Cinco Vezes Zé do Caixão

July 17, 2017 | Autor: Rodrigo Bouillet | Categoria: Cinema
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Cinco Vezes Zé do Caixão* A primeira tentativa de José Mojica Marins realizar um longa-metragem em 35mm data de 1955, com Sentença de Deus. Porém, não consegue terminá-lo. Cabe ao faroeste Sina de aventureiro (1957) abrir sua filmografia. O infantil Meu destino em suas mãos (1961) é o filme seguinte. Somente três anos depois volta a rodar, materializando no personagem Zé do Caixão a figura de um pesadelo que tivera. Assim, em 1964, roda À meia-noite levarei sua alma. Celebrado pelos cineastas marginais tanto pelo esquema barato, ágil e eficiente de suas produções quanto pelo que se convencionou chamar de “primitivismo” no filmar, Mojica também atraía a atenção dos jovens realizadores pela sua forma de representar o horror, o grotesco, e o disforme em imagem e som. No entanto, a “paternidade” do “movimento” que lhe é atribuída encerra-se nas questões da forma e narrativa, uma vez que é possível averiguar em seus filmes um moralismo que bate de frente com a proposta marginal. Em À meia-noite... o diretor nos apresenta Zé do Caixão, funerário de uma cidade do interior que não crê em qualquer manifestação que não provenha da mão do homem. Superstições, crendices e religiões limitariam a compreensão humana, afastando todos da verdade. Desta forma, só o “doutrinamento através instinto” poderia libertar. Para isso, busca a mulher ideal para ter um filho perfeito, que “naturalmente” daria continuidade ao seu projeto. “Naturalmente”, pois Zé do Caixão entende que a manutenção da existência do homem após a morte não se dá através do mundo dos espíritos, mas do sangue legado à prole. Haveria, portanto, um determinismo comportamental. Filme que se inicia no exato ponto em que À meia-noite... termina, Esta noite encarnarei no teu cadáver nuança ainda mais os conflitos do personagem. Zé do Caixão em sua resolução de provar a inexistência do “outro mundo” não sai ileso de ambos os filmes. Ainda que o primeiro se encerre de forma ambígua (sua suposta morte poderia ser decorrente de um ataque nervoso devido a uma alucinação ou um ataque real de mortos-vivos) e o segundo trabalhe até o último momento nesta chave (Zé acaba por reconhecer a existência de Deus na última seqüência), o mais importante é acompanhar o sentimento de culpa do personagem. Não por acaso, em Esta noite... o protagonista reconhece esta “fraqueza” e admite que nele ainda residem restos de uma moral cristã e de costumes mais comuns ao povo. Em ambos os filmes o que prevalece é o conservadorismo, sobretudo no segundo, onde a tríade coronelpadre-povo une-se contra Zé do Caixão para a manutenção do status quo ameaçado por ele. Neste sentido (talvez fosse mais adequado dizer “mesmo assim”), os gritos e torturas apresentadas nos filmes parecem revelar mais da condição oprimida do povo da pequena cidade do que propriamente o sadismo (diria ele “limpeza”) que Zé os impõe. Isto é, são alusões em som e imagem às desgraças do cotidiano e do caráter conflitivo, autoritário e excludente da sociedade brasileira. Se nestes filmes Mojica foi alvo de represálias de diversas naturezas, nada se comparou ao que sofreu com O estranho mundo de Zé do Caixão (1967) – preso na censura e liberado Juliette – Revista de Cinema (Ago2008) “Cinco Vezes Zé do Caixão” (pg. 8-10)

com quase 20 minutos de cortes – e Ritual dos sádicos (ou Despertar da besta) (1969) – uma interdição imediata que perdurou pelos 16 anos seguintes. Neste último, o diretor transporta Zé do Caixão para a cidade grande. Através de uma experiência com 4 viciados em drogas (de comportamento desviante) retirados de extratos sociais diversos, um psiquiatra quer provar os efeitos da figura de Zé do Caixão sobre o inconsciente coletivo. Como na realidade ele injeta água e não LSD, como combinado, fica provado que o grupo já estava propenso a atitudes anti-sociais independente do consumo ilícito – temos, então, novamente o determinismo. Praticamente eviscerando uma sociedade perturbada, sádica, tarada, além de defender o uso de drogas, Mojica deixou à mostra um Brasil urbano, caótico e perverso que mexeu com os brios do Brasil propagandeado pelos militares. As sucessivas intervenções em seus filmes rederam ao cineasta o afastamento de produtores cinematográficos, o que o obrigou a impetrar uma estratégia de reconciliação materializada na realização de filmes fora do contexto do horror, como a aventura Sexo e sangue na trilha do tesouro (1970); o faroeste Dgajão mata para vingar (1971); no duplo invertido de Zé do Caixão, Finis Hominis (1971) e Quando os deuses adormecem (1972); e logo depois aderindo a pornochanchada em A virgem e o machão (1973). Nesta época, filmar A encarnação do demônio – último capítulo da trilogia iniciada por À meia-noite... e Esta noite... – estava absolutamente fora de questão para qualquer produtor. Para termos uma idéia, em 1973, o certificado de liberação da Censura de À meia-noite não foi renovado, impedindo o filme de circular. Apesar da perseguição da Censura, a Embrafilme enviou Esta noite... para uma mostra de filmes brasileiros no Festival de Cannes de 1971. À meia-noite... seria exibido no ano seguinte no MAM de Nova York. As exibições internacionais fizeram com que a crítica estrangeira prestasse cada vez mais atenção sobre os filmes de Mojica – grande parte desse interesse capitaneado por seu principal roteirista, Rubens F. Lucchetti, que trocava correspondências com críticos e publicava artigos sobre o cineasta. O ponto culminante desta fase foi em 1974, com o prêmio recebido pelo conjunto da obra na 3ª. Convenção de Cinema Fantástico, em Paris. Mojica teve seu retorno ao Brasil festejado pela imprensa local e (por isso mesmo) logo recebeu o convite de Aníbal Massaini Neto para ter seu próximo filme produzido pela tradicional CINEDISTRI. A idéia era realizar um similar nacional de O exorcista (The exorcist, de William Friedkin) que seria lançado em alguns meses. A presença da produtora no filme é evidenciada através de Antonio Meliande na fotografia e Carlos Coimbra na montagem, além de Jofre Soares no elenco – figuras recorrentes em seus projetos. Batizada de Exorcismo negro, a película parece ser uma forma de Mojica entender o processo (ou, por que não, até mesmo intervir no entendimento) pelo qual sua carreira passava naquele momento. Exorcismo negro é o décimo-quarto longa-metragem, como diretor, da carreira de José Mojica Marins e apenas o quinto de seu personagem Zé do Caixão. Assim como em Ritual dos Juliette – Revista de Cinema (Ago2008) “Cinco Vezes Zé do Caixão” (pg. 8-10)

sádicos, Mojica interpreta a si mesmo. O filme começa com o cineasta dando uma entrevista para a imprensa. Fala de sua passagem bem-sucedida pela Europa, que no momento sofre de um bloqueio criativo e vai passar uma temporada na casa de um amigo para pensar em seu próximo trabalho no cinema. Fenômenos estranhos acontecem no local e vários membros da família são alvo de possessão demoníaca. Tudo leva a crer que a presença de Mojica é a razão dos distúrbios – sobretudo quando nega a existência de Zé do Caixão –, mas na realidade trata-se de uma bruxa reclamando uma dívida: a filha do casal que hospeda Mojica deve se casar com o filho de Satã. Para ajudá-la, a mandingueira invoca Zé do Caixão. Ele mesmo, em carne, osso, espírito maligno, capa e cartola. Ocorre, então, a “real” peleja entre criador e criatura. Ao contrário de Ritual dos sádicos, onde Zé do Caixão não sai da esfera da alucinação, em Exorcismo negro ele está entre nós – a grande questão do filme. Mojica nos é apresentado como um intelectual, estudioso em parapsicologia, jogador de xadrez, homem de hábitos e modos refinados. Uma pessoa que tenta preservar o bem-estar da família que o acolheu. De forma geral, para quem acompanha a face mais bem-sucedida de sua carreira cinematográfica de até então ou está acostumado ao folclore que o ronda off-screen (já naquela época), esta decisão causa grande estranhamento. Para termos uma idéia, em 1969, Mojica já era celebridade nacional, justamente por seus filmes que tinham o coveiro como protagonista, os quais lhe possibilitaram a admiração de inúmeros cineastas e o convite para apresentar de programas de TV em que o macabro e o fantástico eram os temas mais recorrentes. Além disso, o criador explorava midiaticamente sua mais famosa criatura como poucas vezes se viu em toda história do cinema brasileiro, com “estratégias de marketing” absolutamente sui generis. No filme, há um esforço narrativo e interpretativo para diferenciá-lo do personagem que o celebrizou que deixa a fruição um pouco incômoda. Quando Zé do Caixão finalmente entra no filme, este ganha novos ares, com cenas de violência e horror de toda a sorte que se constroem realmente livres e criativas, revelando, agora sim, um Mojica (diretor) em plena forma. Ao fim e ao cabo, Mojica vence Zé ao apelar para as forças de deus. Ou melhor, adia o combate final para outra ocasião... Seja em prol de afirmar-se como criador cinematográfico conseqüente (reconhecido internacionalmente) seja para colocar ao grande público (e aos censores) que seus filmes (e ele mesmo) respeitam os valores mais tradicionais, Exorcismo negro vem para dissociar Mojica de Zé. Em um mesmo movimento, afirma-se a real existência de Zé Caixão e cria-se uma ficção para um cineasta que realmente existe. Cruelmente, um movimento de liberdade sobretudo para Zé Caixão, pois este o reconhece como pertencente ao imaginário coletivo – ao contrário do estereótipo de excêntrico que nunca abandonaria Mojica, como Ritual dos sádicos já apontava. Zé do Caixão nunca mais apareceria como protagonista dos filmes de Mojica – somente em aparições esporádicas em A estranha hospedaria dos prazeres (1975) e Delírios de um anormal (1977) –, um hiato a ser rompido com a estréia de A encarnação do demônio. Juliette – Revista de Cinema (Ago2008) “Cinco Vezes Zé do Caixão” (pg. 8-10)

Rodrigo Bouillet Organizador do Cineclube Tela Brasilis (www.telabrasilis.org.br) Diretor Geral da Associação de Cineclubes do Rio de Janeiro (ASCINE-RJ), 2007-2009 * Este texto é uma compilação/adaptação de outros dois escritos anteriormente e distribuídos sob a forma de folder em sessões do Cineclube Tela Brasilis, na Cinemateca do MAM-RJ, por ocasião da exibição de filmes de José Mojica Marins: Finis Hominis (1971), em 27/10/2007; e de Exorcismo negro (1974) + Demônios e Maravilhas (1976-1987), em 01/05/2008, em parceria com o RioFan - Festival de Cinema Fantástico do Rio de Janeiro.

Juliette – Revista de Cinema (Ago2008) “Cinco Vezes Zé do Caixão” (pg. 8-10)

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