 130) Los números de las finanzas públicas, con decenas de apartados, impuestos especiales y adicionales, se prestan a malinterpetaciones. Las contribuciones directas parecen aumentar de modo significativo a partir de 1892; de una media del 21% de los ingresos fiscales corrientes entre 1882 y 1892 pasan al 30% entre 1893 y 1903. Sin embargo, el secreto de ese aumento se encuentra en los descuentos del 30% sobre los intereses de la abultada deuda pública que se establecieron en el paquete de medidas de la bancarrota de 1892. Los descuentos tomaban el nombre equívoco de «impuesto sobre el rendimiento», se cobraban en origen y se podían imponer sin negociación. Entre 1893 y 1913 ese descuento se convirtió en el impuesto directo que más recaudaba, pero la ficción se deshizo en 1914, cuando esa tributación se reconvirtió en lo que era en el fondo, una rebaja del interés de la deuda pública (Mata 1993, 131; Esteves 2005; Cardoso y Lains 2010).

507

23 MVCabral Cap. 23_Layout 1 6/24/13 10:02 AM Page 508

Diego Palacios Cerezales

Los más afectados por el aumento de la presión fiscal finalmente aprobada fueron los comerciantes, industriales y tenderos. El abandono de la convertibilidad dela moneda nacional, que permitía fabricar moneda, daba al gobierno autonomía táctica en su pulso con el lobby comercial e industrial, mientras que podía confiar en reproducir las mayorías parlamentarias, que se basaban en el caciquismo de provincias y el apoyo de los intereses rurales (2004, 149-182). A medio plazo, el aumento de la recaudación por la contribución industrial fue moderado, sobre todo tras la revisión de las tarifas en 1896; sí aumentó en cambio, de modo notable, la contribución por la propiedad urbana, que pasó a ser tasada en función de su valor catastral y no por un sistema de reparto como la propiedad rural, que era donde más riqueza se ocultaba. En la resistencia a los catastros y los aumentos tributarios rurales puede medirse el poder de los intereses agrarios sobre el sistema político. La agricultura representaba, en la década de 1890, el 41,5% del PIB portugués, pero la contribución predial sólo representaba en torno al 30% de los impuestos directos y el 9% de los ingresos fiscales corrientes, unos porcentajes que también incluían lo tributado por las fincas urbanas.12 «A grande quinta do norte e o latifúndio do Alemtejo não estão tributados, em virtude da influência dos caciques locais, exponía un diputado. A injustiça é flagrante e insustentável».13 En 1899 el gobierno intentó realizar nuevas matrices de la contribución, pero al sondear las resistencias que generaría, comenzó por las fincas urbanas y aplazó las rurales sine die, aunque supiese que allí era donde se escondía la gran masa de fraude. «Não representa isto uma injustiça», respondía el gobierno a quienes criticaban el privilegio de los propietarios rurales, «mas uma acomodação legítima com os interesses dos povos para evitar tumultos e perturbações sociais. Governar é transigir».14 ¿Se transigía con el pueblo, o con los terratenientes? Para Teixeira Bastos, el análisis de las resistencias antifiscales y el dato inequívoco de que con las matrices renovadas los pequeños propietarios deberían cargar con una porción menor del reparto de la contribución, daba cuenta de que detrás de los tumultos no estaban los «povos», sino los grandes propietarios (Bastos 1894, 338; Sousa 2007). Controlaban las elecciones, y era con ellos con quienes se transigía.

12 La estructura del PIB en Lains y Silva (2005, 273) La composición de los ingresos fiscales en Mata (1993, 99-159) 13 DCD, 5 de junio de 1899, 3. 14 Ídem, p.5. Los elementos para interpretar el patriotismo tributario (o la falta del mismo) en España Pro Ruiz (1994)

508

23 MVCabral Cap. 23_Layout 1 6/24/13 10:02 AM Page 509

¿Despotismo administrativo o Estado débil?

Finalmente: la GNR Si la falta de gendarmería condensa la debilidad relativa del Estado Portugués, la creación de la GNR en 1911 y su despliegue entre ese año y 1919 podría servir de momento revelador sobre los significados albergados en las configuraciones de poder anteriores. Por una parte, si durante la segunda mitad del XIX las elites terratenientes no habían sentido la necesidad de defenderse del conflicto social, las esperanzas que acompañaron la proclamación de la república en 1910 se vieron inmediatamente seguidas de una explosión de sindicalismo rural en las regiones latifundistas, con huelgas y movilizaciones que MVC tituló como «La insurrección alentejana» (Pereira 1982; Cabral 1989). Significativamente durante 1911 las primeras compañías rurales de la GNR se crearon en Portalegre, Évora y Beja, en el Alentejo latifundista y en septiembre de ese año ya había puestos de la gendarmería en todos los municipios de esa zona.15 Algunos diputados del norte se quejaron, argumentando que los propietarios de esas provincias también tenían derecho a ser protegidos por la GNR, pero vistas las dificultades presupuestarias se les contestó que podían esperar, que esas tierras «não são frequentadas por agitadores, nem são aí tão frequentes as greves e alterações de ordem pública».16 La intuición de la importancia de la cuestión social en el despliegue de la GNR se refuerza a posteriori si se tiene en cuenta la tardanza en el despliegue de la GNR en las zonas de pequeña propiedad con poca presencia de jornaleros. Las compañías destinadas a Vila Real sólo se desplegaron en 1917, mientras que Viseu, Aveiro, Viana do Castelo y las zonas rurales del distrito de Porto tuvieron que esperar a 1919 (Palacios Cerezales 2011). La implantación de la GNR facilitó también la puesta en marcha de la reforma fiscal del 4 de mayo de 1911, que sustituía el sistema de matrices – «feitas por indivíduos que eram quasi sempre dependentes dos caciques» – por otro de declaración obligatoria del rendimiento por cada propietario rural.17 La reforma llevó a un notable incremento de la recaudación por contribución territorial, que en 1913 llegó a representar la mitad de los impuestos directos, cuando durante los últimos años de la monarquía sólo había representado una cuarta parte (Mata 1993, 131). Esa reforma fiscal y la llegada de la GNR cambiaban asimismo las prácticas de clien15 Carta del General Ernesto de Encarnação Ribeiro al Ministerio del Interior, 3 de septiembre de 1911, MI Mç. 34, L 61 nº 631. 16 DCD, 26 de febrero de 1912, 24. 17 La cita, y una discusión sobre el significado político de este cambio fiscal , en DCD del 7 de septiembre de 1911, 9-14.

509

23 MVCabral Cap. 23_Layout 1 6/24/13 10:02 AM Page 510

Diego Palacios Cerezales

telismo asociadas a una economía moral que habían mantenido la paz social en las zonas de latifundio. Brito Camacho, destacado portavoz de los terratenientes del sur, también había podido comprobar personalmente los efectos de la GNR, que liberaba a los propietarios de sus obligaciones morales. Hasta entonces su casa, como la de otros hacendados, daba comida y cobijo invernal a una media de 40 o 50 «malteses». Desde que llegó la nueva gendarmería, no alojaba a más de 12.18 Según el diputado García da Costa, la disminución de las cargas de caridad forzosa permitida por el despliegue de la GNR había hecho tolerable, a ojos de los propietarios rurales, el aumento de la contribución territorial.19 Está por hacer un trabajo pormenorizado de las transformaciones en las relaciones entre elites locales, estado y poblaciones rurales que pudo articularse en torno a la llegada de la GNR. No obstante, para pensar en sus efectos habrá que tener en cuenta que sucedía en un contexto muy distinto al de la Europa de 1840, cuando la mayor parte de las gendarmerías comenzaron su despliegue en el resto de países. Por una parte, los efectos de path dependence en la articulación de los poderes y las culturas políticas es seguro que siguieron pesando a pesar de la presencia de la gendarmería, que tuvo que acomodarse a ellos. Por otra parte, el uso político que se hizo de la GNR como representante de una concepción exclusivista de la República entre 1919 y 1921 (Lloyd-Jones y Cerezales 2007), así como su integración en un Estado autoritario a partir de 1926, seguramente también contribuyeron para que sus efectos en la cultura política no pudieran portar un carácter inequívocamente integrador.

Conclusión Sin gendarmería y sin catastro, el Estado portugués del siglo XIX fue un estado infraestructuralmente débil. Si el despotismo del Estado era el rasgo que MVC destacaba en su estudio, yo creo que para explicar la persistente cultura política poco participativa de los portugueses – su enorme distanciamiento respecto al ejercicio del poder político – la principal variable independiente es la debilidad histórica del Estado, incapaz de afirmar su autonomía respecto a las elites sociales (Cabral 2006). Ambas variables se compenetran, pero la ausencia de gendarmería durante toda la segunda mitad del siglo XIX es un buen indicador de esa debilidad dife18 19

Brito Camacho, DCD, 26 de febrero de 1912. DCD, 5 de enero de 1912.

510

23 MVCabral Cap. 23_Layout 1 6/24/13 10:02 AM Page 511

¿Despotismo administrativo o Estado débil?

rencial respecto a otros estados europeos de la época, que permitió la patrimonialización del poder y limitó la capacidad estatal de conseguir recursos y producir bienes públicos. La debilidad del Estado convirtió en una ficción la promesa liberal de una igualdad civil de todos los portugueses, pues ni los trató fiscalmente de modo equitativo ni les permitió acceder a los bienes públicos básicos, de la educación a la administración de justicia. Fue esa configuración de un Estado débil, poco autónomo de las elites y por esas mismas razones, despótico y nada equitativo, la propició la desconfianza hacia lo público y la reproducción del familismo amoral.

Bibliografía Fuentes DCD: Diário da Câmara dos Deputados, http://debates.parlamento.pt AMR-ANTT: Arquivo do Ministério do Reino- Arquivos Nacionais da Torre do Tombo.

Bibliografía citada Alexander, Jeffrey, ed. 1998. Real Civil Societies. Londres: Sage Publications. Almeida, Pedro Tavares de. 1995. A Construção do Estado Liberal. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. Almeida, Pedro Tavares de. 2007. «A burocracia do Estado no Portugal liberal (2.ª metade do século XIX)». In Burocracia, Estado e Território, eds. Pedro Tavares de Almeida y Rui Branco. Lisboa: Ed. Notícias, 53-80. Almond, Gabriel, y Sidney Verba. 1970 [1963]. La Cultura Cívica. Estudio sobre la Participación Política Democrática en Cinco Naciones. Madrid: Euramérica. Álvarez Junco, José. 2001. Mater Dolorosa: la Idea de España en el Siglo XIX. Madrid: Taurus. Banfield, Edward. 1958. The Moral Basis of a Backward Society. Glencoe: The Free Press. Bastos, F. J. Teixeira. 1894. A Crise: Estudo sobre a Situação Política, Financeira, Económica e Moral da Nação Portuguesa. Porto: Livraria Internacional de E. Chardron. Batalas, Achilles. 2003. «Send a thief to catch a thief». In Irregular Armed Forces and their Role in Politics and State Formation, eds. Diane Davis y Anthony Pereira. Cambridge: Cambridge University Press. Bendix, Reinhardt. 1974. Estado Nacional y ciudadanía. Buenos Aires: Amorrotu. Binder, Leonard et al. 1971. Crises and Sequences in Political Development. Princeton, NJ: Princeton University Press. Bonifácio, Fátima. 1999. Apologia da História Política. Lisboa: Quetzal. Braithwaite, Valerie, y Margaret Levi, eds. 1998. Trust and Governance. Nueva York: Russel Sage Foundation. Branco, Rui. 2003. O Mapa de Portugal. Lisboa: Livros Horizonte.

511

23 MVCabral Cap. 23_Layout 1 6/24/13 10:02 AM Page 512

Diego Palacios Cerezales Broers, Michael. 1993. «La gendarmerie au XIXe siècle: les origines d’un modèle». Cahiers de la Sécurité Intérieure, 11. Cabral, Manuel Villaverde. 1989. Portugal na Alvorada do Século XX: Forças Sociais, Poder Político e Crescimento Económico de 1890-1914. Lisboa: Presença. Cabral, Manuel Villaverde. 1997. Cidadania Política e Equidade Social em Portugal. Oeiras: Celta. Cabral, Manuel Villaverde. 2002. «Espaços e temporalidades sociais da educação em Portugal». In Espaços da Educação, Tempos de Formação, ed. António Nóvoa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Cabral, Manuel Villaverde. 2003. «O exercício da cidadania política em perspectiva histórica (Portugal e Brasil)». Revista Brasileira de Ciências Sociais, 51. Cabral, Manuel Villaverde. 2006. «El ejercicio de la ciudadanía política en Portugal». In Una Historia Política de Portugal, eds. Diego Palacios Cerezales y Braulio Gómez Fortes. Madrid, Siglo XXI, 117-160. Cardoso, José Luís, y Pedro Lains. 2010. Paying for the Liberal State: the rise of Public Finance in Nineteenth-Century Europe. New York: Cambridge University Press. Chazel, François. 1975. «La mobilisation politique: problèmes et dimensions». Revue Française de Science Politique, 25 (3). Cruz, Manuel Braga da. 1995. Instituições Políticas e Processos Sociais. Lisboa: Bertrand. Deutsch, Karl. 1966. Nationalism and social communication: An Inquiry Into the Foundations of Nationality. Cambridge, MA: Cambridge University Press. Einsenstadt, S. N., y Stein Rokkan. 1973. Building States and Nations. 2 vols. Londres: Sage. Emsley, Clive. 1993. «Evolution de la gendarmerie au milieu rural, de l’Empire à nos jours». Cahiers de la Sécurité Intérieure, 11. Emsley, Clive. 1999. Gendarmes and the State in Nineteenth Century Europe. Oxford: Oxford University Press. Esteves, Rui Pedro. 2005. «Finanças Públicas». In Nova História Económica de Portugal, vol. II, eds. Pedro Lains y Álvaro Ferreira da Silva. Lisboa: ICS. Ferreira, Fátima de Sá e Melo. 2002. Rebeldes e Insubmissos. Resistências Populares ao Liberalismo. Porto: Afrontamento. Fukuyama, Francis. 2011. The Origins of Political Order: from Prehuman Times to the French Revolution. New York, NY: Farrar, Straus and Giroux. Hespanha, António M. 1988. «A revolução e os mecanismos do Poder». In Portugal Contemporâneo, ed. António Reis. Lisboa: Alfa. Houte, Arnaud Dominique. 2008. «Gendarmerie departamentale et maintien de l’ordre: retour sur les transformations de la violence d’État (1827-1931)». Déviance et Société, 32 (1): 61-74. Huntington, Samuel P. 1968. Political Order in Changing Societies. New Haven, CT: Yale University Press. Justino, David. 1988. A Formação do Espaço económico Nacional, 2 vols. Lisboa: Vega. Lains, Pedro, y Álvaro Ferreira da Silva. 2005. Nova História Económica de Portugal, Vol. II, Século XIX. Lisboa: ICS. Levi, Margaret. 1988. Of Rule and Revenue. Berkeley, CA: University of California Press. Levi, Margaret. 1996. A State of Trust. Florencia, IUE working papers RSC n.º 96/23. Levi, Margaret. 1997. Consent, Dissent, and Patriotism. Cambridge: Cambridge University Press. Lignereux, Aurelie. 2008. «La violence d’une force de l’ordre: la gendarmerie et la répressiondes rébelions (1800-1859)». Déviance et Société 31 (1): 47-59.

512

23 MVCabral Cap. 23_Layout 1 6/24/13 10:02 AM Page 513

¿Despotismo administrativo o Estado débil? Cruz, Manuel Braga da. 1995. Instituições Políticas e Processos Sociais. Lisboa: Bertrand. López Corral, Miguel. 1995. La Guardia Civil. Nacimiento y Consolidación (1844-1874). Madrid: Actas. Luc, Jean-Noël, ed. 2002. Gendarmerie, État et Société au XIXe Siècle. Paris: Publications de la Sorbonne. Lloyd-Jones, Stewart, y Diego Palacios Cerezales. 2007. «Guardians of the Republic? Portugal’s GNR and the politicians during the ‘new old republic’, 1919-1922». In Policing Interwar Europe, ed. Gerald Blaney. Basingstoke: Palgrave, 90-110. Mann, Michael. 1984 «The autonomous power of the State: its origins, mechanisms, and results». Archives européenes de sociologie, 25: 185-213. Mata, Eugénia. 1993. As Finanças Públicas Portuguesas da Regeneração à Primeira Guerra Mundial. Lisboa: Banco de Portugal. Migdal, Joel S. 2001. State in Society: Studying How States and Societies Transform and Constitute One Another. Cambridge: Cambridge University Press. Miranda, Sacuntala de. 1996. Quando os Sinos Tocavam a Rebate. Notícia dos Alevantes de 1869 na Ilha de São Miguel. Lisboa: Salamandra. Opello, Walter C. 1985. Portugal’s Political Development. A Comparative Approach. Boulder, CO: Westview. Palacios Cerezales, Diego. 2007. «O princípio de autoridade e os motins antifiscais de 1862». Análise Social, XLII (182): 35-53. Palacios Cerezales, Diego. 2011. Portugal à Coronhada. Protesto Popular e Ordem Pública nos Séculos XIX e XX. Lisboa: Tinta da China. Pereira, José Pacheco. 1982. Conflitos Sociais nos Campos do Sul de Portugal. Lisboa: Publicações Europa-América. Pereira, José Pacheco. 1983. «As lutas sociais dos trabalhadores alentejanos. Do banditismo à greve». In O Século XIX em Portugal. Lisboa: GIS. Pro Ruiz, Juan. 1994. «El poder de la tierra: una lectura social del fraude en la contribución de inmuebles, cultivo y ganadería (1845-1936)». In El Fraude Fiscal en la Historia de España, eds. Francisco Comín Comín y Juan Zafra. Madrid: Instituto de Estudios Fiscales, 189-201. Reis, Jaime. 1993. «O analfabetismo em Portugal: uma interpretação». In O Atraso Económico Português. Lisboa: INCM, 227-253. Riquer I Permanyer, Borja. 2001. «La débil nacionalización española del siglo XIX». In Escolta, Espanya. La Cuestión Catalana en la Época Liberal. Madrid: Marcial Pons, 35-58. Santos, Luís Aguiar. 2004. Comércio e Política na Crise do Liberalismo. Lisboa: Colibrí. Silva, Célia Taborda da. 2007. Movimentos Sociais no Douro no Período de Implantação do Liberalismo (1834-1855). Porto: GEHVID. Silveira, Luís Nuno Espinha da. 1997. Território e Poder. Nas Origens do Estado Contemporâneo e Portugal. Cascais: Patrimonia. Sobral, José Manuel. 1990. «Banditismo e política – João Brandão no seu contexto político e social». In Apontamentos da Vida de João Brandão, por Ele Escritos nas Prisões do Limoeiro Envolvendo a História da Beira desde 1834. Lisboa: Vega. Sousa, Paulo Silveira e. 1998. As Elites Periféricas. Poder, Trajectórias e Reproducção Social dos Grupos Dominantes no Distrito de Angra do Heroísmo (1860-1910). Lisboa, tesis de maestría inédita. Instituto de Ciências Sociais. Sousa, Paulo Silveira e. 2007. «A construção do aparelho periférico do Ministério da Fazenda em Portugal (1832-1878)». In Burocracia, Estado e Território, eds. Pedro Tavares de Almeida y Rui Branco. Lisboa: Livros Horizonte.

513

23 MVCabral Cap. 23_Layout 1 6/24/13 10:02 AM Page 514

Diego Palacios Cerezales Tilly, Charles, ed. 1974. The Formation of the National State in Western Europe. Princeton, NJ: Princeton University Press. Tilly, Charles. 2006. Regimes and Repertoires. Chicago, IL: University of Chicago Press. Valente, Vasco Pulido. 2007. Ir Pró Maneta – A Revolta Contra os Franceses (1808). Lisboa: Alêtheia. Weber, Eugen. 1976. Peasants into Frenchmen. The Modernization of Rural France, 1870-1914. Stanford, CA: Stanford University Press.

514

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 515

Mónica Brito Vieira Filipe Carreira da Silva

Capítulo 24

Cidadania trans-escalar: o Estado, a cidade global e o cidadão O Eu e a cidade A questão de como a subjectividade humana responde à vida urbana foi tão central para os pais fundadores da sociologia quanto o é hoje ainda para nós. A tese de Simmel de que a vida urbana confronta o indivíduo com uma complexidade sem precedentes e em constante mudança, uma espécie de sobrecarga cognitiva e sensorial, que se reflecte no facto de cada indivíduo se conceber a si próprio como múltiplo, parece retratar, talvez até com uma acrescida acuidade, as megacidades dos nossos dias, a exemplo da Berlim do início do século XX que inspirou tal tese. Tal como Simmel explica, «a fundação psicológica, sobre a qual a individualidade metropolitana é erigida, é a intensificação da vida emocional decorrente do efeito continuado e subtil de estímulos internos e externos» (Simmel 1950 [1903], 409). Isto é uma espécie tipicamente urbana de «desassossego» inquiridor, que expande a capacidade humana para a auto-reinvenção. Esta sobrecarga sensorial, inevitável sob condições de elevada densidade populacional e grande proximidade física, seria insuportável, porém, caso o urbanita não se imunizasse contra tal sobreexposição através da construção de sucessivas camadas de artificialidade. Em primeiro lugar, ele cria uma distância, ou uma indiferença artificial, em relação aos estímulos a que está exposto. Uma vez que muitos destes estímulos resultam da proximidade corporal, assim como do contacto físico com os «outros», muitos dos quais migrantes, estranhos à vida urbana, o urbanita desenvolve igualmente um tipo negativo de conduta social, uma certa estranheza mútua, ou reserva em relação àqueles. Estes «outros» são, tipicamente, no meio urbano, não íntimos mas estranhos. Estranhos que 515

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 516

Mónica Brito Vieira e Filipe Carreira da Silva

permanecerão estranhos por muito tempo, talvez até para sempre. Estranhos com quem a interacção social é incerta, e perante quem os urbanitas são obrigados a desenvolver uma capacidade reflexiva de como representar em público as maneiras, convenções e gestos rituais que codificam as diferentes identidades sociais, através das quais os urbanitas se constroem e expressam na rotina do dia-a-dia. Porém, por detrás da máscara exterior de fria impassividade por intermédio da qual os urbanitas interagem com as complexidades que definem a cidade, por detrás da sua performance eficiente de papéis sociais codificados, eles experienciam uma perturbação contínua dos seus horizontes individuais, que se estilhaçam e alargam devido à diversidade confusa, ao desconhecido perturbador, e à invencível estranheza da vida em cidade. Esta ansiedade criativa, que Simmel atribuiu ao «estranho», podia hoje ser facilmente usada para descrever a experiência do habitante das grandes metrópoles. Isto desde que, claro está, as tendências segregacionistas e exclusionárias que afectam a paisagem urbana hodierna não consigam isolar os urbanitas em ilhas sanitizadas de similitude e semelhança que os impeçam de se ver realmente uns aos outros e, por conseguinte, também, a si mesmos. À multiplicidade de estímulos exteriores os urbanitas reagem frequentemente através do desenvolvimento de uma semelhante multiplicidade interna – isto é, um conjunto de imagens entrecruzadas e em diferentes planos das suas próprias identidades, que são continuamente negociadas com os indivíduos mais directamente relacionados com cada uma delas. Já não estão sujeitos a uma só identidade, fixa e atribuída de forma arbitrária, sancionada por uma qualquer unidade social fechada em que tenham nascido. As suas identidades sociais podem ser múltiplas, adaptativas, e, sobretudo, construídas através das interacções com aqueles que os rodeiam, muitos dos quais desconhecidos. Este alargar do âmbito da construção da identidade permite que os urbanitas desenvolvam uma consciência de si próprios muito mais rica e que poderíamos apelidar mesmo de caleidoscópica. A interacção social entre os habitantes da cidade contribui, portanto, para o minar da rigidez das identidades sociais comunitariamente construídas e comunitariamente monitorizadas, promovendo igualmente um ambiente favorável ao desenvolvimento de híbridos sociais e culturais, de reflexividade e de uma atitude de constante autocrítica. Veja-se, por exemplo, o caso da diáspora portuguesa nos Estados Unidos, e da formação das suas identidades migrantes num contexto urbano. Enquanto urbanitas, não precisam de se conceber apenas como portugueses ou americanos, cidadãos americanos ou nova-iorquinos, falantes de Por516

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 517

Cidadania trans-escalar: o Estado, a cidade global e o cidadão

tuguês ou de Inglês, filisteus ou boémios, chefes de família ou homossexuais. Eles podem ser uma combinação de «alguns destes atributos, de todos eles, e de ainda outros mais» (Sennett 2001). Isto não significa, claro está, que diferentes dimensões da identidade social de um indivíduo não enfrentem, pelo menos ocasionalmente, episódios de difícil coexistência. Mas essa dificuldade, causada pela complexidade que subjaz aos padrões de pertença social, é também a fundação da liberdade individual, em especial dessa liberdade de experimentar e de se reinventar a si próprio, que na grande cidade se experiencia. Ao longo da sua história moderna, as cidades têm sido, portanto, libertadoras: o local por excelência onde as identidades sociais podiam ser desafiadas, minadas, aceites, reapropriadas, renegociadas, e, então, finalmente, livremente expressas, de forma pública, senão mesmo performativamente, nos espaços partilhados e publicamente acessíveis que, na cidade, estão sujeitos às visões alternativas dos diferentes grupos. Significativa é, a este respeito, a forma como a escritora Willa Cather, descreve o impacto da sua chegada à «big city» (Greenwich Village, Nova Iorque), vinda da small-town America, em 1906, sobre a assunção (até então reprimida) do seu lesbianismo: «Por fim, neste lugar indecifrável, posso respirar» (citada em Sennett 2001; ver também Sennett 1996). A ilegibilidade da cidade figura aqui, uma vez mais, como condição da individualidade do «eu». Parafraseando Weber, ele próprio citando um antigo ditado da Europa Central, «O ar da cidade liberta» (Weber 1962 [1921], 100). Ou libertaria, caso as várias zonas da cidade e o estilo de vida urbano continuassem a promover o acesso à alteridade, aquela troca da nossa perspectiva pela do «outro», que me coloca em questão e me chama à minha responsabilidade.

Cidades globais como arenas políticas Esta responsabilidade é também política. As cidades globais têm vindo cada vez mais a ser descritas, na literatura sobre o fenómeno urbano, como espaços desempenhando funções económicas e funções políticas fundamentais, talvez mesmo acima das do Estado-nação. Dada a importância crescente da política informal dos novos movimentos sociais, incluindo aqueles formados pelos grupos mais marginalizados, a «cidade global» tem sido vista como o berço de uma concepção cosmopolita ou pós-nacional de cidadania, criada em torno de regimes de direitos humanos e exercida através das fronteiras dos Estados nacionais 517

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 518

Mónica Brito Vieira e Filipe Carreira da Silva

(Held 1995; Habermas 1996, 1998, 2006; Benhabib 2007). A esta luz, a concepção moderna de cidadania, associada ao território do Estado-nação, surge, aos olhos de muitos, como um anacronismo. Isto tem-os levado a proclamar o declínio inevitável da cidadania na era da globalização (ex., Falk 2000). Cidadania significa aqui o tipo liberal e ocidental de relação bilateral de direitos, deveres e obrigações mútuas entre o indivíduo e o Estado, fundado quer em laços de sangue (filiação), quer no território (local de nascimento). O que se crê que as cidades globais estão a questionar é, por conseguinte, a cidadania centrada no Estado, isto é, a relação entre cidadania e o Estado territorial e a sua identificação com a nacionalidade, ainda que num sentido mais político do que cultural (Sassen 1991). O argumento é simples, quando não simplista. As cidades globais são as arenas políticas do futuro; o Estado-nação territorial, por seu turno, uma forma de organização de uma era passada, uma era em que soberania, território, nacionalidade e cidadania coincidiam na perfeição. Na tradicional ordem vestefaliana, cada Estado soberano compreende uma comunidade política composta por cidadãos dotados de obrigações e direitos definidos pelo seu estatuto de cidadãos nacionais e pela sua promessa de fidelidade exclusiva a esse Estado. Na emergente ordem pós-vestefaliana, dizem-nos, as nossas fidelidades e plataformas de acção devem ser globais, porque global é também a natureza dos desafios que enfrentamos. Entre estas plataformas encontramos a cidade global, concebida como a esfera física de acção de uma sociedade civil global, em torno da qual uma cidadania pós-nacional, cosmopolita e distintamente global estará, igualmente, em formação. Tal teria sido o caso quando, por exemplo, a 15 de Fevereiro de 2003, na América do Norte e na América Latina, na Europa, no Médio Oriente, na Ásia e na Austrália, cerca de 30 milhões de indivíduos se manifestaram nas ruas de dezenas de cidades em protesto contra a iminente invasão americana do Iraque (Koch 2003). A sociedade civil global teria então apresentado uma imagem táctil daquilo que poderia vir a ser: uma imagem capturada pelas televisões de todo o mundo. Embora impressionantes, as aparições públicas intermitentes da «sociedade civil global», tais como o protesto antiguerra, levantam tantas questões como certezas acerca do que de «global» haverá nesta sociedade. Distintamente global, poderíamos afirmar, é a concertação em rede que levou à acção simultânea à distância entre diferentes grupos de manifestantes sobre aquele tema em particular, naquele dia em particular. Por detrás da unidade performativa dos manifestantes reside, porém, uma 518

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 519

Cidadania trans-escalar: o Estado, a cidade global e o cidadão

imagem muito mais estilhaçada e complexa. Diferentes manifestantes, nas múltiplas cidades envolvidas, chegaram aos seus pontos de encontro por intermédio de diferentes grupos de afinidade, por vezes distintamente locais na sua organização e causas, e possivelmente, também, por razões individuais e motivações colectivas muito distintas. As pessoas podem ter agido ao mesmo tempo, mas é já mais questionável que o tenham feito exclusivamente em nome de «valores globais». Um jovem britânico anarquista de esquerda, que vê na guerra o selo do imperialismo americano, pode muito bem ter-se manifestado juntamente com um mórmon pacifista, que se opõe a qualquer forma de violência, ainda que revolucionária, e uma simpatizante do Hezbollah, que protestava contra aquilo que interpretou como uma cruzada cristã, destinada a reforçar a posição de Israel no Médio Oriente. Três pessoas a actuarem em conjunto nos nossos ecrãs de televisão, mas na verdade separadas pelos seus modos da vida, pelas suas motivações de acção e pelas suas intenções, que de global podem ter apenas a simultaneidade televisiva. Quando analisado com maior atenção, o «global» pode não ser tão global quanto parece à primeira vista, e, sobretudo, pode ter um estatuto representativo duvidoso. A opinião pública mobilizada não coincide necessariamente com a opinião pública. Na maior parte dos casos, tal não acontece. E na ausência de uma autorização explícita, quaisquer activistas que pretendam falar em nome daqueles que não saíram às ruas estão, na melhor das hipóteses, a lançar uma pretensão contestável. O que, diga-se, está longe de ser surpreendente: as organizações da dita «sociedade global» estão frequentemente sediadas na Europa ou nos Estados Unidos, muitas delas encontram-se cooptadas por grupos de interesse poderosos, incluindo os próprios Estados, e a sua única base social de apoio, a única base que se pode dizer representarem, aqueles que lhes enviam um cheque, ou fazem um donativo, de quando em vez. As suas agendas e políticas são, por conseguinte, quase sempre o produto de profissionais altamente especializados, afastados dos grupos locais ou das partes afectadas, e as suas decisões frequentemente tomadas por conselhos de administração formados por um núcleo pouco inclusivo de indivíduos. Longe de serem as plataformas políticas inclusivas, ligadas horizontalmente em rede, sugeridas por tantos autores contemporâneos, as sociedades civis, globais ou outras, podem simplesmente reproduzir as mais flagrantes assimetrias de poder do nosso tempo (ex., Alexander 1998). Face a uma sociedade civil que pode ficar tão aquém do seu ideal normativo (Lupel 2005), levantam-se questões, por certo legítimas, quanto ao tipo de cidadania que ela pode sustentar. 519

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 520

Mónica Brito Vieira e Filipe Carreira da Silva

Para além da sociedade civil, o regionalismo democrático é uma outra fonte de inspiração para os apologistas da cidadania pós-nacional. A Europa tem sido, indubitavelmente, pioneira na dissolução da relação entre cidadania e nacionalidade (ex., Habermas 2003). Nos Estados-membros da União Europeia, os estrangeiros de países terceiros, caso legalizados, beneficiam, tal como os cidadãos nacionais, de todos os direitos (económicos e sociais) que são estatutariamente atribuídos a estes últimos, embora não dos seus direitos políticos. Para além disto, os Estados-membros da UE chegaram a acordo quanto à criação de uma cidadania europeia que poderia, pelo menos em tese, constituir o embrião de uma cidadania multinível. Existem, todavia, razões de sobra para pensar-se que o conceito e a prática da cidadania europeia são extremamente frágeis quando comparados com a cidadania exercida a nível nacional. A única excepção, admitamo-lo, serão porventura as liberdades de circulação, as quais, em todo o caso, têm uma natureza mais próxima dos direitos típicos do ius gentium do que propriamente dos direitos ditos de cidadania. Para além do argumento algo exagerado de que a cidadania está a ser fortemente diluída pela globalização (veja-se, por exemplo, como os Estados, ou grupos de Estados, estão a tentar controlar os crescentes fluxos migratórios através da sua recategorização como cidadãos nacionais vs. cidadãos não-nacionais da UE; emigrantes políticos ou económicos; estrangeiros, residentes ou cidadãos de pleno direito, etc.), existe uma outra premissa controversa partilhada pela maioria dos autores que escrevem sobre cidades globais. Referimo-nos ao pressuposto de que as transformações provocadas pela globalização estão, após um hiato de algumas centenas de anos, a substituir o Estado pela cidade enquanto objecto privilegiado da reflexão política (veja-se, por exemplo, Holston e Appadurai 1999; Hettne 2000). Tal como Michel Foucault demonstrou nos anos 70, o processo de consolidação do Estado entre os séculos XVII e XIX na Europa Ocidental teve lugar não apenas a nível das instituições mas também, e fundamentalmente, no domínio do pensamento político. O Estado apareceu então pela primeira vez como um objecto dotado de propriedades mensuráveis, tais como a sua riqueza e o seu poder, disponíveis para a análise científica por parte de disciplinas como a aritmética política, a estatística ou a economia política. Pelo contrário, o pensamento político medieval e dos primórdios da era moderna centrou-se, em larga medida, nas cidades e na sua relação, por vezes tempestuosa, com os Estados então emergentes (Isin 1999, 166). Esta herança histórica está agora a ser reapropriada por muita da literatura urbana. A nosso ver, porém, tentar retirar lições de experiências pré-vestefalianas de cidadania urbana para o mundo 520

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 521

Cidadania trans-escalar: o Estado, a cidade global e o cidadão

pós-vestefaliano é uma estratégia problemática. Por detrás deste exercício de comparação encontra-se a crença de que a nossa realidade pós-moderna exige instrumentos conceptuais que não tenham sido contaminados por categorias de análise modernas, centradas na figura do Estado. Deste ponto de vista, o recurso a grelhas analíticas pré-modernas parece, de facto, constituir uma estratégia teórica promissora. Este tipo de estratégia enfrenta, todavia, vários problemas bem conhecidos. Por mais seguros que nos possamos sentir pelas continuidades históricas, a tarefa do verdadeiro historiador é estar aberto a um passado pouco ou nada familiar, onde escusado é buscar «soluções» para novos problemas. Procurar no passado as respostas para os problemas do presente, e mesmo do futuro, impede-nos de ver a verdadeira natureza e o alcance destes. Por exemplo, os efeitos actuais do capitalismo global sobre a natureza mutável, fluida, e essencialmente desterritorializada do poder não têm precedentes, e criam uma nova forma de tensão com o localismo, ainda dominante, das políticas urbanas. Esta tensão explica algumas das recentes tendências para a despolitização urbana (Castells 1989; Bauman 2006). Veja-se o caso dos nómadas globais, indivíduos altamente qualificados e bem remunerados, que circulam de metrópole em metrópole, sem qualquer inclinação para participar na vida cívica das comunidades locais em que vivem temporariamente (López-Ruiz 2007). Incluem-se nesta categoria os «peritos estrangeiros» – localmente conhecidos por «expatriados» – que conferem um carácter «global» a muitas das actuais megacidades asiáticas (Ong 2007). Cidades como Pequim, Xangai ou Kuala Lumpur ocupam uma posição estratégica na ambição dos Estados do Extremo Oriente em acumular talento estrangeiro e know-how criativo dentro das suas fronteiras. As cidades globais asiáticas constituem, deste ponto de vista, locais de fertilização interdisciplinar, capazes de atrair gestores, profissionais liberais e cientistas que podem ajudar a acelerar a acumulação «local» de vários tipos de capital. A recente mudança de um dos principais especialistas mundiais em cidadania, Bryan S. Turner, de Cambridge, Inglaterra, para Singapura ilustra clara, senão ironicamente, esta tendência. A questão que este e outros casos semelhantes suscitam é a seguinte: em que medida é que tais profissionais nómadas se empenharão na vida cívica e política das suas comunidades de destino? De entre os 300 000 expatriados a viver actualmente em Xangai, uma cidade de 14 milhões de habitantes, quantos têm uma voz activa na vida política chinesa? Qual é a influência real das comunidades de expatriados de Xangai, muitos dos quais residentes em condomínios fechados com nomes como «Bellagio» ou «Santa Monica», nas lutas de cida521

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 522

Mónica Brito Vieira e Filipe Carreira da Silva

dania dos chineses? Em que medida o seu potencial de influência sobre a elite política se perde não pela escassez relativa dos números, mas antes por força da auto-segregação político-social? Aihwa Ong, uma antropóloga que tem realizado trabalho etnográfico de relevo sobre este tópico, descreve o tipo de alheamento político que caracteriza estas novas elites urbanas como uma «suspensão de cidadania». Uma «suspensão» que cedo se pode tornar na atitude-tipo de um grande número de urbanitas. Caso a flexibilidade laboral venha a implicar, como tudo indica, uma menor ligação ao local de residência, um menor interesse nos problemas da cidade, e um afastamento do domínio público em geral, é difícil ser-se optimista quanto às possibilidades de as cidades globais, ou simplesmente as grandes cidades, serem as arenas políticas do futuro. E isto é tanto mais difícil quanto a característica que as define como «globais» é, precisamente, a multidão apolítica de gestores e profissionais liberais para quem a cidade global mais não é do que um ponto de paragem temporário nas trajectórias profissionais, um ponto de paragem em relação ao qual, aliás, estas elites se relacionam fundamentalmente enquanto consumidoras de bens e serviços municipais. Um outro ponto que consideramos questionável é o negligenciar do papel do Estado pressuposto nos estudos sobre a cidade, sobretudo se global. Na verdade, e ao contrário do que tais estudos podem levar a crer, os Estados continuam a possuir importantes mecanismos para moldar os contextos económicos e sociais dentro das suas fronteiras. Os actores não-estatais (tais como as empresas multinacionais ou as organizações não-governamentais, vulgo ONG), a par de corpos políticos como as cidades, as regiões ou as federações não podem actualmente agir, ou pelo menos agir proceduralmente com um certo grau de justiça, sem a regulação do Estado. Apesar de todas as teses sugerindo a crescente influência das empresas sobre todos os aspectos da vida contemporânea, incluindo a vida das cidades globais, a verdade é que as empresas estão longe de terem substituído os Estados. As empresas precisam que a moeda seja emitida, que as taxas de juro sejam determinadas, e de ser, elas próprias, reguladas. As empresas acabam, na verdade, por necessitar de muito mais regulação do que é usualmente reconhecido, uma regulação que as impeça, no limite, de cair na pura criminalidade, ou pelo menos na irresponsabilidade, seja ela social, ambiental ou outra (Strath e Skinner 2003, 1-2). Ao insistirmos que os Estados ainda importam não estamos a negar que a escala urbana de governança tem ganho importância no decurso das últimas duas décadas, e muita. Tal facto é indesmentível. As cidades são arenas políticas onde importantes lutas por direitos de cidadania 522

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 523

Cidadania trans-escalar: o Estado, a cidade global e o cidadão

devem ter lugar, a começar pelo próprio direito à cidade (Lefebvre, 1968), sobretudo numa altura em que nelas se registam preocupantes tendências de polarização e desigualdade entre grupos sociais, de privatização do espaço público, ou de distorções severas no mercado de habitação, apenas para dar alguns exemplos. Este é um direito que é devido aos habitantes da cidade, e que dá origem a obrigações quer da sua parte, quer da parte das autoridades municipais: o mecanismo conhecido por «orçamento participativo» ilustra bem esta recente tendência. No entanto, a literatura dedicada ao renascimento da escala urbana de governança – um conceito, aliás, cuja história se confunde com a crítica neoliberal ao Estado-Providência do pós-guerra – padece de uma recorrente limitação. Apesar de ser explicitamente dirigida contra o modo escalar de pensamento que sustenta a modernidade ocidental, a alternativa reescalar proposta por grande parte destes autores acaba mais por expandi-lo ou reproduzi-lo do que propriamente superá-lo. O pensamento escalar caracteriza-se por assumir que as relações entre os diferentes corpos políticos, nomeadamente cidades, regiões, Estados e federações, têm uma natureza exclusiva, hierárquica e a-histórica, e a subvalorizar as múltiplas formas de coexistência entre estes corpos, marcadas pela fluidez e pela sobreposição (Sack 1980, 1986; Isin 2007). As alternativas reescalares, ao defenderem que os direitos de cidadania podem ser desagregados e realocados a diferentes escalas de governança, se possível eliminando a única escala a que, hoje, a noção de governação pode ser aplicada com propriedade (isto é, o Estado), acabam por reproduzir a mesma lógica escalar que começaram por criticar, embora agora não a um, mas a múltiplos níveis (Bauböck 1994, 2003; Brodie 2000; Purcell 2003). A secção final deste capítulo discute algumas das deficiências destas propostas reescalares e propõe uma alternativa capaz, a nosso ver, de superar as limitações quer destas últimas, quer do próprio pensamento político escalar.

Os múltiplos significados de cidadania Os direitos legais, em particular os direitos económicos e sociais, que costumavam ser conferidos apenas aos cidadãos nacionais, têm vindo a ser crescentemente reclamados por estrangeiros e residentes, ao abrigo não da legislação nacional, mas de normas jurídicas internacionais como é o caso da Carta dos Direitos Fundamentais ou da Carta Social Europeia. Um outro caso semelhante diz respeito aos direitos de facto reconhecidos aos imigrantes ilegais, especialmente nos Estados Unidos, tais 523

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 524

Mónica Brito Vieira e Filipe Carreira da Silva

como o direito a ser pago pelo trabalho realizado. Também a dupla cidadania está a ser cada vez mais aceite por Estados, até muito recentemente demasiado zelosos da lealdade exclusiva dos seus cidadãos. O próprio corpo humano tem vindo a complementar a propriedade e a pertença política enquanto locus de direitos legais. Em resultado destes desenvolvimentos, milhões de migrantes viram os seus direitos económicos e sociais reconhecidos, o que significa que acederam a uma quase-cidadania, «quase» porque orfã de uma dimensão política, pelo menos formal. Isto já que, a nível informal, a situação pode ser bem diferente. Em cidades com uma elevada proporção de imigrantes, estes, ainda que em situação ilegal, tendem a participar politicamente, apesar de lhes serem negados direitos políticos formais, como o direito de voto (Varsanyi 2006; Rocco 1999). Veja-se o caso dos milhões de imigrantes que, entre Março e Abril de 2006, saíram às ruas de dezenas de cidades norte-americanas com bandeiras dos Estados Unidos para protestar contra uma proposta legislativa que visava criminalizar os imigrantes ilegais. A proposta de lei em causa, a chamada «H. R. 4437», aprovada meses antes pela Câmara dos Representantes, acabou por não vir a ser aprovada pelo Senado muito por causa das manifestações que haviam marcado esse ano. Estes imigrantes fazem lobby pelos seus interesses a nível local e estadual (por vezes, até a nível nacional), participam ou organizam, eles próprios, manifestações de rua, e apoiam os candidatos ou partidos políticos que demonstram maior simpatia pela sua causa – tudo isto na base de uma cidadania assente na acção efectiva, não no estatuto legal. Todos estes factos são usualmente apresentados como exemplos de como a globalização está a minar o papel do Estado na definição da cidadania. Sucede, porém, que muitos desenvolvimentos podem ser igualmente interpretados como estratégias que os próprios Estados, muitas vezes em concertação, têm desenvolvido para lidar com pressões advenientes da globalização, nomeadamente de pessoas – por exemplo, regimes de direitos humanos como o Conselho Europeu para os Direitos Humanos foram criados por iniciativa de e dependem de implementação por parte de Estados. Em todo o caso, e em consequência destas tendências, o facto é que a cidadania urbana regressou ao centro da agenda política e as teorias reescalares, ao defenderem numerosas formas de se desagregarem as diferentes componentes da cidadania de modo a serem realocados em diferentes níveis de governança, estão a ganhar uma notável popularidade. Um caso paradigmático é o de Rainer Bauböck (2003), que tem vindo a tentar reinventar a própria concepção de cidadania urbana de um modo que consideramos ser típico das propostas re524

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 525

Cidadania trans-escalar: o Estado, a cidade global e o cidadão

escalares. Entre as suas propostas mais concretas incluem-se as seguintes medidas: 1) Reunir as cidades com as suas periferias em jurisdições comuns; 2) Mitigar o impacto político da segregação residencial por intermédio da representação de «distritos» urbanos em órgãos intermunicipais com poderes de tomada de decisão; 3) Desafiar os monopólios nacionais no âmbito das políticas de imigração, comércio e negócios estrangeiros; 4) Estabelecer um estatuto formal de cidadania local que se baseia na residência e não na nacionalidade; 5) Promover múltiplas cidadanias locais e o direito de voto dentro e fora das fronteiras nacionais (Bauböck 2003, 139). Muitos de nós certamente subscreveríamos pelo menos algumas destas propostas. Por exemplo, as duas primeiras propostas parecem ir ao encontro das necessidades de ordenamento urbano e de uma política integrada de transportes intermunicipais que afectam todas as grandes conurbações dos nossos dias, incluindo, entre nós, as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Já as propostas seguintes são, no mínimo, questionáveis. No que diz respeito às propostas 3) e 5), como pode Bauböck pedir ao poder local que lide com as consequências da globalização (por exemplo, as vagas migratórias economicamente motivadas) com recursos (designadamente, um poder político «localizado») que a própria globalização tornou obsoletos? Se os Estados, com toda a experiência e recursos acumulados ao longo de séculos de existência, têm dificuldade em responder a problemas de natureza global, não há razão alguma para crermos que o poder local ou municipal, que em muitos casos replica o poder do Estado, embora em menor escala, o possa fazer de forma mais eficaz. Para além disso, propostas deste tipo subestimam os efeitos potencialmente implosivos da circunstância de os indivíduos terem múltiplas lealdades e responsabilidades justamente naquela área em que os Estados mais têm de agir enquanto actor unitário, a saber, a política externa. No que concerne à proposta de se favorecer o critério «local de residência» em detrimento da nacionalidade enquanto base da pertença política a nível local, a nossa objecção pode ser formulada da seguinte forma: uma vez que este mesmo critério já é utilizado para a concessão da cidadania (a par, por exemplo, do casamento e ascendência), não é claro em que medida a cidadania urbana imaginada por Bauböck se distingue, de facto, da sua congénere nacional, a não ser pela menor escala e pela mul525

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 526

Mónica Brito Vieira e Filipe Carreira da Silva

tiplicação das tensões que ela implica.1 Não é, pois, por acaso, que mesmo na Suíça, em que às autoridades municipais cabe a decisão sobre a naturalização de imigrantes, uma tal autoridade se encontra ainda, e a um tempo, fundada na e limitada pela constituição federal – caso contrário, deixaríamos de ter confederação. Para além do irrealismo de algumas das suas propostas, temos uma outra objecção a fazer a Bauböck, esta de natureza estritamente teórica. Será que ele está realmente a ultrapassar a lógica exclusiva, hierárquica e a-histórica que é tão lesto a criticar no pensamento escalar? Note-se a forma como ele conclui o seu artigo, sugerindo que «uma cidadania urbana, que é emancipada dos imperativos da soberania nacional e da homogeneidade, pode vir a tornar-se no ponto de partida para uma democracia cosmopolita» (2003, 157). Não é preciso muito para ver que tal conclusão mais não faz do que reproduzir a concepção rigidamente estratificada do mundo que o nosso autor começava por criticar. Os custos de se separar «global», «nacional» e «local», ao mesmo tempo que se assume que esta última escala tem, necessariamente, uma natureza mais democrática do que a escala nacional (isto é, o Estado), simplesmente porque é uma escala menor (chamemos-lhe o pressuposto small is beautiful), são bem maiores do que possa parecer. Pois apesar de existirem muitas comunidades de pequena dimensão cujas credenciais democráticas são indiscutíveis, não existe uma relação necessária entre a escala da unidade política e a natureza do seu sistema de governo. Dada a importância desta tese para o nosso argumento, seguem-se alguns exemplos concretos do que temos em mente. Considere-se o exemplo de paisagens urbanas marcadas pela segregação urbana e social (Young 1995, 1999). Um dos estudos mais célebres sobre esta realidade é o City of Walls de Teresa Caldeira, uma análise detalhada sobre as origens, natureza e implicações de Alphaville. Alphaville é um gigantesco condomínio fechado, localizado a vinte quilómetros do centro de São Paulo (500 hectares, 50 000 residentes e aquela que é considerada a melhor polícia privada do mundo), onde uma geração de brasileiros de classe média-alta nasceu e cresceu, numa comunidade reclusa em que as taxas de condomínio rivalizam com os impostos pagos ao Estado brasileiro (Caldeira 2000). As consequências políticas deste viver-se entre iguais, num ambiente sanitizado e securitizado, onde a ausência de encontros físicos com o «outro» é activamente procurada, e bem paga, 1 Gostávamos de agradecer ao Maarten Vink pela sugestão que nos deu a propósito deste ponto em concreto.

526

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 527

Cidadania trans-escalar: o Estado, a cidade global e o cidadão

são facilmente antecipáveis. Mas não são sequer necessários muros e câmaras de vigilância para que as populações vivam na cidade de costas viradas umas para as outras, preocupadas apenas com o seu próprio interesse. As comunidades podem ser fechadas, sem que existam barreiras físicas a separá-las: por exemplo, a auto-organização local, de acordo com a afinidade grupal, especialmente quando combinada com a autonomia local em termos de tomada de decisão, é, regra geral, obstáculo à comunicação, deliberação, negociação e compromisso políticos entre diferentes populações, por exemplo, no que toca a serviços públicos, que poderiam ser «transfronteiriços» (a educação e a saúde são casos paradigmáticos a este respeito). Se a pequena escala não encoraja necessariamente a produção daquilo que Robert Putnam (2000) designa por «capital social de ponte» (bridging social capital), isto é, solidariedade para com membros de grupos que não o nosso, então as comunidades políticas locais que permitem o autofechamento em subcomunidades ainda mais pequenas podem revelar-se exclusionárias, não-democráticas e particularmente nocivas para a vida cívica da comunidade política como um todo (Oliver 1999). Aliás, a tendência geral verificada nas últimas décadas nas sociedades ocidentais mais desenvolvidas tem sido exactamente nesta direcção – em 1992, por exemplo, «existiam 150 000 associações a governar de forma privada a vida de cerca de 32 milhões de americanos» (Bickford 2000, 359), número que certamente terá aumentado ainda mais nos últimos quinze anos. O panorama na área metropolitana de Lisboa começa a não ser muito diferente: só nos concelhos de Cascais, Oeiras e Lisboa existem actualmente quase uma centena e meia de condomínios fechados (Raposo 2008). Nas vidas de um número crescente de residentes na rede de cidades globais que se tem vindo a formar desde há uma década e meia o que conta enquanto «virtude cívica» é a manutenção ou valorização do valor da propriedade, o que conta enquanto «responsabilidade social» é o pagamento das taxas de condomínio. Significa isto que, de certa forma, o desenvolvimento suburbano que ocorreu no período do pós-guerra, primeiro nos Estados Unidos, mais tarde no resto do mundo, e que ganhou um novo ímpeto após o final da Guerra Fria, pode ser, em muitos casos, caracterizado como uma caso de «secessão dos bem-sucedidos» (Bickford 2000, 360). Deste fechamento atrás de muros pouco ou nada beneficia a vida cívica. Lembremo-nos de Morelly, e em particular do Code de la Nature (1755), em que o autor desenha o modelo da «cidade perfeita» iluminista: uma cidade onde os residentes merecedores de «morte cívica, isto é, a 527

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 528

Mónica Brito Vieira e Filipe Carreira da Silva

exclusão perpétua da sociedade», deveriam ser enclausurados em celas parecidas com cavernas, próximas dos biologicamente mortos, dentro do «cemitério murado» (cit. in Bauman 1999, 178). O alargamento do hiato entre mundos da vida, e os seus respectivos espaços físicos, dentro, mas também, de certa forma, «fora» da cidade promove necessariamente se não a morte cívica descrita por Morelly, pelo menos a apatia cívica e a desresponsabilização em relação ao destino dos nossos co-cidadãos fechados em outros tantos bairros do Fim do Mundo. Mas a segregação residencial, com a sua produção introvertida de identidade e sentido, está longe de ser a única indicação empírica de que as unidades de autogovernança subnacionais não são necessariamente mais democráticas do que as suas congéneres nacionais. Tal como Sennett recentemente sugeriu (2006), a própria flexibilidade encorajada pelo capitalismo global parece estar associada ao crescimento da indiferença cívica na vida das grandes cidades. Para além de promover a flexibilidade e a mobilidade, o novo capitalismo incentiva o trabalho intensivo em equipa, sob grande pressão competitiva, orientado para objectivos, determinados, e devidamente recompensados, por gestores. Simultaneamente, esse capitalismo é também responsável pela superficialidade das relações entre os membros das equipas, na medida em que uma vez cumpridas as tarefas, outras equipas podem ser formadas, e outras lealdades (inescapavelmente limitadas no tempo) forjadas. Tal como os pais fundadores da sociologia urbana salientaram, mudanças a nível da organização do capital tendem a produzir profundas consequências na vida cívica e social da cidade. Qual é, pois, o efeito antecipável do capitalismo flexível hodierno sobre as metrópoles dos nossos dias? Em primeiro lugar, verifica-se uma separação física em relação ao local: por exemplo, enfermeiras por conta própria são oito vezes mais susceptíveis de mudarem de local de residência num período de dois anos do que as suas colegas com um vínculo laboral estável; técnicos de software free-lancers são onze vezes mais susceptíveis de mudarem do que os seus colegas que trabalham para uma só empresa. A ausência de um vínculo laboral estável significa, também, uma menor ligação ao local de residência, o que, por sua vez, promove a indiferença cívica, isto é, um certo alheamento relativamente aos problemas que afectam cidades que adoptamos apenas temporariamente. Em segundo lugar, existe uma nítida tendência para a estandartização do ambiente urbano: é, sem dúvida, difícil senão mesmo impossível, sentirmos como «nosso» qualquer Lidl, MacDonald’s ou Continente: a estandardização, como Sennett assinala, induz a indiferença – a indiferença 528

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 529

Cidadania trans-escalar: o Estado, a cidade global e o cidadão

sensorial, acompanhada, de perto, do alheamento face ao local (que deixou de ser «específico») de residência. Em terceiro lugar, temos as relações entre a família e o trabalho, em ambiente urbano: o trabalho flexível e excepcionalmente exigente produz profundas transformações na vida familiar. Mais do que os problemas do desenraizamento geográfico, são os códigos de conduta que regulam o local de trabalho que poderiam destruir famílias, caso trazidos para casa: «não te comprometas», «não te envolvas», «não tenhas lealdades excessivas»: «pensa apenas a curto prazo» (Sennett 2006, 48). Todas estas tendências recentes colocam importantes dilemas à cidadania, dilemas estes relacionados com a vida cívica das comunidades políticas locais, onde a condição existencial de grande parte da população é agora de perpétuo desenraizamento, físico e mental. Uma terceira indicação concreta de que o pressuposto do small is beautiful é enganador diz respeito ao papel emancipatório que, em muitos casos, os Estados desempenharam e continuam a desempenhar na promoção da cidadania (municipal), ainda que por vezes inadvertida, como consequência não intencional de determinada acção. Um exemplo que ilustra bem este facto é a consagração do direito à habitação pelo Estado Novo, que serviria de base, após 25 de Abril de 1974, à emergência de um forte movimento popular, ainda que descontínuo, liderado por associações de moradores (Baptista 1999). Centrar a análise exclusivamente na escala urbana pode, ademais, levar-nos a subestimar quão central tem sido a cidadania nacional para a emancipação cívica de populações inteiras. O trabalho do cientista político José António Aguilar sobre «governo misto» no México é, deste ponto de vista, exemplar. Citando o célebre aviso de Hobbes sobre os perigos inerentes ao «governo misto» no capítulo XXIX do Leviatã, Aguilar argumenta que a autonomia das comunidades locais tem sido prejudicial ao desenvolvimento de uma cidadania efectiva naquele país da América Latina. O autor identifica o Estado mexicano como o responsável por esta situação, na medida em que se tem revelado incapaz de fornecer serviços públicos básicos, incluindo a justiça e a segurança, deixando-os nas mãos de colectividades locais, como é o caso das comunidades urbanas. Acontece, porém, que esta autonomia comunitária tem sido usada, e abusada, para justificar um conjunto de práticas deletérias, incluindo a «justiça» popular, «administrada» por intermédio de linchamentos populares, em praça pública (cit. in Gordon e Stack 2007, 126). Tal como o poder local não é necessariamente emancipatório, também não deve ser concebido como deliberativo, em oposição ao carácter 529

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 530

Mónica Brito Vieira e Filipe Carreira da Silva

necessariamente representativo do Estado. Como Louis Wirth havia já enfatizado em 1938, qualquer comunidade composta por um elevado número de indivíduos que não se podem conhecer ou cruzar face a face deve articular interesses através de um processo mediado de representação (Wirth 1938): tal é o caso das cidades modernas. Para além do mais, a igualdade política, até nas unidades políticas de menor dimensão, pode ser mais bem servida pela representação formal, com os seus mecanismos de autorização e responsabilização, do que com a representação de facto de uma maioria passiva por parte de uma minoria particularmente activa. As comunidades urbanas, segmentadas em redes locais, muitas vezes de natureza étnica, baseiam-se frequentemente na identidade para defender os seus interesses, quando não o seu destino colectivo. Acontece que este tipo de afinidade, em especial quando confundida com uma «natural» identidade de interesses, não é favorável ao princípio da representação enquanto diferença, sem o qual a deliberação democrática dificilmente terá lugar (Plotke 1997). Isto porque o que é a deliberação democrática senão um processo de participação em discussões sobre problemas de interesse comum, em antecipação a, ou reacção a, actos e decisões dos nossos representantes, cientes de que estes serão sempre outros que não nós, e que o «nós» em nome do qual eles falam e actuam é, não uma entidade preexistente, mas algo construído dialecticamente em interacção com os múltiplos «nós» que efectivamente somos? Por outro lado, é mais provável que diferentes grupos de uma mesma comunidade política, em particular se divididos nos seus mundos da vida, se abram à discussão das suas diferenças, caso a base de tal discussão seja preparada e alargada por representantes, que por definição (e função), devem estar abertos à possibilidade de mudar e ajustar as suas posições em deliberação com outros representantes. Em suma, as nossas reservas em relação às propostas reescalares, que têm vindo a ganhar popularidade nos últimos anos, podem ser sumarizadas da forma que se segue. A realidade não se confunde ou reduz a um conjunto estratificado de níveis ou escalas – local, nacional, global – em que a acção humana adquire um carácter independente. Se quisermos compreender os direitos de cidadania, não podemos simplesmente desagregar os vários tipos de direitos constitutivos da moderna concepção de cidadania e redistribuí-los por diferentes níveis de governança. Ainda que seja verdade que o paradigma liberal privilegiou uma determinada escala (a escala nacional, representada pelo Estado-nação), em detrimento das demais, a alternativa não reside em privilegiar os outros níveis, agora em detrimento do Estado (ex., Cohen 1999). Tal significaria subscrever 530

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 531

Cidadania trans-escalar: o Estado, a cidade global e o cidadão

a mesma lógica escalar que permeia o paradigma liberal e que se desejava ultrapassar. O cerne da questão é que a própria escala é uma construção humana. Somos nós que estabelecemos as fronteiras; somos nós que definimos onde acaba a cidade e começa o campo; somos nós que distinguimos entre os níveis local, regional, nacional e global de governança. Aqueles que propõem associar certos níveis de governança ao exercício de certos direitos de cidadania parecem esquecer-se disto. Uma coisa é a nossa percepção do mundo como dividido em múltiplas camadas; outra bem diferente é ter tal percepção por única possível, e a única que representa o mundo tal como ele é. Mais satisfatório é conceber a cidade como um contexto de acção em que o cidadão, os direitos de que usufrui, as condições socioeconómicas e institucionais que lhes servem de garantia, a economia que promove e questiona muitos desses direitos, a cultura política e de consumo que os transforma, todos eles contribuem para a sua definição mútua. É uma questão empírica a de determinar o peso relativo de cada uma destas contribuições. Mas o alcance de cada acto particular de cidadania, esse, pode apenas ser captado se abandonarmos uma lógica estratificada rígida, e virmos esse acto como resultado de uma pluralidade de factores, usando e atravessando, na sua incorporação concreta, a ossatura inflexível das escalas. Um exemplo pode ajudar-nos a clarificar este ponto. Imaginemos uma jovem protestando no Largo Camões, em Lisboa, contra a invasão do Iraque na manhã do dia 15 de Fevereiro de 2003. O exercício daquele direito específico de cidadania, naquela demonstração, naquela cidade, naquela data em concreto, pode ser percebido apenas quando o concebemos como resultado de uma intersecção complexa de factores e escalas. Senão vejamos: o seu direito de manifestar-se contra uma decisão do seu governo/parlamento é-lhe concedido/garantido pelo Estado; o exercício do direito é espacialmente localizado, dependendo da autorização prévia de autoridades locais. Mas o objecto do acto, tal como o seu ambicionado alcance, é internacional (isto é, impedir a guerra num outro país), transnacional (influenciar, nesse sentido, a opinião pública de outros países), bem como nacional (isto é, objectar uma decisão do seu governo («não em meu nome» foi o slogan de muitos dos manifestantes), que implica o envio de tropas para um outro país e a sustentação, pelo contribuinte, do esforço de guerra. Os valores humanitários e políticos por detrás da sua acção podem ser mais ou menos globais, mas, à medida que ela os incorpora, eles são apropriados, e, à medida que ela actua, eles 531

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 532

Mónica Brito Vieira e Filipe Carreira da Silva

estão a ser redefinidos e estão a redefini-la, enquanto pessoa e cidadã. Um tal processo de incorporação, performance e redefinição pode apenas ser entendido se superarmos a comum tricotomia entre: 1) cidadania como estatuto legal; 2) cidadania como identidade, pertença e estatuto social; e 3) cidadania como prática, e evitarmos alinhar diferentes direitos em diferentes níveis espaciais e políticos, esquecendo o quanto a sua prática os transcende. Muito em particular, a performance de qualquer acto concreto de cidadania usa, irrompe e extravasa, quase sempre, categorias e escalas predefinidas. Crítico é, pois, perceber a forma como estes extravasamentos reconstituem a cidadania, designadamente através da luta de diferentes grupos sociais, tal como reinventada ao longo do tempo. É pois pelo corpo dos cidadãos que a cidadania que os inclui, tantas vezes a custo de sofrimento e silenciamento, num mesmo corpo político, ganha vida.

Biliografia Alexander, J. 1998. Real Civil Societies: Dilemmas of Institutionalization. Londres: Sage. Baptista, L. 1999. Cidade e Habitação Social. O Estado Novo e o Programa das Casas Económicas em Lisboa. Oeiras: Celta. Bauböck, R. 1994. From aliens to citizens: redefining the status of immigrants in Europe. Brookfield: Avebury. Bauböck, R. 2003. «Reinventing urban citizenship». Citizenship Studies, 7 (2): 139-160. Bauman, Z. 1999. «Urban space wars: on destructive order and creative chaos». Citizenship Studies, 3 (2): 173-185. Bauman, Z. 2006. Confiança e Medo na Cidade. Lisboa: Relógio D’Água. Benhabib, S. 2007. «Ttwilight of sovereignty or the emergence of cosmopolitan norms? Rethinking citizenship in volatile times». Citizenship Studies, 11 (1): 19-36. Bickford, S. 2000. «Constructing inequality. City spaces and the architecture of citizenship». Political theory, 28 (3): 355-376. Brodie, J. 2000. «Imagining democratic urban citizenship». In Democracy, Citizenship and the Global City, ed. E. Isin. Nova Iorque, NY: Routledge, 110-128. Caldeira, T. 2000. City of Walls: Crime, Segregation, and Citizenship in São Paulo. Berkeley, CA: University of California Press. Castells, M. 1989. The Informational City. Information Technology, Economic Restructuring, and the Urban-Regional Process. Oxford: Basil Blackwell. Cohen, J. 1999. «Changing paradigms of citizenship and the exclusiveness of the demos». International Sociology, 14 (3): 245-268. Falk, R. 2000. «The decline of citizenship in an era of globalization.» Citizenship Studies, 4 (1): 5-17. Gordon, A. E Stack, T. 2007. «Citizenship beyond the state: thinking with early modern citizenship in the contemporary world». Citizenship Studies, 11 (2): 117-133.

532

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 533

Cidadania trans-escalar: o Estado, a cidade global e o cidadão Held, D. 1995. Democracy and the Global Order from the Modern State to Cosmopolitan Governance. Cambridge: Polity Press. Habermas, J. 1996. «Three normative models of democracy». In Democracy and Difference. Contesting the Boundaries of the Political, org. Seyla Benhabib. Princeton, NJ: Princeton University Press, 21-30. Habermas, J. 1998. Inclusion of the Other: Studies in Political Theory. Cambridge, MA: MIT Press. Habermas, J. 2003. «Toward a cosmopolitan Europe». Journal of Democracy, 14 (4): 86-100. Habermas, J. 2006. The Divided West. Cambridge: Polity Press. Hettne, B. 2000. «The fate of citizenship in post-Westphalia». Citizenship Studies, 4 (1): 35-46. Holston, J., e A. Appadurai. 1999. «Introduction: cities and citizenship». In Cities and Citizenship, ed. J. Holston. Durham: Duke University Press, 1-18. Isin, E. 1999. «Introduction: cities and citizenship in a global age». Citizenship Studies, 3 (2): 165-171. Isin, E. 2007. «City.State: critique of scalar thought». Citizenship Studies, 11 (2): 211-228. Koch, C. 2003. 2/15: The day the world said no to war. Oakland, CA: AK Press. Lefebvre, H. 1968. Le droit à la ville. Paris: Éd. du Seuil. López-Ruiz, O. 2007. Os Executivos das Transnacionais e o Espírito do Capitalismo: Capital Humano e Empreendedorismo como Valores Sociais. Rio de Janeiro: Azougue Editorial. Lupel, A. 2005. «Tasks of a global civil society: Held, Habermas and democratic legitimacy beyond the nation-state». Globalizations, 2 (1): 117-133. Oliver, J. 1999. «The effects of metropolitan economic segregation on local civic participation». American Journal of Political Science, 43 (1): 186-212. Ong, A. 2007. «Please Stay: pied-a-terre subjects in the megacity». Citizenship Studies, 11 (1): 83-93. Plotke, D. 1997. «Representation is democracy». Constellations, 4 (1): 19-34. Purcell, M. 2003. «Citizenship and the right to the global city: reimagining the capitalist world order». International Journal of Urban and Regional Research, 27: 564-590. Putnam, R. 2000. Bowling Alone: The Collapse and Revival of American Community. Nova Iorque, NY: Simon and Schuster. Raposo, R. 2008, «Condomínios fechados – paradigma e paisagem: a ilustração de Lisboa». Análise Social, 186 (1). Rocco, R. 1999. «The formation of Latino citizenship in southeast Los Angeles». Citizenship Studies, 3 (2): 253-266. Sack, R. 1980. Conceptions of Space in Social Thought: a Geographic Perspective. Londres: Macmillan. Sack, R. 1986. Human Territoriality: Its Theory and History. Cambridge: Cambridge University Press. Sassen, S. 1991. The global city: New York, London, Tokyo. Princeton, NJ: Princeton University Press. Sennett, R. 1996. Uses of Disorder: Personal Identity and City Life. Londres: Faber. Sennett, R. 2001. A flexible city of strangers. Le Monde Diplomatique (Fevereiro). Sennett, R. 2006. «Capitalism and the city». In Toward a New Metropolitanism. Reconstituting Public Culture, Urban Citizenship, and the Multicultural Imaginary of New York and Berlin, eds. G. Lenz, F. E. Ulfers e A. Dallmann. Heidelberg: Universitätsverlag Winter, 39-51.

533

24 MVCabral Cap. 24_Layout 1 6/24/13 10:03 AM Page 534

Mónica Brito Vieira e Filipe Carreira da Silva Simmel, G. 1950 [1903]. «The metropolis and mental life». In The Sociology of Georg Simmel. Nova Iorque: Free Press, 409-424. Strath, B, e Q. Skinner. 2003. «Introduction». In States and Citizens. History, Theory, Prospects, eds. B. Strath e Q. Skinner. Cambridge: Cambridge University Press, 1-8. Varsanyi, M. 2006. «Interrogating ‘urban citizenship’ vis-à-vis undocumented migration». Citizenship Studies, 10 (2): 229-249. Weber, M. 1962 [1921]. The City. Nova Iorque, NY: Collier Books. Wirth, L. 1938. «Urbanism as a way of life». American Journal of Sociology, 44 (1): 1-24. Young, I. 1995. «Together in difference: transforming the logic of group political conflict. In The Rights of Minority Cultures, ed. W. Kymlicka. Oxford: Oxford University Press, 155-176. Young, I. 1999. «Residential segregation and differentiated citizenship». Citizenship Studies, 3 (2): 237-252.

534

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 535

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro Filipe Souza Corrêa

Capítulo 25

Cultura política, cidadania e representação na urbs sem civitas: a metrópole do Rio de Janeiro* Introdução O presente capítulo se insere na linha de várias investigações que, em diferentes disciplinas e a partir de enfoques teóricos distintos, vêm buscando entender o comportamento político do brasileiro e sua relação com a construção da cidadania. Os artigos e livros publicados nos campos da sociologia política e da ciência política têm convergido na focalização da análise da relação entre os cidadãos e as instituições, na compreensão dos valores que fundamentam as suas atitudes e as suas disposições cívicas para o comportamento político. Tais análises têm também convergido na identificação da desconfiança interpessoal e nas instituições democráticas como o traço marcante destes valores e atitudes, portanto, fundamento da constituição de um ethos semelhante ao familismo amoral (Reis 1995) e da constituição de um comportamento caracterizado pelo hobbesianismo social (Santos 1993). Estes autores identificam no ambiente social e cultural brasileiro e no funcionamento das nossas instituições políticas os fundamentos da racionalidade de um comportamento político orientado pelo egoísmo, pelo individualismo e pela recusa à ação coletiva fora do círculo restrito pelas relações pessoais. Segundo Rennó Jr. (1999, 107), uma abordagem denominada de racionalidade cultural adaptativa permite considerar a forma como a cultura * Este texto retoma e desdobra questões apresentadas no capítulo «Cultura política na metrópole fluminense: cidadania na metrópole desigual» do livro Cultura Política, Cidadania e Voto: Desafios para a Governança Metropolitana, orgs. Sérgio de Azevedo, Orlando A. dos Santos Júnior e Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro (Rio de Janeiro: Letra Capital, 2012). Publicado na revista Sociologias (Porto Alegre), 14 (30), Agosto de 2012.

535

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 536

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Filipe Souza Corrêa

política do cidadão interfere no cálculo racional imediato para o comportamento político. Segundo essa perspectiva, a lógica da desconfiança 1 surge no contexto brasileiro como resposta racional adaptativa aos constrangimentos e incentivos gerados por contextos sociais e institucionais cujas características seriam: (i) a existência de elevados índices de presença da violência nas relações interpessoais e mesmo na relação entre os indivíduos e as instituições de segurança pública; (ii) as fortes desconfianças da população quanto à real capacidade do Estado para administrar a Justiça; (iii) o baixo grau de efetividade das políticas públicas no atendimento das demandas básicas da população; e (iv) as desigualdades sociais objetivas e subjetivas persistentes na sociedade, criando a percepção coletiva de mundos sociais hierarquizados e distanciados. Todos estes elementos convergem na criação e difusão de um sentimento de insegurança e incerteza que gera um ambiente cultural dominado pela desconfiança, seja nas relações interpessoais, seja em relação às instituições, elevando consideravelmente os custos da participação sociopolítica. Portanto, causas estruturais, culturais e institucionais são identificadas por estes autores como fundamentos da constituição de uma lógica da desconfiança, guiando o comportamento político do brasileiro, bloqueando a constituição de uma cidadania ativa, e, por consequência, criando impasses para a consolidação de uma democracia plena no Brasil.

Cidade, cidadania e cultura política no Brasil O objetivo central do presente artigo é o de contribuir para o aprofundamento deste debate sobre a lógica da desconfiança, explorando a dimensão urbana dos mecanismos explicativos da permanência desta lógica na sociedade brasileira. O nosso ponto de partida é a constatação empírica de um baixo grau de confiança interpessoal e política na população da metrópole do Rio de Janeiro a partir de análise dos dados de um survey 2 sobre cultura política e cidadania que utilizou os indicadores do In1 «O cidadão não encontra, cultural e institucionalmente, incentivos seletivos para buscar solucionar seus conflitos diários na esfera pública. O ambiente cotidiano desestimula a busca de órgãos estatais para resolver seus problemas, assim como o envolvimento em comunidades com fins comuns, porque prevalece uma sensação generalizada de desconfiança quanto ao próximo, às leis e às organizações públicas. A essência da lógica da desconfiança é a imprevisibilidade dos comportamentos alheios» (Rennó Jr., 2000). 2 Esta pesquisa foi realizada pelo Observatório das Metrópoles em parceria com o Instituto Universitário de Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (IUPERJ) e com o Instituto de Ciências Sociais (ICS) de Lisboa. O objetivo central foi identificar a percepção,

536

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 537

Cultura política, cidadania e representação na urbs sem civitas

ternational Social Survey Programme (ISSP) (http://www.issp.org). Tomando como referência o modelo teórico da cultura cívica, não se identificou nesta pesquisa a conexão esperada entre a confiança (interpessoal ou política), a cultura cívica e a mobilização política dos indivíduos metropolitanos. Este resultado incentivou-nos a refletir sobre os fundamentos urbanos desta conexão truncada da cultura política na metrópole do Rio de Janeiro. Ao refletir sobre a instalação da República no Brasil, José Murilo de Carvalho (1987) destacou que esta transformação histórica resultou num divórcio entre a sociedade política e a sociedade urbana da cidade do Rio de Janeiro, gerando uma cultura política empobrecida em termos de virtudes cívicas, caracterizada pela desconfiança interpessoal e nas instituições, pelo distanciamento dos governantes em relação ao povo, e pela fragmentação das formas associativas. Considera-se que este elemento histórico se transformou em realidade social ao gerar uma cultura política e desenhar instituições políticas que reproduzem esta dissociação, com base numa «escassez de cidade», metáfora criada por Maria Alice de Carvalho (1995). Antes de prosseguirmos é importante destacar a relevância da cidade para a consolidação das bases da cidadania em contraponto à submissão pessoal. Segundo Weber (2009, 427), a cidade ocidental se caracterizou pela substituição da solidariedade hierárquica baseada nos laços de pertencimento aos grupos de clã por uma solidariedade horizontal baseada nas associações contratuais de bases territoriais. Essa perda de privilégios estatutários gerou, portanto, um relativo nivelamento social. Ou seja, a cidade ocidental teria constituído uma experiência coletiva centrada na valorização de indivíduos livres e iguais, assim como na existência de ins-

os valores e as práticas vinculadas ao exercício da cidadania e a dinâmica democrática nas duas metrópoles. Na metrópole do Rio de Janeiro, pudemos aplicar o questionário em uma amostra excedente que nos permitiu não apenas explorar os indicadores para o conjunto desta região, como também desagregar os dados em grandes áreas, visando explorar eventuais diferenciações na cultura cívico-política fluminense tendo em vista a diversidade social e urbana da metrópole. Foram entrevistadas 1010 pessoas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. No que se refere ao perfil da amostra, temos 52,7% de mulheres e 47,3% de homens, todos maiores de 18 anos, distribuídos entre as seguintes faixas etárias: (i) 31,1% entre 18 e 29 anos; (ii) 32% entre 30 e 44 anos; (iii) 21,7% entre 45 e 59 anos; (iv) 12,7 entre 60 e 74 anos; e (v) 1,7 com mais 75 anos. A maior parte dos entrevistados é solteira (53,6%), mas também é significativo o percentual de casados (32,5%). A amostra também contou com 7,1% de viúvos e 6,8% de separados ou divorciados. Em geral, o nível de escolaridade dos entrevistados é baixo, prevalecendo pessoas que cursaram até o nível médio incompleto (68,5% da amostra).

537

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 538

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Filipe Souza Corrêa

tituições sociais e políticas geradoras de um sentimento de autonomia e de integração a uma comunidade citadina. No caso das cidades latino-americanas, as investigações de Fernando Henrique Cardoso (1975) e Richard Morse (1975) convergiram para a constatação de que o fenómeno da urbanização não realizou as mudanças sociais descritas por Weber, ou seja, a experiência urbana, apesar de ter produzido um ambiente cultural favorável à disseminação dos valores da liberdade e da igualdade moral, não conseguiu gerar instituições sociais e políticas baseadas num sentimento de comunidade cívica. É com base nesta constatação que Cardoso cunha a interessante expressão «cidade sem cidadania» (Cardoso 1975, 162). Portanto, a «cidade escassa» é a manifestação no espaço de condições sociopolíticas que reproduzem uma ética que orienta e legitima o comportamento social fundado na atitude privatista e na busca da realização de interesses particulares a qualquer custo, seja nas interações entre grupos sociais, seja na interação entre os indivíduos e os grupos, e mesmo na interação entre estes grupos e o poder público. A marginalização de grande parte da população em relação aos direitos de cidade ou direitos de cidadania 3 (em latim, civitas) tem como fundamento a manutenção de fortes desigualdades sociais em termos do direito à cidade. Ou seja, podemos dizer que são as desigualdades de acesso aos elementos que compõem o bem-estar urbano (transportes, saneamento, habitação, etc.) e de acesso às oportunidades de melhoria das condições de vida (educação e trabalho) que fundamentam os diferenciais de cidadania entre os indivíduos no espaço metropolitano. A hipótese que buscaremos construir e sedimentar neste trabalho é de que o bloqueio ao acesso a estes recursos implica a inserção de grande parte da população metropolitana nas inúmeras redes de subordinação pessoal presentes na base da sociedade carioca, o que favoreceria também a manutenção no tempo de instituições políticas que reproduzem essa dissociação (das máquinas partidárias clientelísticas às entidades assistencialistas mantidas por parlamentares). Esta cultura política estaria na base, tanto dos comportamentos dos agentes que controlam os circuitos da contravenção e do crime, quanto

3 Cidadania aqui entendida enquanto o gozo pleno dos direitos civis, que garantem a vida em sociedade, dos direitos políticos, que garantem a participação no governo da sociedade, e dos direitos sociais, que garantem a participação dos indivíduos na riqueza produzida coletivamente (Carvalho 2001,9-10).

538

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 539

Cultura política, cidadania e representação na urbs sem civitas

da permanente subordinação pessoal daqueles que não têm recursos para o exercício do poder; e por meio de mecanismos e condições que reproduzem relações de hierarquia e patronagem, integrando de maneira subordinada e seletiva aqueles que estão na margem da «cidade escassa». Tais relações seriam necessárias na medida em que os marginalizados da cidade, sendo portadores de direitos políticos formais, são chamados a validar um sistema representativo incapaz de universalizar os interesses particulares. Por outras palavras, através da hierarquia e da patronagem, os marginalizados passam a fazer parte da «cidade escassa», mas essa integração dá-se de forma subordinada aos donos do poder, e por meio de dinâmicas fragmentadoras da coesão social, já que a escassez de cidade proporciona chances desiguais para os individíduos terem seus interesses e demandas atendidos. Com isso, fecha-se o circuito: os que estão na margem da cidade devem também estabelecer entre si um diferencial de poder a fim de assegurar uma parcela da acumulação dos escassos recursos urbanos (transporte, saneamento, pavimentação, habitação, escola, etc.). Na constituição e reprodução da cidade escassa, três elementos têm importância e atuam reforçando-se mutuamente. O primeiro relaciona-se à formação histórico-geográfica da cidade. O sítio acidentado em que a cidade está fundada, associado a sua história social, facilitou a constituição de mundos sociais distanciados do ponto de vista territorial com a separação das elites e as camadas populares, especialmente com a explosão demográfica do final do século XIX. O segundo tem a ver com a geografia social da cidade que alimentou, durante muitos anos, intensas desigualdades sociais expressas especialmente nas desigualdades urbanas. Essa geografia social teve como base o modelo de política de tolerância total com a ilegalidade da propriedade da terra, através da aceitação tácita pelo poder público dos processos de favelização e de construção de loteamentos ilegais e clandestinos nas áreas periféricas. A precariedade das condições urbanas a que foi submetida grande parte da população da metrópole do Rio de Janeiro expressa a não universalização de direitos básicos de cidadania necessários à proteção e à autonomização dos indivíduos perante aqueles que detêm o poder. Os efeitos dessa geografia social na reprodução do poder são catastróficos. Tomando como referência o citado trabalho de Reinhard Bendix (1996), podemos dizer que a legitimidade da autoridade pública na cidade do Rio de Janeiro não se fundou na permuta entre o consentimento da subordinação ao Estado e a proteção dos direitos públicos – neste caso, os direitos urbanos – que colocasse os indivíduos (e gru539

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 540

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Filipe Souza Corrêa

pos) ao abrigo das relações de poder.4 Ao contrário, o Estado teve de buscar outras formas de legitimação baseadas no binômio submissão-favor entre as camadas populares e os agentes do poder público. Por fim, o terceiro elemento seria a violência como forma de sociabilidade que, segundo Maria Alice Rezende de Carvalho (1995), é decorrente da frágil legitimidade do Estado. Neste sentido, o texto abaixo transcrito sintetiza bem o pensamento da autora: Com base, então, nesse quadro de referência, sublinharei uma dimensão política do problema da violência, chamando a atenção menos para os riscos conjunturais que um fenómeno dessa extensão pode introduzir na condução democrática do governo, e mais para o problema da autonomização crescente da organização social em relação ao quadro político-institucional. Quero dizer que a violência nas grandes cidades brasileiras está associada à baixa legitimação da autoridade política do Estado, cujo privatismo «congénito» estreitou excessivamente a dimensão da polis, condenando praticamente toda a sociedade à condição de bárbaros. A expressão «cidade escassa» refere-se a isto, ou seja, à dimensão residual da cidadania e, portanto, à sua parca competência para articular os apetites sociais à vida política organizada – isto que, no mundo das idéias políticas, caracteriza a «cidade liberal-democrática» [Carvalho 1995, 4].

Em resumo, no contexto da «cidade escassa», o Estado não se orienta para o uso da autoridade consentida com vistas à generalização de um pacto social estável e universalista, pelo contrário, a experiência social passa a se organizar com base em intensa fragmentação de juízos. Nesse sentido, a evolução política carioca e o padrão de ética social que deriva dela podem ser apresentados como uma história de variados tipos de nexo entre indivíduos e grupos selecionados e a esfera estatal que, embora mais recentemente tenha propiciado alguma integração social, não ins-

4 A importância da manutenção da ilegalidade e mesmo da irregularidade da posse da terra na constituição de frágil cultura cívica das nossas cidades não foi objeto de merecidas reflexões aprofundadas por parte da sociologia política. Por frágil cultura cívica estamos nos referindo ao baixo grau de consciência de deveres e direitos com relação aos interesses gerais da sociedade, encarnados pelo Estado. Em parte, a pouca atenção concedida a este tema pela sociologia deve-se à associação abusiva entre os direitos de propriedade privada e a ideologia do «individualismo possessivo». Em texto relativamente recente Robert Castel, fazendo uma reflexão sobre a insegurança social contemporânea, a partir de atenta leitura de clássicos da sociologia política (como Locke) nos brinda com interessantes e instigantes páginas sobre como foi necessária a disseminação da concepção do direito de propriedade privada como proteção dos indivíduos contra os arbítrios da dominação pessoal, para que, posteriormente, se instituísse na sociedade a noção de propriedade social que funda o contrato social do Estado do Bem-Estar (Castel 2003).

540

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 541

Cultura política, cidadania e representação na urbs sem civitas

creveu a política representativa como a arena privilegiada para a resolução de demandas por parte dos marginalizados. Como aponta Carvalho (1995, 4), o resultado desse processo se traduziria, hoje, em duas práticas facilmente identificáveis: de um lado, a «apatia» da sociedade em relação à atuação na esfera pública, e de outro, no comportamento da parcela mais pobre da população, que espera ser capturada pela malha do clientelismo urbano, agora exercido não apenas pelos seus agentes tradicionais, mas também por segmentos da burocracia estatal, igrejas e organizações não-governamentais, cuja ação em meio à carência tende a confirmar estratégias de uma racionalidade perversa, já que são orientadas para a persistência desses vínculos de clientela. É com base nesse quadro de referência que buscamos refletir sobre alguns indicadores relativos às desigualdades das pré-condições do exercício da cidadania e aos diferenciais de intensidade de modalidades do exercício da cidadania no interior da metrópole fluminense.

Cultura política escassa na metrópole fragmentada Uma das dimensões explicativas da hipótese da «escassez de cidade» enunciada por Maria Alice de Carvalho é o surgimento de uma orientação política voltada mais para a resolução individualista dos conflitos do que pela resolução compartilhada dos mesmos, destacando o facto de que esta orientação política predatória estaria fundamentada na organização socioespacial da metrópole fluminense. Com base nesta perspectiva, consideramos que uma análise mais profunda das possíveis variações internas da cultura política na metrópole fluminense poderia ajudar-nos a pensar os efeitos dessa organização socioespacial fragmentada sobre a conformação dos padrões de comportamento, crenças, valores e atitudes em relação à política. A hipótese é que as áreas segregadas da metrópole são propícias para o surgimento de uma cultura da desconfiança, seja nas interações sociais, seja na interação com as instituições políticas; assim como para a manutenção de práticas políticas orientadas menos para a representação política formal e mais para a resolução negociada das suas necessidades e carências, de infra-estrutura e/ou de bem-estar urbano. Para isso, veremos como se configura essa organização socioespacial da metrópole fluminense em termos do nível de rendimento, de acordo com a distribuição da média do rendimento familiar per capita de acordo com as áreas internas da metrópole; do nível de escolaridade, de acordo com a dis541

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 542

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Filipe Souza Corrêa Figura 25.1 – Áreas de ponderação da RMRJ segundo os níveis de renda familiar per capita

Fonte: Corrêa, 2011

tribuição da média por área da média dos anos de estudo dos adultos nos domicílios que compõem essas áreas; e por meio da distribuição das carências de uma infra-estrutura de serviços públicos (Corrêa 2011, 101). Em primeiro lugar, calculámos a média dos diferentes níveis de rendimento familiar per capita por área de ponderação do Censo Demográfico de 2000, e em seguida, a fim de facilitar a visualização da distribuição da renda familiar per capita pelo espaço metropolitano dividimos esta distribuição em quartis, o que nos permite classificar essas áreas em quatro níveis de rendimento («baixa», «médio-baixa», «médio-alta», e «alta»). A espacialização dos quartis de renda familiar per capita para as áreas de ponderação da RMRJ indica que, apesar do dinamismo económico crescente dos municípios da baixada fluminense como Nova Iguaçu e Duque de Caxias, a distribuição espacial do rendimento ainda apresenta um marcado padrão centro-periferia, com alguma elevação na renda nas áreas centrais dos municípios do entorno metropolitano; porém, a grande maioria das áreas dos municípios do entorno apresentam um nível de rendimento entre médio-baixo e baixo. 542

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 543

Cultura política, cidadania e representação na urbs sem civitas Figura 25.2 – Áreas de ponderação da RMRJ segundo os níveis do clima educativo domiciliar médio

Fonte: Corrêa, 2011

Em seguida apresentamos a classificação das áreas da metrópole fluminense de acordo com a média dos anos de estudo dos adultos (indivíduos acima de 25 anos) nos domicílios; essa variável é conhecida como clima educativo domiciliar. Estudos recentes sobre a segregação residencial e as desigualdades sociais têm destacado a capacidade desta variável em sintetizar as desigualdades sociais expressas no território, pois apresenta resultados significativos sobre o rendimento escolar de crianças e adolescentes, sobre as chances de jovens e adultos terem acesso a oportunidades de emprego de qualidade e bem remunerados (Ribeiro e Koslinsky 2010; Ribeiro, Rodrigues e Corrêa, 2010; Zuccarelli e Cid 2010). A espacialização dos quartis do clima educativo domiciliar indica a assimetria da distribuição desta variável entre as diferentes áreas do espaço metropolitano já que a média do clima educativo no quartil mais baixo (5,05 anos de estudo) é praticamente a metade da média do clima educativo no quartil mais elevado (10,17 anos de estudo). Para identificarmos a distribuição espacial das carências de serviços de infra-estrutura criamos um índice composto que tem como objetivo

543

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 544

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Filipe Souza Corrêa Figura 25.3 – Áreas de ponderação da RMRJ segundo os quartis do índice de carência de infra-estrutura

Fonte: Corrêa, 2011

discriminar a percentagem de pessoas nas áreas de ponderação vivendo em domicílios que apresentam carência de pelo menos um serviço de infra-estrutura como abastecimento de água, esgotamento sanitário, e colecta de lixo.5 Constatamos com base neste índice (figura 25.3) que 25% das áreas de ponderação da RMRJ apresentavam em 2000 um índice de carência variando entre 24,02% e 79,35% de pessoas residindo em domicílios em alguma das quatro situações de carência, e novamente as áreas mais carentes de infra-estrutura na RMRJ localizam-se em grande parte nos municípios periféricos da RMRJ. Em alguns municípios todas as áreas de ponderação apresentaram entre 24,02% ou mais de pessoas residindo em domicílios com alguma carência de serviços de infra-estrutura. 5 A construção deste índice composto é importante por dois motivos: porque nos permite identificar as áreas da RMRJ que apresentam as situações mais críticas em termos do atendimento de condições mínimas de infra-estrutura. E porque nos permite identificar a sobreposição de diferentes carências em uma mesma área, já que algumas áreas sofrem mais com um tipo de carência do que outras.

544

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 545

Cultura política, cidadania e representação na urbs sem civitas

A partir desta caracterização do espaço metropolitano fluminense com base em variáveis socioeconómicas como rendimento e escolaridade, assim como pelo nível de carência de serviços de infra-estrutura, é possível perceber que esta organização socioespacial metropolitana se caracteriza por uma marcada fragmentação social. Da mesma forma, de acordo com Preteceille e Ribeiro (1999), Ribeiro (2000) e Ribeiro e Lago (2001), uma análise da estrutura social metropolitana baseada em categorias socioocupacionais revela que a região metropolitana fluminense é um espaço fortemente organizado de acordo com um sistema de distâncias e oposições sociais que fragmenta os diferentes grupos do espaço social pelo espaço físico da metrópole. De acordo com estes autores, as classes superiores — ou seja, os grupos de indivíduos que compartilham de grandes quantidades de capital económico, social e cultural — da metrópole fluminense localizam-se quase exclusivamente nas áreas da chamada «zona sul» da cidade do Rio de Janeiro, ao passo que as classes populares localizam-se predominantemente nos espaços periféricos da região metropolitana e em parte da «zona oeste» da cidade do Rio de Janeiro; e ambas se distanciam em alguma medida dos segmentos médios da estrutura social que se localizam predominantemente nos espaços suburbanos onde a configuração social é, no entanto, menos definida. Ou seja, há uma nítida projeção das linhas divisórias da sociedade fluminense no seu espaço físico, de tal modo que morar num ou noutro lugar da metrópole demonstra a sua posição na estrutura. É essa dinâmica de constante separação no espaço de grupos sociais diferentes entre si, e de agregação de grupos sociais parecidos, que estes autores chamam segregação residencial (ou segregação socioespacial). Segundo esses autores, esses processos de auto-segregação ou segregação compulsória dos grupos sociais no espaço são típicos do modelo de urbanização das grandes cidades e com consequências ainda mais perversas no caso brasileiro; já que, de acordo com Ribeiro (2004, 34), os resultados deste modelo de segregação socioespacial refletem a nossa ordem social híbrida, onde, por um lado, existe uma lógica social que distribui recursos de poder de acordo com uma escala de honra e prestígio social, ao mesmo tempo em que uma lógica económica, competitiva e individualista, distribui recursos de poder de acordo com a autonomia e a capacidade dos indivíduos. Portanto, essa ordem espacial reflete os resultados de uma ordem social altamente hierárquica e desigual que se entranha na própria lógica de funcionamento do poder público nas suas diversas esferas e órgãos de atuação sobre o ordenamento socioespacial. O resultado disso, ao que tudo indica, é a reprodução das desigualdades de poder pela reprodução 545

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 546

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Filipe Souza Corrêa

das desigualdades sociais, hipótese que retornaremos mais à frente. Antes, é necessário retornarmos à dimensão da cultura política agora pensada numa perspectiva intrametropolitana. Uma desagregação dos indicadores de cultura política é o primeiro passo para a busca de evidência acerca da relação entre uma organização socioespacial fragmentada e a conformação dos padrões diferenciados de comportamento, crenças, valores e atitudes em relação à política. Para isso, dividimos os dados coletados pelo survey anteriormente citado em três áreas, de acordo com os seguintes critérios: (a) a estrutura social destas áreas; (b) as formas predominantes de ocupação e uso do solo e de produção da moradia; (c) a concentração (ou carência) de bem-estar social urbano; e (d) as conexões com as áreas centrais da metrópole. O que resultou na identificação das seguintes áreas: (1) o Núcleo: composto pelos bairros da Zona Sul da Cidade do Rio de Janeiro, e ainda a Barra da Tijuca, a Grande Tijuca e Niterói, onde se concentra a maior parte das camadas superiores da estrutura social metropolitana, o que confere a esta área um forte poder social, exercido pela capacidade de conexão com o poder político através de mecanismos como a presença na media e acionamento das redes sociais; (2) o Subúrbio: onde se concentra parte da classe média tradicional e da classe operária, misturada com áreas de favela; (3) a Periferia que compreende a Zona Oeste do Rio de Janeiro e a Baixada Fluminense; ambas apresentam as maiores concentrações das camadas populares na metrópole e se caracterizam pela presença de dinâmicas localistas de exercício do poder, como a hegemonia de estruturas familísticas que controlam o poder local na Baixada Fluminense. Quando desagregamos os indicadores de confiança interpessoal de acordo com as áreas da metrópole, o sentimento de desconfiança aparece com mais força na Periferia do que no Núcleo e no Subúrbio da metrópole. Na Periferia, mais da metade da população acredita que quase sempre as pessoas tentarão tirar vantagem de alguma situação. Já a dimensão mais abstrata da confiança apresenta uma diferença moderada entre as áreas, no entanto, mais de metade da população da Periferia também acredita que quase sempre todo cuidado é pouco com as pessoas em geral. Ou seja, se a desconfiança nas interações sociais é algo predominante na metrópole, ela é mais intensa nas áreas mais periféricas, o que corresponde a uma das principais evidências no sentido da hipótese da «cidade escassa». Quando especificamos a confiança em relação à classe política, os resultados indicam que o sentimento de desconfiança acerca de uma conduta ética e eficiente por parte dos governantes também é um pouco 546

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 547

Cultura política, cidadania e representação na urbs sem civitas Quadro 25.1 – A confiança interpessoal nas áreas da RMRJ Pessoas tentarão tirar vantagem* Núcleo

Quase sempre

38,6

37,4

53,2

Algumas vezes

34,6

32,3

Justas algumas vezes

16,7

23,2

Justas quase sempre

Total

10,1

100

As pessoas são confiáveis**

Subúrbio Periferia

7,1

100

Núcleo Subúrbio Periferia

Quase sempre

7,0

2,4

4,5

22,7

Algumas vezes

20,0

10,6

17,1

16,6

Algumas vezes todo cuidado é pouco

30,4

40,8

25,5

Quase sempre todo cuidado é pouco

42,6

46,3

52,9

7,6

100

Total

100

100

100

* Acha que as pessoas tentarão tirar vantagem quando puderem, ou acha que elas tentarão ser justas? ** Acha que pode confiar nas pessoas, ou, pelo contrário, todo cuidado é pouco? Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2008.

maior (quando agregamos «discorda em parte» e «discorda totalmente») no Subúrbio e na Periferia do que no Núcleo da RMRJ. Acerca da busca de vantagens pessoais por parte dos governantes vemos que a diferença entre as áreas é nítida (quando somadas as categorias «concorda totalmente» e «concorda em parte»), porém a crença na busca por vantagens pessoais por parte dos políticos é maior no Núcleo do que no Subúrbio, ou mesmo em relação à Periferia. A análise mais detida dos dados indica que os moradores do Núcleo da RMRJ são mais críticos em relação a uma conduta ética e eficiente por parte da classe política do que os moradores do Subúrbio e os da Periferia. Apesar da existência de indícios da lógica da desconfiança nas atitudes do morador da RMRJ, paradoxalmente ele tem internalizado elevado grau do que a literatura chama de «virtudes cívicas», ou seja, tem como referências os valores esperados de quem se sente integrado numa comunidade política. O posicionamento dos cidadãos metropolitanos em relação a comportamentos considerados cívicos indica mais uma preocupação com os mais necessitados (do Brasil e do Mundo) do que a valorização de um posicionamento político mais consistente como a participação em associações, sindicatos ou partidos políticos, ou mesmo o consumo consciente do ponto de vista ético e ambiental. Porém, interessante neste caso é perceber que há uma maior atribuição de importância cívica para esses comportamentos na Periferia do que no Núcleo da RMRJ, o que relativiza a polarização entre as duas áreas, em termos de cultura cívica. De certo modo, o que este resultado indica é a tendência a uma menor valorização de condutas cívicas no Núcleo da RMRJ, 547

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 548

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Filipe Souza Corrêa Quadro 25.2 – A confiança política nas áreas da RMRJ As pessoas no governo farão o que é certo* Núcleo

A maioria dos políticos procura obter vantagens pessoais**

Subúrbio Periferia

Núcleo Subúrbio Periferia

Concorda totalmente Concorda em parte Nem concorda nem discorda Discorda em parte Discorda totalmente

7,1 16,4 13,7 19,5 43,4

11,2 6,2 8,9 29,3 44,4

8,7 6,3 15,4 33,1 36,6

65,8 17,5 9,6 4,8 2,2

63,3 20,1 4,6 7,3 4,6

67,6 9,9 13,4 5,9 3,2

Total

100

100

100

100

100

100

* Em geral, pode-se confiar que as pessoas no governo farão o que é certo, ** A maior parte dos políticos está na política para obter vantagens pessoais, Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2008.

Quadro 25.3 – As virtudes cívicas nas áreas da RMRJ Escala de importância* Núcleo Pouco Muito imp. Imp. imp.

Ajudar as pessoas no Brasil que vivem pior que você Ajudar as pessoas no Mundo que vivem pior que você Obedecer sempre às leis e aos regulamentos Tentar compreender a maneira de pensar das pessoas com opiniões diferentes das suas Manter-se informado sobre as atividades de governo Nunca sonegar impostos Estar disposto a prestar o serviço militar quando for preciso Votar sempre nas eleições Escolher produtos por razões políticas, éticas ou ambientais Participar em associações, sindicatos e partidos

Subúrbio

Periferia

Pouco Muito imp. Imp. imp.

Pouco Muito imp. Imp. imp.

5,7 17,0 77,3

3,1 14,7 82,2

4,9 10,1 85,0

8,3 21,4 70,3

5,8 17,8 76,4

3,2 11,8 85,0

10,0 20,5 69,4

8,1 20,9 70,9

6,3 17,5 76,2

8,8 18,5 72,7

11,3 27,2 61,5

7,6 18,2 74,1

17,1 16,7 66,2

10,1 31,9 58,0

9,6 17,7 72,7

11,0 18,4 70,6

15,9 21,3 62,8

9,0 19,5 71,5

24,1 25,9 50,0

23,4 21,9 54,7

15,4 16,4 68,1

18,3 20,4 61,3

13,1 25,0 61,9

16,8 20,2 63,0

21,2 34,1 44,7

32,9 34,5 32,5

14,8 32,5 52,7

23,3 30,8 45,8

25,1 42,7 32,2

18,3 34,1 47,7

* Há muitas opiniões diferentes sobre o que se deve fazer para ser um bom cidadão, numa escala de 1 a 7, em que 1 significa nada importante e 7 muito importante, que importância o(a) Sr.(a) atribui pessoalmente a cada um dos seguintes aspectos? Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2008.

548

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 549

Cultura política, cidadania e representação na urbs sem civitas

comportamento que é consistente com a perspectiva de «hobbesianismo social», pois indica em grande medida um comportamento mais individualista. De acordo com essa hipótese clássica do comunitarismo cívico (Putnam 1996), o sentimento de pertencimento a uma comunidade cívica seria contraditório com a existência de elevados graus de desconfiança interpessoal e política. Com base na constatação deste paradoxo, poderíamos ensaiar duas explicações: a primeira seria de que este paradoxo estaria a confirmar a existência da dissociação entre a sociedade civil e a sociedade política anteriormente citada por J. M. de Carvalho (1987). A segunda explicação seria a identificação de um «cinismo cívico» como padrão de comportamento predominante entre os cidadãos da metrópole do Rio de Janeiro. A base deste comportamento seria a valorização de uma conduta condizente com os ideais democráticos, ao mesmo tempo em que predomina um nível bastante elevado de desconfiança política — resultado do funcionamento precário das instituições e a predominância da luta de todos contra todos pelos bens escassos, de acordo com a tese do hobbesianismo social de Santos (1993) —, e um nível elevado de desconfiança nas relações interpessoais — por conta da difusão do comportamento social individualista e predatório que valoriza a dimensão familiar em detrimento da esfera pública, de acordo com a tese do familismo amoral aplicado ao caso brasileiro por Reis (1995). Uma maneira de testar essa primeira hipótese explicativa seria verificar a relação entre a manifestação das virtudes cívicas e o engajamento dos cidadãos em ações de participação sociopolítica. De acordo com o previsto pela literatura, devemos esperar que quanto mais intenso é o sentimento de obrigações do cidadão com relação à comunidade política, maior seria o seu ativismo das esferas social (associativismo) e política (mobilização política) A análise do quadro 25.4 indica, contudo, a baixa inserção dos moradores da metrópole em associações cívicas clássicas que propiciam a formação de um capital social constituído pela inserção em redes sociais fundadas em laços fortes (Granovetter 1973). Apenas a participação religiosa, modalidade dotada de altas doses de comunitarismo, mas que não consegue conciliar essa integração social num comportamento político consistente com uma perspectiva democrática mais ampla, apresentou níveis consideráveis. Porém, há uma maior incidência de pertença às formas associativas de maior potencial político (partidos políticos, sindicatos, grémios e associações profissionais) no Núcleo da RMRJ, sendo que a pertença a organizações religiosas aumenta na Periferia, o que sugere a 549

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 550

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Filipe Souza Corrêa Quadro 25.4 – O associativismo nas áreas da RMRJ Pertencimento a associações* Núcleo Alguma Sim vez Nunca

Partido político Sindicato, grêmio ou associação profissional Igreja ou outra organização religiosa Grupo desportivo, cultural ou recreativo Outra associação voluntária

5,4 11,0 30,1 14,8 10,8

11,2 20,2 21,0 19,1 9,9

Subúrbio Sim

Periferia

Alguma Alguma vez Nunca Sim vez Nunca

83,5 3,8 9,2 86,9 3,3 5,3 91,4 68,9 8,4 16,5 75,1 9,0 10,4 80,6 48,9 29,9 27,6 42,5 40,4 20,9 38,8 66,1 6,5 18,8 74,6 8,8 7,6 83,6 79,3 4,9 12,2 82,9 4,6 4,6 90,8

* Por vezes as pessoas participam em grupos ou associações. Para cada um dos grupos (a) partido político, (b) sindicato, grêmio ou associação profissional, (c) igreja ou outra organização religiosa, (d) grupo desportivo, cultural ou recreativo, e (e) outra associação voluntária, diga se (i) participa ativamente; (ii) pertence, mas não participa ativamente; (iii) já pertenceu; ou (iv) nunca pertenceu. Obs.: os percentuais referentes às respostas (i) e (ii) foram agrupados na categoria «Sim», já o percentual referentes à resposta (iii) corresponde à categoria «Alguma vez», e o percentual referente à resposta (iv) corresponde à categoria «Nunca». Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2008.

existência de uma clara segmentação intrametropolitana das formas associativas de participação política. Os dados de mobilização política (quadro 25.5) também indicam um baixo nível de mobilização para fins políticos por parte dos indivíduos residentes na RMRJ. As duas modalidades que apresentaram maior taxa de participação, somadas as categorias, foram «assinatura de petição ou abaixo-assinado» e «participação em comícios ou reuniões políticas», que de acordo com Azevedo e outros (2009, 710) caracterizam-se por um baixo custo de engajamento por serem vistos como eventos efémeros no caso das assinaturas ou pela perda considerável do significado político dos comícios a partir da popularização dos chamados «showmícios, o que justificaria os elevados percentuais para as duas modalidades. No entanto, é interessante notar que as três últimas modalidades de mobilização política («Dar dinheiro ou tentar recolher fundos para uma causa pública», «Contactar ou aparecer na media para exprimir as suas opiniões» e «Participar num fórum ou grupo da internet») apresentam taxa de participação significativamente maior no Núcleo da RMRJ do que nas demais áreas, assim como o boicote a produtos e a participação em manifestações. Deste modo, podemos dizer que também há fortes indícios de uma segmentação das formas de mobilização política, principalmente daquelas modalidades que exigem maior engajamento sociopolítico. Portanto, resta saber como essas tendências e contradições para o surgimento de uma cultura cívica na RMRJ estão relacionadas com a predisposição para a mobilização política dos indivíduos considerando-se 550

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 551

Cultura política, cidadania e representação na urbs sem civitas Quadro 25.5 – A mobilização política nas áreas da RMRJ Participação em mobilizações políticas nos últimos anos* Núcleo Sim

Assinar uma petição ou fazer um abaixo-assinado Boicotar ou comprar determinados produtos, por razões políticas, éticas ou ambientais Participar numa manifestação Participar num comício ou numa reunião política Contatar, ou tentar contatar, um político ou um funcionário do governo para expressar seu ponto de vista Dar dinheiro ou tentar recolher fundos para uma causa pública Contatar ou aparecer na mídia para exprimir as suas opiniões Participar num fórum ou grupo de discussão através da internet

Não

Subúrbio Sim

Não

Periferia Sim

Não

38,9 61,1

36,9 63,1

35,3 64,7

20,9 79,1

15,0 85,0

14,4 85,6

26,3 73,7 24,6 75,4

19,5 80,5 20,8 79,2

14,9 85,1 22,0 78,0

10,9 89,1

7,8 92,2

8,3 91,7

11,4 88,6

3,8 96,2

5,5 94,5

8,3 91,7

2,7

97,3

2,2

97,8

9,2 90,8

6,1 93,9

2,2

97,8

* Abaixo são listadas algumas formas de ação política e social que as pessoas podem ter. Por favor, indique, para cada uma delas: a) assinar uma petição ou fazer um abaixo-assinado, b) boicotar ou comprar determinados produtos, por razões políticas, éticas ou ambientais, c) participar numa manifestação, d) participar num comício ou numa reunião política, e) contactar, ou tentar contactar, um político ou um funcionário do governo para expressar seu ponto de vista, f) dar dinheiro ou tentar recolher fundos para uma causa pública, g) contatar ou aparecer na mídia para exprimir as suas opiniões, h) participar num fórum ou grupo de discussão através da internet», tendo como opções: (i) fez no último ano; (ii) fez nos anos anteriores; (iii) nunca fez mas poderia fazer; e (iv) nunca o faria. Obs: os percentuais referentes às respostas (i) e (ii) foram agrupados na categoria «Sim» e os referentes às respostas (iii) e (iv) foram agrupados na categoria «Não» Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2008.

as áreas da RMRJ. A confiança política é invariavelmente não significativa no seu efeito sobre a mobilização política, muito em parte pelo facto de que essa experiência de desconfiança em relação à classe política perpassa toda a sociedade em níveis bastante elevados como vimos no quadro 25.2. Já a confiança interpessoal no Subúrbio e na Periferia apresenta uma correlação elevada e negativa com a mobilização política, resultado paradoxal em relação aos indicadores de virtude cívica mostrados no quadro 25.3. Além desta fragmentação da confiança interpessoal e das virtudes cívicas tidas pela literatura como base para um comportamento mais ativo politicamente, evidências recentes apontam para algo que pode ser considerado um dos resultados mais diretos desse diferencial na conformação da cultura política na metrópole. Uma análise desagregada sobre os resultados eleitorais para deputado estadual considerando-se o recorte me551

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 552

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Filipe Souza Corrêa Quadro 25.6 – Condicionantes da mobilização política nas áreas da RMRJ Núcleo

Subúrbio

Periferia

1.º bloco: escolaridade

0,201

0,138

0,102

2.º bloco: socialização primária

0,141



0,215

3.º bloco: socialização secundária



0,210



4.º bloco: interesse na política

0,129



0,161

5.º bloco: virtude cívica

0,140



0,150

6.º bloco: confiança interpessoal



-0,155

-0,099

7.º bloco: confiança política







8.º bloco: associativismo

0,291

0,307

0,272

R² ajustado Número de casos

35% 1010

32% 1010

29% 1010

12% 11% 2% 1% 4% 1% 1% 7%

9% 7% 7% 0% 0% 4% 0% 8%

5% 10% 2% 2% 3% 1% 1% 7%

Acréscimo no R² ajustado

1.º bloco 2.º bloco 3.º bloco 4.º bloco 5.º bloco 6.º bloco 7.º bloco 8.º bloco

* Além das variáveis anteriormente apresentadas, acrescentamos as seguintes condicionantes da mobilização política: (1) a escolaridade que foi construída a partir do nível de escolaridade declarado pelo respondente, considerando as seguintes faixas: (i) sem instrução, (ii) baixo nível de instrução, (iii) acima do baixo nível de instrução, (iv) nível secundário de instrução, (v) acima do nível secundário de instrução, (iv) superior completo; (2) a socialização primária, composta pela média das respostas às perguntas: «Quando o Sr.(a) tinha 14/15 anos, com que frequência se falava de política em sua casa» e «E na escola/universidade, com que frequência se fala, ou se falava, de política», tendo como opções: (i) frequentemente, (ii) algumas vezes, (iii) raramente, e (iv) nunca; (3) a socialização secundária composta pela média das respostas às perguntas: «Hoje em dia, fora dos meios de comunicação (televisão, rádio e jornais), com que frequência ouve falar de assuntos políticos em cada um dos seguintes locais: a) no local de trabalho, b) nos encontros com os amigos, c) em sua casa ou de seus familiares, d) em reuniões associativas, e) em conversas com vizinhos», tendo como opções: (i) frequentemente; (ii) algumas vezes; (iii) raramente; e (iv) nunca; e (4) o interesse na política composto pela média das respostas à pergunta: «O Sr.(a) diria que é interessado em política», tendo como opções: (i) muito interessado; (ii) interessado; (iii) não muito interessado; e (iv) não tem interesse nenhum. Fonte: Pesquisa Observatório das Metrópoles, IUPERJ, ICS-UL, ISRP, 2008.

552

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 553

Cultura política, cidadania e representação na urbs sem civitas Figura 25.4 – Áreas de ponderação da RMRJ segundo o grau de competitividade da disputa eleitoral para deputado estadual

Fonte: Corrêa, 2011.

tropolitano aponta para uma diferença significativa no número de competidores por votos entre as diferentes áreas da metrópole. A partir da distribuição territorial do grau de competitividade por votos 6 nos locais de votação da RMRJ, Corrêa (2011, 99) realizou uma classificação das áreas internas da RMRJ. Essa classificação teve como resultado quatro tipos de áreas, sendo a variância intragrupos de 38% e uma variância intergrupos de 62%, resultado satisfatório em termos de classificação de grupos, já que eles são suficientemente coerentes internamente e suficientemente diferentes entre si. E a partir do resultado espacializado desta 6

A partir dos locais de votação geocodificados na RMRJ, construiu-se o índice do número efetivo de candidatos (Ncand) por locais de votação para cada local, cujo objetivo é ter uma estimativa do número médio de candidatos que adquirem votação expressiva que os torna competitivos naquele local de votação, portanto, permite a identificação do grau de competitividade por votos em cada local. O indice é calculado de acordo com a seguinte fórmula: Nicand = 1/ Σnj = 1 pij2 , onde pij é a proporção de votos de um candidato j no local de votação i; e n é o número de candidatos que receberam pelo menos 1 voto no local de votação i.

553

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 554

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Filipe Souza Corrêa

classificação do grau de competitividade na disputa eleitoral na metrópole (figura 25.4), pode-se perceber que há uma desigualdade na distribuição desta competição por votos entre as áreas da RMRJ, quando considerados os candidatos a deputado estadual no pleito de 2006. E o que chama atenção neste resultado é que as áreas classificadas como de mercado eleitoral altamente concentrado correspondem em grande medida à periferia da RMRJ, enquanto as áreas classificadas como de dispersão alta estão circunscritas apenas ao município pólo da região metropolitana. Análises multivariadas a partir dos dados do Censo Demográfico de 2000 (Corrêa 2011, 114) indicaram uma forte correlação entre essas diferenças no grau de competitividade e a distribuição de características socioeconómicas da população da região metropolitana do Rio de Janeiro. Em resumo, os resultados indicam haver uma significativa e considerável relação entre a hierarquização das áreas intra-urbanas — identificadas a partir da distribuição desigual de indivíduos no espaço metropolitano com elevada concentração de recursos como rendimento e escolaridade, e pela distribuição desigual dos serviços públicos de infra-estrutura 7 — e a competitividade eleitoral na disputa por cargos proporcionais. Segundo a perspectiva teórica da geografia do voto (Ames 2003; Carvalho, 2003), quanto mais concentrada territorialmente é a votação de um candidato, maiores serão os incentivos para que assuma uma conduta parlamentar orientada pelo atendimento de interesses paroquiais e, inversamente, quanto mais dispersa, maiores são os incentivos para uma conduta parlamentar que seja guiada por interesses universalistas. De acordo com a classificação dos deputados realizada por Corrêa (2011), considerando-se somente os deputados metropolitanos, ou seja, aqueles que obtiveram mais de 50% de sua votação no interior do espaço metropolitano, 31 dos 50 deputados metropolitanos apresentaram perfil de votação identificado como um incentivo para o que Nelson de Carvalho (2009) tem denominado de «paroquialismo metropolitano», isto é, a manutenção de redutos eleitorais mesmo no interior da metrópole.

7 A concentração de recursos é medida a partir da percentagem por área dos indivíduos cujo rendimento familiar per capita é acima de cinco salários mínimos e cuja média da escolaridade dos adultos do domicílio é acima de onze anos de estudo. Já a carência de infra-estruturas é medida a partir da percentagem por área de pessoas vivendo em domicílios onde não há abastecimento de água por meio de rede pública ou fonte própria no terreno; ou em domicílios que não tenham acesso a esgotos sanitários por rede geral ou por meio de fossa séptica; ou ainda, em domicílios cujo lixo não seja coletado por serviço público de limpeza (Corrêa 2011, 114).

554

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 555

Cultura política, cidadania e representação na urbs sem civitas Figura 25.5 – Distribuição espacial da votação de um deputado e dos usuários de um centro social mantido pelo mesmo

Fonte: Kuschnir, 2008.

A força da votação concentrada no interior da capital fluminense já foi destacada anteriormente no trabalho de Kuschnir (2000). De acordo com a autora, com base em levantamento feito desde a década de 1980, pelo menos um terço da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro é eleito com base em uma votação concentrada geograficamente. No entanto, o que se tem destacado no trabalho de Kuschinir é a conexão existente entre a concentração geográfica das votações dos vereadores e deputados no Rio de Janeiro e a existência de centros de assistência à população que são mantidos por parlamentares, os chamados «centros sociais» (Kuschnir 2008). Nesses locais são oferecidos diversos «serviços públicos» de interesse da população e o seu financiamento, e de acordo com Kuschnir: É fundamental destacar que os Centros Sociais muitas vezes têm estreitas relações com o poder constituído, recebendo o título de «utilidade pública» por indicação das casas legislativas e sanção do prefeito ou do governador. Isso lhes garante isenção de impostos e eventualmente contratos em convénios com os governos estadual e municipal, prestando serviços como creches, atendimento médico e centros de capacitação profissional. Há denúncias de que vários Centros funcionam como entidades que propiciam a arrecadação de dinheiro público através de superfaturamento em compras de equipamentos, remédios e outros serviços (Campos 2004). Embora sofram algumas sanções no período eleitoral em função da legislação, é notório que operam abertamente nas demais épocas do ano [Kuschnir 2008, 7].

Neste caso, fica clara a interferência do exercício do mandato em relação à manutenção dos centros sociais, já que a concessão de título de «utilidade pública» é o principal mecanismo de legitimação destas enti555

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 556

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Filipe Souza Corrêa

dades. Por outro lado, não podemos deixar de destacar a relação que existe entre as votações dos deputados e a existência dos seus centros, como podemos conferir no exemplo disponibilizado por Kuschnir (2008, 5), onde se verificou essa correspondência entre as áreas de predominância de votação e a distribuição geográfica dos frequentadores do centro social.

Considerações finais À guisa de conclusão, com base nas evidências empíricas elencadas na secção anterior podemos dizer que se mostra plausível a hipótese de que o espaço metropolitano fluminense se organiza de forma a reproduzir fortes desigualdades urbanas e que os diferenciais de condições sociais destas áreas serviria de base para o desenvolvimento de condições sociopolíticas diferenciadas entre os cidadãos metropolitanos. Dito de outra maneira é possível considerar que a manutenção no interior do espaço metropolitano de fortes desigualdades com relação ao acesso ao bem-estar urbano, o que se confirma com base na distribuição dos níveis de carência de infra-estrutura de serviços públicos, e em relação ao acesso às oportunidades de melhoria das condições de vida mais imediatas, o que pode ser visualizado a partir das distribuições de renda familiar per capita e de clima educativo domiciliar no espaço metropolitano, coloca grande parte dos cidadãos metropolitanos na margem do direito à cidade. Ou seja, o resultado direto dessa lógica de organização metropolitana segregadora e excludente é a marginalização de grande parte da população metropolitana em relação aos seus direitos enquanto moradores da cidade (ser atendido por uma rede de transporte eficiente, ter acesso às redes de abastecimento de água potável, esgotos sanitários e coleta de lixo, o acesso a condições dignas de habitação, o acesso a equipamentos de saúde, educação, lazer e cultura, e etc.) que fortalece e legitima a desigualdade de condições do exercício da cidadania (civitas), relação que é bem captada pelas metáforas de «cidade escassa» ou «escassez de cidade» de M. A. de Carvalho. Por fim, ao conectarmos essas condições desiguais de bem-estar urbano com o funcionamento do nosso sistema político democrático-representativo, o que se percebe é a utilização da instância política representativa como forma de barganha da subordinação pessoal dos grupos em situação de carências urbanas garantindo a reprodução no poder de determinados grupos políticos por meio das máquinas partidárias clientelísticas até às entidades assistencialistas mantidas por alguns 556

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 557

Cultura política, cidadania e representação na urbs sem civitas

parlamentares. O caso da cassação do mandato do deputado estadual Natalino, eleito em 2006 com votação concentrada na região da Zona Oeste carioca, por conta do seu envolvimento com um grupo miliciano da região, levanta sérias questões sobre os resultados perversos que essa dupla carência de direitos (do direito à cidade e do direito de cidade) sobre a qualidade da democracia nas grandes metrópoles que apresentam uma lógica de organização socioespacial parecida.

Referências bibliográficas Ames, Barry. 2003. Os Entraves da Democracia no Brasil. Rio De Janeiro: Editora Fgv. Azevedo, Sérgio de, Orlando Alves dos Santos Júnior, e Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro. 2009. «Mudanças e permanências na cultura política das metrópoles Brasileiras». Dados – Revista De Ciências Sociais, 52 (3): 691-733. Bendix, Reinhard. 1996. Construção Nacional e Cidadania. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Cardoso, Fernando Henrique. 1975. «A Cidade e a Política: do compromisso ao inconformismo». In Autoritarismo e Democratização. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. Carvalho, José Murilo de. 1987. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que Não Foi. São Paulo: Companhia das Letras. Carvalho, José Murilo de. 2001. Cidadania no Brasil: O Longo Caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Carvalho, Maria Alice Rezende de. 1995. «Cidade escassa e violência urbana». Série Estudos, 91. Carvalho, Nelson Rojas de. 2003. E no Início eram as Bases: Geografia Política do Voto e Comportamento Legislativo no Brasil. Rio De Janeiro: Revan. Carvalho, Nelson Rojas de. 2009. «Geografia política das eleições congressuais: a dinâmica de representação das áreas urbanas e metropolitanas no Brasil». Cadernos Metrópole, 11 (22): 367-384. Castel, Robert. 2003. L’insécurité sociale: qu’est-ce qu’être protégé? Paris: Éd. du Seuil. Corrêa, Filipe Souza. 2011. Conexões Eleitorais, Conexões Territoriais: As Bases Socioterritoriais da Representação Política na Metrópole Fluminense. Dissertação (mestrado em Planejamento Urbano e Regional) – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Granovetter, M. S. 1973. «The strength of weak iies». American Journal of Sociology, 78: 1360-1380. Kuschnir, Karina. 2000. Eleições e Representação no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: RelumeDumará/Nuap-Mn-Ufrj. Kuschnir, Karina. 2008. «A cidade dos políticos: Gabinetes, escritórios e centros sociais». 32.º Encontro Anual da Anpocs, Caxambú, 2008. Morse, Richard M. 1975. «A evolução das cidades latino-americanas». Cadernos Cebrap, 22. Preteceille, Edmond, Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro. 1999. «Tendências da segregação social em metrópoles globais e desiguais: Paris e Rio de Janeiro nos anos 80». Revista Brasileira de Ciências Sociais, 14 (40).

557

25 MVCabral Cap. 25_Layout 1 6/24/13 10:04 AM Page 558

Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Filipe Souza Corrêa Putnam, Roberto D. 1996. Comunidade e Democracia: A Experiência da Itália Moderna. Rio de Janeiro: Editora Fgv. Reis, Elisa P. 1995. «Desigualdade e solidariedade, uma releitura do ‘familismo amoral’ de Banfield». Revista Brasileira de Ciências Sociais, 29: 35-48. Rennó, Lúcio R. 1999. «Instituições, cultura política e lógica da desconfiança numa cidade brasileira». In: Desafios da Democratização na América Latina, org. Marcello Baquero. Porto Alegre: Ed. Universidade/Ufrgs, 103-134. Rennó, Lúcio R. 2000. «Indivíduo, comunidade e cultura: Fronteiras do debate entre liberdade e comunitarismo no Brasil». In Política e Valores, orgs. E. P. Araújo, et al. Brasília: Editora da Unb. Ribeiro, Luiz Cesar de Queiroz, org. 2000. O Futuro das Metrópoles: Desigualdades e Governabilidade. Rio de Janeiro: Editora Revan/Fase. Ribeiro, Luiz Cesar de Queiroz. 2004. «As metrópoles e a sociedade brasileira: Futuro comprometido?». In Metrópoles: Entre a Coesão e a Fragmentação, a Cooperação e o Conflito, org. Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro. São Paulo: Editora Perseu Abramo/Fase/ Observatório das Metrópoles. Ribeiro, Luiz Cesar de Queiroz. 2012. «Cultura política na metrópole fluminense: cidadania na metrópole desigual». In Cultura Política, Cidadania e Voto: Desafios para a Governança Metropolitana, orgs. Sérgio de Azevedo, Orlando A. dos Santos Júnior e Luiz César de Queiroz Ribeiro. Rio de Janeiro: Letra Capital e Sociologias (Porto Alegre), 14 (30). Ribeiro, Luiz Cesar de Queiroz, e Luciana Corrêa do Lago. 2001. «A oposição favela-bairro no Rio de Janeiro. São Paulo em Perspectiva, 14 (1): 144-154. Ribeiro, Luiz Cesar de Queiroz, Juciano Martins Rodrigues, e Filipe Souza Corrêa. 2010. «Território e trabalho: Segregação e segmentação urbanas e oportunidades ocupacionais na região metropolitana do Rio de Janeiro». In Olhares sobre a Metrópole do Rio de Janeiro: Economia, Sociedade e Território, org. Luciana Corrêa do Lago. Rio de Janeiro: Editora Letra Capital/Observatório das Metrópoles. Ribeiro, Luiz Cesar de Queiroz, e Mariane Koslinski. 2010. «Fronteiras urbanas da democratização das oportunidades educacionais: o caso do Rio de Janeiro». In Desigualdades Urbanas, Desigualdades Escolares, orgs. Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Mariane Koslinski, Fátima Alves e Cristiane Lasmar. Rio de Janeiro: Editora Letra Capital/Observatório das Metrópoles. Santos, Wanderley Guilherme dos. 1993. Razões da Desordem. Rio de Janeiro: Rocco. Weber, Max. 2009. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Vol. 2. 2.ª ed. Brasília: Editora da Unb. Zuccarelli, Carolina, e Gabriel Vidal Cid. 2010. «Oportunidades educacionais e escolhas familiares no Rio de Janeiro». In Desigualdades Urbanas, Desigualdades Escolares, orgs. Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, Mariane Koslinski, Fátima Alves e Cristiane Lasmar. Rio de Janeiro: Editora Letra Capital/Observatório das Metrópoles.

558

26 MVCabral Cap. 26_Layout 1 6/24/13 10:05 AM Page 559

José Neves

Capítulo 26

Arquitectura, massificação e democracia: notas sobre um estádio de futebol * Projectado pelo arquitecto português Eduardo Souto Moura por ocasião do Campeonato da Europa de Futebol de 2004, o Estádio de Braga mereceu o aplauso geral dos media portugueses e tem vindo a ser elogiado em revistas internacionais de debate e crítica de arquitectura.1 Este texto acerca-se do edifício em questão e de discursos sobre ele produzidos procurando participar no debate em torno desta obra particular e, ao mesmo tempo, tentando situar o debate num plano de discussão mais alargado. O texto divide-se em duas partes. Numa primeira parte identificamos dois dos principais argumentos que têm vindo a ser avançados por quem considera o estádio uma excepcional obra de arte – argumentos que * Uma primeira versão deste texto foi apresentada no colóquio internacional Jacques Rancière, organizado em Lisboa por Golgona Anghel, Vanessa Brito e Silvina Rodrigues Lopes, a quem agradeço o generoso convite. A minha investigação em torno de processos de massificação remonta, porém, ao período de pós-doutoramento que passei no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa sob a supervisão de Manuel Villaverde Cabral. Devo-lhe tanto uma enorme liberdade de investigação e intelectual como uma confrontação sempre crítica e exigente. 1 Nos media portugueses, ver, por exemplo: Miguel Judas, «Em busca do estádio perfeito», suplemento da revista Visão, n.º 570, Fevereiro de 2004; Suplemento «A obra de arte e o estilo inglês», A Bola, 29-11-2003; Jorge Figueira, «Uma arquitectura para o futebol», suplemento Mil Folhas, Público, 22-11-2003. Nas revistas e publicações da especialidade, ver, por exemplo: Quaderns d’arquitectura i urbanisme, Barcelona, 242, Junho de 2004, 42-45; A+U, Tóquio, 425, Feverieiro de 2006, 118-121; Casabella, Milão, 694, Novembro de 2001, 46-52; Casabella, Milão, 723, Junho de 2004, 10-15; The Architectural Review, Londres, 1289, Julho de 2004, 42-48; Monthly Journal of World Archtecture and Urbanism, 425, Fevereiro de 2006, 18; Jaime Cervera, «Crisol de Roca – sobre el nuevo estadio de fútbol de Braga», Arquitectura – Revista del Colégio Oficial de Arquitectos de Madrid, 337, Julho-Setembro de 2004, 68-69.

559

26 MVCabral Cap. 26_Layout 1 6/24/13 10:05 AM Page 560

José Neves

apontam a um sentido ecológico e à sofisticação tecnológica do edifício – e em seguida discutimos a relação entre estes argumentos e processos de massificação da actividade humana e do território. Na segunda parte do texto debruçamo-nos sobre um terceiro argumento que preside aos elogios dos media e da crítica especializada, argumento que identifica uma vocação democrática no estádio e que nos levará a questionar o que falamos quando falamos de democracia.

Ecologia, tecnologia e massificação Um dos argumentos geralmente presentes no discurso de quem afirma a excepcionalidade do Estádio de Braga pode ser designado como um argumento de natureza ecológica (ver a figura 26.1). Com efeito, é frequente os discursos valorizarem o modo como a obra se inscreve na paisagem, argumentando que o estádio objectiva de modo singular uma relação de harmonia entre o homem e o meio. Segundo a maior parte dos críticos, o edifício dialoga com o território e não simplesmente se lhe impõe: abre-se ao vale, num dos topos, e posiciona-se diante da parede de corte de uma antiga pedreira, no outro topo. O Estádio de Braga será, por estas razões, um estádio invulgar do ponto de vista ambiental. Funcionará como um dispositivo de intermediação entre o que é artificial e o que é natural, atenuando a linha de fronteira que separa uma e outra dimensões. A este argumento ecológico, soma-se um segundo argumento, referente ao carácter inovador das soluções tecnológicas adoptadas no projecto. A este respeito, o exemplo de inovação mais frequentemente destacado é o dos cabos. Atravessando-se por cima do relvado, os cabos unem – suportando--as – as duas palas que cobrem as bancadas centrais. A concepção desta solução é apontada por críticos como prova dos benefícios que podem resultar de uma relação virtuosa entre arquitectura e engenharia, dando--se a obra como expressão maior das possibilidades que a ciência oferece ao homem, habilitando-o a uma acção revolucionária sobre a natureza. Em suma, na generalidade dos discursos que dele se aproximam, o estádio projectado por Eduardo Souto Moura surge como um edifício com sentido ecológico e que simultaneamente testemunha sofisticação tecnológica. Os comentários elogiosos à obra tendem a combinar um e outro tipo de argumento. Alguns discursos enfatizam um imaginário ecológico afirmando que o «novo» continua o «antigo». É o caso, nomeada560

26 MVCabral Cap. 26_Layout 1 6/24/13 10:05 AM Page 561

Arquitectura, massificação e democracia: notas sobre um estádio de futebol Figura 26.1 –Estádio de Braga

mente, de quem vê, na imagem dos cabos unindo as palas, uma citação do desenho de antigas pontes incas ou, ainda, de tipos de estrutura do trançado de corda de um tear.2 Outros discursos, porém, acentuam a ruptura e não a continuidade entre o «novo» e o «antigo». Este parece ser, 2 Antonio Esposito e Giovannin Leoni. Eduardo Souto Moura (Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2003), 401.

561

26 MVCabral Cap. 26_Layout 1 6/24/13 10:05 AM Page 562

José Neves

pelo menos, o sentido das palavras de quem, a propósito do estádio, afirma «é forçoso existir a natureza, outorgada às nossas violações», verso de um poema de Herberto Helder onde, ademais, é dito: «e o poema não transcreve o mundo, mas é o rival do mundo».3 Este duplo imaginário ecológico e tecnológico é apoiado por discursos sobre a obra, mas também sobre o arquitecto responsável pelo projecto. A generalidade dos discursos tende a identificar Souto Moura como um autor e não apenas como um arquitecto; à semelhança do que sucede com os percursos de Rem Koolhaas, Santiago Calatrava, Frank Gehry ou Siza Vieira, o trajecto de Eduardo Souto Moura tende a ser descrito como manifestação de uma «arquitectura de autor», entendendo-se por esta um tipo de trabalho que se diferenciará da prática dominante na profissão de arquitecto.4 Os discursos procedem a esta diferenciação fazendo a figura do arquitecto deslocar-se em dois sentidos. Em primeiro lugar, fazendo-a deslocar-se em direcção ao passado, supondo que no seu risco permanece viva a memória de um tempo que ainda não foi integralmente contaminado pelos vícios do presente; ao chamar à colação os tempos pré-modernos da ponte inca e do tear minhoto, o risco de Eduardo Souto Moura aproximará o arquitecto da figura do artesão, aquele que, imune à mecanização e à quantificação massificadora do mundo da cidade e do trabalho, melhor encarnará um universo romântico ainda não corrompido pelas dinâmicas modernizadoras da contemporaneidade. Em segundo lugar, os discursos tendem a operar um deslocamento do arquitecto em direcção ao futuro; o risco de Souto Moura, sendo expressão da criatividade de quem ainda não terá sido corrompido pela engrenagem contemporânea, de igual modo se vinculará ao saber científico do engenheiro, o que lhe permitirá uma intervenção tecnologicamente sofisticada na realidade. Ou seja, a criatividade que garante ao arquitecto o estatuto de autor explicar-se-á pela sua vocação romântica mas também pela sua competência tecnológica; olhando-se através do artesão, o arquitecto aproxima-se daquele que manuseia a sua própria peça – investindo-a com 3

«La naturalidad de las cosas – Entrevista a Eduardo Souto Moura». El Croquis, 124, 11. Manuel Villaverde Cabral e Vera Borges, «Muitos são os chamados, poucos os escolhidos». In Entre a Vocação e a Profissão de Arquitecto. Profissão e Vocação, coords. Ana Delicado, Vera Borges e Steffen Dix (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais), 147-177. Ver também: Manuel Villaverde Cabral e Vera Borges, Profissão: Arquitecto/a, Relatório ICS no site da Ordem dos Arquitectos, 2006 (http://www.arquitectos.pt/documentos/11643-22770I3pQH2qr9Wg02JR3.pdf); Pedro Gadanho, Arquitectura em Público (Porto: Dafne, 2010); Magali-Sarfati Larson, Behind the Postmodern Façade: Architectural Change in Late Twentiehth-Century America (Berkeley: University of California Press, 1993); Hal Foster, The Art-Architecture Complex (Londres: Verso, 2011). 4

562

26 MVCabral Cap. 26_Layout 1 6/24/13 10:05 AM Page 563

Arquitectura, massificação e democracia: notas sobre um estádio de futebol

o cuidado formal que torna algo irreproduzível – e simultaneamente distancia-se dos mecanismos funcionais que pautam a rotina laboral do engenheiro e que, aos olhos de tantos, o embrutecem; olhando-se através do perfil do engenheiro, o arquitecto aproxima-se do saber científico deste – assim certificando profissional e tecnicamente a sua vocação artística – e simultaneamente distancia-se do métier do artesão, que agora olha com indisfarçável condescendência, não valorizando a prática de quem formou a sua técnica antes da era da tecnologia. Nestes movimentos de aproximação e distanciamento, o imaginário do arquitecto não é, porém, o único que se modifica; deslocam-se, também, os imaginários de artesão e de engenheiro. Se o arquitecto procura humanizar-se reduzindo-se à escala miniaturizada que caracteriza o trabalho do artesão (o encanto da sua oficina, da sua minúcia, das suas pequenas peças); se o arquitecto procura apresentar-se como alguém que apreende e tacteia a matéria de que é feita a obra e não apenas esboça um plano num papel; o artesão faz, no mesmo lance, um percurso inverso ao do arquitecto, à boleia deste procurando amplificar a repercussão do que é pequeno, tentando ampliar à escala do mundo o efeito encantatório do que é mínimo, explorando a possibilidade de uma aliança entre o que é menor e o que é maior – isto é, o artesão não trata de abandonar a oficina e de se render à fábrica, mas de, a partir da sua oficina, se dirigir ao mundo e não apenas à sua pequena pátria. Quanto ao engenheiro, também ele se movimenta no lance em que o arquitecto dele se aproxima. Nesta aproximação, enquanto o arquitecto procura o prestígio de um conhecimento técnico sofisticado, acumulado num quadro de modernização económica, o engenheiro procura acercar-se do domínio artístico do arquitecto. Com esta aproximação procura atenuar a sua vinculação ao mundo dos produtores e marcar a sua distância em relação ao comum dos operários, destes se diferenciando por uma questão de natureza, ganhando assim direito a ser considerado mais do que simples instrumento de uma engrenagem económica – que, nos elogios ao carácter tecnologicamente inovador do Estádio de Braga, o elemento mais destacado sejam os já referidos cabos, tal será afim a esta tentativa, os cabos perfilando o engenheiro como aquele que descobre a fórmula que permite empregar a maior força possível com o menor esforço possível, vencendo um vão de 200 metros com uma leveza que contrasta com o maciço da pedreira e das palas, numa prova de capacidade sensitiva. Assistimos, então, a um processo de definição e redefinição dos papéis que a cada qual caberá cumprir na economia geral, processo em que não se decide apenas o estatuto do arquitecto, mas também o do artesão e o 563

26 MVCabral Cap. 26_Layout 1 6/24/13 10:05 AM Page 564

José Neves

do engenheiro, os três de igual modo procurando fugir à sua tipificação convencional. E se estes movimentos podem ser compreendidos, como acabámos de ver, à luz da agenda de interesses de cada uma das profissões e ofícios em jogo, igualmente acusam um traço genérico: é que todos procuram distanciar-se de uma prática laboral massificada, marcada pela repetição das tarefas e por um tempo cronometrado, historicamente associada à figura do operário industrial, preso à linha de montagem fordista.5 É a identificação com este trabalhador que o arquitecto procura evitar, para o efeito tornando-se autor e destacando-se da massa dos arquitectos. Recusando a proletarização da profissão e a industrialização da sua obra, o arquitecto admite identificar-se com a figura do produtor apenas por via da sofisticação do engenheiro e da inspiração artesanal, nunca à imagem da força do operário. É também da figura operária que parece querer distanciar-se o artesão; se partilha com o operário o recurso às mãos como instrumento de trabalho, se ambiciona que os seus produtos circulem pelo mundo como os do operário industrial, porém, cuida de que, neste processo de globalização, o seu tacto não seja diminuído pelo ritmo da máquina, estimando que o segredo do seu possível sucesso estará na marca anti-industrial e autenticamente local ou nacional que será reconhecida ao seu toque. Finalmente, é da figura do operário que o engenheiro se afasta, neste caso procurando na figura do arquitecto a legitimação artística de que é diminuído pela sua proximidade ao chão de fábrica. Em síntese, na era da massificação assiste-se a transformações tanto da actividade humana como do território, do estatuto do autor e do estatuto da obra, disciplinando-se o tempo de vida e homogeneizando-se os espaços; e a resistência a estas transformações é atraída tanto por um imaginário ecológico como por um imaginário tecnológico, os quais operam como marcas de um tempo anterior e de um tempo posterior à era da massificação. * As tendências de resistência à massificação da actividade humana e do território que até agora identificámos suscitam-nos reservas importantes, de que nos ocuparemos no que resta da primeira parte deste texto. Começo pelas reservas suscitadas pela possibilidade de instituição de um espaço territorial à margem das dinâmicas globais de mercadorização, 5 E. P. Thompson, «Time, work-discipline and industrial capitalism». Past and Present, 38 (1): 56-97, 1967. Manuel Villaverde Cabral, Proletariado: O Nome e a Coisa (Lisboa: A Regra do Jogo, 1983).

564

26 MVCabral Cap. 26_Layout 1 6/24/13 10:05 AM Page 565

Arquitectura, massificação e democracia: notas sobre um estádio de futebol

possibilidade enunciada nos discursos sobre o Estádio de Braga ao supor-se que o estádio, vinculando-se ao local, resiste a uma dinâmica global. Sendo certo que local e nacional se revelam, por vezes, motivo de embaraço dos mecanismos de internacionalização da chamada globalização mercantil, outras vezes parecem constituir-se como factores dessa própria internacionalização. O enraizamento local de que o estádio de Souto Moura será testemunha – relacionando-se à paisagem e não se fechando sobre si próprio como sucederá com uma tenda de um circo que circula indiferente ao sítio onde se instala – pode também ser visto, ele próprio, como efeito de uma indústria desportiva global que, no seu processo de expansão, tem procurado justamente que o espectáculo desportivo tenha por palco territórios que configurem um imaginário romântico. Esta procura tem sido efectivada – como procurámos discutir em texto anterior 6 – pela aproximação do desporto a um idealizado autêntico (por exemplo, a ideia de um regresso do futebol às «origens», consubstanciada na filmagem de anúncios de roupa desportiva tendo por palco de jogo terrenos rurais) ou atribuindo-lhe uma função subversiva (como no anúncio da chegada de uma selecção de futebol brasileira a um aeroporto francês, pretendendo-se, com recurso à técnica situacionista do desvio, um efeito de emocionalização de um espaço burocratizado). A suposição de que o nacional constitui um foco de resistência ao global ignora que o nacional é por excelência produzido internacionalmente.7 Do nosso ponto de vista, mais do que produto de um localismo genuíno – espécie de terroir –, o estádio parece inserir-se numa dinâmica de produção combinada da diferença, de que, no caso português, não é difícil encontrar outros testemunhos. Podemos, por exemplo, atender a tentativas recentes de mercadorização do que vai sendo classificado como arte popular, como resulta do esforço da empresa A Vida Portuguesa. Esta empresa vem comercializando antigos produtos do quotidiano, de refrescos a pastas dentífricas, bem como mapas do império e brinquedos artesanais, tendo a sua proprietária recentemente afirmado ser justamente o atraso (o pequeno e o local) um dos bens mais exportáveis de que a economia portuguesa poderá fazer uso a fim de competir nos mercados internacionais.8 Trata-se aqui, acrescente-se, de um processo de produção 6 José Neves, «O Euro 2004 – história de um evento». In Uma História do Desporto em Portugal – Volume 3: Classes,Associativismo e Estado, coords. José Neves e Nuno Domingos (Vila do Conde: Quidnovi/Comissão Nacional para a Comemoração do Centenário da República, 2011), 153-210. 7 Orvar Löfgren, «The nationalization of culture». Ethnologia Europaea, 19, 1989: 5-23. 8 Entrevista a Catarina Portas. Luxwoman, 2011: 54.

565

26 MVCabral Cap. 26_Layout 1 6/24/13 10:05 AM Page 566

José Neves

de identidades que na sua génese não guarda apenas razões mercantis; bastará lembrarmos que, em finais dos anos de 1920, Ferro escrevia que o país, se não tinha nem aviões nem automóveis dignos de exibição nas grandes exposições internacionais, possuía, porém, os seus pequenos camponeses, com os seus corpos susceptíveis de exibição ao vivo (à semelhança da bordadeira colocada a trabalhar na Exposição do Mundo Português) ou evocáveis através da sua miniaturização (como nos bonecos-tipo criados por Tomás de Mello para o SPN em finais dos anos de 1930).9 A estas reservas à suposição de um espaço territorial subtraído às dinâmicas da mercadorização, queremos acrescentar as nossas dúvidas quanto ao pressuposto de que há actividades laborais que se encontram subtraídas aos processos de mercadorização da actividade humana. A autonomia artística é o nome que esta hipótese de subtracção frequentemente se atribui, e no caso da arquitectura plasma-se na figura do arquitecto-autor. A identificação de uma marca autoral em Souto Moura compreende-se a dois níveis. Em primeiro lugar, a um nível internacional, com o reconhecimento de Souto Moura como um nome cimeiro da arquitectura mundial, facto que teve prova maior na atribuição do Prémio Pritzker 2011. Em segundo lugar, compreende-se no contexto português de prática da arquitectura. Nas últimas décadas, o aumento do número de licenciados em arquitectura (de 740 em 1975 para 8121 em 1998),10 conjugado com o incremento da construção imobiliária e o tipo de massificação da paisagem urbana que em vários casos implicou, deu redobrado fôlego à ideia de que a autonomia criativa do arquitecto soçobrava ao ritmo de produção das empresas de construção civil. Esta ideia de uma perda tendencial da criatividade do exercício arquitectónico pautou os comentários aos estádios construídos por ocasião do Euro 2004, o estádio de Souto Moura sendo identificado como a excepção à regra. Apesar de referências igualmente positivas ao projecto de Manuel Salgado, com o Estádio do Dragão, na cidade do Porto, a grande excepção identificada pelos críticos de arquitectura foi o Estádio de Braga. Nas palavras esclarecedoras de um deles, à excepção de Braga, todos os estádios do Euro 2004 fariam prova de uma «arquitectura de franchising».11

9 Vera Marques Alves, Arte Popular e Nação no Estado Novo – A Política Folclorista do Secretariado da Propaganda Nacional (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2013). 10 Manuel Villaverde Cabral e Vera Borges, op. cit., 154. 11 Manuel Graca Dias, «Intervenção e invenção». In Em Jogo/On Side, org. Albano Silva Pereira (Coimbra: Centro de Artes Visuais/Ministério da Cultura, 2004), 5-77.

566

26 MVCabral Cap. 26_Layout 1 6/24/13 10:05 AM Page 567

Arquitectura, massificação e democracia: notas sobre um estádio de futebol

Ora, também esta suposição de que a autonomia artística seria irredutível aos caminhos da mercadorização pode merecer questionamento no presente caso. Por um lado, e como foi já sublinhado por trabalho do sociólogo Frederico Ágoas,12 deve ser observado que o arquitecto, ao projectar o Estádio de Braga, terá pretendido, antes de mais, fazer cumprir um programa de normas que estavam instituídas de modo mais ou menos formal no quadro dos recentes projectos de espectacularização comercial do futebol. Afirma Souto Moura: «Eu deduzi, não percebendo muito de futebol, que tinha de fazer um palco verde para 22 pessoas mais 3 árbitros, com 105 câmaras a filmar, para ser transmitido para todo o mundo e cujos direitos são de milhões de contos. O que eu tinha de fazer era um estúdio de televisão. E o melhor estúdio de televisão é aquela imagem americana dos estádios verticais dos jogos de boxe, com luz de cima, tudo concentrado ali e com as melhores imagens possíveis para a transmissão.»13 A esta luz, o estádio de Souto Moura, se é expressão de uma «arquitectura de autor» – efeito de um percurso autoral que sobrelevou o seu contexto de produção –, nem por isso pode deixar de ser igualmente objecto dos constrangimentos mercantis a que estão sujeitos os arquitectos cuja proletarização negará autonomia artística. Por outro lado, deve ser observado que a própria ideia de uma prática artística autónoma e insubordinada à dinâmica económica acaba, não raras vezes, por ser positivamente mobilizada por essa própria dinâmica. Tal como integra o que não seria próprio da sua escala territorial, como o local ou o nacional, a dinâmica de mercadorização parece integrar também as actividades que se caracterizariam por não tomar parte no ciclo de reprodução do capital, casos da arte e da cultura. É o que frequentemente sucede com a chamada «arquitectura de autor». A sua mobilização no quadro dos projectos de requalificação urbana é um exemplo da crescente tendência da economia para integrar no seu processo aquilo que se caracterizaria por excedê-la. Dito de outra forma, a própria dinâmica mercantil por vezes acalenta uma dinâmica antimercantil, como exemplifica, e para permanecermos no campo desportivo, a campanha de comercialização de camisolas de futebol de um clube junto dos seus adeptos, levada a cabo por uma determinada marca de equipamentos sob o lema do «amor à camisola».

12 Frederico Ágoas, «‘Que de longe parecem moscas’: contributos para uma arqueologia do estádio de futebol». In A Época do Futebol – o Jogo Visto pelas Ciências Sociais, coords. Nuno Domingos e José Neves (Lisboa: Assírio Alvim, 2004), 263-303. 13 José Mateus, «O Braga de Souto de Moura», entrevista a Eduardo Souto Moura no suplemento «Linha», Expresso, 29-11-2003.

567

26 MVCabral Cap. 26_Layout 1 6/24/13 10:05 AM Page 568

José Neves

Em suma, entre o local e o global, a arte e a economia, há uma relação, ora conflitual, ora consensual, mas não um divórcio completo ou uma coincidência absoluta. O discurso dos críticos que apontam o estádio de Braga como obra de excepção deverá pois ser considerado testemunho tanto de uma vontade de subtracção à mercadorização como do processo de subsunção que a mercadorização implica. E enquanto os discursos que supõem um lugar de resistência exterior à mercadorização parecem fazer prova de um excesso de ingenuidade, os que supõem uma subsunção definitiva da actividade humana e do território à mercadorização farão prova, por sua vez, de excessivo cinismo.

Democracia No processo de legitimação da excepcionalidade da obra, aos argumentos ecológico e tecnológico, acrescenta-se uma terceira razão principal, relativa à democraticidade do edifício. Segundo a maior parte dos discursos por nós analisados, o Estádio de Braga será democrático porque o edifício – tendo apenas duas bancadas, simetricamente dispostas ao longo das laterais do relvado, uma diante da outra – assume uma configuração que colocará todos os espectadores em pé de igualdade, ao contrário do que sucederá na esmagadora maioria dos restantes estádios, em que as bancadas se prolongam por trás das balizas, desenhando um círculo oval ou um rectângulo. Duas linhas de interpretação acerca do que seja a democracia parecem subentendidas nos discursos. Para uma primeira linha de interpretação, a democracia define-se como o contrário de populismo e a obra de Souto Moura seria democrática porque, ao colocar todos os espectadores em pé de igualdade, anularia a hipótese populista; segundo um crítico, a eliminação das bancadas centrais retiraria ao espectáculo a possibilidade da presença de massas que, à cabeceira do estádio, serviriam apenas para legitimar, enquanto adeptos incondicionais desprovidos de qualquer capacidade de racionalização, a figura do dirigente máximo cujo perfil por norma se recortava sobre aquele pano de fundo.14 Para uma segunda linha de interpretação, a democracia é a culminação política de um processo de combate às desigualdades económico-sociais, afirmando-se que o edifício de Souto Moura dá expressão a uma vontade de justiça

14

Jaime Cervera, op. cit.

568

26 MVCabral Cap. 26_Layout 1 6/24/13 10:05 AM Page 569

Arquitectura, massificação e democracia: notas sobre um estádio de futebol

social. Em que poderíamos reconhecer essa expressão? Em alguns discursos – por exemplo, o discurso do Presidente dos EUA15 – o Estádio do Braga é tido como democrático porque, ao deixar a zona das cabeceiras do relvado livre de bancadas, permitirá que a população desprovida de recursos para adquirir um ingresso encontre acesso gratuito a uma posição de observação do relvado; todavia, a maioria dos discursos que apontam uma ideia de justiça social como inspiradora de Souto Moura – por exemplo, o discurso do presidente do município de Braga16 – identifica a natureza democrática do edifício na limitação das bancadas aos espaços centrais. A democraticidade desta opção residiria no facto de, colocando todos os espectadores num ponto de observação idêntico, fazer sentar os espectadores das classes de menores recursos no local de onde melhor se verá um jogo de futebol, não os remetendo, como usual, para trás das balizas. Esta identificação de uma vocação democrática no projecto de Eduardo Souto Moura suscita-nos igualmente reservas importantes, que gostaríamos de expor nas páginas que nos restam. Para este efeito, começamos por chamar a atenção para uma afirmação de Souto Moura: «Hoje o futebol é um espectáculo, tal como o cinema, o teatro e a televisão, daí a opção de fazer apenas duas bancadas. Hoje ninguém aguenta ver uma peça do Peter Handke em ‘zoom’, atrás das balizas.»17 Esta declaração contraria os discursos que imputam ao arquitecto uma intenção democrática, mas, mais importante, deixa ver como a obra de Souto Moura participa de alguns efeitos homogeneizadores em que incorre o processo de espectacularização crescente da economia da cultura. É, na verdade, de homogeneização da cultura que podemos falar quando o arquitecto atribui a diferentes actividades culturais uma mesma lógica, neste caso procedendo a uma homogeneização da figura do espectador, idealizado como alguém cujo perfil permanecerá indiferente à natureza específica da actividade cultural a que assistirá. E é também de homogeneização da cultura – e, de novo, da figura do espectador – que falamos quando o arquitecto pressupõe que os próprios espectadores de futebol almejariam, todos eles, um lugar na bancada central. Presumindo que o melhor sítio para ver o jogo é a bancada central, o discurso de Souto Moura eli-

15 Discurso de Barack Obama na cerimónia de entrega do Prémio Prizker 2011. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=HTk3EhB0bwI (consultado a 1 de Agosto de 2012). 16 Mesquita Machado, citado em A Bola, 23-12-2003. 17 José Mateus, op. cit.

569

26 MVCabral Cap. 26_Layout 1 6/24/13 10:05 AM Page 570

José Neves

mina do seu horizonte de problematização o debate sobre o melhor ponto de vista para assistir a um jogo. Este problema assiste igualmente aos discursos dos críticos que fazem o elogio da condição democrática do estádio. Entre estes, os discursos a que subjaz um entendimento da democracia como crítica do populismo dão por adquirida a possibilidade de construir um ângulo de visão «mais próximo da objectividade do desempenho dos actores» (palavras do crítico atrás citado), não admitindo que diferem os juízos sobre o que é maior ou menor objectividade, nem tão-pouco questionando a universalidade de uma pretensão à objectividade. E o mesmo verifica-se nos discursos de quem entende a democracia, antes de mais, como crítica da desigualdade económico-social; aqui é possível, aliás, detectar uma tendência com largos anos; cito-vos, extensamente, uma pequena nota que um dirigente comunista português escreveu nos anos de 1950, na prisão, a propósito do Estádio do Jamor e onde já se naturaliza «um mais favorável ângulo de visão do jogo»: «Observe-se o Estádio Nacional de Lisboa e a bela disposição arquitectónica: a porta da maratona, frente à tribuna, abrindo o espaço para a paisagem e o máximo prazer do ambiente proporcionado aos espectadores instalados nas bancadas centrais e o grosso dos espectadores remetido para as cabeceiras, donde o acompanhamento do jogo não é tão favorável. Observe-se também atentamente o Estádio de Lausana, onde em 1954 teve lugar o campeonato mundial de futebol. A disposição dos lugares é precisamente ao contrário do Estádio de Lisboa. A partir das cabeceiras, as bancadas elevaram-se progressivamente de um lado e outro do campo até ao meio do terreno, dando assim à grande maioria dos espectadores um mais favorável ângulo de visão do jogo. A realidade social presente no Estádio de Lisboa tem um sentido antidemocrático, traduz a arrogância e o privilégio do poder ditatorial porque a arquitectura o concebeu para seu prazer e sua pompa. A realidade social presente no Estádio de Lausana é objectivamente uma consideração democrática do respeito prioritário pelo interesse das grandes massas, ainda que, no plano subjectivo concreto, seja também uma marca do interesse financeiro em aumentar o número de lugares para aumentar o número de receitas.» (ver as figuras 26.2 e 26.3) 18 * Que os discursos que falam da democraticidade do edifício não problematizem o que aqui temos tratado como a questão do ponto de vista,

18

Álvaro Cunhal, A Arte, o Artista e a Sociedade (Lisboa: Caminho, 1996), 38.

570

26 MVCabral Cap. 26_Layout 1 6/24/13 10:05 AM Page 571

Arquitectura, massificação e democracia: notas sobre um estádio de futebol Figura 26.2 – Estádio Nacional, Lisboa

Figura 26.3 – Estádio de Lausana

leva-nos a procurar uma ideia diferente de democracia, para o que podemos encontrar pistas em diferentes abordagens analíticas à arquitectura dos estádios, nomeadamente trabalhos etnográficos que têm procurado estudar a pluralidade das culturas de adeptos. Referimo--nos, desde logo, ao trabalho desenvolvido por Anthony Smith.19 Este sociólogo inglês

19 Anthony King, The End of the Terraces. The Transformation of English Football in the 1990s (Londres e Nova Iorque: Leicester University Press, 2002 [1998]).

571

26 MVCabral Cap. 26_Layout 1 6/24/13 10:05 AM Page 572

José Neves

construiu um arquivo com as vozes e os gestos de quem, nos antigos estádios ingleses, ocupava a zona do peão, por trás das balizas, e acompanhou os protestos de grupos de adeptos contra a extinção dessa zona, decretada no quadro da reforma do futebol profissional inglês à luz dos problemas de hooliganismo e das transformações da economia política do jogo. A importância do seu trabalho para o nosso argumento é múltipla. Ao focar uma zona do estádio onde o jogo era visto de pé, a meio caminho entre quem vê e quem faz, localizou um lugar indeterminado, que nos convida a interrogar os limites da dicotomia que em parte tem guiado as políticas culturais e a crítica da cultura, a dicotomia entre quem é espectador e quem é praticante.20 Mas o ponto mais relevante de trabalhos como o de Smith é o simples facto de mostrarem a pluralidade das culturas adeptas. Damos relevo a este ponto, não a fim de exigirmos a preservação da zona do peão – isto é, não porque seja nossa preocupação a preservação de formas culturais que se considerem próprias a determinados grupos sociais –, mas porque importa expor o falso universalismo de quem entende que ninguém quer ver um jogo atrás de uma baliza. Dito de outra maneira: a crítica do falso universalismo não tem de dar necessariamente lugar à defesa de um particularismo, o que seria substituir a «ilusão» de um ponto de vista universal pela «realidade» de pontos de vista particulares, mas permite, sim, identificar/criar a margem de autonomia que a todos deve ser garantida, quer pela análise social, quer pela ideia de democracia. E as resistências à massificação eivadas por essa autonomia não só não nos suscitam reservas como, doravante, nos desafiam, quer a nível da análise social, quer da acção política, a participar dos esforços que visam aumentar a sua margem de manobra.

20 David Harris, From Class Stuggle to the Politics of Pleasure – The Effects of Gramscianism on Cultural Studies (Londres: Routledge, 1992); Jacques Rancière, O Espectador Emancipado (Lisboa: Orfeu Negro, 2010).

572

27 MVCabral Cap. 27_Layout 1 6/24/13 10:06 AM Page 573

Parte IV Saúde e envelhecimento

27 MVCabral Cap. 27_Layout 1 6/24/13 10:06 AM Page 574

27 MVCabral Cap. 27_Layout 1 6/24/13 10:06 AM Page 575

João Lobo Antunes

Capítulo 27

O consolo das humanidades Este livro é decerto a forma ideal de celebrar alguém cuja vida foi dedicada a decifrar os enigmas do comportamento dos homens e o modo como eles se relacionam em sociedade. Este é um ensaio de puro sentimento, que faz justiça a uma amizade que foi crescendo ao longo dos anos, sustentada pelo entendimento comum daquilo que é verdadeiramente sério, e pela aceitação tolerante das nossas fragilidades.

De todas as experiências que marcam a nossa jornada por este mundo, é a experiência da doença que nos ameaça a vida que deixa marca mais profunda na essência do que somos, na fraternelle jointure da alma e do corpo de que falava Montaigne. Não o faz com o gume de uma lâmina, mas como se um monstruoso insecto de múltiplos ferrões injectasse em nós, por cada um deles, um veneno diferente que ataca uma parte específica do todo. Sem procurar definir uma hierarquia ou estabelecer uma ordenação lógica, eu diria, contudo, que o primeiro abalo que sofremos é no sentido do tempo, não só do tempo vivido, mas também do tempo por viver, o tempo do futuro imaginado. Roger Martin du Gard, que escreveu sobre esta questão no volume da sua admirável saga Les Thibault (que tanto me encantou na adolescência) intitulado «La Mort du Père» (Martin du Gard 1929), dizia que a inteligência humana é tão essencialmente alimentada de porvir, que quando qualquer possibilidade de futuro se esgota, quando cada impulso do espírito vem, obstinadamente, bater na morte, o pensamento não é mais possível. E Montaigne, que explicou, com tanta lucidez, a necessidade de aprender a morrer, argumentava: «Nous ne sommes jamais chez nous, nous sommes toujours au delà. La crainte, le désir, l’espérance nous élancent vers l’avenir» (Montaigne 1992a). Por várias vezes, no tempo longo que levo no ofício, me foi pedida não a cura – que se sabia impossível –, mas a dádiva de mais tempo, para mais um Natal, para casar uma filha, ou, noutras ocasiões, por razões 575

27 MVCabral Cap. 27_Layout 1 6/24/13 10:06 AM Page 576

João Lobo Antunes

aparentemente tão fúteis – para assistir a um derradeiro campeonato de futebol! – que era difícil justificar o risco de mais uma intervenção. Mas não nos cabe fazer tal juízo porque, nestas circunstâncias, os valores do pueril e do transcendente muitas vezes se confundem. Quando acaba a luz e chega a noite, começa o tempo da suprema solidão em que mais se teme o abandono. Recordo-me do meu tempo de jovem interno e de como me parecia haver algo misterioso e ameaçador no hospital adormecido, como se o fantasma da morte andasse solto naqueles corredores desertos. E é durante a noite que mais se morre e também que mais se nasce [alguém disse que a vida e a morte são filhas da noite (Satta 2009)]. A revolta contra a noite é também uma forma de insubmissão contra a morte: «do not go gentle into that good night» escreveu Dylan Thomas num poema famoso. Um outro veneno atiça o sentimento da esperança, um sentimento tímido, cerimonioso, que nem sempre ousa confessar a lonjura em que se projecta. Parece, para nosso engano, contentar-se com um caminho abreviado, um horizonte próximo. Outras vezes, porém, revela uma ambição mais nítida, enuncia programas bem traçados, e justifica-os por haver sementes plantadas que ainda não germinaram, ou pela aspiração, não satisfeita, do reconhecimento e da glória. Esta esperança ignora a serenidade que só é ganha por uma vida completa, o que, insistia Montaigne, era o segredo da boa morte (1992b). Em várias ocasiões escrevi sobre a esperança e o drama da incapacidade, já notada por Fernando Gil (2005), de nos imaginarmos sem um futuro indefinidamente aberto e de quase infinitas possibilidades. Insisto: o tempo de viver é sempre considerado em função da esperança e é precisamente no lidar com a esperança que mais se ofende a moral do meu ofício (J. Lobo Antunes 2010b). Ivan Illitch, uma das geniais criações de Tolstoi (1986 [1886]), herói da mais assombrada narrativa sobre a morte que conheço, vai tomando consciência de como a sua vida está envenenada e, mesmo quando consegue atender à rotina do tribunal onde é juíz, este pensamento ocupa todo o seu tempo de vida consciente: ele ficava a contar, uma por uma, as vinte e quatro horas, vividas à beira do precipício, só, sem ninguém que o compreendesse ou lastimasse. De facto, nestas circunstâncias, muitas vezes o único interlocutor que nos ouve é um outro Eu. Volto a Montaigne: «nous sommes, je ne sais comment, doubles en nous-mêmes» (Montaigne 1992c). Assim recolhemo-nos para penetrar a «profundidade opaca» do nosso espírito, naquela «arrière-boutique toute nôtre, toute franche, en laquelle nous établissions notre vraie liberté» (Montaigne 576

27 MVCabral Cap. 27_Layout 1 6/24/13 10:06 AM Page 577

O consolo das humanidades

1992d). O desdobramento da personagem que somos é um fenómeno fascinante: uma é fria, racional; a outra exuberante e emotiva; esta é movida pela esperança, aquela abatida pelo desalento; a primeira não ilude a verdade, a segunda faz-lhe ouvidos moucos. Este diálogo interior, esta espécie de «folie à deux», é uma outra expressão da miserável solidão da doença que John Donne reconhecia, resignado, nas suas Devotions upon Emergent Occasions: «As sickness is the greatest misery, so the greatest misery of sickness is solitude» (Donne 1999). É nesta ocasião que aparecem os que verdadeiramente nos amam, e tantas vezes experimentam a desoladora impotência de não conseguirem entrar nesse mundo cerrado. É tempo de explicar o título deste ensaio: é nas humanidades que é possível encontrar o eco mais perfeito da voz com que a doença exprime o seu sentir. Reconheço aqui a importância da minha própria experiência, como já recomendavam Platão e o nosso Francisco Sanches que dizia, no seu Quod Nihil Scitur («Que nada se sabe»), que o «médico para ser perfeito devia sofrer todas as doenças, pois só assim podia formar o juízo exacto». Contudo, como nota Virginia Woolf numa luminosa meditação chamada On being ill (Wolf 2002), a doença não é um tópico popular na literatura, pois é quase impossível comunicar a doença: a doença prefere a solidão e «requires not only a new language, more primitive, more sensual, more obscure, but a new hierarchy of passions». E Joan Didion (2005), no relato comovente da experiência da morte do seu marido, o escritor John Gregory Dunne, confessa logo no início: «This is a case in which I need more than words to find the meaning.» O mesmo é bem ilustrado nas narrativas autopatográficas de dois escritores da nossa língua, aliás amigos próximos e companheiros de estúrdia, José Cardoso Pires, no De Profundis (Pires 1997), e António Lobo Antunes em Sôbolos Rios que Vão (A. Lobo Antunes 2010). Um dos modos como a doença recria a linguagem necessária para se contar é o recurso generoso a metáforas (como aliás também o faz a ciência: «buraco negro», «código genético», «efeito de estufa»). Na novela de Cardoso Pires, o autor, que não entende a fala e a escrita, chama ao seu distúrbio «morte branca»: «branco, branco, em luz gelada e com a mulher à cabeceira a segurar-lhe a mão. Preso a ela mas todo voltado para a distância». Ambas as narrativas são perpassadas pelo medo, um outro modo como a doença infecta o espírito das suas vítimas. Medo, até, de chamar a doença pelo seu nome próprio, numa espécie de um exorcismo ingénuo. É que, como nota Virginia Woolf, «to look these things squarely in the face would need the courage of a lion tamer». Não há intimidade entre este medo e a coragem, que é tantas vezes a armadura atrás da qual 577

27 MVCabral Cap. 27_Layout 1 6/24/13 10:06 AM Page 578

João Lobo Antunes

se refugia a nossa dignidade – um conceito de extraordinária complexidade (J. Lobo Antunes 2010b) –, porventura o único amparo que nos sustenta nessa circunstância. Isto está admiravelmente descrito na novela de Tolstoi em páginas de extrema crueldade. Na sua narrativa, a indignidade do sofrimento – ele despreza o valor redentor que lhe atribuem os crentes – incomoda os sãos, que só por cortesia ou obrigação se aproximam. De facto, muito do que se passa no corpo doente é razão de vergonha, e a sua revelação, espontânea ou forçada, embaraça ambos os interlocutores. Mas o inverso é também verdadeiro. Escreveu Tolstoi: «A saúde, a força, a vivacidade de todos os outros ofendiam Ivan Illitch.» Mas acrescenta: «Só a força e a vivacidade de Guérassin [o mujique que o servia] em vez de o entristecer, o tranquilizavam.» A este Illitch entrega sem reticência o governo da sua autonomia e todo o cuidado do corpo, pois percebe que nele encontrou a aceitação total por um irmão no destino. Tantas vezes observei como a coragem é a ultima arma que evita a dissolução do Eu, e como teima em mostrar-se, mesmo quando a esperança já desistiu. A coragem conhece mal o funcionamento íntimo da máquina doente, mas é uma pulsão interior que se revela na manifestação exterior da sua nobreza. O medo, por seu lado, é um mar que periodicamente se encarpela. O medo começa, por exemplo, quando percebemos que um pequeno grupo de células, que se esqueceram de morrer, se juntam numa quadrilha assassina. O medo cresce pelo conhecimento do poder maligno daquilo que é primeiramente notado como um grão de arroz. O medo avança na expectativa de uma análise ou de uma nova imagem que os caçadores dos nossos fantasmas irão decifrar. Então jazemos paralisados no pânico, enfiados no tubo de uma ressonância magnética, ouvindo um batuque metálico, infernal, que parece não ter fim. Dizem-nos, para nosso alívio, que é «negativo», o que, estranhamente, é positivo. Mas tal não elimina o medo surdo de que no interior de nós o caranguejo vá mordendo, silencioso e implacável. Deslocamos então para outros o nosso temor – «está em boas mãos», asseguram-nos. A autoridade tem um valor terapêutico substancial. Saul Bellow na sua última novela, Ravelstein (2000), descreve assim o médico que trata o narrador (aliás ele próprio): «Ele não falava muito. Não tinha de o fazer [...]. Agarrava o estetoscópio que lhe saía do bolso como uma fisga». Para Ivan Illitch a segurança do clínico tem efeito oposto: no olhar que lhe lança, Illitch pretende dizer-lhe «Não tem vergonha [...] de me mentir assim?».

578

27 MVCabral Cap. 27_Layout 1 6/24/13 10:06 AM Page 579

O consolo das humanidades

Como apontou Rita Charon (2006), parece que no tempo de hoje os doentes são forçados a escolher entre a atenção e a competência, entre a simpatia e a ciência. Mas a verdade é que a Nova Medicina é essencialmente probabilística. O progresso da ciência e da técnica vieram, paradoxalmente, aumentar a incerteza, mesmo quando mitigada pelas estatísticas do risco e do sucesso, afinal tão difíceis de serem tomadas como expressão da realidade concreta. Assim a doença ameaça este equilíbrio tão frágil do corpo e do espírito que define a nossa humanidade, composição estocástica de inteligência, vontade, desejo, prazer, repulsa, memória, amores e ressentimentos. A doença convida ao exame da vida, provavelmente a única circunstância em que chegamos próximo da análise lúcida do caminho percorrido. Então regressam à cena os actores esquecidos da nossa biografia. Voltamos a viver os momentos em que subimos mais alto do que alguma vez aspirámos, ou descemos à profundidade em que a vergonha nos perdera. Ouvimos novamente as palavras que deveríamos ter contido ou então, pelo contrário, as que ficaram por dizer. Contabilizamos o balanço final e escrevemos, com um travo de amargura, o último currículo. A narrativa da doença – e é importante no meu ofício saber ouvi-la –, só é bem entendida quando já se escutaram outras vozes, na ficção, na filosofia ou na poesia, que ajudam a apreender o seu sentido mais profundo, oculto tantas vezes nos interstícios de um discurso que tanto pretende revelar, como ocultar. De facto, o encontro singular da clínica é feito de palavras mas, não raramente, também da eloquência de um silêncio igualmente eloquente. No prefácio do meu primeiro livro, Um Modo de Ser (J. Lobo Antunes 1996), escrevi que era outra a medicina quando praticada por médicos cultos. Referia-me, naturalmente, não à erudição médica mas à cultura das humanidades, hoje tão perigosamente desleixada. É possível que a minha impaciência seja apenas manifestação das desilusões fisiológicas da idade, mas a verdade é que não encontro nos médicos das novas gerações o mesmo «vibrato» emocional que me animou toda a vida, talvez por desconhecerem os dialectos do sofrimento, ou por recearem mergulhar num mundo de emoções que só vagamente vislumbram ou, ainda, penetrarem no íntimo de uma solidão tão unicamente humana. Tudo isto pode acontecer, apesar da intervenção de uma pedagogia solícita, chamada a ensinar as alíneas da comunicação entre médico e doente, formais, correctas, irrepreensíveis, mas que desdenham sentimentos como a compaixão, «le peculier sentiment relatif que touche le coeur humain selon l’ordre de la nature» (Montaigne 1992c), como escreveu o primeiro dos humanistas. Sempre duvidei de que a compaixão 579

27 MVCabral Cap. 27_Layout 1 6/24/13 10:06 AM Page 580

João Lobo Antunes

fosse um sentimento ensinável, embora admitisse tal ser possível em relação a certos valores morais, usando, como único método útil, o exemplo. Podemos apenas apontar o que no outro – e aqui o conceito do próximo adquire uma admirável ressonância cristã – nos parece digno de merecer compaixão. Falando ainda das novas gerações dos meus companheiros de ofício, creio que, em certa medida, esta falta de curiosidade pela história do outro se deve, em parte, à incapacidade de descobrir e ser desafiado pelo mistério de narrativas que quase não chegam a ouvir, confinados no mundo de um conhecimento científico cujas limitações ignoram, e cegos pelas maravilhas da tecnologia que lhes confere autoridade e poder. Alguns (os mais perigosos), nunca irão perceber que no cérebro desta medicina contemporânea se juntam, em inesperadas sinapses, incerteza, risco e erro. Ora, como alguém notou, só as humanidades reconhecem a incerteza como a emoção humana dominante (Kagan 2009). Poderá perguntar-se então que ganhei eu com a cultura humanística que comecei a adquirir ainda antes de ser médico, tantas vezes à mesa de jantar, no rio de uma conversa de uma inteligência austera? Eu diria que a maior conquista foi ter-me apurado o ouvido para captar outras vozes, compreender o significado oculto das palavras, e ter a competência para falar com qualquer pessoa num diálogo que nos eleva àquela altitude comum que permite o olhar horizontal, olhos nos olhos. Muito aprendi em obras de ficção. Em Moby Dick, por exemplo, encontrei o eco dos meus medos numa sala de operações, mas também o impulso de perseguir o inimigo até ao limite das minhas forças, e da necessidade de aquele impulso ser moderado pela mais negligenciada das virtudes, o bom senso. Não conheço elogio mais belo ao carácter pastoral do meu ofício, ofício agitado pelo heroísmo e pela cobardia, pelo orgulho e pela humildade, do que em La Peste de Camus. Não existe talvez nenhum tratado de bioética que penetre o cerne do sofrimento físico e espiritual da doença mais profundamente do que A Morte de Ivan Illitch de Tolstoi, a que repetidamente aludi. E muitos mais poderia citar. Foi na filosofia, aprendida nos livros mas, sobretudo, tão socraticamente, no convívio com Fernando Gil, que descobri a importância de olhar para além das aparências e fazer perguntas cuja resposta, eu sabia de antemão, seriam outras perguntas. E, finalmente, muito me ensinaram os poetas, pois, como apontou o genial Brodsky (1995), a poesia é a forma mais concisa de transmitir a experiência humana. A modernidade, suponho eu, criou uma linguagem própria para esta medicina técnico-científica que não cobre as nuances dos sentimentos. 580

27 MVCabral Cap. 27_Layout 1 6/24/13 10:06 AM Page 581

O consolo das humanidades

Até a própria ética médica, sufocada pelos algoritmos da decência que a filosofia analítica e o direito quiseram impor, parece ter esquecido as emoções e, dentro delas, a mais nobre, a compaixão. Poderá argumentar-se que o humanismo começou com as palavras inaugurais do Decameron que indicam bem a centralidade humana da experiência de que venho tratando: «Umana cosa è.» Afinal o objecto primordial dos humanistas era o desenvolvimento das «humanitas», ou seja, das virtudes humanas. Hoje, as humanidades parecem viver uma crise séria, não só pela indecisão acerca do alcance do seu domínio próprio, mas também pela suspeita pragmática do seu préstimo (Plum 1964). Nada, no entanto, mais falso. De facto, as humanidades, que incluem no seu amplo abraço as línguas e a literatura, a história, a filosofia, a religião, e ainda os estudos culturais, a arqueologia, a história da arte, a história da música, do teatro e do cinema, têm como domínio comum o estudo, a contemplação e a exploração do que significa ser humano (Ayers 2009). O humanista é, recorda Steiner (2009), o guardador das memórias, o que caminha com a cabeça voltada para trás. Mas, ao mesmo tempo, não lhe resta outra opção senão desafiar o conhecimento ou mesmo a sabedoria que herdou, e assim fornecer os instrumentos necessários para desenrolar o novelo complexo da modernidade. Para mim a «Nova Medicina» é arriscada, difícil, incerta e perigosa. Por isso, eu encontro a minha inspiração e o meu consolo nas humanidades. Montaigne dizia do seu ofício: «Mon metier et mon art, c’est vivre» (Montaigne 1992e). O meu não é diferente.

Bibliografia Ayers, E. L. 2009. «Where the humanities live». In Reflecting on the Humanities. Daedalus, Inverno 2009. Bellow, S. 2000. Ravelstein. Nova Iorque, NY: Viking Press. Brodsky, J. 1995. On Grief and Reason. Nova Iorque, NY: Farrar, Strauss, Giroux. Charon, R. 2006. Narrative Medicine. Honoring the Stories of Illness. Oxford: Oxford University Press. Didion, J. 2005. The Year of Magical Thinking. Londres: 4th Estate. Donne, J. 1999. Devotions upon Emergent Occasions. Nova Iorque, NY: Vintage Spiritual Classics, 1999 Gil, F. 2005. «Mors certa, hora incerta». In Acentos. Lisboa: INCM. Kagan, J. 2009. The Three Cultures. Natural Sciences, Social Sciences and the Humanities in the 21st Century. Cambridge: Cambridge University. Press. Lobo Antunes, A: 2010. Sôbolos Rios que Vão. Lisboa: Dom Quixote.

581

27 MVCabral Cap. 27_Layout 1 6/24/13 10:06 AM Page 582

João Lobo Antunes Lobo Antunes, J. 1996. Um Modo de Ser. Lisboa: Gradiva. Lobo Antunes, J. 2010a. «A morte como opção». In Inquietação Interminável. Lisboa: Gradiva. Lobo Antunes, J. 2010b: «Dignidade». In Inquietação Interminável. Lisboa: Gradiva. Martin du Gard, R. 1929. Les Thibault, 6.ª parte, «La mort du père». Paris: Gallimard. Montaigne, M. 1992a. Essais. Liv. 1, cap. 20, «Que philosopher, c’ést apprendre à mourir». Paris: Éd. Arléa, 62-74. Montaigne, M. 1992b. Essais. Liv. 1, cap 3, «Nos affections s’emportent au-delà de nous». Paris: Éd. Arléa, 9. Montaigne, M. 1992c. Essais. Liv 2, cap 16, «De la gloire». Paris: Éd. Arléa, 478. Montaigne, M. 1992d. Essais. Liv. 1, cap 39, «De la solitude». Paris: Éd. Arléa, 186. Montaigne, M. 1992e. Essais. Liv. 2, cap 6, «De l’exercitation». Paris: Éd. Arléa, 291. Pires J. C. 1997. De Profundis. Valsa Lenta. Lisboa: Dom Quixote. Plum J. H., ed. 1964. Crisis in the Humanities. Londres: Penguin Books. Satta, S. 2009. Il Giorno dell Giudizio, citado por G. Steiner: «One thousand years of solitude». In George Steiner at the New Yorker. Nova Iorque, NY: New Directions. Steiner, G. 2009. «The Cleric of Treason». In George Steiner at the New Yorker. Nova Iorque, NY: New Directions. Tolstoi, L. 1986 [1886]. La Mort d’Ivan Ilitch. Paris: Perrin. Woolf, V. 2002. On Being Ill. Ashfield, MA: Paris Press.

582

28 MVCabral Cap. 28_Layout 1 6/24/13 10:07 AM Page 583

Leonor Parreira

Capítulo 28

Consilience Tributo a Villaverde Cabral Agradeço, em primeiro lugar, aos organizadores deste encontro, o convite que me fizeram para estar aqui hoje, celebrando a vida e a obra de Villaverde Cabral.1 Confesso que a instintiva lisonja que senti por me ter sido concedida tal honra deu lugar de imediato a um enorme embaraço, quando li as instruções. Era-me pedido que enquadrasse a minha actividade de pesquisa com o pensamento e os interesses científicos de Villaverde Cabral. O embaraço resultou, e faço aqui um acto de contrição, do facto de a minha actividade de investigação nunca se ter cruzado com a de Villaverde Cabral. Conhecia, evidententemente, a sua intervenção pública, que seguia com atenção, admirando-lhe a independência e a lucidez do pensamento, tinha lido os seus livros sobre a Sociologia da Saúde em Portugal, mas era tudo. Portanto, como nada posso fazer quanto ao passado, aproveito a oportunidade para falar do futuro. A Fundação Gulbenkian entregou-lhe, em boa hora, uma missão de grande importância. A coordenação de um Instituto, o primeiro em Portugal, dedicado ao problema do Envelhecimento. Pode ler-se, aliás, no site da Fundação, que o Instituto foi criado com os objectivos de conduzir estudos e projectos de investigação na área do envelhecimento, de promover a formação e de organizar actividades de comunicação científica à sociedade em geral. O senhor, em entrevista a um semanário, deu-nos conta de que abordará, em estreita colaboração com a Fundação Francisco Manuel dos Santos, a descrição e a quantificação rigorosas dos problemas sociais do 1

Instituto de Ciências Sociais, 27 de Setembro de 2010.

583

28 MVCabral Cap. 28_Layout 1 6/24/13 10:07 AM Page 584

Leonor Parreira

envelhecimento no nosso país, informação urgente, quanto mais não seja pela importância que terá como substrato racional para a decisão política. Ao ler a entrevista, tropecei, contudo, numa afirmação que me intrigou – que a intervenção do Instituto não contemplará, apesar de tal ter sido inicialmente equacionado, uma ligação com a biomedicina. Fiquei perplexa, como calcula, porque o envelhecimento é, como sabemos, uma inevitabilidade de todos os seres vivos. Na verdade, poder-se-ia até dizer que seria um problema de índole estritamente biológica, não fora o progresso da ciência e da tecnologia, essas sim, produtos exclusivos da humanidade, o ter transmutado num problema societal e político. Seria, pois, natural, que a ciência que nos ofereceu mais tempo de vida fosse chamada a contribuir, senão para a solução, pelo menos para a compreensão dos problemas que criou, por nos fazer viver de mais. Veio-me então à ideia uma preocupação que foi tema frequente das nossas conversas nos últimos meses – a persistência da extrema polarização das ciências sociais e das ciências da vida. E fui por isso reler o capítulo dedicado às ciências sociais, desse livro luminoso que Edward Wilson intitulou Consilience – the Unity of Knowledge.2 Diz ele, logo no início do capítulo, o seguinte: «Everyone knows that the social sciences are hypercomplex. They are inherently far more difficult than physics and chemistry, and as a result they, not physics and chemistry, should be called the hard sciences. They just seem easier, because we can talk with other human beings but not with photons, gluons, and sulphide radicals.» Lembra, também, que as ciências sociais e as ciências da vida, têm uma característica que as une – o respeito pela análise fina e quantitativa dos factos. Argumenta, pois, que a consiliência de todas as áreas de conhecimento é um imperativo de todos os que praticam a ciência, enquanto sistema explanatório do mundo. Assim, sendo a natureza humana (em todas as suas dimensões) uma propriedade emergente de processos materiais, há todas as razões para acreditar que as ciências da vida e as ciências sociais terão tudo a ganhar, e nada a perder, se incluírem nas respectivas agendas o conhecimento de ambas derivado. 2 Edward O. Wilson. 1998. Consilience. The Unity of Knowledge. Nova Iorque, NY: Alfred Knopf

584

28 MVCabral Cap. 28_Layout 1 6/24/13 10:07 AM Page 585

Consilience

O sucesso da medicina contemporânea, e é bom lembrar que a ciência médica também é uma ciência social, é o exemplo perfeito da eficácia de uma perspectiva consiliente do conhecimento. Em medicina, agradecemos tudo o que todas as ciências nos possam oferecer, desde a física quântica, à biologia, sociologia e humanidades. Aliás, a própria expressão «biologia molecular», ciência que a medicina moderna não dispensa, foi inventada por um matemático, Warren Weaver, em 1938, quando propôs que os metodos analíticos e experimentais da física fossem aplicados ao estudo dos problemas básicos da biologia. E foi também um físico, Shrödinger, que, na sua célebre conferência «What is life?» em 1944, viria a inspirar a agenda da biologia da segunda metade do século XX. Dizia ele que quem quisesse saber o que era a vida deveria ser capaz de explicar qual a estrutura física do material que duplica quando os cromossomas de uma célula duplicam, como se dá essa duplicação, como é perpetuada a individualidade desse material ao longo das gerações celulares, como é controlado o metabolismo das células e qual a base da diversidade (estrutural e funcional) dos organismos superiores. O que se seguiu é do conhecimento de todos: a descoberta da dupla hélice de ADN, do código genético, da regulação da expressão génica, as novas tecnologias da genética molecular, a genética populacional, a sequenciação do genoma humano. Para a medicina, o impacto da biologia molecular e dos seus derivados, a biologia do desenvolvimento e a biologia da evolução, foi enorme. Tão grande que retirou, de uma vez por todas, a visão antropocêntrica, que marcara a medicina ao longo de 24 séculos. Sabemos que nada do que é vivo nos é alheio. Mudou-nos, até, o conceito de normalidade e doença. Aliás, Thomas Khün chamou a atenção para a dimensão não «normal» da nova biologia, enquanto ciência de perturbação social, tão revolucionária, segundo ele, quanto o foram a ciência de Copérnico, de Galileu, de Newton ou de Darwin. Wilson chama a atenção para um fenómeno que tem caracterizado a evolução das ciências naturais nas últimas décadas – a mudança progressiva dos níveis explanatórios em que actua. O foco desloca-se rapidamente do plano unidimensional descritivo dos componentes da natureza, para a análise tri e tetradimensional de sistemas complexos altamente organizados. Cada vez mais as ciências da vida dispõem de instrumentos que lhes permitem abordar experimentalmente problemas anteriormente intratáveis – aqueles que dizem respeito a níveis superiores de organização, desde o organismo ele próprio, até ao comportamento de populações. 585

28 MVCabral Cap. 28_Layout 1 6/24/13 10:07 AM Page 586

Leonor Parreira

Quatro disciplinas, em particular, merecem, segundo Wilson, 3 a atenção e a contribuição das ciências sociais. • A primeira é a neurociência da cognição. Nos últimos anos os neurocientistas estão a usar todo o arsenal tecnológico de que dispõem, mais o que vão inventando, para explicar as bases físicas, biológicas, da mente. O discurso sobre a mente já não é o da análise introspectiva e filosófica, é antes o da linguagem de neurotransmissores, hormonas e circuitos neuronais. A neurociência contemporânea trabalha hoje em estreita cooperação com a biologia do desenvolvimento, da evolução, com a investigação da inteligência artificial para alcançar o que pretende, uma teoria geral da cognição. • A segunda é a genética do comportamento, a qual, ajudada por testes tradicionais da psicologia, procura identificar genes que afectam a actividade mental bem como os complexos mecanismos que explicam que uma prescrição genética se traduza num fenótipo comportamental. O que se pretende, evidentemente, não é impor um determinismo genético absoluto ao comportamento de qualquer espécie, incluindo a humana. Pretende-se, antes, explicar aquilo que ainda não sabemos – a complexa interacção entre o genoma e o ambiente. • A terceira é a biologia da evolução e, em particular, a sociobiologia, que procura reconstruir as origens remotas do nosso comportamento social, identificando as «irregularidades hereditárias» que determinam o desenvolvimento cognitivo e a nossa interacção com os outros. • Finalmente, a ciência do ambiente, incluindo a ecologia humana, que investiga o contexto ambiental em que a nossa espécie evoluiu ao longo de milhões de anos, e, sobretudo, o que é preciso realmente manter para que continuemos a sobreviver. É difícil encontrar, entre estes domínios de explicação do mundo, algum que não possa contribuir, em estreita cooperatividade com as ciências sociais, para uma nova visão dos problemas que afligem a humanidade, quaisquer que eles sejam. O envelhecimento não é excepção. Submeto, pois, à sua consideração, não uma proposta, porque não correria o risco de que me dissesse que não, mas antes um desafio difícil – coisa a que o senhor não é capaz de resistir. Coopte, para o assunto que o

3

Ibidem.

586

28 MVCabral Cap. 28_Layout 1 6/24/13 10:07 AM Page 587

Consilience

vai ocupar nesta sua nova missão, o extraordinário potencial heurístico que todo este conhecimento tem para nos oferecer. Sendo o senhor um humanista, sabe que o desafio é difícil, mas sabe também que o risco é pequeno. É exactamente o que Wilson diz no fim do capítulo que acima referi: «The moral imperative of humanism is the endeavor alone, whether successful or not, provided the effort is honorable and failure memorable. If those committed to the quest fail, they will be forgiven. When lost, they will find another way.»

587

28 MVCabral Cap. 28_Layout 1 6/24/13 10:07 AM Page 588

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 589

Sofia Aboim

Capítulo 29

Ser velho: percepções e dimensões do envelhecimento Introdução O envelhecimento acelerado das sociedades é uma realidade irrefutável que tem vindo a alterar a paisagem demográfica em grande parte do globo, com particular incidência nas sociedades ocidentais e particularmente no contexto europeu. Actualmente, a maioria dos países mais envelhecidos do mundo encontram-se no espaço da Europa, constituindo um grupo no qual Portugal se inclui. O aumento acelerado da esperança média de vida, a par da queda abrupta e continuada da fertilidade, marcam uma tendência portadora de consequências graves, cuja reversibilidade se entrevê difícil face à incapacidade de substituir as gerações. A par de países como a Itália, a Grécia, a Alemanha ou a Áustria, entre outros, Portugal tem hoje uma das populações claramente mais envelhecidas, que tem vindo a aumentar a um ritmo quase vertiginoso. Entre 1960 e 2011, a pirâmide populacional sofreu uma inversão muitíssimo acentuada. Enquanto em 1960 o índice de envelhecimento era de apenas 27,3, ou seja, havia pouco mais de um quarto de pessoas com mais de 65 anos por relação às menores de 14 anos, em 2011 este número atinge já os 120,1. Por cada 100 jovens com menos de 15 anos existem 120 idosos. A previsão actual é a de que em 2044 a população até aos 14 anos constitua apenas 13% do total populacional. Em contrapartida, a população com mais de 65 anos aumentará em cerca de 30%, o que representará um rácio de 231 idosos por cada 100 jovens (Carrilho e Patrício 2005). Com efeito, segundo o relatório da Gesaworld (2005), no caso português, as projecções da população para 2050 apontam para uma duplicação da percentagem de pessoas com mais de 65 anos e, por isso mesmo, «em 2050, Portugal será o quarto país da EU-25 com maior per589

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 590

Sofia Aboim

centagem de idosos, só ultrapassado por Espanha (35,6%), Itália (35,3%) e Grécia (32,5%)» (Gesaworld 2005, 22). Sem dúvida, no cenário actual a Europa do Sul parece ser palco de um envelhecimento ainda mais acentuado do que sucede em outros contextos europeus, consequência sem dúvida de taxas de fertilidade muitíssimo baixas (Almeida et al. 1998; Rosa 1996; Bandeira 1996), problema que se tem progressivamente transformado num pesado desafio em matéria de políticas públicas para a natalidade e a família. Com efeito, em termos institucionais, a alteração profunda dos padrões demográficos tem ganho crescente visibilidade na esfera pública, chamando a atenção para problemas centrais em vários domínios, desde os sistemas de protecção e de segurança social, a prestação de cuidados de saúde, a rede de equipamentos e de serviços até às políticas de apoio à família. Afinal, o envelhecimento acentuado de uma sociedade representa em si um gravíssimo problema, colocando desafios acrescidos a nível da sustentabilidade dos sistemas públicos de protecção social (Aboim et al. 2010) e, de modo mais geral para além das questões financeiras, ameaçando a própria sustentabilidade de uma sociedade que verá a sua população diminuir dramaticamente (Kalache et al. 2005). Estes problemas não constituem, todavia, o objecto deste texto. Trata-se aqui de elaborar um breve retrato do que significa «ser velho» na sociedade portuguesa actual, acompanhando preocupações patentes numa literatura cada vez mais vasta sobre o envelhecimento e as suas consequências na vida de pessoas cujo período de velhice é também ele progressivamente mais alargado (e .g., Chudacoff 1992; Audiberti 2005; Featherstone e Hepworth 1989; Phillipson 2005). Este processo de transição demográfica tem, com efeito, gerado um paulatino interesse científico pela temática do envelhecimento, que cruza preocupações institucionais e de intervenção política, centradas no próprio futuro do Estado-Providência e nas potenciais medidas que alimentariam a sua sustentabilidade, 1 com os efeitos observados nas vidas individuais (e. g., Fonseca 2004; Hepworth 2000; Hockey e James 2003; Kaufman 1994). As condições materiais de vida, a transição para a reforma, o declínio da saúde e da vitalidade física, a sexualidade, o isolamento familiar e social, entre outros temas, têm vindo a constituir objectos privilegiados de análise entre o segmento mais velho da população. Aquele que, segundo Marshal e Taylor (2005), entre outros autores, teria, como sucede com as crian-

1

A este respeito ver, por exemplo, Phillipson (2005), Kohli (2005), Marshall e Taylor (2005), Pierson (1994), Santos Silva (1998), Silva (1998), Santos e Ferreira (1998), Rosa (1998), Esping-Andersen (1998).

590

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 591

Ser velho: percepções e dimensões do envelhecimento

ças e os adolescentes, um padrão de vida mais estandardizado, mais controlado por sistemas públicos de regulação da idade (Kohli 2007; Mayer 2009). A contracorrente dos argumentos favoráveis ao impacto crescente dos processos de individualização social (Giddens 1992; Beck e BeckGernsheim 2002) na pluralização dos cursos de vida, a velhice seria, no actual regime de curso de vida (2003), particular objecto de regulação pública. Como argumentam Hockey e James (2003), a maior regulação desta etapa da vida estaria associada a uma maior vulnerabilidade social deste grupo etário. Não obstante, as formas de viver a velhice podem ser bastante diversificadas, quer em termos de condições materiais e mobilização de apoios, quer em matéria de visão subjectiva do envelhecimento. Como demonstraram diversos estudos, os «velhos» estão longe de constituir um grupo uniforme abrigado sob a etiqueta institucional de «idoso» (Hepworth 2000, entre outros). Assim, partindo de uma perspectiva microssociológica, este texto pretende analisar, de forma exploratória, discursos de homens e mulheres confrontados com o seu próprio processo de envelhecimento, procurando perceber quais as percepções individuais do «ser velho» e quais as principais dimensões associadas à transição para a velhice. Em suma, tenta-se compreender como se sentem homens e mulheres face ao inevitável processo de envelhecimento e como são as suas vidas e identidades afectadas pelo simples facto de envelhecerem. Seguindo uma linha de pesquisa como a que encontramos no trabalho de Hepworth (2000), entre outros, são as estórias do envelhecimento o principal objecto da nossa análise. As dez mulheres e os vinte homens entrevistados têm idades variáveis, mas sempre mais de 65 anos, a idade institucional da passagem para a terceira idade.2 Na selecção da população entrevistada, em profundidade e procurando reconstituir pormenorizadamente as narrativas de vida de cada indivíduo, procurou-se, para além de um critério de género, diversificar os casos consoante o meio social e as condições materiais pós-reforma e ainda a situação familiar. Foram entrevistadas pessoas a viverem com o cônjuge, a viverem com a família alargada (designadamente filhos ou filhas), a viverem sozinhas (na maioria dos casos, devido a viuvez) ou

2 As entrevistas a homens e mulheres com mais de 65 anos foram realizadas no âmbito de dois projectos de investigação financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia: o projecto Género e Gerações, em que se entrevistaram três gerações da mesma linhagem familiar, e o projecto Homens nas Margens, em que um dos grupos entrevistados eram homens idosos a viverem em diferentes situações familiares.

591

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 592

Sofia Aboim

em situação institucional (em lares para a terceira idade). Em termos metodológicos, foi privilegiado um método narrativo em que se pedia aos entrevistados que contassem a sua história de vida desde a infância, salientando particulares momentos de transição ou ruptura que para eles tivessem sido importantes. Módulos específicos sobre o impacto do envelhecimento nas suas vidas faziam também parte do guião de entrevista, questionando homens e mulheres sobre a forma como o «envelhecer» tinha afectado (ou não) as suas vidas, em termos de trabalho e vida activa, de relações familiares e de sociabilidade, de relação com o corpo e com a sexualidade, de alterações na forma como se viam a si mesmos ou como achavam que eram vistos, e eventualmente discriminados, pelos outros, focando, em suma, as possíveis transformações da identidade pessoal.

Conformidade e resistência Numa sociedade em que a juventude é um bem valorizado e o adiamento do envelhecimento um lema cada vez mais presente nos discursos públicos e no mediatismo de uma publicidade cujas promessas alimentam quotidianamente o mito do rejuvenescimento, parece promover-se a ideia de resistência e recusa da inevitabilidade do envelhecimento (Katz 1999; Conway e Hockey 1998). O recurso crescente à indústria do rejuvenescimento corporal e as esperanças depositadas nos pretensos milagres produzidos por produtos cosméticos ou intervenções estéticas de maior ou menor extensão tornam visíveis uma alegada inconformidade com o declínio do corpo e a tentativa de parecer novo, mesmo quando os anos avançam no percurso de vida (Ferreira 2008). Porém, apesar de o ideal social de envelhecimento activo ou de um «envelhecer jovem» (Heslon 2009) enfatizarem uma eventual tendência para o esbatimento das fronteiras mais visíveis, porque plasmadas no corpo, entre o ser velho e o ser novo, não deixam de existir, algo contraditoriamente à primeira vista, normas partilhadas que situam a entrada na velhice por volta dos 65 anos. Produto de uma gradual estandardização das idades da vida, que acompanharia a crescente regulação pública do curso de vida (Kohli 2005), é esta a idade média que os portugueses associam à velhice, como revelou um estudo comparativo sobre a transição para a velhice em vários países europeus (Aboim et al. 2010). Esta aparente tensão entre os ideais de uma juventude prolongada e a codificação das idades da vida pode ser interpretada através da proposta de Kohli (2007), para quem a estandardização e cronologização dos tempos 592

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 593

Ser velho: percepções e dimensões do envelhecimento

da vida andaria de mãos dadas com a progressiva individualização das biografias individuais e, por consequência, com a relativa capacidade de os indivíduos recusarem identidades ou estatutos predeterminados e impostos por instâncias exteriores de regulação. Na visão de Kohli seria, aliás, esta uma das principais tensões inerentes à construção das biografias na modernidade tardia, pois, ao contrário do alegado por vários autores, estandardização e individualização não constituem necessariamente tendências opostas, mas desenvolvimentos interdependentes. Só assim se pode compreender a valência da codificação institucional da idade na imposição e aceitação da entrada na «terceira idade». Porém, apesar de o estatuto de idoso se associar simbolicamente à barreira etária dos 65 anos, como encaram os indivíduos esta passagem? Até que ponto se conformam ou, pelo contrário, resistem à inclusão numa nova categoria pública a que a idade biológica os conduz? Alguns estudos realizados em Portugal apontaram para a conformidade com o processo de envelhecimento (Paúl e Fonseca 2005), atitude que, de alguma forma, contraria os ideais de «eterna juventude» disseminados pelos media e outras formas de discurso público. A inevitabilidade da velhice parece causar, apesar de tudo, mais conformidade do que rebelião, como demonstraram as narrativas da maioria dos homens e mulheres entrevistados. Para muitos homens e mulheres com mais de 65 anos, envelhecer e tornar-se idoso constitui um processo naturalizado, conta o qual não há luta possível, quaisquer que sejam os artefactos utilizados para o contrariar. O discurso de conformidade é aliás relativamente semelhante para homens e mulheres. Como apontaram, Paúl e Fonseca (2005), ao contrário do que tende a suceder nos países do Norte da Europa, em Portugal, a resignação com o destino constitui um sentimento muitíssimo comum, sobretudo entre a população mais idosa. Como concluíram os autores, para uma maioria de pessoas, envelhecer bem é ainda aceitar o facto de se ser velho, resignando-se aos impositivos do tempo. Esta atitude está patente na forma como os indivíduos entrevistados decrescem o seu envelhecimento. Como refere uma mulher de 67 anos, residente em Lisboa, com a quarta classe, casada e já avó, o envelhecimento, e a sua aceitação, pode estar até associado a sentimentos positivos de ganho de maturidade e experiência: Sou uma pessoa que aceitei [o envelhecimento] porque não me preocupa mais uma ruga menos uma ruga essas coisas não me preocupam eu acho que o que se ganha é a maturidade a filosofia de se conhecer a vida de se

593

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 594

Sofia Aboim aceitar [...] a experiência supera, só quando há alguma coisa a nível de saúde por exemplo os dentes é uma das coisas que tenho de ter uma placa isso aí é uma coisa que, ainda agora precisei, estava à espera de ficar sem dentes a mim isso, sinto-me mal de resto ter mais uma ruga ou mais um cabelo branco isso aí não foi drama.

Uma atitude similar, embora menos positiva e um pouco mais fatalista, é visível na maneira como uma outra mulher de 72 anos (residente em Lisboa, analfabeta, casada) descreve a forma como se sentiu envelhecer: Eu encaro as coisas assim com muita naturalidade, prontos eu sei que já tenho a minha idade tenho que ser velha, tenho que ter rugas, tenho que ter cabelos brancos o que é que eu hei-de fazer.

Para muitas mulheres idosas, com raríssimas excepções, envelhecer é natural e pressupõe uma aceitação das rugas, dos cabelos brancos e de outros sinais visíveis do envelhecimento, que se manifestam no corpo, na aparência física. Envelhecer é afinal aceitar o inevitável, atitude que pouco se altera, entre as nossas entrevistadas, em face de diferentes origens e posições de classe. As narrativas masculinas não são muito diferentes, pese embora o menor peso dado, pelo menos discursivamente, ao lado mais corporeamente visível do envelhecimento. Menos são os que explicitamente associam o envelhecer ao aparecimento de rugas ou cabelos brancos, como é comum observar-se no modo como as mulheres descrevem o seu processo de envelhecimento. No entanto, a naturalização do envelhecimento é também visível, traduzindo o conformismo com o ser-se e tornar-se velho. Como refere um homem de 69 anos, também residente em Lisboa, com frequência universitária e casado: Há o envelhecimento normal... uma pessoa sabe que há e vai havendo... e aceita, aceita mas acho que é um bocado continuo... é assim aos solavancos... isso é quando uma pessoa está e encontra outra que não vê há muito tempo e diz olha estás mais gordo ou estás mais maior, estás crescido… quando é assim... saio com os pequenos constantemente não se percebe que crescem e o envelhecimento é a mesma coisa... vai realizar de repente... oh por olha para um retrato e olha e vê eu realmente estava assim... e agora estou assim... uma pessoa tem que ter aceitação pela vida.

No mesmo sentido, um outro entrevistado de 85 anos (residente em Terras de Basto, casado, 4.ª classe) nota muito simplesmente e de forma

594

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 595

Ser velho: percepções e dimensões do envelhecimento

particularmente liminar que a morte é no fim de contas a única escapatória para o envelhecimento: Eu acatei as coisas bem. Já sabia que isso me iria acontecer, a não ser que eu morresse como morreram os meus irmãos, ainda novos.

A atitude conformista é também visível na forma como um outro homem de 71 anos (residente em Lisboa, casado, 4.ª classe) reflecte sobre a sua transição para esta nova etapa da vida, ainda que neste caso o entrevistado refira que tem de se convencer de que é velho e que isso não vale grandes lamentos: O processo de envelhecimento, portanto, lido dia a dia, portanto, conformo-me que, cada dia que vai passando, é mais um dia que tenho, e portanto, a idade vai avançando, portanto, como a idade vai avançando, tenho de levar isto na realidade... para que é que hei-de estar a lamentar-me «ahhh se agora tivesse 40 anos», eh pá, eu já passei por essa fase, agora tenho de me convencer, cada dia que passa, torno-me mais velho.

Se a maioria dos entrevistados parece conformar-se com o processo de envelhecimento, afastando-se assim do ideal contemporâneo de que é possível manter-se jovem à revelia dos anos que passam, recusando os imperativos biológicos da idade através da resistência psicológica e do recurso a panaceias prometedoras de rejuvenescimento, este posicionamento de aceitação não abrange, ainda assim, todos os idosos entrevistados. Embora em minoria, alguns indivíduos insistem em resistir ao fatalismo da velhice, como foi observado em outras pesquisas e noutros países (Thompson et al. 1991; Featherstone e Wernick 1995). Oscilam entre uma atitude de insatisfação ou de recusa do estatuto de idoso e uma vontade de arredar a velhice através da actividade, de um envelhecimento activo que se quer manter alheado do enclausuramento no espaço doméstico. Estas formas de resistência surgiram mais claramente nos discursos dos homens, muito embora não possamos extrapolar destes resultados nenhuma representatividade populacional que afirme, sem sombra de dúvidas, uma diferença de género sistemática face ao envelhecimento.3 Contudo, note-se a insatisfação patente na forma como um dos entrevistados (73 anos, residente em Lisboa, casado, licenciado) retrata a 3 As tendências observadas não são contudo distantes das registadas noutros estudos. Sobre o impacto do género no processo de envelhcimento, ver, por exemplo, Arber e Ginn (1995).

595

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 596

Sofia Aboim

sua condição, revelando a nostalgia de um passado que não viveu plenamente: [...] quando se tem a minha idade já não se está satisfeito com nada, não quer dizer que se tenha frustrações. Às vezes digo a brincar... eu não me importava hoje de voltar a ter 15 ou 16 anos, talvez não, mas 20 ou 25 anos sim. Até porque lhe digo que há uma ou outra coisa que me sinto que não apanhei o comboio, porque também era próprio da minha época...

Por seu lado, S. (65 anos, residente em Lisboa, licenciado, a viver sozinho), a par da insatisfação com os sinais inevitáveis da perda de juventude, recusa claramente o rótulo de «idoso», afirmando: Eu não sou idoso, tenho idade... eu sou sénior-activo [...] sou sénior-activo porque sou um sénior em actividade, que desenvolve muitas actividades.

A atitude de resistência pode mesmo pautar-se pela recusa do envelhecimento em si, de um não sentir-se velho, como é o caso de um outro entrevistado, de 73 anos (residente em Lisboa, no Casal Ventoso, 4.ª classe, viúvo, mas a viver com uma companheira): Eu não me sinto velho... eu não me sinto velho... tenho seguido a minha vida... tenho vivido tenho andado mas... não me sinto velho...

Outras formas de resistir aos ditames do envelhecimento reflectem-se na ênfase dada pelos entrevistados às suas actividades, ao facto de permanecerem activos nesta fase da vida. Nestes casos, pode-se até aceitar a inevitabilidade do envelhecimento, desde que a actividade e uma certa vitalidade se mantenham. Não se trata propriamente da maturidade e da experiência, termos mais utilizados no feminino para descrever uma interioridade renovada pelo maior conhecimento da vida, mas de envelhecer activamente, em consonância aliás com o ideal do «envelhecimento activo». Como refere um dos entrevistados (76 anos, residente em Lisboa, 4.ª classe, casado), a aceitação do envelhecimento é cúmplice de uma paixão pela actividade, pelo desporto, pela manutenção de si mesmo e por uma visão do futuro: Eu aceitei. Sabe porquê? Porque desde que eu esteja bem comigo e com os outros e cada vez que saio é com paixão que vou fazer ginástica, porque é preciso ter paixão, e sinto-me bem. Mesmo sem fazer nada toda a gente

596

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 597

Ser velho: percepções e dimensões do envelhecimento me questionava... o mais importante é saber transportar para o futuro o que é bom, o mau não interessa.

Aliás, a manutenção da actividade física ou mental e da convivialidade fora de portas parece extremamente importante para alguns indivíduos, na sua maioria homens para quem a reforma foi vivida como uma porta para outras actividades, como uma oportunidade e não necessariamente como um desfecho, um ponto final para qualquer possibilidade de actividade e utilidade. Só assim, ao alimentarem a ideia de uma pessoa activa, conseguem afugentar a sensação subjectiva de velhice. Como diz um entrevistado (77 anos, residente em Lisboa, licenciado e antigo militar, casado), particularmente crítico do enclausuramento doméstico de outros homens que conhece e que se conformaram ao descanso e à companhia da televisão, a velhice não se nota quando se tem muita coisa para fazer. Como refere, o importante é não ter tempo para pensar: Não notei muito porque vou-lhe dizer: eu levanto-me todos os dias às sete e meia da manhã e deito-me todos os dias à meia-noite; eu vou todos os dias para o serviço militar; eu sou Lyons; e portanto, tenho outras obrigações cá fora. Vejo muitos camaradas meus que quando saíram do activo resolveram ver televisão. A mulher vai às compras e eles estão a ver televisão. Quando a mulher vem, ele está a dormir. Levantam, almoçam. A mulher vai tomar uma bica. Quando a mulher vem ele ‘tá a dormir. De maneira que eu não tenho tempo para pensar. Tenho tanta coisa para fazer. Graças a Deus.

Neste mesmo sentido S. (65 anos, residente em Lisboa, licenciado, a viver sozinho) chega memo a frisar os aspectos positivos da reforma, ao mesmo tempo que recusa determinantemente o estereótipo de um velho sentado na cadeira de baloiço. Sobre o impacto da reforma na sua vida, responde: Ah fez-me um impacto óptimo, porque não parei... passei a fazer outras coisas de que eu gostava... eu tinha pensado na mudança, portanto, eu pensei sempre, eu quando me reformar não posso ir para casa para estar parado, numa cadeira... enfim, simbolicamente, um estereótipo, numa cadeira de balouço, a andar para trás e para diante a ler jornais, tinha exactamente pensado que teria de encontrar entre esses, ou alguns que eu já tinha, e foi isso que eu fiz.

Muito embora se tenha constatado que a reforma (em si, um marcador revelador da progressiva regulação da idade, como notam Kohli et al. [1991]) não constitui em Portugal, ou no contexto europeu, um 597

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 598

Sofia Aboim

marcador particularmente relevante para a definição do que é ser velho (Aboim et al. 2010), é indubitável que para muitos a necessidade de manutenção da actividade no período pós-reforma é essencial e faz parte integrante da forma como encaram o envelhecimento, procurando afugentar a indolência a que a perda do estatuto de cidadão activo inserido no mercado de trabalho pode conduzir. Se nas narrativas dos indivíduos entrevistados não encontrámos vozes acentuadas de revolta contra os imperativos do envelhecimento, verificando-se até um certo afastamento do ideal da manutenção estetizante de um corpo aparentemente mais jovem, já o ideal de pessoa activa permeia os discursos de muitos destes homens reformados e com mais de 65 anos. Pode aceitar-se um envelhecimento plasmado no corpo, mas mais dificilmente se aceita a perda da actividade (sobretudo no caso dos homens) ou a perda das mais-valias da maturidade que acompanha a experiência de uma vida mais longa (sobretudo no caso das mulheres). De certa forma, reproduz-se aqui a clássica dicotomia entre interioridade e exterioridade, ou se quisermos entre público e privado, que faz ainda parte dos códigos de diferenciação de género (Arber e Ginn 1995).

O declínio do corpo: a força que falta, o espelho que trai Porém, esta primeira conclusão não anula a associação − ainda que não necessariamente conforme ao ideal de uma aparência que pode enganar a verdade dos anos estampados no bilhete de identidade − entre envelhecimento e declínio do corpo e da saúde física (e. g., Gilleard e Higgs 1998). O confronto com os primeiros sinais de envelhecimento e de perda de vigor e saúde são normalmente vividos com desagrado e tristeza, face aos imperativos de um tempo que virá e que é inevitável. O conformismo que, no seguimento de outros estudos, encontrámos nos discursos de grande parte dos indivíduos não se dissocia, afinal, de algum desgosto com a fatalidade biológica do envelhecimento. É aliás este um dos aspectos em que, como pudemos perceber anteriormente, mais se entrevêem diferenças de género. De forma geral, no registo discursivo da entrevista, o confronto com um espelho que trai foi mais acentuado pelas mulheres enquanto os homens foram mais pródigos em enfatizar a perda de força e vigor, para eles o pior inimigo da velhice. Como dizíamos, para várias das mulheres entrevistadas, o confronto com o espelho e com a imagem nele reflectida assinala o primeiro anún598

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 599

Ser velho: percepções e dimensões do envelhecimento

cio do processo de envelhecimento. Não obstante enfatizarem a sua progressiva aceitação das rugas e das formas que outrora moldavam os seus corpos jovens, a perda de atributos físicos não deixa de ser recordada e vivida com algum mal-estar (Millet-Bartoli 2002). Como recorda uma mulher de 66 anos (residente em Lisboa, analfabeta, casada): Houve um dia que me olhei ao espelho quando tinha perto de 40 anos e não parecia eu, parece que eu tinha mudado, porque já tinha outra cara. Fiquei um bocadinho assustada. E disse para mim própria que eu não queria ser velha e já estava a ficar velha.

Em sentido idêntico, associando a velhice ao aspecto do corpo, uma outra entrevistada (77 anos, residente em Lisboa, 3.ª classe, casada) refere conformadamente, «Corpo de velha que remédio tenho eu senão gostar». Quanto indagada sobre se gostaria de mudar alguma coisa no seu corpo, acrescenta: «Pensei mas é tão triste que não vale a pena falar nisso.» A mesma nostalgia da beleza perdida faz parte da forma como M., uma mulher de 72 anos (residente em Lisboa, analfabeta, casada) descreve a sua auto-imagem enquanto pessoa idosa: [...] eu às vezes ponho-me a olhar para os fatos que tenho lá no guarda-fatos não é e ponho-me a dizer, eu era tão magrinha e hoje estou tão forte ponho-me assim a pensar não é, porque eu tenho pena dos fatos que tenho não os poder vestir mas então, pois com a idade.

Com efeito, apesar do conformismo que encontrámos nos discursos da maioria dos indivíduos entrevistados, os nossos resultados acompanham de perto a ideia de Margaret Gullette (1997, 193) ao propor que a idade é «internalizada como um factor de stress, de depressão – aquilo a que quero intitular como uma doença psicocultural». Prevalece, apesar de tudo, o medo de já não se ser novo, o que em nada surpreende em face de uma cultura em que a juventude é um bem valorizado. Esta dificuldade, senão recusa, em desaparecer silenciosamente no Outono da velhice é aliás bastante clara não só nas histórias que aqui retratamos, como na pesquisa de outros autores. Na investigação realizada por Mary Gergen (1989) com um grupo de mulheres entre os 42 e os 48 anos ficou patente o receio feminino do envelhecimento, frequentemente associado à perda de recursos estéticos e também à menopausa, eventos esperados mas assustadores para a maioria. No entanto, muitas destas mulheres, como sucedeu também entre as que entrevistámos, acabavam 599

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 600

Sofia Aboim

por recusar o papel de vítimas nas mãos da inevitabilidade biológica. De forma geral, quando imaginavam o seu envelhecimento, antes de a ele chegarem, pensavam que alguma coisa podia ser diferente no caso delas, que haveria formas de se reconstruírem de forma positiva. Na verdade, para as mulheres que entrevistámos essa reacção passa essencialmente por uma aceitação que se tenta afastar da amargura, ao invés do que acontece, muito provavelmente em casos ainda minoritários, em que existe uma procura activa de reconstrução estética do corpo (Katz 1999). Entre os homens entrevistados, a perda de atributos físicos e de beleza corpórea parece ser muito menos importante do que sucede com as mulheres. As grandes provas da velhice, para usar uma expressão de Martuccelli (2006), são em grande medida o confronto progressivo com a perda de vitalidade, a maior susceptibilidade à doença, à perda de força e autonomia. Martuccelli interpreta as principais transições do curso de vida enquanto provas que o indivíduo experiencia, sendo dessa nova experiência que emergem transformações na percepção de si, dos outros, da própria identidade. Sem dúvida, repetimos, uma das grandes provas da velhice, mais sentida pelos homens, pelo menos no registo do discurso, é a perda de força e o impacto da doença sobre o vigor físico (Fleming 1999). Como nota um homem de 79 anos (residente em Lisboa, 4.ª classe, casado), o envelhecimento foi sentido quando o corpo começou a ceder ao peso da idade e da doença: O corpo começou-se a deformar, começou a ter coisas que antes não tinha, dói-me as pernas, dói isto, dói aquilo.

O discurso de um outro homem de 79 anos, desta vez residente na zona nortenha de Terras de Basto, retrata o mesmo desconforto e sentimento de impotência quando inquirido sobre os factos mais marcantes do seu envelhecimento. Refere: Foi ver o corpo. Foi ver a pouco e pouco que não pode fazer aquilo que fazia, os ossos. [...] eu vejo que o que me aconteceu a mim é a mesma coisa que aconteceu aos outros. É a gente querer e não poder, às vezes, mais nada.

O sentimento de que não se é capaz de fazer o que antes se fazia sem dificuldade é muitíssimo marcado entre a maioria dos entrevistados, que, de uma ou de outra forma, repetem o mesmo discurso. É esse também

600

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 601

Ser velho: percepções e dimensões do envelhecimento

o caso de S. (65 anos, residente em Lisboa, licenciado, a viver sozinho). O que realmente marcou a sua percepção de envelhecimento foi sobretudo a sensação de maior debilidade física. Como refere: Ah maior facilidade de cair doente, mais limitações que eu me ponho, ou que me põem os médicos, não coma isto ou não faça aquilo, também incapacidade em fazer certas coisas que antes fazia com muita naturalidade, inclusive arrastar um móvel ou carregar uma mala.

Esta visão qualitativa vem aliás confirmar a realidade revelada por estudos quantitativos, como o European Social Survey (Aboim et al. 2010), que demonstrou serem a debilidade física e a dependência os principais marcadores da transição para a velhice. E, indubitavelmente, embora a sensação de impotência face à doença e ao declínio do corpo seja partilhada pelas mulheres, parece ser mais difícil para os homens conformarem-se com uma invalidez anunciada, com a perda da força e da actividade. A forma como L., homem de 71 anos (residente em Lisboa, casado, 4.ª classe) descreve o envelhecimento é particularmente esclarecedora: A velhice é agora aparecerem as doenças, os anos vão avançando, as doenças vão aparecendo, já começa a faltar de tudo um pouco. [...] depende das doenças, as doenças começam a surgir, já não digo aos 45 ou aos 50, mas a partir dos 63 começam a aparecer as doenças e começa a sentir-se já velho. Antes tinha mais força, lutava pela vida, ao passo que agora... já não posso lutar pela vida.

Para este homem, como para tantos outros, a definição de velhice é afinal comandada pela doença e a debilidade a esta associada. Mais do que transições estatutárias, tais como reformar-se, passar a barreira dos 65 anos, ser avô ou outros eventos associados à idade mais avançada, o que define o ser velho é, acima de tudo, a doença. A perda da saúde é aliás encarada como o grande sinal da perda de autonomia, e é, afinal em grande medida, o valor da autonomia, tão caro nas sociedades contemporâneas como elemento definidor do indivíduo moderno, auto-suficiente, produtivo, não dependente, que coloca em causa o indivíduo, atirando-o para uma definição estatutária, a de «velho» (Gilleard e Higgs 1998).

601

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 602

Sofia Aboim

Sexualidade e intimidade: desistência e memória Uma dimensão importante em que se reflecte o envelhecimento é, como têm demonstrado inúmeros estudos (Vasconcellos et al. 2004; Rodrigues et al. 2008), a da vida sexual e íntima. Ao falarem do seu próprio processo de envelhecimento, os homens e as mulheres entrevistados não deixaram de fora esta esfera das suas vidas, falando com relativa abertura de um presente em que a sexualidade é muitas vezes permeada pela desistência e vive, antes, da memória de um passado mais preenchido e satisfatório. Entre as mulheres entrevistadas encontrámos discursos de desistência da sexualidade, mas frequentemente a sua própria indisponibilidade para a vida sexual é, de certa forma, atribuída aos seus parceiros. Muito embora a desistência da sexualidade seja vista como um produto de males associados à menopausa e à doença (Catarino et al. 1999), nomeadamente histerectomias e outros problemas relacionados com a saúde sexual feminina, a perda da função sexual por parte do homem é claramente percebida como um elemento vital nesse abandono progressivo da actividade sexual. Esta constatação reproduz, em grande medida, os cânones normativos que codificavam a sexualidade entre as gerações mais velhas, mostrando uma maior passividade feminina em relação à iniciativa masculina. Ademais, é através da sexualidade que, em enorme medida, a dicotomia activo/passivo tem sido recreada como princípio elementar da diferenciação de género. É também na realidade das práticas sexuais que encontramos argumentos para contradizer, pelo menos parcialmente, a visão, hoje profundamente disseminada, de que a sexualidade se teria transformado no domínio, por excelência, da intimidade e do prazer recíproco, uma espécie de refúgio onde o verdadeiro eu seria finalmente revelado (Giddens 1992). A exclusão de uma parte cada mais significativa da população desta realidade prazerosa e auto-realizadora não deixa de nos levar a questionar a relação entre sexualidade, qualidade de vida e identidade. Vejamos então como algumas mulheres relatam a «desistência» da sexualidade, reportando de imediato não só a sua falta de desejo ou capacidade mas também os problemas que afectam os homens à medida que envelhecem. Como refere uma das mulheres entrevistadas (66 anos, residente em Lisboa, analfabeta, casada) a propósito da sua vida sexual: Foi muito importante, porque a gente era nova. Também nunca fui assim muito, como é que eu hei-de explicar, nunca tive assim grande, pronto, 602

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 603

Ser velho: percepções e dimensões do envelhecimento nunca cheguei ao pé do meu marido e disse olha vamos fazer amor. Mas se ele chegasse ao pé de mim, se ele puxasse por mim. Agora já não, porque ele já tem uma certa idade... Já não tenho vida sexual.

Uma outra entrevistada (77 anos, residente em Lisboa, 3.ª classe, casada) no mesmo sentido afirma, quando interrogada sobre a vida sexual actual: Actualmente não é [...] porque o meu marido também foi operado à próstata, entretanto já temos esta idade. Mas até ele ser operado e mesmo depois de ele ser operado agente tinha uma, não digo uma vida sexual como tínhamos, mas era mais ou menos regular. E entretanto ele também fez várias operações difíceis e eu também.

Todavia, além da relativa passividade feminina em face dos problemas sexuais que afectam os companheiros, fica também patente a clara associação de uma sexualidade satisfatória às idades mais jovens da vida. Para muitas mulheres, como também para muitos homens idosos, a sexualidade é assim mais memória do que realidade presente. Sem dúvida, esta visão enquadra-se num entendimento mais dessexualizado do corpo velho, a contracorrente, aqui também, dos inúmeros convites mediáticos a uma sexualidade vivida na velhice e à crescente medicalização das disfunções sexuais (e. g., Katzenstein 1998). Esta importância da memória de tempos passados é evidenciada pelos homens de forma clara. Como nos diz H. (73 anos, residente em Lisboa, antigo curso comercial, casado): Vivo já um pouco das recordações. Já são poucas as vezes que semanalmente que posso ter relações sexuais mas vou vivendo das recordações.

Apesar dos apelos a uma sexualidade vivida em todas as idades da vida e da possibilidade de recorrer a medicação adequada, também neste domínio existe algum conformismo por parte de muitos entrevistados. Esta desistência é também muito visível na forma como um outro homem (79 anos, residente em Lisboa, 4.ª classe, casado) fala da sua situação actual: Chapéu, fui operado à próstata, há 6 anos atrás, o médico disse-me logo, «eh pá isto agora», ele disse, «quer que lhe receite o viagra?» eu é que disse, eh pá oh stor o viagra não faz nada, faz para quem é novo e não tem potência, houve um colega meu que foi operado ao mesmo problema que eu tam-

603

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 604

Sofia Aboim bém, pediu ao médico para passar o viagra, comprou, mas disse «éh pá, não dá nada, não faz nada, acabou».

Apesar da abertura com que estes homens falam das suas dificuldades ou mesmo impotência sexual, aproveitando muito provavelmente a banalização médica e mediática das disfunções sexuais masculinas, sobretudo quando associadas à idade avançada e à doença, não é sem pesar que descrevem a perda ou as falhas mais frequentes na sua capacidade eréctil (e. g., Marshall e Katz 2002). Como nota S. (65 anos, residente em Lisboa, licenciado, a viver sozinho), a perda de erecção não deixa de constituir uma dura prova, ainda que se possa apresentar a situação sob o matiz desculpabilizante da idade. Este entrevistado, ao relatar as suas dificuldades em ter ou manter uma erecção, refere abertamente que: É um dos tais casos em que senti que a minha virilidade ou masculinidade estavam um pouco postas em causa, por não ter conseguido fazer essa performance, senti isso.

A perda da capacidade eréctil é aliás associada a uma perda mais global, a da virilidade. Ser um homem viril e ser sexualmente activo acabam em muitos casos por serem sinónimos, e não é sem dificuldades que se reconstrói uma identidade de idoso, já longe da memória dos anos da juventude. A sexualidade revelou-se, como seria de esperar, uma esfera fundamental de insatisfação e diminuição de uma percepção activa e positiva de si mesmo. Ao ser confrontado com o impacto do envelhecimento, uma das primeiras coisas que M. refere (73 anos, residente em Lisboa, no Casal Ventoso, 4.ª classe, viúvo, mas a viver com uma companheira) é precisamente o facto de não ser sentir viril. Como nos diz: [Viril] é aquilo que não sou hoje... é aquilo que não sou hoje... não tenho aquela virilidade que tinha quando tinha 20 anos... nem pensar nisso até posso... sexualmente... Hoje sou capaz de resolver um caso mas amanhã já não resolvo... portanto tenho menos virilidade... virilidade é isso...

Vários homens confessaram ter recorrido a medicamentos como o Viagra ou outros estimulantes sexuais, mas o êxito limitado e temporário de tais panaceias parece não contribuir para afastar a sensação de que o envelhecimento conduz à perda progressiva de capacidade sexual, o que é sentido com tristeza, apesar de uma aparente aceitação do inevitável. Noutros casos, a falta de recursos ou a impossibilidade de recorrer a este tipo de medicação em razão da sua incompatibilidade com outras ma604

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 605

Ser velho: percepções e dimensões do envelhecimento

leitas (por exemplo, problemas cardíacos) contribuem também para evitar as soluções médicas disponíveis em matéria de sexualidade. Exemplificando, veja-se o que nos diz M. sobre o recurso a suplementos para aumentar o desempenho sexual: «Já pensei em fazer isso mas ‘ah, não’... já não vale a pena.» De uma forma ou de outra, um aspecto importante que diferencia os discursos masculinos dos femininos refere-se ao facto de, na sua maioria, os homens falarem dos seus problemas sexuais na primeira pessoa, só muito raramente atribuindo a desistência de uma vida sexual (mais) activa às mulheres e companheiras. Como vimos anteriormente, as mulheres tendiam, em maior escala, a colocar sob os ombros dos homens o declínio da actividade sexual. Um outro aspecto relativo não apenas à sexualidade em si, mas sobretudo à vertente relacional da intimidade construída com alguém, e da solidão que a falta dela produz na velhice, revelou-se igualmente muito importante nos discursos de parte dos entrevistados, nomeadamente aqueles que passaram já por experiências de viuvez, que vivem a solo, que não têm filhos ou deles vivem afastados ou que não encontraram oportunidades para a construção de redes de apoio alternativas à família. A procura de companhia para colmatar uma solidão que foi pesando com o passar dos anos e a perda de relações sociais e apoios quotidianos não é incomum e pode comportar diferentes estratégias: desde a procura de integração em grupos, clubes ou associações, como apontámos anteriormente, até à busca de alguém com quem estabelecer um laço de maior intimidade. Nalguns casos, uma relação platónica – a única que se pode ter face à falência do corpo em matéria de vida sexual activa – constitui a solução possível para colmatar a solidão. É este o caso de um outro homem entrevistado (86 anos, residente em Lisboa, curso médio de Engenharia, viúvo), que, depois do peso que a solidão de alguns anos de viuvez lhe tinha imposto, encetou uma nova relação amorosa. Mas assumindo a sua incapacidade para ter relações sexuais devido a uma complicada operação ao coração que o impede de recorrer a quaisquer medicamentos de apoio ao seu desempenho sexual, descreve-a como sendo estritamente platónica e sem qualquer futuro que preveja a partilha da mesma casa. Como diz, algo lamentosamente, referindo-se à hipótese de viver ou casar com a «namorada», bastante mais nova do que ele: Não, não, não. Tenho uma pessoa mas eu tenho 86 e ela tem 50 é uma relação platónica e ela aceitou essa situação vou a casa dela ver televisão ou ela vem à minha jantar. 605

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 606

Sofia Aboim

As tramas da velhice: a solidão e o olhar dos outros Em muitos casos, a velhice enreda os que a ela chegam nas tramas de uma solidão indesejada que, em larga medida e para a maioria, contrasta com os anos produtivos do curso de vida e assim impõe novos desafios à pessoa idosa. Este é aliás, como tem sido largamente discutido, um dos problemas graves associados ao envelhecimento. Também nas histórias que recolhemos se multiplicaram, de diferentes formas e consoante os contextos da vida familiar actual (em que filhos e netos têm as suas vidas, por vezes algo apartadas dos seus ascendentes), as referências à maior solidão, frequentemente acompanhada de um sentimento de inutilidade, de perda de valor perante os próximos e também de valor perante a sociedade (Fonseca 2005). Os contrastes entre Lisboa e Terras de Basto, os dois locais em que realizámos entrevistas a homens e mulheres idosas, alertam, apesar do esbater das diferenças entre meios ruralizados e urbanos no que a este tópico diz respeito, para uma maior importância da vizinhança em contextos mais pequenos, como é o caso de Terras de Basto. A referência à vizinhança e ao apoio eventualmente prestado por este tipo de rede tradicional foi aliás mais reportado no caso das mulheres, como tem sido notado nalguns estudos (Scott e Wenger 1995). Em meio urbano, ou seja, na região da Grande Lisboa, parecem, apesar de tudo, ter mais relevo os apoios prestados pela família e também os apoios institucionais. Mas, inevitavelmente, as redes familiares e de próximos parecem, na voz dos entrevistados e entrevistadas, ter sofrido uma redução, mais ou menos pronunciada, ao longo da vida. De toda a maneira, envelhecimento e maior solidão são realidades cúmplices em inúmeros casos. Particularmente, quando se trata de idosos institucionalizados, a viverem em lares para a terceira idade, a descrição do processo de envelhecimento torna-se ainda mais solidária com uma solidão que se associa ao peso da perda de autonomia e de actividade, elementos que se revelaram particularmente duros sobretudo no caso dos homens. Muito embora possa haver um discurso de aceitação e até se possam enumerar as vantagens relativas da vida num lar, essa aceitação aparente esconde mágoas que apareceram, de forma mais ou menos velada, ao longo da entrevista. A ideia de uma espera acompanhada, mas ainda assim solitária porque povoada de estranhos, da morte que virá mais dia menos dia, apanhando nas suas teias aqueles que a família, a doença e as condições

606

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 607

Ser velho: percepções e dimensões do envelhecimento

sociais afastaram de uma cidadania plena, marca, afinal, os discursos dos indivíduos. Todos preferiam poder manter a sua autonomia e apanhar as pontas da vida que tiveram num passado mais ou menos distante. Como em outros casos, esta é, na verdade, a história, de um homem de 95 anos (viúvo, sem filhos, residente em Lisboa, 7.º ano do liceu). Depois de enviuvar de um casamento sem filhos, viveu sozinho durante alguns anos numa situação de relativo isolamento, contando apenas com um o apoio esporádico de dois sobrinhos, e acabou por ter de ir para um lar devido à degradação do seu estado de saúde. A vida no lar confrontou-o ainda com o isolamento acompanhado de quem não recebe ou recebe apenas esporadicamente a visita dos filhos e de outro familiares. Como ele diz, reflectindo sobre as potenciais alterações que se operariam na sua vida caso tivesse tido filhos, não lamenta a ausência de uma descendência que o pudesse apoiar no momento actual: Agora digo assim... Sinto-me só... Mas há muitos casais que... tiveram filhos e estão também sós como eu estou e às vezes com maior desgosto porque os filhos não querem saber deles...

A dor antecipada de um potencial abandono que observa nos outros companheiros do lar leva-o a não pensar nos filhos como a companhia da velhice, mas antes a ver na sua inexistência o evitamento de uma dor maior: a do abandono. Os discursos sobre a solidão, a ausência de redes, o medo do abandono à medida que a autonomia possa ir faltando são temas comuns. Tal como é relativamente comum falar-se do peso sentido sobre o olhar dos outros (Bytheway 1995). Com efeito, uma parte dos entrevistados assume claramente ser discriminado, tanto em termos globais (a falta de juventude e de cidadania são sentidas como algo que desvaloriza a pessoa), como em termos de situações de interacção vividas pelos indivíduos. Nestas situações, também mais relatadas pelos homens do que pelas mulheres entrevistadas, o «idoso» é confrontado pelos outros, sentindo na pele a discriminação de que é objecto. Esta é sem dúvida uma dimensão importante do envelhecimento como processo social permeado por categorizações que encerram valor identitário. A discriminação com base na idade, tema actualmente tão discutido, constitui um elemento bastante relevante, quer para compreender os efeitos da autodiscriminação (conformo-me porque sou velho e isso é ser menos pessoa) ou da discriminação imposta pelos outros. Curiosamente, vários episódios sentidos pelos idosos entrevistados como sendo particularmente ofensivos da sua identidade remetem uma 607

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 608

Sofia Aboim

vez mais para o domínio da sexualidade que, como sabemos, é particularmente sensível para a identidade masculina. E, com efeito, quando interrogados sobre se já se tinham sentido discriminados, como e em que circunstâncias, foram mais os homens a revelar este lado negro da condição de velho, falando quase de imediato de episódios em que a sua virilidade ou capacidade de sedução foi claramente posta em causa, sobretudo por indivíduos mais jovens. O caso relatado por S. (65 anos, residente em Lisboa, licenciado, a viver sozinho) é exemplificativo. Como conta, apesar de recusar o estatuto de vítima e combater «aquilo em que o quiserem tornar», já se sentiu discriminado inúmeras vezes. Veja-se o que diz: [Já se sentiu discriminado?] Já. Muitas. Dizer que eu sou cota, ou que eu sou mais velho, ou que... muitas vezes [...] inclusive já me perguntaram «olha lá, ainda tens tusa?» Essa pergunta, para além de ser um bocadinho desrespeitadora, é ingénua e só se faz quando se tem muito pouca idade... como é que eu me senti?... Sei lá como é que me senti... ninguém gosta de se sentir descriminado, não é, mas como disse, eu já não me sinto vítima, eu salto por cima das vitimações que já não levam as pessoas a lado nenhum, e transformam essas vitimizações em armas de combate, e de articulação a um novo discurso, combater, justamente, essas discriminações, mas por isso é que digo, não sou uma vítima, sou um sobrevivente, no sentido que passei por cima sobre isso em que me quiseram tornar.

Noutro caso, também particularmente exemplificativo, outro entrevistado (73 anos, residente em Lisboa, casado) nota o desinteresse das mulheres e a incapacidade de competir com homens mais novos: Às vezes vou às excursões... Olhe ainda agora aproveito as excursões para dar um exemplo onde me sinto discriminado... nas excursões, algumas a gente vai daqui... e depois há aqueles grandes bailaricos, chegam-se a juntar umas 400 pessoas... e eu sinto-me discriminado às vezes por... e eu dou jeito a dançar, hein? Eu dou jeito... mas aparecem indivíduos mais novos, mais altos, mais valentes que não dançam tão bem como eu e as senhoras vão... porque? Porque eu sou velho... eu também gosto de dançar com uma mulher mais nova... se aparece um indivíduo mais bem apresentado mais novo não vão dançar com o velho... aí eu sinto-me discriminado pronto, ‘tá a ver? Tivesse eu o totoloto tão certo como isso é verdade... mas ao mesmo tempo também penso assim, ora se eu também faço o mesmo entre ter uma velha e uma nova...

Além da sexualidade e da dimensão relacional com as mulheres, para muitos o grande calcanhar-de-aquiles, o trabalho é outra das arenas cen608

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 609

Ser velho: percepções e dimensões do envelhecimento

trais da discriminação sentida pelos entrevistados. Como referimos anteriormente, a perda do estatuto de cidadão activo e a incapacidade de conseguirem manter-se no mercado de trabalho enquanto a saúde o permite é vista, por vários, como um elemento de discriminação activa contra os mais velhos. M. (73 anos, residente em Lisboa, no Casal Ventoso, 4.ª classe, viúvo, mas a viver com uma companheira), a propósito do trabalho, relembra a juventude como um tempo em que era valorizado em contraste com o momento actual da sua vida. Refere: «Agora não. A idade não permite... mas quando era mais jovem quando era mais activo... isso sim, aquela coisa toda... era valorizado.» A reforma diminuta que possui levou este homem a procurar manter alguma actividade profissional, tentando encontrar aqui e ali alguns biscates que pudessem complementar o seu magro orçamento mensal. Mas tal tarefa revelou-se muito difícil, fazendo-o sentir-se discriminado num mercado de trabalho sem lugar para os mais velhos. Como nos conta: Por exemplo quando eu andava a arranjar trabalho... portanto havia uma discriminação já das pessoas mais idosas... que eu era um bom profissional... sentia-me um bom profissional... e fiquei sem trabalho e nunca mais fui capaz de arranjar nada que a minha idade já não autorizava que a gente arranjasse trabalho...

Notas finais O objectivo deste texto foi não o de procurar delinear soluções para os problemas da velhice e do envelhecimento da sociedade, mas o de, noutra perspectiva, tentar mapear as formas como o processo de envelhecimento (o tornar-se e ser-se velho) é descrito pelos actores que o viveram na primeira pessoa. O ângulo de análise que escolhemos para abordar este tema responde, em certa medida, ao repto lançado por alguns autores sobre uma das lacunas ainda existentes na investigação na área da gerontologia social. Neste sentido, Bond e Coleman (1993, 91-92) notam que «Precisamos ainda de questionar as razões pelas quais num campo emergente como o do envelhecimento (ageing) existe muito mais pesquisa sobre os problemas sociais da velhice e muito menos sobre a perspectiva que os indivíduos têm da sua própria experiência». Alguns estudos efectuados partiram desta perspectiva e igualmente identificaram percepções, dimensões e tensões associadas, na primeira pessoa, ao en-

609

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 610

Sofia Aboim

velhecimento. O livro publicado por Paul Thompson e colegas (1991), intitulado I Don’t Feel Old («Não me Sinto Velho») fala da velhice, olhando-a a partir do lado de dentro. O trabalho destes autores oferece uma visão multifacetada dos processos de envelhecimento, focando a atenção na forma como os próprios idosos lidam com o passado e o presente e reconstroem a sua identidade num cenário permeado de tensões. Tensões entre a codificação institucional da idade que os encerra sob o chapéu categorial da terceira idade e as auto-imagens mais complexas que cada um constrói de si mesmo, procurando escapar ao estatuto de indivíduo incapaz, alienado de uma sociedade produtiva, no fundo procurando evitar a queda na vitimização. De certa forma, apesar de o conformismo com o envelhecimento ser a primeira reacção da maioria dos nossos entrevistados, a identificação, por meio indutivo, das principais dimensões e percepções do envelhecimento acabou por revelar uma realidade mais complexa em que a individualidade não se apaga num estatuto imposto e regulado pela cronologização institucional do curso de vida. Esta tem o seu peso obviamente, mas factores individuais como a doença e a incapacidade constituem, ainda assim, os grandes marcos de um confronto inevitável com o envelhecimento. A informação descrita e analisada pelos autores de I Don’t Feel Old é assim utilizada não tanto para mapear as dificuldades da velhice, mas para saber como os indivíduos descobrem diferentes caminhos e respostas para o envelhecimento, mesmo que igualmente abrigados sob o estatuto social de idoso. Esta foi também a nossa perspectiva, seguindo de perto esta e outras pesquisas, por exemplo o interessante livro de Mike Hepworth (2000) sobre as estórias do envelhecimento (Stories of Ageing) que igualmente analisa as grandes dimensões do envelhecimento, tais como são retratadas nas vidas individuais. O corpo, a sexualidade, a relação com os outros, e o trabalho constituem na obra deste autor dimensões que se revelaram fundamentais nas histórias da maioria e de cada um. Também aqui encontramos alguma correspondência com os nossos dados, na tentativa de mostrar uma realidade plural e atravessada por linhas visíveis de diferenciação. As óbvias e estruturais remetem para a escolaridade, a classe social, a situação de vida familiar e as redes de apoio, o género. Mas para além destas, existe também um lado subjectivo que importa desvelar e que faz emergir, num registo mais interaccionista e microanalítico, as diferenças nas formas como cada indivíduo interpreta e lida com o envelhecimento, reconstruindo a visão de si mesmo. O corpo e a sexualidade, o trabalho e a inserção activa na sociedade, a percepção do olhar dos outros e as dificuldades trazidas pelo isolamento formam um conjunto de 610

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 611

Ser velho: percepções e dimensões do envelhecimento

tópicos fundamentais para entender as visões das pessoas idosas sobre a sua própria velhice. Neste sentido, uma perspectiva de curso de vida que permita outorgar aos indivíduos idosos uma posição enquanto actores sociais deve fazer parte, como tem sido argumentado, de uma sociologia do envelhecimento que dê voz às estórias de cada indivíduo, procurando nela pontos comuns e também formas, mais ou menos individualizadas, de enfrentar o passar dos anos. Em suma, a velhice não constitui apenas um problema a resolver, mas também um grupo e um processo com dinâmicas próprias cujo entendimento é muito importante em sociedades cada vez mais envelhecidas.

Referências bibliográficas Aboim, Sofia, Teresa Amor, Vítor Sérgio Ferreira, e Cátia Nunes. 2010. «Transições para a velhice». In Tempos e Transições de Vida: Portugal ao Epelho da Europa, orgs. José Machado Pais e Vítor Sérgio Ferreira. Lisboa: ICS, 69-104. Almeida, Ana Nunes, Maria das Dores Guerreiro, Cristina Lobo, Anália Torres, e Karin Wall. 1998. «Relações familiares: mudança e diversidade». In Portugal, que Modernidade?, orgs. José Manuel Leite Viegas e António Firmino da Costa. Oeiras: Celta, 45-78. Arber, Sara, e Jay Ginn, eds. 1995. Connecting Gender and Ageing: a Sociological Approach. Buckingham: Open University Press. Audiberti, Marie-Louise. 2005. Les chemins de l’âge, Paris: HB Éditions. Bandeira, Mário. 1996. Demografia e Modernidade: Família e Transição Demográfica em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Beck, Ulrich, e Elizabeth Beck-Gernsheim. 2002. Individualization. Londres: Sage. Bond, John, e Peter Coleman. 1993. Ageing in Society: An Introduction to Social Gerontology. Londres: Sage. Bytheway, Bill. 1995. Ageism. Buckingham: Open University Press. Carrilho, Maria, e Lurdes Patrício. 2005. «A situação demográfica recente em Portugal.» Revista de Estudos Demográficos, 38: 111-140. Catarino, André et al. 1999. «Pós-menopausa e sexualidade». Acta Portuguesa de Sexologia, 2 (1): 39-46. Chudacoff, Howard. P. 1992. How Old Are You?: Age Consciousness in American Culture. Princetown, NJ: Princetown University Press. Conway, Stephen, e Jenny Hockey. 1998. «Resisting the ‘mask’ of old age?: the social meaning of lay health beliefs in later life. Ageing and Society, 18: 469-494. Esping-Andersen, Gösta. 1998. «A sustentabilidade dos Estados-Providência no séc. XXI». Sociedade e Trabalho, 13-21. Lisboa: CICT/MTS. Featherstone, Mike, e Mike Hepworth. 1989. «Ageing and old age: reflections on the postmodern life course.» In Becoming and Being Old: Sociological Approaches to Later Life, eds. Bill Bytheway, Teresa Keil e Patricia Allat. Londres: Sage, 143-157. Featherstone, Mike, e Andrew Wernick. 1995. Images of Aging: Cultural Representations of Later Life. Nova Iorque, NY: Routledge.

611

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 612

Sofia Aboim Ferreira, Vitor Sérgio. 2008. «Be some body: modificação corporal e plasticidade identitária na sociedade contemporânea». In Itinerários. A Investigação nos 25 Anos do ICS, orgs. Manuel Villaverde Cabral, Karin Wall, Sofia Aboim e Filipe Carreira da Silva. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 671-689. Fleming, A. A. 1999. «Older men in contemporary discourses on ageing: absent bodies and invisible lives». Nursing Inquiry, 6 (1): 3-8. Fonseca, António Manuel. 2004. O Envelhecimento, uma Abordagem Psicológica. Lisboa: Universidade Católica Editora. Fonseca, António Manuel. 2005. Desenvolvimento Humano e Envelhecimento. Lisboa: Climepsi. Gergen, Mary. M. 1989. «Talking about menopause: a dialogic analysis.» In Research on Adulthood and Aging: The human Sciences Approach, ed. L. E. Thomas. Albany, NY: Suny Press, 65-87. Gesaworld. 2005. Relatório Final da Fase I de Diagnóstico da Situação Actual, Projecto de Apoio e Assessoria à Implementação de um Modelo de Rede de Cuidados Continuados Integrados e Progressivo Desenvolvimento dos Serviços Comunitários de Proximidade em Portugal para Promoção e Desenvolvimento de Cuidados de Saúde e Apoio Social a Pessoas em Situação de Dependência. Giddens, Anthony. 1992. As Consequências da Modernidade. Oeiras: Celta Editora. Gilleard, Chris, e Paul Higgs. 1998. «Aging and the limiting conditions of the body». Sociological Research Online, 3 (4), http://www.socresonline.org.uk/3/4/4.html. Gullette, Margaret. M. 1997. «Menopause as magic marker: Discursive consolidation in the United States, and strategies for cultural combat. In Reinterpreting Menopause: Cultural and Philosophical Issues, eds. P. Komesaroff, P. Rothfield e J. Daly. Nova Iorque, NY: Routledge, 176-199. Hepworth, Mike. 2000. Stories of Ageing. Buckingham: Open University Press. Heslon, Christian. 2009. «L’adulte à son âge: dénis et défis du vieillir jeune». In Où sont passés les adultes? Routes et déroutes d’un âge de la vie, eds. Jean-Pierre Boutinet e Pierre Dominicé. Paris: Téraèdre, 17-40. Hockey, Jenny, e Allison James. 2003. Social Identities Across the Life Course. Nova Iorque, NY: Palgrave Macmillan. Kalache, Alexandre, Sandhi Maria Barreto, e Ingrid Keller. 2005. «Global ageing: the demographic revolution in all cultures and societies». In The Cambridge Handbook of Age and Ageing, ed. Malcolm L. Johnson. Cambridge: Cambridge University Press, 30-46. Katz, S. 1999. «Fashioning agehood: Lifestyle imagery and the commercial spirit of seniors culture.» In Childhood & old age. Odense: Odense University Press. Katzenstein, Larry. 1998. Viagra: The Potency Promise. Nova Iorque, NY: St. Martin’s Press. Kaufman, Sharon R. 1994. The Ageless Self: Sources of Meaning in Later Life. Madison, WI: University of Wisconsin Press. Kohli, Martin. 2005. «Generational changes and generational equity». In The Cambridge Handbook of Age and Ageing, ed. Malcolm L. Johnson. Cambridge: Cambridge University Press, 518-526. Kohli, Martin. 2007. «The institutionalization of the life course: Looking back to look ahead». Research in Human Development 4 (3-4): 253-271. Kohli, Martin, A. M. Guillemard, e H. van Gunsteren. 1991. Time for Retirement: Comparative Studies of Early Exit from the Labour Force. Cambridge: Cambridge University Press. Marshall, Barbara L., e Stephen Katz. 2002. «Forever functional: Sexual fitness and the ageing male body». Body & Society, 8 (4): 43-70.

612

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 613

Ser velho: percepções e dimensões do envelhecimento Marshall, Victor W., e Philip Taylor. 2005. «Restructuring the life course: Work and retirement». In The Cambridge Handbook of Age and Ageing, ed. Malcolm L. Johnson. Cambridge: Cambridge University Press, 576-582. Martuccelli, Danilo. 2006. Forgé par l’épreuve. L’individu dans la France contemporaine. Paris: Armand Colin. Mayer, Karl Ulrich. 2009. «New directions in life course research». Annual Review of Sociology, 35: 413-433. Millet-Bartoli, Françoise. 2002. La crise du milieu de la vie. Une deuxième chance. Paris: Odile Jacob. Paúl, Constança, e António Manuel Fonseca. 2005. Envelhecer em Portugal. Lisboa: Climepsi. Phillipson, Chris. 2005. «The political economy of old age». In The Cambridge Handbook of Age and Ageing, ed. Malcolm L. Johnson. Cambridge: Cambridge University Press. Pierson, Paul. 1994. Dismantling the Welfare State?. Cambridge: Cambridge University Press. Rodrigues, Patrícia Cruz, Shirley Barros, Conceição Andrade, e Ana Cristina Mancussi e Faro. 2008. «Envelhecimento, sexualidade e qualidade de vida: revisão da literatura». Estudos Interdisciplinares sobre o Envelhecimento, 13 (2): 205-220. Rosa, Eugénio. 1998. «Segurança social: Sustentabilidade financeira ou redução de direitos. In Sociedade e Trabalho. Lisboa: CICT/MTS, 66-75. Rosa, Maria João Valente. 1996. «O envelhecimento e as dinâmicas demográficas da população portuguesa a partir de 1960. Dos dados ao dilema». In Situação Social em Portugal, 1960-1995, org. António Barreto. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 191-214. Santos, Boaventura de Sousa, e Sílvia Ferreira. 1998. «Para uma reforma solidária da Segurança Social». In Sociedade e Trabalho. Lisboa: CICT/MTS, 50-57. Santos Silva, Cristina. 1998. «Notas sobre a reforma da Segurança Social». In Sociedade e Trabalho. Lisboa: CICT/MTS, 42-49. Scott, Ann, e G. Clare Wenger. 1995. «Gender and social support networks in later life.» In Connecting Gender and Ageing: A Sociological Approach, eds. Sara Arber e Jay Ginn. 158-172, Buckingham: Open University Press. Silva, Carlos Pereira. 1998. «Reforma da Segurança Social: Os regimes complementares e o reforço da sustentabilidade financeira do regime público». Sociedade e Trabalho. Lisboa: CICT/MTS, 58-65. Thompson, Paul, Catherine Itzin, e Michele Abendstern. 1991. I Don’t Feel Old: Understanding the Experience of Later Life. Oxford: Oxford University Press. Vasconcellos, Doris et al. 2004. «A sexualidade no processo do envelhecimento: novas perspectivas – comparação transcultural». Estudos de Psicologia, 9 (3): 413-419.

613

29 MVCabral Cap. 29_Layout 1 6/24/13 10:08 AM Page 614

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 615

Pedro Moura Ferreira

Capítulo 30

Sociedade e envelhecimento: algumas questões em torno do envelhecimento activo Introdução O envelhecimento afigura-se como um dos problemas centrais do século XXI. As últimas décadas do século passado registaram um aumento ininterrupto do número de idosos que transformou as sociedades mais desenvolvidas em sociedades envelhecidas. A conjugação da queda da fertilidade com o aumento da esperança média de vida está na base desse aumento e da importância absoluta e relativa que a população idosa tem hoje na sociedade portuguesa. As projecções demográficas não vaticinam para breve mudanças do actual padrão demográfico do envelhecimento. Segundo os dados do Eurostat, três em cada dez pessoas terão 65 ou mais anos em 2050. O cenário demográfico acentuará, consequentemente, o envelhecimento. As sociedades actuais são sociedades envelhecidas mas também sociedades em que os indivíduos vivem mais tempo, devido ao aumento constante da esperança de vida desde meados do século passado. Este aumento, embora tenha tendência para abrandar, impulsionou a idade média das mulheres e dos homens para um patamar historicamente inédito (Oliveira e Mendes 2010). O envelhecimento é um fenómeno positivo, quer para os indivíduos, quer para as sociedades, sendo testemunha dos progressos realizados pela humanidade em termos económicos, sociais e biomédicos na base dos quais se desenvolveram as políticas públicas de acesso generalizado da população aos cuidados de saúde. Se o envelhecimento representa uma conquista importante, até em termos democráticos, já que representa uma redução da desigualdade verificada 615

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 616

Pedro Moura Ferreira

na morbilidade e na mortalidade dos indivíduos, a existência de uma crescente população de idosos, cuja longevidade tenderá ainda a aumentar, pelo menos durante as próximas décadas, não deixa de colocar grandes desafios à sociedade e aos indivíduos. No plano individual, uma maior longevidade traz mudanças radicais do quadro de vida no que respeita, em particular, ao estado de saúde e à participação na vida social e colectiva. Com efeito, viver mais significa também estar mais exposto a doenças crónicas não transmissíveis. As condições sociais afectam, evidentemente, o estado de saúde individual em qualquer fase do curso de vida, mas o risco de desenvolver doenças aumenta consideravelmente com a idade. À medida que esta aumenta, um crescente número de idosos confrontar-se-á com problemas acrescidos de autonomia e dependerá cada vez mais dos outros, bem como dos apoios sociais e familiares. Apesar de acompanhar o envelhecimento, a redução da capacidade funcional não deve definir o envelhecimento e muito menos justificar a exclusão dos idosos da vida social, que os remete para uma limitada sociabilidade familiar ou de vizinhança, senão mesmo e não raramente, para situações de completa solidão social, ou então para instituições de acolhimento desligadas dos processos de participação colectiva. No plano colectivo, o envelhecimento traz enormes exigências em termos das relações intergeracionais. Estas relações afectam as transferências económicas entre os diversos grupos etários, em particular o desequilíbrio crescente entre, por um lado, activos e não activos e, por outro, entre jovens e idosos. O envelhecimento traz custos acrescidos aos sistemas de saúde e de segurança social que poderão mesmo tornar-se insustentáveis, a menos que se proceda a uma revisão dos alicerces sociais e económicos em que assentam. Contudo, o problema colocado pelo envelhecimento ao conjunto da sociedade não se resume ao seu custo. O problema, porventura maior, é o do lugar da velhice na sociedade. É contrário aos valores democráticos aceitar a exclusão ou a marginalização dos idosos, ou ainda definir a velhice como uma condição social de dependência. Aos grupos idosos assiste o direito efectivo de representação e de participação social e política. Contrariamente aos jovens, as instituições que se ocupam dos idosos não têm uma relação funcional com as outras instituições da sociedade. São como instituições de «fim de carreira», em suma, instituições totais como os asilos estudados por Goffman (1968). A reforma não é, com efeito, uma instituição do mesmo tipo que a escola ou o mundo do trabalho. Estes últimos são espaços de interacção, trajectos, projecções e reconhecimentos, que consolidam identidades e representações em torno das pertenças sociais. A identidade 616

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 617

Sociedade e envelhecimento: algumas questões em torno do envelhecimento activo

do idoso é uma identidade imputada pela passagem à inactividade e pelas representações sociais dominantes sobre a velhice. À condição social marginal soma-se a representação desvalorizada da idade. Reposicionar o idoso no conjunto do sistema de relações intergeracionais constitui um imperativo democrático e um desafio político que as sociedades envelhecidas enfrentam. É em resposta ao problema do envelhecimento da população, especialmente numa conjuntura particularmente sensível ao custo social e económico da terceira e da quarta idades, que a ideia de promover o envelhecimento activo tem vindo a ser desenvolvida. Na base das políticas que visam promover o envelhecimento saudável e a inclusão social dos idosos, está a actividade, embora sem desconsiderar os factores individuais e sociais que favorecem ou inibem as oportunidades de envelhecimento saudável, como o género, a classe social, as condições de saúde ou outras características e, em sentido mais geral, o contexto social, económico e cultural em que se manifestam. Atendendo a que as ideias em torno do envelhecimento activo dominam as respostas políticas e sociais ao problema do envelhecimento, ao ponto de podermos perguntar se não estaremos mais perante uma ideologia do que de um discurso científico, justifica-se uma incursão à forma como é equacionada a condição de idoso e o impacto da pressão económica e social exercida pelo aumento da longevidade na organização estrutural da velhice. O presente texto divide-se em duas partes. Na primeira assinalam-se os principais alinhamentos teóricos que estão subjacentes ao conceito de envelhecimento activo. Na segunda parte, à luz da experiência portuguesa, exploram-se algumas questões em torno da exequibilidade e alcance das propostas que resultam dos princípios do envelhecimento activo e de como elas têm vindo a ser mais usadas para justificar as medidas que visam o equilíbrio a prazo do sistema de segurança social, designadamente o aumento da idade da reforma, do que para alterar a condição dos idosos na sociedade, embora esta seja um tema redundante no discurso governamental sobre as mudanças das regras de aposentação.

Envelhecimento activo: do paradigma à agenda política O envelhecimento da população é considerado um dos maiores desafios com que as sociedades contemporâneas actualmente se confrontam. É por isso que o tema do envelhecimento está claramente inscrito 617

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 618

Pedro Moura Ferreira

na agenda internacional. Desde a ONU, através da Organização Mundial de Saúde, até à Comissão Europeia, passando pela OCDE, todas estas organizações promoveram iniciativas no sentido de alertar as sociedades para os problemas do envelhecimento e de apontar medidas susceptíveis de enformar as políticas públicas que visam responder a esses problemas. O quadro dos princípios e orientações elaborado por estas organizações é conhecido por envelhecimento activo e constitui, actualmente, um paradigma necessário para entender as questões que o envelhecimento coloca às sociedades e as soluções que devem ser desenvolvidas. Se a adopção do paradigma do envelhecimento activo é comum a todas as organizações internacionais, a abordagem que elas desenvolvem nem sempre é coincidente, reflectindo preocupações e soluções distintas que resultam, pelo menos parcialmente, dos objectivos e do âmbito de intervenção que as caracterizam. A definição avançada pela OCDE é talvez a que tem um espectro mais largo. Segundo esta organização, o envelhecimento activo deve ser entendido como «a capacidade de as pessoas que avançam em idade levarem uma vida produtiva na sociedade e na economia. Isto significa que as pessoas podem elas próprias determinar a forma como repartem o tempo de vida entre as actividades de aprendizagem, de trabalho, de lazer e de cuidados aos outros» (OCDE 1998, 92). A definição realça a necessidade de prolongar a condição de activo desde que as condições de exercício profissional possam acompanhar os condicionalismos resultantes do processo de envelhecimento. A repartição do tempo entre actividades produtivas e não produtivas, segundo as preferências e as necessidades do indivíduo, pressupõe uma desvinculação gradual do mundo do trabalho. Sem propriamente colidir com esta definição, aquela que é dada pela Organização Mundial de Saúde enfatiza outros aspectos. O envelhecimento activo refere-se ao processo de «optimização das possibilidades de saúde, de participação e de segurança, a fim de aumentar a qualidade de vida durante a velhice» (OMS 2002, 12). A qualidade de vida é claramente a tónica dominante da definição e, ainda que as condições de saúde sejam enfatizadas, estão longe de contemplar apenas os aspectos médicos. O envelhecimento activo não se restringe ao âmbito dos comportamentos promotores da saúde, mas leva em consideração os factores ambientais e pessoais que interagem com as condições de saúde. As envolventes que enquadram o envelhecimento, como a família, a comunidade e a sociedade em que o processo ocorre, exercem um impacto enorme na forma como se envelhece. 618

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 619

Sociedade e envelhecimento: algumas questões em torno do envelhecimento activo

Por seu turno, a Comissão Europeia entende o envelhecimento activo como «uma estratégia coerente visando permitir um envelhecer saudável nas sociedades envelhecidas», sendo para isso necessário desenvolver um conjunto de práticas que englobam «a educação e a formação ao longo da vida, o prolongamento da vida activa, o adiamento da entrada na reforma e, mais progressivamente, por conseguir que as pessoas idosas se tornem activas durante a reforma e realizem actividades que reforcem as suas capacidades e preservem a saúde» (CE 2002, 6). A definição destaca acima de tudo a actividade, seja ela produtiva ou não, embora exista claramente uma referência ao prolongamento da vida activa e à relação que estabelece com o estado de saúde. Segundo a CE, é através da actividade que o envelhecimento se torna saudável. Na perspectiva destas organizações internacionais, o envelhecimento activo sublinha principalmente duas dimensões às quais não são alheias as finalidades que estão na base da sua constituição. Atendendo ao seu âmbito de intervenção, não estranha que a tónica no envelhecimento saudável seja colocada pela Organização Mundial de Saúde, mas isto não significa que ela não dê também importância à participação na vida activa. Com efeito, para a OMS, «o termo activo refere-se à participação contínua nas questões sociais, económicas, culturais, espirituais e cívicas, e não só à capacidade de estar fisicamente activo ou de fazer parte da força de trabalho». O objectivo do envelhecimento activo é, assim, bastante mais amplo e visa aumentar a expectativa de uma vida saudável, que mantenha a autonomia e a independência, bem como «a qualidade de vida de todas as pessoas que estão a envelhecer, inclusive as que são frágeis, fisicamente incapacitadas e que requerem cuidados de saúde». Numa palavra, a preocupação da OMS é responder aos problemas que resultam do facto de as pessoas viverem mais tempo e da importância crucial de preservarem a saúde, sem a qual não é possível garantir a qualidade de vida. Longe de circunscrever a saúde ao perímetro do indivíduo e a pressupostos biomédicos, a saúde engloba «o bem-estar físico, mental e social», pelo que as políticas e os programas que promovem a saúde e as relações sociais são tão importantes como os que melhoram as condições físicas de saúde. A segunda dimensão que estas definições enfatizam é a necessidade de prolongar a carreira activa. Atendendo a que os indivíduos vivem mais e usufruem de melhores condições de saúde, podem manter uma actividade profissional por mais tempo. A vantagem de se manter activo consiste em poder integrar-se de uma forma mais ampla na sociedade, evitando, ou pelo menos adiando, a diminuição dos contactos sociais e 619

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 620

Pedro Moura Ferreira

institucionais que resulta, normalmente, da passagem à reforma. Manter a ligação ao mundo do trabalho é prolongar uma ligação à sociedade bastante mais forte do que aquela que resulta da entrada na inactividade. Na óptica do envelhecimento activo, é desejável que a inactividade surja o mais tarde possível. Este adiamento não passa necessariamente por um aumento da idade da reforma; antes implica a criação de condições para que o indivíduo se sinta estimulado a continuar activo. O pressuposto básico é introduzir parâmetros de geometria variável entre a carreira profissional e a inactividade. O fim daquela não é necessariamente o início desta. É possível introduzir uma transição gradual entre uma e outra. A actividade profissional pode começar a diminuir a partir dos últimos anos da carreira e prolongar-se para além da idade de reforma, dependendo das condições de saúde e da vontade do indivíduo em querer continuar na vida activa. Como sublinha a definição da OCDE, os indivíduos adquirem a possibilidade de escolher a melhor forma de repartir «o tempo de vida entre as actividades de aprendizagem, de trabalho e de lazer e de cuidados aos outros». Apesar da preocupação em manter as pessoas ligadas por mais tempo à esfera do trabalho, cujo papel enquanto instituição de integração na sociedade se afigura cada vez mais importante, os princípios do envelhecimento activo têm sido usados no sentido de justificar o adiamento da idade da reforma, ditado sobretudo pela necessidade de garantir a sustentabilidade financeira da segurança social, a qual, no actual quadro da política de transferência intergeracional e de baixa taxa de fecundidade, obriga ao prolongamento das carreiras contributivas. Neste quadro, o prolongamento da vida activa estaria a ser impulsionado mais pela necessidade de estender os percursos contributivos do que pela necessidade de manter por mais tempo a actividade e a integração social das pessoas à medida que envelhecem. O discurso do envelhecimento activo teria assim um carácter simultaneamente pragmático e ideológico, onde recomendações indiscutivelmente vantajosas para os indivíduos, independentemente da sua condição social, se misturariam com recomendações ditadas por considerações e interesses económicos. O adiamento da idade de reforma para limiares próximos dos 70 anos pode, no entanto, minar a desejável transição gradual entre a actividade e a não actividade, fazendo com que ela ocorra, como acontece hoje, de uma forma abrupta. Até há bastante pouco tempo, as pessoas entravam na reforma bem mais cedo e podiam contar com um razoável tempo de vida à sua frente em boas, ou pelo menos relativamente boas, condições de saúde. Os esquemas de antecipação da reforma eram não só permitidos 620

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 621

Sociedade e envelhecimento: algumas questões em torno do envelhecimento activo

como, em muito casos, estimulados a fim de facilitar reconversões económicas ou permitir uma entrada mais rápida dos jovens no mundo de trabalho. Nestas condições, a passagem da actividade à inactividade podia ser equacionada em termos distintos dos que actualmente se colocam. O aumento da esperança de vida e a melhoria das condições de saúde dos indivíduos da metade superior da pirâmide etária não parecem compensar a tendência de agravamento da idade de reforma. Se esta se elevar para perto dos 70 anos, quando no início deste século andava em torno dos 60 anos, os indivíduos, pelo menos em determinados grupos sociais, terão períodos de reforma menos longos, mesmo que vivam mais tempo e, se nada for feito em contrário, dificilmente terão condições motivacionais e de saúde favoráveis para prologar a vida activa. Perante a necessidade de contornar as pressões que se colocam em termos da sustentabilidade do sistema da segurança social devido às condicionantes demográficas, os princípios do envelhecimento activo não têm sido usados tanto para adiar a entrada na inactividade como sobretudo para justificar o alongamento das carreiras contributivas. A este respeito, são esclarecedoras algumas das metas estabelecidas no âmbito da Estratégia Europeia para o Emprego, como seja a de aumentar em cerca de cinco anos a idade média efectiva de saída do mercado de trabalho na União Europeia ou de elevar para 50% a taxa média de emprego de homens e mulheres entre os 55 e os 64 anos. A ideia subjacente a estas medidas é eliminar os incentivos à reforma antecipada e, através de formação adequada, prolongar as carreiras profissionais e contributivas. À luz destes desenvolvimentos, o envelhecimento activo aparece definido como «o conjunto de orientações e acções de natureza política que visa assegurar uma maior participação económica dos grupos etários mais velhos ainda em idade activa» (Pestana 2003, 13). Esta participação resulta da necessidade de reduzir as pressões sociais e económicas sobre o sistema da segurança social e no desequilíbrio entre a população activa e a inactiva devido à evolução demográfica. A consequência mais directa para anular, ou pelo menos atenuar, esse desequilíbrio passa, inevitavelmente, pelo envelhecimento da população activa, prolongando a idade da reforma. A perspectiva de envelhecimento activo que resulta das preocupações em torno da sustentabilidade do sistema de segurança social acaba por enfatizar apenas aspectos económicos, na medida em que se limita a considerar a necessidade de repor certos equilíbrios no mercado de trabalho e de contenção da despesa com a segurança social, ignorando, ou pelo menos secundarizando, outros aspectos relevantes que devem ser levados 621

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 622

Pedro Moura Ferreira

em conta na adequação das condições de trabalho ao aumento da longevidade da população. Com efeito, segundo a perspectiva de alguns teóricos (Naegele 1999; Walker 2002), o envelhecimento activo não pode reduzir-se a uma única vertente, seja a financeira, a escassez de mão-de-obra ou as (des)vantagens competitivas, mas tem de ter em consideração o curso de vida dos indivíduos e a condição social de cada idoso. O estudo do envelhecimento deve assentar numa abordagem global, que tenha em consideração as relações entre os múltiplos aspectos que o integram, como a vida familiar, o emprego, a educação, a integração sociocultural, a saúde e a qualidade de vida. Esta abordagem pressupõe um quadro político que combata, em primeiro lugar,os preconceitos associados à idade (idadismo), e, em segundo lugar, promova medidas de discriminação positiva em relação aos idosos no sentido de atenuar o seu estatuto marginal. A discriminação fundada na idade tem repercussões em diferentes domínios (Nelson 2004; Gilles e Reid 2005; Lima 2011; Marques 2011). O funcionamento do mercado de trabalho é um dos domínios que mais contribuem para acentuar a exclusão das pessoas idosas. Em caso de despedimento, estas são normalmente as primeiras vítimas. Por vezes, conseguem obter a pré-reforma, mas, quando não o conseguem, engrossam as fileiras do desemprego de longa duração. A antecipação da reforma e, de uma forma geral, a reforma, são vistas, no entanto, como representando a entrada na inactividade e na dependência, que por sua vez prolongam a exclusão a que o mercado de trabalho condena as pessoas mais velhas. Os sistemas de segurança social e de emprego não promovem a possibilidade de as pessoas idosas manterem um estatuto activo enquanto o desejarem e enquanto estiverem em boas condições de saúde. A associação que facilmente se estabelece entre o agravamento das condições de saúde e a idade não tem em consideração, por um lado, a relação entre o trabalho e a saúde, e, por outro, a existência de um sistema de saúde que se preocupou mais em desenvolver os cuidados curativos do que uma medicina preventiva. Ter boas condições de saúde é uma condição indispensável a uma vida activa, pelo que é fundamental equacionar o problema das desigualdades das condições de trabalho. Não é possível prolongar o estatuto activo em ambientes perigosos, «stressantes» ou inadequados, que mais não fazem do que acentuar o risco das doenças profissionais. O conceito de envelhecimento activo coloca, pois, a relação fundamental entre a saúde e o trabalho. A discriminação fundada na idade está na base do estatuto simbólico que as pessoas idosas ocupam na sociedade, quer em termos sociais ou 622

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 623

Sociedade e envelhecimento: algumas questões em torno do envelhecimento activo

políticos. Apesar de serem cada vez mais numerosas, as pessoas idosas não têm vindo a ganhar maior protagonismo na sociedade, permanecendo basicamente afastadas dos processos de decisão. A participação cívica parece depender bastante da possibilidade de romper com a inactividade e a dependência a que os idosos estão destinados. O prolongamento da actividade económica no quadro de uma transição progressiva e gradual entre o trabalho e a inactividade permitiria não só contrariar o sentido de exclusão a que os preconceitos condenam, mas também desenvolver uma cidadania dos seniores e dos seus direitos de participação. Com base nos princípios e orientações expostos, os teóricos do envelhecimento activo que temos seguido (Naegele 1999; Walker 2002) têm indicado algumas linhas de orientação para as políticas públicas. Advogam, em primeiro lugar, estratégias pró-activas de emprego que contribuiriam para combater as discriminações associadas à idade. Caso contrário, devido à tendência actual de desincentivo à reforma antecipada e de aumento da idade da mesma, as pessoas idosas que ocupam empregos precários correriam riscos acrescidos de desemprego e, por consequência, de pobreza. Em segundo lugar, entendem que se deveria reconhecer o direito de todos os cidadãos a um rendimento condigno como condição indispensável à participação plena na vida social. Independentemente deste direito, consideram ainda que o sistema de reformas não deveria impedir ou restringir o acesso das pessoas idosas ao mercado de trabalho, pelo que não deveria impor uma idade obrigatória para a cessação da actividade profissional nem impedir a possibilidade de acumulação da reforma com um emprego a tempo parcial. Consideram, em terceiro lugar, que o sistema de saúde deveria desenvolver cada vez mais uma medicina preventiva que permitisse corrigir a relação entre as más condições de saúde e o trabalho. Esta correcção seria a única capaz de travar, ou pelo menos atenuar, o crescimento contínuo da despesa futura em saúde. Por último, entendem que a luta contra a discriminação no mercado de trabalho, a garantia de um rendimento condigno e os cuidados de saúde adequados reforçariam os meios de participação das pessoas idosas. Segundo David Held (1995), essa participação implicaria também mudanças no sistema político no sentido de proporcionar meios para que elas pudessem participar nas decisões e assumir as responsabilidades das consequências que decorrem do envelhecimento, designadamente estimulando o associativismo e a participação grupal. 623

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 624

Pedro Moura Ferreira

O paradigma do envelhecimento activo surge, assim, como um programa de intervenção na sociedade voltado para a mudança da condição do idoso e que procura, ao mesmo tempo, responder aos problemas do aumento da longevidade. Não é meramente uma justificação para o aumento das carreiras activas e contributivas em virtude do desequilíbrio entre activos e inactivos e da pressão social e económica que este desequilíbrio coloca ao sistema de segurança social. Com efeito, o envelhecimento activo convida a reformular a articulação entre a actividade e a reforma, entre o trabalho e a saúde, entre a participação e a exclusão, enfim, convida a que se caminhe para uma sociedade sem discriminações em torno da idade.

Envelhecimento activo e curso de vida: novos desafios, velhas questões A incursão realizada pelo conceito de envelhecimento activo chama a atenção para a necessidade de este ser visto à luz de duas perspectivas: a do curso de vida e a da transição da actividade para a não actividade. A perspectiva do curso de vida convida a analisar o envelhecimento como um processo e não como um grupo etário específico, cuja constituição resultaria da transição para a reforma e do consequente abandono da vida activa. A ideia de processo sugere uma dinâmica que é alheia a marcadores precisos. Desde logo, porque do ponto de vista biológico o envelhecimento é mais contínuo do que descontínuo. O envelhecimento ocorre ao longo da vida, não havendo uma transição fixa para a velhice. A descontinuidade teria origem nas divisões sociais da idade, especialmente aquela que resulta da institucionalização da reforma. A passagem à inactividade marcaria a entrada noutra idade social – a da velhice. Ora, conforme analisámos, as mudanças em curso tendem a introduzir transições graduais, tornando cada vez mais arbitrária a definição de uma idade de entrada na velhice. A falta de um marcador que introduza uma descontinuidade na experiência social dificulta, sem dúvida, o reconhecimento de uma fase de vida homogénea, ou de um grupo etário com atributos ou interesses comuns, além da idade, e contribui para a representação do envelhecimento como processo. A adopção da perspectiva do curso de vida permite ainda analisar o envelhecimento como resultante de trajectórias anteriores, especialmente as que relevam do campo profissional. A ocupação do tempo durante a inactividade, a partilha de sociabilidades, o envolvimento em actividades 624

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 625

Sociedade e envelhecimento: algumas questões em torno do envelhecimento activo

colectivas ou a prossecução de interesses pessoais dependem, em grande parte, dos condicionalismos cognitivos, motivacionais, sociais e de saúde, que se desenvolveram ao longo das biografias pessoais, tendo como pano de fundo enquadramentos geracionais e históricos precisos. Estes enquadramentos delimitam o campo do processo de envelhecimento, estabelecendo determinações e condicionando opções. É evidente que as políticas públicas podem alargar esse campo, contrariando parcialmente o peso das determinações passadas e abrindo, por pouco que seja, o campo de possibilidades. É na conjugação entre as determinações que resultam das trajectórias anteriores e as respostas da política pública, no que respeita à oferta de serviços e de apoios, que a actual «condição» idosa deve ser entendida. A segunda perspectiva assenta na transição da actividade para a não actividade. Conforme analisámos, o envelhecimento da população tem chamado a atenção para a inevitabilidade do prolongamento da vida activa, não só devido à necessidade de compensar financeiramente o desequilíbrio entre activos e não activos, mas também à necessidade de evitar a exclusão social dos idosos num horizonte de longevidade acrescida. Para que não se produza a marginalização dos idosos, é necessário criar condições a fim de as pessoas se sentirem motivadas para prolongar a vida activa, desde que tenham condições de saúde para o fazer e que as condições de trabalho o permitam. A forma mais eficaz de manter as pessoas ligadas aos outros e à sociedade ainda é através da instituição do trabalho. É por isso que a política de envelhecimento activo aspira a flexibilizar a separação rígida entre a actividade e a inactividade, ao mesmo tempo que pretende alterar as condições sociais do trabalho de forma a garantir o prolongamento saudável da actividade profissional. Apesar de estarem a ser fortemente impulsionadas pelas pressões financeiras sobre o sistema de segurança social, as reformas em torno do prolongamento da idade activa visam também adaptar os indivíduos e a sociedade a um cenário em que os indivíduos vivem mais e se mantêm saudáveis por mais tempo. Atendendo a que esta adaptação demorará o seu tempo, é importante desde já problematizar a aceitação destas mudanças por parte dos indivíduos, visto que, sem a sua aceitação, a preparação para o seu próprio envelhecimento poderá ficar comprometida, tornando mais difícil a implementação de medidas que visem criar as condições necessárias ao prolongamento da vida activa. Com efeito, uma questão essencial é saber se as pessoas desejam prolongar a actividade profissional depois da reforma. Mais do que um evento que marca a saída do mercado de trabalho (Atchley 1982), a reforma é cada vez mais considerada como um processo complexo ligado 625

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 626

Pedro Moura Ferreira

às estruturas sociais e às escolhas individuais (Carr 2008, 328), que promove, por um lado, a liberdade e bem-estar e, por outro, a exclusão social. Apesar de todos os possíveis benefícios identificados pela perspectiva do envelhecimento activo, o prolongamento da vida activa, pelo menos sob determinadas condições, pode não ser pretendido ou desejado pelas pessoas (Clarke e Warren 2007). A passagem para a reforma caracteriza-se por uma multiplicidade de trajectórias que vão desde a reforma compulsiva, quer porque se atinge a idade obrigatória, quer porque subsistem razões de saúde ou necessidade de prestar cuidados a um familiar, até à reforma antecipada, passando ainda por períodos de desemprego. A satisfação com o trabalho, os recursos financeiros, o estado de saúde, a participação em actividades durante a reforma e as relações com as outras pessoas são factores que determinam o tipo de trajectória que cada um adopta (Phillipson 1998; Elder e Rudolph 1999; Künemund e Kolland 2008). Estes factores, quer institucionais, quer individuais, determinam o processo de adaptação à reforma (Fred Jr. 1975). A satisfação é tanto maior quanto mais a passagem para a reforma é determinada por factores de atracção (realização de actividades de lazer durante a reforma, por exemplo, viajar). Inversamente, a satisfação diminui quando são factores de repulsão que motivam a passagem para a reforma (problemas de saúde, insatisfação com o trabalho realizado) (Morgan e Kunkel 2007; Fouquereau et al. 2005; Tougas et al. 2004). Até há bem pouco tempo, pelo menos para certos grupos sociais, a expectativa de um tempo de vida prolongado após a reforma em boas condições de saúde, que permitissem usufruí-lo como uma compensação de uma vida de trabalho ou como uma possibilidade de realizar outros projectos de vida, constituía uma aspiração legítima. Certamente, esta aspiração encontrava mais eco junto dos sectores populacionais cujos rendimentos eram pelo menos razoáveis, mas mesmo nos que obtinham rendimentos mais baixos, a passagem à reforma, quando esta se concretizava numa idade relativamente precoce e em boas condições de saúde, era vista como uma oportunidade de aumentar esses rendimentos através do prolongamento da vida activa. Obviamente, se este prolongamento decorrer do aumento da idade da reforma, deixará de existir, ou pelo menos tornará mais difícil, a possibilidade de acumular outra fonte de rendimento, pois os indivíduos entrarão na reforma numa idade mais avançada, tendo por consequência menos oportunidades e menos motivações para encontrar trabalho. Além das razões económicas e da aspiração a ter mais tempo livre, a passagem à reforma surge também marcada pela insatisfação em relação ao trabalho, devido não só às condições físicas, ambientais e organiza626

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 627

Sociedade e envelhecimento: algumas questões em torno do envelhecimento activo

cionais em que é realizado, como também às compensações que dele se retiram. As propostas do envelhecimento activo reflectem a necessidade de ter em consideração os aspectos motivacionais e as condições de saúde associadas ao trabalho, sem os quais dificilmente se poderá falar em prolongamento voluntário da vida activa e de transição gradual para a inactividade. No entanto, nas circunstâncias actuais, o aumento da idade da reforma tem vindo a ocorrer sem que se tenham verificado mudanças, quer na organização do trabalho que contemplem o envelhecimento dos indivíduos, quer na política de saúde no sentido do reforço da orientação preventiva, quer ainda no sistema rígido das regras de aposentação que impedem uma transição gradual e negociada entre a actividade e a inactividade. Assim sendo, cabe perguntar se o aumento da idade de reforma não estará a reforçar as desigualdades nos processos de transição, agravando significativamente as condições de vida não só dos indivíduos que são obrigados por motivos de doença ou de saúde precária a aposentar-se mais cedo do que, possivelmente, desejariam (Künemund e Kolland 2008), mas também dos indivíduos que poderiam beneficiar de um rendimento extra, caso a idade de reforma não tivesse sido alterada, permitindo mais facilmente exercer outra actividade económica por mais algum tempo (Phillipson 1998). Outra questão diz respeito à equidade que deve presidir às relações intergeracionais na sociedade. Se é verdade que, tendencialmente, os indivíduos vivem mais tempo e com melhor saúde, o ritmo dessa tendência é incomparavelmente mais lento do que o ritmo das reformas relativas à actualização da idade de reforma. Com efeito, o curto intervalo de tempo em que esta reforma ocorreu provocou diferenças significativas na duração das carreiras profissionais e contributivas entre a geração que começa a sujeitar-se às novas regras de aposentação e a geração que a precedeu, sem que essas diferenças fossem compensadas em termos de longevidade ou de morbilidade. O horizonte temporal pós-reforma da geração que se aposentará sob as novas regras será provavelmente mais curto do que o da geração que a precedeu, não porque os indivíduos vivam menos tempo, pelo contrário viverão mais, mas porque entram muito mais tarde na reforma. Neste sentido, as actuais mudanças em torno da idade de reforma e das condições em que esta pode ocorrer, designadamente a anulação, ou pelo menos a limitação, dos mecanismos da reforma antecipada ou da pré-reforma, são susceptíveis de agravar as desigualdades intergeracionais, contribuindo para abalar o princípio de solidariedade intergeracional subjacente ao mecanismo de transferência financeira entre gerações no qual assenta o modelo actual da segurança social. 627

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 628

Pedro Moura Ferreira

Importa ainda notar que a transição para uma vida activa mais longa tem vindo a ser concretizada sem que haja uma mudança significativa nas representações em torno da idade e nas discriminações que as acompanham, designadamente no que respeita à reforma. Com efeito, a reforma é definida por factores que potenciam a dependência económica das pessoas mais velhas e a discriminação perante a idade (Künemund e Kolland 2008). Os riscos associados ao desemprego, à reestruturação do trabalho, às novas tecnologias, colocam os trabalhadores mais velhos numa posição de incerteza, dando origem a uma «nova forma de crise» das pessoas mais velhas (Phillipson 1998; Clarke e Warren 2007, Mendes 2011), que provoca uma «fragmentação da identidade na reforma» (Phillipson 1998, 62). Esta crise de identidade é amplamente interpretada com base em atitudes preconceituosas que se apoiam em estereótipos, como a desadequação da formação, a fraca motivação e a resistência à mudança dos trabalhadores mais velhos (Tougas et al. 2004). O conceito de idadismo, com origem na psicologia americana dos anos 70, refere-se a atitudes e comportamentos discriminatórios com base na idade (Nelson 2004; Gilles e Reid 2005; Lima 2011; Marques 2011). As manifestações de carácter idadista podem ser direccionadas a diferentes grupos etários, mas são as pessoas mais velhas que são mais frequentemente alvo de atitudes e comportamentos negativos. A experiência de discriminação aumenta à medida que a idade vai avançando (Gee et al. 2007; Roscigno et al. 2007; Lima 2011). Os preconceitos com base na idade têm também origem no próprio grupo das pessoas mais velhas, pois ao longo da vida interiorizam estereótipos idadistas e tendem a distanciar-se positivamente daquelas pessoas que consideram mais velhas do que elas e, consequentemente, «realmente idosas» (Minichiello et al. 2000; Gilles e Reid 2005; Moody 2006; Lima 2011). O paradigma do envelhecimento activo adopta uma abordagem positiva sobre o envelhecimento, com o objectivo de potenciar o desenvolvimento humano e combater as discriminações com base na idade (Moody 2006). É o próprio estado que pretende impulsionar uma «terceira idade integrada e activa» (Guillemard 2000, 227), procurando promover uma nova forma de entender o envelhecimento (Biggs et al. 2006). Este novo entendimento, veiculado pelo envelhecimento activo, fundamenta-se em vários factores, desde a flexibilização da passagem para a reforma, passando pela melhoria das condições de saúde e pela nova forma de encarar o tempo de reforma como um tempo produtivo. Cabe, no entanto, perguntar em relação ao mercado de trabalho se uma eventual política de valorização dos mais velhos, mesmo que acom628

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 629

Sociedade e envelhecimento: algumas questões em torno do envelhecimento activo

panhada de legislação protectora, será capaz de enfrentar as tensões de um mercado competitivo, em que o trabalho surge como escasso e a pressão dos mais novos pelo emprego como inevitável. Nestas condições, o aumento da idade da reforma poderá agravar a situação dos mais velhos no mercado de trabalho, tornando-os alvos preferenciais de marginalização e discriminação em processos de despedimentos colectivos ou de reestruturação (Tougas et al. 2004), sobretudo numa sociedade, como a portuguesa, em que a idade significa frequentemente qualificações profissionais e escolares mais limitadas. Se é através do trabalho, segundo a perspectiva do envelhecimento activo, que a participação dos mais velhos na sociedade deve ser assegurada (Clarke e Warren, 2007; Künemund e Kolland, 2008), a maior vulnerabilidade destes no mercado de trabalho, em virtude do aumento da idade de reforma, não augura nada de bom em termos do combate à discriminação com base na idade, tanto mais quando essa sociedade surge rendida a uma ideologia de juvenilidade, em que tudo o que não se aproxime e não se conforme a esse modelo é automaticamente desvalorizado ou mesmo estigmatizado (Tougas et al. 2004: Roscigno et al. 2007). O combate ao idadismo, quando este se revela nas atitudes e comportamentos negativos baseados exclusivamente na idade das pessoas mais velhas (Nelson 2004; Lima 2011; Marques 2011), só parece possível através da valorização da condição de idoso, que por sua vez exige a participação na vida activa, sem a qual dificilmente se conseguirá evitar a secundarização ou mesmo a marginalização das pessoas idosas (Marques 2011). A instituição do trabalho é aquela que assegura um elo mais forte à sociedade através da participação em vários tipos de redes, de múltiplos contactos sociais e do acesso a informação diversificada. A participação na vida activa é assim uma condição essencial da cidadania colectiva. Porém, nas condições actuais, em que não existe uma adequação efectiva entre política de emprego e envelhecimento, a ideologia do envelhecimento activo pode cair no vazio, sem que se vislumbre uma estratégia ou a vontade política necessária para o ultrapassar. A mudança nas condições do funcionamento do mercado de trabalho é, sem dúvida, absolutamente necessária para se promover o envelhecimento activo. Sem se reverem os aspectos motivacionais e de saúde associados ao trabalho, dificilmente se poderá falar em prolongamento voluntário da vida activa e de transição gradual para a inactividade. O trabalho não pode causar danos à saúde, tem de se adaptar aos condicionalismos da idade e ser fonte de auto-satisfação. Para compreender as condições de envelhecimento, é necessário questionar tanto as condi629

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 630

Pedro Moura Ferreira

ções de saúde como as de satisfação no trabalho. No entanto, fora do quadro de uma perspectiva estrutural, a ideologia do envelhecimento activo enquanto programa de reformas que visa alterar a condição de idoso na sociedade corre o risco de ser reduzida à perspectiva do envelhecimento saudável em que a actividade é essencialmente encarada como um meio de estimular as capacidades funcionais e a autonomia do indivíduo até tão tarde quanto possível. Este reducionismo é acompanhado por um certo enviesamento ideológico na medida em que o envelhecimento saudável é apresentado como um conjunto de orientações pragmáticas de que seria difícil alguém discordar, mas dependente de uma decisão volitiva meramente individual que relega para segundo plano a dimensão cognitiva da saúde e as suas determinantes sociais. Mas mesmo que se assuma a perspectiva estrutural do envelhecimento activo, a experiência recente da sociedade portuguesa mostra uma ausência total de respostas quer no sentido da criação de condições organizacionais e legislativas que assegurem o prolongamento justo e saudável da vida activa, quer no sentido da redução dos preconceitos e das discriminações com base na idade. Mais do que qualquer preocupação de integração e valorização da condição idosa na sociedade, as reformas recentes em torno do aumento da idade de reforma foram impulsionadas sobretudo pelas pressões financeiras sobre o sistema de segurança social em virtude do agravamento do desequilíbrio entre activos e não activos. Neste sentido, a temática do envelhecimento activo é apropriada para justificar ideologicamente as reformas relativas ao aumento da idade de reforma sem que dela se retirem as implicações e se assumam integralmente os pressupostos em que assenta enquanto programa de reformas estruturais que visam criar uma sociedade sem discriminações etárias. Apesar de as justificações actuais sublinharem sobretudo a sustentabilidade do equilíbrio financeiro do sistema de segurança social, o principal argumento para o prolongamento da vida activa na perspectiva do envelhecimento activo reside na necessidade de evitar a marginalização social das pessoas que envelhecem e de garantir a sua presença na vida colectiva. A participação constitui assim uma condição indispensável, na medida em que é através dela que se reforçam os laços sociais mais amplos, designados na literatura por capital social. Contudo, este tenderá a escassear, como acontece com qualquer outro capital, se não houver um investimento permanente, pelo que é fundamental que a envolvente humana consubstanciada nos vínculos sociais acompanhe o indivíduo à medida que envelhece.

630

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 631

Sociedade e envelhecimento: algumas questões em torno do envelhecimento activo

Referências bibliográficas Atchley, R. C. 1982. «Retirement as a social institution». Annual Review of Sociology, 8: 263-287. Biggs, S., C. Phillipson, A. M. Money, e R. Leach. 2006. «The age-shift: Observations on social policy, ageism and the dynamics of the adult lifecourse». Journal of Social Work Practice, 20 (3): 239-250. Carr, D. 2008. Encyclopedia of the Life Course and Human Development, vol. 3: Later Life. Nova Iorque, NY: Macmillan Social Science Library. CE. 2002. La réponse de l’Europe au vieillissement de la population mondiale. Promouvoir le progrès économique et social dans un monde vieillissant. Bruxelas: Commission des Communautés Européennes. Disponível em: http://eur-lex.europa.eu/smartapi/cgi/sga_doc? smartapi!celexplus!prod!DocNumber&lg=fr&type_doc=COMfinal&an_doc=2002& nu_doc=143 (data de acesso a : 13 DE Abril de 2011). Clarke, A., e L. Warren. 2007. «Hopes, fears and expectations about the future: what do older people’s stories tell about active ageing?». Ageing and Society, 27: 465-88. Elder, H. W., e P. M. Rudolph. 1999. «Does retirement affect the level of retirement satisfaction?». Financial Services Review, 8: 117-127. Fouquereau, E., A. Fernandez, A. M. Fonseca, M. C. Paul, e V. Uotinen. 2005. «Perceptions of and satisfaction with retirement: a comparison of six European Union countries». Psychology and Aging, 20 (3): 524-228. Fred Jr., D. 1975. «Adjustment to retirement: Integrity or despair». The Family Coordinator: 217-226. Gee, G. C., E. K. Pavalko, e J. S. Long. 2007. «Age, cohort and perceived age discrimination: Using life course to assess sef-reported age discrimination». Social Forces, 86 (1): 265-290. Giles, H., e S. A. Reid. 2005. «Ageism across lifespan: Towards a self-categorization model of ageing». Journal of Social Issues, 61 (2): 389-404. Goffman, E. 1968. Asiles: études sur la condition sociale des malades mentaux. Paris: Minuit. Guillemard, A.-M. 2000. Aging and the Welfare-State Crisis. Londres: Associated University Press. Held, D. 1995. Democracy and the Global Order: From the Modern State to Cosmopolitan Governance. Londres: Polity Press and Stanford University Press. Künemund, H., e F. Kolland. 2008. «Work and retirement». In Ageing in Society. European Perspectives on Gerontology, eds. J. Bond, S. Peace, F. Dittmann-Kohli e G. Westrhof. Londres: Sage Publications. Lima, M. L., coord. 2011. Idadismo na Europa. Uma abordagem Psicossociológica com o Foco no Caso Português (Relatório II). Lisboa: Instituto do Envelhecimento da Universidade de Lisboa. Marques, S. 2011. Discriminação na Terceira Idade. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos. Mendes, F. R. 2011. Segurança Social. O Futuro Hipotecado. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos. Minichiello, V., J. Browne, e H. Kending. 2000. «Perceptions and consequences of ageism: views of older people». Ageing and Society, 20: 253-278. Moody, H. R. 2006. Aging. Concepts and Controversies. Thousand Oaks, CA: Pine Fore Press.

631

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 632

Pedro Moura Ferreira Morgan, L., e S. R. Kunkel. 2007. Aging, Society and the Life Course. Nova Iorque, NY: Springer Publishing Company. Naegele, G. 1999. Active Strategies for an Ageing Workforce. Dublin: European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions. Nelson, T. D. 2004. Ageism. Stereotyping and Prejudice Against Older Persons. Cambridge, MA: The MIT Press. OCDE. 1998. Maintenir la prospérité dans une société vieillissante. Document de travail awp 3.2 f, OCDE. Disponível em http://www.oecd.org/dataoecd/22/6/2428637.pdf (data de acesso a: 15 de Maio de 2011). Oliveira, I. T., e M. F. Mendes. 2010. «A diferença de esperança de vida entre homens e mulheres: Portugal de 1940 a 2007». Análise Social, XLV (194): 115-138. OMS. 2002. Vieillir en restant actif: Cadre d’orientation, Genebra, OMS. Disponível em: http://whqlibdoc.who.int/hq/2002/WHO_NMH_NPH_02.8_fre.pdf (data de acesso: 21 Junho de 2011). Pestana, N. N. 2003. «Trabalhadores mais velhos. Políticas públicas e práticas empresariais». Cadernos de Emprego e Relações de Trabalho. Lisboa, MSST/DGERT. Phillipson, C. 1998. Reconstructing Old Age. New Agendas in Social Theory and Practice. Londres: Sage Publications. Roscigno, V. J., S. Mong, R. Byron, e G. Tester. 2007. «Age discrimination, social closure and employment». Social Forces, 86 (1): 313-334. Tougas, F., M. Lagacé, R. Sablonnière, e L. Kocum. 2004. «A new approach to the link between identity and relative deprivation in the perspective of ageism and retirement». Aging and Human Development, 59 (1): 1-23. Walker, A. 2002. «A strategy for active ageing». International Social Security Review, 55 (1): 121-140.

632

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 633

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 634

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 635

30 MVCabral Cap. 30_Layout 1 6/24/13 10:11 AM Page 636

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.