Cinema Brasileiro na Escola

June 8, 2017 | Autor: Solange Stecz | Categoria: Cinema E Educação
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Criação e Design de Capa | Janiclei A. Mendonça Planejamento Gráfico | Janiclei A. Mendonça Coordenação Editorial | Salete P. Machado Sirino Revisão | José Carlos Avellar Priscila Buse Ficha catalográfica | Mary Inoue Conselho Editorial UNESPAR / Campus de Curitiba II Dr. Armindo Bião (UFBA) Dr. Cássio da Silva Fernandes (UFJF) Dra. Cristina Capparelli Gerling (UFRGS) Dra. Cristina Grossi (UnB) Dr. Daniel Wolff (UFRGS) Dra. Dulce Barros de Almeida (UFG) Dra. Fabiana Dultra Britto (UFBA) Dra Helena Katz (PUC-SP) Dr. José Manuel Tedim (Portucalense-Pt) Dr. Key Imaguire Jr. (UFPR) Dr. Luiz Fernando Ramos (USP) Dr. Marco Antonio Carvalho Santos (UFF) Dr. Marcos Napolitano (USP) Dra. Margarida Gandara Rauen (UNICENTRO) Dr. Paulo Humberto Porto Borges (UNIOESTE) Dra. Regina Melim (UDESC) Dra. Selma Baptista (UFPR) Dra. Rosemyriam Ribeiro dos Santos Cunha (FAP) Dra. Sheila Diab Maluf (UFAL) Dr. Walter Lima Torres (UFPR) Dra. Zélia Chueke (UFPR)

Cinema brasileiro na escola: pra começo de conversa. / org. por Salete Paulina Machado Sirino e Fabio Luciano Francener Pinheiro. Curitiba: UNESPAR, 2014. 248p. ISBN 978-85-68399-00-2 1. Cinema e Educação. 2. Cinema brasileiro. 3. Cinema, história e cultura. I. Sirino, Salete Paulina Machado, org. II. Pinheiro, Fabio Luciano Francener, org. CDD: 791.430981

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SUMÁRIO PREFÁCIO José Carlos Avellar 08 APRESENTAÇÃO Salete Paulina Machado Sirino

CINEMA E EDUCAÇÃO CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A ANÁLISE DE FILMES E SEU POTENCIAL PARA A ATIVIDADE DOCENTE Fabio Luciano Francener Pinheiro

CINEMA BRASILEIRO: UMA RETROSPETIVA HISTÓRICA

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CINEMA BRASILEIRO: DO NASCIMENTO AOS CICLOS REGIONAIS Agnes Cristine Souza Vilseki

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O FILME LIMITE COMO UM EXPOENTE DA VANGUARDA NO BRASIL Bianca de Moura Pasetto

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ATLÂNTIDA CINEMATOGRÁFICA E COMPANHIA CINEMATOGRÁFICA VERA CRUZ William Muneroli Manfroi

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CINEMA NOVO: UM CINEMA DE RUPTURAS Érica Ignácio da Costa

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CINEMA MARGINAL BRASILEIRO: MUITAS IDEIAS, POUCOS RECURSOS Fábio S. Thibes

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EMBRAFILME: ENTRE CINEMA E DITADURA Carla Fonseca Abrão de Barros

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O CINEMA DA RETOMADA Agnes Cristine Souza Vilseki Bianca de Moura Pasetto Willian Muneroli Manfroi

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CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO: UMA BREVE VISITA Carla Fonseca Abrão de Barros Érica Ignácio da Costa Fábio Silvester Thibes

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CINEMA BRASILEIRO: FORMA E CONTEÚDO

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O PALHAÇO: UMA ANÁLISE DO ROTEIRO FÍLMICO Fábio S. Thibes

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O SOM AO REDOR E O CINEMA AUTORAL William Muneroli Manfroi

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ABRIL DESPEDAÇADO, UMA ANÁLISE A PARTIR DA DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA Agnes Cristine Souza Vilseki

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DURVAL DISCOS: A ARTE DE DENTRO PARA FORA Carla Fonseca Abrão de Barros

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LISBELA E O PRISIONEIRO E A MONTAGEM FÍLMICA Bianca de Moura Pasetto

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PRODUÇÃO FÍLMICA: O REALISMO EM S. BERNARDO, DE LEON HIRSZMAN Salete Paulina Machado Sirino

CINEMA BRASILEIRO: LINGUAGEM, ESTÉTICA E CULTURA

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A HORA DA ESTRELA: TESSITURAS ENTRE LITERATURA, CINEMA E TELEVISÃO Acir Dias da Silva

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ARUANDA DE LINDUARTE NORONHA: DO RECONHECIMENTO AO PENSAMENTO Eduardo Tulio Baggio

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BRICHOS: UMA EXPERIÊNCIA DE REALIZAÇÃO AUDIOVISUAL E CONSTRUÇÃO DE FRANQUIA Paulo Munhoz

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CICLOS REGIONAIS NO PERÍODO MUDO Solange Straube Stecz

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ENTRE O SOM E O SILÊNCIO: UM ENSAIO SOBRE O QUE OUVIMOS E O QUE NÃO OUVIMOS Ulisses Quadros de Moraes (Ulisses Galetto)

OS AUTORES

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PREFÁCIO

Antes de dizer alguma coisa sobre cinema, os textos reunidos nesse volume dizem que os autores leram alguma coisa sobre cinema. Dão conta desse outro instante do processo cinematográfico em que as imagens visuais se desdobram em imagens verbais. De certo modo, natural que seja assim. Um filme, todo e qualquer filme, se movimenta entre dois textos críticos – o roteiro, antes do filme propriamente dito, e, depois do filme, a crítica propriamente dita. O roteiro ainda não é o filme, a crítica não é mais o filme, mas como o cinema começa antes e vai além do instante da projeção, a análise do filme que vai ser feito e a análise do filme depois de feito são partes inseparáveis do processo cinematográfico. Natural ainda que seja assim porque a entrada do cinema na universidade provoca uma natural tensão entre a prática acadêmica – digamos assim: o espaço da palavra e dos livros – e o dia-a-dia do cinema – digamos assim: o espaço da imagem, do pensamento antes de gerar palavra. Uma tensão criativa, em que cada uma das metades tenta compreender e apreender as lições da outra. Assim, do ponto de vista da universidade, ler antes de ver. Resumir e indicar uma bibliografia básica – contando certamente com o fato de que os livros aqui indicados irão apontar outros, não diretamente mencionados, mas parte igualmente significativa de nossas fontes de estudo. Os que Alex Viany dedicou à uma sistematização da história até o Cinema Novo, Introdução ao cinema brasileiro, e depois a nossa história depois da década de 1960, O processo do Cinema Novo. Os que Helena Salem dedicou a Nelson Pereira dos Santos, O sonho possível do cinema brasileiro, e a Leon Hirszman, O navegador das estrelas. O que Eryk Rocha dedicou a seu pai, Glauber, Rocha que voa. O que Adauto Novaes dedicou aos Anos 70, ainda sobre a tempestade. O que Carlos Alberto Mattos dedicou a Walter Lima Jr, Viver cinema. O que Sérgio Augusto dedicou às chanchadas, Este mundo é um pandeiro. Preparar-se para o cinema nos livros – às vezes a partir da sensação de que uma palavra vale mais que mil imagens, outras a partir do reconhecimento de um certo quê de cinema na estrutura da escrita contemporânea – a partir de um sentimento próximo daquele apontado por Mário de Andrade ao definir a arte cinematográfica como “o Eureka! das artes puras”. Mário de Andrade, de certo modo, está mesmo por trás do gesto que, no final da década de 1960, levou um grupo de cineastas ao Nordeste para compor uma espécie de enciclopédia audiovisual da cultural popular, os pouco mais de vinte documentários da série A condição brasileira, realizados por Geraldo Sarno, Paulo Gil Soares, Thomaz Farkas, Eduardo Escorel e Sérgio Muniz, filmes em princípio destinados não

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propriamente aos cinemas, mas às universidades. A experiência está certamente por trás de uma nova série em dvd, em um quase livro audiovisual, A linguagem do cinema, produzidos por Geraldo Sarno, conversas, entre outras, com Linduarte Noronha, sobre Aruanda, com Walter Salles sobre Terra estrangeira e Central do Brasil, com Júlio Bressane, com Ruy Guerra, com Carlos Reichenbach, com Ana Carolina. Conversas, um material didático para analisar o cinema que se propôs a conversar com o país. Cinema, pra começo de conversa. Não um direto bate papo com os filmes, mas uma conversa intermediada por leituras de textos sobre filmes, autores, estilos, dispositivos técnicos, modos de produção e sobre os ciclos, movimentos ou períodos em que a história do cinema brasileiro costuma ser dividida. Não uma consulta às fontes originais, mas uma leitura de propostas de leituras da experiência cinematográfica brasileira. Quase uma conversa antes da conversa, espécie de trailer, listagem de temas para futuras investigações, notas introdutórias. O título desse texto inicial pode ser tomado como uma característica dos outros que compõem esse volume. Significativa a presença de conversas inteiramente dedicadas a filmes que, digamos, surgiram para começo de conversa – Limite, de Peixoto, como lembrado aqui, “expoente máximo da vanguarda cinematográfica no final do cinema mudo na América Latina”, e Aruanda, de Linduarte, como lembrado aqui, “filme seminal, referência de uma geração, marcante tanto pelo que expressa quanto por sua proposta cinematográfica”. Significativa a advertência logo na primeira linha de um dos trabalhos: escrever, tirou algumas noites de sono, “me fez refletir sobre algo maior, acerca de meus conhecimentos do cinema brasileiro”. Um certo reconhecimento de que pouco se conhece do cinema brasileiro, de que é preciso partir de onde tudo começou, do ponto zero, dos recomeços depois do começo, se insinuam nas entrelinhas da retrospectiva histórica, da discussão da forma e do sentido e das discussões de procedimentos narrativos ou técnicos dispostas depois das considerações iniciais sobre a importância da análise crítica de filmes. Numa prática tão recente quanto a do ensino de cinema, analisar filmes é o que de verdade ensina como ensinar cinema. No começo do século passado a produção de filmes e a análise de filmes inventaram juntas a linguagem de cinema; a primeira, antes mesmo de organizar os processos produtivos; a segunda, antes mesmo de contar com uma base teórica já existente em todas outras artes. Até um tempo recente, para aprender a fazer cinema, era preciso infiltrar-se numa equipe, aprender pelo que, certa vez, Humberto Mauro chamou de “escola dos brasileiros“, o olhar: “olhou, viu, fez”. O cinema, que saltou direto da prática para a universidade, sem passar pela escola, tem agora o convite de retornar à escola, para começar lá a educar o olhar do espectador, do crítico, do realizador. Pra começo de conversa, cinema. Provocador onírico, segundo Glauber. De tirar o sono, diz-se aqui. Invenção inacabada, e por isso mesmo, convite para continuar inventado – filmes e tudo o mais. José Carlos Avellar

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José Carlos Avellar É crítico de cinema. Representa o Internationale Fimfestspiele Berlin no Brasil. Programa a sala de cinema do Instituto Moreira Salles. Seis livros publicados: O chão a palavra – cinema e literatura no Brasil (Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2007); Glauber Rocha (Editorial Cátedra, Madrid, 2002); A ponte clandestina - teorias de cinema na América Latina (Editora 34 e Edusp, São Paulo, 1996); Deus e o diabo na terra do sol (Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1995); O cinema dilacerado (editorial Alhambra, Rio de Janeiro, 1986) e Imagem e som, imagem e ação,imaginação (editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1982). Foi Diretor Cultural da Embrafilme (1985 - 1987); Vice diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1969 e 1985) e diretor desta mesma instituição (1991 - 1992); Vice presidente da Fipresci, Associação Internacional de Críticos de Cinema (1986 - 1995) e Diretor Presidente da Riofilme (1994 - 2000).

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APRESENTAÇÃO

Em algum momento de minha vida ouvi a frase: “o cinema como guardião do passado e precursor do futuro só pode ser realizado no presente”. Esta frase levoume a questionar o quanto conhecemos do cinema que guarda nosso passado, o quanto discutimos o cinema que é produzido no presente e qual seria sua perspectiva de futuro, principalmente, levando em consideração o fato de que, muitas vezes, o cinema de nosso país é estrangeiro para a sua própria gente. Considerando que cerca de 80% dos filmes exibidos no Brasil, seja nos cinemas, em rede de TV aberta e/ou por assinatura e em home-vídeo são estrangeiros, especialmente, estadunidenses – o que produz uma colonização cultural já denunciada na década de 1960 por Glauber Rocha, um dos ícones do Cinema Novo Brasileiro –, e considerando o papel fundamental da educação na formação cultural de seus discentes, torna-se essencial a capacitação de professores para o uso educativo do Cinema Brasileiro. O estudo comparado da forma e conteúdo de filmes nacionais, por exemplo, pode ser um caminho para a promoção analítico-interpretativa e para a independência de pensamento, bem como para uma formação cultural por meio do conhecimento de filmes e cineastas de distintos momentos do Cinema Brasileiro, entre eles: os primeiros tempos, os Ciclos Regionais, os esforços para a criação de uma indústria de cinema, o Cinema Independente, o Cinema Novo, o Cinema Marginal, o momento da retomada de produção e o momento contemporâneo. Mas, para que o educador possa em sua prática docente utilizar o Cinema Brasileiro como um recurso pedagógico, considerando a fala de Maria Luiza Belloni (2001): “quem educa os educadores?”, torna-se necessária e urgente a capacitação de professores para a utilização do Cinema Brasileiro no meio escolar. Há tempos, realizadores, pesquisadores, educadores e estudantes do Cinema Brasileiro têm a crença na relevância da inserção de estudos do Cinema Nacional na Educação, tanto como uma forma de formação cultural e de plateia ao cinema produzido no Brasil, quanto pela inserção de novos realizadores de cinema. Neste sentido, torna-se relevante a recente aprovação da Lei 13006/14, de 26 de junho de 2014, a qual acrescenta ao art. 26, da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional: § 8º A exibição de filmes de produção nacional constituirá componente curricular complementar integrado à proposta pedagógica da escola, sendo a sua exibição obrigatória por, no mínimo, duas horas mensais.

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Visando contribuir, inclusive, com a prática desta recente Lei, os textos que integram Cinema Brasileiro na Escola: pra começo de conversa, resultam de reflexões a partir de duas vertentes: histórica e análise de filmes. A primeira linha, de História, perpassa por uma visão cronológica, desde as primeiras manifestações do cinema no Brasil até a produção contemporânea – mais de cem anos da trajetória do Cinema Brasileiro. A segunda linha, de Análise Fílmica, com abordagem centrada nos elementos que compõem o discurso cinematográfico, os trabalhos da Direção, Produção, Fotografia, Arte, Montagem e Som. Este livro resulta do Projeto de Extensão Cinema Brasileiro na Escola, vinculado ao Programa de Extensão Universidade Sem Fronteiras, da SETI/PR, por mim elaborado e coordenado, com a participação do Prof. Drando. Fábio Francener Pinheiro, dos graduandos Agnes Vilseki, Bianca Pasetto, Fábio Thibes, William Manfroi e das egressas Carla Abrãao e Érica Ignácio do Curso de Bacharelado em Cinema e Vídeo, da UNESPAR/Campus de Curitiba II / FAP. Este projeto ocorrido entre julho de 2013 e agosto de 2014, ofereceu aos graduandos e egressos do referido Curso, a possibilidade de participar de um projeto de extensão voltado para a capacitação de Professores da rede estadual de ensino da cidade de Curitiba, em especial de Artes e Língua Portuguesa, para o uso educativo do Cinema Brasileiro.  A primeira etapa do Projeto de Extensão Cinema Brasileiro na Escola – Retrospectiva Histórica do Cinema Brasileiro –, sob minha orientação e do Prof. Doutorando Fábio Pinheiro, ocorreu no segundo semestre de 2013, com as seguintes atividades:

⇒ 17 de outubro: Cinema brasileiro – origens e pioneiros. A graduanda em Cinema, Agnes Vilseki, apresentou informações sobre o desenvolvimento do cinema no final do século XIX, com detalhes sobre as diversas tecnologias relacionadas à imagem e em movimento. Em seguida, abordou a chegada do cinema ao Brasil, os pioneiros, o circuito exibidor, os primeiros filmes e a chamada Era de Ouro, em que havia harmonia entre proprietários de cinemas e produtores de filmes.  ⇒ 23 de outubro: Vanguardas e Limite. A graduanda em Cinema, Bianca Pasetto, abordou sobre as vanguardas artísticas nas primeiras décadas do século XX e sua relação com um cinema mais voltado para a exploração do potencial da visualidade do que para o enredo literário. Em seguida falou sobre o filme Limite, de 1931, produção brasileira que teve apenas uma única exibição pública, gerando todo um mito sobre o filme.

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⇒ 31 de outubro: As tentativas de industrialização – anos 40 e 50. O graduando em Cinema, William Manfroi, esclareceu sobre os estúdios de cinema Atlântida e da Vera Cruz – tentativas de criar um cinema popular, industrial e nacional no Brasil, nas décadas de 1940 e 1950. A Atlântida, no Rio de Janeiro, popularizou a chanchada, gênero de comédia musical. A Vera Cruz, de São Paulo, queria ser uma espécie de Hollywood brasileira, com investimentos vultosos em equipamentos, técnicos e elenco, procurando criar narrativas nacionais com alto padrão de qualidade. ⇒ 06 de novembro: O Cinema Novo e a ruptura. A egressa do curso de Cinema e Mestranda em Letras pela UFPR, Érica Ignácio, apresentou uma análise do Cinema Novo, movimento que, no começo dos anos 60, em reação ao fracasso dos estúdios da Vera Cruz, em São Paulo, e à decadência da Atlântida, no Rio de Janeiro, criou um cinema autoral, artístico e experimental, voltado para a denúncia dos problemas sociais do Brasil. Destacando os principais filmes, cineastas e teóricos deste movimento, a exemplo de: Alex Viany, Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha. ⇒ 14 de novembro: Cinema Marginal. O graduando em Cinema, Fábio Thibes, refletiu sobre outro movimento importante do cinema brasileiro, o Cinema Marginal, que, diferente do engajamento estético-político do Cinema Novo, procurou uma expressão mais livre, urbana e por vezes irônica e debochada. Os filmes, ainda mantendo o experimentalismo, assumiam uma relação com o cinema de gênero. O trabalho aponta as quatro vertentes inerentes a este cinema, dentre elas: o precursor deste movimento, Ozualdo Candeias, o cinema da Boca do Lixo e a obra de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. ⇒ 20 de novembro: O retorno ao público e a Embrafilme – anos 70. A egressa do curso de Cinema, Carla Abrãao, enfatizou o papel do Estado, na época da ditadura militar, no apoio à produção, por meio da Embrafilme, que financiou boa parte da produção cinematográfica no período. Essa relação com o Estado não impediu que filmes polêmicos como Pra frente Brasil, que denunciava as torturas do regime militar, fossem produzidos. Também foram abordados exemplos de filmes nacionais que buscaram se reaproximar do público, buscando um modelo de comunicação popular diferente do adotado no Cinema Novo. ⇒ 28 de novembro: Anos 90 e o cinema da Retomada. Agnes Vilseki, Bianca Paseto e William Manfroi fizeram um balanço sobre a produção dos anos 90, conhecida pela crítica como Retomada. Trata-se do período após o lançamento de Carlota Joaquina (1995), filme que “retoma” uma relação com o público quando passa a circular no circuito e atrai mais

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de um milhão de espectadores. Este período, em que o cinema nacional é marcado pela diversidade de filmes e estilos – como o filme urbano, autoral, comercial, histórico –, encerra-se em 2003, com o sucesso de Cidade de Deus. ⇒ 04 de dezembro: O cinema contemporâneo. Carla Abrãao, Érica Ignácio e Fábio Thibes encerraram esta primeira parte traçando um panorama sobre a produção contemporânea. Foram apresentados dados sobre os filmes de maior circulação e bilheteria, as produções da Globo Filmes, os mecanismos de produção de filmes e as leis de incentivo. Também foi abordada uma produção mais autoral, que apresenta estética mais pessoal, na contramão dos filmes mais populares. A segunda etapa do Projeto de Extensão Cinema Brasileiro na Escola – Análise Fílmica –, sob minha orientação e do Prof. Drando. Fábio Francener Pinheiro, ocorreu no primeiro semestre de 2014, com as seguintes atividades: ⇒ 12 de fevereiro: Introdução à Análise Fílmica, realizada pelo Prof. Doutorando Fábio Francener Pinheiro, e a exibição do filme Brichos – A floresta é nossa, de Paulo Munhoz. ⇒ 20 de fevereiro: O Roteiro de cinema, análise após a exibição do filme O Palhaço, de Selton Mello, por Fábio Thibes. ⇒ 26 de fevereiro: Direção e autoria, análise após a exibição do filme O Som ao Redor, de Kléber Mendonça Filho, por William Manfroi. ⇒ 06 de março: A direção de fotografia fílmica, análise após a exibição do filme Abril Despedaçado, de Walter Salles, por Agnes Vilseki. ⇒ 12 de março: Direção de arte em cinema, análise após a exibição do filme Durval Discos, de Anna Muylaert, por Carla Abraão. ⇒ 27 de março: A montagem fílmica, análise após a exibição do filme Lisbela e o Prisioneiro, de Guel Arraes, por Bianca Pasetto. ⇒ 02 de abril: O som em cinema, análise após a exibição do filme Tropa de Elite, de José Padilha, por Érica Ignácio. ⇒ 10 de abril: Produção de cinema – o realismo no cinema, análise – por mim realizada – após a exibição do filme São Bernardo, de Leon Hirszman. A terceira etapa do Projeto de Extensão Cinema Brasileiro na Escola – práxis docente – ocorreu no primeiro semestre de 2014:

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⇒ Entre maio e julho, os professores da rede estadual de ensino, que participaram das etapas acima, promoveram em escolas da cidade de Curitiba, o ensino do Cinema Brasileiro. A quarta etapa do Projeto de Extensão Cinema Brasileiro na Escola – Seminário voltado aos professores da rede pública de ensino, da cidade de Curitiba, Paraná – realizada em agosto de 2014, contemplou: ⇒ Síntese dos textos que compõem o livro Cinema Brasileiro na Escola: pra começo de conversa, por parte de seus autores, dentre eles, docentes, acadêmicos e egressos do Curso de Cinema e Vídeo, da UNESPAR/Campus de Curitiba II / FAP. ⇒ Apresentação da reflexão sobre a práxis de ensino do Cinema Brasileiro por parte dos professores participantes do curso, junto às escolas públicas de ensino. Neste diapasão, este livro, é composto por capítulos escritos pelos professores orientadores do Projeto de Extensão Cinema Brasileiro na Escola, pelos graduandos e egressos do Curso de Bacharelado em Cinema, selecionados para compor a equipe do referido Projeto, como também, pelos autores que trazem contribuições à temática deste livro, dentre eles: ⇒ A hora da estrela: tessituras entre literatura, cinema e televisão, do Prof. Dr. Acir Dias da Silva – um estudo do seriado “Cena aberta: a magia de contar uma história”, dirigido por Jorge Furtado, Guel Arraes e Regina Casé, baseado no romance A hora da estrela de Clarice Lispector, que busca evidenciar a flexão dos discursos presentes no seriado, no romance e no filme de Suzana Amaral. ⇒ Aruanda de Linduarte Noronha: do reconhecimento ao pensamento, do documentarista e Prof. Dr. Eduardo Tulio Baggio – um diálogo entre a compreensão crítica da importância do filme Aruanda (1960), de Linduarte Noronha, e as ideias do diretor enquanto proposições criativas, visando demonstrar a relevância e a originalidade de seu pensamento humanista/ realista no cinema brasileiro. ⇒ Brichos: uma experiência de realização audiovisual e construção de franquia, do cineasta e Doutorando Paulo Munhoz, diretor desse longa que foi o vencedor do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2013, na categoria melhor filme de animação. Neste texto, Munhoz apresenta, resumidamente, o pro-

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cesso de criação da turma de personagens Brichos, bem como exemplifica o método de trabalho da produtora Tecnokena, analisando seu método de criação e produção dos filmes Brichos 1 e Brichos – A Floresta é nossa e Brichos 2. ⇒ Ciclos regionais no período mudo, da Profa. Dranda. Solange Straube Stecz – um panorama geral da produção regional de cinema, no Brasil, durante a segunda fase do cinema brasileiro (1920/1930), de acordo com a conceituação de Paulo Emilio Salles Gomes. Relato das principais experiências da produção de filmes de enredo e “naturais”, nos chamados Ciclos Regionais, bem como seus mecanismos de produção e difusão. ⇒ Entre o som e o silêncio: um ensaio sobre o que ouvimos e o que não ouvimos, do sound designer e Dr. Ulisses Galetto – sobre questões relativas à utilização do som como ferramenta narrativa em produções audiovisuais e ao aprimoramento das técnicas de edição e mixagem. Galetto analisa no texto os caminhos do desenho de som para cinema e TV e seu impacto no sistema produtivo audiovisual, tendo como referência os filmes Cidade de Deus (2002), Tropa de elite II: o inimigo agora é outro (2010) e O som ao redor (2012). O prefácio e a revisão dos textos que integram este livro são do crítico e professor de cinema, José Carlos Avellar. Com a publicação do livro Cinema Brasileiro na Escola: pra começo de conversa, espera-se contribuir com conhecimentos sobre a influência do texto e do contexto na produção do Cinema Brasileiro, com atividades pedagógicas com o Cinema Nacional, visando ao desenvolvimento do senso crítico e o enriquecimento cultural dos estudantes da Educação Básica. Espera-se, também, a criação de uma resistência à colonização cultural advinda do cinema estrangeiro, que mais do que interferir no modo de ser e de agir das pessoas, inibe o olhar para o Cinema Brasileiro pela sua própria gente e, consequentemente, inibe o olhar à identidade cultural de seu país.

Salete Paulina Machado Sirino Coordenadora do Projeto de Extensão Cinema Brasileiro na Escola Vinculado ao Programa de Extensão Universidade Sem Fronteiras SETI/PR

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01 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A ANÁLISE DE FILMES E SEU POTENCIAL PARA A ATIVIDADE DOCENTE Fabio Luciano Francener Pinheiro

Toda manifestação do espírito humano, seja um quadro, escultura, música, livro, peça de teatro ou um filme, pode ser apreciada em pelo menos dois níveis. O mais básico e comum envolve o contato direto com a obra. Admiramos uma paisagem ou o retrato a óleo de um grande mestre em livros ou em uma exposição; emocionamo-nos com a leitura de um romance; aplaudimos o desempenho emocionante de um ator; entregamo-nos ao enredo de um filme no escuro da sala de cinema. Ou, mais direto e simples, estamos atentos ao último capítulo da telenovela. Mais ainda, não percebemos o tempo passar apreciando nossa música preferida no ônibus. Estes exemplos cotidianos revelam que temos uma dimensão bastante pessoal no contato com estas manifestações. Um contato certamente muito subjetivo, que traz a história de vida do ouvinte, leitor, espectador, sua experiência prévia com outras obras do mesmo porte, seu estado emocional naquele momento do contato, seu interesse, atenção e disposição para a entrega – a ficção, por exemplo, solicita uma espécie de pacto silencioso entre o universo inventado e o seu receptor. Não há nada de errado com esta configuração entre sujeito e obra. Podemos muito bem nos divertir, passar o tempo, aprender e nos comover com uma obra sem conhecer suas regras internas de funcionamento, a história de suas formas e os códigos que a regulam. Mas alguns de nós ultrapassam esta linha, por interesse, paixão ou necessidade. Daí, entramos em outro modo de envolvimento com a obra: naquele que assimila a fruição, mas que, no momento seguinte, pede certo distanciamento, ou seja, é um envolvimento que buscará compreender como determinado objeto artístico foi construído, seus processos de criação e, sobretudo, seus efeitos sobre nossas emoções.

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Há uma grande tradição de reflexão sobre as artes pictóricas, por exemplo, com livros e livros repletos de reproduções de grandes clássicos da história da pintura e informações sobre seus símbolos secretos e as técnicas usadas pelo artista. Há livros e métodos para se analisar um poema – sua métrica, por exemplo – e a caracterização dos personagens de um romance – por meio das pistas deixadas pelo autor nas construções linguísticas que emprega. Já a análise de um filme pode parecer uma atividade redundante ou até ingrata: qual a utilidade de pensar sobre o óbvio, uma vez que as imagens são o que são, ou seja, revelam uma realidade bidimensional de um certo universo criado para este fim? Por que pensar um plano que mostra uma criança correndo em um parquinho, se ele aparentemente significa exatamente isso: uma criança correndo em um parquinho? Em resposta a este tipo de indagação, pertinente, aliás, o semiólogo francês Christian Metz fez uma afirmação que já se tornou uma espécie de clichê nos estudos sobre linguagem e estética de cinema: “O filme é difícil de explicar porque é fácil de entender.” Metz desenvolveu uma extensa obra, na qual se dedica a compreender o cinema enquanto linguagem, e, portanto, como um sistema construído por códigos que precisam ser descobertos, extraídos e estudados, tornando a tarefa de “explicar” o filme uma espécie de investigação que ultrapassa a obviedade da imagem do filme para penetrá-la em sua constituição mais profunda. O outro motivo que torna essencial a tarefa de analisar um filme é sua própria popularidade, sua onipresença na sociedade contemporânea, ela mesma pautada – em níveis assustadores – por esta relação com simulacros ou cópias de suas ações e seres. Vivemos cercados de imagens, em um mundo ultrassaturado de anúncios de produtos e serviços nas emissoras de televisão – programas, documentários, noticiários, transmissões esportivas, telenovelas –, e de filmes em exibição nos cinemas, na televisão, no computador, tablet ou celular, em depósitos de imagens on-line, disponíveis 24 horas por dia em qualquer lugar do mundo conectado a internet. Somos a civilização da imagem, habitamos um mundo-tela em que tudo se dá a ver a um ponto tal, que já temos dificuldades para discernir o que é real e o que é cópia. Dito de outro modo: temos uma dificuldade natural para pensar as imagens, pois elas são parte concreta de nossa experiência com o mundo. Sendo assim, como podemos refletir sobre algo tão acessível, evidente, presente, forte e poderoso em nossa existência?

CINEMA E EDUCAÇÃO

Não há uma única resposta para essas indagações. O que se pode colocar aqui é que a análise fílmica fornece oportunidades muito ricas para o desenvolvimento de atividades com estudantes, sejam crianças ou adolescentes no ensino médio. Por trazer incorporados de forma empírica alguns códigos básicos de linguagem, obtidos, sobretudo, no contato com filmes, comerciais de TV, telenovelas e games, o estudante traz um terreno muito fértil para refletir sobre qualquer obra audiovisual. O que se coloca ao docente, nesse caso, é o estímulo a um comportamento crítico, o papel de um facilitador, incumbido de conduzir o aluno a um aprofundamento desse fenômeno tão presente em sua vida, e construindo através disso sua visão crítica de mundo.

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Neste processo entra o que se conhece por análise de filmes, que nada mais é do que um processo de percepção mais atenta do funcionamento do cinema enquanto linguagem e dos códigos que constroem o filme. Ou seja, trata-se de um processo de revelação da ordem de construção do que foi propositalmente construído para não ser percebido à primeira vista, exigindo, assim, um olhar mais atento ao filme, uma atitude mais crítica e reveladora de determinados efeitos que o cinema cria sobre nós. Não existem métodos universais para se analisar um filme, existem instrumentos, técnicas que podem auxiliar o estudante a observar o filme com mais atenção. Trata-se de abordar a estrutura interna do filme e perceber seus efeitos mais claramente, mediante a revelação da ordem de construção de suas combinações de imagens e sons. Este é o papel da análise de filmes. Um dos grandes desafios do analista é equilibrar o limite entre a sua competência como observador para os detalhes da construção fílmica e a sua vontade de articular os resultados da análise com a sociedade em que se insere o filme, estabelecendo, assim, um encontro entre os dados obtidos e uma dada visão de cultura. Há uma diversidade de obras e abordagens sobre o tema. VANOYE e GOLLIOT-LÉTÉ (1994) definiram uma metodologia de grande popularidade no meio acadêmico, quase uma espécie de manual sobre o assunto, expondo didaticamente análises que vão de um plano a uma sequência, descrevendo as dificuldades e limites da técnica. JULLIER e MARIE (2009) expõem em detalhes as ferramentas da análise fílmica aplicáveis ao plano, à sequência e a todo o filme, com exemplos de análises de trechos de filmes clássicos, modernos e pós-modernos e os atributos que definem estas categorias. MARIE, em parceria com AUMONT (2009), entende que a análise é um tipo específico de discurso sobre o filme, associado à crítica e à teoria, porém distinto dessas. Os teóricos defendem que a análise pode ser enriquecida com o apoio do referencial psicanalítico. A intenção da análise é explicar a obra avaliada para compreendê-la de forma mais precisa, recorrendo a ferramentas, como a descrição e decomposição das imagens em parâmetros de imagem – tamanho e angulação do plano, cor, lentes, composição etc. – e som – diálogos, som e trilha musical. O elevado grau de realismo envolvido em qualquer representação cinematográfica, somado a aspectos como movimento, cor e som, torna bastante complexa a tarefa de qualquer estudioso do filme. Afinal, o que resta ao estudioso, uma vez que os aparatos tecnológicos e narrativos do filme fornecem uma experiência tão completa, envolvente e “realista”? O que sobraria para observar de forma atenta e crítica, se este fluxo de imagens e sons é construído na maioria das vezes como um discurso fechado, acabado, que se quer naturalista, ao mesmo tempo em que procura apagar as suas marcas enquanto discurso? Justamente por ser fácil, óbvio e evidente é que o filme pode se tornar objeto de reflexão, à medida em que o observador mais atento e treinado consegue identificar os recursos mobilizados na construção de um universo cinematográfico. É importante ter em mente que qualquer filme, da narrativa clássica à autoral e ao

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chamado “filme de arte”, faz uso destes recursos. Na maioria das vezes, tais elementos passam despercebidos ao espectador, envolvido pelo poder da narrativa em sua experiência de consumidor de entretenimento. Pensar sobre a existência desses elementos pode ampliar a fruição do filme, uma vez que o observador passa a se deslocar da evolução narrativa para a construção da organicidade fílmica, percebendo, assim, toda uma riqueza e complexidade de elementos visuais, relações pictóricas e sonoras. O elemento básico do cinema, aquele mais direto e visível e que merece uma atenção mais aprofundada é o Plano. Pode-se definir plano de duas formas. Do ponto de vista da produção do filme – anterior, portanto, às operações de combinações conhecida como montagem –, é o trecho da película que será sensibilizada pela passagem de luz através da lente da câmera, desde o momento em que esta é acionada até ser desligada. Já enquanto filme finalizado, o plano é simplesmente o pedaço de filme entre dois cortes. Porém, esta definição apresentada aqui em sua concepção puramente temporal1, ao contrário do que sugere, nada tem de simplificadora. A maioria dos filmes fragmenta a representação de um espaço por meio da combinação de inúmeros planos de durações diversas. A própria adesão a um gênero solicita um determinado ritmo. Os filmes de ação valorizam a diversidade de planos curtos, intercalados em sequências ágeis, que geralmente cumprem a função de dinamizar uma determinada relação entre um perseguidor e um perseguido, em cima de variações. Os planos mais longos, na direção oposta, representam outras possibilidades expressivas. Em sua definição espacial, o plano faz o recorte de um pedaço do universo que pretende representar ou que se propõe a construir. Este recorte é o enquadramento, uma noção que o cinema toma emprestado da fotografia, que por sua vez a recebe da pintura. Portanto, ao direcionar o olhar criador do aparato técnico da câmera para o mundo, o cinema parte de todo um repertório, já consolidado e codificado na tradição pictórica ocidental. A grande novidade aí será a inclusão do movimento ao recurso do enquadramento.

1 Opto por esta abordagem do plano como célula básica do filme, lembrando que esta proposição não pode ser considerada única. Ao contrário, pode-se abordar a estética do filme começando pelo enquadramento, que é um recorte espacial relacionado ao plano. AUMONT, por exemplo, prefere falar de espaço fílmico, conceito que inclui tanto o enquadramento, quanto o plano em si. Outro aspecto ainda a ser enfatizado é que cada plano pode ainda ser decomposto em unidades menores, os fotogramas, sendo que 24 fotografias de uma ação correspondem a 1 segundo de filme. Portanto, todo plano, ainda que estático, em sua definição como fenômeno fotográfico, sempre estará em movimento.

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Credita-se à mobilidade do enquadramento – mas não apenas a ele – o fascínio que o cinema provocou na pintura e no teatro, ao ser reconhecido como arte autônoma. O termo “olhar sem corpo”, uma expressão do teórico Ismail Xavier, é bastante feliz para dar conta desta definição. Diferente do teatro, onde o espectador observa a cena de uma perspectiva única e permanente, a câmera ocupa todos os lugares possíveis e imagináveis, trazendo ao observador uma mobilidade privilegiada, impossível em outras artes. Aliás, o ponto de ruptura entre a representação teatral do princípio do cinema, que observava toda uma ação do ponto de vista da plateia, e o deslocamento da câmera para outras posições, mais próximas ou distantes da ação representada, marca verdadeiramente o nascimento da linguagem do cinema.

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O enquadramento, esta materialização no espaço do que o plano é no tempo, apresenta-se dentro dos limites de uma moldura, em uma escala. A base desta escala é o corpo humano. Os enquadramentos podem variar, inicialmente, da distância do observador – que se confunde com a câmera – em relação ao objeto ou ação observados. O observador-câmera pode estar tão próximo que nos apresenta detalhes da íris de um olho, ou pode apresentar uma paisagem de uma distância tão longe – o grande plano geral –, na qual mal se percebem as personagens, literalmente engolidas pela grandiosidade da paisagem. As aberturas de westerns são pródigas em enquadrar a paisagem sob esta perspectiva.

Terra estrangeira (Direção: Walter Salles e Thomas. 1996): o rosto humano observado de perto, em um close-up que torna o personagem mais próximo de nós, ao mesmo tempo em que valoriza o tom emocional da cena.

O personagem praticamente desaparece, engolido pela força do concreto ao fundo e pelo efeito do distanciamento da câmera: reforça-se a sensação de isolamento físico e emocional, associados ao protagonista. (O cheiro do ralo. Direção: Heitor Dhalia, 2007).

A terminologia dos enquadramentos é sempre polêmica, com termos diferentes dependendo da concepção - mais americana ou mais francesa. Entre estes dois

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exemplos extremos há diversos outros lugares que a câmera pode ocupar, mais perto ou mais distante dos personagens ou das ações que pretende retratar. Este poder de se aproximar ou se afastar do seu objeto foi saudado com entusiasmo por diversos teóricos do cinema, que viram no caso dos enquadramentos próximos uma espécie de acesso privilegiado a um conhecimento não perceptível aos limites do olhar humano. Na rápida descoberta de uma linguagem capaz de reproduzir a percepção natural que o ser humano tem das coisas, codificaram-se mecanismos que são associados à visão. Um enquadramento próximo revela profundo e íntimo interesse em relação ao objeto. A distância, ao contrário, revela indiferença ou se faz necessária para apresentar um número maior de elementos. Enquadrar um objeto não se limita à perspectiva frontal. Este “olhar sem corpo” que não conhece limites, pode estar acima ou abaixo em relação ao objeto que observa. Os enquadramentos que observam um personagem de cima para baixo – como câmera alta ou plongée – tendem a torná-lo emocionalmente menor ou fragilizado. Já o oposto, a câmera baixa, que mostra os personagens de baixo para cima – contre-plongée – dá á figura humana um determinado poder, que só existe nesta mobilização de um recurso de linguagem. Se a câmera se posiciona completamente acima dos personagens, configurando uma espécie de eixo de 90º em relação aos personagens, tem-se aí o que se convencionou chamar de “o olhar de Deus”, aquele que julga, lamenta e observa as ações humanas.

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A câmera desce ao nível do solo, mostrando o personagem ao mesmo nível moral e espiritual que ele habita neste momento do filme. (O cheiro do ralo)

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Zé do Burro, visto “de baixo para cima”: apesar do peso de sua missão, reforçado pela posição da cruz no enquadramento, ele ainda mantém sua fé, pois sua tarefa o torna maior que suas dificuldades. (O pagador de promessas. Direção: Anselmo Duarte, 1962).

Além das variações quanto ao posicionamento e ângulo da câmera, o cineasta tem ainda a possibilidade de alterar as relações entre o objeto de interesse e seu fundo, ao manipular o potencial artístico fornecido pelas lentes, seu foco e profundidade de campo2. Entre as várias possibilidades, destacam-se os planos que mostram um personagem em uma relação harmônica com o entorno, no qual vemos em detalhes tanto o personagem quanto os objetos do primeiro ao último plano da imagem. Por outro lado, o personagem pode estar em foco e o fundo desfocado, ou o oposto: o fundo revelado em detalhes nítidos e o personagem “borrado”, como se não pertencesse mentalmente aquele espaço ou como se naquele momento estivesse perdido e distante.

Exemplo de foco seletivo: o personagem de Linha de passe (Direção: Walter Salles e Thomas, 2008) cobra o pênalti que pode decidir seu futuro no futebol. Com as figuras de fundo desfocadas, temos acesso parcial ao resultado da cobrança, o que reforça a ambiguidade e a indeterminação do momento. Recurso no qual todos os objetos enquadrados, do primeiro plano ao fundo, estão em foco.

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Personagem de costas para a ação, e os demais propositalmente desfocados, revelando que ele não participa emocionalmente daquele momento. (Os famosos e os duendes da morte. Direção: Esmir Filho, 2009).

Buscando ainda associar a percepção natural à estética do filme, podemos lembrar dos movimentos no quadro. Os enquadramentos fixos tendem a concentrar a atenção em uma ação ou personagem por mais tempo, privilegiando uma expressão mais contemplativa ou mesmo permitindo a contemplação de um detalhe ou de um ambiente com mais tranqüilidade. Os enquadramentos móveis em suas diversas possibilidades – mais fluidos ou mais sujos, ao estilo documental, com o uso de câmera na mão –, por sua vez, acompanham, rodam, observam mais ativamente uma ação, interrogam. O movimento da câmera corresponderia aos movimentos humanos como subir, descer, escalar, correr. Há uma tendência na percepção humana a privilegiar tudo que está em movimento, em oposição ao que é estático. A codificação do cinema clássico soube se valer muito bem do enquadramento móvel ao criar movimento externo à ação do filme. O efeito que surge aqui é visivelmente artificial: observa-se uma ação fazendo a câmera se movimentar em torno dela, ou seja, acrescenta-se movimento onde este não existe. O resultado imediato desta atitude é o que o senso comum define como filme mais lento, dentro de uma lógica que favorece a exploração máxima do ritmo, por meio do movimento no registro ficcional, como recurso para tornar a observação mais agradável aos olhos de um consumidor de imagens condicionado aos cortes televisuais. CINEMA E EDUCAÇÃO

É importante lembrar ainda que qualquer observação crítica sobre o enquadramento deve levar em conta uma relação entre o visível e o não visível, ou seja, entre o que se vê nos limites da tela e o que não se vê. Esta relação entre o olhar da câmera, mediado pela tecnologia, e o recorte de um pedaço da realidade, é a própria base da ilusão sobre a qual o cinema se consolidou como grande veículo narrativo. Para cada recorte na tela, há outro espaço não mostrado, não enquadrado, o que apenas reforça a noção de que todo filme, narrativo, documental, publicitário, artístico, de vanguarda, é e sempre será um discurso, uma construção com um enunciador que escolhe – ainda que busque ocultar – as marcas de sua existência.

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A riqueza visual do plano envolve o arranjo dos elementos no interior dos limites de um enquadramento, por meio da composição. A forma como um cineasta dispõe os personagens para a câmera abre uma riqueza de significações. Exemplo disso são os personagens isolados de um grupo, unidos em uma massa disforme, posicionados em um canto do cenário, dispostos em pares ou trios, à esquerda ou à direita do plano. O jogo de formas, linhas e volumes do espaço enquadrado permite sugerir tensões, conflitos, relações harmoniosas, estados mentais e emocionais. Os filmes de Antonioni estão repletos de exemplos assim. Nesse caso, o cineasta age como um pintor: ambos cineasta e pintor devem preencher um espaço partindo de critérios formais e estéticos.

Composição quer centraliza o personagem no quadro, em referência ao Cristo Redentor. (Terra estrangeira. Direção: W Salles e D. Thomas, 1996).

Pai e filho posicionados ao lado de uma árvore com raios de sol ao fundo. O plano revela como será tensa e longa a tentativa de entendimento entre ambos, que ainda não conseguem perceber os erros do passado. (Gonzaga – de pai para filho. Direção: Breno Silveira (2012).

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REFERÊNCIAS AUMONT, Jacques. A Estética do Filme. Campinas: Papirus, 1995. ________, Jacques e MARIE, Michel. A análise do filme. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2009. JULLIER, Laurent e MARIE, Michel. Lendo as imagens do cinema. São Paulo: Editora Senac, 2009. MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2003. METZ, Christian. A Significação no Cinema. São Paulo: Perspectiva, 1974. MACHADO, Arlindo. Pré-Cinemas e Pós-Cinemas. Campinas: Papirus, 2002. XAVIER, Ismail. O olhar e a cena – melodrama, Hollywood, cinema novo e Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. VANOYE, Francis e GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus, 1994.

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02 ­CINEMA BRASILEIRO: DO NASCIMENTO AOS CICLOS REGIONAIS Agnes Cristine Souza Vilseki1

No final do século XIX, inventores de diferentes lugares do mundo trabalhavam no intuito de desenvolver e aperfeiçoar aparelhos capazes de captar e projetar imagens em movimento. Não houve um único inventor do cinema e os aparelhos não surgiram repentinamente em um só lugar. Ainda assim, convencionou-se dizer que o nascimento do cinema se dá no dia 28 de dezembro de 1895, quando ocorre a exibição pública, paga e com êxito dos irmãos Lumière, no subsolo do Grand Café em Paris, com a sua invenção chamada cinematógrafo. O cinema surge como mais um meio de entretenimento em meio a outras formas de diversão popular da época, apresentado em espetáculos de variedades2. Segundo GOMES (1980, p.39), a primeira exibição pública que se tem notícia no Brasil aconteceu em oito de julho de 1896 no Rio de Janeiro, então capital federal, na Rua do Ouvidor nº 57, utilizando um aparelho denominado Omniographo. Não se sabe se nessa primeira exibição foi utilizada, de fato, a invenção dos irmãos Lumière ou uma máquina similar, tampouco se sabe quem foi o responsável por trazer a invenção ao Brasil. Mas o que ficou registrado nos jornais da época foi o entusiasmo dos brasileiros diante da atração, fazendo com que a sala funcionasse de 1

Estudo orientado pelo Professor Doutorando Fábio Luciano Francener Pinheiro.

Os filmes deste primeiro cinema não tinham o objetivo de contar histórias, mas, sim, chamar a atenção, como explica Flávia Cesarino Costa, em História do Cinema Mundial. Não apresentando características narrativas, é considerado um cinema de “mostração”. Segundo a autora, as características desses filmes são: composição frontal e não centralizada dos planos, posicionamento da câmera distante da situação filmada, falta de linearidade, personagens pouco desenvolvidos e os planos abertos e cheios de detalhes, povoados por muitas pessoas e várias ações simultâneas.” (COSTA, 2009, p.23) 2

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manhã até a noite por algumas semanas e, desde então, passaram a ocorrer apresentações com outros aparelhos cinematográficos em outras salas instaladas no Rio de Janeiro, Petrópolis, São Paulo e outras cidades importantes. A primeira sala fixa de cinema no país é o Salão de Novidades, que ficou conhecido como Salão Paris no Rio, inaugurada em 31 de julho de 1897, na Rua do Ouvidor nº 141, tendo como proprietários Paschoal Segreto e Cunha Sales. Paschoal Segreto, imigrante italiano que veio para o Brasil ainda adolescente, começou seus negócios com a distribuição de jornais no Rio de Janeiro, seus irmãos Gaetano, Afonso e Luis trabalhavam nos negócios de Paschoal. Segundo BERNARDET, Segreto dominava a Praça Tiradentes com seu carro chefe, a Companhia de Operetas Mágicas e Revista do Teatro São José, tendo se tornado importante empresário no ramo do entretenimento. “Segreto foi provavelmente um dos reis do espetáculo e da noite carioca, que reinou durante uns vinte anos, e seu espetáculo leve e alegre incluía tudo, inclusive cinema.” (BERNARDET, 2008, p.85) Entre seus empreendimentos estava o Salão de Novidades, que oferecia divertimentos eletrônicos, novidades tecnológicas e o cinematógrafo como principal atração. Para manter o repertório de “vistas animadas” – como eram chamados os filmes na época – interessante e atualizado, enviados de Paschoal viajavam frequentemente à Europa ou aos Estados Unidos com o objetivo de trazer novos filmes e equipamentos mais avançados.

De qualquer forma, em janeiro de 1899, a exibição de atualidades, filmagens de assuntos brasileiros já era frequente no Salão Paris. A família Segreto havia se tornado um das principais exibidoras e, praticamente, a única produtora do país até 1903. Como aconteceu em todo o mundo, também no Rio de Janeiro o cinema é apresentado em meio a atrações diversas e encontra terreno fértil, expandindo as alternativas de divertimento barato para a população. Nos primeiros dez anos, pouco aconteceu e praticamente não houve desenvolvimento do Cinema no Brasil, tanto em relação à produção quando à exibição de fitas estrangeiras. Existiam poucas salas de exibição, devido à precária distribuição de energia elétrica. As poucas salas fixas que existiam, concentravam-se no Rio e São Paulo e ainda assim, tinham suas exibições prejudicadas pela falta de eletricidade. A regularização da distribuição de energia elétrica no Rio a partir de 1907 resultou em profundas transformações no cinema carioca, levando a um verdadeiro desenvolvimento do comércio cinematográfico. Já nos primeiros meses desse ano mais de vinte salas são instaladas na Avenida Central e muitos proprietários pas-

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Voltando de uma dessas viagens, Afonso Segreto a bordo do navio Brèsil, faz as primeiras imagens em terras brasileiras, “vistas” da Baía de Guanabara. Era 19 de junho de 1898, diz-se que nesse dia nasceu o cinema no Brasil. A partir de então, filmagens de eventos cívicos, festas públicas, figuras políticas passam a ser frequentes, além do registro de pontos importantes da cidade como a Igreja da Candelária, o Largo do Machado, a Rua do Ouvidor. É desconhecido, contudo, o dia da primeira exibição dessas vistas feitas pelos Segreto.

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sam a produzir filmes, o que resultou no desenvolvimento da produção local, no aparecimento de técnicos, em sua maioria estrangeiros – principalmente imigrantes italianos –, e nacionais “improvisados”. Iniciou-se, assim, um período que ficaria conhecido como a Bela Época do Cinema Brasileiro. A BELA ÉPOCA (1907-1911) Este período, ao qual GOMES (1980) se refere como o “a idade do Ouro do Cinema brasileiro”, não representa o apogeu técnico ou artístico do cinema no país, mas o sucesso da articulação entre produtores, exibidores e público. Seria a época de ouro de um cinema primitivo, mas que de alguma forma relacionou-se com o espectador. Importante enfatizar que embora esse período faça referência ao cinema brasileiro como um todo, o movimento foi essencialmente carioca, tanto na produção quanto na exibição. Até então, os filmes aqui produzidos eram de atualidades e registros de paisagens, chamados “naturais”. O primeiro filme de enredo ou ficção, chamado “posado” só surgiu em 1908, Os Estranguladores. Contava a história de um crime que acontecera no Rio de Janeiro em 1906, inaugurando um gênero que seria bastante explorado pelo cinema da época3. Além deste tipo de filme, buscou-se produzir outros gêneros no país: melodramas tradicionais, dramas históricos, comédias, filmes de caráter patriótico, religioso e carnavalesco. Mas, ao lado dos filmes criminais, foram principalmente os filmes cantantes e os filmes de revista que tiveram maior adesão do público. O primeiro filme desse gênero, Os Estranguladores, dirigido por Antonio Leal e produzido por José Labanca, foi inspirado no episódio em que os irmãos Paulino e Carluccio Fuoco são estrangulados por Jerônimo Pegatto, Eugenio Rocca, Carletto e José Epitácio. Um cinegrafista de Pachoal Segreto filmou os criminosos na Casa de Detenção, e em 1906 sua empresa apresenta o documentário Rocca, Carletto e Pegatto na Casa de Detenção. Foi um sucesso de público, o que se repete em 1908 com o filme posado de Leal; calcula-se que tenha sido exibido mais de 800 vezes. Era um filme longo, comparando com outros do período, tinha 700 metros, duração de aproximadamente quarenta minutos e era composto por dezessete quadros4. 3 Aproveitando-se de crimes famosos que ocorreram na época, os filmes criminais reconstituíam episódios que habitavam o imaginário popular. Além de os espectadores já saberem a história previamente, bastante explorada pela imprensa, acompanhando, assim, a história com facilidade, o uso de uma narrativa que se apropriava da reportagem jornalística, familiar aos espectadores desses filmes, e de um interesse particular da população por esse tipo de notícias garantiam a adesão dos espectadores e o sucesso de público. 4 Cada quadro indicava uma cena e elaborava a trajetória do crime: 1. Trama do Crime. 2. Na Avenida Central. 3. Embarque na Prainha. 4. Na Ilha dos Ferreiros. 5. Primeiro Estrangulamento. 6. A procura da pedra. 7. Desembarque em São Cristóvão. 8. O assalto. 9. Segundo estrangulamento. 10. Divisão das jóias. 11. A pega. 12. O informante. 13. Prisão do primeiro bandido. 14. Nas matas de Jacarepaguá. 15. Prisão do segundo bandido. 16. Dois anos depois. 17. Na prisão.

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Surgiram outros filmes no gênero criminal que se valeram de crimes famosos da época, alguns tinham até mais de uma versão. A Mala Sinistra no Rio e O Crime da Mala em São Paulo retratavam o mesmo episódio, o assassinato de Elias Faraht em São Paulo por um de seus ajudantes que teria se apaixonado por sua mulher. Labanca e Leal, fundadores da Photo Cinematographia Brasileira, são os nomes mais importantes deste período em relação à produção nacional. Outro gênero de sucesso na Bela Época foram os filmes cantantes ou falantes, no qual Guilherme Cristovão Auler e Francisco Serrador foram os principais representantes. Eram de início, filmes curtos, onde se filmava os atores apresentando canções ou árias de óperas conhecidas. Durante a exibição os atores diziam seus textos e cantavam atrás da tela de forma a acompanhar os filmes. Atuavam nos cantantes nomes conhecidos do teatro como Claudina Montenegro, Antonio Cataldi, Santiago Pepe, Ismênia Mateus e Eduardo das Neves. O fato de ter figuras conhecidas e queridas do público pode ter ajudado a garantir o sucesso desse gênero. Entre os muitos títulos produzidos, estão: A Viúva Alegre, O Conde de Luxemburgo, A Geisha e Sonho de Valsa.

Os pioneiros deste cinema foram, em sua maioria, estrangeiros, principalmente imigrantes italianos que compunham o quadro técnico. Os artistas, intérpretes e cantores vinham do teatro ou do circo, sendo também muitos estrangeiros em turnê pelo país. Segundo GOMES, esse cinema nacional dos primeiros tempos, mudo e primitivo, de qualidade inferior ao produto importado, que teve seu momento de glória no encontro bem sucedido com o público, só pode acontecer devido a inexperiência do espectador: “deviam aparecer com maiores atrativos aos olhos de um espectador ainda ingênuo, não iniciado no gosto pelo acabamento de um produto cujo consumo apenas começara.” (GOMES, 1970, p.89). E apesar desse sucesso momentâneo, o cinema era visto pela burguesia como entretenimento para crianças e pessoas de pouca cultura, sendo que muitas salas eram improvisadas e sem condições de higiene. 5 Provenientes do teatro, as revistas “de fim de ano” faziam uma espécie de resumo do ano, retratando atualidades, acontecimentos e figuras importantes no contexto político e social.

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Mais uma vez, o cinema nacional apropriou-se de um formato de entretenimento que já havia conquistado o público, criando um gênero de filmes que teve bastante sucesso: os Filmes de Revista5. Inspirado nas revistas de Ano ou Revistas de Fim de Ano, o filme de maior êxito deste segmento foi Paz e Amor, produzido por Auler e filmado por Alberto Botelho, com mais de 1000 exibições desde sua estréia em março de 1910. Paz e Amor tinha personagens inspirados em pessoas reais da cena política do país daquele momento, o próprio título surgiu a partir do discurso de posse de Nilo Peçanha no qual ele proclamava: “Farei um governo de paz e amor”. O então presidente era também personagem, sob o anagrama OLIN, “El Rei Olin”. O matuto Tibúrcio da Anunciação, personagem muito popular criado pela Revista Careta, tinha o papel de conduzir a narrativa e apresentar os quadros, comentando e criticando os acontecimentos. Dentro deste universo alegórico, a revista tinha um caráter crítico em relação ao governo, suas instituições, a polícia, o funcionalismo e a imprensa.

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Ainda sem a característica de “sétima arte” ou de produto cultural específico, como é programado e fruído na sociedade carioca a partir da década de 1920, o cinema é uma atração, em meio a shows de variedades, como espetáculo “gratuito” em bares e cabarés ou sob patrocínio em praças públicas, ou ainda nas novas salas, acompanhado por piano ou por um pequeno conjunto camerístico. Cabarés baratos, chopps e cinemas se avizinham da Avenida Central, então rebatizada de Rio Branco, da Lapa e da Praça Tiradentes. (MOURA, 1987, p.31).

Depois do auge de produção em 1909/10, com mais de cem filmes por ano, em junho de 1911 era exibido o último filme cantante, A Dançarina Descalça, de Auler e já se iniciava o período de decadência desse ciclo bastante produtivo do cinema brasileiro, alterando profundamente o esquema de produção-exibição que havia sido instalado a partir de 1908. 1911 é o ano da ruptura da produção carioca, é o momento em que empresários estrangeiros, representantes da indústria cinematográfica chegam ao Rio buscando possibilidade de investimentos. O filme americano estava se popularizando e aos poucos se tornava predominante nas salas de cinema, caindo no gosto do público e adquirindo, inclusive, um caráter civilizatório e ideológico através dos seus enredos e personagens. Em 1912, é produzido apenas um filme de enredo no Rio de Janeiro, que não chega a ser exibido, A Vida de João Cândido, proibido pela censura por narrar a vida do cabo responsável pela Revolta da Chibata. No dia 29 de junho desse mesmo ano, é fundada a Companhia Cinematográfica Brasileira, tendo Francisco Serrador6 na gerência, associado a uma indústria mantida com o capital estrangeiro. Essa empresa compra salas de exibição em todo o país e organiza a exibição em função de filmes americanos. As empresas nacionais começam a fechar, impossibilitadas de competir com o produto estrangeiro de qualidade técnica muito superior, que ainda contava com um forte esquema de divulgação, com anúncios na imprensa, matérias pagas e publicações específicas. Em “Pequeno cinema antigo”, texto de 1969, GOMES comenta o que foi o fim deste período: . Essa idade do ouro não poderia durar, pois sua eclosão coincide com a transformação do cinema artesanal em importante indústria nos países mais adiantados. Em troca do café que exportava, o Brasil importava até palito e era normal que importasse também o entretenimento fabricado nos grandes centros da Europa e da América do Norte. Em alguns meses o cinema nacional eclipsou-se e o mercado cinematográfico brasileiro, em constante desenvolvimento, ficou inteiramente à disposição do filme estrangeiro. (SALLES GOMES, 1980, p. 29).

6 Francisco Serrador, imigrante espanhol, iniciou suas atividades cinematográficas fazendo exibições de filmes em cidades do interior. Foi responsável pela primeira sala fixa de São Paulo, onde exibia inicialmente filmes cariocas e, posteriormente, suas próprias produções.

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A maioria dos produtores e técnicos volta, então, às suas atividades de origem, no teatro, jornal, e mesmo Paschoal Segreto, que se tornara um dos maiores produtores/exibidores, passa a se dedicar cada vez mais ao teatro. A produção existente depois desse período é de documentários e jornais cinematográficos, com os quais, os ainda persistentes como Antonio Leal e Paulino e Alberto Botelho desenvolvem suas atividades, eventualmente fazendo algum filme de enredo. OS CICLOS REGIONAIS Os ciclos regionais foram pequenos surtos cinematográficos, onde se registrou alguma produção em diferentes cidades do Brasil nas décadas de 10 e 20, fora do eixo principal que era o Rio de Janeiro e São Paulo. Através do esforço individual ou de um pequeno grupo de pessoas com habilidades manuais e técnicas, tentava-se produzir e exibir filmes nacionais. Algumas das cidades onde se registrou atividades foram: Cataguases, Pouso Alegre, Guaranésia, Belo Horizonte, Campinas, Recife, Porto Alegre e Pelotas. De acordo com AUTRAN em seu artigo “A noção de “ciclo regional” na historiografia do cinema brasileiro”, a ideia de ciclo pode ser questionada, uma vez que ciclo implica o início e o fim de algo, no caso, o surgimento e consequente fim da produção em determinadas regiões. O autor aponta que a ideia de ciclo só pode ser vinculada a filmes de ficção, pois em relação à produção de documentários, em alguns lugares, ela é interrupta.

Já em 1913, tem-se notícia de um filme posado realizado por Francisco Santos em Pelotas, Rio Grande do Sul. Chamava Crime de Banhados, a história narrava como lutas políticas na região resultaram na morte de uma família inteira na Fazenda de Passo da Estiva. O projeto de Francisco Santos era ambicioso, a fita com mais de duas horas de duração teve sucesso nas exibições em Pelotas e outras cidades do Estado. Francisco Santos realizou no mesmo ano, dois outros filmes de média-metragem: O Álbum Maldito e Os óculos do vovô.  Somente em 1925 voltou-se a produzir filmes de enredo no Rio Grande do Sul. Desta vez é Porto Alegre que concentra a produção, tendo Eduardo Abelim e Eu-

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Estes ciclos regionais não apresentam uma unidade, ainda que compartilhem algumas características, não existe ponto comum em relação a tema e gênero, mas pode-se perceber uma tendência ao melodrama com forte influência dos filmes americanos em muitos posados desse período, desde Campinas, passando pelo cinema de Humberto Mauro até o filme de estréia do ciclo de Recife, Retribuição. As condições de produção eram geralmente precárias contando com a colaboração da família e patrocínio de empresários locais. Esses homens de cinema não tinham uma formação específica e eram normalmente imigrantes italianos com habilidades manuais e técnicas, certamente inventivos que chegavam a aperfeiçoar equipamentos e até mesmo criar invenções. Mas a questão da dificuldade de distribuição e exibição, mais do que a precariedade na produção, foi definitiva para o fim do todos os ciclos regionais.

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gênio Kerrigan como principais representantes deste ciclo que durou até 1933. Este último, tem um papel interessante nos ciclos regionais aparecendo em diferentes cidades, fazendo-se passar por estrangeiro, e atuando como diretor em alguns filmes do período. Neste ciclo Kerrigan é responsável por Um drama nos pampas (1927),  Amor que  redime  de 1928 (sendo considerado o mais importante do ciclo) e  Revelação (1929). Mas o pioneiro é Abelim, que inicia em 1925 as filmagens de Em defesa da irmã (1926), história com inspiração nos filmes de cowboys americanos. Em  1927 lança Castigo do Orgulho, que parece ter sido o único entre os seus três melodramas a fazer algum sucesso, e em 1932, Pecado da Vaidade. Realiza ainda o documentário A Avançada das Tropas Gaúchas,  no qual ele acompanha a expedição ferroviária do exército quando estoura a revolução de 30, entre outros filmes de publicidade.  O Estado de Minas Gerais foi bastante importante para os ciclos regionais, com focos de produção na capital e algumas cidades do interior. É neste contexto que surge Humberto Mauro, figura promissora do ciclo de Cataguases e que traria relevo para o cinema brasileiro.  Em Pouso Alegre, a figura central responsável pela realização cinematográfica foi Francisco de Almeida Fleming. Nascido em Ouro Fino, é em Pouso Alegre que realiza a maior parte de seu trabalho, tendo começado gerenciando um sala de cinema que pertencia a sua família. Depois de adquirir uma câmera e laboratório passa a filmar “naturais”, seu primeiro filme é um documentário sobre Pouso Alegre. Seus filmes de enredo são: In Hoc Signo Vinces, de 1922 com temática bíblica, Paulo e Virgínia, de 1923, adaptado do livro de Bernardin de Saint-Pierre. O filme fez bastante sucesso em Pouso Alegre e foi exibido no Rio de Janeiro, com um resultado bastante positivo. Seu último filme “posado” é Vale dos Martírios, de 1924, no qual ele optou por narrar uma história brasileira com elementos e características regionais, diferente das anteriores. Atuou posteriormente em laboratórios do Rio e São Paulo e dedicouse a realização de documentários.  Os pioneiros em Guaranésia são os irmãos Carlos e Américo Masotti, que depois de terem aprendido fotografia com Igino Bonfioli em Belo Horizonte, compraram uma câmera e passaram a filmar “naturais” da região, paisagens e fazendas. Seu primeiro trabalho é o documentário Guaranésia Pitoresca, de 1924, dirigido por Carlos e fotografado por Américo. Teve  sucesso em Guaranésia e, embora não tenha sido exibido comercialmente, possibilitou que os irmãos conseguissem apoio na cidade e pudessem fundar a Masotti Film. Em seguida, Eugênio Kerrigan – já citado no ciclo de Porto Alegre – procura os irmãos Masotti e propõe a realização de um longa-metragem. Acatada a ideia, em 1925 Corações em Suplício é produzido em Guaranésia com roteiro e direção de Kerrigan, produção de Carlos e fotografia de Américo. O filme é exibido em Guaranésia e em seguida no Rio de Janeiro, onde recebe uma crítica razoável da Revista Selecta, que faz restrições em relação à direção de Kerrigan e à interpretação dos atores, mas elogia a fotografia de Américo e acaba por recomendar o filme.  Cataguases foi a cidade mais importante no ciclo mineiro, tanto por suas produções quanto pela revelação da figura de Humberto Mauro. É no encontro com o

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italiano Pedro Comello, através da fotografia que Humberto Mauro se inicia no cinema. Em 1925, com uma câmera Pathè-Baby eles filmam o curta-metragem  Valadião o Cratera, história de um bandido que assalta uma mocinha e a leva para uma pedreira.  Em seguida fazem  Os três irmãos  e fundam a  Phebo  Sul América  Film, com investimentos de empresários e fazendeiros locais. A primeira produção da Phebo é  Na Primavera da Vida (1926) com roteiro e direção de Humberto Mauro, uma história de contrabando onde a heroína e o mocinho têm um final feliz. O filme faz sucesso em Cataguases e cidades da região, é exibido no Rio de Janeiro para jornalistas da Cinearte, recebendo duras críticas. 

Confiávamos no nacionalismo e na tolerância das plateias, o que até hoje não me desiludiu. Em breve, porém, comerciantes e técnicos, verificamos o ledo engano: o filme nacional, monopólio estrangeiro, que avassala com os seus produtos o mercado brasileiro, de ponta a ponta. Obtivemos o lançamento de Brasa Dormida,  pela Universal, e o de Sangue Mineiro  através da Urânia, mas rebaixando-nos à condição de pedintes. Veio o fracasso financeiro. À falta de lucros compensadores, a sociedade dissolveu-se. Sangue Mineiro deu remate ao Ciclo de Cataguases na história do cinema brasileiro” (VIANY, 1987, p.77).

Em 1932 as atividades da Phebo são encerradas, Humberto Mauro vai ao Rio de Janeiro a convite de Adhemar Gonzaga trabalhar na Cinédia. Posteriormente,

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Nesse período surgem revistas especializadas em cinema, com colunas sobre o cinema brasileiro. Ainda que muitas vezes o tratamento reservado ao cinema nacional fosse de desprezo, iniciam-se campanhas em seu favor. Principalmente através de Pedro Lima na Revista Selecta e Adhemar Gonzaga em Para Todos; e, mais tarde com ambos na Revista Cinearte. O papel dessas revistas especializadas é fundamental na formação de Humberto Mauro e para os ciclos regionais, possibilitando que realizadores de diversos lugares do Brasil tivessem algum contato com o que estava sendo feito em outras cidades do país. Adhemar Gonzaga e Pedro Lima foram figuras essenciais da década de 20, dando visibilidade tanto a cineastas das capitais quanto do interior, influenciando-os e até mesmo interferindo em seu trabalho.  Em 1927, Humberto Mauro e Pedro Comello iniciam as filmagens de Tesouro Perdido, mas devido a desavenças Comello se afasta e deixa a Phebo. Humberto Mauro aproxima-se de Adhemar Gonzaga e os efeitos desse contato  já  podem ser percebidos  neste filme que apresenta uma considerável melhora na construção de uma linguagem cinematográfica. Sobre Tesouro Perdido de Humberto Mauro,  GOMES (1980, p.62) declara:  “(...)  iniciou ele em 1927 a primeira carreira contínua, coerente e bela que o cinema do Brasil conheceu.” No terceiro longa-metragem de Humberto Mauro, Brasa Dormida (1927), as mudanças são significativas, com construções dramáticas mais complexas e menos letreiros, além da atuação do fotógrafo Edgar Brasil que agrega uma notável melhora na qualidade da imagem. O ciclo de Cataguases se encerra com Sangue Mineiro (1928), no qual Humberto Mauro apresenta um completo domínio da linguagem cinematográfica. Em relação ao fim da produção em Cataguases Humberto Mauro afirma: 

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veio a dedicar-se a realização de documentários no INCE, Instituto Nacional de Cinema Educativo. É considerado um dos grandes nomes do Cinema Brasileiro.  A capital  Belo Horizonte  também teve sua participação no ciclo mineiro, mas suas produções não tiveram grande repercussão fora do estado. O pioneiro foi Igino Bonfioli, imigrante italiano que filma Canção da Primavera (1923), seu primeiro longa-metragem, com o dinheiro que havia ganhado fazendo documentários para a Exposição do Centenário. Fez ainda A Tormenta (1931) alguns anos mais tarde. Outros títulos que aparecem neste período são Boêmios (1929), Perante Deus (1930), Calvário de Dolores de José Silva e Entre as Montanhas de Minas (1928) de Manuel Talon, segundo GOMES, o único do ciclo a alcançar algum êxito. “É provável que Entre as montanhas de Minas tenha conseguido alcançar maior repercussão do que as outras que passaram quase despercebidas.” (GOMES,1980, p.61) Outra cidade que se destacou dentro dos  ciclos regionais foi Campinas, onde se idealizou construir uma indústria cinematográfica nos moldes de Hollywood. A primeira iniciativa partiu de Amilar Alves, jornalista, poeta e dramaturgo ligado ao teatro amador que realizou em 1923, João da Mata. Adaptado de sua peça mais importante, o drama contava a história de João, um homem simples, expulso de suas terras por um desonesto coronel, e sua luta para reavê-las. Concentrou-se na encenação teatral da maioria dos atores e o filme impressionou pela construção e representação genuína do caipira interpretado por Ângelo Fortes. O sucesso de público que encontrou em Campinas e nas cidades da região foi mais que suficiente para cobrir os gastos da produção,  além de ter atraído e incentivado a fundação de produtoras e estúdios. Entre 1923 e 1926, são realizados mais cinco filmes de enredo, nenhum deles é de Amilar Alves que depois de João da Mata não voltou a filmar.  Em 1924, Antônio Dardes Neto filma Alma Gentil, Felipe Ricci e Thomas de Tullio realizam Sofrer para gozar em 1924, com direção de Eugênio Kerrigan, que se fazia passar por diretor norte-americano. A dupla Felipe Ricci e Thomas de Tullio, motivada pelo sucesso do filme nas cidades do interior, realiza A Carne (1925) e  Mocidade Louca (1927) com Felipe Ricci na direção. Alguns anos mais tarde, em 1930, eles conseguem ainda filmar Os Falsários, tornando-se ao lado de Amilar Alves, as figuras mais importantes do ciclo campineiro.  Recife foi a cidade que teve a maior produção dentro dos ciclos regionais, treze filmes em oito anos. Diferente do que aconteceu nas outras regiões, onde as iniciativas partiam de uma única pessoa ou um pequeno grupo, em Recife a movimentação foi mais ampla, envolvendo aproximadamente 30 jovens, vindos de diferentes áreas de atuação, tendo entre eles jornalistas, comerciantes, músicos e operários. O início desse ciclo se dá através do encontro de Edson Chagas, Gentil Roiz e a fundação da Aurora Filmes em 1923. Chagas era ourives e Roiz gravador, ambos apaixonados por fotografia, o primeiro passa a desenvolver as atividades de cinegrafista e Roiz a de roteirista e diretor. Seu primeiro filme é Retribuição, exibido em 1925 no Cine Royal com grande sucesso.  O Cine Royal teve um papel importante para os cineastas do Recife, graças à simpatia que um dos  proprietários tinha pelas produções locais,  Joaquim Matos

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além de disponibilizar o espaço para exibição dos filmes, transformava as estréias em acontecimentos locais.  A produção seguinte da Aurora Filmes é Jurando Vingar (1925), que não atingiu o mesmo sucesso da primeira, tendo sofrido com as precárias condições de produção e a falta de matéria-prima. O filme seguinte é Aitaré da Praia7  de 1925, com uma temática regional, tratava da vida dos jangadeiros. É considerado um dos mais importantes do ciclo e foi o único exibido comercialmente fora de Recife. Em relação a esta produção e ao eminente fim do ciclo do Recife  BERNARDET (1987, p.80) nos relata: “deu prestígio artístico definitivo aos cineastas pernambucanos, ao mesmo tempo em que o grupo se subdividia em vários outros e a frágil estrutura econômica cedia”. Apesar do sucesso de alguns filmes, da disposição e entusiasmo dos realizadores, todos os ciclos regionais chegaram num mesmo ponto. Mais que a dificuldade em produzir, havia a impossibilidade de distribuir e exibir comercialmente os filmes, tendo que competir com o filme estrangeiro de qualidade superior, com o qual o público já estava acostumado. Dentro do contexto apresentado, era impossível que se sustentassem.

REFERÊNCIAS                                                                                                                                                                                 AUTRAN, Arthur. A noção de “ciclo regional” na historiografia do cinema brasileiro. Revista Alceu. Rio de Janeiro, v.10, n.20, jan.–jun. 2010. Disponível em: http://revistaalceu.com. pucrio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?from_info_index=9&infoid=374&sid=32. Acesso em: 15.09.2013. BERNARDET, Jean-Claude. Historiografia clássica do cinema brasileiro. São Paulo: Annablume, 2008. GOMES, Paulo Emílio Salles. Panorama do cinema brasileiro: 1896/1966. In: Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra/ Embrafilme, 1980.

RAMOS, Fernão (org.). História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Círculo do Livro, 1987. VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme,1987. FILMOGRAFIA AITARÉ da praia. Direção: Gentil Roiz. Brasil: Aurora Filmes, 1925. 35mm (60mim), p&b, mudo. PANORAMA do Cinema Brasileiro. Direção: Jurandyr Noronha. Brasil: Instituto Nacional de Cinema, 1968. 1 DVD (134min), p&b.  

7 Aitaré da praia conta através de flashback, recurso considerado ousado para a época, o desencontro de Aitaré e Cora, então namorados, depois que ele salva um rico coronel e sua filha do naufrágio.

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MASCARELLO, Fernando (org.). História do Cinema Mundial. São Paulo: Editora Papirus, 2009.

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03 O FILME LIMITE COMO UM EXPOENTE DA VANGUARDA NO BRASIL Bianca de Moura Pasetto1

Com filmes que propiciaram o desenvolvimento da linguagem cinematográfica e, além disso, do fazer e pensar cinema como um ato de expressão artística, os movimentos de vanguarda, surgidos a partir da década de 1920, configuraram um importante eixo de experimentação. O expressionismo alemão, o impressionismo francês, o surrealismo e a montagem soviética vieram como uma resposta ao cinema de Griffith, desenvolvido nos EUA. E, assim como o cinema clássico narrativo que começava a se formar nos EUA exerceu sua influência para além das fronteiras de seu país, os movimentos de vanguarda também chamaram a atenção para além de seus movimentos. Na América Latina, podemos citar o filme Limite, de Mário Peixoto, com o expoente máximo deste período na região. MÁRIO PEIXOTO Limite é uma obra que em momento algum se desvincula do seu realizador, sendo ela um reflexo direto das características de sua personalidade e da época em que foi realizada. Desta maneira, faz-se necessário discorrer um pouco sobre a biografia de Mário Peixoto e o momento vivido pelo cinema brasileiro. Contradições e incoerências colaboram para a singularidade desse artista a começar pela incerteza da sua data de nascimento – 1908, 1910, 1912, 1914 ou 1920? – e do local – Bruxelas ou Rio de Janeiro? . Conforme MELO (1996, p.7), Mário Pei1

Estudo orientado pelo Professor Doutorando Fábio Luciano Francener Pinheiro.

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xoto nasceu – segundo ele mesmo – em Bruxelas. O seu diário nos diz que foi em 25 e março de 1908.

O próprio Mário relata: Eu nasci na Bélgica, onde meu pai trabalhava, e vim para o Brasil com cinco anos. Depois, aos nove anos, voltei à Inglaterra para estudar e lá fiquei até os vinte anos. Eu vinha sempre ao Brasil para visitar meu pai, mas tinha que ir à Inglaterra, pois havia provas de três em três meses. (TEIXEIRA, 2003, p.5).

Entretanto, há evidências de que tenha nascido na Tijuca, no Rio de Janeiro. Sobre as contradições acerca de sua origem e sua relação com a sua obra, diz TEIXEIRA (2003, p.5): O plano das evidências aqui é secundário. Muito mais significativo para a construção da obra é a indeterminação de uma idade, a desterritorialização de uma localidade, esse claro-escuro que vem se instaurar a partir de dados mais comuns. Ou seja, subtrair da vida o que ela tem de mais natural, de mais banal e corriqueiro – a data e um território de nascimento – criando com isso derives multipessoais e plurisubjetivos.

Estas incoerências, a educação rigorosa e refinada recebida na Inglaterra e o contato com os movimentos artísticos de vanguarda na Europa, colaboraram para a construção da imagem do artista precoce, mergulhado em questões quase metafísicas, do gosto singular e com sensibilidade plástica e poética o suficiente para o desenvolvimento artístico. Outra característica marcante é o fato de ter se formado a partir de uma vivência cosmopolita, entre dois centros culturais do mundo naquele momento, Londres e Paris, e no momento oposto ter optado por se recolher no sítio do morcego prematuramente.

Ainda neste ano é criado o Chaplin Club, o cineclube formado por Octávio de Faria, Almir Castro, Plínio Sussekind Rocha e Claudio Mello. Embora Mário Peixoto não fosse sócio do clube, seu contato se dava através de Octávio de Faria, que o conectava as discussões do cinema naquele momento, em torno do filme Aurora, de

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Esta não linearidade de fatos reflete nas suas decisões e, mais tarde, na construção de Limite. Em 1927, Mário Peixoto decide tornar-se ator, conforme escritos em seu diário, retornando ao Brasil neste mesmo ano. Depara-se com um cenário de efervescência cultural, tendo contato primeiro com o grupo Teatro de Brinquedo, ao qual pertenciam Brutus Pedreira e Raul Schnoor que, após atuarem juntos em uma peça, viriam a ser fundamentais no seu filme. No ano seguinte, 1928, iniciam-se no Brasil as filmagens de Barro humano, de Adhemar Gonzaga, e de Brasa dormida, de Humberto Mauro. Barro humano tinha como atriz principal Eva Schnoor, o que tornou a casa da família Schnoor uma espécie de salão cinematográfico, onde toda a equipe e todos os envolvidos se reuniam para fazer e discutir cinema. Este ambiente foi propício para o desenvolvimento de Mário Peixoto no cinema, embora, ao que conste, sua atuação tenha sido mais como um observador discreto de todo o processo, sem atuar em alguma função específica.

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Murnau e do manifesto sobre o cinema sonoro, assinado por Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov, no qual eram sugeridas as bases artísticas para o novo meio. O Chaplin Club caracterizava-se por ser uma reunião de um grupo focado para o lado artístico do cinema, fomentando discussões críticas acerca do cinema puro, como se referiam ao cinema silencioso, tendo como principal meio de comunicação a Revista O Fan. Outros aspectos culturais do momento são a vasta produção modernista em outras áreas, como o quadro O Abaporu de Tarsila do Amaral, a publicação do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade e do livro Macunaíma de Mário de Andrade. A IMAGEM-GERME DE LIMITE Após a estreia de Barro humano (1929) e Brasa dormida (1929), o cinema brasileiro tem um breve período de predominância perante os filmes estrangeiros, devido às dificuldades impostas pelos filmes falados em língua estrangeira. Segundo MELLO (1996, p.10): O sonoro/falado estava desorganizando a produção e a comercialização dos filmes americanos, que dominavam o mercado cinematográfico brasileiro. Os realizadores de Barro humano e Brasa dormida, que já estavam fazendo um cinema “sério” e bem acabado (em relação ao produto nacional corrente), viram nessa crise americana a oportunidade para a produção brasileira silenciosa, sobre a qual se fundaria a produção brasileira no futuro, e afirmavam que o cinema silencioso e falado poderiam conviver.

É neste ambiente, especialmente impactado pelo filme de Humberto Mauro, que Mário Peixoto visualiza a possibilidade de criar um filme com primor técnico e expressivo. Retorna à Europa, em 1929, a fim de “estudar a coisa”, a coisa cinema. Essa escolha parece ser parte da origem de uma relação conflituosa com o pai, que o queria médico. Sob este conflito é que Mário Peixoto segue para Paris, onde tem a visão da imagem-germe de Limite: a capa da Revista VU, com o rosto de uma mulher, olhar fixo, frontal. Em primeiro plano, duas mãos masculinas algemadas. Segundo (MELLO, 1996, p.12): A imagem reagiu com os resíduos vivos do conflito com o pai e gerou uma intensa, confusa e logicamente inexplicável torrente de emoções desencontradas que, diz Mário Peixoto “reboou profundamente dentro de mim”. E então, continua Mário, “eu vi foi um mar de fogo, um pedaço de tábua e uma mulher agarrada”. Era o final do filme.

Essa ideia é registrada na mesma noite no hotel Bayard, onde a sua visão começa a tomar a forma de um roteiro cinematográfico – antes chamado scenario. Ao retornar ao Brasil, em outubro de 1929, Mário Peixoto volta a conviver com os grupos artísticos de teatro e cinema de antes, porém, devido ao momento positivo vivido pelo cinema silencioso brasileiro, é notável uma atmosfera de discus-

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são e realização de projetos. Incentivado por este grupo, Mário Peixoto decide tornar Limite uma realidade, finalizando o roteiro, segundo ele, após o aprendizado com Octávio de Faria. Nota-se que, sempre que se referia ao filme, Mário preferia utilizar o pronome “nós” ao invés de “eu“, por considerar que a iniciativa de realização do filme tinha partido dos grupos nos quais ele circulava: o Teatro de Brinquedo e a casa da família Schnoor, também conhecido com Salão da Madame Schnoor. PROCESSO DE PRODUÇÃO O roteiro de Limite foi proposto para ser realizado por Adhemar Gonzaga e depois por Humberto Mauro, que resume a recusa de ambos, conforme MELLO (1996, p.8) nos cita: “... aquilo era uma coisa tão particular, tão diferente, que só mesmo quem tinha escrito é quem deveria dirigir”. Desta maneira, Mário Peixoto assumiu a direção do filme, que contou com a colaboração da Cinédia, que indicou o fotógrafo Edgar Brasil e providenciou a película. Adhemar Gonzaga conseguiu o empréstimo de uma câmera Hernemann com tripé e Mário comprou câmera Kynamo de mão, de corda, com chassis de 30 metros. Foram ainda emprestados à equipe refletores da fábrica de um tio de Mário. É interessante observar que a produção de Limite se utilizou de um processo colaborativo bastante característico do cinema brasileiro, que perdurou por todos os seus ciclos de produção. A escolha do elenco começa a ser definida em março de 1930, conforme MELLO (1996, p.17) relata:

As locações do filme foram em Mangaratiba e região, onde a equipe ficou alojada na fazenda Santa Justina, pertencente ao tio de Mário Peixoto, Victor Breves. Segundo MELLO (1996, p.16): Mário Peixoto tinha grande ascendência sobre os atores – e extraía deles, com surpreendente competência e habilidade, atuações cheias de nuanças e sutilezas; e sobre Edgar Brasil, de quem extraía uma fotografia de textura admirável. Rui Costa, sensível e atento, exprimiu com simplicidade o que é imensamente complexo: Mário tinha que desabafar algo com o filme. .

A primeira parte das filmagens foi finalizada entre julho e agosto, faltando os extreme close-ups da sequência da costura, com Olga Breno, filmados mais tarde por Edgar Brasil nos estúdios da Cinédia e a sequência de Carmem Santos e da tempestade, finalizadas até janeiro de 1931.

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[...] os atores masculinos viriam do Teatro de Brinquedo – Brutus Pedreira, Raul Schnoor e ele mesmo, as atrizes vieram, uma do álbum de atrizes de Barro humano, mostrado a Mário por Pedro Lima, que ainda não havia rompido com Adhemar Gonzaga, Yolanda Bernardi, que tinha feito figuração em Barro humano e que seria Taciana Rei, “a mulher número 2”. A outra, Alzira Alves, que seria Olga Breno, “a mulher número 1”, foi encontrada por Mário na loja de chocolates da Casa Behring.

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O APARATO TÉCNICO QUE POSSIBILITOU LIMITE Um aspecto vanguardista de Limite é visível desde a sua produção. Conforme TEIXEIRA (1996, p.10): “Realizaram takes fixos, rigorosamente enquadrados e bruscos, e curtos arrancos de câmera; imensos takes extremamente móveis e libérrimos, e curtos takes fixos de rígido enquadramento.” Este trabalho foi possível devido às características variadas das quatro câmeras utilizadas. A Kynamo, uma câmera de mão, foi usada para filmar os planos menos convencionais do filme, aqueles em que não era possível usar o tripé e a Hernemann. A máquina rodava a 18 quadros por segundo, pois era de corda, sendo de grande utilidade para realizar os planos do trem e nos andores (VASQUES apud HEFFNER, 2011, p.7). A câmera Hernemann era a câmera base do filme e rodava a 16 quadros por segundo, podendo ser ajustada a outras velocidades. A terceira câmera utilizada foi uma Mitchell, nos planos da cena da escada e nos planos macro. A Mitchell tinha uma velocidade ajustável, entre 18 e 22 quadros por segundo, conforme o necessário para a cena. A quarta câmera foi uma Debrie Parvo L, utilizada para a sequência de Carmem Santos e cedida por ela. Esta variação de equipamentos permitiu que o filme tivesse locações e planos inovadores para a época. CARMEM SANTOS E O PROCESSO DE FINALIZAÇÃO DO FILME Em 1931, quando Edgar Brasil estava utilizando o laboratório de propriedade de Carmem Santos para selecionar e copiar o material destinado à montagem do filme, esta se interessou pelo material e pelo trabalho de Mário Peixoto. Ao encontrá-lo, propôs que ele desenvolvesse um scenario (roteiro) para ela, que em troca permitiria o uso do laboratório sem custos financeiros. Mário aceita e ainda propõe que seja feita uma sequência extra para Limite, com Carmem Santos. A sequência com Carmem Santos é filmada e Mário Peixoto escreve o scenario para Carmem, intitulado, a princípio, Sofisma, depois, Sonolência e mais tarde de Onde a terra acaba, filme não realizado por Mário Peixoto – um divisor de águas na sua relação com Carmem Santos, que como produtora e detentora dos direitos do filme, o afastou do projeto. A EXIBIÇÃO NO CHAPLIN CLUB E A RECEPTIVIDADE DA CRÍTICA Limite jamais foi exibido comercialmente. Sua única sessão pública foi uma pré-estreia no dia 17 de maio de 1931, domingo, às 10h30 da manhã, no hoje desaparecido Capitólio, na Cinelândia, Rio de Janeiro. Octávio de Faria procurou divulgar o filme de Mário Peixoto no último número de O Fan, em dezembro de 1930, dando às fotografias do filme, enviadas pelo diretor, o status de obra cinematográfica, a primeira feita no Brasil, que poderia revolucionar o Rio de Janeiro (VASQUES, 2007, p.2).

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A partir de então o filme carrega a marca de “filme de cineclube”, e a do fim do cinema mudo. Foi também a última sessão do Chaplin Club, autodissolvido com a chegada dos filmes sonoros. O filme não encontrou respaldo no circuito comercial, mas encontrou alguma receptividade, conforme MELLO (1996, p.18) nos fala: Essa obra de arte, o primeiro trabalho de avant-garde que se fez no Brasil, vai ser assim conhecido e apreciado. Marcos André, cronista social do Diário da Noite dá conta da exibição na terça-feira seguinte: “É de uma beleza impressionante.”

Entretanto, o filme não sensibilizou nenhum distribuidor procurado por Adhemar Gonzaga, e Mário Peixoto acabou desistindo de exibir o filme. LIMITE: UMA OBRA ÚNICA E ATEMPORAL Limite tornou-se um marco na história do cinema brasileiro, pela combinação de belas paisagens do litoral fluminense com enquadramentos rigorosos. Planos estáticos alternam-se com movimentos de câmera inovadores, frutos de um trabalho conjunto de Mário Peixoto e Edgar Brasil, sempre pontuados por uma trilha sonora de música erudita que se encaixava perfeitamente nos momentos do filme.

Porém, o fato de Limite ser considerado um marco não significa necessariamente que ele tenha sido compreendido nas intenções de seu realizador.

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Limite, em sua estranha configuração de obra única, na extemporaneidade que o lança para além do cinema mudo, tornou-se inassimilável em vários momentos da cinematografia local, sobretudo quando ela traçou para si os imperativos do “industrial”, do “realismo”, da “comunicação”. Praticamente solitário em sua leveza de objeto raro, leva cerca de meio século para que seu “peso” se faça sentir enquanto marca de uma obra formadora. Formadora no sentido preciso de inauguração de formas, instauração de novidades, experimentação inaugural. (TEIXEIRA, 2003, p.42).

Mas afinal, o que tornou Limite um filme único, além da sua história de produção? O filme é carregado de signos da modernidade, levando a linguagem do cinema mudo ao extremo. O tempo em Limite não está presente através de cenas do dia-a-dia: sempre que estes aspectos começam a sobressair-se, a normalidade é inter-

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Limite é um descendente direto, por assim dizer, do fato de Mário Peixoto ter estudado na Europa num período de efervescência cultural – de discussões em torno das experiências de montagem do cinema soviético e das lições do cinema expressionista alemão e dos filmes de Griffith. Esta formação e esta vivência resultam no filme de Peixoto, onde há uma preocupação com o fazer cinematográfico como arte e não mais como uma simples diversão popular ou uma curiosidade de show de atrações.

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rompida por personagens alterados, que perambulam por um espaço qualquer, cujo limite é a fuga para o barco. Conforme TEIXEIRA (2003, p.42): Barco que, menos que continente dessa inatividade, e por contê-la, vem se diagramar como um operador de linhas dos entre-espaços, dos entretempos. Mas linhas de um mental cujo circuito extravasa inteiramente os espaços qualificados e as temporalidades cronológicas.

A fotografia em Limite altera-se entre as linhas aprisionantes de grades e cercas, linhas verticais que extrapolam o espaço interno e chegam aos grandes espaços vazios, e planos de paisagens desertas por onde os personagens perambulam. O mar e as paisagens marinhas parecem sempre o ponto de fuga para as linhas que aprisionam. Desta maneira, o filme de Mário Peixoto inova também na sua proposta de encenação, por meio de um relato não linear sem o uso de cartelas com letreiros, utilizando-se com maestria dos recursos do cinema mudo. É um marco na história da linguagem fílmica experimental, ao desmontar um sistema de representação institucional que estava vigente havia quinze anos, pela irrupção2 de Griffth e o impacto de O nascimento de uma nação. (...) Peixoto se destaca por essa busca fundamental, expressiva e narrativa ao extremo, confrontada com o uniforme cinema tradicional latino-americano. (LA FERLA, 2008, p.72).

A utilização de recursos do cinema mudo de forma inovadora, no desenvolvimento da linguagem cinematográfica, desmontou o que usualmente se conhecia como cinema narrativo, permanecendo, mesmo após décadas, como um filme inovador na América Latina. A CONSTRUÇÃO DE UM MITO Embora não distribuído em circuito comercial, Limite foi exibido algumas vezes em circuitos fechados ao longo dos anos. Uma destas exibições foi a promovida por Vinícius de Moraes por ocasião da visita de Orson Welles ao Brasil, em 28 de julho de 1942. Vinícius de Moraes observa em crônica do jornal A Manhã: A reunião efetuada anteontem não pode, infelizmente, ser noticiada a tempo, porquanto – obra de minha obstinada teimosia – em querer que Orson Welles visse Limite antes de retornar aos EUA – aconteceu como um milagre. (MORAES, 1942, p.70).

Plínio Sussekind Rocha foi um dos que manteve a exibição do filme para um público seleto, na Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio de Janeiro, com exibições 2 D.W. Griffth (1875-1948) foi um cineasta estadunidense, responsável por inovações no cinema feito nos EUA no início do século 20. Destaca-se o filme O nascimento de uma nação, onde se utilizou de muitos dos códigos que viriam a caracterizar a linguagem clássica-narrativa, muito utilizada na indústria de Hollywood.

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anuais em sessões acompanhadas de O encouraçado Potekim de Eisenstein, com o objetivo de manter a discussão sobre a linguagem cinematográfica. O fato de não ter tido uma circulação comercial serviu também para que se mantivesse o ineditismo da obra e contribuiu para a aura mítica em torno do filme, inclusive pelo fato de muitos terem ouvido falar dele, mas, poucos o terem visto, conforme o escrito por Glauber Rocha: O resto, para mim, permanece impenetrável. O fato é que, lendo e ouvindo tudo sobre o filme, eu nunca assisti Limite, nem sei se isso será possível um dia (...) George Sadoul esteve no Brasil em 1960 (...) ele foi ao Rio para pagar uma espécie de promessa : assistir Limite. Houve grande alvoroço no templo: Sadoul, após esperar, não viu sequer um fotograma. (ROCHA, 2003, p.58).

A própria personalidade de Mário Peixoto, sempre discreto e reservado, contribuiu também para a construção mítica do filme. Mário não finalizou nenhum outro filme, porém, continuou a circular pelo meio cinematográfico brasileiro, atravessando diferentes movimentos. Em especial, o cinema poético de Júlio Bressane durante os anos setenta. REFERÊNCIAS LA FERLA, Jorge. Limite. Sinfonia do Sentimento. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1678-53202008000200006&script=sci_arttext Acesso em: 01 de ago. 2013. MASCARELLO, Fernando (Org.). História do cinema mundial. São Paulo : Papirus, 2007. MELLO, Saulo Pereira de . DOSSIER LIMITE. Mário Peixoto. Disponível em: http://www. mariopeixoto.com/limite.pdf Acesso em: 02 de set. 2013. PEIXOTO, Mario. DOSSIER LIMITE. Disponível em: http://www.mariopeixoto.com/limite. pdf. Acesso em: 02.09.2013. ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. O terceiro olho: ensaios de cinema e vídeo (Mário Peixoto, Glauber Rocha e Júlio Bressane). São Paulo: Perspectiva, 2003. VASQUES, Alexandre Ramos. Da ideia em Paris às duas primeiras exibições: Alguns aspectos técnicos de Limite. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/ anais/14/1300890799_ARQUIVO_DaideiaemParisasessaoparaOrsonWelles.pdf Acesso em: 13.09.2013.

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MORAES, Vinícius de. O cinema dos meus olhos. São Paulo : Companhia da Letras, 1991.

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04 ATLÂNTIDA CINEMATOGRÁFICA E COMPANHIA CINEMATOGRÁFICA VERA CRUZ William M. Manfroi1

Os anos 30 trouxeram o som e o surgimento de um popular e duradouro gênero brasileiro, a chanchada. Essas comédias leves, geralmente inspiradas pelo carnaval, tinham muita dança e números musicais.  Adhemar Gonzaga  funda, em 2 de dezembro de 1929 no bairro de São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro, a Cinédia, produtora cinematográfica – ainda em atividade – e o primeiro estúdio segundo os padrões ditados por Hollywood. A Cinédia foi responsável pela criação do gênero chanchada. A cantora-sensação da época, Carmem Miranda, estrelou uma das primeiras chanchadas, Alô, alô, carnaval (1936), dirigida por  Adhemar Gonzaga. ATLÂNDIDA CINEMATOGRÁFICA Em 18 de Setembro de 1941, após a fase da Cinédia, começou o reinado da Atlântida Cinematográfica fundada também no Rio de Janeiro por Moacir Fenelon e os irmãos José Carlos e Paulo Burle. O objetivo era bem definido: promover o desenvolvimento industrial do cinema brasileiro. Liderando um grupo de aficionados, incluindo o jornalista Alinor Azevedo, o fotógrafo Edgar Brazil e Arnaldo Farias, Fenelon e os Burle sonhavam realizar a necessária união de um cinema artístico com o cinema popular. 1

Estudo orientado pelo Professor Doutorando Fábio Luciano Francener Pinheiro.

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Os filmes da Atlântida representaram a primeira experiência de longa duração na produção cinematográfica brasileira voltada para o mercado, com um esquema industrial autossustentado. Em nenhum outro momento de sua história, o cinema nacional teve tanta aceitação popular. A companhia seria responsável pelos registros de uma sociedade em transição de rural para urbana. Abriria caminho para a televisão. Permitiu ao povo ver-se a si mesmo na tela. E fortaleceu, por meio dos filmes, o que se poderia chamar de identidade nacional, filtrada pelas lentes da então capital federal. Durante os primeiros dois anos de existência, a Atlântida produziu, sobretudo, cinejornais, como o Atualidades Atlântida. O primeiro longa-metragem foi um documentário-reportagem sobre o IV Congresso Eucarístico Nacional, realizado em São Paulo em 1942. Apresentado como complemento, o média-metragem Astros em desfile, uma espécie de parada musical com artistas famosos da época, antecipou o caminho que a Atlântida percorreria mais tarde. O primeiro grande sucesso de bilheteria veio em 1943: Moleque Tião, dirigido por José Carlos Burle. O filme conta a história de um jovem negro do interior que sonha ser astro. Sofre maus-tratos na infância, muda para o Rio de Janeiro, graças a caronas nas estradas, depois de ler num jornal a notícia de que uma companhia negra de revista obtinha grande sucesso no Rio. Chegando à cidade grande, arranja um emprego de entregador de marmitas e hospeda-se numa pensão ocupada por artistas fracassados. Pela mão de um maestro e pianista de grande talento – o personagem Orlando, interpretado por Custódio Mesquita –, tenta ingressar na vida artística, mas acaba internado num orfanato, e depois adotado por uma bondosa senhora. Até conseguir apresentar-se num cassino, onde faz sucesso e é visto pela própria mãe que vem do interior especialmente para o espetáculo.

De um lado, unanimidade do público. De outro, discussões da crítica, que tentava entender o que seria aquela mistura de rádio, teatro, circo e carnaval. O “rádio com imagem” logo receberia o nome de “chanchada”, gíria portenha: porcaria, coisa sem valor.

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Enredo inspirado na vida do protagonista estreante Grande Otelo, ou Sebastião Bernardes de Souza Prata (1915-1993). O longa-metragem abriu caminho para um cinema voltado para as questões sociais. Entre 1943 a 1947, a Atlântida se consolidou como a maior produtora brasileira: nesse período foram produzidos 12 filmes, como Gente honesta, de Moacir Fenelon, com Oscarito (1906-1970), e Tristezas não pagam dívidas, a primeira comédia da Atlântida, de José Carlos Burle. Foi justamente neste filme que Oscarito e Grande Otelo atuaram juntos pela primeira vez, parceria essa que teve duração de 13 filmes. Em 1947, viria  Luz dos meus olhos, com outra promessa: Cacilda Becker¹. O longa aborda o conflito racial e social. Eleito pela crítica melhor filme do ano. Seriam os primeiros de uma dúzia de filmes produzidos até 1947.

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Davam prestígio os filmes “sérios”, mas a vocação estava mesmo é nas comédias. Nelas brilhavam, ao lado de bandidos, mocinhas e galãs, artistas que fizeram gargalhar gente de todo o país, com um humor extremamente popular. Dercy Gonçalves, Zé Trindade, Ankito. Mas Grande Otelo conquistou lugar de destaque, principalmente ao contracenar com Oscarito, apresentado em  G e n t e h o n e s t a , de 1944. Formaram a mais famosa dupla de comediantes do cinema nacional. Em Av i s o a o s n a v e g a n t e s   (1950), Oscarito se define como “um toureiro avacalhado de Cascadura”. Av i s o a o s n a v e g a n t e s é um longa dirigido por Watson Macedo que conquistou muito sucesso em 1950. É a história de uma companhia teatral brasileira retornando ao Brasil em um luxuoso navio, após uma série de apresentações em Buenos Aires. Na embarcação, um príncipe se apaixona por Eliana, mas ela só tem olhos para o imediato do navio. Oscarito, camareiro de Eliana, embarca clandestinamente, e é descoberto pelo cozinheiro do navio. A bordo, também, um perigoso espião internacional, que precisa ser detido antes da chegada ao Rio de Janeiro. Uma marca dos enredos era a variação de história genérica. Para alcançar um objetivo, o mocinho luta contra inimigos com a ajuda de amigos atrapalhados e simplórios; o mocinho acaba vitorioso e o vilão, derrotado. No recheio, improvisações, paródias e piadas. Num filme, surge a incrível sátira de expressão racista. Ao sair de um show, Grande Otelo paga o ingresso e diz ao porteiro: “Preto, quando não paga na entrada, paga na saída”. Fórmulas infalíveis faziam a alegria do povo: tipos populares, herói malandro e mulherengo, dona de pensão, imigrante nordestino; vida urbana, burocracia, demagogia populista. A Atlântida passa a ter grande aceitação. Populariza artistas, divulga músicas carnavalescas, elege sucessos que tocariam no rádio. Surgiriam astros consagrados, destinados a papéis específicos. Para interpretar os “mocinhos”, por exemplo, os nomes Cyll Farney e Anselmo Duarte eram sempre uns dos mais lembrados. No fim da década de 1940, a Atlântida receberia ataques da crítica e da própria classe cinematográfica. Equipamentos sem manutenção, atores mal pagos, condições precárias. Urgia uma mudança. Entra em cena o empresário Luís Severiano Jr.¹. Em 1947, Severiano torna-se sócio majoritário da Atlântida. A companhia passa a contar com modernos laboratórios, em iniciativa inédita na produção de nosso cinema. O enredo, porém, permanece. Com senso comercial, Severiano acha que, se as chanchadas fazem sucesso, devem continuar. A resolução do empresário foi equipar a Atlântida para produzir mais e controlar todas as fases do processo. Em 1953 o jovem Carlos Manga dirigiu seu primeiro filme, A dupla do barulho, seguido pela paródia de um sucesso americano Nem Sansão nem Dalila e Matar ou correr, um faroeste tropical apoiado, mais uma vez, no talento cômico de Oscarito e Grande Otelo. De todos os filmes dirigidos por Carlos Manga na Atlântida, O homem do Sputnik, de 1959, comédia sobre a Guerra Fria que critica o imperialismo ameri-

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cano, talvez seja o que melhor sintetize o espírito irreverente da chanchada. Em uma noite de tempestade, um estranho objeto de metal cai no galinheiro de Anastácio Fortuna, que tentará minimizar os prejuízos vendendo o objeto, logo identificado como o satélite soviético Sputnik. Tornados celebridades, Anastácio e sua esposa Deocleciana – que prefere abreviar seu nome para “Cleci” – rapidamente verão sua vida transformada pelo assédio da imprensa e pelo interesse de agentes soviéticos, estadunidenses e franceses no Sputnik. A fórmula da chanchada, impregnada de humor carioca enfrentava as produções da paulista Vera Cruz, criada no início da década de 1950 pelo teatrólogo Franco Zampari e pelo gigante das comunicações Assis Chateaubriand. Com o compromisso de investir no nível técnico e estético, a Vera Cruz reunia profissionais europeus¹. A Atlântida manteve-se até o final da década de 1950. O último filme seria O s a p a v o r a d o s d e 1962. A companhia associa-se, então, a outras e suas produções começam a rarear. Começa a valorização de temas de contestação com o surgimento do Cinema Novo, o conceito de entretenimento da Atlântida perde espaço, também, com a televisão que lhe rouba artistas e profissionais.  A Atlântida produziu um total de 66 filmes até 1962, quando interrompeu suas atividades. São inúmeras as estrelas que a companhia reuniu². Quanto aos longas, também merecem citação os filmes Não adianta chorar, de Watson Macedo, Segura essa mulher, de José Carlos Burle, e Este mundo é um pandeiro, também de Macedo, que estabeleceram o padrão das chanchadas: a paródia à cultura estrangeira, em especial ao cinema feito em Hollywood, aliada à preocupação de satirizar as mazelas da vida pública e social do país.

O gênero só teve seu valor reconhecido nos anos 70, quando uma nova geração de especialistas identificou na chanchada qualidades até então despercebidas, sobretudo o conteúdo crítico de seus enredos. Em 1974, Carlos Manga dirigiu Assim era a Atlântida, coletânea contendo trechos dos principais filmes produzidos pela empresa. VERA CRUZ A ideia era criar uma companhia cinematográfica brasileira para tratar os temas nacionais com técnica e linguagem no melhor estilo do cinema mundial, em especial o norte-americano. Sob este prisma e sonho, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz

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A identificação com a estética e a narrativa do cinema americano marcava, até certo ponto, uma relação de dependência do cinema brasileiro com a indústria de Hollywood, o que levou os críticos da época a rejeitarem a chanchada. Mas, mesmo imitando o modelo hollywoodiano, as chanchadas se caracterizavam por uma inegável brasilidade, ao colocar em relevo elementos do circo, do carnaval, do rádio e do teatro.

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nasceu em 4 de novembro de 1949, na cidade de São Bernardo do Campo, tendo como principais acionistas o produtor italiano Franco Zampari e o empresário brasileiro Francisco Matarazzo Sobrinho. Numa área de mais de cem mil metros quadrados, foi construído um estúdio cinematográfico, com material técnico dos mais avançados da época e com profissionais vindos da Europa. Assim começou a funcionar a Companhia, que em pouco tempo de vida, se tornaria uma das mais importantes do Brasil. Dentro desse padrão internacional de base industrial nasceu o primeiro filme do estúdio chamado Caiçara, em preto e branco¹. Marina, a protagonista de Caiçara é uma jovem filha de leprosos cujos pais foram internados antes que ela contraísse a doença. Marina, contudo, sofre com medo de adoecer e com o preconceito das pessoas. Isso a leva a aceitar a proposta de casamento de José Amaro, um homem que viu apenas duas vezes. Amaro é um viúvo abastado, construtor de barcos de Ilha Verde, próxima a Santos. Marina não ama Amaro, mas procura se manter fiel ao casamento quando ele viaja, resistindo às investidas amorosas de Manuel, violento sócio do marido. Ela faz amizade com o menino Chico e com a avó dele, Sinhá Felicidade. Mãe da primeira esposa de Amaro, ela o acusa de ter abandonado a filha no hospital para morrer. Sinhá Felicidade alerta Marina: “o marido dela é mau e ela deve procurar o homem certo”. Enquanto isso, o marinheiro Alberto ouve falar de Ilha Verde e da lenda das pedras-sinos. E ao ver um retrato de Marina, resolve ir até lá em busca de emprego. As filmagens tiveram início no começo dos anos 50, na Ilha Bela, litoral paulista, onde cerca de 70 pessoas, entre técnicos e atores passaram a rodar a película, que tinha no elenco principal Eliane Lage, Carlos Vergueiro, Mário Sérgio, Abílio Pereira de Almeida, Maria Joaquina da Rocha e Adolfo Celi, entre outros¹. O filme ganhou alguns prêmios importantes como o Governador do Estado de São Paulo, Melhor Produtor para Alberto Cavalcanti, e o de Melhor Filme Sul-Americano no Festival de Punta Del Este, no Uruguai em 1951. Pouco tempo depois, neste mesmo ano de 1950, foi realizada a segunda produção da Vera Cruz denominada Terra é sempre terra, em preto e branco, baseada na peça teatral Paiol velho, de autoria de Abílio Pereira de Almeida, que também foi o responsável pelo roteiro cinematográfico. A música contou com a Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal de São Paulo e também com Dorival Caymmi. No elenco, Marisa Prado, Mário Sérgio, Abílio Pereira de Almeida, Ruth de Souza, Eliane Lage e Ricardo Campos. Narrava uma história numa plantação de café abandonada onde um capataz chamado Tonico dirigia tudo e a todos com mãos de ferro. O espetáculo ganhou prêmios importantes e foi filmado na cidade de Indaiatuba e na Fazenda Quilombo em Campinas, interior paulista.

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Após o primeiro ano de funcionamento e balanço de suas atividades para as próximas produções, a Vera Cruz foi obrigada a fazer um empréstimo no Banco do Estado, o que mostrava a ausência de um planejamento eficaz nos investimentos dos filmes em seu primeiro ano de existência. Além disso, a Companhia ainda enfrentava dificuldades para a distribuição dos filmes dentro e fora do Brasil. Os administradores da Vera Cruz desmentiam esses fatos dizendo tratar-se apenas de boatos sem fundamento, que a Companhia estava bem e caminhava para uma situação melhor ainda. Aparentemente os comentários dos jornais pareciam infundados, em vista do sucesso das produções que conseguiam chegar ao grande público. O filme Ticotico no fubá, por exemplo, chegou a ser apresentado em 22 salas de cinemas simultaneamente, um feito inédito para um filme brasileiro até então. Dirigido por Adolfo Celi, protagonizado por Anselmo Duarte e Lima Barreto, narra a vida do compositor Zequinha de Abreu, sua paixão por uma amazona de circo, o casamento com uma amiga de infância, seu desejo de sucesso interrompido pela morte e a vida provinciana em Santa Rita do Passa Quatro, sua cidade natal. 

Apesar de todas essas benesses aparentes, o sonho do cinema brasileiro da Vera Cruz desfez-se por volta de 1954, quando a Companhia entrou em declínio e ninguém mais conseguia esconder as dificuldades da empresa. Uma das grandes causas desse declínio foi a falta de um sistema próprio de distribuição dos filmes produzidos pela Vera Cruz. Tendo que repassar para outros distribuidores, a Companhia perdia quase de 60% da arrecadação. Eram muitas as dificuldades de colocação dos filmes brasileiros no mercado internacional e mesmo em território brasileiro. A concorrência era bastante desigual em relação aos filmes estrangeiros. Naquela época os ingressos das salas de cinema eram tabelados e a inflação vigente no

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O outro longa que se destacou foi O cangaceiro de 1953. Além de ter sido o primeiro filme nacional a ter respaldo mundo afora, é considerado um dos melhores do cinema brasileiro e o melhor produzido pela Companhia Cinematográfica Vera Cruz. No tempo dos cangaceiros no sertão do Brasil, Capitão Galdino Ferreira e seu bando sequestram a professora Olívia, esperando receber um resgate por ela. Contudo, um de seus homens, Teodoro, se apaixona pela moça e foge com ela pelo árido sertão, perseguidos pelos cangaceiros. Ao longo da jornada, Olívia também se apaixona por Teodoro e propõem que ele deixe o sertão e se mude para a cidade. Mas Teodoro também ama sua terra e diz que ele gostaria de morrer no sertão onde ele nasceu. O filme foi escrito e dirigido por Lima Barreto, com diálogos de Rachel de Queiroz e inspirado na história do cangaceiro Lampião e seu bando. A fotografia em preto e branco é inspiradora, com uma magnífica introdução com os cangaceiros mostrados contra a luz. Em 12 de maio de 1953, O C a n g a c e i r o recebeu no Festival de Cannes o prêmio de Melhor Filme de Aventura. Na trilha sonora, destaca-se a Muié Rendeira, interpretada pro Vanja Orico.

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país, fazia com que a arrecadação do cinema nacional ficasse bastante prejudicada, já que para os filmes estrangeiros, o governo pagava a diferença existente do dólar oficial e do paralelo. Apesar disso, entre trancos e barrancos a Vera Cruz conseguiu sobreviver por um bom período. Em 1958, foram produzidos os dois últimos filmes com participação da Companhia. Um deles foi Ravina, dirigido por Rubem Biafora, baseado numa história de Walter Guimarães Motta. O outro foi uma coprodução com a Paulistania Filmes, chamada Macumba na alta, história de um homem pobre atropelado por um jovem bêbado milionário, que depois passa a ser chantageado. Pouco tempo depois da produção desses filmes, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, decretou sua falência. Acabava assim esse sonho de um cinema brasileiro, mas apesar de seu pouco tempo de existência, a Vera Cruz formou técnicos, atores e cineastas, que posteriormente se transferiram para a televisão, tornando-a uma das melhores do mundo. Recentemente um projeto de recuperação do acervo da Vera Cruz, gerou um CD-ROM denominado Vera Cruz e seus filmes. Também foram realizadas diversas exposições fotográficas a partir do acervo, além de um livro em 2003, intitulado Vera Cruz – imagens e história do cinema brasileiro. Entre 2004 a 2005, através de apoio e incentivo fiscal da Prefeitura do Município de São Paulo, e do patrocínio de uma empresa particular, foi realizado um restauro e digitalização do acervo iconográfico de mais dez mil negativos e documentos, tendo início a restauração do acervo cinematográfico. A partir de maio de 2010 o acervo da Vera Cruz pode também ser assistido através da Internet, gratuitamente. Até o momento 13 longas metragens e 5 documentários estão disponíveis no canal online Elo Cinema. REFERÊNCIAS AUGUSTO, Sérgio. Esse mundo é um pandeiro – A chanchada de Getulio a JK. São Paulo: Companhia das Letras/Cinemateca Brasileira, 1989. BERNARDET, Jean-Claude. Historiografia clássica do cinema brasileiro. São Paulo: Annablume, 1995. CABRAL, Sérgio. Grande Otelo – Uma Biografia. São Paulo: Editora 34, 2007. GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. MARTINELLI, Sérgio. Vera Cruz – Imagens e história do cinema brasileiro. São Paulo: Abook, 2005.

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05 CINEMA NOVO: UM CINEMA DE RUPTURAS Érica Ignácio da Costa1

PANORAMA POLÍTICO

O papel que a produção cultural teria que desempenhar nesse processo de afirmação nacional era fundamental. A burguesia e as camadas urbanas guiavam seu comportamento por aquilo que era ditado pela produção cultural estrangeira, principalmente pelo cinema de Hollywood. Diante disso, a necessidade de se criarem condições para que o artista brasileiro pudesse enfrentar as produções estrangeiras era uma das frentes de atuação dos nacionalistas. A luta pela afirmação de uma cultura nacional tinha como um dos seus principais objetivos buscar fazer com que o cinema brasileiro, por ser uma arte e um veículo de comunicação de massa, ocupasse os espaços do cinema estrangeiro ou que, ao menos, conseguisse dele tomar uma fatia do mercado brasileiro. (SIMONARD, 2010)

A geração do Cinema Novo, seguindo os passos de uma geração anterior, do começo dos anos 50, questionava a dependência do mercado brasileiro aos filmes importados, e a submissão dos cineastas do Brasil à linguagem de Hollywood. O público 1

Estudo orientado pela Profa. Dra. Salete Paulina Machado Sirino.

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O Brasil dos anos 1950 e 1960 sofreu um forte movimento de urbanização e intenso processo de industrialização, com resultados sociais contraditórios. A política econômica dos governos JK e Jango era embasada em pensamentos desenvolvimentistas. A cultura política da época se apoiava na luta contra o subdesenvolvimento e a dominação cultural como questões centrais. Para analisar a realidade brasileira, os intelectuais da época tomavam a cultura popular como verdadeira, enquanto a cultura das classes dominantes era vista como alienada dos verdadeiros problemas nacionais. A questão da afirmação nacional se sobrepõe, em um momento em que predominava o pensamento de que um país economicamente subdesenvolvido como o Brasil, também era subdesenvolvido na área cultural. O Brasil sofria com o “fantasma colonial”, era visto por muitos como um país de atitude resignada e colonizado culturalmen­te.

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e mesmo os produtores cinematográficos brasileiros acreditavam que o “cinema de verdade” vinha de fora, mais um sintoma da dominação colonial. A luta travada, então, pelos cineastas do Cinema Novo era para tornar o cinema nacional uma expressão genuína da cultura brasileira; os filmes produzidos no Brasil deveriam ser vistos como produtos culturais, e não apenas industriais. E qual deveria ser o ponto de partida desse cinema? Um total mergulho na realidade brasileira, ter em sua base o homem e a cultura do Brasil. Essa luta em prol de um cinema nacional ganhou força a partir do começo dos anos 60 – a ideia: fazer filmes contrários aos padrões industriais, recusar a estrutura de produção dos estúdios, sem grandes orçamentos e sem se valer do star system. E assim, a partir do Cinema Novo o cinema brasileiro passa a ser reconhecido por parte do público jovem e, inclusive, por parte da crítica, que até então em sua maioria dedicava pouca ou nenhuma atenção à existência de um cinema nacional. O nome Cinema Novo surgiu por sugestão do crítico Ely Azeredo, por ser este um novo cinema que tratava da pluralidade dos enfoques sociais. Pouco mais de dez anos depois dos primeiros filmes e manifestos do Cinema Novo, sete dos principais diretores deste movimento, Carlos Diegues, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Miguel Faria Jr, Nelson Pereira dos Santos e Walter Lima Jr, escreveram o manifesto Luz & Ação, que trata do período do cinema brasileiro de  1963 a 1973. Nesse manifesto fica claro que os cineastas queriam analisar com seus filmes a situação cultural e social brasileira, criticando a “herança colonial” e almejando tornar crítico o olhar do espectador, torná-lo consciente de sua própria existência. Outros manifestos já tinham sido escritos, entre eles, o de maior repercussão, Estética da fome (1965), no qual Glauber Rocha defende um cinema nacional, popular, autoral e revolucionário. Glauber começa o manifesto destacando a miséria, não apenas do Brasil, mas de toda a América Latina, colocando a fome no âmago das sociedades e criticando o olhar colonial, pontos comuns aos países da América Latina. (...) enquanto a América Latina lamenta suas misérias gerais, o interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria, não como sintoma trágico, mas apenas como dado formal em seu campo de interesse. Nem o latino comunica sua verdadeira miséria ao homem civilizado nem o homem civilizado compreende verdadeiramente a miséria do latino. Eis - fundamentalmente - a situação das Artes no Brasil diante do mundo: até hoje, somente mentiras elaboradas da verdade (os exotismos formais que vulgarizam problemas sociais) conseguiram se comunicar em termos quantitativos, provocando uma série de equívocos que não terminam nos limites da Arte mas contaminam o terreno geral do político. Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só o interessam na medida que satisfazem sua nostalgia do primitivismo, e este primitivismo se apresenta híbrido, disfarçado sob tardias heranças do mundo civilizado, mal compreendidas porque impostas pelo condicionamento colonialista. (...) A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa

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originalidade é a nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida. (ROCHA, 1965)

Vemos então que os intelectuais do Cinema Novo defendiam um cinema de produção barata, filmes rodados em cenários naturais, em luz natural, com a câmera na mão sem uso de tripés.2 Para eles, o padrão de estúdio, como o da Vera Cruz era um modelo a ser rejeitado. Para o Cinema Novo, retratar o ambiente brasileiro significava lutar contra o subdesenvolvimento, muitas vezes escancarando a miséria, a fim de estimular uma reflexão capaz de “desalienar” o povo. Dentro da produção brasileira, o Cinema Novo combatia, além dos filmes de estúdio, as chanchadas. A chanchada era condenada por sua falta de ousadia estética, por seu caráter de imitação do cinema de Hollywood, por ser um cinema primário e que não ajudava o trabalho de conscientização do público e de mudanças na realidade do país. Em suma, a chanchada era criticada, basicamente, por não se enquadrar nos projetos que as esquerdas brasileiras haviam elaborado para o Brasil e o povo brasileiro; na imagem que estas queriam passar do país; na proposta, mais específica, que as esquerdas criaram para a função que a arte deveria desempenhar naquela conjuntura. (SIMONARD , 2010)

Essa contradição de existir certa rejeição do público às obras de artistas, que buscavam justamente contato com o público para torná-lo mais crítico e consciente de sua condição, marcou quase todo o Cinema Novo. Mas, com uma produção intelectual ativa, os cineastas desse movimento elevaram a cinematografia brasileira. Uma 2 A famosa expressão conhecida como um lema do Cinema Novo, uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, deve ser atribuída ao diretor de fotografia e operador de câmera Dib Lufti (1936). No filme O menino da calça branca, de 1963, Lufti estreou como cinegrafista de cinema, pois antes só havia trabalhado com televisão. Ele soube dar forma às ideias dos diretores do Cinema Novo, era muito virtuoso com a câmera na mão, dando vida a esta técnica. Fez filmes com Nelson Pereira dos Santos, Arnaldo Jabor, Ruy Guerra, Eduardo Coutinho, Domingos Oliveira, Cacá Diegues, Walter Lima Jr, Roberto Farias, e foi operador de câmera de um filme muito importante do Cinema Novo, Terra em transe (1967), de Glauber Rocha.

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Na prática do Cinema Novo, elementos importantes da cultura popular brasileira foram deixados de lado, como o carnaval e as festas populares. Por conta do afastamento das formas narrativas mais comuns, pela recusa de imitação dos modelos europeus ou norte-americanos, pelo empenho em criar novas formas narrativas, o tradicional público de cinema afastou-se dos filmes do Cinema Novo. A burguesia e a classe média, que eram as classes que tinham maior acesso ao cinema, não aceitavam a imagem do Brasil que lhes era mostrada. Os filmes pretendiam atrair o público, queriam retratar o universo popular, colocado em contraposição ao da classe média, e, assim, o Cinema Novo fez sucesso entre os estudantes, cineclubistas e intelectuais, que concordavam com a visão política dos realizadores – além de conquistar grande reconhecimento no exterior, exatamente pela originalidade de seus temas e estilos. Sem conseguir acesso ao grande público brasileiro, uma das principais propostas do movimento, a conscientização do povo, não poderia atingir grande sucesso.

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nova forma de fazer cinema foi mesmo o grande marco desse movimento, uma arte política e esteticamente revolucionária. Glauber Rocha, um dos principais cineastas do movimento, criou com seus filmes e manifestos um cânone para todo o cinema latino-americano dos anos 60. Como já vimos, a independência ideológica e financeira pretendida pelos cineastas do Cinema Novo foi buscada a partir de um distanciamento do modelo de cinema industrial feito no Brasil até então, para eles comprometido com a mentira e a exploração. Partiam da liberdade do autor para realizar sua obra. Cinco vezes favela, de 1962, filme de episódios com direção de Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman, foi financiado pelo CPC, Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE). 3 Não existia uma base industrial interessada em financiar os filmes que eles queriam realizar. Como acentuava, então, Glauber Rocha, a indústria interferia na liberdade de criação do autor.

Cena do filme Cinco vezes favela (1962) Para o Cinema Novo, o cotidiano popular não deveria ser ridicularizado ou estigmatizado, como nas chanchadas, mas, sim, tomado como ponto de partida para uma crítica e reflexão. Os artistas defendiam o caráter coletivo e didático da obra de arte, assim como o compromisso político do artista; a arte deveria ser engajada. Portanto, estava destinada à intelectualidade a função de educar e orientar essas massas. Assim, adaptada à contingência histórica, a categoria povo agregaria diferentes classes sociais e grupos ideológicos em função de um último objetivo: a revolução brasileira. Logo, o povo em constante referência não era exatamente sinônimo de classes populares como tenderíamos a pensar, mas um conjunto de diferentes grupos, camadas e classes sociais comprometido com o “movimento nacionalista brasileiro”, no qual somente a formação de uma “frente única” seria capaz de interferir na estrutura da sociedade. (SOUZA , p. 133-159, 2003) 3 Organização de política estudantil criada por um grupo de estudantes e intelectuais de esquerda para criar e divulgar uma arte popular revolucionária.

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Para BERNARDET (1979), importante crítico e pensador do cinema brasileiro, o Cinema Novo mostrou e valorizou o povo, mas este cinema era feito por realizadores da classe média, e, portanto, os problemas sociais eram mostrados desse ponto de vista não popular. Era uma tentativa de produção artística realizada pela classe média em torno da representação do popular. Para CAPOVILLA (1962), o clima de subdesenvolvimento gera no cinema, e na arte em geral, saídas falsas, seja a imitação pura e simples da metrópole, seja o populismo regionalista sincero, mas inócuo. Essa representação do subdesenvolvimento por parte dos artistas da classe média pode mesmo denotar tanto uma grande percepção e capacidade em retratar o Brasil, como também uma fácil alegoria da realidade que se buscava retratar. Assim, pode-se dizer que o Cinema Novo não chegou a ser um cinema de grande público ou um cinema de consumo popular. A formação de uma intelectualidade engajada precisava passar pela formação de um público capaz de absorver o que estava sendo produzido no meio artístico e intelectual daquele período. Mas o Cinema Novo foi até o fim, e constitui parte importantíssima e fundamental da história do Cinema Brasileiro. FILMES DO CINEMA NOVO Para os cineastas do Cinema Novo, a neutralidade não era um critério de produção e criação artística, o que os autores buscavam era um posicionamento ideológico, para estimular reflexões críticas no público.

O que fez do Cinema Novo um fenômeno de importância internacional foi justamente seu alto nível de compromisso com a verdade; foi seu próprio miserabilismo, que, antes escrito pela literatura de 30, foi agora fotografado pelo cinema de 60; e, se antes era escrito como denúncia social, hoje passou a ser discutido como problema poítico. Os próprios estágios do miserabilismo em nosso cinema são internamente evolutivos. (ROCHA, 1965)

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A busca pelo compromisso com as verdadeiras questões sociais fez do Cinema Novo um fenômeno de importância internacional, por debater os problemas políticos e a desigualdade da sociedade brasileira, já anteriormente discutida pela literatura brasileira de 30. Os filmes do Cinema Novo, em alguns momentos, partem diretamente da literatura brasileira, como exemplificam obras como Macunaíma (1928, Mário de Andrade), Vidas secas (1938, Graciliano Ramos), A hora e a vez de Augusto Matraga (1946, Guimarães Rosa) e O pagador de promessas (1959, Dias Gomes), transpostas para o cinema com muito sucesso.

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Para retratar a realidade social brasileira como um todo, nua e crua, o Cinema Novo se voltou com frequência para a temática rural. Três obras fundamentais abordam a miséria humana no sertão: Vidas secas (1964), de Nelson Pereira dos Santos, Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha e Os fuzis (1964), de Ruy Guerra. Em Vidas secas (1963), filme dirigido por Nelson Pereira dos Santos, assim como a miséria da vida dos personagens nos toca e incomoda, a trilha é um zunido muito incômodo: as vidas são secas, o som é seco. Os primeiros minutos do filme acompanham a caminhada de uma família de retirantes, Fabiano, Sinhá Vitória, seus dois filhos e a cachorra Baleia, ao som de um berro incessante e incômodo. A intenção do diretor era justamente esta, a de causar desconforto no público e puxá-lo profundamente para dentro do filme, para a história que retrata a vida do sertão em seu âmago. Existe em Vidas secas um privilégio para a imagem, os planos são belíssimos e muito bem executados. O filme rodado em preto e branco salienta a falta de vida do lugar e dos personagens, jogando com o lado emocional do público. A falta de cor no filme retrata um mundo sem grandes referências históricas ou geográficas, sem datas. Esse mundo esvaziado de referências precisas, fechado em si, parece asfixiante. Quando saem desse vazio e vão para uma festa na cidade, por exemplo, são penalizados, Fabiano é preso, os personagens parecem não se enquadrar no mundo “lá fora”. Segundo SIRINO, é importante notar que a utilização de diferentes ângulos da câmera cria discursividade ao filme. Por exemplo, quando Fabiano está na prisão é utilizada uma câmera alta, enquadrando o personagem de cima para baixo, para salientar a humilhação de Fabiano e representar visualmente como o personagem fica diminuído. Quando a câmera enquadra o personagem de baixo para cima, evidencia a situação de superioridade dos policiais, o poder daqueles que o humilharam e espancaram. Vidas secas se antecipa e cria uma base que reforça o pensamento que, logo adiante, formulará a ideia de uma Estética da Fome. Apesar do trabalho árduo da família, a miséria persiste e a seca assola o sertão.

Cena do filme Vidas Secas (1963), dirigido por Nelson Pereira dos Santos.

O filme Macunaíma (1969), inspirado do livro homônimo de Mário de Andrade, critica de maneira sarcástica as elites brasileiras e, ironicamente, representa

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um Brasil em fase de modernização. Em Macunaíma, a sociedade é carnavalizada, é exposta através da sátira e do deboche às suas próprias mazelas. São utilizados elementos da chanchada, além da figura de Grande Otelo, estrela de vários filmes da Atlântida. A voz de um narrador, do começo ao fim do filme, nos conta as desventuras do herói sem caráter chamado Macunaíma. Mais acessível ao público por conta de sua linguagem, o filme bateu recordes de bilheteria. Joaquim Pedro de Andrade é diretor de outros importantes filmes do Cinema Novo, como O padre e a moça (1965) e Brasília, contradições de uma cidade nova (1967). Macunaíma é, como o são todos os filmes do Cinema Novo, muito crítico, mas por meio de outro viés, do riso do social e da sátira. Por esse aspecto, se diferencia bastante dos demais filmes do Cinema Novo. Em 1970, venceu na categoria de melhor filme no Festival Internacional de Mar del Plata, na Argentina.

Grande Otelo interpretando Macunaíma

No ano de 1964, os filmes Deus e o diabo na terra do sol e Vidas secas representaram o Brasil no Festival de Cannes. Ganga Zumba (1964, Carlos Diegues) também foi para a Semana da Critica, evento paralelo ao Festival, dedicado a filmes de estreia. O Festival de Cannes foi o suficiente para transformar Deus e o diabo na terra

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No enredo de um filme muito importante do Cinema Novo, Cinco Vezes Favela (1962), a desinformação impedia a população de tomar consciência da realidade em que viviam. Segundo CAPOVILLA (1962), a importância do filme se reveste mais por sua ideologia do que por seu valor artístico. Os acontecimentos nos diversos episódios do filme se desenvolvem tendo a luta de classes como pano de fundo, a favela como cenário social, os sujeitos desfavorecidos do cenário urbano como personagens. O filme foi realizado com cinco diretores e em cinco episódios, cinco curtas-metragens: Um favelado, Zé da Cachorra, Escola de samba Alegria de Viver, Couro de gato e Pedreira de São Diogo. Os diretores foram, respectivamente, Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman.

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do sol em uma espécie de estandarte do cinema jovem mundial. E ainda nesse mesmo Festival, Vidas secas recebeu alguns prêmios. No mês seguinte, Os fuzis, de Ruy Guerra, foi premiado com o Urso de Prata no Festival de Berlim. E, assim se abriu para o cinema brasileiro o reconhecimento da intelectualidade europeia.  O filme Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, é um marco do Cinema Novo. É uma epopeia sobre a vida sofrida no Nordeste do país, na terra desolada pela seca. O casal Manoel e Rosa tenta sobreviver em meio às sofridas atribulações do sertão, com a esperança de comprar um pedaço de terra. Manoel, depois de matar o patrão que o explorava, se junta a um grupo de religiosos, liderado por uma espécie de profeta, o “santo” Sebastião que lutava contra as desigualdades em busca do paraíso após a morte. Os detentores do poder, os latifundiários e a Igreja Católica, contratam Antônio das Mortes para matar Sebastião e seu grupo. Em meio às perseguições, Manoel se junta a Corisco, sobrevivente do bando de cangaceiros de Lampião. O filme mostra a revolta da população contra a exploração, além do mundo dos jagunços do sertão. É belo e desconcertante, pois descortina as relações entre religião e poder no sertão, onde o uso da violência acaba por explorar ainda mais a miséria dos homens. Com inspiração na literatura de cordel, um narrador musical guia todo o filme. Na voz do cantador Cego Júlio, as músicas entrelaçam as histórias e descrevem os personagens, como faz, por exemplo, com Antônio das Mortes: “Jurando em dez estrelas / Sem santo padroeiro / Antônio das Mortes / Matador de cangaceiro”. A épica perseguição final é bastante reforçada pela narração incessante dos versos “O sertão vai virar mar / E o mar vai virar sertão”, na caçada de Antônio Mataram Corisco, das Mortes a Corisco. Balearam Dadá. Se entrega, Corisco! O Sertão vai virar mar, Eu não me entrego não! E o mar vai virar sertão! Eu não sou passarinho Pra viver lá na prisão! Tá contada a minha estória, Se entrega, Corisco! Verdade, imaginação. Eu não me entrego não! Espero que o sinhô tenha tirado uma lição: Não me entrego ao tenente, Que assim mal dividido Não me entrego ao capitão, Esse mundo anda errado, Eu me entrego só na morte, Que a terra é do homem, De parabelo na mão! Não é de Deus nem do Diabo! Mais forte são os poderes do povo! Farreia, farreia, povo, Farreia até o sol raiar

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Cena do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha.

Enfim, o Cinema Novo problematizou questões políticas e econômicas do Brasil, retratando os problemas sociais com uma visão altamente estética e crítica, documentando as mazelas do povo brasileiro, trazendo o homem do sertão e o homem pobre como personagens centrais. O olhar crítico dos cineastas ao processo de expansão do país, ao capitalismo que aumentava as desigualdades sociais, é um olhar ainda altamente atual. Lembremos que no manifesto Estética da fome – ou, de acordo com a grafia que passou a adotar no final dos anos 70, Eztetyka da fome – Glauber Rocha queria alertar não apenas para a fome, mas para a alienação, a fome de educação e cultura. Desta forma, os cineastas do Cinema Novo tinham sede por realizações artísticas, e faziam um cinema independente que, na oposição ao cinema industrial, formou uma linguagem própria pela expansão do cinema brasileiro, na busca pela garantia de produção, distribuição e exibição, e pela valorização da cultura nacional. REFERÊNCIAS: CINEMA BRASILEIRO: UMA RETROSPETIVA HISTÓRICA

BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. Rio de Janeiro: Terra, 1979. CAPOVILLA, Maurice. Um cinema entre a burguesia e o proletariado. São Paulo: Brasiliense, 1962. CAPUZZO, Heitor (Coord). O cinema segundo a crítica paulista. São Paulo: Nova Stella, 1986. ROCHA, Glauber. Eztetyka da fome. 1965. Disponível em: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004. SIMONARD, Pedro. Origens do Cinema Novo: a cultura política dos anos 50 até 1964. Disponível em: SIRINO, Salete P. M. Vidas secas: da literatura ao cinema uma reflexão sobre suas possibilidades educativas. Disponível em: SOUZA, Miliandre G. Cinema Novo: a cultura popular revisitada. História: questões & debates (online). v.38, p.133-159, 2003. Disponível em: XAVIER, Ismail. Sertão Mar. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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06 CINEMA MARGINAL BRASILEIRO: MUITAS IDEIAS, POUCOS RECURSOS Fábio S. Thibes1 “O que é o cinema político brasileiro? É só você ver uma atriz como Maria Gladys gritando o tempo todo do filme: Tô com fome! Tô com fome!”2

Alheios às proposições políticas e estéticas do Cinema Novo e à criação da Embrafilme, uma geração de novos e ousados diretores decide fazer cada qual o seu cinema, independente e autoral. O cinema paulista entre as décadas de 1960 e 1980 volta-se à Boca do Lixo, e ali surge um polo produtor de alguns dos mais audaciosos filmes da cinematografia brasileira. O chamado Cinema Marginal nasce nesse contexto com o longa-metragem A margem (1967), de Ozualdo Candeias, e, estabeleceu-se como término do movimento a censura federal aos longas Orgia ou O homem que deu cria, de João Silvério Trevisan, e República da traição, de Carlos Ebert, ambos de 1971. Ainda que sua essência estética esteja presente na filmografia posterior dos seus principais diretores. Influenciados pelos filmes de gênero, todos eram bem-vindos: terror, policial, drama, comédia erótica (vulgo pornochanchada), até filmes de protesto contra a ditadura militar. Sem um horizonte comum entre os realizadores, surgiram diferentes temáticas e estilos. Ousavam experimentar e tinham na invenção sua condição primária; ou melhor, na quebra das narrativas clássicas em prol de uma inventividade excêntrica de cada realizador. 3 Estudo orientado pela Professora Dra. Salete Paulina Machado Sirino.

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Guaracy Rodrigues falando do filme Sem Essa Aranha (1970), em depoimento para o documentário Elogio da Luz (2003), direção de Joel Pizzini.

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A irreverência ao tratar de temas sociais polêmicos, o sarcasmo e a ironia com a realidade sociopolítica brasileira, que na época enfrentava o auge da ditadura militar – e em níveis internacionais observava amedrontada a Guerra Fria –, e, principalmente, a vontade de superar qualquer dificuldade e produzir filmes de baixo orçamento são eixos comum aos filmes marginais, reino de José Mojica Marins, Ozualdo Candeias, Rogério Sganzerla, Júlio Bressane, João Callegaro, Carlos Reichenbach, Andrea Tonacci, Ivan Cardoso, Carlos Ebert, João Silvério Trevisan, Maurice Capovilla, Júlio Calasso Jr, Jairo Ferreira, e tantos outros. A memória guarda do Cinema Marginal predominantemente a imagem em preto-e-branco, onde o “popular e sofisticado” 4 surgem em meio a cenas grotescamente construídas com câmera na mão e diálogos que extrapolam o senso comum. Uma liberdade irresponsável resiste mesmo em um período de extrema repressão, a crítica é escracho ou sarcasmo. Fernão Ramos em seu livro Cinema Marginal (1968/1973): A Representação em seu Limite define a estética marginal com o conceito de curtição: O ruim, o sujo, o lixo, o cafajeste, são todos aspectos de uma mesma faceta que, se vem caracterizar de maneira marcante a estética do cinema marginal, ganha toda sua dimensão quando os incluímos dentro do quadro de humor irônico e debochado da ‘curtição.’ (RAMOS, 1987, p. 42).

Como afirma Jorge Loredo no documentário Elogio da luz (2003), de direção de Joel Pizzini.

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Célebre máxima retirada de diálogos do filme O bandido da luz vermelha (1968).

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Essa postura de tendência anárquica não era sem motivo. O Cinema Marginal encontrava-se em sintonia a outros movimentos contraculturais da época, como a Tropicália no Brasil, o movimento hippie e psicodélico nos EUA, e as ações anarco-revolucionárias de Maio de 1968 na Europa. Nesse contexto Jimi Hendrix é tão importante quanto Noel Rosa, e essa percepção futurística de um crítico e realizador como Rogério Sganzerla permitiu a estes cineastas se desgarrarem da problemática – “O Terceiro Mundo vai explodir!” 5 – que originara o Cinema Novo, e avançarem por outros caminhos, sob outras influências, fazendo um cinema tipicamente brasileiro e ao mesmo tempo experimental, autoral. Quanto à controversa nomenclatura, o termo Cinema Marginal surgiu do filme A margem, longa-metragem inaugural do movimento, e da ambiguidade de sentido entre quem está à margem da sociedade, o marginal, e a própria margem do rio (no filme). Isso facilitou a popularização do termo, até hoje o mais aceito e difundido. No entanto vários dos envolvidos no Cinema Marginal se incomodaram com essa alcunha – pode soar pejorativo, apesar da máxima de Hélio Oiticica: “seja marginal, seja herói” –, e preferiram outros termos como o Cinema de Invenção cria-

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do por Jairo Ferreira, e o Cinema de Poesia de Júlio Bressane. Glauber Rocha chegou a chamá-los de udigrudi, em referência ao underground norte-americano – e, apesar, da tentativa de deslegitimá-los, Glauber não estava tão errado. De fato as influências cinematográficas desses diretores estavam mais ligadas ao cinema norte-americano de Orson Welles, Samuel Fuller, Nicholas Ray e Hitchcock, em detrimento do cinema europeu de arte – com algumas exceções, a exemplo da influência da nouvelle vague. Carlos Reichenbach reitera: O Cinema Marginal era uma resposta sessentaoitista (68) ao Cinema Novo, ao eleger o underground e o Cinema B americano, a Nouvelle Vague e cineastas formados pela vida como Candeias e Mojica Marins como modelos e ícones. (STERNHEIM, 2005, p. 28).

Neste artigo pretendo construir um panorama histórico cronológico, dentro do possível, com os principais cineastas e locais de criação e/ou discussão do Cinema Marginal6, do precursor José Mojica Marins ao ápice criativo do movimento: a produtora Belair de Rogério Sganzerla e Júlio Bressane. Partindo da proposta do livro Cinema de Invenção, do crítico e cineasta Jairo Ferreira, e utilizando-o como principal referência. MOJICA: O GÊNIO TOTAL Nas origens do Cinema Marginal, José Mojica Marins foi o protagonista. O diretor e ator que ficou popularmente conhecido por seu personagem Zé do Caixão foi o grande precursor do movimento, pioneiro do cinema de terror brasileiro, um ícone que inspirou outros cineastas. Reconhecido a princípio apenas nas críticas de Rogério Sganzerla e por alguns visionários como Luís Sérgio Person, seu talento foi comprovado pelas dezenas de filmes produzidos em mais de 50 anos de carreira, e da reverência e amizade não só de Sganzerla, mas de praticamente todos os cineastas que trabalharam na Boca do Lixo. Nascido na cidade de São Paulo, em uma sexta-feira 13 (de março de 1936), José Mojica Marins teve os primeiros contatos com o cinema em sua própria família: seu tio era dono do Cine Santo Estevão, e seu pai tornou-se gerente do lugar. Sua infância e juventude foram permeadas pelos filmes exibidos no cinema de seu tio, e assim, sua paixão pelo cinema nasceu precoce e nevrálgica. Após conseguir a primeira câmera 9,5mm, presente de seu pai, Mojica faz dezenas de curtas-metragens mudos de pura experimentação, projetados no cinema da família. “Depois que eu passei para o 16 mm, a gente alugava projetor na rua do Triunfo”7, conta Mojica em entrevista. Em especial a produção paulista da Boca do Lixo de 1967 a 1971.

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Aos 17 anos funda com a ajuda de amigos a Companhia Cinematográfica Atlas, renomeada depois para Cia Cinematográfica Apolo e, nessa primeira produtora independente, inicia uma escola de atores que manteve todo o tempo associada à atividade de produtor, dando aulas de interpretação para formar atores para suas produções. Entre 1954 e 1956 produz seu primeiro longa-metragem em 35mm: Sentença de Deus, filme inacabado – entre outros motivos, devido à morte da atriz Conchita Espanhol durante o período das filmagens. Seu primeiro filme exibido em cinemas, A sina do aventureiro (1958), com praticamente todo elenco proveniente de sua escola de atuação, é um faroeste filmado em cinemascope, e teve relativo sucesso no Cine Coral, em São Paulo. Para produzir esse filme Mojica adota um sistema de cotas: cada ator ou membro da equipe deve comprar/vender cotas do filme, a fim de arrecadar dinheiro para a produção. A ideia será copiada por outras produções marginais. Antes do pesadelo que lhe inspiraria a criar o personagem Zé do Caixão, Mojica realiza o longa-metragem Meu destino em tuas mãos (1963) inspirado pelo padre Lopez que dirigia a Escola São Luís, e pede ajuda a Ozualdo Candeias para criar o roteiro de um drama familiar, com momentos de musical. “Bom, então fomos procurar uma pessoa, o Ozualdo Candeias, que estava sempre de papo com a gente, falei que a história estava pronta, só não estava dividida em seqüências. Aí o Candeias fez o roteiro”.8 O filme foi um fracasso de bilheteria, em partes por ser “água com açúcar”. O disco da trilha-sonora fez mais sucesso que o filme, mas a parceria com Candeias e o pessoal da Escola São Luís se mantém em outros projetos, até Trilogia do terror (1968), o filme de três episódios em que Mojica dirige um, Candeias outro e Luís Sérgio Person – professor na São Luís –, outro mais. Todos eles, mentores da geração de cineastas marginais.

8 José Mojica Marins em entrevista ao Portal Brasileiro de Cinema. Disponível em: . Acesso em 06 nov 2013.

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Ao criar Zé do Caixão, Mojica continua com seu modo de produção, mas muda completamente a temática, encontrando no gênero terror e no assustador personagem a sua própria identidade cinematográfica. O coveiro Josefel Zanatas nasce com mística ao irromper para a realidade, vindo de um sonho, e transforma-se num legítimo personagem brasileiro, sem influência direta de nenhum outro mito estrangeiro. À meia-noite levarei a sua alma (1964) foi o primeiro filme de Mojica interpretando Zé do Caixão. Na história ele é um coveiro que tem obsessão em gerar o filho perfeito, e pelo comportamento excessivamente niilista e violento é temido e odiado em seu vilarejo. O filme tem decupagem simples e funcional, e “as referências vão do capa e espada à science-fiction, passando pelo desenho animado e o circo” (FERREIRA, 1986, p. 98), tornando-o popular mesmo num contexto em que a produção de filmes do gênero terror era quase inexistente, como o brasileiro.

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Apesar da temida censura da ditadura militar o personagem Zé do Caixão e sua filosofia continuaram nos filmes seguintes: Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967) e O estranho mundo de Zé do Caixão (1968). Após a interdição da censura de Ritual dos sádicos/Despertar da besta (1969), Mojica decide deixar de lado o personagem por um tempo e cria Finis hominis (1971), personagem e filme homônimos, o contrário de Zé: um ser pacífico e bondoso. O maniqueísmo implícito aos personagens é interessantíssimo, e revela mais uma vez o pluralismo existente em José Mojica Marins. No entanto, essa fase é breve e dura apenas mais um filme, Quando os deuses adormecem (1972), terminando em 1973 quando Mojica dirige sua primeira pornochanchada, A virgem e o machão, seguindo a tendência que se instalava na Boca do Lixo da época. Curiosamente, o filme é um tremendo sucesso de bilheteria, ultrapassando a marca de um milhão de espectadores e se constituindo no filme de melhor público dirigido por Mojica, ainda que em uma temática em que ele não era mestre. A partir daí Mojica vai trabalhar em diversos projetos diferentes, que vão de programas de TV a filmes de sexo explícito, sem esquecer o personagem Zé do Caixão que foi sua maior criação. Um de seus principais legados foi a conhecida escola de atores, depois transferida para uma sinagoga abandonada e chamada de Estúdio Mojica, no bairro do Brás. Lá, sua forma única de direção e interpretação para cinema torna-se evidente. “Seus atores são recrutados na multidão, geralmente office-boys, empregadas domésticas, marginais suburbanos” (FERREIRA, 1986, p. 101), conta Jairo Ferreira. Exímio articulador de suas produções, Mojica era exigente com sua equipe, e fazia-os passar por todo tipo de prova que julgasse necessário, a fim de tirar-lhes os vícios de atuação que pudessem ter: Eu fui ao seu teste de atrizes na sinagoga abandonada do Brás. Vi Mojica bater e ser surrado, fazer uma mulher engolir baratas e beijar uma cobra. O canastrismo serve perfeitamente às suas intenções: dar o show, o espetáculo, mexer com a aventura. (FERREIRA, 1986, p. 98).

Assumidamente analfabeto9, Mojica descobriu desde jovem sua forma de se expressar: o cinema. E nisto foi genial – ou como chamado por Sganzerla no filme Horror Palace Hotel (1978), de Jairo Ferreira: foi o gênio total. Cada fotograma filmado por José Mojica Marins respira cinema e somente cinema. Tudo é inseguro, pode explodir a qualquer instante, a exasperação domina. Ele ameaça as relações normais entre os atores, entre a câmera e o décor, o diálogo e a realidade. (...) Ainda não sei bem o que é, só sei que Mojica arrisca-se (...) entre o tudo e o nada. “Do nada faz tudo, ao contrário daqueles que em cinema tem tudo e não fazem nada!” (FERREIRA, 1986, p. 97-98). 9 Conforme conta Mojica no documentário sobre ele mesmo, O Universo de Mojica Marins (1978), direção de Ivan Cardoso.

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A descrição acima para o cinema de Mojica muito bem pode aplicar-se a quase todos os filmes marginais. Sua vontade incessante de realizar filmes autorais, sem financiamento estatal, recorrendo aos recursos que dispunha, inspirou uma nova geração de cineastas que à época da estreia de À meia-noite levarei sua alma ainda não eram realizadores, mas se admiraram e se influenciaram tanto técnica quanto esteticamente pelo provocador filme de Mojica. ESCOLA SÃO LUÍS – BAR RIVIERA A Escola Superior de Cinema São Luís foi criada em 1965 pelo padre jesuíta Lopez anexa à tradicional Escola São Luís, em São Paulo, tornando-se a primeira a nível universitário a propiciar uma formação teórico-prática em cinema. Lopez era um cinéfilo e entusiasta, mas tinha com a Escola e com a Igreja Católica o intuito de ligar o cinema aos valores cristãos. É de se surpreender que ali se desenvolveu um dos polos de discussão que levou ao surgimento do Cinema Marginal.

João Callegaro em entrevista à revista virtual Zingu!. Disponível em: . Acesso em 06 nov 2013.

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Apesar da proposta inovadora que continha professores renomados, como Luís Sérgio Person, Roberto Santos, Paulo Emílio Salles Gomes, Anatol Rosenfeld, Mário Chamie e Décio Pignatari, a Escola não durou muito tempo, cerca de dois a três anos, sendo fechada pela Igreja sem maiores explicações. Outros grandes nomes como Maurice Capovilla também deram aulas por meio de seminários. A primeira turma, apadrinhada por Roberto Santos, tinha como principais expoentes João Callegaro e Carlos Ebert. Já a segunda, apadrinhada por Luís S. Person, teve Carlos Reichenbach como gênio precoce. Roberto Santos – diretor de O grande momento, 1958, e A hora e vez de Augusto Matraga, 1965 – e Luís Sérgio Person – diretor de São Paulo S.A., 1965, e O caso dos irmãos Naves, 1967 – vinham realçados por seus filmes, obras-primas do cinema paulista recente. “Todos os grandes intelectuais de São Paulo, com algumas exceções, deram aula lá. O Rogério (Sganzerla) não participou, ele já era crítico.”10 Person, com São Paulo S.A., havia retratado de forma crítica a urbanização desenfreada da maior cidade do país, e o surgimento de uma nova burguesia industrial em contraponto à alienação popular generalizada; e com O caso dos irmãos Naves, fez o mais cru retrato da violência e da perversidade do sistema, revelando os horrores de seu aparato judiciário policial, ao recriar um caso da época do Estado Novo em plena ditadura militar – temas que o Cinema Marginal também se apropriaria para compor quadros de escárnio e crítica satírico-irônica. Antenado no cinema brasileiro da época, sem amarras ao Cinema Novo ideologicamente dominante na época, Person soube repassar referências e influenciar seus alunos:

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Um dia Person resolveu quebrar o protocolo e testar a percepção e os preconceitos de seus discípulos. Mandou instalar um projetor na sala e apareceu acompanhado de um homem barbudo, meio esquisito, com umas unhas enormes. Foi logo dizendo: “Agora vocês vão ver cinema de verdade!”. E para espanto de, no mínimo, 56 aspirantes a cineastas foi exibido À Meia-Noite levarei sua alma. Quando as luzes voltaram a acender, Person não deixou ninguém sair da sala. Durante mais de meia hora fez um discurso laudatório e superlativo enaltecendo a criatividade e ousadia de seu convidado. Naquele dia descobri que eu não era o único maluco que havia se encantado com José Mojica Marins, quando entrei no cine Art Palacio, lá pelo idos de 65, fugindo da polícia política e das bombas de gás lacrimogêneo e me deparando - por puro acaso - com aquele filme insólito, blasfemo e brasileiro até a medula. Rever o filme, com o aval de Person e mais três ou quatro colegas (tão esquisitos quanto eu) me deu a certeza que aquele era o cinema que me interessava.

Um detalhe não menos importante é a relação da Escola com o Bar. Ainda hoje muitas reuniões são feitas em mesas de bar, e era assim também em 1965, quando o Bar Riviera, na Rua da Consolação, virou o “reduto/escritório/plenário” tanto dos alunos da São Luís quanto de entusiastas agregados, como Rogério Sganzerla, Ozualdo Candeias e Jairo Ferreira. Como nos lembra EBERT, que logo após esse período na São Luís consagrou-se ao assinar a direção de fotografia de O bandido da luz vermelha: “Lá (Bar Riviera) discutíamos tudo o que se relacionasse direta ou indiretamente, de qualquer forma e com qualquer grau de proximidade, com o cinema.” E complementa: “Person era o único entre os professores que baixava regularmente no Riviera para confraternizar e participar das intermináveis discussões.” A experiência na Escola São Luís propiciou uma forma de entrada ao cinema a diversos jovens sonhadores, que souberam fazer amizades e contatos profissionais para depois produzirem seus longas-metragens11. E acima de tudo, foi uma grande roda de discussão onde apenas o cinema importava. Aliás, Cinema, com C maiúsculo. “Eu (Carlos Ebert), Cláudio Polópoli, Ana Carolina, João Callegaro e Carlão Reichenbach contentávamo-nos em viver de querer fazer e discutir Cinema. Assim mesmo; com letra maiúscula.” Deve-se destacar ainda a Sociedade Amigos da Cinemateca12, que neste período serviu como verdadeiro polo aglutinador de pensamento e reflexão sobre o cinema brasileiro. Frequentavam nomes como Glauber Rocha, Paulo Emílio Salles Gomes, Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach e Jairo Ferreira.

De fato, várias parcerias foram feitas, a exemplo de João Callegaro que iniciou profissionalmente como diretor de produção para Roberto Santos, em O homem nu, 1968.

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A SAC, entidade civil sem fins lucrativos, foi criada em 1962 com o objetivo de apoiar a Cinemateca Brasileira no cumprimento de sua missão institucional. 

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A MARGEM DE CANDEIAS Se o terreno para o surgimento de um novo movimento cinematográfico estava preparado, foi A margem (1967), longa-metragem de Ozualdo Candeias, o broto fundador desse conjunto de filmes que chamamos de Cinema Marginal.

Em A Margem, que foi rodado em tempo e condições recordes, com orçamento baixíssimo e absoluta parcimônia de recursos técnicos, Candeias, numa intuição e simplicidade quase parecida à dos verdadeiros pintores ou artistas primitivos, procurou narrar duas histórias paralelas que não se entrosam, mas, afinal, dão sentido e unidade à ação fílmica. Para uma delas ele buscou inovação: a narração inteiramente em câmera subjetiva, processo que lhe pareceu inédito. (...) Já na segunda, narrando uma história entre verista e simbólica, indiscutivelmente ligada ao mais genuíno primitivismo paulistano (...), As biografias divergem entre 1918 e 1922 enquanto seu ano de nascimento, e Mato Grosso do Sul ou São Paulo enquanto seu estado de nascimento.

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14 Entre outros – para mais detalhes, ver trechos selecionados no capítulo de “Candeias “ no livro Cinema de Invenção, de Jairo Ferreira.

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“Primeiro e último marginal, ou marginal entre marginais, Candeias é um monumento do experimental em nosso cinema” (FERREIRA, 1986, p. 56). Ozualdo Ribeiro Candeias tem data e local de nascimento desconhecidos13. Autodidata assim como José Mojica Marins, Candeias passou por diversos trabalhos que pouco tinham a ver com cinema: foi militar, motorista de caminhão, chofer de táxi, entre outros. Ao fixar residência em São Paulo, compra uma câmera de 16 mm com a qual passa a filmar sua família. Seu primeiro filme é o curta-metragem documental Tambaú – a cidade dos milagres (1955), onde já se torna visível sua preocupação com os desafortunados. Narra a história de romeiros que esperavam milagres de um padre em Tambaú. Motivado pelo resultado do filme que chegou a circular em cinemas do interior, Candeias vira cinegrafista trabalhando para cinejornais, enquanto cursa por três anos o Seminário de Cinema promovido pelo MASP, a fim de receber uma formação teórica. Financiado pelo governo do Estado de São Paulo, Candeias dirige dois curtas-metragens documentais: Polícia feminina (1958) e Ensino industrial (1962). Em parceria com José Mojica Marins, escreve o roteiro de Meu destino em tuas mãos (1963), e trabalha como assistente de direção em À meia-noite levarei sua alma (1964). (CANDEIAS, 2001, p.85) A Margem foi sua estreia na direção de longa-metragem, trazendo um imediato reconhecimento através de críticas elogiosas de Rubem Biáfora, Alex Viany e Moniz Viana14, e pela premiação de melhor direção do ano de 1967 pelo Instituto Nacional de Cinema (RAMOS e MIRANDA , 1980, p. 81). Certamente um grande feito para um estreante, e principalmente, para um filme tão experimental. Rubem Biáfora, em crítica para o jornal O Estado de S. Paulo (05/02/1967), transcrita no livro Cinema de Invenção, sintetiza:

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e debruçando-se sobre a existência dos vagabundos, mendigos, marginais e prostitutas das margens do rio Tietê. (FERREIRA, 1986, p. 49).

Feito com orçamento extremamente reduzido e elenco formado por iniciantes – a exceção de Mario Benvenutti – , A margem foi um filme em que só Candeias sabia o que queria. Fez quase tudo sozinho: roteiro, produção, fotografia adicional, direção e montagem. A película usada era proveniente de restos de outras produções da Boca do Lixo. O filme não tinha roteiro estabelecido, apenas algumas páginas de anotações, e instruções eram dadas à equipe na véspera da filmagem.15 Quanto aos personagens, Candeias estabelecia intenções emocionais em vez de ações pré-determinadas, permitindo aos atores criar livremente e em improviso. A forma de filmá-los também foi inovadora, uma vez que Candeias aproximou a câmera dos atores a fim de revelar suas expressões diretamente, “fazendo a câmera atuar pelos atores.” 16

Só o que sei é que eu não levo os roteiros para passear na hora de filmar. Isso tem uma razão: não é para dar uma de bom, é que no local de filmagem eu passo a ter algumas ideias. E se eu me escravizar ao roteiro... 17

Jairo Ferreira em depoimento ao documentário Candeias – Da boca para fora (2003), afirma: “(...) pelo tom pessoal, pela busca da estética, pela originalidade da narrativa... De tal forma que é um cineasta que não influenciou outros cineastas porque sua forma de narração era totalmente original, impossível de ser imitada”. Exageros à parte a poética construída em A margem inevitavelmente é comparada a Limite (1931) de Mário Peixoto, outra obra singular, em especial devido à presença do barco navegante – para alguns, o barco de Caronte, da mitologia grega. Filme de expressões, de olhares e de gestos, tem sua máxima expressão na imagem. A pouca quantidade de diálogos é prova disso, e deve-se ainda destacar a trilha-sonora instrumental eclética. O realismo jornalístico da filmagem deve-se ao passado de cinegrafista de Candeias, e essa vivência prática foi para ele o que Edgar Brazil foi para Peixoto. A diferença entre as narrativas é que em A margem a beleza surge do submundo, e seus personagens são sombras aguardando a morte num pano de fundo formado pelas margens miseráveis do rio Tietê. Sua poesia de corpos é primazia da decupagem e da câmera na mão, e destaca este belo em meio ao lixo. O Conforme depoimento de Bentinho no documentário Candeias – Da Boca para Fora (2003), direção de Celso Gonçalves.

15

Inácio Araújo em depoimento ao documentário Candeias – Da Boca para Fora (2003), de direção de Celso Gonçalves.

16

Ozualdo Candeias em entrevista para o Portal Brasileiro de Cinema. Processo Criativo. Disponível em: . Acesso em 06 nov 2013.

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filme, que se utiliza da ambiguidade de seu título, nomeia todo o movimento subsequente, e ao fazer um retrato experimental da população marginalizada e à margem – do rio, e da sociedade – dá o caminho que será seguido pelos demais cineastas. O Cinema Marginal nasce da lama do rio Tietê para a poeira das ruas da Boca do Lixo. Ozualdo Candeias trouxe como inspiração aos demais cineastas marginais sua vontade de fazer cinema independente do resultado, como verdadeiro artista formado pela estrada. Sua inventividade de narração e utilização do som lhe rendem também louros na história do cinema experimental, ou cinema de invenção. Realizou após A margem um episódio do filme Trilogia do terror (1968); os longas Meu nome é Tonho (1969), sucesso de bilheteria; e A herança (1971), uma adaptação cinematográfica de Shakespeare. E por fim, ainda no período do Cinema Marginal, teve ceifados pela censura seus filmes: Caçada sangrenta (1973) e os médias ZéZero (1974) e Candinho (1976). SGANZERLA: O BANDIDO DA LUZ VERMELHA Se A margem é o marco inicial do Cinema Marginal, sem dúvida alguma O bandido da luz vermelha (1968) é o ápice do movimento. O longa-metragem dirigido por Rogério Sganzerla é, até hoje, o filme mais conhecido deste período; marcando gerações de espectadores e se consolidando como um dos principais filmes de toda a cinematografia brasileira, sucesso de bilheteria e de crítica.

Nascido em Joaçaba - Santa Catarina, em 1946 –, Rogério Sganzerla foi amigo de infância de seu conterrâneo João Callegaro. Gênio precoce, diz-se que até os cinco anos mal falava, aos sete já havia escrito um livro de contos e aos 11 escrito o seu primeiro roteiro de longa-metragem.18 A paixão pelo cinema vem da infância, mas aflora aos 13 anos, quando se muda para Florianópolis e começa a frequentar o cineclube do Colégio dos Irmãos Maristas. Os dois amigos de infância acabam por se mudar ainda adolescentes para São Paulo. Callegaro foi com a família em 1960, e, a partir de 1965, começou a frequentar a Escola Superior de Cinema São Luís. Sganzerla foi sozinho no ano seguinte, 1961, e se instalou em uma pensão a fim de cursar direito e administração na faculdade Mackenzie.19 Já determinado a fazer cinema, vira frequentador assíduo da Ci18 PIZZINI, Joel. Pré-Ocupação de um Visionário. Catálogo da Mostra Ocupação Rogério Sganzerla, promovida pelo Itaú Cultural.

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Não é à toa que o subtítulo do capítulo dedicado a Sganzerla no livro Cinema de invenção de Jairo Ferreira chama-se: Rogério Sganzerla, ponto de partida avançado. Ouso afirmar que o crítico e diretor foi o cérebro do movimento, e que sem O bandido da luz vermelha o Cinema Marginal não seria o mesmo.

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nemateca Brasileira, enriquecendo sua cinefilia. E, como consequência ao seu talento nato, apenas dois anos depois foi convidado por Décio de Almeida para escrever o Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo, onde descobriu na crítica cinematográfica uma vocação. Abandona a faculdade, dedica-se exclusivamente ao cinema, e funda com Maurice Capovilla uma página de cinema no Jornal da Tarde. Ainda iria se tornar redator da revista Visão, e dos jornais Folha da Tarde e Última Hora. Neste período Rogério Sganzerla conhece Andrea Tonacci, que encontra nele, além da amizade, um parceiro ideal aos seus projetos cinematográficos. Com a câmera Bolex 16 mm de Tonacci e a pequena moviola de Sganzerla, os dois se unem a Otoniel Santos Pereira e produzem três curtas-metragens em sequência no ano de 1966. Rogério dirige seu primeiro curta-metragem: Documentário, com Tonacci assinando a direção de fotografia. No mesmo ano retribui assinando a montagem de Olho por olho, primeiro curta-metragem de direção de Andrea Tonacci. E a dobradinha Tonacci-fotógrafo e Sganzerla-montador se repete no curta O pedestre dirigido por Otoniel Santos Pereira.20 Documentário é, na verdade, um curta-metragem de ficção, e por aí começa a ironia do enfant terrible brasileiro. Metalinguístico, o tema do filme é o próprio cinema: dois rapazes que andam sem rumo pelo centro de São Paulo, discutindo sobre suas preferências, enquanto admiram as fachadas e os cartazes dos cinemas. Fuller, Welles e outros nomes surgem em meio a diálogos e/ou imagens. Profético, o filme traz alguns elementos que ele viria a utilizar em O bandido da luz vermelha, como a ironia, a metalinguagem e a acidez verborrágica dos diálogos. – Vamos mudar de assunto, falar de outra coisa. – E do que você quer que eu fale aqui em São Paulo? – É que cinema tá ficando um assunto sério demais. (...) – É a fossa paulista, né. – Além de ser fossa, é subdesenvolvida. 21

Documentário ganhou o prêmio do Festival de Cinema Amador Jornal do Brasil – Mesbla, o que lhe rendeu uma viagem para o Festival de Cannes, na França. Na volta para o Brasil, Rogério escreve o argumento de seu primeiro longa-metragem, e ao ver nos jornais um bandido mascarado que detinha fama na época, une o personagem real – criado pela mídia – ao seu filme-soma: “um far-west [sobre o III Conforme entrevista de João Callegaro à revista virtual Zingu!. Disponível em: . Acesso em 06 nov 2013.

19

Conforme conta Andrea Tonacci em depoimento ao documentário Elogio da Luz (2003), direção de Joel Pizzini.

20

21

Diálogos do curta-metragem Documentário (1966), direção de Rogério Sganzerla.

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Mundo], mas também musical, documentário, policial, comédia (ou chanchada?) e ficção científica” 22. O bandido da luz vermelha, como o filme ficou chamado, é a síntese máxima do pensamento sganzerliano em linguagem cinematográfica, um elo de transição entre o Cinema Novo e o recente Cinema Marginal. Numa de suas frases mais conhecidas, o autor declara ser O bandido da luz vermelha ‘um far west sobre o terceiro mundo’. A faceta ambígua de O bandido, entre o Marginal e o Cinema Novo, revela-se mais uma vez: far west em sua metade Marginal; terceiro mundo em sua metade Cinema Novo. (RAMOS, 1987, p. 130).

O filme conta a história do bandido da luz vermelha, do relato de sua infância ao seu suicídio, focando nas questões existenciais inerentes àquele homem. De sua moral duvidosa detém uma premissa: “Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha. Avacalha e se esculhamba.” Errante, o bandido torna-se o mais autêntico anti-herói tupiniquim, um boçal com nosso jeitinho brasileiro, mais um transeunte habitual da Boca do Lixo. “O primeiro filme totalmente rodado no bairro mais perigoso de São Paulo, a Boca do Lixo” (FERREIRA, 1986, p. 61), filme que tem na vida à margem seus personagens caricatos: o bandido, a prostituta, os terroristas, os indigentes e os favelados. Diferente do retrato mais poético e contemplativo apresentado em A margem, a narração over d’ O bandido traz o escracho, e o ritmo alucinante das situações inundadas em citações cria um ambiente onde a poesia é trocadilho, é pop, é também história em quadrinhos.

Rogério Sganzerla reúne suas influências estéticas e as devora antropofagicamente, tal qual os tropicalistas fizeram na MPB, criando uma paródia da sociedade em estado de choque que se deflagrava na época. Utilizando a figura do bandido João Acácio Pereira da Costa, assaltante que usava uma lanterna vermelha, Sganzerla conseguiu criar uma trama que abordava sob citação ou metáfora o contexto político brasileiro, os meios de comunicação – em especial o rádio e o jornal. Através de uma narração hiperbólica, irônica, imitação dos programas policiais, abordava a política Trecho do manifesto Cinema Fora da Lei, lançado por Rogério Sganzerla junto de seu filme.

22

Declaração de Rogério Sganzerla citada em coluna de Alex Viany para o jornal Tribuna da Imprensa, 5 de dezembro de 1968.

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“Se escolhi o bairro para falar do Brasil”, é porque esse bairro se chama Boca do Lixo. Não é símbolo, mas sintoma de uma realidade. Dentro de uma sinceridade total, tentei mentir e dizer a verdade, ser triste e violento, boçal e sensível, acadêmico e criador. Enfrentei uma parada diabólica: os maiores riscos para um estreante na longa-metragem com a simples certeza de que o cinema brasileiro é o cinema do risco, onde tudo é possível.23

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feita de populismo imoral e hipócrita e as organizações paramilitares que existiam na época – no filme representadas pelos integrantes da Mão Negra –, e, principalmente, a “sociedade delirante, ameaçada por um criminoso solitário” 24. É nítida em seu filme a consciência do momento histórico que estava vivendo: no Brasil conflitos entre a sociedade civil, guerrilhas urbanas e o aparato policial da ditadura militar; na Europa e nos EUA as manifestações contraculturais; e a nível global, as tensões de uma Guerra Fria que prometia aniquilar a vida na Terra com suas milhares de bombas nucleares. Nesse contexto, bradar que: “O Terceiro Mundo vai explodir!” parece razoável, e fornece um tom crítico ao mesmo tempo que humorístico. “É um bom pretexto para refletir sobre o Brasil da década de 60. Nesse painel, a política e o crime identificam personagens do alto e do baixo mundo.” 25 O bandido da luz vermelha é, assim, um filme bomba-relógio, que merece ser visto e revisto e “re-revisto”, demonstração clara do gênio de Rogério Sganzerla e dos tempos urgentes que já não se pautavam apenas nas proposições do Cinema Novo. Para conter essa carga teórica em que o filme se baseia, Sganzerla escreveu um manifesto chamado Cinema fora da lei, lançado à época da estreia de O bandido. No manifesto ele deixa claro suas referências, com destaque aos cineastas norte-americanos que o Cinema Novo ignorava: Fuller, Mann, Keaton, Ray, Hitchcock e Orson Welles – seu maior ídolo, a ele dedicou críticas e inclusive filmes. Dos europeus ele cita Rosselini pela sinceridade, Godard porque “ensinou a filmar tudo pela metade do preço”, Murnau por “amar o plano fixo”. Cita o anjo exterminador Buñuel e não esquece o soviético Eisenstein. Dos brasileiros, há o destaque para José Mojica Marins, “cineasta do excesso e do crime”, porque o ensinou a ser “livre – e ao mesmo tempo – acadêmico”, e mesmo Glauber Rocha é lembrado por causa de seu cinema de guerrilha. O bandido da luz vermelha foi um sucesso tanto de público quanto de crítica.  “Foi lançado em 42 salas de cinema em São Paulo. É um filme que se pagou em uma semana” 26. Prestigiado, o filme obteve destaque no III Festival de Brasília, com os prêmios de melhor filme, melhor diretor, melhor diálogo, melhor figurino e melhor montagem. De certa forma, O bandido da luz vermelha se tornou para Sganzerla o que Cidadão Kane foi para Orson Welles. Rogério filma no ano seguinte A mulher de todos (1969), longa-metragem que revelaria o potencial anárquico de atuação de Helena Ignez, tornando-a também coautora do filme e consagrando-a enquanto musa do Cinema Marginal. A atriz que Trecho do manifesto Cinema Fora da Lei, escrito por Rogério Sganzerla.

24

Op. cit.

25

Entrevista de R. Sganzerla em artigo chamado “A Luz do Bandido”, de Severino Francisco, no Jornal de Brasília, em 1º de agosto de 1990. Disponível em: . Acesso em 06 nov 2013. 26

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já havia se relacionado com Glauber e Júlio Bressane e protagonizado filmes clássicos como O padre e a moça (1965), de Joaquim Pedro de Andrade, acaba se tornando esposa de Sganzerla e eterna musa de seus filmes. A mulher de todos, por sua vez, é prova da imersão profunda de Sganzerla no Cinema Marginal – imersão da qual não sairia mais –, e de sua sintonia com o cinema cafajeste de seus amigos João Callegaro e Carlos Reichenbach. CINEMA CAFAJESTE: RELATÓRIO CONFIDENCIAL A maior parceria vinda da Escola Superior de Cinema São Luís foi a de Carlos Reichenbach e João Callegaro. Após Reichenbach ter uma primeira experiência com o curta Esta rua tão Augusta (1966), fruto de um exercício prático da própria Escola e produzido pelo seu professor e também cineasta Luís Sérgio Person, e de Callegaro ter se iniciado enquanto diretor de produção de Roberto Santos em O homem nu (1968), os dois amigos decidem unir-se a fim de realizar seu primeiro longa-metragem. Callegaro convida também Antônio Lima, que já tinha sido crítico de cinema junto de Rogério Sganzerla e era na época chefe de redação do Jornal da Tarde. Os três juntos criam a Xanadu Produções Cinematográficas.

Inspirado pelo filme Superbeldades (1962), que havia registrado grande lucro devido a personagens seminuas e um erotismo latente, Callegaro tem a ideia de fazer o mesmo dentro do mecanismo de produção de baixo orçamento da Boca do Lixo. “Pensei: nós somos inteligentes, competentes; vamos fazer um filme erótico – não pornô – para ganhar dinheiro. O Carlão sempre foi maluco, e falou: “Porra, legal, vamos fazer dinheiro para fazer os filmes que a gente quer.” 27 E, assim, surgiu a ideia para o longa-metragem de estreia do trio, As libertinas (1968). Dividido em três episódios: Alice, Angélica e Ana; dirigidos respectivamente por Reichenbach, Lima e Callegaro; o longa-metragem tinha como premissa João Callegaro em entrevista à revista virtual Zingu!. Disponível em: . Acesso em 06 nov 2013.

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[...] depois de batalhar em vão financiamentos para filmes considerados de ‘arte’, dentro de uma proposta de cinema ‘sério’ e com perspectivas sociais, um grupo de cineastas da Escola Superior de Cinema São Luiz (Carlos Reichenbach e João Callegaro) junto com um crítico de cinema (Antonio Lima) resolvem ‘fazer um filme sacana no momento em que todos os colegas sonhavam com o filme político’. A saída que se apresentava, então, era ‘começar a filmar e deixar o filme pessoal, político, participante, para uma segunda etapa’. (RAMOS, 1987, p. 64/65).

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a ideia de fazer um filme que se relacionasse com o público diretamente e que gerasse receita de bilheteria. Para tanto, utilizaram da comédia erótica despudorada para falar de temas de interesse social como sexo, casamento e adultério, aproveitando-se da “estética do teatro de revista, das conversas de salão de barbeiro, e das revistas semipornográficas” 28, como as publicadas na época por Carlos Zéfiro, sem se preocupar com “elocubrações intelectuais”. Utilizar doses de erotismo para atrair público não era uma prática original, “a novidade estava em misturar referências à cultura brega, cosmopolitismo, continuidade e elipses inverossímeis, existencialismo, tropicalismo, fotografia “ruim”, mulheres nuas e um clima de filme B”.29 O filme, de baixo orçamento, rodado em menos de um mês, estreou no tradicional cinema Belas Artes em São Paulo, e foi um estrondoso sucesso de público, permanecendo meses em cartaz. Junto do filme é lançado o Manifesto do Cinema Cafajeste, escrito por Callegaro e lançado no mesmo mês e ano – setembro de 1968 – do manifesto de Sganzerla. O termo “cafajeste” já figurava com Sganzerla a respeito d’O bandido: “porque o que eu queira mesmo era fazer um filme mágico e cafajeste” 30. Com sentido próprio, torna-se um dos principais ramos do Cinema Marginal. No manifesto, Callegaro evoca o cinema paulista do momento, em detrimento aos filmes de “pesquisas estetizantes”, eufemismo para se referir aos filmes do Cinema Novo. Vai além, diz que seu valor será contado em cifras de borderôs e semanas de exibição, afirmação que deixou de ser um blefe para se tornar um fato quando o grosso da produção da Boca do Lixo voltou-se para os filmes eróticos nos anos seguintes. Cinema Cafajeste é o cinema de comunicação direta que aproveita a tradição de 50 anos de exibição de mau cinema americano, devidamente absorvidos pelo espectador e não se perde em pesquisas estetizantes, elocubrações intelectuais típicas de uma classe média semianalfabeta. É a estética do teatro de revista, das conversas de salão de barbeiro, das revistas semipornográficas. É a linguagem do Notícias Populares, do Combate Democrático  e das revistinhas “especializadas” (leia-se Carlos Zéfiro). É Oswald de Andrade e Líbero Rípoli Filho; é “Santeiro do Mangue” e “Viúva, porém honesta”. Obras-primas. É o cinema tipicamente brasileiro, portanto, é o cinema cafajeste paulista, sem bairrismos, porém com uma visão lúcida da fauna paulistana.   Preparem-se cinéfilos frustrados, adoradores dos Cahiers e de Godard, pois o cinema cafajeste já é uma realidade. É o cinema de Rogério Sganzerla, o cinema de Roberto Santos (de O grande momento e o genial episódio de “As cariocas”), de Mojica Marins; é o verdadeiro cinema paulista. Seu valor será contado em cifras, em borderôs, em semanas de exibição: em público. E os filmes serão geniais. 31

Trecho do Manifesto do Cinema Cafajeste, de João Callegaro.

28

Hernani Heffner, artigo “As Libertinas”, publicado no Portal Brasileiro de Cinema. Disponível em: . Acesso em 06 nov 2013.

29

Trecho do Manifesto Cinema Fora da Lei, de Rogério Sganzerla.

30

Manifesto do Cinema Cafajeste, de João Callegaro, na íntegra.

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Apesar de Superbeldades ter sido produzido e comercializado na Boca do Lixo, o financiamento inicial se deu através de um empréstimo bancário e, para finalização, recorreram à venda de metade dos direitos comerciais ao dono do Cine Coral. Mesmo assim, o filme se pagou e deu lucro, e se tornou em modelo de produção barata, criativa e financeiramente rentável. O sucesso dos filmes eróticos representou o impulso decisivo da Boca em direção ao primeiro plano do cinema brasileiro. Esse gênero se aclimatou de tal maneira entre nós, que, após o necessário tempo de adaptação, os vínculos com os modelos europeus praticamente desaparecem. Como o futebol, que importado encontrou aqui sua expressão mais criativa, a pornochanchada tinha obtido o maior êxito de público do cinema brasileiro. 32

SIMÕES, Inimá. “A Boca do cinema”. Publicado no Portal Brasileiro de Cinema. Disponível em: . Acesso em 06 nov 2013.

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Trabalhando no mesmo esquema de produção, Carlos Reichenbach e Antônio Lima realizam o segundo longa, também dividido em episódios. Em Audácia! (1970), Callegaro não participa do projeto devido a desentendimentos no grupo. Já sob o impacto d’ O bandido da luz vermelha, o interessante no filme é seu prólogo, ou primeiro episódio, espécie de retrato documental da Boca do Lixo com depoimentos de cineastas como Candeias e Sganzerla, além de trechos de bastidores do filme O profeta da fome (1970) de Maurice Capovilla. O segundo episódio chamado A badaladíssima dos trópicos x os picaretas do sexo é dirigido por Reichenbach, e apresenta uma liberdade estética anárquica de muita câmera na mão; já o episódio final dirigido por Antônio Lima é um pouco mais conservador, e chama-se Amor 69. Ambas as histórias trazem o próprio cinema como mote principal, primeiro sobre uma diretora aspirante que deseja fazer seu filme, depois sobre uma atriz que aceita atuar nua, mas desiste de última hora. O pornógrafo (1970), com direção de João Callegaro, será o representante máximo desse cinema cafajeste. O filme, que conta com roteiro de Jairo Ferreira, traz a história de um editor de revistinhas pornográficas, estilo Carlos Zéfiro, citado no manifesto. Stênio Garcia, que havia atuado em A mulher de todos, faz o papel de Miguel Metralha – protagonista anti-herói desse filme cafajeste, ambientado totalmente na Boca do Lixo. O tema da narrativa é o próprio submundo marginal sob o ponto de vista do mercado editorial de revistinhas pornográficas, mas que pode facilmente ser pensado em termos de mercado cinematográfico. Assim como no filme Metralha precisa inovar para não falir por causa da concorrência desleal, inserindo em suas revistinhas personagens homossexuais, o mercado cinematográfico da Boca do Lixo vai sofrer mais tarde situação parecida, voltando-se na década de 80 para produções eróticas cada vez mais explícitas por causa da concorrência dos filmes pornográficos estrangeiros.

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Mas a inventiva e capaz direção, o brilhante senso de imagem, o tour de force que representa Callegaro ter rodado toda a sua fita em apenas um mês na rua do Triunfo, (...) e com um mínimo de recursos; a perfeita integração entre fotografia (de Oswaldo de Oliveira) e montagem (a cargo do excepcional Silvio Renoldi); e a ironia e adequação da seleção sonora (feita pelo próprio realizador) sobrelevam-se a quase tudo e tornam O Pornógrafo uma das realizações mais pessoais e talentosas aqui feitas nos últimos quatro anos. (FERREIRA, 1986, p. 128).

Carlos Reichenbach, por sua vez, também continua na mesma fórmula. Após seu episódio em Audácia, dirige sozinho o longa-metragem Corrida em busca do amor (1972). E, seguindo seu estilo, realiza na sequência Lilian M – relatório confidencial (1974), longa-metragem que ficou considerado como sua obra-prima desse período. Além de dirigir, Reichenbach fez o roteiro, a produção e a direção de fotografia de Lilian M, tornando-o, assim, seu principal filme autoral até então, e um dos principais do cinema marginal. Isso tanto devido à sua qualidade técnica apurada, quanto à enorme criatividade na narração em flashback ao desenvolver as situações que beiram o absurdo, sem abandonar a seriedade do que se está contando, no caso, a história de Maria, mulher sofredora do campo que descobre os prazeres da cidade grande enquanto torna-se acompanhante de um magnata industrial, mudando seu nome para Lilian e assumindo-se uma outra pessoa. BAR SOBERANO – RUA DO TRIUNFO – BOCA DO LIXO A famosa Boca do Lixo paulistana se concentrava em uma quadra do bairro da Luz – ou para alguns, bairro de Santa Ifigênia –, entre as ruas do Triunfo, Vitória, dos Andradas, e dos Gusmões, região central da cidade de São Paulo. Entre as décadas de 1920 e 1950, esse espaço viu-se tomado por distribuidoras de filmes tanto nacionais quanto estrangeiros, como as norte-americanas Columbia, Paramount, e Warner, devido exclusivamente a sua estratégica localização nas imediações das estações ferroviárias Júlio Prestes e da Luz, e da antiga rodoviária sediada ao lado da Praça Júlio Prestes. Assim, com homens carregando latas de filmes em carrinhos de mão entre os terminais e as distribuidoras, poupava-se tempo e, consequentemente, aumentava-se o lucro. O nome é de origem policial, e existe em outras cidades do país para designar uma região onde existe prostituição, tráfico e assaltos. A região começa a ganhar esse apelido nos anos 1950, quando as prostitutas de rua foram expulsas de onde ficavam, no bairro do Bom Retiro, a mando do governador, e se mudaram para aquela região entre os terminais urbanos. Aliado aos assaltos, ao tráfico de drogas emergente e à degradação normal sofrida por áreas centrais, a região popularizou-se como Boca do Lixo, mas também como Quadrilátero do Pecado e, depois dos anos 1990, se viu

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englobada pela chamada Cracolândia. Se nem sempre a convivência entre o pessoal de cinema e a prostituição foi agradável, ao menos de certa forma essa proximidade inspirou os realizadores a produzir filmes eróticos, ponto comum à maioria das realizações da Boca. Afinal, de dia circulavam musas de nosso cinema, e à noite as prostitutas mais humildes. Gradualmente outras empresas ligadas ao cinema, como produtoras, fornecedores de equipamentos e gráficas, se instalaram na região prenunciando o polo cinematográfico que se construiu. Um exemplo disso foi a Cinedistri, empresa fundada em 1949 por Oswaldo Massaini, que nos primeiros anos de atividade limitou-se em ser distribuidora para, depois, tornar-se também renomada produtora. Sua primeira sede foi no centro, mas a partir de 1956 já estava instalada em uma sala em cima do bar e restaurante Soberano – que se tornaria mais tarde o principal ponto de encontro e discussão dos ligados ao cinema. E em 1959 já ocupava o primeiro andar inteiro de um prédio localizado na Rua do Triunfo, 134.

Se a Cinedistri foi prova da pluralidade e da grande capacidade existente na Boca do Lixo, a produtora que mais representou o que realmente era a Boca foi a Servicine, criada por Alfredo Palácios e Antônio Polo Galante. Palácios vinha dos Estúdios Maristela – tentativa de indústria cinematográfica contemporânea a Vera Cruz –, onde foi produtor, diretor e roteirista. Além disso, após o fim do Maristela em 1958, ganhou reputação produzindo para a TV Tupi em 1962 a primeira série brasileira, O vigilante rodoviário. Galante também esteve no Maristela, “primeiro como faxineiro, depois como eletricista e auxiliar de câmera, na época um trabalho pesado” (STERNHEIM, 2005, p. 23), e com o fim dos estúdios trabalhou em várias produções Lista dos filmes nacionais com mais de um milhão de espectadores (1970/2008) – ANCINE. Disponível em: . Acesso em 06.11.2013.

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A Cinedistri realizou diversas produções e coproduções, tanto no cinema paulista, quanto no cinema carioca, mas nenhuma se destaca mais que O pagador de promessas (1962), dirigido por Anselmo Duarte, e vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, até hoje a única conquistada por um filme brasileiro. Renomada internacionalmente após a Palma de Ouro, a Cinedistri manteve-se na Rua do Triunfo, mas um tanto distante das demais produtoras da região. Suas produções eram maiores e mais caras que a maioria das feitas na Boca, e como possuía sua própria equipe e elenco acabou por criar um padrão Cinedistri, com total assinatura de Massaini. Um exemplo disso foi o filme Independência ou morte (1972), um audacioso drama histórico que pouco tinha a ver com o que estava se produzindo na época na Boca, mas que se tornou a maior bilheteria da produtora, beirando os três milhões de espectadores.33 No entanto, Massaini também aderiu à onda do filme erótico, e prova disso é que sua segunda melhor bilheteria foi a pornochanchada O bem-dotado, o homem de Itu (1978), com pouco mais de dois milhões e quatrocentos mil espectadores.

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nessas funções. Mas o que o deixou famoso foi seu tino para produtor, mostrado a princípio na produção do filme Trilogia do terror (1968), por sinal a primeira relação de Galante com os marginais Candeias e Mojica, fato que Palácios se atentou ao convidá-los para a parceria. A Servicine, Serviços Gerais de Cinema, começa em 1968, também na lendária Rua do Triunfo. Ao todo produziu “28 filmes entre 1968 e 1976”34. Essa sociedade, que tinha o refinamento e conhecimento de Palácios e a intuição impressionante do sócio, deu certo e, assim, a Servicine, de fato, permitiu inovação e arejamento de ideias no cinema paulista. Por isso, escritores como o amazonense Márcio de Souza e o paulista Marcos Rey, por exemplo, eram frequentadores do escritório da empresa, um velho sobrado da Rua do Triunfo, 150. (STERNHEIM, 2005, p. 25).

Como a maioria das produtoras da Boca do Lixo, a Servicine apostava em produções rápidas e baratas, que trouxessem retorno imediato para poder financiar suas próximas produções. A associação com exibidores para levantar fundos para seus filmes também foi prática reconhecida de Galante, e copiada dentro da Boca do Lixo. Mas, diferente de Massaini com a Cinedistri, Galante e Palácios permitiam aos diretores criar livremente, desde que cumprissem os prazos e o orçamento – afinal, devemos lembrar que a enorme maioria das produções da Boca do Lixo era independente, feita por empréstimos e promissórias, venda de direitos patrimoniais, associação com exibidores, sistema de cotas, e, principalmente, dos próprios borderôs das bilheterias. Sem financiamentos estatais e alheios à criação da Embrafilme, que a partir da metade dos anos 70 passa a agir como distribuidora e a coproduzir longas-metragens nacionais. Vale mencionar a acusação de que a Embrafilme favorecia o cinema carioca em detrimento do paulista. “Surgiram até protestos oficiais como os do Sindicato da Indústria Cinematográfica de São Paulo, presidido por Alfredo Palácios.” (STERNHEIM, 2005, p. 36). Mas havia algo em comum nessas realizações, uma norma que parecia ser imposta apenas por Galante, mas que tinha a total e silenciosa anuência de Palácios: o custo barato. Os filmes tinham que ser feitos em prazos curtos e com pouco negativo, que era o item mais caro de uma produção. Para se ter uma ideia, um dos filmes foi rodado com 18 latas grandes (300 m) de negativo, em apenas três semanas. A edição final precisava ter, no mínimo, 8 latas. Ou seja, na média, uma cena só podia ser repetida duas vezes e meia. (STERNHEIM, 2005, p. 26).

GAMO, Alessandro. “Trajetórias que se cruzam – A.P. Galante, Maristela e Boca do Lixo”, publicado no Portal Brasileiro de Cinema. Disponível em: . Acesso em 06.11.2013.

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É neste período, 68/69, que os cineastas marginais ainda novatos surgem na Boca do Lixo. Trocam o Bar Riviera, próximo a Escola São Luís, pelo Bar Soberano, e transformam-no num reduto de pensadores de cinema, e não só de trabalhadores dos estúdios. Na Boca descobrem meios para produzir seus primeiros longas-metragens, e a identificação é tanta que em seus filmes há a referência constante à região e às pessoas que transitavam pela Boca do Lixo. Tanto por ser um polo cinematográfico, quanto por abrigar uma região de meretrício. Em meados de 69, passamos a discutir cinema no restaurante Soberano. As vibrações eram as melhores possíveis. O sinistro AI-5 (dezembro 68) não nos assustou e enfrentamos os anos do horror com altas sintonias visionárias. (...) As presenças mais constantes eram Carlão, Antonio Lima, João Batista de Andrade, Ozu Candeias, JS Trevisan, Júlio Calasso Jr, Tereza Trautman, José Marreco, Rogério Sganzerla, Maurice Capovilla, Inácio Araújo, José Mojica Marins. (FERREIRA, 1986, p. 37).

Dos cineastas marginais difícil é descobrir quem não se envolveu com as produtoras da Boca do Lixo, a ponto de um cinema confundir-se com o outro. O Cinema Marginal se inaugura com A margem, de Candeias, e termina com a proibição pela censura federal de Orgia – o homem que deu cria, de João Silvério Trevisan, e República da traição, de Carlos Ebert, ambos de 1971 e os únicos longas dirigidos por estes realizadores. (STERNHEIM , 2005, p. 28) Já o cinema da Boca do Lixo é muito mais amplo, e corresponde a filmes dos mais variados gêneros produzidos nessa área, sendo apenas alguns marginais. Por se tornarem uma tendência de massa, as pornochanchadas foram as produções que ficaram mais conhecidas na Boca do Lixo, eternizando atrizes como Helena Ramos, Márcia Maria e Vera Fischer, e diretores como Ody Fraga, Oswaldo de Oliveira e Cláudio Cunha.

Em meio a necessidades financeiras, a criatividade foi a base para a qual cineastas se debruçaram e criaram suas histórias. O método de produção em parceria, entre amigos, foi o que permitiu que tantos filmes fossem feitos, e se tornou também João Callegaro em entrevista à revista virtual Zingu!. Disponível em: . Acesso em 06.11.2013.

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Galante, após o fim da Servicine em 1976 cria a Produções Cinematográficas Galante, que o faz continuar como um dos grandes produtores da Boca. Graças a facilidade de contato com o próprio, e por ele ceder em prol de uma certa liberdade autoral, vários filmes marginais tiveram sua produção, em especial A mulher de todos (1969), de Rogério Sganzerla e O pornógrafo (1970), de João Callegaro. Outro que teve quatro longas-metragens produzidos por Galante foi Carlos Reichenbach. “É difícil entender, mas a Boca do Lixo, muito mais que a Vera Cruz e a Atlântida, era uma efervescência de cinema. Então, ia lá desde o Khouri até o pessoal do Rio (menos o Glauber), todo mundo ia na Boca”.35

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marca registrada da Boca do Lixo. Quem tivesse um roteiro para filmar, ou precisasse de alguém para compor equipe, logo se dirigia ao Bar Soberano e encontrava ressonância ao que procurava em meio aos diretores, produtores, técnicos e entusiastas que lá diariamente estavam. É bom recordar que isso foi conseguido “graças à energia e tino comercial de produtores que não ambicionavam dirigir” (STERNHEIM, 2005, p. 30). Além de Massaini, Palácios e Galante, havia ainda Alfred Cohen, Cyro Carpentieri Filho, Manuel Alonso, Mário Civelli, Adone Fragano, Miguel Augusto Cervantes, Cassiano Esteves, Elias Cury Filho, J. D’Avilla, Renato Grecchi e Rubens Regino. Os filmes da Boca do Lixo, em especial os que tinham elementos eróticos enquanto chamarizes batiam recordes. Na listagem das maiores bilheterias do cinema nacional estão várias pornochanchadas – como ficaram popularmente conhecidas as comédias eróticas. Além do mais, a grande quantidade de filmes produzida tornava a Boca o principal polo cinematográfico do país, contribuindo em alguns anos com mais de 50% dos filmes produzidos e distribuídos no país. Isso começou a mudar com o lançamento comercial por volta de 1980 de O império dos sentidos (1976), de Nagisa Oshima, através de um mandado judicial. O filme franco-japonês continha cenas de sexo explícito, o que era proibido pela censura da época, e abriu precedentes para que outros filmes com sexo explícito – incluindo os puramente pornográficos – também fossem lançados através de outros mandados judiciais. Aproveitando a deixa, Rafaelle Rossi lança em 1981, Coisas eróticas, contendo algumas cenas de sexo explícito. O filme tem uma retumbante bilheteria, ultrapassando os quatro milhões de espectadores, mas o que parecia ser uma nova oportunidade transformou-se na derrocada da Boca do Lixo. A concorrência com os filmes pornográficos estrangeiros acabou por desgastar a fórmula de erotismo usada, e aos poucos o público foi deixando de se interessar. Aliado a isso está o governo Collor, que extinguiu todas as políticas legislativas do cinema brasileiro, praticamente acabando com o mercado cinematográfico brasileiro e decretando o fim não só do cinema da Boca do Lixo, mas de todo o cinema nacional. JÚLIO BRESSANE NAS ASAS DA BELAIR O Cinema Marginal, que nasceu na Boca do Lixo paulistana, imediatamente trouxe frutos em outros lugares. O principal exemplo disso é Júlio Bressane, cineasta carioca que começou sua carreira envolvido com o Cinema Novo, e que, após O bandido da luz vermelha, integra-se ao grupo marginal em parceria com Rogério Sganzerla na produtora Belair. Júlio Bressane nasceu no Rio de Janeiro em 1946 (mesmo ano de Sganzerla), e é outro dos cineastas autodidatas, pois desde a adolescência realiza experimentações cinematográficas amadoras. Profissionalmente, começa como assistente de di-

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reção de Walter Lima Jr em Menino de engenho (1965), e aproxima-se da segunda geração de diretores do Cinema Novo. Envereda-se inicialmente pelo documentário, realizando, assim, seus primeiros curtas-metragens: Lima Barreto: trajetória e Bethânia bem de perto, ambos de 1966. Praticamente com a mesma equipe dos curtas (Affonso Beato na fotografia e Eduardo Escorel na montagem), Bressane filma seu primeiro longa-metragem, ainda de inspirações cinemanovistas, Cara a cara (1967). Nesse filme de estreia é possível perceber alguns elementos que se tornariam recorrentes na cinematografia marginal de Bressane, como as narrativas mais abertas e elípticas – mas a referência, sobretudo, à Terra em transe (1967), de Glauber Rocha, ofusca a liberdade criativa que explode a partir de então. (RAMOS e MIRANDA, 2000, p. 69) O bandido da luz vermelha foi, de fato, um ponto de inflexão na cinematografia brasileira. Imediatamente inspirado pelo filme de Sganzerla, Bressane homenageia-o não só em estilo e temática, mas também como no modo de produção, em dois filmes autorais realizados simultaneamente em 1969: O anjo nasceu e Matou a família e foi ao cinema. Ambos os filmes trazem a essência marginal mesmo longe dos domínios da Boca do Lixo: são totalmente independentes, filmados em poucos dias e com orçamentos extremamente reduzidos; suas narrativas são pouco lineares e retratam de maneira irônica e debochada o submundo carioca e a falência dos valores familiares tradicionais. Portanto, esses filmes refletem o rompimento formal de Bressane com o Cinema Novo, e a sua inserção sem volta ao Cinema Marginal.

Matou a família e foi ao cinema, por sua vez, foi filmado em apenas doze dias e explora as questões familiares de modo transgressor e metalinguístico. A estrutura narrativa traz histórias de crimes de motivação familiar, unidas por meio de elipses de espaço e tempo. Os crimes em si não têm um por quê, e se apresentam metaforicamente como reflexo de uma sociedade retrógrada, alienada, no conturbado período da ditadura militar. O filme compara os personagens ao aparato militar, e inclui uma cena de tortura. Entre a hipocrisia social mostrada, outras subversões morais abrem caminho por entre as frases de efeito e trocadilhos dos diálogos. Por esses motivos e

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O anjo nasceu foi filmado em 16 mm em apenas incríveis 7 dias. Os dois protagonistas são bandidos, assim como o Luz Vermelha e trazem consigo a mesma filosofia da avacalhação. A abordagem, no entanto, diverge: o Luz Vermelha é midiático, enquanto Santamaria e Urtiga – personagens principais de O anjo nasceu – são sujeitos invisíveis ao sistema, dois perdidos em meio à delirante floresta tropical do Rio de Janeiro, praticando seus crimes sem grandes motivações nem preocupações morais – no máximo uma fugidia esperança – e nisso reside parte da ironia do título. Ironia, aliás, que se revela em múltiplas camadas, como na banda sonora com sambas populares sobre imagens que mostram os bandidos feridos, fugindo. O ritmo da narrativa, marcado pelos tempos mortos e pelas elipses, torna-se elemento característico de Bressane, e confirma o caráter experimental que ele propunha.

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por uma suposta ligação de Bressane com o guerrilheiro Carlos Marighella, Matou a família e foi ao cinema, mesmo com ótima bilheteria, foi censurado e retirado dos cinemas na sua segunda semana de exibição. O estilo poético transgressor de Bressane o aproxima de Sganzerla por afinidade e influência. No Festival de Brasília de 1969 os dois se viram lado a lado: Júlio concorria com O anjo nasceu, Rogério com A mulher de todos. A proximidade estética trouxe a iminente amizade, e após poucos meses eles formam outra parceria renomada dentro do Cinema Marginal, e criam com Helena Ignez a produtora Belair. Entre janeiro e março de 1970, Júlio Bressane e Rogério Sganzerla fundaram a empresa Belair, realizando sete filmes de total invenção: Bressane filmou Barão Olavo, o horrível, cinemascope misturando Walter Hugo Khouri com José Mojica Marins, Cuidado madame!, um Pickup on South Street no Arpoador, e Família do barulho, entre outras coisas uma reciclagem do ciclo do Recife; Sganzerla experimentou a lente-cinemascope na mão em Copacabana mon amour, sortilégio/profecia, se quiser, Carnaval na lama / ex-Betty Bomba a exibicionista, onde o filme se recusa a ser filme, e Sem essa aranha, aqui e agora o pior é o melhor, deflagrando uma das três melhores experiências mundiais na área do plano-sequência. Consta que rodaram também um experimento a quatro mãos, A miss e o dinossauro. (FERREIRA, 1986, p. 37).

Helena Ignez, que atuou nos sete filmes produzidos pela Belair, já havia namorado Bressane e estava se envolvendo com Sganzerla, com quem por fim se casou. O trio inseparável contava ainda com a colaboração de outras figuras, especialmente os atores Guaracy Rodrigues e Maria Gladys. A fama da Belair, no entanto, não veio por meio de resultados imediatos. Nenhum dos seus filmes foi lançado comercialmente, tendo apenas exibições esporádicas, principalmente na cinemateca do MAM-RJ. Apenas recentemente com mostras e retrospectivas o grande público teve acesso à parte desses filmes. Na realidade a mística por detrás da Belair vem da extrema capacidade inventiva de seus realizadores, uma fusão que marcou o cinema nacional como o ápice criativo que o Cinema Marginal gerou. Em aproximadamente seis meses foram produzidos seis longas-metragens – e mais o projeto inacabado A miss e o dinossauro –, em um ritmo alucinante que Bressane já havia estabelecido com seu par de filmes no ano anterior. Na Belair, Bressane dirige Barão Olavo, o horrível; Cuidado, madame! e Família do barulho. Sganzerla dirige Copacabana mon amour, Carnaval na lama e Sem essa aranha. Todos de 1970. Mesmo sem nunca ter sido registrada oficialmente, a Belair entrou para a história do cinema nacional. A estética marginal é levada ao limite, e a experimentação e o improviso tornam-se mecanismos próprios do modus operandi das produções. O irrealismo das situações, as hipérboles cômicas e as transgressões morais são constantes, suspendendo, assim, as narrativas, e deixando as ações livres para provocar o espectador e tirá-lo de uma situação confortável. O submundo torna-se

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ainda mais grotesco, por vezes animalesco, nojento e/ou irritante. Seus personagens são monolíticos e caricaturais, respondem aos impulsos e instintos primários e se impõem pela reiteração. A aparente despreocupação com a empatia do público é proposital, por isso mesmo por vezes quebra-se a suspensão da descrença – e a imaginária quarta parede – para mexer diretamente com o espectador. Os filmes, individualizados, interessam menos que o conjunto. A expressão máxima está no ato de filmar, independente de tudo (meios de financiamento) e de todos (canais de exibição). Um fato interessante é a aproximação definitiva do Cinema Marginal com a Tropicália: Gilberto Gil compõe para Sganzerla a trilha-sonora de Copacabana mon amour, e dedica ao diretor uma das canções. A postura libertária adotada por Bressane, Sganzerla e Ignez não era admirada pelos militares, e pouco tempo durou em solo brasileiro. Junto da censura de Matou a família e foi ao cinema vieram intimações para o trio depor para a polícia. Após muita pressão, eles decidem exilar-se em Londres no final de 1970, dando fim a Belair apenas poucos meses após sua criação. REFERÊNCIAS CANDEIAS, O. Uma rua chamada Triumpho. São Paulo: Simone R. Candeias, 2001. FERREIRA, J. Cinema de Invenção. São Paulo: Max Limonad, 1986.

STERNHEIM, A. Cinema da Boca: dicionário de diretores. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005. RAMOS, F.; MIRANDA, L. F. (Org.). Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo: SENAC, 2000.

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RAMOS, F. Cinema Marginal (1968/1973): A representação em seu limite. São Paulo: Brasiliense, 1987.

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07 EMBRAFILME: ENTRE CINEMA E DITADURA

Carla Fonseca Abrão de Barros1

Redigir o presente artigo me tirou algumas noites de sono. Como ex-aluna de uma faculdade de cinema no Brasil, a tarefa de escrever sobre a Embrafilme me fez refletir sobre algo maior, acerca de meus conhecimentos de Cinema Brasileiro, principalmente no que concerne à indústria e distribuição de filmes. Em busca de referências acabei me deparando com autores que encontraram a mesma dificuldade. A esse respeito GATTI (2007, p. 9) afirma: A nossa tradição neste campo de estudo ainda engatinha em relação aos seus congêneres, como por exemplo, a história da produção de filmes nacionais, onde temos estudos críticos, sociológicos, históricos etc. Entretanto, no aspecto da comercialização de produtos audiovisuais, apesar de já haver alguns esforços neste sentido, ainda se trata de um conhecimento a ser sistematizado com a finalidade de contribuir para uma reflexão sobre o assunto.

Tendo em vista a carência de estudos sobre o assunto, busco contribuir sobre um período tão importante, que é o da tentativa de organizar industrialmente o cinema brasileiro através da contraditória Empresa Nacional de Filmes S/A (Embrafilme). Quando surgiu, em 1969, criada pelo Decreto nº 862/69, a Embrafilme pretendia ser somente uma distribuidora de filmes brasileiros no mercado externo, apêndice do Instituto Nacional de Cinema (INC):

Estudo orientado pela Profa. Dra. Salete Paulina Machado Sirino.

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A Embrafilme tem por objetivo a distribuição de filmes no exterior, sua promoção, realização de mostras e apresentações em festivais visando à difusão do filme brasileiro em seus aspectos culturais, artísticos e científicos, como órgão de cooperação com o INC, podendo exercer atividades comerciais ou industriais relacionadas com o objeto principal de sua atividade. (GATTI, 2007, p. 12).

O interesse em se criar uma empresa como a Embrafilme foi impulsionado pelo reconhecimento internacional dos filmes do movimento Cinema Novo, filmes de baixo orçamento, muitos deles inspirados na ideia de uma Estética da fome, tal como proposta por Glauber Rocha, “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, enfatizando a necessidade de se criar arte, independente das condições adversas para produzir cinema no Brasil. Dedicados a mostrar a cultura brasileira e a fazer críticas sociais, esses filmes tiveram diversas premiações internacionais, e com isso surge a ideia de centralizar as produções cinematográficas de modo a exercer maior influência no setor e, consequentemente, enfrentar o mercado estrangeiro que dominava a salas de exibição.

Uma questão muito importante também era tornar o mercado competitivo, já que mesmo que se fizesse o filme, nada garantiria que ele seria exibido e visto. As salas vendiam e continuam a vender ingressos para filmes estrangeiros com facilidade, perdendo o interesse nas obras nacionais, que ainda sofriam para conseguir atrair o público, já que a linguagem não era a de Hollywood, e o resultado estético, dependente dos orçamentos baixíssimos e de processos, de um modo geral, era muito precário. Um filme se não é visto não “existe” e, acima de tudo, o filme brasileiro que não alcança o público brasileiro, morre na intenção de trazer mudanças. O Cinema Novo, reconhecido internacionalmente, era feito a partir da Estética da fome - como citado anteriormente, elaborada por Glauber Rocha. A fome, na realidade, não era só uma questão de estética, era também uma questão de produção. Os filmes eram feitos com pouquíssimos recursos, como no Neorrealismo

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Apesar de os cinemanovistas serem de esquerda e de criticarem fortemente a posição totalitária do Estado militar, era uma realização muito importante para a classe cinematográfica a criação de uma indústria brasileira de cinema, permitindo, dessa forma, que os filmes fossem feitos com algum capital e chegassem ao público, para finalmente concluir seu ciclo transformador. Isso permitiria também uma necessária melhoria nas leis e sistemas de distribuição e exibição, que ajudaria o mercado a colocar os filmes nas salas, e, futuramente, com o reconhecimento do trabalho que cada pessoa exerce na feitura de um filme, haveria uma regulamentação desse trabalho, que garantiria aos artistas e técnicos de cinema direitos iguais aos de qualquer outro trabalhador, questão até hoje em discussão dentro dos sets.

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italiano, mas, apesar disso, extremamente criativos e inovadores em termos de linguagem. Não tinham, no entanto, o capital necessário para chegar às grandes salas de cinema. Um filme não tem somente o custo de sua feitura, alcançar as salas também tem um custo elevado, e chegar aos cinemas para os filmes do Cinema Novo era muito difícil. Nesse sentido os filmes de Hollywood vinham com o pacote completo, muito investimento em distribuição e uma quase certeza de alcançar o público. Movidos por um pensamento nacional-desenvolvimentista, tanto cineastas quando o Estado militar estabelecem relações para conter o “inimigo externo”. Tunico Amâncio descreveu essa relação que chamou de um “pacto cinema-estado”: A produção cinematográfica brasileira foi intensificada durante os anos 1970 e 1980, graças à intensa e direta ação do Estado. Antes de tudo, porque o regime militar, dentro de seus princípios de centralização político-administrativa, instaurou um projeto de institucionalização cultural de extensão nacional. De um modo autoritário, evidentemente, mas configurando um sistema articulado de funcionamento. Por outro lado, a ação decisiva de um grupo motivado politicamente à esquerda, composto na sua maioria por integrantes do cinema novo, serviu para que a ação governamental fosse dirigida por diretrizes políticas com visada maior do que as orientações oficiais, no interior da agência estatal destinada ao cinema, a Embrafilme. Tal ação instaurou uma nova plataforma nas relações do Estado com o cinema e permitiu que fosse alcançado um largo campo de conquistas no terreno do mercado. Os anos Embrafilme passam a caracterizar um dos ciclos do cinema brasileiro, que ensaiará ultrapassar os princípios do cinema artesanal, propostos pelo Cinema Novo, e a sazonalidade histórica da produção brasileira de longas-metragens, pela adesão a um projeto de um cinema financiado essencialmente pelo Estado, de cunho nacional e popular, distante de uma independência estética, e majoritariamente voltado para a busca de uma eficiência mercadológica. (AMÂNCIO, 2007, p. 88).

Estava claro para o cinema e para o Estado militar, que não se podia promover um crescimento do cinema sem investimentos por parte do governo, sem a criação de uma base industrial e leis de incentivo para fomentar a produção. Com esse pensamento, acreditava-se que após um primeiro impulso e conquista do público, o mercado poderia funcionar como uma engrenagem que se manteria em movimento e aquecida, promovendo o crescimento natural, em vista da qualidade artística do que já era produzido no Brasil sem nada disso. O pacto que Tunico analisa pontua as contradições da época em que o regime militar e cineastas de esquerda fixaram um objetivo que, para se concretizar, precisava da ajuda direta de ambos os lados. Esse pacto, o trabalho dividido entre o Estado e cineastas empenhados em denunciar os problemas do país, acabou permitindo a aprovação pela Embrafilme de filmes políticos como Pra frente Brasil de Roberto Farias, que trata do desaparecimento de um inocente torturado, sob a acusação de ser um homem de esquerda. Inicialmente

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censurado, por denunciar os desaparecimentos e torturas da ditadura, ele só foi liberado dois anos depois de produzido, em 1982, e o então presidente da Embrafilme, Celso Amorim, foi obrigado a deixar o cargo por ter autorizado o financiamento do filme. Roberto Farias era ex-diretor geral da instituição. No período em que dirigiu a Embrafilme, a empresa aumentou sua participação na produção e gerou um crescimento da atividade cinematográfica de um modo geral. O apoio dos colegas cineastas foi definitivo na escolha de Roberto Farias como Diretor Geral da Embrafilme em 1974. Sua gestão foi marcada por grandes mudanças, como a extinção do Instituto Nacional de Cinema (INC) e a consequente ampliação dos poderes da empresa. Ela começou como distribuidora, cresceu rapidamente e logo começou a financiar a produção pelo sistema de adiantamento de rendas, processo que aos poucos foi sendo regulamentado, a partir de críticas e reinvindicações de sindicatos. Desde o I Congresso da Indústria Cinematográfica, realizado em outubro de 1972, o “Projeto Brasileiro de Cinema” apresentou propostas de estruturação da Embrafilme. Nessa proposta, a empresa, inicialmente distribuidora de filmes brasileiros nos mercados internacionais, tornava-se uma distribuidora voltada para o mercado nacional e coprodutora. Tornou-se, assim, responsável pela produção e circulação de grande parte dos longas-metragens nacionais da época, que não foram poucos, chegando à média de 77 filmes por ano partir de 1974. Um número alto até mesmo para os dias de hoje.

A identificação povo/público coloca dois problemas que marcaram um tipo de cinema “de esquerda” nos anos 70 e 80 e que, em relação ao tema central deste artigo, ajuda-nos a entender a relação dos ex-cinemanovistas com a Embrafilme. Em primeiro lugar, a visão do popular como pouco compatível

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Os filmes que marcam essa época são de caráter popular. Um exemplo de filme que procura valorizar a cultura brasileira é Na estrada da vida (1980) de Nelson Pereira dos Santos, que narra a trajetória da dupla caipira Milionário e José Rico. O filme narra as dificuldades da dupla durante toda a carreira mostrando o preconceito e a pobreza através das próprias letras das músicas, que são ressaltadas no filme com apelo bastante dramático. Esse caráter popular é o que ligava os cineastas aos militares, como disse o próprio Nelson Pereira: “Pode não existir hoje um militar que corresponda àquilo que o Glauber imagina, mas ele está jogando com uma possibilidade bastante viável: a de que o militar brasileiro, além do projeto de nação, assuma também um projeto ligado ao povo”. A crença num projeto ligado ao povo moveu os cinemanovistas a favor da Embrafilme, mesmo isso significando produzir filmes não mais tão revolucionários em termos de linguagem, mas filmes populares. A socióloga Marina Jorge comenta essa questão:

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com a vanguarda e com o teor experimentalista de um cinema moderno. Em segundo lugar, a aproximação do popular ao comercial, que fazia com que se visse a conquista do mercado brasileiro como prioridade número um do cinema nacional. (JORGE, 2003, p. 173).

Os problemas citados pela socióloga nos permitem entender a ruptura entre a vanguarda do Cinema Novo e o que foi produzido durante a industrialização propiciada pela Embrafilme. Se por um lado vemos a valorização da cultura popular como meio de alcançar o público – afinal, ele consome aquilo com o que se identifica –, também vemos o sentimento de vanguarda dos cineastas se diluir em meio à produção em escala industrial. Em lugar da aproximação da cultura popular e erudita do Cinema Novo, vemos aqui um afastamento. Marina Jorge ainda acrescenta: É exatamente a preferência por um folclore “nacional-popular” fossilizado e incompatível com a vanguarda, numa concepção oficialesca da cultura brasileira, que vemos se explicitar no documento Política Nacional de Cultura, lançado como parte das diretrizes do governo para as artes no Brasil: “ Para que haja qualidade, é preciso precaver-se contra certos males, como o culto à novidade. Característica de país em desenvolvimento, devido à comunicação de massa e à imitação dos povos desenvolvidos, a qualidade é frequentemente desvirtuada pela vontade de inovar.” (JORGE, 2003, p. 176).

O que Jorge cita no trecho acima é que a política nacional-desenvolvimentista do Estado militar não condiz com o período áureo de produção cinematográfica do país, o Cinema Novo, pois, enquanto se produz muito, questiona-se pouco. A Embrafilme acreditava que a quantidade geraria a qualidade. Em termos de produção industrial talvez, mas, criativamente, pouco provável. Afinal, criativo é o novo, e o culto ao novo parecia perigoso aos olhos do Estado militar. Os cinemanovistas acreditavam na valorização do popular como justifica Nelson Pereira: Fazendo um filme que não só se baseie em valores populares, como que também os aceite e os assuma positivamente, o povo se reconhecerá no filme. E assim, os espectadores ao mesmo tempo poderão se afirmar culturalmente ao assistir o filme, e constituirão um público que sustentará economicamente a produção. (Apud JORGE, 2003, p. 175).

Esse pensamento norteia e justifica o caminho que os cineastas e a Embrafilme seguiram. A partir de 1975, a distribuição se consolida e o Brasil começa a circular os primeiros Blockbusters nacionais, devido em parte ao incentivo a filmes históricos. Como explica GATTI (2007, p. 38): O biênio 1975-1976 pode ser considerado o período em que a distribuidora se estabeleceu de forma definitiva no mercado cinematográfico brasileiro, pois a

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Embrafilme encontrava-se operando em escala nacional, lançando seus filmes nas principais cidades e capitais brasileiras. Nessa fase, o Rio de Janeiro foi a cidade mais aquinhoada com lançamentos de filmes nacionais. No entanto, percebe-se uma tendência à interiorização dos lançamentos nacionais em cidades discrepantes como Juiz de Fora (MG), Salvador, São Vicente (SP) ou Guaratinguetá (SP), com uma média de 4 cópias por filme lançado. A maturidade empresarial e comercial da distribuidora começaria a ser sentida com o lançamento do filme Dona Flor e seus dois maridos, produção de Luís Carlos Barreto. O filme se transformou no maior sucesso de bilheteria da cinematografia brasileira ao alcançar mais de 11 milhões de espectadores durante sua carreira comercial, também responsável pela ampliação da rede de fiscalização das salas de cinema e pela criação da chamada Lei da Dobra.

Dona Flor e seus dois maridos (1976), baseado na obra homônima de Jorge Amado, por exemplo, contou com atores famosos para atrair o público – Sônia Braga, José Wilker, entre outros – além do apelo da comédia com muitas cenas eróticas. Numa tentativa de criar um star system atrativo para o público.

Se por um lado o cinema comercial veio conquistando cada vez mais público, o filme autoral começou a perder força em meio ao processo de industrialização. Como afirmou Glauber Rocha, nesse momento: “Fazer filme revolucionário não quer dizer fazer filme pobre, temos de competir com o imperialismo americano dentro das condições tecnológicas dele. (...) O que o cinema underground fazia na década passada, agora cabe ao grande cinema armado num esquema comercial de produção”. (Revista Veja, n. 498, p. 88, 18 jan. 1978). Ainda que o sucesso da Embrafilme denuncie uma problemática na arte, o que mais impressiona é a sua queda. Os esforços se voltaram para conquistar o mercado, mesmo que isso significasse para a classe cinematográfica assumir um pacto cinema-estado – pacto assumido não somente pelos cinemanovistas. A Embrafilme trabalhava sob a premissa de que quantidade geraria qualidade. É nítido o crescimento da qualidade dos produtos audiovisuais levados ao mercado pela Embrafilme, mas o ganho em qualidade foi acompanhado pelo

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O esforço da classe cinematográfica e do Estado revelou até onde era possível chegar com filmes brasileiros em termos de espectadores. Filmes comerciais, como os da série Os trapalhões distribuídos pela empresa, eram sucessos garantidos. Os trapalhões eram personagens com características bastante populares. Vinham da televisão, viviam cenas engraçadas, algumas como as dos Três Patetas, outras com um apelo sensual discreto, uma vez que se dirigiam em especial para o público infantil. Ainda assim, sem deixar de mostrar a “malandragem” do povo brasileiro. Um exemplo de como esses clichês de povo, construídos nessas comédias, eram aceitos é o fato de quatro filmes da série estarem, ainda hoje, entre as dez maiores bilheterias do Brasil. Nesse exemplo, já é possível ver a importância da linguagem televisiva e do Canal Globo para o mercado.

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aumento do custo das produções. Em palestra para a Educine Carlos Augusto Calil comenta: O esgotamento da Embrafilme se deve a alguns fatores, eu acho importante contar para vocês: primeiro deles, a Embrafilme, que podia ter estabelecido um circuito de exibição no Brasil, portanto, verticalizando, como os americanos verticalizam a sua atividade, não pôde fazer isso porque os cineastas impediram-na, houve um momento em que a Embrafilme tinha dinheiro para comprar um circuito de exibição, os cineastas criaram uma cooperativa brasileira de cinema, liderada por Nelson Pereira dos Santos, foram buscar o dinheiro da Embrafilme, a Embrafilme ainda bancou para eles, para eles administrarem. A lógica da visão do cineasta é a seguinte: há público para cinema brasileiro, o público está louco para ver “quem buro buro, bora bora”, uma coisa que a gente sabia que não tinha, então, basta ser exibido e as massas afluirão. As massas não afluíram e este circuito acabou na praia, foi um enorme investimento que a Embrafilme fez e que se diluiu. (...) Quando o mercado de vídeo se apresenta um mercado promissor, os cineastas fecham posição em relação a Zelito Viana que consegue entrar na Globo e criar a Globo Vídeo, que foi uma grande porcaria, vocês sabem, porcaria técnica, porcaria industrial, morreu na praia. E a Embrafilme teve que ceder todos os seus direitos, toda a coleção brasileira clássica e contemporânea para a Globo Filmes. Portanto, a Embrafilme ficou confinada na exclusiva produção e distribuição de longas-metragens para o mercado interno, sem poder abrir industrialmente as suas possibilidades, se teria dado certo ou não, eu não sou capaz de dizer. Vou dizer que este projeto de modernização e abrangência foi abortado (…) As fontes de renda da Embrafilme começaram a minguar e o aumento dos custos dos filmes, então a Embrafilme diminuiu a sua capacidade de intervenção na cultura. A Embrafilme tinha naquela época algo como dez milhões de dólares por ano de captação de recursos via institucional, via impostos. E os custos dos filmes subiram muito, sobretudo os custos de lançamento, via publicidade, explodiram nesta década, houve então uma enorme crise de representatividade, o cinema brasileiro não produziu mais filmes interessantes, os filmes depois de 86 são quase irrelevantes, nenhum deles conquistou prêmios internacionais, nenhum deles alcançou boa crítica que são as duas fontes de prestígio e de poder para uma cinematografia. Então, o cinema brasileiro entrou numa crise criativa enorme, eu chamo de crise criativa quando a obra que se produz não dialoga mais com a sociedade, portanto ela está tomada por uma crise da representatividade, esse cenário do final da década de 80, é a encarnação de uma crise da representatividade. (CALIL, 2002).

Ao passo que as produções encareciam e ficavam maiores, o cinema de arte se esvaziava. A quantidade gerou uma qualidade na aparência, trouxe possibilidades tecnológicas maiores, mas o quadro político não estava aberto a movimentos estéticos – a revolução, política ou estética, não se faz com capital gerado por um Estado Militar. Essa conjuntura, naturalmente, gerou uma estética na maioria das vezes padronizada, ainda que pela primeira vez a classe cinematográfica fosse vista em todo seu potencial e apoiada. Para tentar compreender como a conjuntura política e o Cinema Brasileiro caminharam através da última década de Embrafilme, JORGE (2003, p. 180) considera:

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A intervenção estatal na esfera da cultura – acompanhada do desenvolvimento de uma indústria cultural que se apropriou dos anseios de independência nacionais-desenvolvimentistas – implicou um esvaziamento das potencialidades revolucionárias contidas embrionariamente na proposta de um cinema popular. A noção de popular, tal como encampada pelo Estado pós-64, significou consumo, fácil assimilação, recusa ao que é universal. Ao povo, justificação última de toda a produção dos ex-cinemanovistas nos anos 70 e 80, foram negadas as experiências de linguagem cinematográfica, caracterizadas como elitistas. Nem sempre o governo o conseguiu, e muito raramente acabou as incentivando indiretamente – como no caso de A idade da terra, de Glauber Rocha –, mas de qualquer modo demonstrou que tinha orientações a dar na esfera da cultura. Os setores conservadores e reacionários normalmente sabem do caráter potencialmente subversivo da arte e da cultura enquanto parte da formação de uma nova “visão de mundo”, de uma nova hegemonia, e às vezes o levam mais a sério do que os próprios artistas. E os militares que tomaram o poder em 1964 tinham motivos para desconfiar das manifestações culturais pré-golpe, em sua autoproclamada missão revolucionária. Mas mais do que isso, tiveram a intuição de que esse potencial caráter subversivo reside mais profundamente na forma do que no conteúdo da arte, pois, como escreve Fredric Jameson, “o conteúdo expresso sem a forma adequada não alcança a plenitude, ou, em outras palavras, a insuficiência da forma deriva da insuficiência do conteúdo”.

Sob o disfarce de boas intenções, a ditadura foi engolindo a classe cinematográfica. A esperança de finalmente alcançar a indústria foi se desfazendo em filmes pouco revolucionários e sem identidade. E a empresa foi perdendo prestígio. A queda progressiva da Embrafilme atingiu o cinema como um todo quando o ex-presidente Fernando Collor de Melo fechou as portas da empresa. Ele acreditava em abrir o país para o mercado externo, privatizar empresas públicas e, com isso, a Embrafilme não teria como sobreviver. SIMIS (1998, p. 22) fala das consequências: As consequências foram imediatas: os dados estatísticos sobre o mercado cinematográfico deixaram de ser computados; perdeu-se o controle sobre a remessa de lucros obtida com a comercialização dos filmes importados para as matrizes estrangeiras, cujo montante aferido, só no primeiro semestre de 1989, somava US$ 23.640.908,31; os acordos de coprodução e de integração do cinema ibero-americano por meio de um mercado comum foram engavetados; no mercado de videocassetes, o direito autoral foi

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A noção de popular levantada por JORGE (2003), do ponto de vista dos interesses do Estado, era alienante, era um popular que distrai o público e o minimiza. Se ao público é negado o novo, as experiências de linguagem, também é negado ao povo a mudança, a transformação. Se o subestimamos, não esperamos que nada mude, só o alimentamos com aquilo que se pode considerar bom e suficiente para ele. O povo aqui é a representação máxima do que o Estado militar esperava: valorização da cultura como pão e circo, que não só buscava alimentar e distrair a população, como extrair dela o lucro para competir com a produção estrangeira.

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burlado, pois, sem fiscalização, a pirataria voltou a crescer. O que a gestão do primeiro secretário da cultura, Ipojuca Pontes, apresentou, restringiase apenas às medidas que visavam ao controle da autenticidade das cópias de vídeo, atendendo assim às reivindicações dos interesses estrangeiros ao coibir a pirataria num setor onde prevalece o produto importado. A secretaria transformava-se em vigia do direito autoral em troca da receita proveniente da emissão de etiquetas. Quanto ao setor exibidor, historicamente ligado ao distribuidor de filmes estrangeiros pelo sistema de lote, transferia-lhe o controle da renda de suas bilheterias. Até então, o controle era feito com base na revenda dos ingressos padronizados fornecidos pela Embrafilme.

O resultado profundamente negativo do fechamento da Embrafilme tornouse uma herança carregada pelas décadas seguintes e, até hoje, novas leis, novas formas de incentivo buscam retomar o aumento da produção, a proteção do produto nacional, mas com dificuldades. O cinema é um espelho da sociedade, os filmes são o país. Claro, difícil um país em regime ditatorial produzir cinema por meio de uma empresa estatal. No entanto, entre o que se alcançou para o cinema nesse período de industrialização encontram-se as leis de incentivo, novas formas de financiamento e a certeza do potencial artístico do país. A perda do potencial revolucionário do cinema brasileiro é consequência da perda do potencial revolucionário da nação como um todo, reprimida no regime militar. Mas esse foi um período de busca de uma nova identidade estética e de exploração dos limites de produção e distribuição, agora em meios industriais. Mesmo diante de críticas ao cinema produzido na época, é fato que a Embrafilme criou uma estrutura importante nunca antes pensada para a produção cinematográfica no Brasil. A prova disso é o impacto de seu fechamento. A relação contraditória na qual se colocaram os ex-integrantes do Cinema Novo ao apoiarem uma empresa do Estado militar, resultou da vontade de levar o cinema brasileiro a ser tratado a sério pelo governo, e pelo próprio povo. Nos anos 60, a frase de Glauber “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” era a representação de uma questão de sobrevivência: ou se fazia cinema desse modo, ou não teríamos cinema. Nos momentos de dificuldade, o Brasil se mostrou extremamente forte e criativo artisticamente, mas não poderíamos nos alimentar somente da “fome”. A fome de Glauber precisava ser saciada, não poderíamos simplesmente assumir a fome brasileira como identidade e aceitá-la. Quem tem fome quer comer. A Embrafilme aproximou o cinema brasileiro do forte e nutrido cinema industrial com a esperança de criar um novo cinema, mais forte, menos esfomeado – talvez aí a saciedade tenha enganado os estômagos revolucionários –, mais estruturado para enfrentar a globalização. Com a revolução tecnológica, os cineastas se abriram pra necessidade da industrialização, de leis para proteger e apoiar projetos brasileiros.

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De certo modo, foi o que a Embrafilme fez, ela abriu o país para um pensamento sério – e mercadológico – em torno da produção artística nacional. O cinema brasileiro deixou de ser mais uma atividade marginal e/ou subversiva, e passou a ser uma atividade que também diz respeito ao Estado, atividade que diz respeito ao povo, que é capaz de conversar com o povo.

REFERÊNCIAS GATTI, André Piero. Embrafilme e o cinema brasileiro. São Paulo: Centro Cultural São Paulo, 2007. CALIL, Carlos Augusto. Cinema; Mercado dos Anos 70 aos Anos 80. História recente do cinema brasileiro. São Paulo: Educine, 2002. AMANCIO, Tunico. Artes e manhas da Embrafilme: Cinema Estatal Brasileiro em Sua Época de Ouro (1977-1981). Niterói: EdUFF, 2000. JORGE, Marina Soler. Industralização Cinematográfica e cinema nacional-popular no Brasil dos anos 70 e 80. Revista História: Questões & Debates, Curitiba, n. 38, p. 161-182. Editora UFPR. 2003. SIMIS, Anita. Estado e cinema no Brasil. São Paulo: Annablume, 1996.

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08 O CINEMA DA RETOMADA Agnes Cristine Souza Vilseki1 Bianca de Moura Pasetto Willian Muneroli Manfroi

O INÍCIO E CARLOTA JOAQUINA A Retomada compreende um ciclo de produção cinematográfica brasileira, bastante significativa, com início após a extinção da Embrafilme2 no governo de Fernando Collor de Mello em 1990. Nesse período houve um aumento da produção audiovisual no país principalmente devido à criação de leis de incentivo, como  a Lei do Audiovisual. De acordo com Luiz Zanin Oricchio, o filme que inaugura a Retomada é Carlota Joaquina: Princesa do Brasil (1995) e o que encerra é Cidade de Deus (2002). O cenário  no Brasil no início da década de 90 era de “ressaca” de mais de vinte anos de uma ditadura militar, doença e morte de Tancredo Neves, seguido por anos inflacionários no governo Sarney, eleição direta de Fernando Collor, e seu impeachment em 1992.  O clima de impotência atingiu o cinema com o fim da Embrafilme, sem mecanismos de financiamento e fomento, a produção chegou perto de zero. Segundo Lúcia Nagib: “Os dois primeiros anos da década de 90 estão certamente entre os piores da história do cinema brasileiro”.  Estudo orientado pelo Professor Doutorando Fabio Luciano Francener Pinheiro.

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A Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S/A) foi criada em 1969, durante a Ditadura Militar, como órgão de cooperação do Instituto Nacional de Cinema (INC) com o objetivo de distribuir e promover filmes nacionais no exterior. No entanto em 1990, segundo Oricchio:  “(...) já estava em franca deterioração, com o esgotamento do modelo de produção para o qual fora criada. Collor deu apenas o tiro de misericórdia. No entanto, nada colocou no lugar destes órgãos fomentadores e reguladores da atividade. Deixou-a ao sabor do mercado, conforme rezava o dogma das políticas neoliberais (...)”.  2

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Com a regulamentação da Lei do Audiovisual em 1993, que possibilitava a captação de recursos via renúncia fiscal, associada a leis de incentivo municipais e estaduais, a produção nacional começou a aumentar. A diversidade na produção dos filmes da retomada foi marcante, foram produzidas comédias, filmes políticos, infantis, policiais e históricos. Além de apresentarem estilos distintos, surgiram filmes  menos comerciais e diretores estreantes em longa-metragem. Se por um lado os filmes de Renato Aragão e Xuxa alcançaram sucesso de bilheteria, por outro, filmes como Baile perfumado, de Lírio Ferreira e Um céu de estrelas, de Tata Amaral tiveram reconhecimento artístico, apesar de pouca bilheteria.  Vários filmes foram lançados e, mesmo com dificuldade de distribuição e exibição, muitos deles despertaram o interesse do público. É o caso de Carlota Joaquina (1995), de Carla Camurati, que apesar de ter sido realizado com poucos recursos teve um  diálogo surpreendente com o público, grande repercussão e sucesso de bilheteria. “Com este filme, voltou-se a falar de cinema nacional”. (ORICCHIO, 2003, p.26).  Segundo esse autor, a importância desse filme para o ciclo, está na relação e adesão do público a ele. O tom de deboche empregado em Carlota Joaquina encontrou identificação com o público de classe média a que se dirigia. Diante da situação política e social em que o país se encontrava, o sentimento era de que o Brasil não tinha jeito, então, rir dele era o melhor remédio.

O filme é uma comédia que narra a vinda de Carlota Joaquina e da família real portuguesa para o Brasil, fugindo de uma possível invasão de Napoleão Bonaparte. Os personagens são construções caricatas de figuras históricas. Carlota Joaquina, interpretada por Marieta Severo, é retratada como uma “ninfomaníaca de boca suja, que detestava o país e o traía na política, como traía na cama o marido D. João IV.” (ORICCHIO, 2003, p.37) Além disso, a cenografia que estaria fadada ao ridículo devido ao baixo orçamento, assume o tom falso, incorporando uma estética carnavalesca presente no filme como um todo. 

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O que diz o filme? Que o Brasil moderno foi forjado naquele momento, o da transferência da família real para o Rio, mas o que se poderia esperar de um país construído com aquele tipo de personagens? (...) O filme fornece, à sua maneira informal e irreverente, essa microteoria sobre a formação do Brasil contemporâneo. E o sentimento típico de estar acima do país era expresso à perfeição pelo gesto e pela frase famosa atribuída a Carlota, quando enfim deixou o Brasil para regressar à Europa. Batendo as sandálias na beira do cais, teria dito: “Desta terra não quero levar nem a poeira dos sapatos”. Uma pequena epifania para quem se sente injustiçado e uma catarse razoável para quem acha que o Brasil não tem jeito mesmo. (ORICCHIO, 2003, p.40). 

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A REPRESENTAÇÃO HISTÓRICA O cinema da retomada mostrou uma preocupação com o tema da identidade nacional, os filmes históricos que já faziam parte da tradição cinematográfica brasileira, voltaram a aparecer neste período. Além de filmes de ficção como Carlota Joaquina, Lamarca, O que é isso, companheiro?, Guerra de Canudos, Hans Staden, também foram realizados documentários a partir de eventos da história nacional, como Auriverde (1991), Senta a pua! (1999) e A cobra fumou (2002). Esse três filmes abordam a questão da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial sob diferentes pontos de vista.  Auriverde de Sylvio Back é um filme provocador que procura questionar a participação do exército brasileiro na guerra, é um filme de montagem que não apresenta depoimentos dos participantes3. Já Senta a pua!, de Erick de Castro é o oposto, enaltecendo a participação dos aviadores brasileiros na guerra através de depoimentos. E A cobra  fumou, de Vinicius Reis busca os soldados sobreviventes para que descrevam suas experiências. Tem uma abordagem  parecida com o documentário de Erick de Castro, no entanto, o alvo acaba sendo o soldado humilde, representando o povo brasileiro, diferente da elite que formava a Força Aérea Brasileira, apresentada em Senta a pua!  Em função da comemoração dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, surgiram alguns filmes que retratavam o primórdio da ocupação de terras brasileiras. Desmundo (2002), de Alain Fresnot, Brava gente brasileira (2000), de Lúcia Murat e Hans Staden (1999), de Luis Alberto Pereira. Além de retratarem a  origem da nação, falam também do encontro entre os diferentes que aqui habitavam, representados pela mocinha portuguesa e o rústico senhor de engenho em Desmundo, os índios que perdem sua cultura em contato com o outro em Brava gente brasileira e o alemão e os canibais em Hans Staden. Nesse contexto de produção de filmes históricos encontramos ainda o filme Mauá, o imperiador e o rei (1998) e Guerra de Canudos (1998) ambos de Sérgio Rezende. No primeiro a figura de Mauá é retratada como a do capitalista idealizado representando o alinhamento brasileiro ao liberalismo naquele momento. Em Guerra de Canudos, ORICCHIO (2007) aponta que o filme peca por dar demasiada atenção às reconstituições de época e se perde ao tratar da dinâmica histórica, no processo de transformá-lo em algo universal e relevante para o entendimento do presente. Faz um contraponto comparando ao filme Os inconfidentes (1972) de Joaquim Pedro de Andrade:  3 Filme produzido a partir de imagens de arquivo reais, sobrepostas a narrações fictícias, ou reais desemparelhadas, montadas livremente pelo diretor, com o objetivo de atacar essa suposta participação simbólica do Brasil na Segunda Guerra Mundial. 

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Com Os inconfidentes, Joaquim realizou um dos mais ousados filmes históricos da nossa cinematografia. Em época de censura revisitou o episódio histórico de libertação nacional, baseou-se em documentos autênticos (os chamados Autos da devassa), mas tratou-os com total liberdade. Várias cenas - entre as quais a mais famosa, a visita da rainha de Portugal, dona Maria I, aos condenados, no cárcere - jamais se deram. Importava ao diretor não a exatidão factual do relato e, sim, o seu sentido.  (ORICCHIO, 2003, p.57).

Assim como fez o Cinema Novo, o cinema da Retomada revisitou a história no intuito de se redescobrir,  não para contestar um regime ou uma conjuntura social como se fazia na década de 1960 e 1970, mas para desvendar “o caráter nacional brasileiro” e descobrir afinal quem somos: “Precisamos saber o começo de tudo para compreendermos onde chegamos, e talvez, para onde vamos.” (ORICCHIO, 2003, p.49)  O BRASIL E O ESTRANGEIRO

O contraditório é evitado e nem mesmo ironizado ou parodiado, como o seria na chanchada, matriz estilística do longametragem de Luiz Carlos Lacerda e Buza Ferraz. (..) For All é modelo de integração ao modelo hegemônico e homenagem ao que julga ser a melhor das qualidades do povo brasileiro – a sua infinita capacidade de submissão ao ocupante. (ORICCHIO, 2003, p.62).

Para ORICCHIO, a contradição da relação com a potência vigente – no caso, os Estados Unidos da América – é mais bem trabalhada no filme Bananas is

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Durante os anos 1960, o cinema procurou pensar o Brasil como um todo e buscar a sua originalidade a partir do atrito com o Outro. Este processo de ver e pensar sobre si próprio como distinto dos demais perdeu força durante os anos 1980 e retornou nos anos 1990, com abordagens distintas daquela apresentada nos períodos anteriores. Desta maneira, segundo ORICCHIO (2003), alguns filmes da Retomada, seguindo o que parece ser tendência de ordem geral, voltaram a examinar o Brasil segundo seu relacionamento com a potência dominante. Os filmes produzidos sob este prisma tendem a apresentar visões variadas sobre o assunto. O estrangeiro é colocado em posição de inferioridade, como é o caso do personagem estadunidense em O que é isso, companheiro?. Entretanto, logo esta posição se inverte e ele é apresentado como um ser sensato, dono da razão, que mantém sua capacidade de raciocínio lógico mesmo nas situações extremas. Essa relação do estrangeiro, do “gringo”, dentro do território brasileiro, também é mostrada no filme For All: o trampolim da vitória (1997), onde a instalação de uma base militar estadunidense na cidade de Natal durante a Segunda Guerra Mundial é retratada sem os aspectos possíveis de atrito entre a população local e os ocupantes da base militar.

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my business, sobre a figura de Carmem Miranda, que se tornou um ícone brasileiro no exterior e, consequentemente, desta relação contraditória. Se Carmem atendia ao estereótipo que se queria ver do Brasil, por outro envergonhava os brasileiros com uma imagem que projetava deste. Estes trabalhos, em que pese seu valor sociológico, não pensam a fundo, estruturalmente, esta dialética entre o Eu e o Outro que parece comandar em essência uma certa mentalidade dominante no país. (ORICCHIO, 2003, p.59).

Por outro lado, foram produzidos filmes que procuravam trabalhar com este outro que, através do atrito e da negação do eu com o outro, fazia surgir a identidade nacional. Neste sentido, foi adaptado o romance O triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. (...) a figura quixotesca era deslocada demais (em que pesem os esforços do diretor e do ator) para chamar a atenção para o que realmente ainda podia ser discutido e negociado: a inclusão da cultura local na inevitável dialética entre o Eu e o Outro. (ORICCHIO, 2003, p. 67).

Conforme ORICCHIO, este olhar para fora também teve o seu inverso no papel do brasileiro que deixou o país durante a ditadura e, ao retornar, não reconhece mais o país que deixou para trás. É o caso do filme O príncipe, de Ugo Giorgetti, onde o olhar estrangeiro é de um brasileiro que há muito não retorna ao Brasil e, ao fazê-lo, tem um misto de estranhamento e familiaridade com o que vê. Se o olhar do brasileiro sobre a sua terra ao retornar é de estranhamento, como sugere o filme O príncipe, em Terra estrangeira esse olhar se dá através da perda da nacionalidade em um momento crítico da política no Brasil, o princípio da era Collor.   Paco e Alex são pintados como seres à deriva, órfãos. Esse sentimento de não pertencer a ninguém nem a lugar nenhum vai sendo construído ao longo da trama e atinge o ponto mais explícito quando Alex tenta vender seu passaporte brasileiro no mercado negro e descobre que o documento não vale grande coisa. Ter conseguido registrar, em sua estrutura narrativa, essa ferida narcísica do brasileiro no início da década, é um dos grandes trunfos desse filme. (ORICCHIO, 2003, p.70).

Esse “à deriva”, esse desalento torna-se mais pungente na cena em que Alex e Paco estão numa praia deserta diante de um navio encalhado, e numa outra em que, num rochedo, na ponta da Europa, olham na direção da terra natal distante, sem perspectiva de voltar.

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Outros filmes também trataram desse olhar e do movimento do brasileiro que está morando em outro país, como foi o caso de Dois perdidos em uma noite suja, adaptado da obra de Plínio Marcos, que mostra dois imigrantes brasileiros nos EUA. No filme de Walter Salles, invertendo o fluxo migratório de um país que no início do século recebia imigrantes, dois brasileiros em Portugal apresentam visões opostas sobre o país que deixaram para trás: Enquanto Tonho pensa em voltar quando as coisas apertam, Paco não quer nem ouvir falar do Brasil. No entanto, essas atitudes contrastantes, que poderiam ter rendido uma boa reflexão a respeito da tipologia de atitudes dos brasileiros em relação ao Brasil, não são desenvolvidas, e o filme passa longe desse filão. (ORICCHIO, 2003, p.70).

Desta maneira, os filmes trabalharam com a questão de uma identidade nacional que surgiria a partir do atrito ou da negação do outro, ao ponto desta relação por vezes se fundir, abolindo-se barreiras entre o Eu e o Outro. O SERTÃO, A FAVELA

Assim como o sertão, a favela também voltou a ser tema e cenário de filmes nesse período. Há filmes que remontam a visão tradicional da favela, no morro das grandes cidades. Porém, começam a surgir filmes que tratam não apenas da favela, mas das periferias que existem ao redor das grandes cidades. O FECHAMENTO DO PERÍODO DA RETOMADA E O FILME CIDADE DE DEUS Cidade de Deus foi o maior sucesso do período da retomada e também é considerado o filme que encerra esse ciclo no cinema brasileiro. Filme de grande repercussão na crítica e no público – levou 3,2 milhões de pessoas ao cinema –, o filme é baseado no livro homônimo de Paulo Lins e recebeu, como principal crítica, a falta

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Outra característica do cinema produzido no período da retomada foi a volta de dois ambientes ao cinema nacional: o sertão e a favela. O sertão, antes cenário de filmes do Cinema Novo, retratados com luz dura nos anos 1990, retorna como um ambiente que é também o personagem, e não só o cenário. Ao contrário do que aconteceu nos anos 1960, o sertão dos anos 1990 não possui uma temática única. Ainda conforme ORICCHIO, alguns filmes saem em busca de fissuras, outros procuram a conciliação. Uns têm a revolução como horizonte, outros, a reforma. Pontos de vista diferentes, refletidos em obras que não somam na mesma coluna, a não ser no espaço físico comum escolhido como cenário.

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de contextualização do desenvolvimento daquela periferia específica em relação ao restante da cidade e ao período histórico pelo qual ela passa. Porém, as características fílmicas que tanto chamaram a atenção precisam ser citadas. Conforme ORICCHIO (2003, p.157): No entanto, sejam quais forem as críticas que se façam ao filme, não se podem negar a ele a agilidade da filmagem, a fluência, o trabalho de atores, a competência da montagem e a qualidade da música - tudo somado resulta em um conjunto muito prazeroso de se ver.

Cidade de Deus trabalha ainda com uma forte referência às linguagens de videoclipe, este um audiovisual bastante característico das mídias nos anos 90. Esta opção contribui para uma visão da violência com uma referência clara a cineastas estadunidenses como Quentin Tarantino e Martin Scorsese. Segundo ORICCHIO (2003, p.158): Em Cidade de Deus predomina a forma da violência espetacularizada, isto é, neutralizada. O morticínio, que vai ser tornando crescente à medida que a história avança, termina por embrutecer o espectador, que não sofre ou não se choca com o que vê na tela. Aliás, o estilo com que tudo é mostrado visa, explicitamente, a atenuar qualquer desprazer ou choque. (ORICCHIO, 2003, p.137).

A proximidade com a linguagem do videoclipe e da publicidade é perceptível também na montagem, onde praticamente não há intervalo ou planos mais longos, o que não proporciona tempo para a reflexão sobre o conteúdo.  Cidade de Deus oferece, em termos de linguagem cinematográfica, um retrato claro do cinema produzido no início do século XXI. Sua descontextualização, porém, fez com que perdesse o caráter ético e político da história. AS LEIS DE INCENTIVOS No dia 16 de Março de 1990, o então presidente Fernando Collor de Mello extinguiu a única lei de incentivo fiscal à cultura, a Lei Sarney (n. 7505/86). Por meio de uma medida provisória do governo federal, fundações e autarquias como a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes), FBC (Fundação do Cinema Brasileiro) e o Concine (Conselho de Cinema) foram extintas. O próprio Ministério da Cultura foi dissolvido e transformado em secretaria, sob o nome de Instituto Nacional de Atividades Culturais. Com sua política neoliberal, Collor autorizou a entrada de produtos culturais estrangeiros no país praticamente sem nenhum controle. Faltando mecanismos de proteção, como a cota de tela e recursos para a produção cinematográfica nacional,

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a importação tomou conta do mercado exibidor. A Retomada é o momento que o cinema brasileiro viveu a partir da metade dos anos 90 sob o simples lema de produzir filmes. O termo “Retomada”, além de servir como estratégia de mercado, foi uma tentativa necessária de renascimento, como se toda a filmografia tupiniquim anterior aquele momento fosse um ciclo encerrado. Carlos Augusto Calil, que foi diretor da Embrafilme durante 4 anos na década de 1980, concluiu: O inconformismo destes cineastas engrossava o coro dos descontentes e dos interesses contrariados, enfraquecendo politicamente a empresa, que desapareceu menos por perfídia do presidente Collor que por falta de sustentação na classe, acrescida dos efeitos de administrações temerárias e da perda de competitividade do filme nacional. Sua crise aguda datava de 1985 e o governo Sarney pouco fez para saneá-la ou reformulá-la. Quando desapareceu, em 1990, a Embrafilme não era mais administrável. (CALIL, 2000, p. 30).

A grande maioria dos cineastas brasileiros da época final de existência da Embrafilme não estava satisfeito com a conjuntura em que se encontrava o cinema nacional. Diretores como Nelson Pereira dos Santos (Vidas secas, A música segundo Tom Jobim), Hector Babenco (Pixote – a Lei do Mais Fraco, O Beijo da Mulher Aranha) e Carlos Reichenbach (Lilian M.: Relatório Confidencial, Bens Confiscados) defendiam o fim da empresa estatal. A política de Collor, depois de eleito, levou o cinema nacional a viver o pior momento de sua história.

Em 1991, foram realizados 44 longas-metragens, sendo 19 filmes não pornográficos. A produção de 25 filmes de sexo explícito (na linha de As aventuras eróticas de Dick Traça e Lambadas e lambidas) testemunhava a capacidade de sobrevivência do gênero. Em 1992, ano em que Collor sofreu processo de impeachment (que o conduziu à renúncia), a produção nacional chegou ao seu momento mais difícil. Foram concluídos nove filmes. Até a produção pornográfica viu-se reduzida a quase nada: dois títulos. (CAETANO, 2007, p. 197).

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Com a falta de mecanismos de proteção, como a cota de tela para filmes brasileiros e um sistema de distribuição e de fomento aos produtores, além de medidas econômicas como o congelamento dos depósitos bancários, a produção no começo dos anos 1990 praticamente foi paralisada. O número de espectadores do cinema nacional, quase 35% em 1983, caiu para 10% em 1990 e chegou próximo de 0% em 1992. Entre 1990 e 1992 algumas raras coproduções e raros esforços individuais de cineastas brasileiros deram certa vida à atividade. Em 1990, cerca de 50 filmes realizados em anos anteriores estavam no circuito comercial. Foram os últimos filmes ainda financiados pelas leis já extintas do governo Sarney (1985-1990). Maria do Rosário Caetano faz uma análise interessante a respeito do declínio gradual do cinema nacional no período Collor:

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A situação era tão alarmante que os dois maiores festivais de cinema do país, o de Brasília no Distrito Federal e o de Gramado no Rio Grande do Sul optaram por ampliar os horizontes no que diz respeito à forma de inscrições das obras. O Festival de Brasília ignorou qualquer tipo de seleção dos filmes inscritos e foi buscar realizadores nos quatro cantos do país. Já o Festival de Gramado, escolheu não se limitar somente ao cinema nacional, aceitando inscrições de filmes ibero-americanos. Em 1993 a situação ficou pior. Apenas 11 obras foram comercializadas, das quais, duas pornográficas. A partir de 1995 a situação começa a melhorar com o Plano Real e as políticas de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002). Esse período ficou conhecido como o da Retomada do cinema brasileiro. Nesse momento, o interesse era unicamente produzir a maior quantidade de filmes possíveis. A década de 1990 foi marcada pela diversidade de gêneros. O Brasil não estava sozinho nessa queda e volta por cima com a Retomada, quase toda a América Latina passou por um momento similar. A esse respeito BALLERINI discorre: Por conta da implementação do modelo econômico neoliberal, que acabou com as leis que protegiam os cinemas nacionais, a produção do México, do Brasil e da Argentina passou de aproximadamente duzentos títulos em 1985 para menos de cinquenta em 1995. Cuba também passou mais de uma década realizando apenas coproduções ou prestando serviço a empresas estrangeiras. O Peru foi golpeado pela não aplicação da Lei de Cinema, além dos cortes orçamentários. Bolívia e Venezuela viram sua produção declinar devido à crise econômica dos anos 1990. (BALLERINI, 2012, p. 37).

A maioria dos filmes realizados neste período obteve recursos oriundos de dois mecanismos previstos na lei 8.695/93, de Fomento ao Audiovisual. A lei determina que a aquisição de Certificados de Investimentos Audiovisuais será abatida no imposto de renda de empresas ou/e pessoas físicas. O segundo mecanismo disponibiliza às empresas estrangeiras que mantém negócios cinematográficos no Brasil (Warner, Columbia, etc.) a utilização de até 70% do imposto em coproduções de filmes brasileiros. O ano que ficou conhecido como o início oficial da Retomada foi o de 1995, graças ao lançamento do filme Carlota Joaquina, Princesa do Brasil de Carla Murati, principalmente pelo diálogo com o público. Com um roteiro focado em uma paródia a um registro histórico, o filme é de baixo orçamento e teve sua distribuição realizada pela própria diretora do longa-metragem. A obra iniciou a sua trajetória nas telas com apenas quatro cópias e depois foi crescendo. Carlota Joaquina obteve mais de 1.280.000 espectadores e foi o responsável pela volta do “assunto” cinema nacional. Além do lançamento de Carlota Joaquina, o ano de 1995 marcou a Retomada também pelo fato de a produção ter se tornado mais significativa, do ponto de vista da crítica e do público pagante. Treze longas-metragens foram exibidos co-

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mercialmente no Brasil, estes somaram quase três milhões de ingressos vendidos, dez vezes mais que em 1994. Obviamente, essa bilheteria se deveu em grande parte a Carlota Joaquina. Neste mesmo ano de 1995, mais de 100 cineastas filmaram seu primeiro longa-metragem e antigos profissionais, como Nelson Pereira dos Santos, voltaram à ativa. Com o cenário voltando a ficar favorável para o cinema nacional, algumas majors norte-americanas, como a Columbia e a Warner, começaram a expressar interesse em participar tanto na produção quanto na distribuição dos filmes brasileiros, porque podiam abater os investimentos do imposto pago sobre a remessa de rendimentos. Para reforçar a ideia da existência de uma retomada na produção cinematográfica, alguns números podem comprovar os resultados obtidos, em consequência da mudança de política cultural. Uma medida provisória alterou, em 1996, a Lei do Audiovisual, elevando de 1% para 3% o limite de dedução de impostos permitido às empresas, o que impulsionou ainda mais os recursos para as produções nacionais. Outras medidas do governo Fernando Henrique Cardoso contribuíram também para o avanço na área: o orçamento do Ministério da Cultura cresceu, a alíquota de dedução chegou a 5%, tornou-se possível inscrever projetos em qualquer época do ano e avaliar os projetos em sessenta dias e não em noventa como antes. Outro fator importante, o aumento do limite de captação, de R$ 1,5 milhão para R$ 3 milhões, possibilitando assim a produção de longas-metragens com um orçamento maior do que o considerado normal para a época. Foram produzidos assim, Tieta do Agreste, em 1996 (R$ 5 milhões) e Guerra de Canudos, em 1997 (R$ 7 milhões). No ano de lançamento deste último filme, em 1997, R$ 120 milhões foram oferecidos na forma de renúncia fiscal ao cinema e o Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro distribuiu mais de R$ 80 mil entre catorze projetos de longas-metragens. CINEMA BRASILEIRO: UMA RETROSPETIVA HISTÓRICA

Apesar de todos esses benefícios serem possíveis tanto para as empresas estatais quanto para as privadas, é bom ressaltar que a grande maioria das investidoras em cinema nacional eram empresas estatais, Petrobrás, Banco do Brasil, Telebrás e a Eletrobrás. A hipótese mais plausível é a de que o investidor privado ainda tinha receio em relação à dedução de grandes quantias de impostos ligada ao investimento em filmes brasileiros. De qualquer modo, o público dos filmes nacionais foi aumentando gradativamente, passando de 0,05% em 1992 para 5,53% em 1998. Números positivos para a época, mas incrivelmente baixos se compararmos ao número de espectadores de obras brasileiras na década de 1980, e baixos ainda se compararmos aos números de hoje.

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REFERÊNCIAS NAGIB, Lúcia. O cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Ed. 34, 2002. ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. BALLERINI, Franthiesco. Cinema brasileiro no século 21. São Paulo: Summus, 2012. CAETANO, Maria do Rosário. Cinema brasileiro: da crise dos anos Collor à Retomada. Rio de Janeiro, Revista Alceu nº 15, 2007.

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09 CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO: UMA BREVE VISITA Carla Fonseca Abrão de Barros1 Érica Ignácio da Costa Fábio Silvester Thibes

A MIMETIZAÇÃO DO OLHAR SOBRE A EXPERIÊNCIA EMPÍRICA Levemos em consideração o cinema como uma possibilidade de representação de diferentes mundos e de diversas problemáticas, como linguagem e subjetividade. Em lugar de simplesmente captar a realidade, o cinema é o lugar para as diversas mediações possíveis entre a imaginação e a representação da vida.

Para analisar o cinema brasileiro é comum usar como parâmetro o modelo estrangeiro. Embora a presença dos filmes estrangeiros no Brasil ainda seja, sem dúvida, avassaladora, propomos partir da tradição própria do cinema brasileiro, e da importância da participação do Estado na produção, exibição e distribuição dos filmes nacionais contemporâneos. Para isso, analisamos filmes que vão do ano de 2002 até o ano de 2013, centrando o estudo em Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, e no recente, Trabalhar cansa (2011), de Juliana Rojas e Marco Dutra. Estudo orientado pela Profa. Dra. Salete Paulina Machado Sirino.

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Levemos em consideração o cinema brasileiro contemporâneo não apenas com relação à sua técnica, linguagem e arte, mas em seus vínculos com a sociedade, e, de maneira muito importante, com as diversas sensibilidades e individualidades. O que buscamos demonstrar aqui, então, é como o cinema brasileiro contemporâneo não necessariamente registra a realidade, mas se pauta nela a todo o momento. Inclusive nos documentários, o que vemos é uma forma de representação da realidade, e não sua imediata captação.

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Discutiremos ainda alguns documentários e a presença massiva da Globo Filmes no cinema nacional contemporâneo. O ponto de contato que percebemos em alguns dos filmes analisados é uma pesada inquietação e vazio das personagens frente às desigualdades de uma realidade dura. No centro desses filmes está o sujeito, e eles têm em comum um apelo realista em torno da introspecção, da falta de controle e da desorientação das personagens. A própria linguagem gera deslocamentos de sentido através da tensão entre as subjetividades e seus horizontes ficcionais. Esses filmes criam muitas vezes um imaginário que incorpora dados do mundo sensível e da realidade social brasileira. Comecemos por Cidade de Deus, um marco do cinema contemporâneo brasileiro, por toda sua importância e alcance. O filme gira em torno da Cidade de Deus, favela do Rio de Janeiro, área em que traficantes de drogas comandavam a comunidade. A história começa em 1960, mostrando que muitos dos problemas decorrem da extrema pobreza e da exclusão. Já nas fases iniciais da favela são encontrados os personagens principais, Buscapé e Zé Pequeno. O filme segue a favela durante três décadas, de 1960 a 1980, e mostra o crescimento do crime organizado dentro daquele contexto. Interessante ressaltar que a maioria dos atores era, de fato, moradores de favelas como Vidigal e Cidade de Deus. Em Cidade de Deus, a direção de fotografia e a edição certamente se destacam, por carregarem certa visceralidade e inquietude, fazendo com que o espectador seja transportado para as ruas da favela. Em Cidade de Deus não é apenas a “estetização” da violência e da pobreza o que interessa, e, sim, os indivíduos. Em sua relação temporal complexa, levanta inúmeras questões que refletem outras dimensões. Não se trata apenas da violência mostrada a todo o momento. Conhecemos a história de Zé Pequeno desde sua infância, e seguimos sua vida conturbada até a morte. Mesmo sendo um filme de muita ação, Cidade de Deus nos coloca diante do problema do vazio contemporâneo. INQUIETAÇÃO E VAZIO: TRABALHAR CANSA (2011) O título do filme paulistano já introduz uma hipótese interessante sobre o próprio fazer fílmico contemporâneo: o cansaço. Pensar o mundo contemporâneo cansa. Viver no mundo contemporâneo cansa. Trabalhar cansa. Começamos esse texto de uma forma um tanto pessimista, mas é bastante importante entender o peso do nome do filme em seu todo, nos personagens, na forma. É importante esclarecer que cansaço difere de preguiça, e o filme não trata nem um pouco de falta de vontade, pelo contrário, trata da vontade de algo – algo que não se define. Helena comprou recentemente um pequeno mercado no bairro em que mora, e Otávio, seu marido, perdeu o emprego – volta, depois de muitos anos, a procurar trabalho. Pouco sabe-

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mos acerca do próprio casal que não esteja relacionado ao trabalho. Helena busca obter sucesso com o mercadinho, e paralelamente Otávio busca um novo emprego, as entrevistas frustradas, a falta de jeito para enfrentar o “novo” mercado, apesar de ele ter qualificação. Enfrentar o novo é frustrante para os personagens, enfrentar o novo é difícil e cansa, pois embora sejamos parte do novo, somos pessoas constantemente deslocadas dentro do nosso próprio ambiente. É esse estranhamento que o filme traz em forma de suspense, com elementos fantásticos que acendem a chama da curiosidade. Talvez não seja nada. Talvez seja o “nada” em uma forma fantasmagórica, preenchendo o silêncio. Cada personagem que aparece, a empregada que mora na casa da patroa, por exemplo, é apresentado através daquilo que faz, de seu emprego e sua classe e, nesse sentido, o vazio e o nada do filme são resultados de classes sufocadas pelo capitalismo. Os personagens aparecem, os objetos aparecem, os ambientes estranhamente vazios aparecem. O filme carrega em si conjuntos de cenas e planos que poderiam ser separados em fotografias e carregar consigo um sentido – juntas elas criam um conceito muito mais amplo que se constrói a cada imagem, a cada olhar. O cinema contemporâneo remete à fotografia de arte contemporânea, podendo encontrar tendências parecidas. Afinal, as artes respondem como podem ao pós-modernismo. No caso de Trabalhar cansa, vários elementos da imagem conceitual se cruzam e se complementam. Os planos individualmente podem ser comparados às fotografias de quadros-vivos de Jeff Wall:

O exemplo citado acima por COTTON (2010) refere-se a um fotógrafo e fotografias individuais, no entanto, nos ajuda a pensar a imagem e sua concepção – e o caminho para compreender seu sentido. Os espaços vazios, os momentos cotidia-

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(...) Outros apresentam uma descrição muito mais oblíqua e inconclusa a respeito de algo que sabemos ser significativo por causa da maneira como está construído na fotografia, mas seu significado depende de investirmos na imagem nossas próprias narrativas e conteúdos psicológicos. Essa área da fotografia é geralmente descrita como fotografia de quadros (tableau photography) ou de quadros-vivos, pois a narrativa se concentra numa única imagem: a fotografia conta toda uma história. (…) Um dos expoentes da fotografia quadro-vivo encenado é o artista Canadense Jeff Wall. (…) Wall descreve sua obra dividindo-a em duas grandes áreas. Uma tem um estilo ornamentado em que a natureza artificial da fotografia se torna óbvia por meio do caráter fantástico das histórias que conta. (…) A outra área é a montagem cênica de um evento que parece muito mais corriqueiro, como uma cena a que casualmente lançamos um rápido olhar. (…) Wall cria uma tensão entre a aparência e a substância de um momento simples, capturado pela fotografia, e seu processo propriamente dito, que consiste em preconceber e construir a cena. (COTTON, 2010, p.49).

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nos, os elementos fantásticos se destacando estão presentes em todo o filme. O tédio do cotidiano ao filmar as prateleiras empoeiradas do mercadinho, o perigo iminente vindo dos sons da dispensa, as correntes antigas encontradas nela. Na arte contemporânea não é raro ver fotos de pessoas caídas pelos ambientes, sonolentas, moribundas. Em Trabalhar cansa o tédio mórbido se apodera dos personagens, que estão sempre cabisbaixos, entediados até mesmo quando se deparam com um “monstro” preso na parede podre. A imagem carrega a força de um vazio, de incompreensão, não encontramos as respostas através dela. Os planos do filme seguem silenciosos, uma carcaça de um animal monstruoso é um problema como qualquer outro. O caos é parte do cotidiano, os personagens não se importam se aquilo é um lobisomem, contanto que se resolva a infiltração da parede e o mercadinho funcione normalmente. A indiferença, a falta de rumo ou propósito acaba por gerar afastamento. Nós não sabemos nada sobre os personagens, e tampouco o filme tem alguma moral. São fragmentos de uma vida comum, com elementos fantásticos ou não. Nenhuma resposta no que vemos, apenas vemos e podemos compartilhar o estranhamento e o tédio dos personagens, que nos alcança a cada plano. É muito coerente que o cinema contemporâneo responda de forma tão direta ao vazio do próprio mundo diante do capitalismo. Se somos algo através do que compramos, então o que somos? O que queremos? Para BAUMAN, o capitalismo se estabilizou e passou de pesado para leve, trazendo em sua nova condição uma infinidade de possibilidades, a liberdade de escolha e, como contraponto, a inquietação diante da incerteza: Como dizem Zbysko Melosik e Tomasz Szkudlarek em seu interessante estudo sobre problemas de identidade, viver em meio a chances aparentemente infinitas (ou pelo menos em meio a maior número de chances do que seria razoável experimentar) tem o gosto doce da ‘liberdade de tornar-se qualquer um’. Porém essa doçura tem uma sina amarga porque, enquanto o “tornar-se” sugere que nada está acabado e temos tudo pela frente, a condição de “ser alguém”, que o tornar-se deve assegurar, anuncia o apito final do árbitro, indicando o fim do jogo: “Você não está mais livre quando chega ao final; você não é você, mesmo que tenha se tornado alguém”. Estar inacabado, incompleto e subdeterminado é um estado cheio de riscos e ansiedade, mas seu contrário também não traz um prazer pleno, pois fecha antecipadamente o que a liberdade precisa manter aberto. (BAUMAN, 2001, p.74).

Em Trabalhar cansa os personagens estão agoniados em seu meio, não sabemos o que eles buscam e, provavelmente, eles também não sabem. A agonia constante vem do fato de que os personagens ainda não se tornaram nada, estão em processo, um processo que não parece ter fim. Em um mundo onde tudo depende de pontos de vista diversos, é muito difícil tornar-se algo definitivamente. Acabamos não sendo

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nada, e vivemos o momento presente dia após dia para não pensar no futuro. Os personagens acordam todos os dias e trabalham, buscam empregos novos, lucros, mas não têm em absoluto um objetivo para a vida, que não seja meio para outro fim ainda não alcançado. A empregada busca novas entrevistas de emprego; está atrás de um trabalho com carteira assinada. Mas não fazemos ideia de seus sonhos, talvez realmente não haja nenhum, apenas o vazio. É importante também salientar que mesmo entediados, inquietos e incertos, os personagens prosseguem, pois é certo que o trabalho é um meio para algo, mesmo que não se defina o que. Enquanto forma fílmica, esse esvaziamento dentro da narrativa nos atinge também em inquietação. O espectador não sabe ao certo porque se sente mal, mas sente. E também não consegue se sentir próximo da imagem, há um abismo entre observador e imagem, porém continuamos a olhar através dela.

O espectador tem uma poltrona reservada no vazio. Se continuamos com a atenção fixa na tela pelos 100 minutos de filme é porque compartimos algo. Também estamos cansados. DOCUMENTÁRIO EM QUESTÃO Buscando exemplos de documentários brasileiros do período em questão que mobilizam e constroem códigos realistas, mas criam um universo de força pró-

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O que vemos em toda essa parcela do cinema contemporâneo que estamos agora a analisar, diferentemente, é uma estética derivada de um olhar não mais distante do mundo, seja para buscar dele um acordo ou uma dissonância, e, sim, imerso no mundo, ou num “inter-mundo”, como Delorme propõe no último texto de um dossiê dos Cahiers du Cinéma que, em fevereiro de 2006, busca sistematizar sob a rubrica um tanto vaga de “cinema sutil” as transformações que ocorreram nas últimas décadas. Delorme afirma que o processo de “sutilização” que leva o cinema a um “estado imperceptível” se pauta pela recorrência de personagens que, submetidos às “leis da afecção”, perdem-se entre duas hipóteses, dois mundos, ocupando o intervalo entre eles, ou melhor, flutuando em uma espécie de “intermundo”. “Ao redor deles, o escoamento de imagens entre ficção e documentário, entre miniatura e gigantismo, maquete e monumento (…) Se o sutil é um intermundo que se nutre de paradoxos, o afeto reintegra nele feridas cortantes: antes/depois, dentro/fora, essencial/acidental. Um cinema que faz o espectador imergir nas imagens: o olhar, antes em atitude de afrontamento, agora está envelopado, numa situação que lhe é impossível apreender o contorno da experiência contida no filme. Temos acesso à intensidade da experiência, mas não seu significado. Assim como os personagens, somos ultrapassados pelos eventos; o olhar é carregado por um manancial e se perde dentro dele. O espectador não precisa ir contra ou a favor do que vê. Basta-lhe habitar um espaço criado para a convivência entre corpos e imagens. (OLIVEIRA, 2010, p.100).

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pria, decidimos nos focar sobre dois documentários: Santiago (2007, João Moreira Salles) e Serras da desordem (2006, Andrea Tonacci). O que mais nos chama a atenção nos documentários contemporâneos é o que poderíamos chamar de “dúvida” a respeito da imagem documental. São filmes que discutem as noções de legítimo, autêntico e natural, e acabam por colocar em questão seus próprios métodos, processos e premissas. Os documentários brasileiros contemporâneos, em sua maioria, não almejam discutir grandes situações sociais, mas buscam abordagens particulares, uma valorização da subjetividade do indivíduo comum. Certamente não é possível estabelecer um único critério que atenda a uma diversidade de procedimentos significativos tão ampla, quando falamos dos filmes brasileiros contemporâneos. Mas podemos notar nos documentários contemporâneos certa tendência à particularização do enfoque, à investigação mais interessada em subjetividades e expressões individuais do que em situações sociais. A questão do “dispositivo” é muito pertinente no debate sobre o documentário contemporâneo, pois nos leva a pensar os artifícios utilizados pelo realizador nas situações filmadas, na mise-en-scène, o que acaba por negar aquela ideia do documentário como apreensão total da realidade, de uma essência fixa. Ora, a realidade pode até ser, de certa forma, anteriormente conhecida, mas sua representação não passa somente pela mera captação de imagens. A capacidade de instalar dúvidas no espectador acerca daquilo que ele assiste é uma experiência de sensibilidade sobre a “realidade” documental, uma questão central nos documentários aqui analisados, pois levamos em consideração que o interlocutor, bem como o realizador, já está bem distante de uma atitude passiva diante do real. Peguemos como exemplo o filme Serras da desordem (2006), do diretor Andrea Tonacci. É um filme que recupera a trajetória de Carapiru, índio sobrevivente de um massacre, que perambulou pelo Brasil durante dez anos até ser encontrado em 1988, muito distante de seu ponto de origem. O filme é encenado pelos próprios protagonistas da história real – Carapiru faz seu próprio papel –, o que provoca uma permanente ambiguidade entre documentação do presente e reconstituição do passado. Nesse filme é importante o modo como a memória é agregada ao espaço, como as pessoas captadas pelo filme contribuem para reencenar a história do índio. A trajetória errante do índio é recuperada através do olhar do diretor. O tempo de pesquisa (cerca de 7 anos) e o tempo fílmico (o filme tem 2h15 de duração) se tornam aliados. O longo processo é importante para que o próprio índio se habituasse à câmera e a toda a experiência fílmica. Coloca-se muitas vezes em questão se o filme Serras da desordem seria documentário ou ficção, por ser uma reencenação e não uma captação do real. Acima de tudo, o filme restitui memórias vividas, reelaborando uma realidade. A sedimentação do longo tempo do processo na representação dos fatos dá sentido ao documentário. Podemos notar também certa perda de sentido na passa-

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gem da mata à cidade pequena e depois à cidade grande. Há um deslocamento do índio frente à sobrevivência do passado no presente, mesmo na tentativa de se habituar, o que levanta um questionamento sobre a existência de uma verdade derradeira. Não há respostas, a fusão entre espaço, tempo e experiência guarda uma suspensão para o espectador. Vejamos o exemplo de outro documentário brasileiro contemporâneo, o filme Santiago (2007), de João Moreira Salles, que carrega um subtítulo curioso: uma reflexão sobre o material bruto. O filme foi composto em duas etapas, pois começou a ser feito em 1992, quando o projeto foi abandonado pelo cineasta. As imagens permaneceram intocadas por mais de 13 anos, e em 2005 o diretor voltou a elas. Santiago foi um mordomo que trabalhou durante 30 anos para a família do diretor João Moreira Salles, irmão do cineasta Walter Salles, filhos do banqueiro e embaixador Walter Moreira Salles. O documentário carrega a narração do diretor em uma dimensão extremamente confessional. O filme se volta para temas próximos à vida do diretor, além de filmar o outro. Utilizando o mordomo Santiago como personagem central, o filme traz reflexões sobre a memória, a vida e a morte. O próprio diretor em uma entrevista afirma: “É difícil saber até onde íamos em busca do quadro perfeito, da fala perfeita”, referindo-se às inúmeras repetições de takes que eram feitas das entrevistas com Santiago, das filmagens da casa, de planos arquitetados para o documentário. Uma grande construção fílmica, assim como em qualquer filme de ficção.

GLOBO FILMES: “O CINEMA QUE FALA NOSSA LÍNGUA” A Globo Filmes nasceu em 1998 como um braço cinematográfico das Organizações Globo, a qual já detinha a hegemonia de audiência e criação de conteúdo para a televisão através da Rede Globo, maior rede de televisão brasileira. Aproveitando-se de um momento frágil do cinema nacional, que vinha de uma estagnação

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Colocamos então uma reflexão ao leitor: um documentário deve oferecer uma verdade absoluta e objetiva? Na realidade, o mero registro da evidência não faz um documentário que, dessa forma, poderia ser facilmente confundido com o jornalismo e a televisão. O que a câmera capta do “real” é apenas matéria-prima para o posterior trabalho do cineasta gerar significações no processo do filme. Tanto no documentário como na ficção, quando existem tendências para uma representação focada nas estéticas do real, isso passa pela construção de uma realidade empírica. O que se apresenta ao espectador, o resultado final de um documentário, é uma representação do “mundo real”. Os limites entre ficção e documentário se encontram cada vez mais rompidos no documentário contemporâneo, a imagem é tão manipulada no documentário quanto na ficção, e tudo deve ser visto pelo espectador com certa desconfiança.

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no começo dos anos 1990 e começava a ganhar expressão a partir da chamada “Retomada”, a Globo Filmes é criada enquanto coprodutora, para atuar de forma incisiva no cinema nacional. O primeiro filme a ser coproduzido é Simão – O Fantasma Trapalhão, no mesmo ano de 1998, dirigido por Paulo Aragão, filho de Renato Aragão, o famoso Didi d’Os Trapalhões. O filme apostava na fama d’Os Trapalhões, grupo que teve um programa televisivo de enorme audiência em várias emissoras de televisão (TV Excelsior, Rede Record, e TV Tupi) até se consagrar na própria Rede Globo a partir de 1977. E, principalmente: o grupo já havia realizado quarenta filmes desde 1965, todos registrando grande bilheteria. A coprodução foi feita com a Renato Aragão Produções Artísticas, produtora independente de Renato Aragão, que já havia produzido vários filmes do grupo. A escolha por tentar repetir o sucesso d’Os Trapalhões em um novo filme, que pouco agregava aos demais já feitos pelo grupo, era de certo modo um excesso de cautela por parte da Globo Filmes, uma vez que a aposta quase não corria riscos: o ator “prata da casa” já havia provado sua capacidade mercadológica. Os Trapalhões são de fato os campeões de bilheteria do cinema nacional. Estima-se que mais de cento e vinte milhões de pessoas viram seus filmes ao longo de mais de três décadas. Dezoito filmes do grupo estão na lista das 50 maiores bilheterias do cinema nacional. O Trapalhão nas Minas do Rei Salomão, de 1977, dirigido por J. B. Tanko, reuniu um público de 5.786.226 espectadores2. Apesar dos números incríveis, a qualidade técnica e artística dos filmes estrelados pelos Trapalhões é contestável. De fato, o grupo limitava-se a fazer dentro do cinema um pouco do que faziam na televisão, como se o filme fosse um esquete televisivo de duas horas com uma única história. Sendo assim, seus roteiros muitas vezes se baseavam em paródias de histórias clássicas, de conhecimento geral, como os filmes Robin Hood, o Trapalhão da Floresta (1973), O Trapalhão na Ilha do Tesouro (1974), Simbad, o Marujo Trapalhão (1975), O Trapalhão na Arca de Noé (1983), Os Trapalhões e o Mágico de Oróz (1984), e tantos outros exemplos. Outra aposta do grupo foi trazer para os filmes alguma celebridade que chamasse a atenção e atraísse público imediato. Nesse sentido, foram feitos os filmes Os Trapalhões e o Rei do Futebol (1986) e A Princesa Xuxa e os Trapalhões (1989), aproveitando-se da fama de Pelé e da apresentadora Xuxa. No cinema brasileiro, portanto, já existia uma relação com a televisão desde os anos 1970, nos filmes dos Trapalhões. Eles eram o produto midiático mais eficaz mercadologicamente, e arrebataram boas bilheterias por serem comédias do gosto do 2 Conforme a lista dos “Filmes brasileiros com mais de 500.000 espectadores - 1970 a 2012”, divulgada pela ANCINE. Disponível em: . Acesso em 04/12/2013.

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público, acostumado à estética televisiva. A Globo Filmes, quando nasce em 1998, já estava ciente desse fato – até porque a Rede Globo já estava indiretamente envolvida nestas produções ao emprestar profissionais e elenco para muitos filmes –, e essa “aposta segura” como marco inaugural é muito simbólica, pois resume seus objetivos principais: realizar coproduções de fácil aceitação popular e que visem grandes bilheterias, para isso se utilizando das já consagradas fórmulas televisivas e das celebridades globais3. A segunda coprodução realizada pela Globo Filmes é prova desses objetivos. Zoando na TV (1999) é dirigido pelo também “prata da casa” José Alvarenga Jr e conta com uma seleção de atores da Globo: Márcio Garcia, Danielle Winits, Miguel Falabella, Paloma Duarte, Bussunda, e, como protagonista, Angélica. Na comédia, Angélica é sugada para dentro da TV, uma metalinguagem utilizada como chamariz pelos tons de ficção científica, mas que reiteram novamente as fórmulas televisivas.

Após Zoando na TV a coprodutora decide apostar em filmes um pouco mais ousados, que tinham um objetivo artístico um pouco maior, e em diretores de carreira consagrada. A princípio, os filmes foram Orfeu (1999), dirigido por Cacá Diegues e baseado na peça de Vinicius de Moraes chamada Orfeu da Conceição – que fora filmada em 1959 pelo francês Marcel Camus, com o título de Orfeu Negro, coprodução ítalo-francesa, ganhadora da Palma de Ouro de Cannes – e Bossa Nova (2000), dirigido por Bruno Barreto, que teve certo destaque no circuito de festivais, encerrando o Festival de Berlim de 2000. No entanto, entre esses dois filmes, a Globo Filmes novamente produz um filme dos Trapalhões, O Trapalhão e a Luz Azul (1999), utilizando seu trunfo mercadológico mais uma vez. Mesmo após o ciclo Trapalhões, a Globo Filmes continua a coproduzir os filmes de Renato Aragão, o Didi. Exemplos disso: Didi, o Cupido TraEm referência aos atores que têm contrato com a Rede Globo, ilustrando suas telenovelas.

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O filme facilmente poderia ser um especial de TV, já que, como longa-metragem, apenas coloca-se como filme de entretenimento fácil. Novamente a coprodução é realizada com uma produtora independente de um funcionário da Globo, desta vez Angélica, com a Angélica Produções Artísticas. O filme inclusive é veiculado na Rede Globo de Televisão com grande destaque, e a partir de então, cada vez mais o espaço do cinema nacional na grade da emissora é preenchido pelos próprios filmes coproduzidos pela Globo Filmes, divulgados como o cinema nacional de qualidade, com o selo global. As comédias como Zoando na TV viraram uma constante na filmografia da Globo Filmes, sempre com atores da própria Rede Globo como protagonistas, e buscando um público já conhecido da televisão. Alguns exemplos de maior destaque são: Sexo, Amor e Traição (2004), A Dona da História (2004), O Casamento de Romeu e Julieta (2005), Se Eu Fosse Você (2006), Se Eu Fosse Você 2 (2009), Divã (2009), A Mulher Invisível (2009), De Pernas pro Ar (2010), Cilada.com (2011), O Homem do Futuro (2011), E aí.. comeu? (2012), e De Pernas pro Ar 2 (2012), apenas para citar os mais famosos.

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palhão (2003), Didi, o Caçador de Tesouros (2006), O Cavaleiro Didi e a Princesa Lili (2006) e O Guerreiro Didi e a Ninja Lili (2008). Todos com um público muito bom, considerando-se a média do cinema nacional, mas sempre apostando na figura de Renato Aragão, na mesma fórmula desde os tempos de Trapalhões. Outra aposta da Globo Filmes foram os longas-metragens estrelados pela Xuxa. A apresentadora de TV mobilizou um público muito grande para seus filmes infantis e trouxe uma perspectiva de valorização do filme infantil como possibilidade mercadológica. Xuxa e os Duendes (2001) teve público de 2.657.091 pessoas, superando as expectativas. Sua divulgação foi amplamente difundida na própria emissora global, e nos demais veículos de comunicação das Organizações Globo. Xuxa ficou em evidência durante todo o período do filme em cartaz, e a continuidade da série foi incentivada pela Globo Filmes, culminando em Xuxa e os Duendes 2 (2002), estabelecendo outro trunfo mercadológico com os demais filmes: Xuxa Abracadabra (2003), Xuxa e o Tesouro da Cidade Perdida (2004), Xuxa Gêmeas (2006), Xuxa em Sonho de Menina (2007), e Xuxa em O Mistério de Feiurinha (2009). Deve-se ainda incluir na lista um subproduto dessa série, a animação infantil Xuxinha e Guto contra os Monstros do Espaço (2005). Ou seja, entre 2001 e 2009 foram realizados oito filmes, praticamente um por ano. Sem fazer filmes desde 2009, a série de filmes da Xuxa parece ter sido saturada. A primeira coprodução da Globo Filmes feita totalmente com recursos próprios foi O Auto da Compadecida (2000), comédia baseada no livro homônimo de Ariano Suassuna, que havia sido produzida no ano anterior como microssérie para a televisão. O longa-metragem, que foi premiado no Grande Prêmio de Cinema Brasileiro, teve mais de 2 milhões de espectadores nas salas de cinema. O filme foi questionado quanto a sua identidade: obra cinematográfica ou puramente televisiva? Apesar de ter sido bem recebido pela crítica, O Auto da Compadecida realmente traz um elenco global, em uma estética parecida com a das minisséries realizadas pela Globo, apesar de ter sido filmado em película 35mm. A conversão de produtos televisivos para longas-metragens torna-se recorrente na filmografia da Globo Filmes, que se aproveita da audiência e popularidade da emissora de TV para alavancar suas coproduções. Caramuru, a Invenção do Brasil (2001) é outro exemplo disso: foi adaptado para longa-metragem a partir de uma minissérie da emissora, originalmente gravada em digital HDTV. Mas os casos mais explícitos dessa tendência são os filmes que vêm de séries e programas consagrados da Rede Globo. É o caso de Os Normais, o Filme (2003) e Os Normais 2 – A Noite mais Maluca de Todas (2009), vindos da série de comédia de mesmo nome; os filmes do Casseta & Planeta, programa humorístico global: Casseta & Planeta - A Taça do Mundo é Nossa (2003) e Casseta & Planeta: Seus Problemas Acabaram! (2006); o filme da série televisiva A Grande Família (2007), que havia sido gravada primeiramente nos anos 1970, e que

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ganhou um remake nos anos 2000; e o filme Cidade dos Homens (2007), que foi baseado na série televisiva homônima da Rede Globo, exibida durante quatro temporadas entre 2002 e 2005. O exemplo contrário a essa regra é o filme Ó Paí, Ó (2007), que nasceu como longa-metragem e depois foi transformado em série de TV, em 2008. Atualmente, outra aposta da Globo Filmes é a realização de longas-metragens baseados em algum personagem memorável das novelas da Rede Globo. Giovanni Improtta (2013) aproveita-se do personagem de mesmo nome criado para a novela Senhora do Destino, de 2004. José Wilker, que fez o personagem na TV, continua a representá-lo no cinema, mas agora dirige a si mesmo, uma vez que assina a direção do filme. O filme Crô (2013) utiliza-se da mesma estratégia, ao transformar um personagem de sucesso da novela Fina Estampa, de 2011-2012, em um longa-metragem que alcançou grande sucesso de público. Por um lado, mantém-se o sucesso da narrativa e aproveitamse outros desenlaces não utilizados na novela original. Por outro lado, esta aposta revela mais uma vez a apoderação do meio cinematográfico pela estética televisiva.

No ano seguinte a Globo Filmes coproduz Carandiru (2003), drama dirigido por Hector Babenco e que segue a linha deixada por Cidade de Deus, trazendo

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Mas não é apenas com essa estratégia de mercado que a Globo Filmes trabalha. De fato, alguns dos melhores filmes brasileiros recentes foram feitos em coprodução com a empresa. O grande destaque surgiu ainda em 2002 com Cidade de Deus, filme dirigido por Fernando Meirelles, e que teve seu apogeu ao receber quatro indicações para o Oscar, incluindo melhor direção. O filme, que para muitos encerra o ciclo da “retomada”, é um drama social que se passa totalmente dentro de favelas e comunidades do Rio de Janeiro. A estética publicitária da violência e da miséria torna-se envolvente e de fácil aceitação, tendo em sua estrutura elipses temporais, narração over e montagem acelerada. O filme tornou-se um enorme sucesso de crítica e de público, e é considerado por muitos como o melhor filme brasileiro deste século. No entanto, a produção não apela para o modo Globo Filmes, ao contrário, a maioria de seus atores são pessoas das próprias comunidades, que após um processo intenso de laboratório de interpretação deram vida aos personagens, e conseguiram até mesmo realizar outras produções depois do filme. Foi a consagração de Fátima Toledo, profissional responsável por esse processo de interpretação, que demonstrou que para se conseguir uma boa atuação não precisa ser famoso – e se refletirmos nesse sentido, mostrou também que para um filme ter sucesso de crítica e público não precisa de acessórios publicitários, como a inserção de protagonistas globais. Cidade de Deus traz a aproximação da estética da publicidade, não necessariamente da televisão, e cria um universo de referências pop, apesar do contexto violento da história da favela carioca de mesmo nome. É um ponto de inflexão na filmografia da própria Globo Filmes, que a partir de então começa a incentivar mais filmes de caráter social, motivados justamente por Cidade de Deus, que foi seu primeiro sucesso internacional.

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uma atmosfera de violência espetacularizada, ao recriar o massacre real que vitimou 111 presos durante uma rebelião no presídio, em 1992. Carandiru é outra obra que consegue agradar tanto crítica quanto público, chegando a impressionante marca de mais de 4 milhões de espectadores. A consagração desta linha de filmes, que alguns chamam de pertencentes à “cosmética da fome”, fez a Globo Filmes continuar coproduzindo filmes de realidade social aparente, vividos em comunidades de periferia, como Cidade dos Homens (2007), Última Parada 174 (2008), Salve Geral (2009), 5x Favela - Agora por Nós Mesmos (2010), e por fim Tropa de Elite 2 (2010), que alcançou a maior bilheteria do cinema nacional nas últimas décadas, com 11.204.815 de espectadores, consagrando-se como o ápice desse movimento de filmes que retratam a realidade social in loco, com inspirações em fatos reais. O documentário brasileiro tem grande influência nessas ficções de representação do real. Como caso mais explícito temos a história verídica do sequestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro, em 2000. O caso foi a princípio abordado por um documentário do diretor José Padilha, chamado Ônibus 174 (2002), premiado em diversos festivais, a se destacar o Emmy de melhor documentário. Em 2008 a Globo Filmes lança sua versão ficcional da história: Última Parada 174, dirigido por Bruno Barreto e fortemente inspirado no documentário anterior. Após Ônibus 174, José Padilha realiza independentemente o primeiro Tropa de Elite (2007), outro marco do cinema nacional. Na continuação, Tropa de Elite 2 (2010), a Globo Filmes associou-se ao final como coprodutora. São produzidos também diversos filmes inspirados em fatos históricos importantes, como a Segunda Guerra Mundial e a ditadura militar. Olga (2004), O Ano em que meus pais saíram de férias (2006), Zuzu Angel (2006), Tempos de Paz (2009), e 400 Contra 1 (2010), são exemplos nítidos dessa temática que se tornou recorrente. Estes filmes possuem também elenco global, mas buscam expressar-se para além do mero entretenimento, utilizando-se da História como inspiração para suas narrativas. As cinebiografias, ficções biográficas, também são ponto forte nas coproduções da Globo Filmes. A partir de Cazuza – O Tempo não Pára (2004), cinebiografia do cantor, a Globo Filmes começa a investir também em filmes de temática musical, que já têm um público-alvo estabelecido. Essa estratégia revela-se muito certeira quando Dois Filhos de Francisco (2005), cinebiografia da dupla sertaneja Zezé di Camargo e Luciano, alcança 5.319.677 de espectadores, tornando-se a maior bilheteria do ano (e até hoje a sétima maior bilheteria do cinema nacional). Apenas para efeito de comparação, Cidade de Deus em 2002 registrou 3.370.871 de espectadores. Dois Filhos de Francisco também é um exemplo do enorme aporte midiático que a Globo possui. À época do lançamento do filme, chamadas publicitárias eram recorrentes na programação da emissora, assim como a presença constante de Zezé di Camargo e Luciano em programas de entrevista ou de auditório.

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No mesmo ano, 2005, é coproduzido o documentário Vinicius, sobre o poeta e compositor da Bossa Nova; depois veio Cartola – música para os olhos (2007), documentário sobre o sambista carioca; e Simonal – Ninguém Sabe o Duro que dei (2009), outro documentário. Apesar de minorias, estes documentários também foram apreciados pelo público, especialmente no mercado de home video. Além das cinebiografias ligadas à música já citadas, tiveram grande destaque Chico Xavier (2010), e Lula – O Filho do Brasil (2010). O primeiro nasceu junto de Nosso Lar (2010), também coprodução da Globo Filmes, em resposta ao público acima do normal registrado pelo modesto filme Bezerra de Menezes – O Diário de um Espírito (2008). Já o segundo veio de modo oportuno, quando Lula era presidente do país, e apesar de não ter ido tão bem quanto o esperado nas bilheterias, teve mais de 800 mil espectadores. A Globo Filmes foi responsável pela coprodução de 130 filmes desde que foi criada, e esse número vem aumentando em ritmo acelerado. Segundo a própria empresa, eles já levaram mais de 150 milhões de pessoas às salas de cinema, e esses números são ainda mais incríveis se pensarmos que os dez filmes brasileiros de maior público no período pós-retomada são todos coproduções da Globo Filmes. Portanto, é incontestável sua presença marcante na cinematografia brasileira, principalmente no que tange ao grande público. Abaixo a lista dos 10 filmes de maior público pós-retomada: Tropa de Elite 2 (2010) – público total de 11.081.199 espectadores; Se Eu Fosse Você 2 (2009) – público total de 6.137.345 espectadores; Dois Filhos de Francisco (2005) – público total de 5.319.677 espectadores; Carandiru (2003) – público total de 4.693.853 espectadores; Nosso Lar (2010) – público total de 4.060.000 espectadores; Se Eu Fosse Você (2006) – público total de 3.644.956 espectadores; De Pernas pro Ar (2011) – público total de 3.563.723 espectadores; Chico Xavier (2010) – público total de 3.414.900 espectadores; Cidade de Deus (2002) – público total de 3.370.871 espectadores; Lisbela e o Prisioneiro (2003) – público total de 3.174.643 espectadores;

A atuação da Globo Filmes, no entanto, é questionada por questões estéticas, como as analisadas anteriormente, e também por seu modo de operação dentro do mercado cinematográfico brasileiro. A questão da coprodução é fundamental para se entender o esquema da Globo Filmes, pois dentro das atuais políticas legislativas para o cinema no Brasil ela não pode ser uma produtora independente – pois tem vínculo direto com uma empresa concessionária de serviço de radiodifusão e cabodifusão, no caso, a Rede Globo –, e, portanto, não pode participar dos editais públicos e das leis de incentivo à cultura. A rigor, a Globo Filmes só poderia produzir filmes com recursos próprios, mas desde seu início a grande maioria dos filmes que levam seu selo são coproduções com produtoras independentes. Isso está explícito inclusive em seu site:

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“A Globo Filmes é uma coprodutora que trabalha sempre em parceria com uma produtora independente. Fica a nosso cargo analisar os roteiros, fornecer supervisão artística e auxiliar na divulgação do filme. A produção física, inclusive contratação de equipe técnica e elenco, é feita pela produtora independente.”4

O contraditório é que a maioria dessas coproduções tem em seu financiamento recursos públicos via Lei de Incentivo, captados através da produtora independente associada, o que não é ilegal dentro da atual política, mas pode parecer desleal com os demais produtores independentes que não têm a infraestrutura nem o aporte midiático da Globo Filmes. Cria-se, portanto, uma concorrência interna para o restante do cinema nacional, uma vez que esses filmes também ocupam a cota de tela para filmes brasileiros nas salas de cinema comerciais. Como são filmes com publicidade garantida por meio da divulgação em rádio, TV e internet pelas próprias Organizações Globo, acabam inibindo os exibidores a apostar em produções nacionais que não tenham o selo global, e que, consequentemente, não têm essa garantia de retorno financeiro. Enfim, é uma realidade que seu monopólio acaba por engessar o cinema nacional em torno de sua própria produção. REFERÊNCIAS AUTRAN, Arthur. O cinema brasileiro contemporâneo diante do público e do mercado exibidor. Revista Significação, São Paulo, n. 32, 2009. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. COTTON, Charlotte. A fotografia como Arte Contemporânea. 1ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2010. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad.: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Loura. 9ª Edição. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2004. MARTINS, Andréa. A invenção do Lugar pelo cinema brasileiro contemporâneo. Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, São Paulo, ano 1, nº 1, 2012 MENEZES, Paulo. A utopia da utopia. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 23, nº 66, 2008. MOURÃO, Maria Dora e LABAK, Amir. O cinema do real. São Paulo: Cosac Naify, 2005. OLIVEIRA Jr., Luiz C. Gonçalves. O cinema de fluxo e a mise en scène. São Paulo: L.C.G. Oliveira Jr., 2010. Filmes Brasileiros com Mais de 500.000 espectadores – 1970 a 2012. Disponível em: . Acesso em 04.12.2013. Página oficial da Globo Filmes. Disponível em: . Acesso em 04.12.2013. Texto extraído do site da Globo Filmes. Disponível em: http://globofilmes.globo.com/ faleconosco.htm. Acesso em 04/12/2013.

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10 O PALHAÇO: UMA ANÁLISE DO ROTEIRO FÍLMICO Fábio S. Thibes1

ROTEIRO, O ATO DE CONTAR ESTÓRIAS

Esse formato de roteiro é extremamente difícil de trabalhar, pois exige precisão da escrita e detalhamento das cenas – sem informações que não agreguem valor ao roteiro, como lirismos e afins –, a obrigatoriedade do uso de elipses temporais e o domínio do ritmo da estória dentro da montagem do filme, entre outras particularidades inerentes ao cinema. Como conta Robert McKee em seu livro Story, o escritor de roteiros de longa-metragem muitas vezes leva o mesmo tempo de escritura de um romancista, mas seu trabalho é o oposto do seu colega, uma vez que “o escritor de Estudo orientado pela Profa. Dra. Salete Paulina Machado Sirino.

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O roteiro é dentro do processo cinematográfico a primeira criação consolidada do que virá a ser o filme como visto nas salas de cinema. Sua função dentro deste processo é conter a estória que será contada dentro de um formato padrão, cuja escrita técnica facilite a leitura do restante da equipe de pré-produção do filme. A partir do tratamento final do roteiro, os demais departamentos irão trabalhar: o diretor dará sua visão para a estória através das suas decisões técnicas e estéticas, primeiramente realizando a decupagem do roteiro, que é a decisão dos planos a serem gravados para as cenas. O departamento de arte irá providenciar a cenografia, os objetos de cena e os figurinos, pedidos pelo roteiro e confirmados pelo diretor. A direção de fotografia irá se basear nas indicações do roteiro e da decupagem para definir os equipamentos e criar os mapas de luz das locações. E assim por diante, com todos os profissionais envolvidos. Afinal o roteiro é, como o seu próprio nome suscita, um roteiro, um guia, um caminho a ser seguido.

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cinema corta mais e mais, implacável em seu desejo de expressar o máximo absoluto com o mínimo de palavras possíveis” (MCKEE, 2010, p. 19), enquanto normalmente os romancistas fazem o contrário. O cinema é essencialmente visual, ainda que o som e os diálogos pontuem a imagem continuamente. Sendo assim, o roteiro cinematográfico deve ser também visual, e fazer o seu leitor imaginar as situações pelas quais os personagens passam, criando o máximo de relação empática. A empatia e a emoção são possíveis através do ato de contar estórias, que é inerente ao ser humano desde que este desenvolveu a linguagem oral. E apesar de ter muitos suportes possíveis, por lidar diretamente com a imaginação, o cinema obteve máxima expressão e eficiência neste ato de contar estórias, comovendo milhões de pessoas em experiências catárticas coletivas que unem o efeito artístico com o entretenimento próprio de quem se emociona com uma boa estória – seja ela triste, feliz ou angustiante. Estórias podem ser expressas de todas as formas com as quais o ser humano se comunica. Teatro, prosa, filme, ópera, mímica, poesia e dança são todas formas magníficas do ritual da estória, cada um com seus próprios deleites. Em tempos diferentes da história, porém, uma delas é o destaque. No século dezesseis era o teatro; no século dezenove, o romance; no século vinte, o cinema, o grande concerto de todas as artes. (MCKEE, 2010, p. 38).

O trabalho do roteirista, então, se concentra em estabelecer os parâmetros desta estória: definir seus personagens e suas biografias, seu contexto social e político-econômico, suas motivações e os conflitos. As situações que serão desenvolvidas, a trama da estória pouco difere de outras tramas, literárias ou teatrais. Em verdade, o modo de contar essa estória de forma dinâmica e interessante e de modo que se equilibre durante as duas horas de filme, é o grande segredo do roteiro de cinema. Para tanto, alguns métodos foram criados experimentando o que funcionaria para o grande público. A que mais se sobressaiu pela sua eficácia foi o chamado Design Clássico, ou forma clássica linear narrativa. Nascida principalmente no berço de Hollywood, este modo de contar estórias se desenvolveu e dominou amplamente o mercado cinematográfico, de forma a quase virar sinônimo de “cinema”. O cinema hollywoodiano não impressiona apenas por grandes bilheterias e cifras, mas também por ter desenvolvido seu Design Clássico, incorporando novidades estéticas, o que o manteve dominante no mundo todo. MCKEE caracteriza esse tipo de cinema como um modelo de arquitrama – arqui no sentido de “eminente sobre os outros do mesmo tipo”. Ele caracteriza assim o Design Clássico, ou arquitrama: Design Clássico quer dizer uma estória construída ao redor de um protagonista ativo, que luta contra as forças do antagonismo, fundamentalmente externas, para perseguir o seu desejo, em tempo contínuo, dentro de uma

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realidade ficcional consistente e causalmente conectada, levando-o a um final fechado com mudanças absolutas e irreversíveis. (MCKEE, 2010, p. 55).

Entre as características da arquitrama estão: causalidade, final fechado, tempo linear, conflito externo, protagonista único e ativo, e uma realidade consistente – mesmo que totalmente fantasiada. Apesar de nem sempre todas estas características estarem presentes em filmes ditos clássico-narrativos, pelo menos algumas delas sempre estarão, pois são premissas desse tipo de estrutura narrativa. Estas características são resultados de estudos que visavam maximizar o potencial de uma estória tornando-a mais atraente para o público, e a raiz deste conceito está na Poética de Aristóteles. Recentemente MCKEE sintetizou estes estudos em um método próprio – assim como também o fez Syd Field, entre outros teóricos –, que acho mais conveniente utilizar por ser mais amplo e atual. Além da arquitrama, predominante no cinema contemporâneo por se tratar de um cinema de fácil absorção pelo público que visa o entretenimento, MCKEE também distingue a minitrama e a antitrama. A minitrama corresponderia aos filmes que rompem com algumas das premissas básicas do cinema clássico-narrativo, criando atmosferas pessoais, muitas vezes com múltiplos personagens, conflitos internos e finais em aberto que não solucionam todas as questões levantadas pelo filme. Por estes motivos são filmes normalmente mais artísticos e sensíveis, enquanto o determinismo da arquitrama faz seus filmes terem por excelência o gênero de ação. A antitrama, por sua vez, corresponderia aos outros métodos experimentais, que não apenas rompem premissas do cinema clássico, como as nega incisivamente. São filmes de realidades inconsistentes, de tempo não linear, experimentais por natureza.

ESTRUTURAS NARRATIVAS CINEMATOGRÁFICAS O roteiro cinematográfico dentro do esquema da arquitrama é normalmente dividido em três atos. Um ato de apresentação da trama e estabelecimento dos conflitos, depois o ato de desenvolvimento e resolução da trama, até o ato final com o clímax e o posterior desfecho. Esse arco narrativo, pelo qual a trama da estória passa, é pautado e tem sua divisão definida pelos pontos de virada – cenas essenciais que alteram o rumo da narrativa. Normalmente, temos pelo menos três pontos de virada: do primeiro para o segundo ato, do segundo para o terceiro ato, e do terceiro

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Dada essa diferenciação concentraremos na arquitrama, uma vez que corresponde à grande maioria dos filmes realizados até hoje, inclusive o filme a ser analisado em seguida: O palhaço, – apesar de podermos colocá-lo como um ponto entre a arquitrama e a minitrama. Mas, antes de adentrar no filme, é preciso analisar algumas das estruturas narrativas próprias do cinema.

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ato para o desfecho – em geral, quando ocorre o clímax, o ápice do arco narrativo). Os pontos de virada são importantes, pois concentram os conflitos e as mudanças da grande estrutura do filme em cenas únicas de maior impacto emocional. Localizamse, estrategicamente, entre os atos, de forma a desestabilizar a narrativa, para depois resolvê-la no clímax. Os atos são um agrupamento de outras estruturas narrativas – cenas e sequências –, as quais também necessitam de trabalho interno, no que tange a aquisição de valores para a estória. Para MCKEE (2010, p. 46), os valores da estória “são as qualidades universais da experiência humana que podem mudar do positivo para o negativo, ou do negativo para o positivo, a cada momento”, ou seja, são as emoções, sentimentos e outros signos que a estória suscita, seja pela sua abordagem, seja pelos arquétipos presentes. Portanto, seria ideal “criar uma estória na qual toda cena é um ponto de virada menor, moderado ou maior” (MCKEE, 2010, p. 223), onde cada ponto de virada de cada cena (evento da estória) reunisse impacto emocional (valor) para os grandes pontos de virada entre os atos da estrutura do filme. Estrutura é uma seleção de eventos da estória da vida das personagens que é composta em uma sequencia estratégica para estimular emoções específicas, e para expressar um ponto de vista específico. (MCKEE, 2010, p. 45)

Eventos da estória podem ser entendidos como sinônimos de cenas, no entanto, representam situações que criam mudanças na vida dos personagens e que interessam à trama, para além de apenas representar uma ação com continuidade espaço-temporal. São experimentados em termos de valores, como felicidade/tristeza, e são movidos através de conflitos. O conflito é essencial, pois move a narrativa a partir de cada evento, e para se criar um bom roteiro é preciso que haja conflitos em todas as estruturas do roteiro. “O ideal é que toda cena seja um EVENTO DA ESTÓRIA”, nos relata MCKEE (2010, p. 47), que complementa na mesma página: “Para um filme típico, o escritor escolherá entre quarenta e sessenta eventos da estória, ou, como eles são conhecidos, cenas”. Um conjunto de cenas – ou eventos da estória – interligadas, que culminam em um impacto maior do que qualquer uma das cenas anteriores, é chamado de Sequência. As sequências são importantes para determinar o ritmo da montagem do filme, e focalizar as temáticas e/ou conflitos de maior interesse, que se deseja realizar com um maior ou menor tempo de abordagem2. Já um conjunto de sequências interligadas que culminam em um impacto narrativo maior do que a de qualquer sequência anterior é chamado de Ato. Convencionou-se a utilização da estrutura em três atos que, como já dito, remete aos escritos de Aristóteles sobre o teatro grego na Poética. Mas nada impede um filme de ter qua2 O roteirista deve sempre ter em mente que o filme tem um tempo limite, diferente de qualquer outro tipo de escritura de estória.

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tro, cinco ou mais atos, uma vez que estes são dependentes das respectivas sequências e viradas narrativas. Já o contrário – menos de três atos – não é indicado, uma vez que para o longa-metragem MCKEE (2010, p. 211) reitera que “o design em três atos é o mínimo”. Estruturas com um ato ou dois seriam aproveitadas em formatos de menor duração, como o curta e o média-metragem. O PALHAÇO, FILME DE SELTON MELLO

De fato, eu mesmo nasci em uma cidade pequena e sou prova viva do chamariz que o circo trazia com sua mágica, seus malabarismos e seus palhaços. O filme se passa oficialmente nos anos 1970, modo de contextualizar essa forma de arte esquecida no mundo contemporâneo. Mas, mesmo que a atividade circense não seja tão comum hoje em dia, facilmente pode-se localizar o filme no tempo presente: afinal o interior do país parece seguir imutável no imaginário popular, assim como a presença marcante do palhaço, arquétipo insubstituível. Se o circo como existe hoje acabar um dia, o palhaço ainda resistirá.

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O filme se inicia com um tipo de “establishing shot” (plano de estabelecimento): em uma região rural do interior do Brasil cortadores de cana param sua labuta para ver o circo passar. Nessa paisagem, vê-se a estrada de chão batido, e não se estabelece nenhuma locação em específico, posicionando o filme em uma condição mambembe, quase “road movie” (filme de estrada). Esse estilo tem lógica narrativa, o próprio circo precisa ir de cidade em cidade e, como é de conhecimento geral, quanto menor a cidade, maior o interesse no espetáculo circense. Portanto, estamos no primeiro plano do filme e já podemos deduzir o espaço em que nossa estória se passa e o seu contexto social e, de imediato, podemos criar uma relação empática e nostálgica com o circo, como aquele que vem para trazer a alegria para o povo – e para o interior.

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Além de ser a expressão máxima do circo, o palhaço traz consigo muito de cada um de nós, de nossos defeitos e falhas, de nossa fragilidade social, do ridículo, do exagerado e do imoral – ou moral duvidosa. O palhaço é aquele que faz todos rirem – rirem dele, não com ele. Afinal, o palhaço nos faz rir pelas suas trapalhadas, pela sua malandragem, pela sua ignorância, pelo que reconhecemos de defeitos em nós mesmos; e mesmo assim seu poder carismático é irresistível. O humor físico do palhaço rouba a cena, literalmente. Por isso Selton Mello não poderia ter escolhido um personagem arquetípico melhor, já que ele mesmo admite no making-of do filme que a ideia original surgiu de uma crise existencial em que ele não sabia se queria continuar como ator. Criou, assim, uma possibilidade de que o personagem principal fosse um artista também em crise existencial, em crise vocacional. A escolha de um palhaço que não quer mais fazer rir porque é triste, foge do senso comum e torna-se genial, uma transposição perfeita do que ele próprio sentia serviu de motivação para o personagem do filme. Selton Mello escreveu o roteiro – em parceria de Marcelo Vindicatto –, e decidiu também assinar a direção. É o segundo longa-metragem de sua carreira. Para o personagem principal, no entanto, ele antes convidou os seus amigos Rodrigo Santoro e Wagner Moura. Mas, como nenhum deles pôde aceitar o papel, decidiu interpretar ele próprio, sem, no entanto, deixar a função de diretor, tornando O palhaço um filme realmente autoral. E isso se torna ainda mais evidente se pensarmos que o longa-metragem é uma coprodução da Globo Filmes, a maior coprodutora de cinema de entretenimento do país, – onde este tipo de autoria é raríssima. Voltando ao filme em si, logo na primeira cena temos a apresentação do personagem principal, o palhaço Pangaré – nome de batismo Benjamin –, em seu local de moradia e trabalho: o circo Esperança. Ele se arruma antes da apresentação e recebe as informações do mágico do circo a respeito do prefeito da cidade em que irão se apresentar. A relação entre o circo e as prefeituras torna-se evidente neste diálogo e é reiterada em uma sequência posterior.

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O espetáculo começa e o palhaço Pangaré se apresenta ao lado de seu pai, o também palhaço Puro Sangue. A relação hierárquica e familiar é deflagrada desde o princípio: o negócio é do pai e naturalmente será do filho, mas somente após sua morte. Entre as cenas existem planos dos bastidores do circo e do público, e aos poucos outros membros do circo são apresentados através de seus números – como a dançarina Lola, esposa de Valdemar (o palhaço Puro Sangue, pai de Benjamin). Ela é um dos elementos conflitantes na relação entre o pai e o filho –inicialmente pela sua idade, muito mais próxima da de Benjamin do que da de Valdemar. Após uma primeira exposição ao mundo mágico do circo, os conflitos aparecem pouco a pouco, decorrentes, principalmente, da falta de dinheiro e das dificuldades do dia-a-dia circense: um policial pede a inexistente licença de funcionamento, mas prontamente aceita ingressos como suborno – ou como diria o ditado: quem não chora, não mama –; Dona Zaira, integrante da grande família que é o circo, reclama com Benjamin: não tem mais sutiã para usar. E como em toda família unida, o problema de um é problema de todos, ou ao menos, é problema também do líder. Benjamin deveria ser esse protagonista ativo, um líder que irá assumir o controle do circo; mas desde o início percebe-se através de seus diálogos que, quando não está atuando como palhaço, ele é um homem solitário, triste e insatisfeito com a vida que leva, apesar de tratar a todos com gentileza.

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Imediatamente após essa conversa com Dona Zaira, Benjamin entra em um estado hipnótico, acentuado por efeitos visuais e sonoros: admira na estrada de chão batido um ventilador. O ventilador, presente nos letreiros com o título do filme ainda nos créditos iniciais, é o verdadeiro leitmotiv da narrativa. Muito mais que apenas um ventilador, ele representa a cidade, o progresso, os pequenos luxos; representa uma vida que Benjamin nunca havia vivido. Essa interpretação do significado do ventilador me veio após ter assistido o filme algumas vezes e, não por acaso, essa primeira epifania é interrompida justamente por outro motivo que levará Benjamim a abandonar o circo: a jovem Ana, que ele conhece e conversa por poucos minutos, tímido, mas que provoca nele uma vontade de conhecer o que para ele ainda era desconhecido: uma vida normal, na cidade, com emprego, filhos e casamento. É fato que essa vontade ainda é muito inconsciente, e ainda que essa cena seja quase um ponto de virada, não é o suficiente para levá-lo a deixar sua vida no circo – e alterar imediatamente o curso da estória. Ela apenas reitera sua condição existencial e aponta para um novo caminho, sem provocar mudanças imediatas. Essa primeira sequência de apresentação da estória e de seus principais personagens se encerra neste diálogo, com Ana indo para sua cidade natal e Benjamin permanecendo no circo.

O circo está numa pequena cidade do interior, e o prefeito e sua família convidam a família circense – todos aqueles que vivem do circo – para um almoço em sua casa, em troca de que seu filho participasse do espetáculo. As cenas que vão do prefeito indo visitar Benjamin até o show em si, quando o filho do prefeito esquece suas falas e acaba aplaudido apenas por bajulação, são uma grande sequência que tem a função de mostrar as trocas de favores entre os políticos e os artistas, problemática já pontuada nos primeiros minutos do filme. Além disso, permite desenvolver mais os personagens secundários do circo, que ganham identidade e expressão, e já revelam suas afinidades ou desavenças: nesse sentido, Lola é quem mais parece deslocada, bate boca com os demais colegas e só tem liberdade pra fazer o que quiser porque é esposa do dono, Valdemar, pai de Benjamin. A atitude egoísta de Lola será colocada em dúvida durante o filme até o momento que Guilhermina, uma menina também

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do circo, a vê roubando dinheiro, confirmando sua má índole e seu papel de elemento estranho na relação de Benjamin e o pai.

Como o tempo narrativo é linear e praticamente não existem subtramas ou tramas paralelas, o filme é quase rapsódico em sua forma de contar a estória, as sequências são bastante definidas, tanto em sua temática quanto em seus conflitos e ações. Após as desventuras com o prefeito, o circo segue estrada afora e em uma parada há um importante diálogo: Valdemar faz amizade com um homem que após contar sua história de vida o aconselha: “cada um deve fazer o que sabe fazer”. Fatalmente isso ecoa durante o resto do filme, tornando-se um contraponto do conflito interno de Benjamin, mesmo sem ter ainda se deflagrado de fato. A viagem segue e um novo conflito é imposto: o motor do caminhão quebra. Então, uma nova sequência de cenas que mostra a saga para conseguir um mecânico no meio do “nada”. A comédia acontece por motivos trágicos: primeiro são enganados por um vendedor de mapas, depois, quando encontram uma oficina mecânica, o homem é louco e só quer trabalhar no mesmo dia se ganhar um pouco a mais.

O circo vai para outra cidade, monta a lona e “enterra o morto” – gíria para a estaca de sustentação do picadeiro. Benjamin continua deslocado em relação aos demais, e na cena seguinte, enquanto os outros bebem no bar, ele está sozinho do lado de fora. Um diálogo muito importante acontece quando uma mulher vem falar com

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Resolvido o problema imediato, o circo pode finalmente ir para a próxima cidade chamando o povo nas ruas. A próxima sequência é nessa cidade. Em meio às agitações do povo, Benjamin vê em uma loja seu sonho: ventiladores. Na cena seguinte, quando o circo prepara-se para montar a lona, Benjamin parece continuar pensando nos ventiladores, não sabe o que fazer e dá ordens vagas. Em seguida, está na loja dos ventiladores para comprar um, mas não consegue porque não tem nenhum dos documentos necessários para fazer o parcelamento. Como era caro demais para pagar à vista, ele desiste. Ao voltar para sua família, não se sente a vontade com seu pai e Lola – relação que parece cada vez mais incômoda para ele.

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ele: ele se dá conta de como sua vida é infeliz, de como está cansado e de como quer realmente sair do circo e ter uma vida normal (com ventiladores). Afinal como ele mesmo disse: “eu faço o povo rir, mas quem é que vai me fazer rir?”. A problemática se repete cena após cena, entre a alegria cada vez menor do espetáculo e os conflitos internos de Benjamin que o fazem querer abandonar o circo. Uma cena importante: um mal-entendido com a gíria “enterrar o morto” leva todos para a delegacia. O delegado, por sua vez, como outros personagens do circo, é extremamente caricato. Típico delegado de cidade de interior que pensa que pode mandar no mundo todo, que o mundo gira em torno dele. O diálogo destas cenas beira o absurdo. De fato, muitas pequenas cenas, principalmente no carro, são cenas de conteúdo desnecessário, têm função dentro da comédia pela bizarrice, como o personagem do circo que é apaixonado por cabras e fala delas o tempo todo. Há, portanto, uma conversa aqui com a comédia de estereótipos e caricaturas, muito conhecida na cinematografia nacional. Em minha análise, o primeiro ato do filme só termina após essa sequência na delegacia. O clímax do primeiro ato, por sua vez, acontece quando Benjamin vai mais uma vez apresentar seu espetáculo, mas totalmente perdido acaba por não animar o público e tem mais uma epifania. Cai no chão e vê na plateia... ventiladores. Apesar de tardio, esse evento, sim, o faz abandonar de vez o circo e a profissão – tornando-se um ponto de virada –, dando uma solução temporária ao seu problema com o pai que, por sua vez, retransmite o conhecimento adquirido anteriormente e o aconselha a “fazer o que sabe fazer”. Benjamin parte, em meio às lágrimas de todos. Como resposta a esse evento, Valdemar termina com Lola, não se sabe se ciente do roubo da mulher, ou se sentido pelo filho tê-lo deixado. Esse ato é fundamental para que no desfecho do filme Benjamin e seu pai se entendam definitivamente, como palhaços de duas gerações diferentes no mesmo picadeiro.

No breve segundo ato, Benjamin já está na cidade grande e admira um hotel. Passa a noite e vai procurar emprego. Novo/velho conflito: não tem os documentos.

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Providencia-os e logo se vê como vendedor da loja de ventiladores, rapidamente dizendo aos outros o que também tinha ouvido: é preciso documentos. Vai também atrás de Ana, a menina que conversou há tempos e o motivou a ter uma “vida normal”, mas, chegando lá, o sonho se acaba mais rapidamente ainda: Ana já está noiva de outro, e só havia sido simpática com ele. Um após outro seus sonhos vão se desmanchando sem que ele possa fazer qualquer coisa. A cidade o engole. Ele vê numa mesa de bar um senhor contando uma piada e se lembra “do que sabe fazer”: sabe fazer rir. Basta um sorriso, basta perceber. Tão rápido quanto percebeu que a cidade não era para ele, percebeu que ser palhaço é seu dom.

O palhaço traz uma estrutura muito diferente, quase toda de apresentação dos conflitos internos do protagonista Benjamin, e externos ao próprio circo, para, então, mudar o rumo da narrativa e rapidamente retornar ao que era antes, com o conflito existencial resolvido. De fato, isso se deve a um fato emocional: é muito mais difícil abandonar o que se viveu a vida toda, e o tempo de apresentação reflete isso. Por sua vez, a cidade nos engole rápido demais, e é rápido demais que queremos sair dela – se não nos sentimos adaptados –, e assim também aconteceu com Benjamin no filme. Sua maior motivação se mostrou uma frustração, mas permitiu que ele percebesse que já estava no caminho certo desde o começo. O final feliz existe nessa estória.

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O início do terceiro ato se dá com a volta de Benjamin carregando sorridente um ventilador. Ele pega ônibus, pega carona, até chegar novamente ao picadeiro do circo Esperança. O clímax: ele contracena novamente com seu pai e, num momento singelo, encostam seus narizes vermelhos. Um gesto calado de perdão. Um gesto de amor paternal e de amor à arte circense. O espetáculo continua alegre, como o circo deve ser. O clima torna-se mais leve e as emoções afloram. A cena final acompanha Guilhermina, a menina, por entre o circo: todos riem. A paz e a felicidade retornaram como nunca antes, e como imagem final está o ventilador girando. Girando onde deve estar, no circo, entre família.

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Classifico o filme como uma arquitrama em exceção, que flerta com outros modelos, como a minitrama, sem abdicar do que é principal no Design Clássico: o apelo emocional ao público. Mesmo com um personagem passivo, o entretenimento é garantido devido a esse personagem que sempre atraiu as pessoas: o palhaço. Seu conflito existencial é um conflito também de gerações, de novos mundos. O retorno do palhaço ao circo é, assim, fundamental para este filme, que talvez se se passasse nos dias atuais, tivesse um outro final.

REFERÊNCIAS MCKEE, Robert. Story. Curitiba: Arte e Letra Editora, 2010.

FILMOGRAFIA O PALHAÇO. Direção: Selton Mello. Produção: Vânia Catani. Intérpretes: Selton Mello, Paulo José, Tonico Pereira, Larissa Manoela, Teuda Bara, Giselle Motta, Moacyr Franco. Distribuidora: Imagem Filmes, 2011. DVD lançado por Imagem Filmes, 2012.

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11 O SOM AO REDOR E O CINEMA AUTORAL William Muneroli Manfroi1

A relação do público com o filme tende a ser inicialmente pautada por rostos de atores conhecidos na tela. Outras dimensões criativas acabam por vezes sendo ignoradas, como a função do diretor, por exemplo. Apenas depois de assistir a filmes considerados “de arte” é que o espectador começa a rever seus conceitos e percebe a importância da pessoa por trás das câmeras, responsável pela parte artística da obra.

Seu orçamento é de aproximadamente dois milhões de reais e suas locações foram todas em Pernambuco, sendo a maior parte delas em Recife, cidade natal e atual do diretor, Kléber Mendonça, que antes de filmar O som ao redor, seu primeiro longa-metragem, já havia utilizado algumas mesmas locações em seus trabalhos anteriores, como Eletrodoméstica – curta-metragem de 2005 -, por exemplo. O filme foi visto por quase cem mil espectadores nas salas de cinema nacionais devidamente Estudo orientado pelo profº. doutorando Fábio Luciano Francener Pinheiro.

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O som ao redor é um filme brasileiro lançado em janeiro de 2013, escrito e dirigido por Kléber Mendonça Filho, produção de Emilie Lesclaux, com nomes como Irandhir Santos, Gustavo Jahn e Maeve Jinkings no elenco principal. O longa teve sua estreia no Festival de Rotterdam (na Holanda) em Fevereiro de 2012 e, desde então, colecionou prêmios em sua trajetória comercial. Foi eleito pelo jornal norte-americano The New York Times como um dos dez melhores filmes do ano, faturou o título de Melhor Filme em festivais internacionais como o de Gramado, Rio de Janeiro, São Paulo e Sidney (na Austrália), além de ter sido escolhido como o representante brasileiro ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na edição de 2014.

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cadastradas na Ancine, sem contar as mostras, festivais e formas alternativas de exibição cinematográfica. Um número muito representativo, por se tratar do primeiro longa-metragem do diretor e de ter sido realizado por uma produtora independente, sem nenhum ator global, fora do eixo Rio-São Paulo. Kléber Mendonça Filho nasceu no Recife, em 1968, e se formou em Jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco. Com seus curtas-metragens – entre eles Vinil Verde (2004), Eletrodoméstica (2005) e Recife Frio (2009) -, recebeu mais de 120 prêmios nacionais e internacionais, com passagens por festivais como Rotterdam, Clermont-Ferrand e a Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Desenvolveu, ainda, um trabalho abrangente como crítico de cinema e coprogramador da principal sala de cinema alternativo do Recife, o Cinema da Fundação Joaquim Nabuco. É, também, o diretor artístico do Festival Janela Internacional de Cinema do Recife. A primeira versão do roteiro de O som ao redor foi escrita em oito dias, contendo 80 páginas, para um edital do Ministério da Cultura, em 2008. O projeto não foi aprovado nessa primeira tentativa, talvez pela crueza do texto que demandava uma maturação maior. O projeto, mais desenvolvido, foi aprovado no ano seguinte, no mesmo edital lançado pelo Ministério da Cultura para projetos de Baixo Orçamento. O filme é adequado para exemplificar a direção no cinema autoral por se tratar de uma obra pessoal do diretor e não de uma produção planejada por uma grande equipe. Mendonça Filho atuou na criação do roteiro, na direção, montagem e é um dos desenhistas sonoro do filme. Os planos utilizados pelo diretor, o tempo do filme, as escolhas de atuação, diálogos improvisados, são elementos que contribuem para a análise desse filme, aliada à de cinema de autor. CINEMA DE AUTOR O termo Cinema de Autor apareceu pela primeira vez com a Nouvelle Vague, movimento cinematográfico vanguardista surgido na França no final dos anos 1950 e encabeçado pelos críticos da mais importante revista de cinema de todos os tempos, chamada Cahiers du Cinéma. François Truffaut e Jean-Luc Godard foram os principais diretores dessa geração que revolucionou a maneira de fazer cinema. (...) O filme do amanhã me parece ainda mais pessoal do que um romance individualista ou autobiográfico... O filme do amanhã não será dirigido por ‘funcionários públicos’ da câmera, mas por artistas... Será semelhante à pessoa que o fizer. (TRUFFAUT, 1957, p.298).

Antes desse movimento, poucos diretores tinham reconhecimento internacional. Os filmes eram conhecidos e lançados com ênfase na presença de atores

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e atrizes famosos que o estrelavam ou até mesmo do estúdio que o havia produzido. Foi apenas depois do Cinema Moderno que o diretor passou a ter o devido prestígio. No Brasil, os primeiros realizadores a serem reconhecidos internacionalmente surgiram com o Cinema Novo dos anos 1960, como Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos. Hoje em dia, existem no país duas formas diferentes de se fazer cinema. Uma é o modelo comercial, onde o produtor é quem tem a palavra final. Geralmente estrelado por atores globais, sem refinamento da linguagem cinematográfica, obedecem a um formato padrão, são distribuídos pela empresa Globo Filmes e direcionados ao público, sem contar com a opinião da crítica ou a participação em festivais – como ocorreu, por exemplo, com De pernas pro ar. Outra é o modelo autoral, onde o diretor é quem seleciona o elenco e a equipe técnica, roteiros com temas menos recorrentes, baixos orçamentos, equipes menores e estética original, de modo que o enquadramento sirva para transmitir algum sentido, comunicando ao espectador de forma sutil e criativa, geralmente com carreira internacional em festivais mundo afora. O som ao redor é um perfeito exemplo deste último tipo de cinema. No contexto do Cinema de Autor, Diretores como Quentin Tarantino (Kill Bill, Pulp Fiction) e Pedro Almodóvar (Tudo Sobre Minha Mãe, Volver) são cineastas que conseguem dialogar simultaneamente com o público e com a crítica. Suas obras são consideradas autorais por conseguirem apresentar uma estética particular em seus variados filmes – uma espécie de marca registrada. Criando um paralelo com a literatura, Machado de Assis é lembrado até hoje pelo estilo irônico de sua escrita, Guimarães Rosa popularizou o neologismo em suas obras. Assim também é no cinema. Os diretores de cinema que optaram por uma estética autoral também são reconhecidos por seu estilo de linguagem, depois de dois ou mais trabalhos repetindo certos elementos narrativos ou imagéticos.

Depois de seguidos saques ocorridos na redondeza, moradores de um bairro na zona sul de Recife decidem contratar o serviço de seguranças particulares para vigiarem a região. Essa é a premissa principal do filme O som ao redor, de Kléber Mendonça Filho. O longa-metragem inicia com imagens antigas de senzalas, engenhos, mocambos e trabalhadores rurais. Fotos em branco e preto, sublinhadas por uma construção sonora latente, o ruído do real trabalho em máquinas agrícolas com uma mixagem crescente, que começa como pano de fundo e se encerra em primeiro plano por conta do volume e proporção tomados pelo áudio inserido na cena. Essa problemática entre patrão e empregado ressurge na segunda cena do filme, onde crianças brancas, de

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um condomínio de classe média, se divertem com seus brinquedos, alguns modernos e caros, enquanto suas babás, pretas, tomam conta deles, filhos de suas patroas e patrões. (...) Acho que a luta de classes está ali, mas eu sempre parto de dentro pra fora, de uma experiência pessoal. Quando um filme parte de um conceito, começa a ser teorizado antes de tudo, já começou errado. Se for bom, ou se alguém se interessar, pode teorizar em cima do resultado. Em O som ao redor, as experiências são pessoais, são coisas que eu sei que existem, que me contaram, que eu ouvi falar e coisas que eu vivi também. Fiz um filme em que a palavra racismo foi banida do roteiro, um pouco como acontece no país, ninguém fala, mas todo mundo é racista. (MENDONÇA, 2013, p.106).

Nessa cena do filme O som ao redor já é possível observar outro elemento presente no filme inteiro, as grades. Janelas, pátios, quintais, o filme é fechado entre grades. Ainda nessa cena das crianças brincando na área de lazer do condomínio, vemos um grupo delas observando um trabalhador plantando uma grade na janela de uma casa vizinha. O som, como na cena inicial do filme, aumenta a cada segundo, e o zoom-in, movimento de câmera comum na filmografia de Kléber Mendonça Filho, só reforça a dramaticidade da ação. A poesia é recorrente em O som ao redor. Uma das inteligentes e sutis formas que o diretor encontrou de demonstrá-la foi através de escritos no concreto. Por meio de uma câmera quase a pino, é possível ler recados do tipo: “Te amo Lívia”, “Amo Kinha” ou “Feliz aniversário Vícky”, escritos com tinta branca no asfalto da rua onde mora João, o protagonista do filme, e Kléber Mendonça, o diretor do longa. Outro meio de expressar poesia numa forma mais crua é o beijo de um casal de adolescentes escondidos por entre os muros dos fundos que dividem as residências no bairro. Não sabemos nada a respeito do casal, apenas que eles estão se beijando com uniforme escolar, expressando um sentimento, escondidos no meio de todo aquele concreto sem vida. Também aqui o diretor usa do zoom-in para evidenciar o pretendido.

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Logo após essa breve introdução, que conta ainda com uma discreta batida de dois carros em um cruzamento, o filme é dividido em atos. O primeiro, denominado “Cães de guarda” começa com Bia, uma das principais personagens do filme. Ela não consegue dormir devido aos latidos intermináveis do cachorro de seu vizinho. A mulher, então, decide drogar o animal com remédios para dormir, escondidos no meio de uma carne que ela arremessa pela janela, por entre a grade de ferro, em direção ao quintal do vizinho – que não será conhecido pelo espectador até o final do filme, pois, independente da reação do envolvido, o interessante, nesse caso, é o ato de Bia.

O espectador é apresentado a João. Um homem de vinte e poucos anos que mora no apartamento onde se encontram as garrafas de bebida. Sua empregada, negra, chega ao serviço e o barulho de suas netas, que tiveram de acompanhá-la, pois não tinha quem cuidasse delas em casa, acaba por acordar João, que dormia pelado no tapete da sala abraçado com uma menina. Graças ao uso de montagem paralela é possível acompanhar a manhã de Bia, que, depois de colocar a roupa suja na máquina de lavar – eletrodoméstico muito representativo no filme -, observa, novamente por trás das grades, o cachorro do vizinho dormindo no quintal. No café da manhã preparado por Maria o nome da menina que dormia com João, é descoberto, Sofia. Durante o café, João lê em voz alta uma manchete na coluna social de um jornal local: a filha de uma família de conhecido sobrenome

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Kléber é um diretor sutil, seus personagens nem sempre o são. A imagem sem movimento de um emaranhado de prédios é interrompida por um corte seco e, então, outra imagem – também sem movimento – de dezenas de garrafas vazias em cima de uma mesa de centro de uma sala de estar nitidamente burguesa. Um evidente exemplo do cuidado que o diretor tem de não parecer óbvio e apresentar, através da câmera, um olhar mais cauteloso, um ponto de vista questionador do cotidiano do personagem e da cidade ali expostos.

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na cidade havia completado 15 anos e a festa tinha sido maravilhosa. A entonação de João é cínica e o rapaz chega até a modificar algumas palavras para emprestar um sentido sexual à notícia. Cena vital do filme nessa primeira parte, no sentido de conhecimento do personagem principal. A brincadeira de modificar o sentido da coluna do jornal evidencia que, embora faça parte dessa mesma camada social, João é irônico frente às futilidades burguesas. O carro de Sofia é roubado em frente ao prédio de João. Kléber expõem a situação de modo que o principal suspeito do ato é Dinho, primo de primeiro grau de João. Dinho é conhecido na família e na região por pequenos furtos com intuito apenas de se divertir. O bandido é protegido pelo avô, matriarca da família e dono de quase todos os prédios dos arredores. Apesar de não dar muita importância a vida profissional dos personagens, noutra cena chave desse início do filme o protagonista, que é corretor dos imóveis de seu avô, apresenta um apartamento para uma suposta cliente. Típica burguesa que está empobrecendo com o passar dos anos, ela pede um desconto no valor do imóvel por conta de um suicídio ocorrido no apartamento dias atrás – outra crítica que o diretor faz à classe média brasileira. Em seguida mais duas situações apresentam uma crítica cínica, engraçada e até mesmo perigosa dos moradores da rua. A primeira delas é a agressão física, cometida pela irmã de Bia ao descobrir que esta havia comprado um televisor maior que o dela. A segunda é o risco de chave que o flanelinha faz no carro de uma moradora que o tratou com grosseria quando ele se ofereceu para ajudá-la a carregar suas sacolas – ela imaginou que ele ia pedir dinheiro. (...) O filme, portanto, tem muita coisa da minha experiência não só com a ideia de espaços construídos, ou espaços ociosos, mas com temas que talvez sejam políticos. Eu acho que o roteiro veio de sentir um certo clima no Brasil dos últimos anos, e por consequência, ou reflexo, em Pernambuco. Me interessa a arquitetura como sintoma de uma sociedade que não é saudável, a arquitetura como diagnóstico brutalista, como algo que deu e está dando errado. Acho que meus filmes normalmente surgem como respostas, um pouco como um leitor que decide escrever para um jornal, revista ou site porque um determinado assunto o incomoda, ou lhe deixou com o desejo de colocar seu ponto de vista. Me interessa uma sensação de que a percepção do “pobre” e do “rico” talvez esteja mudando no país, ainda com o desprezo e o medo recíproco e histórico das camadas de cima e de baixo, se transformando em uma demanda maior por respeito, por parte das classes mais baixas, sem tanta resignação católica construída na falta de educação.” (MENDONÇA, 2011).

De Eletrodoméstica, premiado curta de Kléber Mendonça lançado em 2005, O som ao redor se apropria de duas cenas. Ambas têm a ver com o universo de Bia. A primeira é quando a dona de casa se esconde no quarto para fumar seu cigarro de maconha e sopra toda a fumaça diretamente no sugador do aspirador de pó, a outra é a cena em que Bia se masturba na quina de sua máquina de lavar roupas.

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Diferentemente do caso de Eletrodoméstica, onde tais atitudes não são muito exploradas, em O som ao redor, Kléber faz questão de que elas não surjam aleatoriamente. No primeiro caso, Romualdo – o fornecedor de água e de maconha – aparece na casa de Bia e entrega um pacote da droga. Graças a um diálogo ágil, o espectador logo compreende do que se trata e percebe, também, que a entrega ocorre frequentemente. Na segunda cena, Bia arruma perfeitamente a máquina de lavar. O diretor opta por planos de detalhes ou planos não muito abertos pra explicitar o cuidado que a mulher tem em deixar o eletrodoméstico na perfeita posição para que ela possa se saciar sexualmente. É como se, nesses dois momentos, Bia se excluísse do mundo lá fora e se esquecesse do alarde do cachorro, das tarefas domésticas, da briga com a irmã, dos conflitos de família com seus dois filhos etc.

Seu Francisco, avô de Dinho e de João e matriarca de sua família, é dono de quase todos os imóveis da região. Clodoaldo, então, resolve pedir sua autorização para exercer a sua profissão. Essa ida de Clodoaldo até a residência de Seu Francisco poderia não representar nada para o filme, porém, Kléber Mendonça consegue tirar desse enxerto despretensioso do roteiro uma cena profunda e de uma sutileza ímpar. A cada segundo que Clodoaldo e seu assistente se aproximam de Seu Francisco, a diferença socioeconômica se amplia. Cada grade que a dupla abre e fecha, cada interfone e campainha, elevador e corredor, tudo serve para evidenciar a discrepância entre os dois mundos. Mas nesse início de filme essa constatação parece óbvia e sem

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Clodoaldo é outro personagem vital para a narrativa. Apesar de surgir no longa apenas depois de trinta minutos de filme, ele é o terceiro elemento que compõe o triângulo de personagens principais de O som ao redor. Com cerca de 35 anos, ele se diz um vigilante. Na noite anterior ao seu repentino aparecimento no bairro, três carros haviam sido saqueados na região. Clodoaldo, com sua equipe de serviço, sabendo do ocorrido, resolve então bater de porta em porta e oferecer seus trabalhos. Os vizinhos desconfiam do rapaz. Era de fato estranho que justamente no dia posterior à madrugada em que três carros haviam sido furtados, um vigilante nunca antes visto no bairro estivesse lá oferecendo seus serviços.

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muita importância. É no final da trama que essas peças aparentemente inofensivas fazem sentido para o espectador. O primeiro ato, ou primeira parte, de O som ao redor termina com o telefonema que João recebe do avô, Seu Francisco. O senhor quer saber quando seu neto visitará o sítio da família, enquanto João só se preocupa em alertar seu avô para o suposto novo delito cometido por seu primo, Dinho. O roteiro deixa claro que Seu Francisco muda de assunto, evidentemente protegendo seu neto bandido. Pois, mesmo que não se tenha absoluta certeza, em nenhum momento do filme, de que Dinho roubou, de fato, o toca-discos do carro de Sofia, já é de conhecimento comum que o garoto costuma se meter em pequenos furtos apenas por diversão. “Cães de guarda”, a parte mais inventiva e interessante do filme, se encerra com mais de cinquenta minutos de duração total da obra, ou seja, quase metade do longa-metragem está concentrada na apresentação dos personagens. Fato bem justificado, uma vez que a intenção de Kléber não era apresentar uma narrativa cheia de reviravoltas e obstáculos confrontados pelo protagonista – situações que ocasionam um segundo e terceiro ato maiores que o primeiro. O Som ao Redor é um filme de personagem. É um filme onde o enfrentamento dos retratados com suas próprias ideologias, idiossincrasias e preconceitos internos importa mais do que qualquer outra situação exterior desestabilizadora. O segundo ato chama-se “Guardas Noturnos” e trata de um início de enfrentamento entre os envolvidos, entre as classes. Aborda a questão de Dinho, que discute de forma agressiva e ostensiva com Clodoaldo que, por sua vez, fez uma ligação anônima com tom ameaçador para o menino. E, principalmente, traz a cena da reunião de condomínio do prédio de João, onde uma maioria burguesa quer a demissão por justa causa do porteiro noturno que está dormindo em serviço. Uma das frases mais irônicas, e ao mesmo tempo repulsivas, proferidas nessa cena por uma das moradoras do prédio acabou servindo como forma de divulgação do filme. “(...) Estou recebendo minha Veja fora do plástico (...)”, diz a mulher que quer ver o funcionário no olho da rua, mesmo faltando pouco tempo para a sua aposentadoria.

Imagem do making of de O Som ao Redor

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“Guarda-costas” é a terceira parte, o encerramento. Temos alguns esquetes importantes e que nos fazem questionar as intenções do filme: Clodoaldo e a empregada de Seu Francisco transando na casa de um vizinho que estava viajando, o casal ainda tira fotografias da cama branca da casa branca; os vigilantes batendo no menino que estava escondido em cima da árvore; Bia humilhando sua empregada por ter estragado seu aparelho importado contra latidos caninos. O motivo pelo qual Clodoaldo adentrou na vizinhança como vigilante é descoberto nesse final. Foi com o intuito de acertar contas com Seu Francisco, que, décadas passadas, foi o responsável pela morte de seu pai e de seu tio, que Clodoaldo se aproximou da região. Numa cena sugestiva e aberta, ele e o irmão confrontam Seu Francisco e, aparentemente, o matam – não é possível afirmar. João acaba sem Sofia, minimizando e satirizando uma possível história de amor. Já Bia, compra bombinhas de criança e dispara contra o cachorro. A última cena do filme pode ser interpretada como uma celebração, uma ode a sua própria raiva. REFERÊNCIAS MUNHOZ, M. e URBAN, R. (Orgs.) Conversas sobre uma Ficção Viva. Curitiba: Imagens da Terra Ed., 2013. MENDONÇA, K. Filho. Filmando ao Redor: Conversa com Kléber Mendonça Filho sobre seu primeiro longa de ficção, O som ao redor: depoimento. Revista Cinética. São PAULO, Maio, 2011.

FILMOGRAFIA

O som ao redor. Direção: Kléber Mendonça Filho. Produção: Emilie Lesclaux. Intérpretes: Ana Rita Gurgel, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, Gustavo Jahn, Irma Brown, Felipe Bandeira. Distribuidora: Vitrine Filmes, 2013. CINEMA BRASILEIRO: FORMA E CONTEÚDO

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12 ABRIL DESPEDAÇADO, UMA ANÁLISE A PARTIR DA DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA Agnes Cristine Souza Vilseki1

O filme Abril despedaçado (2001), dirigido Walter Salles, foi adaptado do romance homônimo do escritor albanês Ismail Kadaré. O livro narra a história de duas famílias rivais que vivem sob um código de honra, o Kanun, que governa suas vidas. O ano é 1930 e a história é ambientada nos montes Malditos, região norte da Albânia. A tradição de vingança é o fio condutor deste universo impregnado pelo trágico e pela morte. Ao adaptar a história de Kadaré para o cinema, Walter Salles optou pelo sertão nordestino do começo do século XX como cenário para contar a história de rivalidade entre a família Breves e a família Ferreira. Em entrevista, o diretor justifica sua escolha pelo sertão na ambientação da sua história: “deve existir uma relação entre a geografia física e a geografia humana, quer dizer, a aridez do lugar de uma certa forma impregna aqueles personagens”2. A imagem do sertão representada no filme coincide com a estereotipia que atrela o universo rural brasileiro à memória de um ambiente arcaico, sob o domínio de uma figura patriarcal, símbolo da tradição e responsável pela união da família. O ano é 1910, o mês fevereiro. A história começa e termina com a narração do personagem Menino, filho caçula da família Breves. A camisa, na qual o sangue amarelou no varal, anuncia que é chegada a hora da vingança; Tonho, o filho mais 1

Estudo orientado pela Profa. Dra. Salete Paulina Machado Sirino.

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Entrevista concedida para o site criticos.com.br, em 01/05/2002.

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velho, tem a obrigação de honrar a morte do irmão, oriunda de uma disputa ancestral de terras. O diretor constrói uma imagem simbólica através de uma bolandeira. Na narração, ela define os papéis que cada um assume na família fazendo uma comparação com o trabalho que cada um desempenha. O pai toca os bois que fazem a engrenagem girar e, rude e opressor, é o responsável pela manutenção das tradições e da honra da família. Tonho mói a cana, a mãe retira o bagaço, o Menino traz a cana para junto da bolandeira. Todos são submissos ao pai, e quando este, ao ver a camisa amarelada, diz que o filho mais velho sabe o que deve fazer, ninguém contesta. A bolandeira é um símbolo forte na narrativa, o instrumento primitivo responsável pela moagem da cana representa a estrutura cíclica em que os personagens estão submersos, morte-vingança-morte. Representa a prisão existencial a que os personagens estão submetidos pela força da tradição e da geografia. Walter Salles surgiu como um nome importante no período da Retomada do cinema brasileiro. Seu filme de estréia foi A grande arte (1991), uma coprodução Brasil-Estados Unidos. Terra estrangeira (1996) foi um marco para o cinema do período, porque além do reconhecimento internacional, tendo adquirido diversos prêmios fora do país, abordava um tema delicado para a população brasileira, os anos “Collor”. Seu terceiro longa-metragem, Central do Brasil (1998), foi um dos mais importantes deste ciclo. Teve sucesso de crítica e foi bastante premiado. Nesse filme o diretor demonstra uma herança cinemanovista na preocupação de redescobrir o país. A utilização do sertão, tão caro ao Cinema Novo, dialoga com outros filmes do período: Eu, tu, eles (2000), Baile perfumado (1997), Cinema, aspirinas e urubus (2005) e mesmo com Abril despedaçado, mas esvaziado do caráter político e revolucionário presentes em filmes como Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, e Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha. Nos filmes do Cinema Novo o sertão era mais personagem do que meramente paisagem e cenário.

No Jornal do Brasil de 08/07/2001, Ivana Bentes publicou “Da estética à cosmética da fome”, artigo em que faz uma relação entre o manifesto Estética da fome,

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Pode-se dizer que filmes como Vidas secas e Deus e o diabo na terra do sol inven­taram uma estética e “escrita” do sertão. Estética da crueza e do sertão, trabalhada na montagem, no corte seco, no interior da imagem e do quadro, na luz estourada, na fotografia contrastada, no uso da câmera na mão. Estética cinemanovista que tinha como objetivo evitar a folclorização da miséria e que colocava uma questão funda­mental: como criar uma ética e uma estética para essas imagens de dor e revolta? A ideia, rejeitada nesses filmes, de expressar o sofrimento e o intolerável em meio a uma bela paisagem, ou de glamourizar a pobreza, ressurge em alguns filmes contemporâneos, filmes em que a linguagem e fotografia clássicas transformam o ser­tão num jardim ou museu exótico, a ser “resgatado” pelo grande espetáculo. (BENTES, 2007, p. 245).

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escrito por Glauber Rocha, em 1965, e a representação contemporânea, na qual ela critica a glamourização do sertão, da favela e da pobreza, o discurso que valoriza a qualidade e o belo e o cinema transformado em produto de fácil consumo por qualquer audiência. Por outro lado, MASCARELLO, em seu artigo “O Dragão da Cosmética da Fome contra o grande Público: uma análise do elitismo da crítica da cosmética da fome e de suas relações com a Universidade” aponta uma preocupação com a comunicabilidade e o espectador. Em relação à ausência de estudos acadêmicos focados na recepção dos filmes MASCARELLO comenta: A Universidade se demonstra impotente para fornecer respostas (mesmo que parciais) a questões repetidamente indagadas pela comunidade cinematográfica. Faz-se urgente, em meio às permanentes dificuldades para a afirmação mercadológica e sociocultural do cinema brasileiro, responder a perguntas tão singelas e fundamentais como: Que pensa o público nacional do “seu” cinema? O que espera dele? Que lugar este ocupa em seu imaginário? Constitui (e em que medida) sua identidade cultural? Que opinião tem o público sobre as representações de Brasil nos filmes nacionais? Estas questões, sabe-se muito bem, não têm sido respondidas pela Academia, pelo simples fato de não as ter incorporado à sua agenda investigativa. (MASCARELLO, 2004, p. 7).

Opondo-se as ideias de Ivana Bentes, para MASCARELLO carregadas de elitismo acadêmico, defende que os críticos que se referem à existência de uma “cosmética da fome” lançam um olhar sobre a cinematografia atual com ótica dos espectadores de um cinema moderno-revolucionário. Sem levar em conta, entre outros fatores, o gosto do grande público. Entre as características do Cinema Novo utilizadas para representar o subdesenvolvimento estão a luz estourada, a imagem granulada e tremida, a utilização de som direto e câmera na mão, soluçōes coerentes com a proposta e conceito daqueles filmes. A partir dos anos 90, uma nova geração de cineastas, muitos vindos da televisão e da publicidade, passam a tratar de assuntos próximos aos do Cinema Novo em uma busca pelo redescobrimento do país. A DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA “O diretor de fotografia é quem transforma os sonhos do diretor em realidade” (MOURA, 1999, p. 209). Partindo dessa reflexão, poder-se-ia afirmar que o cinema é o resultado de um processo técnico e artístico complexo que envolve diversas áreas. A direção de fotografia pode ser definida como a área de atuação no cinema responsável por transformar as ideias do roteiro em imagens, de acordo com a concepção do diretor. O diretor de fotografia desenvolve um conceito fotográfico que deve colaborar com a narrativa e, junto com o diretor e outros chefes de equipe, esco-

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lhe as locações, coordena a equipe de fotografia - equipe de eletricistas, maquinaria e câmera - e escolhe o equipamento adequado para a produção: câmera, lentes, luzes, rebatedores, filtros etc. Define a paleta de cores que será utilizada, a composição do quadro, e os movimentos de câmera, além de acompanhar o processo de pós-produção, fase que envolve laboratórios, telecinagem e finalização do filme. Edgar Moura, importante diretor de fotografia brasileiro, define de maneira bastante simples a figura do diretor de fotografia como aquele que trabalha com luz e câmera. Todo o seu trabalho será em função de controlar a luz que sai de uma fonte e sensibiliza o filme ou CCD da câmera. Parte deste trabalho é extremamente técnico e outra parte, mais subjetiva, atrelada à experiência e sensibilidade do fotógrafo. O diretor de fotografia de Abril despedaçado, Walter Carvalho, começou a trabalhar com cinema no início dos anos 1970, uma geração após o Cinema Novo. O pernambucano que não teve uma formação acadêmica em cinema ou fotografia, iniciou sua carreira fotografando filmes do irmão, Vladimir Carvalho. Desde o período da Retomada, participou de mais de 30 filmes, entre ficção e documentário, principalmente como fotógrafo, mas também atuando como diretor. É considerado um dos mais importantes diretores de fotografia brasileiros. Em entrevista, Walter Carvalho comenta sobre suas principais referências no cinema: Deus e o diabo na terra do sol (1964) e Vidas secas (1963): “... a convicção de que eu gostava de cinema nasce e se concretiza principalmente a partir destes dois filmes. É exatamente o núcleo do Cinema Novo” 3. No entanto, comenta que sua maior referência para o seu trabalho como diretor de fotografia é o estudo da história da arte. Costuma dizer em entrevistas e palestras que os pintores são sua base, principalmente os da Renascença, Pré-Renascença e os Impressionistas4. A LUZ DRAMÁTICA DE ABRIL DESPEDAÇADO

Walter Carvalho, entrevista Nomes do Nordeste, 25/05/2011.

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Renascença e Pré-Renascença, período em que a arte sofre a primeira grande revolução em busca da realidade, principalmente com a descoberta da perspectiva e dos efeitos de luz sobre os objetos. Impressionismo, rompimento com a tradição renascentista, onde os artistas começam a representar mais que paisagens, representando sensações de paisagens. 4

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“A iluminação é um fator decisivo para a criação da expressividade da imagem. Mas contribui, sobretudo, para criar a ‘atmosfera’... ” (MARTIN, 2003, p.57). Nesse sentido, em Abril despedaçado, a fotografia é trabalhada para criar um universo de abandono, impotência, sofrimento, vingança e violência. Segundo o diretor Walter Salles, ele buscou nas pinturas do alemão Eduard Hildebrandt o tom das imagens que queria para o filme. Hildebrandt (1818-1868) foi um pintor que retratou o Brasil no século XIX e sua característica era a marcada diferença entre sombra e luz.

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O contraste entre as sombras e a abundante luz do sertão tornam-se elementos dramáticos importantes na narrativa. Segundo o diretor, as sombras pronunciadas marcam a presença constante da morte no filme.

O diretor de fotografia Walter Carvalho explica que o trabalho nesse filme começou com a escolha e estudo prévio da locação da fazenda da família Breves, principalmente para entender o comportamento do sol e definir a continuidade e unidade da luz. Filmado em super 35 mm, Abril despedaçado teve suas locações a 800km de Salvador (BA) e as filmagens ocorreram em vários horários do dia. O sol tem uma presença muito forte no filme, seja na dureza do meio-dia, contextualizando o duro trabalho na fazenda sob o sol a pino, seja na luz do dia que invade os interiores escuros. Outro elemento forte é a presença de sombras, carregadas de força dramática. É um filme de contraste elevado, apresentando zonas de altas e baixas luzes, claro e escuro no mesmo quadro. Tanto nas cenas de dia quanto nas noturnas. Os personagens transitam da luz para a sombra, nela mergulham ou dela emergem cercados pela eminência da morte. As cenas noturnas mantêm o alto contraste, as zonas de claro e escuro. A luz utilizada é amarela, condizente com a iluminação do local na época, essencialmente luz de vela nas cenas internas. Nas cenas externas a iluminação é justificada pela luz da lua, azulada, mais fria que a das cenas internas. Segundo Walter

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Carvalho, a iluminação foi pensada para imprimir tons mais quentes, dialogando com o calor e aridez do sertão. De maneira geral, a escuridão, mesmo que parcial, permanece ao longo de todo o filme. Em alguns momentos, como na cena em que Tonho está com Clara na cidade, este tratamento é aliviado, mas só desaparece de fato da narrativa com a ruptura ao final da trama, depois de livrar-se da opressão e do destino trágico, Tonho encontra a liberdade ao correr para o mar. No processo de criação do conceito fotográfico de um filme é também definida uma paleta de cores, desenvolvida pelo diretor de fotografia e pelo diretor de arte. Ela pode ser aplicada ao filme todo ou a algumas sequências, para marcar uma locação ou personagem, indicar flashback etc. Para ter controle das cores na filmagem, o diretor de fotografia utiliza filtros para lentes, filtros para luz, diferentes tipos de filme e escolhe as horas do dia mais adequadas para filmar, no intuito de imprimir a cor desejada. Em Abril despedaçado pode-se falar no uso de uma paleta para o filme como um todo, dos ocres ao preto, com alguns pontos de cor: amarelo e vermelho, azul e verde. O PAPEL CRIADOR DA CÂMERA Em relação ao papel da câmera, o crítico e historiador de cinema, Marcel Martin define: Um certo número de fatores cria e condiciona a expressividade da imagem. Esses fatores são, numa ordem que vai do estático ao dinâmico: os enquadramentos, os diversos tipos de planos, os ângulos de filmagem, os movimentos de câmera. (MARTIN, 2003, p.35)

A definição de um plano, segundo MARTIN (2003), é determinada pela distância entre a câmera e o objeto filmado, escolha é definida pela necessidade narrativa. Deve haver uma adequação entre o tamanho do plano e seu conteúdo material, por um lado (o plano é tanto maior ou próximo quanto menos coisas há para ver), e seu conteúdo dramático, por outro (o tamanho do plano aumenta conforme sua importância dramática ou sua significação ideológica.

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Segundo o autor, os enquadramentos são o primeiro aspecto da participação da câmera no processo de transformar o registro da realidade em matéria artística. Trata-se de escolher o que filmar e como organizar o conteúdo do enquadramento. Walter Carvalho declarou em entrevista, que uma das principais características e desafios em Abril despedaçado foi o rigor e a sofisticação do quadro. Isso quer dizer que cada plano do filme foi estudado para compor uma imagem harmônica, bonita e narrativamente eficiente.

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Para o autor, a finalidade dos diferentes tipos de plano é dar a cada ação a melhor percepção possível, é dar clareza à narrativa. Com exceção dos planos próximos – close ou primeiro plano – e os planos gerais. O close tem um poder dramático muito forte no cinema, assim como um primeiro plano ou plano de detalhe de um objeto. Os planos gerais também têm suas especificidades, mais do que situar o espectador, podem carregar um significado psicológico. Abaixo duas imagens de Abril despedaçado, em planos gerais, uma do início e outra do fim, que remetem a sentimentos de impotência, solidão e abandono.

Nos diferentes tipos de plano, dos planos gerais em que se vê a fazenda da família emoldurada pela paisagem da serra, aos planos próximos, percebe-se uma preocupação narrativa. (MARTIN, 2003, p. 40) A seguir, outra imagem do filme, mostrando um plano de detalhe. Um plano de um objeto exprime geralmente o ponto de vista de um personagem e materializa o vigor com que um sentimento ou uma ideia se impõe a seu espírito.

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Quanto aos ângulos de filmagem, MARTIN (2003) explica que caso não sejam justificados pela ação, podem adquirir uma significação psicológica. Nesse sentido, os ângulos de câmera são bastante explorados no filme, como na cena em que Clara se balança na corda impulsionada por Tonho. Os planos e os ângulos de câmera se alternam, há um plano dela filmada de baixo para cima, outro de Tonho em leve plongée (filmagem de cima para baixo), outro de cima para baixo revelando Clara e Tonho. Os movimentos de Clara, cada vez mais rápidos, somados à música e aos planos do rosto de Tonho extasiado, criam um momento de epifania para o personagem.

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O plano seguinte usa a câmera a zenital, de cima para baixo, paralela ao solo, revelando Clara e Tonho, acompanhando o movimento circular da corda e de Clara.

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Em seguida, plano de Tonho em leve plongée (filmagem de cima para baixo). Os movimentos de Clara cada vez mais rápidos, somados à música e aos planos do rosto de Tonho extasiado, criam um momento de epifania para o personagem.

Ainda segundo esse autor, os movimentos de câmera podem ter diferentes funções no filme: descritiva, dramática e rítmica. Na cena em que Tonho persegue um membro da família Ferreira, que ele deve matar para vingar a morte de irmão, há uma movimentação de câmera que atua de acordo com as funções mencionadas acima. É descritiva porque acompanha os personagens, e é dramática, pois a câmera em movimento acelerado busca transmitir a sensação de desespero dos personagens. As imagens tornam-se confusas e embaçadas, e uma edição com cortes rápidos também trabalha de forma a dar ritmo à cena. A opção de fazer uso de câmera na mão se justifica pelo teor da cena, na qual a sensação provocada é mais importante que a composição fixa do quadro. A fotografia transforma o roteiro em uma linguagem visual. Em consonância com os outros departamentos, resulta em uma obra que está de acordo com a concepção do diretor. A fotografia deve acompanhar o discurso fílmico e utilizar os seus recursos como ferramentas para a narrativa. Pode-se pensar o trabalho de Walter Salles e Walter Carvalho em Abril despedaçado a partir desta ideia de Ismail Xavier: “(...) a valorização de cada imagem, de cada composição, como expressão concentrada da visão poética do cineasta; também procura dar ênfase à carga semântica contida em cada imagem, transformada em uma espécie de hieróglifo; estabelece, ademais, a defesa da imagem como algo mais do que uma representação analógica.” (XAVIER, 2005, p. 119).

Tanto a fotografia quanto as demais áreas de atuação no cinema trabalham no sentido de construir a história de maneira audiovisual. Mas, quando há uma preocupação estética, uma elaborada construção de ideias e significados pode-se pensar no filme como uma obra de arte. Em Abril despedaçado, Walter Salles além de contar uma história, propõe-se a criar a atmosfera, as sensações, imprimir a condição huma-

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na daqueles personagens. E neste sentido, a direção de fotografia de Walter Carvalho tem um papel fundamental, pois, alia aspectos técnicos e artísticos inerentes ao trabalho da equipe de fotografia para a construção do discurso fílmico pretendido pelo diretor. REFERÊNCIAS BENTES, Ivana. Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâneo: estética e cosmética da fome. Revista Alceu, Rio de Janeiro, v.8, n.15, p.242-255, jul./dez. 2007. Disponível em: http:// revistaalceu.com.pucrio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?from_info_index=25&infoid=282&sid=27. Acesso em: 10/01/2014. BUTCHER, Pedro. Cinema Brasileiro Hoje. São Paulo: Publifolha, 2005. ENTREVISTA Walter Carvalho para Nomes do Nordeste. Disponível em . Acesso em 12/01/2014. ENTREVISTA para Críticos: Walter Salles sem cortes. Disponível em . Acesso em: 12/01/2014. MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2003. MASCARELLO, Fernando. O dragão da cosmética da fome contra o grande público: uma análise do elitismo da crítica da cosmética da fome e de suas relações com a Universidade. Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 2, n. 11, p.1 a 14, jul./dez. 2004. MOURA, Edgar. 50 anos, luz câmera e ação. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 1999. ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de novo: um balanço crítico da Retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico - A opacidade e a transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

 

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ABRIL DESPEDAÇADO. Direção: Walter Salles. Roteiro: Walter Salles, Sérgio Machado e Karim Aïnouz, baseado em livro de Ismail Kadaré. Produção: Arthur Cohn. Música: Antônio Pinto. Fotografia: Walter Carvalho. Elenco: José Dumont, Rodrigo Santoro, Rita Assemany, Luiz Carlos Vasconcelos, Ravi Lacerda, Flávia Marco Antônio, Everaldo Pontes, Caio Junqueira, Mariana Loureiro, Wagner Moura, Gero Camilo, Othon Bastos. Distribuidora:  Miramax Films / Columbia TriStar do Brasil, Brasil, 2001. DVD (105 min).

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13 DURVAL DISCOS: A ARTE DE DENTRO PARA FORA

Carla Fonseca Abrão de Barros1

O TRABALHO DA DIREÇÃO DE ARTE FÍLMICA Dentro de uma produção cinematográfica há diversas pessoas trabalhando, muitas funções desconhecidas para o público. Mesmo que se saiba que há uma direção de arte, por exemplo, pouco se sabe sobre o trabalho desenvolvido e, tampouco, quantas pessoas e funções existem dentro desse universo. O trabalho do diretor de arte é transformar em imagem o roteiro e, para tanto, o trabalho começa a partir da leitura do mesmo. O diretor do filme, ao lado do diretor de arte e diretor de fotografia se reúnem para discutir o roteiro, como gostariam de dar vida a ele, para que ele tenha coerência e unidade – pois no cinema não se trabalha só e cada função influencia e interfere nas demais, por isso a comunicação e a criação em conjunto é muito necessária. A partir disso, o diretor de arte pode iniciar seu trabalho, junto com o restante da equipe – assistente, figurinista, cenógrafo, produtor de objetos, maquiador etc. Num filme de época, por exemplo, há um grande trabalho de pesquisa para que os objetos, cenários e figurinos que compõem o filme sejam da época certa. No filme Caravaggio (1986) de Derek Jarman, a narrativa se passa no século XVI, e, portanto, reproduzem-se as formas de vestir, de pentear o cabelo, como as casas eram construídas etc. Mas existem objetos modernos inseridos na trama, – como máquina de escrever, calculadora – trazendo um estranhamento com relação ao tempo: Caravaggio está mesmo inserido naquela época ou está à frente dela? Isso Estudo orientado pela Profa. Dra. Salete Paulina Machado Sirino.

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só é possível através de uma direção de arte que reconstrua a época de forma bastante detalhista, capaz de recriar todo um período, a ponto de evidenciar quaisquer objetos deslocados dentro dele, traçando através dessa nova possibilidade, uma forma de narrativa particular para o filme.

Figura 1 – Máquina de escrever inserida em filme de época, de um século antes de sua invenção. Caravaggio (1986), direção de Derek Jarman.

Na cena mostrada acima, não somente a máquina de escrever, mas toda a composição do quadro influencia a narrativa. Mostrar o personagem deitado na banheira num plano aberto, revelando a luz da janela que entra e a paleta de cores com tons de branco e marrom, remete ao estilo da pintura barroca de Caravaggio, personagem central do filme.

O filme é decupado pelo diretor, ou seja, o filme é dividido em planos que definem como será filmada cada cena. Usando como exemplo a cena de Caravaggio, ilustrarei como se classificam os planos numa decupagem2 no esquema a seguir:

2 Claro que a decupagem antecede à gravação e é mais complexa e descritiva, aqui apenas recorto os planos da cena e identifico os planos de modo e facilitar a compreensão.

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É preciso compreender que todos os setores caminham juntos e precisam estar em sintonia para que o filme seja bem sucedido. Direção de arte e direção de fotografia precisam estar ainda mais próximas, pois o que está na imagem captada pela câmera diz respeito diretamente a ambos e o erro de um pode acarretar o erro do outro.

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Figura 2 – Esquema de planos de cena do filme Caravaggio (1986), de Derek Jarman.

Através do esquema acima já podemos analisar o planejamento da cena. O diretor antecipadamente planeja o que será gravado em três planos – um próximo, um detalhe e um aberto. Mas, por que esse planejamento é importante para a equipe de fotografia e de arte? Primeiro, porque os planos são as ferramentas de trabalho do fotógrafo, determinam como se colocará a câmera – frontal, lateral etc – e também como será feita a luz. Se tivéssemos apenas o plano próximo e o plano detalhe e se eliminássemos o plano aberto, não seria necessário fazer uma luz recortada imitando uma janela, como vemos na terceira imagem. O mesmo acontece com a direção de arte. Se a cena mostrasse apenas o rosto do personagem de perto, teríamos a preocupação com a maquiagem e cabelo – no caso o figurino produziu o turbante–, mas no plano aberto temos a banheira, a toalha, toda a parede atrás etc. A decupagem do diretor, que corta em pedaços cada uma dessas cenas, serve como guia para as demais equipes, para que possam decupar de acordo com o seu trabalho. O som vai decupar comentando “som de máquina de escrever”, “som de água da banheira”, e o diretor de arte, por sua vez, fará as indicações necessárias para a composição da imagem como “banheira”, “turbante”, “máquina de escrever”, e assim por diante. Esse esquema é necessário para que no dia da gravação nada falte e o trabalho esteja de acordo com o objetivo estabelecido pela equipe. Cada integrante da equipe faz seu trabalho de pesquisa para que cada parte do processo seja bem realizada, como o figurinista, por exemplo, que fará uma pesquisa de como eram os cortes de cabelo, como se amarravam os turbantes etc.

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Dessa forma, o trabalho do diretor de arte é, além de criar o conceito da imagem, coordenar toda sua equipe. DURVAL DISCOS A primeira cena de Durval discos (2002) trata-se da apresentação de um ambiente rural, em câmera parada, onde menina Kiki (Isabela Guasco) está vestida com um macacão jeans e com tranças nos cabelos. Segue para a segunda cena que apresenta o bairro em São Paulo, no qual está a loja de discos de Durval (Ary França). A primeira cena nos mostra um ambiente estranho (rural), que não será mais visto ao longo do filme e, por isso, a menina se despede dos cavalos acenando para o ambiente – a câmera está parada –, até que a tela segue em preto com sons naturais de uma fazenda, com grilos etc., encontrando os sons dos carros e das buzinas da cidade que vão se misturando até tomarem por completo nossa atenção, e abrir novamente para a segunda cena, que emerge no ambiente do filme: a cidade de São Paulo. Essa cena é um plano sequência que mostra, inserida nos próprios elementos do bairro filmado, os créditos, diferente dos sobrepostos como vemos de costume. Filmar um plano sequência dá fluidez e unidade à cena, mostra o ambiente como um microcosmo reforçado pela música Mestre Jonas, versão interpretada pela banda “Os Mulheres Negras”, que fala sobre Jonas, um homem que vai morar dentro da barriga de uma baleia e não quer sair dela:

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Dentro da baleia mora mestre Jonas, Desde que completou a maior idade, A baleia é sua casa, sua cidade, Dentro dela guarda suas gravatas, seus ternos de linho. E ele diz que se chama Jonas, E ele diz que é um santo homem, E ele diz que mora dentro da baleia por vontade própria, E ele diz que está comprometido, E ele diz que assinou papel, Que vai mantê-lo dentro da baleia, Até o fim da vida, Até o fim da vida. Dentro da baleia a vida é tão mais fácil, Nada incomoda o silêncio e a paz de Jonas. Quando o tempo é mal, a tempestade fica de fora, A baleia é mais segura que um grande navio. E ele diz que se chama Jonas, E ele diz que é um santo homem,

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E ele diz que mora dentro da baleia por vontade própria, E ele diz que está comprometido, E ele diz que assinou papel, Que vai mantê-lo dentro da baleia, Até o fim da vida, Até o fim da vida, Até subir pro céu. Os créditos do filme poderiam estar fora dessa São Paulo de Durval, a barriga da baleia do filme de Anna Muylaert. Inserido nessa barriga de baleia, ambiente fechado em que Durval vive, as placas da cidade são transformadas de modo a apresentar o nome da produtora, o nome do ator que interpreta Durval – inserido numa máquina de fliperama –, o de outros atores, em folhetos presos em postes, placas de rua, cartazes de lanchonetes, etc.

O filme começa com uma cena emblemática, que introduz através de som e imagem o que cerca o personagem Durval e indica uma noção de dentro e fora presente em todo o filme. A direção de arte tem marcante presença ao trazer para a imagem símbolos que não poderiam ser dados apenas com a câmera e a luz, que dependem da escolha das cores e dos objetos que caracterizam o ambiente. Circular o bairro mostra que o ambiente aberto é, ao mesmo tempo, fechado para Durval, que vive imerso na loja – e isso se prova ao longo do filme, visto que o personagem nunca se afasta do que o circunda. O plano sequência termina com a câmera filmando Durval através da grade que protege o vidro de sua loja, mostrando o personagem aprisionado nesse espaço e no tempo. O filme se passa em 1995 e o personagem tem uma loja de discos de vinil e se recusa a vender CD’s, como nos é mostrado em seguida, quando um jovem entra

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na loja para comprar um CD e sentimos a irritação do personagem diante do cliente em busca da novidade. Durval diz: “Eu só trabalho com LP”.

Adentramos a loja de Durval, montada num ambiente pequeno, na sala da casa de sua mãe (Etty Fraser), que aparece na mesma cena varrendo o chão da loja como continuidade da casa. Durval é um homem de meia idade, solteiro, que ainda vive com a mãe, ainda usa o cabelo comprido e camisas de banda. Todos os objetos remetem a esse tempo na vida do personagem que parou, que não sucumbe à crise do LP, que não sai de casa para um emprego comum, que mantém uma relação quase infantil com a mãe. A personagem de Marisa Orth, Elizabeth, que trabalha na sorveteria ao lado, entra na loja para fumar um cigarro e conversar com Durval, comentando o que acontece lá fora, o movimento, os novos sabores de sorvete. O personagem flerta sutilmente, dizendo que qualquer dia irá até lá tomar um sorvete com ela.

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Durval preso à mãe, preso no tempo, flerta com Elizabeth, mas flerta mais ainda com o lado de fora: “Qualquer dia eu vou lá”. A relação dentro e fora é marcada principalmente pelo dentro construído pela direção de arte, que não acompanha o movimento e o caos do lado de fora.

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Na cena seguinte, Durval almoça com a mãe. O personagem pergunta por que ela não fez a carne – que ele gosta –, o doce de ovo queimado – ela esqueceu como se faz –, nem o feijão. À sua frente há uma panela de pressão e à frente da mãe, caixas de remédios. A câmera está parada, tudo parece parado naquele ambiente e Durval se queixa de tudo que muda, se queixa da ausência do feijão e sugere à mãe contratar uma empregada, só que ele não pode pagar. Novamente vemos a figura de um personagem envelhecido que ainda se veste e se porta como um garoto, dependente da mãe para tudo. Nesse plano, vemos os personagens cercados de objetos, colocados num canto apertado da cozinha. Também no canto da loja, atrás do balcão, Durval: “Olha essa casa, desse tamanhão”, diz o personagem. No entanto, durante o filme vemos os personagens sempre apertados nos ambientes, cercados por diversos móveis e objetos. Essa “casa enorme” é o mundo do personagem, que parece apertado, oprimido em seu mundo. As paredes de seu quarto são repletas de posters e colagens. Há uma luminária baixa que quase toca a cabeça de Durval, um homem alto que parece não caber mais naquele ambiente. Ele está preso em um tempo que já passou.

Quanto ao espaço no filme, FISCHER comenta: A vitrine de Durval discos instala um jogo de espelhos que revela ambivalentes, complexas imagens em que se alternam interioridades e exterioridades. Ao mesmo tempo em que expõe e exterioriza para a plateia do cinema, algo das entranhas sombrias do sobrado materno em que se abriga o protagonista, propicia a este último a oportunidade de acesso a imagens do lado de fora. À primeira vista, de fora para dentro, o interior pode parecer acolhedor ao observador externo; para seu ocupante, situado na posição inversa, o interior em que se aloja pode, uma vez vislumbrado o exterior, transmudar-se em prisão e clausura. (FISCHER, 2006, p. 3)

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Essa relação entre Durval e o mundo exterior acontece durante todo o filme e revela a solidão dos personagens de dentro, a mãe e Durval. Essa solidão aparece, primeiro, no flerte delicado com a garçonete e, depois, com a empregada (Letícia Sabatella) que desaparece, abandonando a garota Kiki, por quem a mãe de Durval se torna obcecada. Os personagens que entram e saem dessa loja perdida no tempo atraem os personagens aprisionados. Nesse contexto, a direção de arte contribui, ao lado da fotografia, para a criação de uma imagem claustrofóbica, perdida no tempo, extremamente pessoal desses personagens, imagem que se torna cada vez mais sombria conforme o filme prossegue. A imagem tem a força de nos ajudar a compreender o universo interior dos personagens e se modifica com ele. Nosso estranhamento se dá através da luz, da cor, da forma como os objetos se postam ali.

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Muitos planos do filme, como o exemplo acima, mostram os personagens “emoldurados”, como se estivessem sempre presos entre as paredes. Para isso, a fotografia os enquadra através das portas, e a direção de arte, por sua vez, preenche os espaços com muitos objetos, também alguns deles desfocados em frente à câmera.

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A paleta de cor tem muitos tons rosados, tratando-se da casa de uma senhora, mas também traz o tom acolhedor das cores quentes que sugerem ambientes menores, mais apertados. O mais interessante é que com o passar do filme algumas cenas ganham uma luz mais quente, que, misturada ao rosado, adquire uma coloração mais avermelhada, trazendo um desconforto, uma noção de sufocamento. Essa cor se dá em cenas de maior tensão, quando Durval está prestes a perder o controle. Há também mais escuridão e sombras, mas uma presença estranha de objetos infantis em meio a um caos que não condiz com eles.

A presença da personagem Kiki simboliza o novo, o que está do lado de fora, por isso mesmo, ela ganha o carinho dos personagens de dentro, mas os provoca e, no caso de Durval, causa ciúme da mãe que se encanta pela criança. Para ela, Kiki é novamente aquela criancinha que Durval foi um dia, ela traz a lembrança dos tempos remotos. Para Durval também, mas para ele encará-la é ver que seu tempo passou, que as coisas mudaram. As únicas vezes em que Durval tenta sair da casa da mãe são para levar Kiki embora, ela consegue, de fato, provocá-los a sair, mas logo a mãe de Durval clama que ele volte, que ele não se vá e, submisso, Durval cede (novamente) aos desejos de sua mãe. Interessante notar que o lado de fora, é sempre filmado com planos mais abertos – afinal, o mundo lá fora é enorme. Não é como a sufocante loja, a sufocante cozinha em que a mãe já não prepara mais o doce de ovo queimado de que Durval gostava. A relação edipiana entre mãe e filho se explicita quando a pequena Kiki pergunta: “Vocês são casados?”, trazendo à tona não somente a relação possessiva entre mãe e filho, mas a estranheza de ver ambos vivendo ainda juntos. Durval é um homem sempre marcado pela voz imperativa da mãe. E ele sempre cede, mesmo que deixe transparecer nervosismo e cansaço.

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Kiki é o mundo lá fora, com o qual Durval flerta. Ela o leva para fora e a mãe, desesperada, aprisiona Kiki, para manter também Durval. Mas a criança não é como ele, ela é livre, e quer o mundo lá fora, quer os cavalos. Diante disso, o elemento estranho, o cavalo, é trazido para dentro da casa pela mãe, já enlouquecendo com o medo da perda do amor. A mãe dá tudo que tem, gasta todo o dinheiro da poupança para comprar um cavalo e mantê-lo dentro da casa, onde ele não cabe. O amor possessivo da mãe de Durval ultrapassa os limites do racional. Nesse sentido, o cavalo branco, no quarto dela, com uma mulher morta sobre a cama e uma criança pintando a parede com sangue parecem absurdos, mas simbolizam os esforços que aquela senhora é capaz para não perder Durval. Pois se ele levar Kiki, se ele for para o lado de fora, ele, então, terá cedido pela primeira vez, à tentação de ser livre.

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Na cena acima vemos o quarto avermelhado, todas as situações em conjunto, culminando na perda de controle total da mãe. Finalmente, Durval não aguenta mais. Ele abre a janela e grita para que chamem a polícia. A mãe pede que ele faça tudo, mas não leve Kiki embora. No entanto, pela primeira vez, calmamente ele vai contra o pedido da mãe e entrega a menina para a polícia. E sai de dentro da loja. No último plano de Durval no filme, ele está do lado de fora dando um grande suspiro

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de alívio. Acabou. Durval enfrentou a mãe e deixou de ser um menino num corpo de homem, ele cresceu e o filme encerra com a loja sendo demolida. O CD superou o vinil, o tempo passou. REFERÊNCIAS FISCHER, Sandra. Durval discos: Interiores Devassados. Revista Caligrama, Belo Horizonte, vol. 2, no 3, setembro – dezembro, 2006. RABIGER, Michael. Direção de cinema. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. RODRIGUES, Chris. O cinema e a produção. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007.

FILMOGRAFIA: DURVAL DISCOS. Direção: Anna Muylaert. Produção: Sara Silveira e Maria Ionescu. Intérpretes: Ary França, Etty Fraser, Marisa Orth, Isabela Guasco, Letícia Sabatella. Distribuidora: Rio Filmes, 2002. Dvd Lançado por Europa Filmes, 2003.

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14 LISBELA E O PRISIONEIRO E A MONTAGEM FÍLMICA Bianca de Moura Pasetto1 A montagem pode ser entendida como o ponto central da linguagem fílmica. Conforme MARTIN (2003, p.132), “a montagem é a organização dos planos de um filme em certas condições de ordem e de duração”. Desta maneira, é necessário compreender anteriormente o conceito de plano: A definição expressa do plano já foi dada: é a porção do filme entre dois pontos de montagem. Quanto ao ponto de montagem, é uma interrupção do fluxo visual (adquiriu-se o hábito por “luminoscentrismo” de não levar em conta interrupções do fluxo sonoro para definir a unidade plana...)... A interrupção mais usual é o corte, que remete ao par de tesouras do qual nos servíamos antigamente para cortar a película. (JULLIER, MARIE, 2009, p.42)

O conceito de montagem foi essencial para o desenvolvimento do cinema como o conhecemos hoje. Os momentos históricos mais marcantes da arte cinematográfica tiveram, na montagem, o seu ponto de apoio para a inovação, exploração de significados, emoções e questionamentos, como as vanguardas e o cinema marginal. O cinema produzido em Hollywood também tem sua base na montagem, conhecida como montagem transparente, onde o espectador é conduzido ao longo da história, com o objetivo de não desviar a sua atenção. Estudo orientado pelo Prof. Doutorando Fabio Francener Pinheiro.

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A montagem fílmica existe a partir do momento que se deixou de contar histórias numa única cena e num único plano, tornando possível maior domínio sobre o tempo, espaço e também sobre a emoção do espectador.

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Neste sentido, é útil lembrarmos o poder da montagem em cenas bastante conhecidas do cinema brasileiro, como forma de ilustrar o efeito da montagem dentro de um filme e sua relação com a emoção do espectador. Abaixo, dois frames da sequência inicial de Cidade de Deus:

Figura 1: No primeiro frame, o bando de Zé Pequeno encontra-se com Buscapé. No segundo, Buscapé está em frente ao bando, procurando uma saída. Fonte: frames retirados do filme Cidade de Deus.

Essa sequência apresenta ao espectador os principais personagens do filme e, principalmente, o ritmo imposto pelo filme. A sequência, desenvolvida como uma perseguição e também como um embate entre personagens, é fundamental para criar expectativa em quem assiste. A montagem, como vemos no exemplo, tem uma função narrativa, com as mudanças de plano guiando a compreensão acerca da história. Nesse processo de construção, a figura do montador encontra-se em destaque, pois cabe a ele a função de organizar o filme segundo a orientação do diretor e do roteiro. Entretanto, o montador também possui uma influência criativa no processo, sendo que, muitas vezes, novos significados e sentidos podem ser criados no processo de montagem. A ideia de montagem esteve por muitos anos relacionada à ideia de organização narrativa do material em película, sendo que, atualmente, esse processo ocorre na maioria das vezes em formato digital onde, geralmente, o montador realiza a organização do primeiro corte e o editor realiza os ajustes para a versão final, utilizando-se de softwares de vídeo. O EFEITO KULESHOV Lev Kuleshov, um dos fundadores da Escola de Cinema de Moscou, contribuiu para o desenvolvimento das teorias de cinema. Seu nome é comumente associado ao experimento de montagem onde frames da imagem de um ator, com uma expressão neutra, são associados a outras três imagens separadamente: uma criança morta, um prato de sopa e uma mulher. Conforme imagem abaixo:

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Figura 2. Fonte: http://goo.gl/V6zGSF

O experimento, que ficou conhecido como Efeito Kuleshov, serviu para demonstrar o poder da justaposição de planos no entendimento do material fílmico e, consequentemente, da compreensão do espectador. Desta maneira, pode-se compreender que o espectador não reage a um elemento fílmico separadamente, mas, sim, à justaposição e a combinação entre diversos elementos fílmicos. TIPOS DE MONTAGEM Podemos considerar a existência de dois tipos de montagem, uma montagem narrativa e outra, expressiva. A montagem narrativa é a que se encontra mais próxima do entendimento geral de montagem. Conforme MARTIN:

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Nesse experimento, embora a expressão do ator seja sempre a mesma, a plateia via as imagens com admiração à expressividade do ator, que ora demonstrava profunda tristeza ao olhar para a criança morta, melancolia ao olhar para o prato de sopa, ou luxúria ao olhar para a mulher.

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Chamo de montagem narrativa o aspecto mais simples e imediato da montagem, que consiste em reunir, em uma seqüência lógica ou cronológica, e tendo em vista contar uma história, planos que possuem individualmente um conteúdo fatual, e contribui assim para que a ação progrida do ponto de vista dramático (o encadeamento dos elementos da ação segundo uma relação de causalidade) e psicológico (a compreensão do drama pelo espectador). (MARTIN, 2003, p.132).

A montagem narrativa desenvolveu-se principalmente nos Estados Unidos da América, com o cinema de D.W. Griffith e Edwin Porter. Eles começaram a perceber a capacidade de variação do ponto de vista e do uso de diversos planos em montagem paralela, ou seja, a capacidade dramática do cinema, distanciando-se do teatro. Outro aspecto importante da montagem narrativa é a ideia de que o espectador deve estar totalmente imerso na história, não sendo permitido, por tanto, o corte brusco. Desta maneira, sempre se busca o “corte invisível”. Segundo DANCYGER (2003, p. 368), “a montagem nunca deve confundir os espectadores, ela deve sempre mantê-los informados e envolvidos na história” No filme The Great train robbery, dirigido por Edwin Porter, em 1903, o cineasta utiliza-se da montagem narrativa para o desenvolvimento da história, mantendo a atenção do espectador diante das histórias que ocorrem em locais distintos e que, em determinado momento, irão se cruzar para o prosseguimento da narrativa.

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, Figura 3: Uma das sequências de perseguição do filme The great Train Robbery, de Edwin Porter. Fonte: http://goo.gl/sfdjIt

MOTAGEM EXPRESSIVA E OS TEÓRICOS DA MONTAGEM Outro modo de trabalhar é a chamada montagem expressiva. Segundo MARTIN (2003, p.132): Em segundo lugar temos a montagem expressiva, baseada em justaposições de planos cujo objetivo é produzir um efeito direto e preciso pelo choque de duas imagens, neste caso, a montagem busca exprimir por si mesma um sentimento ou uma ideia; já não é mais um meio, mas um fim: longe de ter como ideal apagar-se diante da continuidade, facilitando ao máximo as ligações de um plano a outro procura, ao contrário produzir constantemente efeitos de ruptura no pensamento do espectador.

Para os teóricos soviéticos, a alquimia da montagem conferia vida e brilho aos inertes materiais de base do plano individual. Os teóricos da montagem foram também, em certo sentido, estruturalistas avant La lettre, pois entendiam o plano cinematográfico como destituído de um sentido intrínseco antes de sua inserção em uma estrutura de montagem. Ou seja, adquiria sentido apenas em relação, como parte de um sistema maior.

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Para compreender a montagem expressiva, é necessário que se compreenda a origem dos conceitos de montagem. Foi na antiga União Soviética que os fundamentos da montagem começaram a se desenvolver. Vinculados ao Instituto Estatal de Cinematografia, os cineastas formulavam tanto questões estéticas e políticas quanto questões relativas à técnica cinematográfica. Embora fosse evidente a preocupação com a eficiência política, a popularidade e a capacidade de comunicar-se com a massa, havia também a preocupação com a construção e o experimento. Conforme STAM (2006, p.54):

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Sob alguns pontos de vista, o cinema passou a ser entendido como uma arte na qual era necessário organizar o olhar para, então, obterem-se sentimentos e percepções. Eisenstein, cineasta e teórico russo, foi o que ofereceu maiores contribuições ao desenvolvimento da técnica da montagem. O que Kuleshov entendeu como uma ligação entre as imagens, para Eisenstein era o conflito entre elas, que tornava possível o entendimento e, consequentemente, a reflexão sobre estas. Eisenstein, conforme STAM: Vislumbrava o potencial do cinema para estimular o pensamento e o questionamento ideológico por meio de técnicas construtivistas. Em lugar de contar histórias através de imagens, o cinema eisensteiniano pensa através de imagens, utilizando o choque entre planos para provocar, na mente do espectador, chispas de pensamento resultantes da dialética de preceito e conceito, ideia e emoção. (STAM, 2006, p.57).

Abaixo, alguns frames do filme A greve, de Sergei Eisenstein, que ilustram a ideia de choque entre planos.

Figura 6: Justaposição de imagens em A Greve, de Sergei Eisenstein. Fonte: http:// goo.gl/A6MKkc

A questão da montagem gerou divergências dentro das escolas russas. Vertov, outro cineasta e teórico do período, via a harmonia de intervalos implícita em todo o processo de produção do filme. Segundo seu manifesto, conforme STAM:

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Kinochestvo [kinotismo] é a arte de organizar os movimentos necessários de objetos no espaço em um todo artístico rítmico, em harmonia com as propriedades do material, os elementos da arte do movimento são os intervalos (as transições de um movimento a outro) e de modo algum os movimentos em si. São eles (os intervalos) que conduzem o movimento a uma resolução cinética. (STAM, 2006, p.62).

Abaixo, segue uma imagem dos frames de Um homem com uma câmera.

Figura 7. Fonte: http://goo.gl/w6C9w9

LISBELA E O PRISIONEIRO

Figura 4: Leléu, após fugir do marido traído ,Frederico, aparece no dia seguinte com seu show de variedades, enquanto Frederico está a sua procura.. Fonte: Frames retirados do filme Lisbela e o Prisioneiro.

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O filme Lisbela e o Prisioneiro (2003), dirigido por Guel Arraes, se utiliza essencialmente deste tipo de montagem para o desenvolvimento da história e para fixar a atenção do espectador. Não há criação de significados através do choque entre planos, ou a pretensão de causar no espectador algum desconforto, pelo contrário: o espectador sempre sabe o lugar e o tempo em que os personagens estão.

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No exemplo ilustrado acima, a cena é apresentada de maneira que a noção de que um dia se passou e de que o espaço ainda é o mesmo (a cidade) estão bem claras, percebidas de maneira natural pelo espectador. A montagem narrativa também se utiliza da relação entre planos para apresentar o envolvimento entre personagens que ainda não se encontraram na trama, mas que terão algum tipo de envolvimento ao longo do desenvolvimento da narrativa.

Figura 5: Lisbela na sala de cinema e Leléu no show de variedades. Fonte: Frames retirados do filme Lisbela e o Prisioneiro.

No exemplo ilustrado acima, Lisbela e Leléu ainda não se conheceram, mas a organização dos planos sugere que haverá uma relação entre os dois, visto que ambos são apresentados um em sequência do outro. Independente do tipo de montagem que melhor se adapte à ideia do filme, existem diferentes maneiras de ligar os planos. Não há uma regra específica para a resolução de problemas na montagem e edição. O montador depende do número de planos que foram filmados, sendo importante que haja planos de cobertura, para que se possa ter material de trabalho para cobrir possíveis erros. Para tanto, uma técnica bastante conhecida é cortar de um plano para outro em que o personagem esteja na mesma posição, ou em movimento, ou que haja algum objeto de ligação. Esta técnica é conhecida como raccord. O raccord caracteriza-se pela presença de um elemento formal de ligação entre dois planos, colaborando para a fluência e continuidade do filme. O objetivo é alternar os planos, de maneira que a ação faça sentido dentro da sequência. Assim, temos três tipos de raccord: o de movimento (ou ação), de elementos fixos e técnicos. Na figura abaixo, temos um exemplo de raccord de movimento, ou seja, a ligação entre um plano e outro acontece pela continuidade de algum movimento ou ação na cena, no caso, o movimento do personagem de abaixar-se próximo a gaiola.

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Figura 8: Exemplo de raccord de movimento. Fonte: frames retirados do filme Lisbela e o Prisioneiro

De acordo com DANCYGER (2003, p.370), “qualquer ação que ofereça um movimento ou um gesto diferente oferece oportunidade no plano para o corte. Quanto mais movimento acontece no quadro, maior é a oportunidade de cortar para o outro plano”.

Figura 9: O raccord acontece pelo movimento de retirar o frasco. Fonte: frames retirados do filme Lisbela e o Prisioneiro.

No exemplo acima, vemos como dois planos aparentemente desconexos dentro da narrativa, criam uma relação e mantêm a continuidade através do movimento e do objeto.

Figura 10: Exemplo de raccord de olhar. Fonte: Frames retirados do filme Lisbela e o Prisioneiro

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No raccord de olhar, a ligação entre os planos ocorre através do direcionamento do olhar dos personagens. No exemplo ilustrado abaixo, Lisbela olha para trás e, no plano seguinte, temos o plano com a direção do olhar da personagem.

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Nessa relação, primeiro mostra-se um personagem olhando para uma determinada direção – no caso, para trás – e, em seguida, quem ou o que –pois, pode ser um objeto – que o primeiro olha. Outro aspecto do raccord de olhar, é que temos acesso a subjetividade da personagem. O raccord é uma técnica muito utilizada no cinema clássico-narrativo, tendo em vista que o corte torna-se invisível, como forma de contribuir para a fluidez da narrativa. A elipse é uma maneira de condensarmos um espaço de tempo dentro da narrativa. No filme Lisbela e o prisioneiro este recurso é bastante utilizado, em especial pela opção de manter por meio da montagem um ritmo acelerado, quase de videoclipe, sem espaço para planos contemplativos ou planos de longas explicações acerca da narrativa.

Figura 11: Exemplo de elipses de tempo. Fonte: Frames retirados do filme Lisbela e o Prisioneiro

A elipse também pode ser espacial. No filme Lisbela e o prisioneiro este recurso é bastante utilizado para conferir ritmo à montagem. Quando Leléu chega na cidade e conhece Inaura, a cena é durante o dia. No plano seguinte, já vemos que é noite e que Inaura já esta com Leléu, apresentando-se em frente à igreja.

Figura 12: Exemplo de elipses de tempo. Fonte: Frames retirados do filme Lisbela e o Prisioneiro

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Com a utilização de novas mídias, a montagem cinematográfica recebeu influência de outros meios audiovisuais, como a televisão e, atualmente, vídeos que circulam em meios digitais. A influência da televisão no cinema é comentada por DANCYGER, a partir do sucesso do cineasta Richard Lester2: O sucesso de Lester em usar ângulos variados de câmera, imagens, inserts e ritmo significou que o público estava disposto a aceitar uma série de imagens diversas unificadas apenas pela trilha sonora. O ritmo acelerado sugere que o público está apto para acompanhar a grande diversidade e encontrar um significado mais rapidamente. O sucesso dos filmes de Lester sugere, de fato, que um ritmo mais rápido era desejado. O crescimento do ritmo da narrativa desde 1966 pode ser traçado desde o impacto dos filmes dos Beatles. Não apenas histórias se aceleram, mas o ritmo da montagem também. Como podemos ver em Meu ódio será sua herança (1969), de Sam Peckinpah, e Touro indomável (1980), de Martin Scorsese, planos individuais se tornaram progressivamente mais curtos. (DANCYGER, 2003, p.156).

O surgimento de canais especializados em videoclipe expandiu esta linguagem, caracterizada por planos de pouca duração, muitos cortes e unidade narrativa e ritmo construída a partir da música.

Sob estes aspectos, Lisbela e o Prisioneiro se apresenta com uma linguagem alinhada a essas características, com um ritmo rápido, uso de muitos inserts, cenas com o ritmo e o tom em sincronia com as músicas. A própria escolha do diretor e produtor para o filme, Guel Arraes, diretor de diversos programas televisivos, foi de encontro com a proposta de um cinema que remete claramente à linguagem televisiva, como forma de aproximar-se do público. Essa proposta de edição é percebida mesmo no trabalho anterior de Guel Arraes, entre eles o filme Caramuru – A invenção do Brasil, desenvolvido a partir de uma 2 Richard Lester: cineasta estadunidense que atua na Grã-Bretanha. Entre seus trabalhos está A Hard Day’s Night, filme realizado com os Beatles em 1964.

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Exemplo de imagens em videoclipe da cantora Céu. Fonte: http://goo.gl/sVLYjN

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minissérie de televisão. Características de programas televisivos, como o uso de planos médios, em detrimento de grandes planos gerais, planos de curta duração, onde sempre há uma ação ocorrendo, com o objetivo de manter a atenção do telespectador, visando os pontos de audiência, pouco uso de planos super fechados no rosto, visto que a resposta dramática em um televisor médio não equivale ao de uma grande projeção e utilização de uma trilha sonora popular, são elementos absorvidos em Caramuru – A invenção do Brasil e que se mantêm em Lisbela e o Prisioneiro. Neste último, a presença da trilha sonora é marcante, o que nos remete a um público acostumado com videoclipes e que aceita a unificação de uma série de imagens através da trilha sonora. Lisbela e o prisioneiro foi um dos filmes que chamou mais a atenção do público no período do lançamento, comunicando-se com um público jovem que até então desconhecia o cinema brasileiro. Essa escolha de público refletiu diretamente na linguagem escolhida para o filme, uma linguagem dinâmica, sem planos contemplativos, com ritmo acelerado ao som de músicas pop. O filme é um bom exemplo de convergência de linguagens para a construção da unidade narrativa, para a boa aceitação comercial, refletindo na edição toda a ideia construída visualmente do filme. REFERÊNCIAS DANCYGER, Ken. Técnicas de edição para cinema e vídeo: história, teoria e prática. 4. Rio de Janeiro: RJ Campus, 2003 JULLIER, Laurent e MARIE, Michel. Lendo as imagens do cinema. 1ª Edição. São Paulo: Senac Editora, 2009. MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2003. STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Tradução de Fernando Mascarello. Campinas: Papirus, 2006. XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal/Embrafilmes, 2003.

FILMOGRAFIA Caramuru, a invenção do Brasil. Direção: Guel Arraes. Produção: Globo Filmes. Intérpretes: Camila Pitanga, Débora Secho, Diogo Vilela, Selton Mello. Distribuidora: Columbia Pictures do Brasil, 2001. Cidade de Deus. Direção: Fernando Meirelles, Kátia Lund. Produção: Walter Salles, O2 Filmes, Vídeo Filmes. Intérpretes: Alexandre Rodrigues, Leandro Firmino da Hora, Seu Jorge, Matheus Nachtergale, Douglas Silva . Distribuidora: Imagem Filmes, 2002. A greve. Direção: Sergei Eisenstein. Produção: Boris Mikhin. URSS,1925. Lisbela e o prisioneiro. Direção: Guel Arraes. Produção: Lavigne. Intérpretes: Débora Falabella, Marco Nanini, Selton Virgínia Cavendish. Distribuidora: Fox Film do Brasil, 2003. The great train robbery. Direção: Edwin Porter. Um home com uma câmera. Direção: Dziga Vertov. URSS, 1929.

EUA,

Paula Mello, 1903.

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15 PRODUÇÃO FÍLMICA: O REALISMO EM S. BERNARDO, DE LEON HIRSZMAN Salete Paulina Machado Sirino

Enquanto Graciliano Ramos, por meio do romance S. Bernardo (1934), expressava sua crítica ao capitalismo inerente ao sistema latifundiário do Nordeste brasileiro, em plena ditadura da Era Vargas, Leon Hirszman, com a intenção de criticar o capitalismo que provocava a reificação do homem – as relações humanas são dotadas de preços e transformadas em mercadorias –, percebe, na adaptação cinematográfica desse romance, a oportunidade de materializar a crítica social que pretendia.

Da mesma forma que texto e contexto são fundidos e se tornam um só na materialidade da narrativa literária, no cinema, todo o trabalho inerente ao processo de produção e pós-produção se concretiza a partir das imagens captadas pela câmera. Entretanto, ressalta-se que nenhum trabalho se sobrepõe ao outro, tendo em vista que todas as atividades inerentes à produção cinematográfica mantêm uma relação de dependência uma com a outra.

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Ao passo que os romances são elaborados por meio dos artifícios que compõem a estrutura narrativa – narrador, enredo, personagens, espaço e tempo –, nos filmes, os elementos que compõem a estrutura narrativa são materializados por meio do trabalho das equipes de direção, produção, arte, fotografia, som direto, finalização de imagem e som, sob a perspectiva do diretor. Na literatura e no cinema, ao optar-se pela estética realista, todo processo de artificialidade é realizado com foco na materialização de imagens do real pretendidas – conteúdo fílmico.

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Dadas as condições limitadas de recursos financeiros que Leon Hirszman dispunha para a realização deste filme, o empenho na preparação, na decupagem do roteiro, nos excessivos ensaios com o elenco no set de filmagem, foram fundamentais para o resultado final deste, que, quarenta anos depois, ainda pode ser visto como um modelo de filme de estética realista, tanto em termos de linguagem quanto em aspectos de produção. A realidade de produção – o filme dispunha, por exemplo, de pouco aparato de equipamentos de fotografia, negativos1, equipamentos de iluminação e maquinaria –, certamente, influenciou a elaboração do plano de filmagem. A respeito da produção e direção do filme São Bernardo, o historiador e crítico de cinema, Paulo Emílio Salles Gomes entrevistou Leon Hirszman. Essa entrevista, realizada com vistas à publicação na Revista Argumento – que teve quatro edições entre 1973 e 1974 –, permaneceu inédita até 2005. Parte dessa entrevista integra o livro2 que acompanha o DVD do filme São Bernardo, lançado pela Vídeo Filmes. Não escolhi São Bernardo porque somente gostasse do romance, mas porque esperava que ele pudesse contribuir bastante para discutir o momento que estamos vivendo no Brasil. Não foi uma escolha fácil, Nelson Pereira dos Santos, em 1951, já havia tentado fazer uma adaptação cinematográfica. E propusera a Graciliano a supressão do suicídio de Madalena, o que contrariou o escritor. Ele queria que o suicídio fosse mantido por ser um dos momentos mais importantes do livro, quando o leitor deixa de acompanhar a confissão do narrador, Paulo Honório, e transfere sua atenção para Madalena. Uma das minhas grandes preocupações ao fazer o filme foi com a fidelidade de São Bernardo. Durante o processo me dediquei a desenvolver um trabalho coletivo de discussão do livro e de alguns ensaios sobre ele. Discutimos, por exemplo, o ensaio de Antônio Cândido, de Tese e antítese. Ao mesmo tempo, esta fidelidade não significou a perda do prazer em filmar. (GOMES, 2008, p. 26).  

Pela reflexão acima, constata-se a posição ideológica de Leon Hirszman frente ao momento histórico em que estava inserido. Tal como outros cineastas do movimento Cinema Novo3, Hirszman tinha em vista a relação dialética do cinema Filme – película – fotográfico em 35mm.

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O Projeto Leon Hirszman, uma produção de Lauro Escorel – Cinefilmes Ltda, que contou com o apoio do Ministério da Cultura e da Cinemateca Brasileira, com o patrocínio da Petrobrás – Projeto Petrobrás Cultural, resulta, entre outros, no restauro digital do filme São Bernardo, de Leon Hirszman, o qual foi lançado em DVD acompanhado de um livro composto por entrevistas e textos a respeito da obra deste cineasta, pela Vídeo Filmes. 2

3 No texto Estética da Fome, Manifesto de Glauber Rocha, encontra-se o conceito estético do Movimento do Cinema Novo brasileiro: “Já passou o tempo em que o cinema novo precisava explicar-se para existir: o cinema novo necessita processar-se para que se explique à medida que nossa realidade seja mais discernível à luz de pensamentos que não estejam debilitados ou delirantes pela fome. O cinema novo não pode desenvolver-se efetivamente enquanto

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no momento de encontro com o espectador. Ressalte-se que o auge deste movimento, de forte influência do Neo-Realismo italiano e da Nouvelle Vague francesa, foi contemporâneo aos acontecimentos mundiais que marcaram o ano de 1968, nos quais o pensamento marxista tem forte presença e acaba por influenciar, em especial a produção acadêmica e artística, o que resulta em expressão crítica frente aos poderes econômicos e políticos, vigentes à época. Contudo, no Brasil, este também é o ano em que entra em vigor o AI-5, Ato Institucional da Ditadura Militar, que implica em forte golpe aos direitos democráticos dos cidadãos brasileiros, dentre eles, o de expressão artística, intelectual e política. Diante desse contexto, o que um cineasta anticapitalista, a exemplo de Leon Hirszman poderia fazer? Calar-se? Jamais! Tanto é assim que vislumbrou, na adaptação da literatura para o cinema de São Bernardo, uma forma de materializar sua crítica sobre a coisificação do homem, causada pelo sistema capitalista. A imagem a seguir é o primeiro enquadramento do filme São Bernardo (1972), de Leon Hirszman. O ator Othon Bastos interpreta o personagem Paulo Honório. Enquanto toma café, olha em direção à câmera e em off: “Continuemos... Tenciono contar a minha história.Difícil. Talvez deixe de mencionar particularidades úteis, que me pareçam assessórias e dispensáveis...”

Coloca a xícara no pires, pega a canetatinteiro e começa a escrever sobre o papel que está entre a xícara de café e o tinteiro da caneta. CINEMA BRASILEIRO: FORMA E CONTEÚDO

permanecer marginal ao processo econômico e cultural do continente latino-americano; além do mais, porque o cinema novo é um fenômeno dos povos colonizados e não uma entidade privilegiada do Brasil.” http://memoriasdosubdesenvolvimento.blogspot.com.br/2007/06/ esttica-da-fome-manifesto-de-glauber.html

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No mesmo enquadramento1, nas sequências de sua fala em off, assim como no livro, traz o leitor para dentro da narrativa fílmica: “Também pode ser que habituado a tratar com matutos, não confie suficientemente na compreensão dos leitores e repita passagens insignificantes. De resto isto vai arranjado Silêncio. A voz em off pára e a ênfase da cena passa para a ação do protagonista acendendo seu charuto.

Fumando o charuto e olhando em direção à câmera, em off: “O meu fito na vida foi apossar-me das terras de São Bernardo, construir esta casa, plantar algodão, plantar mamona, levantar serraria, descaroçador, introduzir nestas prenhas a pomicultura e avicultura, adquirir um rebanho bovino

Essas cenas iniciais, em um minuto e vinte segundos, um mesmo quadro, sem cortes, são mostradas em um plano conjunto do espaço de uma sala de jantar de uma fazenda, o personagem enquadrado a meio corpo, sentado à mesa. A câmera fixa assume o ponto de vista do olhar do espectador. O movimento desta sequência é pró-fílmico – a personagem se movimenta em relação à câmera: Paulo Honório toma café, coloca a xícara no pires, abastece a caneta com tinta do tinteiro, começa a escrever, acende o charuto, coloca a caixa de fósforos próxima ao tinteiro, fuma o charuto, solta a fumaça inalada do charuto, olha para o espectador. Em termos de produção de arte, tudo o que está dentro do quadro foi preparado durante a fase da pré-produção – etapa que antecede à de produção, a de captação de imagem e som. O figurino, que o personagem Paulo Honório está usando, e a composição do cenário e adereços, remetem ao período histórico representado no filme – móveis da sala, toalha sobre a mesa, xícara, papel, caneta-tinteiro, charuto, fósforos. Ou seja, todos estes elementos que serão filmados pela câmera são preparados anteriormente à etapa de filmagem. Os ensaios com o elenco acontecem durante a fase de preparação e são intensificados no momento de produção, no set – com a marcação das ações das personagens e da luz sobre estas, como também em relação ao enquadramento pretendido.

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Para as filmagens de São Bernardo (1972), a direção e a produção conseguiram a captação de som direto da fala das personagens simultaneamente à captação de imagem. À época, a prática mais comum era a da dublagem das falas depois da filmagem. Na finalização fazia-se o sincronismo de imagem e som. Com este processo de captação de som direto, em vista do forte ruído das filmadoras de 35 mm, como a usada para filmar São Bernardo, a câmera precisava ser blimpada para que se inibisse seu som. Em todo caso, a narração em off foi gravada em estúdio, durante a etapa de pós-produção/finalização de imagem e som. Neste filme, a narração por meio da voz em off materializa as memórias deste personagem. Tais memórias do passado tanto clarificam ações do presente, quanto desnudam, por meio da dialética entre passado e presente, o mundo interior do personagem. Portanto, tal qual no livro homônimo de Graciliano Ramos, no filme há a presença do narrador Paulo Honório – narrador-personagem-protagonista. O artifício da narração, em termos estéticos, remonta às origens do livro, que tem a finalidade de iluminar o presente do protagonista por meio das falas que narram o seu passado. As cenas que emanam dessa narração, tanto no filme quanto no livro, são criadas no imaginário do espectador. Para este cineasta, o rigor pela forma estava em primeiro lugar, uma forma que fosse capaz de imprimir o realismo crítico almejado. Nesse sentido, em plena ditadura militar, inspira-se em um romancista, Graciliano Ramos, que por meio da forma literária recriara certa realidade – sob o viés crítico – e propiciara o encontro desta com o leitor. Leon Hirszman, como leitor de Graciliano Ramos, transcende este primeiro encontro – livro e leitor –, pois traduz a realidade recriada no romance em outra linguagem, a do cinema.

As imagens a seguir referem-se às sequências finais do filme. Nelas torna-se possível a percepção dos artifícios que estruturam o discurso fílmico, evidenciando que a forma pela qual o diretor concebeu o trabalho desses artifícios demarca seu estilo, como também propicia ao espectador uma poiesis da qual ele não pode ser meramente contemplativo.

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Outra questão econômica superada pelo processo de produção refere-se à escolha de locação: o filme foi rodado praticamente na locação que reproduziu a fazenda São Bernardo, cujo set de filmagem também foi utilizado como base de produção – QG –, que servia tanto para os serviços relacionados ao planejamento e organização da produção do filme quanto para o alojamento da equipe. Essa opção econômica também contribuía para a estética fílmica, uma vez que possibilitava a imersão da equipe artística e técnica no mundo ficcional que estava sendo construído para o filme São Bernardo.

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Após a morte de Madalena, Paulo Honório passa pela varanda e segue em direção a uma sala na lateral desta varanda. De repente, tela escura. Então, ele surge com a chama de um palito de fósforo aceso nas mãos. Fora de campo, surge o som do canto dos trabalhadores.

Neste momento, numa espécie de documentário, em plano geral, há a imagem de trabalhadores rurais, a voz off do narrador mescla-se aos cantos destes trabalhadores: “Faz dois anos que Madalena morreu. Dois anos difíceis. Sou um homem arrasado. Doença? Não. Gozo perfeita saúde. Até hoje, graças a Deus, nunca um médico me entrou em casa”. PG2 de uma mulher negra trabalhando. Continua o canto dos trabalhadores e a voz em off: “Não tenho doença nenhuma. Está visto que cessando esta crise...”

PG de duas mulheres trabalhando. Segue o canto dos trabalhadores e em off: “a propriedade se poderia reconstituir e voltar a ser o que era. A gente, doido, se esfalfaria de sol a sol, alimentada com farinha de mandioca e barbatanas de bacalhau. Caminhões rodariam novamente, conduzindo mercadorias para a estrada de ferro. A fazenda se encheria outra vez de movimento e rumor”. PG dos trabalhadores rurais. Continua o canto dos trabalhadores mesclado à voz do narrador: “mas, para quê? Para quê? Então me diriam: nesse movimento e nesse rumor, haveria muito choro e haveria muita praga. As criancinhas, nos casebres fúnebres e frios, murchariam ruídas pela verminose. Madalena não estaria aqui para mandarlhes remédios e leite”.

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Ao som do canto dos trabalhadores e da narração em off, neste quadro fílmico, em plano geral, uma casa de barro e sapê e uma grande família que deduz-se morar nela: “Os homens e as mulheres seriam animais tristes. Bichos!”

PPP3 do rosto de uma mulher na lateral da parede de uma casa de barro, o canto dos trabalhadores e a voz do narrador: “As criaturas que me serviram durante anos eram bichos. Havia bichos domésticos como Padilha, bichos do mato como Casimiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do campo, bois mansos”.

Em PPP, o rosto de uma criança. Ao canto dos trabalhadores, o off: “Coloquei-me acima da minha classe, evolui bastante, estou certo que a escrituração mercantil, os manuais de agricultura e pecuária que forneceram a essência da minha instrução não me tornaram melhor do que eu era quando arrastava peroba”.

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Em PG, uma casa de barro e sapê, a família e o cachorro, enquanto continua o canto dos trabalhadores e a voz do narrador: “pelo menos naquele tempo não esperava ser o explorador feroz em que me transformei. Julgo que me desnorteei numa errata. Hoje, não canto nem rio”.

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A CAM enquadra em PP4 Paulo Honório encostado a uma mesa, como a olhar para o espectador. Uma vela acesa quase toda queimada. Pouco antes de entrar a voz, cessa o canto dos trabalhadores: “Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos? Para que enganarme? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me. É o que mais me aflige. Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos se esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo. Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins e a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda parte. A desconfiança é também consequência da profissão”. Em PPP, a câmera fecha no rosto de Paulo Honório com a cabeça deitada sobre a mesa: “Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo. Lacunas no cérebro. Nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme. Uma boca enorme. Dedos enormes. É horrível. Se aparecesse alguém... Estão todos dormindo. Se ao menos a criança chorasse. Nem sequer tenho amizade ao meu filho. Que miséria! Casimiro Lopes está dormindo. Marciano está dormindo. Patifes! E eu vou ficar aqui às escuras, até não sei que hora. Até que morto de fadiga encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos”. Após essa fala, há um escurecimento.

As falas em off inseridas nas imagens acima – nas dos trabalhadores rurais e nas imagens do personagem Paulo Honório – são, praticamente, uma reprodução fiel dos parágrafos que encerram o livro São Bernardo, de Graciliano Ramos, o qual serviu como roteiro a ser seguido para toda equipe técnica e artística do filme – antes de irem para o set, eram orientados pelo cineasta a lerem ou relerem esse romance. Nesta fala, está clara a crítica ao sistema capitalista que provoca a coisificação humana, os homens eram vistos como: “bichos domésticos como Padilha, bichos do mato como Casimiro Lopes, e muitos bichos para o serviço do campo, bois mansos.” Como no livro, também há a crítica ao determinismo, pois, embora Paulo Honório tenha consciência de seus erros que o deformam: “Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo. Lacunas no cérebro. Nervos diferentes

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dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme. Uma boca enorme. Dedos enormes. É horrível!”, afirma que, se tivesse a oportunidade de voltar atrás: “aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me. É o que mais me aflige”. Leon Hirszman pontua sobre o que o motivou – a ele e a outros cineastas – a buscar na literatura brasileira da década de 1930 a fonte estética para a produção de filmes do Cinema Novo. Com o surgimento de vários filmes que dialogavam com a literatura, parece que estamos tendo uma espécie de continuidade no processo cultural brasileiro. Os filmes do pessoal ligado ao movimento renovador do cinema brasileiro da década de 1960, além de críticos, estiveram intimamente ligados à literatura nacional. Basta citar Macunaíma, Vidas secas ou A hora e vez de Augusto Matraga, que são marcos desta importante relação. Assim sendo, meu novo filme, São Bernardo, acaba entrando nesta tradição. E como cineasta, minha adaptação do livro é antes uma tentativa de contribuir para a discussão de diversos temas que estão presentes em Graciliano Ramos. (GOMES, 2008, p. 26).

Para esse cineasta, o Cinema Novo era um movimento renovador do cinema brasileiro, pautado no viés da crítica social, que motiva, inclusive, a adaptação de obras literárias da segunda fase do modernismo brasileiro – 1930-1945 –, que tinham como premissa estética o realismo, o regionalismo e a forte crítica social. A afirmação desse cineasta – com a produção de São Bernardo, ele dizia ter entrado na tradição da literatura de 1930 – pode ser entendida, também, como ter ingressado no processo de realização do Cinema Novo, de cuja base produtiva pode ser lema a expressão “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”. Era possível, longe dos estúdios babilônicos, fazerem-se filmes no Brasil. E no momento que muitos jovens se libertaram do complexo de inferioridade e resolveram que seriam diretores de cinema brasileiro com dignidade, descobriram também, naquele exemplo, que podiam fazer cinema com ‘uma câmera e uma ideia’ – este lema valeria, em 1961, como meu cavalo-de-batalha nas páginas do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. (GLAUBER, 2003, p. 106).

Houve um trabalho criativo meu, das relações objetivas, materiais, de mercado, que encontramos em um processo de filmagem e produção. É o caso de eu ter optado por poucos movimentos de câmera.

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O lema “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão” referia-se à postura crítica dos cineastas cinema-novistas frente ao cinema industrial realizado pelos estúdios brasileiros e pelo cinema hollywoodiano – colonizador –, e era também uma síntese do sistema de produção do cinema novo. Ou seja, além da intenção de uma estética realista, tinham consciência das parcas condições que dispunham para a realização de filmes. Por isso, esse lema representaria tanto o conteúdo fílmico pretendido como também a disposição de filmá-lo com os recursos que pudessem viabilizar.

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O ato de realizar um filme, mesmo sendo uma adaptação, é o ato de criar novas frentes, desenvolver outras preocupações que ainda não haviam sido exploradas no livro. É tarefa de todo cineasta, por exemplo, perceber as condições gerais do mercado em que está inserido. Todas as pessoas ligadas ao cinema deveriam estar atentas para esse fato, essa nossa especificidade, lembrando que há ainda a censura, que muitas vezes dificulta ainda mais o nosso problema econômico. (GOMES, 2008, p. 26-27).

Essa fala de Leon Hirszman na entrevista a Paulo Emílio Salles Gomes evidencia a articulação entre os processos criativo e produtivo de cinema. As condições que o diretor tinha para a realização de São Bernardo acabaram interferindo na concepção estética do filme: optou-se por uma fotografia com poucos movimentos de câmera, com raras repetições de filmagens, dada a escassez do filme virgem, uma única tomada para a maioria dos planos. Constata-se, então, que, na construção do discurso fílmico de São Bernardo, o rigor estético concebido por Leon Hirszman o insere no contexto do cinema de autor: na caracterização e na condução da interpretação das personagens; na composição dos cenários e adereços; nos planos longos; na ênfase dos enquadramentos em plano conjunto das personagens e espaço, que remetem a um teatro filmado; no olhar do protagonista em direção à câmera, que, por sua vez, assume a perspectiva do espectador, em especial das cenas iniciais e finais; no off do narrador que, por meio de um trabalho sensível de montagem, dialoga com a intenção dramática e a duração dos planos fílmicos; na trilha pontual – em poucas cenas –, com música de Caetano Veloso, que, para a época, cria uma inovação ao compor uma música a partir de sons vocais duplicados em dois ou quatro canais, a partir da emoção que as imagens suscitam no músico. O estilo de Leon Hirszman nesse filme não deixa dúvidas ao espectador: ele está diante de uma obra artística – uma ficção poética. Os artifícios que caracterizam o filme foram pensados para materializar uma estética realista – realismo crítico – pretendida pelo diretor, fato evidenciado tanto pela força dada ao texto de Graciliano Ramos, por meio das falas de Madalena e de Padilha – relativas ao comunismo e socialismo, em oposição ao capitalismo de Paulo Honório, que enxerga os trabalhadores como “muitos bichos para os serviços do campo” –, quanto pela audácia do diretor em transcender os limites dos muros da ditadura militar e inserir durante as falas do narrador-personagem imagens reais do trabalho e do canto rural. SÃO BERNARDO: A FOTOGRAFIA DE LAURO ESCOREL No processo de produção do filme São Bernardo (1972), de Leon Hirszman, o romance São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, foi tomado como roteiro. Ao convidar elenco e equipe, um exemplo é o diretor de fotografia, Lauro Escorel, uma

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das primeiras orientações do cineasta era a leitura do romance. A releitura do livro acompanhou todas as etapas de produção – captação de imagem e som – do longametragem: era comum o diretor se reunir com o elenco e com a equipe para relerem e discutirem o texto de Graciliano, como também para traçar os aspectos relativos à composição da mise-en-scène que seria materializada a partir deste romance. Partindo do pressuposto de que, na realização, todo o trabalho das equipes de direção, produção, arte, som direto e finalização de imagem e som, é condicionado pela composição da fotografia – câmera, luz e maquinaria –, concebida esteticamente pelo diretor e materializada pela equipe de fotografia comandada por Lauro Escorel, é importante refletir sobre os elementos de cada quadro, todos eles inspirados por uma estética realista capaz de representar – e atualizar – determinada realidade social presente no romance. Dada a pretensão deste capítulo em estudar como o realismo crítico é materializado em discurso cinematográfico, comparemos, a seguir, a entrevista4 com Lauro Escorel, diretor de fotografia de São Bernardo (1972), com a análise de algumas imagens, visando elucidar o potencial da memória relativo ao processo de criação e recriação estética desta obra, como também dos recursos viabilizados para realizá-la. As lembranças de Escorel, portanto, podem ser aproximadas à reflexão sobre o realismo no cinema, de BAZIN (1992, p. 284): “Tanto o real como o imaginário em arte só pertencem ao artista, a carne e o sangue da realidade não são mais fáceis de reter nas redes da literatura ou do cinema do que as fantasias mais gratuitas da imaginação”.

Em resposta à questão sobre o processo da composição dos enquadramentos, movimentação e angulação de câmera e luz, Lauro Escorel argumenta: Depois de tanto tempo me é difícil ser muito preciso nas respostas à suas perguntas, Salete. As respostas serão mais lembranças do que certezas. Assim, lembro da meticulosidade com que enquadrávamos o filme. Leon tinha um senso de composição admirável, ambos admirávamos o trabalho de Eisenstein5 e seu fotógrafo Eduard Tissé em filmes como ‘Ivan, o terrível’, ‘O encouEntrevista cedida por Lauro Escorel à autora deste texto, em 20 de janeiro de 2014.

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Serguei Mikhailovitch Eisenstein, cineasta e teórico de cinema, com importante

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Considerando o argumento de BAZIN, para quem, em arte, o realismo provém de artifícios, a entrevista com o diretor de fotografia de São Bernardo contribui para a reflexão sobre o rigor estético impresso por Leon Hirszman, moldado, também, pelas condições – bens e serviços – disponíveis para levar o filme São Bernardo para o cinema, quase três décadas após a publicação do romance homônimo de Graciliano Ramos, no ápice do movimento do Cinema Novo e num dos momentos mais obscuros da ditadura militar.

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raçado Potemkin’, ‘A greve’ etc. Por isso mesmo, os enquadramentos foram nascendo naturalmente a partir do olhar do Léon sobre as cenas que eram montadas de forma consensual. O filme foi todo muito bem planejado pelo Leon, que era o produtor além de diretor. A limitação de recursos financeiros e técnicos foi determinante no estilo geral do filme. Uma câmera muito pesada quando trabalhando com som direto, escassez de filme virgem e modestíssimo parque de iluminação têm muito a ver com o resultado deste trabalho. A câmera em movimento era contraponto expressivo à maioria dos planos fixos que fazíamos. Podemos contar nos dedos da mão quantas vezes isso acontece ao longo de todo o filme. Era meu primeiro filme como diretor de fotografia e Leon foi decisivo para o resultado, ao me conduzir com enorme delicadeza pelo caminho desejado. Nas nossas conversas preparatórias pensamos na melhor maneira de utilização da luz natural. Os horários de filmagem de muitas das cenas foram determinados pela necessidade do melhor aproveitamento da luz nos diferentes espaços. Isto também era muito importante porque, na época, o filme era muito pouco sensível à luz e, muitas vezes, filmamos no único horário em que o nível de luz permitia imprimir uma imagem. Os atores eram ensaiados à exaustão e, quando chegava a hora certa para a luz, faziam a cena, sem direito ao erro. Trata-se de um filme de take 1 na sua maior parte.

Sobre as condições de produção – equipe, equipamentos e filme – para a realização da fotografia de São Bernardo, Lauro Escorel diz: Feito escrito acima, foi um filme feito por pouquíssimas pessoas e com pouquíssimos recursos técnicos e financeiros. Não foi de forma alguma um filme fácil de fazer. Tudo era contado, principalmente o filme virgem. Filmávamos e enviávamos o material para ser revelado no Rio de Janeiro. Aproximadamente uma semana depois, o sócio do Leon, o Marcos Farias, nos telefonava para dizer se estava tudo bem com o material. Nós só assistíamos passada mais uma semana, depois da última sessão, no único cinema de Viçosa. Geralmente a imagem era escura, fora de foco. [Risos]. Mas vibrávamos com o que víamos. O entusiasmo do Leon era contagiante.

A respeito do processo de pós-produção/finalização da fotografia deste filme, Lauro Escorel pontua: O filme foi finalizado na Líder Cine Laboratórios de São Paulo. O trabalho de marcação de luz foi feito com muita arte pela Nádia Valesciko. Eu havia feito fotos com filme Ektachrome das cenas, durante a filmagem. Este filme reverparticipação no movimento de arte de vanguarda da Rússia, na Revolução de 1917 e na consolidação do cinema como um meio de expressão artística e de crítica social. Reconhecido mundialmente, tanto por seus filmes quanto por suas teorias sobre cinema, dentre elas, sobre a criação da técnica de montagem cinematográfica – montagem intelectual. Dentre seus filmes, destacam-se: A greve (1924), O encouraçado Potemkin (1925), Outubro (1927), Alexandre Nevski (1938), Ivan, o terrível, (1944, parte I e 1945 parte II).

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sível me dava uma referência de luz e cor muito precisa e com isso buscamos aproximar ao máximo possível a imagem filmada a estas fotos. O filme foi copiado em material positivo Orwo, de baixa saturação e baixo contraste, o que contribuiu positivamente, creio, para o ‘aspecto’ final da fotografia do filme.

Com referência a um possível paralelo entre a fotografia dos seus filmes mais recentes e a de São Bernardo, Lauro Escorel esclarece: São Bernardo foi o primeiro filme de longa-metragem que fotografei. Filme de aprendizado, de por em prática as ideias, de experimentação. Feito com pouquíssimos recursos, o que me obrigou a inventar soluções ao longo da sua filmagem. Tive um diretor de enorme talento ao meu lado e isso contribuiu decisivamente para minha formação como diretor de fotografia. Hoje trabalhamos com muito mais experiência e recursos técnicos. O meu olhar amadureceu, se transformou ao longo de todos estes anos e [outros] projetos foram realizados, mas o ponto de partida e referência permanente é sempre São Bernardo.

Com relação ao pressuposto de que a fotografia em um filme é a responsável pela materialização de imagens do real, e à como se percebe a relação forma – elementos que compõem o quadro fílmico – e conteúdo, Lauro Escorel enfatiza:

As lembranças de Lauro Escorel evidenciam que a forma de utilização dos artifícios relativos à fotografia em cinema – equipamentos de câmera, luz e maquinaria – acaba por determinar o processo da materialização do real pelo discurso fílmico. Articulando as memórias de Lauro Escorel sobre a realização de São Bernardo (1972) – etapa de filmagem – à análise do filme concluído, torna-se possível a constatação de que o realismo nesse filme transpassa a premissa estética, as reais condições de produção interferiram, inclusive, na duração de determinadas sequências. Exemplo disso é a reflexão de Lauro Escorel – nos extras do DVD deste filme, lançado em 2008, pelo Projeto Leon Hirszman – sobre a filmagem da sequ-

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Acho que da forma já falei acima. Não sendo um teórico, resisto na resposta. O livro foi para todos nós a maior referência e fonte de informação/inspiração. Lembro de encontros com Leon e [Luiz Carlos] Ripper, onde cores, figurinos e objetos do cenários forma esmiuçados. Lembro de se falar da necessidade de preservar a austeridade do mobiliário e objetos da fazenda. Nada de adornos. Houve contenção na paleta de cores, mesmo tendo que ser necessário mostrar a fazenda inicialmente em ruinas e, depois, no seu apogeu. Ripper desenhou o percurso cromático do filme. Como responsável por roupas e cenários, o fez de forma muito harmônica. Uma beleza! Os enquadramentos tinham muito poucos elementos, uma imagem despojada de adornos, onde os atores e o texto de Graciliano tinham total primazia. Todos sabíamos os diálogos de cor e os citávamos, amiúde, fora do set.

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ência à mesa de jantar na fazenda: após o ensaio com os atores, essa sequência teria duração em torno de seis minutos, no entanto, só tinham uma lata de quatro minutos de negativo em 35 mm para rodá-la. Para solucionar este problema, Leon Hirszman trabalhou exaustivas horas de ensaio, até que a cena durasse pouco menos de quatro minutos sem se afastar do rigor estético por ele pretendido. Apesar de cuidadosamente decupado o roteiro, a realidade de produção acaba por interferir na forma fílmica planejada. A análise da sequência do jantar na fazenda São Bernardo visa exemplificar a predominância de planos de conjunto – personagens e espaço; planos longos, câmera fixa, pouca utilização de luz artificial, a mescla da voz do pensamento – off do narrador – ao diálogo da cena, ausência de trilha musical.

No jantar na fazenda, um plano de conjunto6 – sala de jantar e personagens sentados à mesa –, enquanto Paulo Honório e Madalena jantam com os convidados, conversam: Padre Silvestre: “Realmente, deve ser uma delícia viver em São Bernardo”. Paulo Honório: “Para os que vêm de fora. Aqui a gente se acostuma. Eu não cultivo isso como enfeite, é pra vender”. Gondim: “As flores também?” Paulo Honório: “Tudo. Flores, hortaliças, frutas.” Padre Silvestre: “Está aí o que é ter consciência, se todos os brasileiros pensassem assim, não teríamos tanta miséria.” Doutor Nogueira: “Política, Padre Silvestre?” Padre Silvestre: “E por que não? O senhor há de confessar que estamos à beira de um abismo”. 6 Plano de conjunto – PC: apresenta as personagem, grupo de pessoas no cenário, permite reconhecer os atores e a movimentação de cena. Tem função descritiva e narrativa.

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Padilha: “Apoiado”. Gondim: “Que abismo?” Padre Silvestre: “Esse que se vê, é a falência do regime, desonestidades, patifarias”. Doutor Nogueira: “Quais são os patifes? Quais são os patifes?” Padre Silvestre: “Ora essa, não compete a mim acusar ninguém? Mas, os fatos são os fatos. Observe”. Doutor Nogueira: “É bom apontar”. Padre Silvestre: “Apontar para quê? A facção dominante está caindo de podre. O país naufraga, seu doutor”. Paulo Honório: “O que foi que aconteceu para o senhor ter estas ideias? Desgosto? Para o meu fraco entender, quando a gente fala assim, é quando a receita não cobre a despesa. Suponho que os seus negócios vão indo muito bem”. Padre Silvestre: “Mas não se trata de mim. As finanças do Estado que vão mal. Vão de mal a pior. Mas não se iludam, tem que estourar uma revolução”. Paulo Honório: “Era o que faltava. Escangalhava-se com a gangorra”. Madalena: “Por quê?” Paulo Honório: “Você também é revolucionária?” Madalena: “Estou apenas perguntando por quê”. Paulo Honório: “Ora por quê? Porque o crédito sumia, o câmbio baixava, a mercadoria estrangeira ficava pela hora da morte. E depois essa complicação política”. Madalena: “Seria magnífico. Depois se endireitava tudo”. Padilha: “Com certeza”. Doutor Nogueira: “O que é de admirar é o Padre Silvestre desejar a revolução, que vantagem lhe traria ela?” Padre Silvestre: “Nenhuma. Não me traria vantagem nenhuma. Mas acho que a coletividade ganharia com isso”. Gondim: “Espere e conheçam. Os senhores estão preparando uma fogueira e vão assarse nela”. Padilha: “Literatura”. Gondim: “Literatura, não. Se a encrenca rebentar, há de sair boa coisa”. Padilha: “O fascismo? Era o que vocês queriam. Queremos o comunismo”. Seu Ribeiro: “Deus nos livre”. Madalena: “Que medo, seu Ribeiro”! Seu Ribeiro: “Já vi muitas transformações e todas ruins”. Padre Silvestre: “Nada disso. Todas essas ideias, essas doutrinas absurdas não se dão bem entre nós. O comunismo é a miséria, é a degeneração da sociedade, é a fome”. Seu Ribeiro: “No tempo de D. Pedro corria pouco dinheiro e quem possuía um pouco de réis era rico, mas havia fatura, abóbora apodrecia na roça, mamona, caroço de algodão não tinham valor. Com a proclamação da república, acabaram custando os olhos da cara. É por isso que eu digo que essas mudanças só servem para atrapalhar a vida”. Padre Silvestre: “Uma nação sem Deus. Fuzilaram todos os padres, não escapou um só. Espatifaram os santos e dançaram em cima dos altares”. Dona Glória: “Que horror, nos altares?” Padilha: “Espatifaram nada. Isso é propaganda contra-revolucionária”. Gondim: “O senhor trabalha para eles, padre Silvestre?” Padre Silvestre: “Eu não. Eu fico quieto no meu canto. Mas, achar que o governo é mal,

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acho; achar que há necessidades de reforma, acho que há. Quanto essas ideias, essas lorotas de comunismo, acho que não pega entre nós, o povo tem religião, o povo é católico”. Doutor Nogueira: “É o que ele não é, ninguém conhece doutrina. Se o protestante canta hinos e prega o evangelho, todos os devotos da procissão vão escutá-lo. Outros tendem para o espiritismo e a canalha acredita em feitiçaria e alguns até adoram mármores. O senhor está enganado, padre Silvestre, esta gente ouve missa, mas não é católica, tanto se deixam levar para um lado quanto para o outro”. Padre Silvestre: “Neste caso”. Em seguida, conforme esta imagem, Madalena, Seu Ribeiro e Padilha, num plano de conjunto, conversam: Madalena: “O que que o senhor perdia, seu Ribeiro?” Seu Ribeiro: “Não sei, excelentíssima. Talvez perdesse. A mim só chegam desgraças. Enfim, tenho aqui um pedaço de pão, se esta infelicidade viesse, nem isso me dava.” Madalena: “Não, seu Ribeiro, o senhor está enganado”.



Enquanto Madalena conversa com Seu Ribeiro, em off, a voz do pensamento de Paulo Honório: “Madalena procurava convencê -lo, mas não percebia o que dizia, de repente invadiu-me uma espécie de desconfiança, já havia experimentado um sentimento assim. Quando?” Nesta imagem, Paulo Honório, em primeiro plano, olha para Madalena conversando com Seu Ribeiro e tendo o apoio de Padilha na justificação dos valores do comunismo. Nesta cena, continua a voz do pensamento de Paulo Honório: “Quando? No momento esclareceu-se tudo. Tinha sido naquele mesmo dia no escritório, enquanto Madalena me entregava as cartas para assinar.” Na continuação da conversa entre Madalena, seu Ribeiro e Padilha, conforme este quadro fílmico, em off prossegue a materialização da voz do pensamento de Paulo Honório: “Sim, senhor. Combinada com Padilha e tentando afastar os empregados sérios do bom caminho. Sim, senhor. Comunista. Eu construindo e ela desmanchando.”

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Assim, na produção das imagens acima, em termos artísticos, tudo o que está dentro do quadro fílmico: personagens – maquiados e vestidos –, os móveis da sala, a mesa de jantar – toalha de mesa, o alimento, pratos, talheres, taças, garrafa de vinho etc. – foram concebidos visando à representação do ambiente social do qual esses personagens faziam parte, considerando, para isso, o período histórico em questão, conforme informado no início do filme, a década de 1940. Em termos de imagem, a decupagem planejou os enquadramentos, movimentos e angulação de câmera, e também a luz. Numa sequência de cinco minutos e dezoito segundos, a maior parte, três minutos e quarenta segundos, foi rodada em plano de conjunto, a câmera fixa enquadrando a sala de jantar e os oito personagens sentados à mesa; os atores conversam e jantam, e o movimento fílmico – o movimento da câmera em relação à ação das personagens – durou menos de cinco segundos, um sutil movimento da câmera. Como lembra Lauro Escorel, a limitação de recursos financeiros e técnicos influenciou o estilo do filme: “escassez de filme virgem e modestíssimo parque de iluminação têm muito a ver com o resultado deste trabalho”. A capacidade de composição estética de Leon Hirszman, aliada à admiração que ambos tinham pelos filmes de Eisenstein, resultou na definição dos enquadramentos que nasciam naturalmente, a partir da observação do diretor sobre as cenas que eram montadas. Ainda com respeito à fotografia deste filme, Leon Hirszman pretendia que Lauro Escorel concebesse, para São Bernardo, uma espécie de Vidas secas colorido. Inúmeras conversas durante a etapa de preparação, objetivando o máximo possível da utilização de luz natural – em determinadas cenas, parte do telhado de uma casa foi retirado para aproveitar a luz do sol. E, ainda, considerando, ao lado da utilização da luz natural, a pouca película disponível, levou a muitos ensaios com os atores, pois a maioria dos planos era filmado uma única vez, sem a possibilidade de repetição.

Diante disso, essas lembranças sobre a composição da fotografia deste longa-metragem avigoram como a força estética do romance São Bernardo (1938), de Graciliano Ramos, ressurge por meio da recriação artística de Leon Hirszman, em conjunto com Escorel, numa crítica político-social ao decadente capitalismo latifundiário por meio de referências explícitas e implícitas, presentes nas duas obras.

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Percebe-se, então, que o realismo ultrapassava a concepção estética pretendida ao filme, já que esta resulta, inclusive, da realidade de produção relativa aos recursos financeiros – bens e serviços – que dispunham para filmá-lo.

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REFERÊNCIAS BAZIN, André. O que é Cinema? Tradução de Ana Moura. Lisboa: Horizonte de Cinema, 1992. CALIL, Carlos Augusto (curadoria e apresentação). Projeto Leon Hirszman: Leon Hirszman 03. São Bernardo, Maioria absoluta e Cantos de trabalho. São Paulo: Cinefilmes Ltda, 2008. RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2012. ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003 XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1984.

ENTREVISTA ESCOREL, Lauro. Diretor de fotografia do filme São Bernardo (1972).

FILMOGRAFIA:São Bernardo. Direção: Leon Hirszman. Produção: Marcos Farias, Márcio Noronha, Henrique Coutinho e Luna Moschovitch. Embrafilme, 1972. Projeto Leon Hirszman 03, DVD lançado por Vídeo Filmes, 2008. (Footnotes) Enquadramento – composto por planos – o referencial para a classificação dos planos cinematográficos é o tamanho da figura humana dentro do quadro, podendo ser: GPG, PG, PC, PM, PA, PP, PPP, PD. 1

Plano Geral – PG: ângulo de visão menor que o GPG. Privilegia o cenário. É possível ver a figura das personagens, mas é difícil reconhecer suas ações.

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3 Primeiríssimo Plano – PPP: enquadra o rosto ou parte do rosto da personagem. Possibilita compreender a expressão facial e emocional da personagem. Tem função mais psicológica do que narrativa. 4 Primeiro Plano – PP: enquadra a personagem na altura do busto. Possibilita a percepção da emoção da personagem. Tem função mais psicológica do que narrativa.

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16 A HORA DA ESTRELA: TESSITURAS ENTRE LITERATURA, CINEMA E TELEVISÃO Acir Dias da Silva

Convencionalmente, afirmamos que a cultura atual é a das imagens e dos sons, mas, oficialmente, os homens se comunicam por palavras e não por imagens. O cinema comunica aquilo que significa, pois ele próprio se assenta num patrimônio comum de signos visíveis e sonoros. A linguagem cinematográfica funda a sua própria possibilidade prática de existência; a sua pressuposição ao longo de uma série de arquétipos de comunicação, figuras de linguagem, signos e símbolos. O efeito visual é sempre de algo real. Nesse sentido, o espírito visual transformou-se, então, num espírito legível, e a cultura visual numa cultura de conceitos. Tal fato, é claro, teve causas sociais e econômicas, que mudaram a face geral da vida. Mas prestamos muito pouca atenção para o fato de que, paralelamente, a face dos indivíduos, suas testas, olhos, bocas, a expressão facial, tiveram, enfim, por necessidade, que sofrer uma mudança. Os gestos do homem visível não são feitos para transmitir conceitos que possam ser expressos por palavras, mas, sim, as experiências interiores, emoções

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Certa vez Victor Hugo escreveu que o livro impresso assumiu o papel desempenhado pela catedral na Idade Média e tornou-se o portador do espírito do povo. Mas os milhares de livros acabaram fragmentando esse espírito único, corporificado na catedral, em milhares de opiniões. A palavra quebrou a pedra em milhares de fragmentos, dividiu a igreja em milhares de livros e, mesmo assim — elemento da arte da memória inventada pelos gregos —, atravessou a antiguidade clássica como parte da retórica, sobreviveu parcialmente ao desmantelamento do sistema educacional latino e durante a idade média refugiou-se nas ordens dominicana franciscana. Na atualidade permanece de forma estilizada na arte de contar histórias.

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não racionais que ficariam ainda sem expressão quando tudo o que pudesse ser dito fosse dito. Tais emoções repousam no nível mais profundo da alma e não podem ser expressas por palavras — que são meros reflexos de conceitos —, da mesma forma que nossas experiências musicais não podem ser expressas através de conceitos racionalizados. O que aparece na face e na expressão facial é uma experiência espiritual visualizada imediatamente, sem a mediação de palavras. (BALÁZ, 1983, p.78).

A cultura visual do cinema e da televisão traz uma nova e original visão do real – e, podemos dizer, um novo conhecimento sobre a que nos referimos quando dizemos real, diferente tanto do nosso olhar natural quanto da sua descrição em palavras. Não importa se a história que está sendo contada é verdadeira, ou não. Literatura, cinema e televisão são sistemas integrantes de um sistema cultural mais amplo, estabelecendo diversas relações com outras artes e com a memória. Essa diversidade de meio exige um leitor que não se prenda somente ao sentido literal, mas que esteja aberto a essa diversidade de suportes pelos quais a literatura circula, bem como a possível combinação com outras artes. Nas aproximações entre literatura, cinema e televisão percebemos características da sociedade contemporânea, a educação visual – do homem e seus desatinos. Desta forma, tornam-se possíveis diálogos entre livros e filmes, objetos de estudos. Percebe-se que passagens do romance A hora da estrela foram adaptadas e outras foram acrescentadas ao filme pelo cineasta, garantindo a aproximação e, ao mesmo tempo, possibilitando a criação de uma nova obra. Diante da possibilidade de livre interpretação, admite-se que o cineasta, enquanto criador, possa inverter e até propor uma nova forma de entendimento de certas passagens do livro. Entre a superfície em branco da página e o espaço vazio da tela há laços mais estreitos do que, muitas vezes, nos é dado suspeitar à primeira vista. Enquanto a página do romance existe à espera das palavras que acionarão os sentidos e se transformarão, na mente do leitor em imagens, a tela oferece as imagens em movimento que serão decodificadas pelo espectador através de palavras. E, diante disso, se inscreve o exercício da tradução de linguagens: A multiplicidade das línguas é, certamente, o signo de sua incompletude e de sua transitoriedade, mas o tradutor lê nela também um desejo comum de acabamento. Cada uma à sua maneira, as línguas dizem esta promessa de perfeição que as fundamenta em sua falta e em sua grandeza. (GAGMEBIN, 1994, p.24).

A imagem, o movimento e o som são habitualmente considerados materiais inerentes ao cinema, mas também são objetos da literatura. Todavia, não se pode negar que, mesmo antes do surgimento dos meios tecnológicos que possibilitaram a existência do filme ou do seridado de televisão, tais elementos já integravam o fenô-

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meno literário, graças à capacidade da linguagem descrever e sugerir aspectos que tocam a sensibilidade e acionam os mecanismos de nossa imaginação. No cinema, a imagem que vemos na tela também passou por um texto escrito, foi primeiro „vista“ mentalmente por um diretor, e na sequência transformada em imagens através do roteiro e traduzida em imagens e sons. A princípio, transpor um código de palavras para outro, de imagem, não parece tarefa simples. Criar variações de uma obra original, sem que com isso se perca sua originalidade, e ser original criando variações em uma obra já existente, são questões que permeiam a tradução de uma obra literária para o cinema. A tradução sempre estará dividida entre criação e interpretação. Nas últimas décadas a discussão entre fidelidades e traições perdeu importância, e passou-se a privilegiar a ideia do diálogo, em razão dos inevitáveis deslocamentos que ocorrem na cultura. Para PELLEGRINI (2003, p.19), “a fidelidade original deixou de ser o critério maior de juízo crítico, valendo mais a apreciação do filme como nova experiência”. A adaptação de obras literárias para o cinema e, posteriormente para a televisão não tem sido feita sem conflitos. Os meios de comunicação são encarados, em geral, apenas como indústria. Muitos veem esse processo como um mecanismo de facilitação para o grande público, em detrimento da qualidade propriamente estética da obra original. Outros defendem que são sempre os meios literários que saem perdendo, apoiados na justificativa de que, pela diferença de linguagens, as adaptações resultam em perda de qualidade de significação. Uma apaziguadora saída para o impasse pode ser tomada por empréstimo de uma teoria de Sebastião Uchoa Leite a respeito da tradução de textos, em que ele propõe a tradução como um processo de recriação:

Para realizar uma tradução “recriativa”, o tradutor precisa, antes, submergir criticamente na obra a ser traduzida. Assim, além de um ato de recriação, a tradução é também uma leitura crítica da obra original. A própria leitura já é uma interpretação pessoal do leitor. E essa talvez seja a solução mais consensualmente aceita. Enquanto criação, uma leitura pode criar variações em relação ao original e, enquanto interpretação, pode correr o risco de se desviar do projeto original. A interpretação é uma obra aberta, permite transformações e variedades, como bem afirma LEITE (1995). A enunciação cinematográfica e televisiva precisa da traição para tornar possível a peculiaridade das duas obras. A fidelidade ao texto literário deve limitar-se à proposição. Nesse processo de elaboração e tradução, o cineasta deve realizar um estilo

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Cada tradução é uma variação de um mesmo objeto, não se conhecendo traduções exatamente iguais. Coloca-se então o paradoxo da tradução ser ao mesmo tempo um duplo do texto traduzido e ao mesmo tempo um texto totalmente novo. É a transcrição de um código lingüístico para outro. (LEITE, 1995, p.10).

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próprio, uma abordagem pessoal do texto, uma modalidade autônoma de enunciação, o estilo do autor. Diante disso, a preocupação deste capítulo está centrada nas diferenças e aproximações entre cinema e literatura, na leitura/releitura, interpretação/ reinterpretação de A hora da estrela. Em entrevista à revista Trópico, o diretor Walter Lima Junior relata os paradoxo da tradução literária para o cinema. Veja o trecho: O cinema não é uma arte de síntese. Para chegar à tela, ele atravessa várias áreas do conhecimento humano: a literatura, as artes cênicas, a iluminação, a fotografia, a música, a compreensão do ritmo; e também a química e a física, pois lida com o laboratório. Reduzir tudo isso a uma forma é diminuir demais seu potencial.

O papel destinado ao cinema, quando este se propõe a transpor uma obra escrita para uma obra em imagens, exige perceber a diferença que separa esses dois mundos. A sensibilidade do cineasta está centrada em manter o justo equilíbrio entre extremos: a mera ilustração ou total adesão ao texto original. Ao mesmo tempo em que o espectador tem a impressão de estar folheando as páginas do livro, enquanto assiste ao filme, também poderá visualizar a história sob um outro ponto de vista, o olho da câmera. Agora, voltando às configurações culturais das imagens e sons. Inscrever uma gramática universalmente válida é um princípio potencialmente mais unificador no sentido de manter os indivíduos integrados, especialmente numa sociedade em que os sujeitos estão propensos a se tornar separados e isolados uns dos outros. Até mesmo a literatura do subjetivismo extremo usa o vocabulário comum, e, dessa forma, se preservou da solidão de uma incompreensão definitiva. Mas a linguagem visual dos gestos é muito mais individual e pessoal do que a linguagem das palavras. Todavia, esta linguagem da expressão facial e do gesto, embora possuindo uma certa tradição geralmente aceita, carece das regras rígidas que governam a gramática que, pelo mérito de nossas academias, são de uso obrigatório a todos nós. Não há escola que estabeleça que você deva expressar sua alegria com tal tipo de sorriso, ou o seu mau humor com aquele tipo de sobrancelha franzida. Não há erros passíveis de punição alguma, nesta ou naquela expressão facial, embora as crianças, sem dúvida alguma, realmente observem e imitem tais gestos e caretas convencionais. Por outro lado, estas expressões são mais imediatamente induzidas por impulsos internos do que as palavras. Contudo, provavelmente será a arte do cinema que, afinal, poderá unir os povos e as nações, torná-los familiarizados uns com os outros e ajudá-los no sentido de uma compreensão mútua. O filme mudo não depende dos obstáculos isoladores impostos pelas diferenças linguísticas. Se olharmos para os rostos e gestos de cada um de nós, e os entendermos, não apenas estaremos nos entendendo, como também aprendendo a sentir as emoções de cada um. O gesto não é só uma projeção exterior da emoção, é também o que a deflagra. (BALÁZ, 1983, p. 80).

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A cultura da palavra fez pouco uso dos poderes expressivos do nosso corpo e, por conseguinte, perdemos parcialmente esse poder. A gesticulação dos povos primitivos é frequentemente mais variada e expressiva do que a do europeu culto, cujo vocabulário, por outro lado, é infinitamente mais rica. As artes do cinema e da televisão permitem certa compilação de enciclopédias de expressão facial, movimento e gesto, da mesma forma que existem há muito tempo dicionários para as palavras. O público, entretanto, não precisa esperar pela enciclopédia do gesto nem pelas gramáticas das futuras academias: ele pode ir ao cinema e aprender lá. Nesse sentido, veremos algumas passagens do romance, do filme e do seriado A hora da estrela. Imagens e palavras estão impregnadas de subjetividade e de simbolismo reveladores da nossa cultura. Para tanto, teremos como referência a definição de cinema de poesia e, adiante, outras observações de Pasolini. Tal definição permite a identificação com as teorias literárias e a multiplicidade de matrizes teóricas do cinema. Percebe-se que o cinema de poesia está comprometido com o uso diferenciado da montagem e outros elementos construtores do tempo e da representação poética das imagens e sons. A meu ver, o cinema é substancial e naturalmente poético, porque tem natureza de sonho, porque se avizinha dos sonhos, porque uma seqüência cinematográfica é a seqüência de uma recordação ou de um sonho. Depois disso, temos agora o cinema como um fato histórico, como instrumento de comunicação e como tal ele começa a diferenciar-se em diversas subespécies, do mesmo modo que os meios de comunicação em massa. Assim como a literatura tem uma língua para a prosa e outra para a poesia, assim acontece com o cinema. (PASOLINI, 1982, p. 39-40).

O cinema de poesia possui uma forma distinta da narrativa convencional. Não é na temática que se encontra a diferenciação, mas na modulação dos elementos narrativos. O filme converte-se em diálogo constante entre a subjetividade do “autor-empírico”, do “autor-modelo”, da personagem principal e dos “leitores empírico e modelo”, diálogo suscitado pela trama, mas não necessariamente desenvolvido por ela. E ainda, defende a ideia da autoria no cinema. Como o filme é o reflexo de um sistema “paranóico”, a responsabilidade recai sobre o indivíduo, não desmerecendo a equipe de filmagem, mas estabelece relações de produção que, raramente se adequam ao sistema industrial (PASOLINI, 1982, p. 29).

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PASOLINI privilegia as funções poéticas, que aqui correspondem às características que tornam visíveis os meios de expressão, e exibem estruturas que de outro modo permaneceriam invisíveis. E ainda, reserva espaço para a função emotiva e também designa papel importante ao espectador. Em PASOLINI, narrar é fazer poesia.

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Desta forma, é possível reconhecer a existência de um sujeito criador responsável pela personificação da produção. Nela, está exposta a reflexão do indivíduo sobre determinado tema, o que exige um espectador atento para receber o filme. A participação deste é primordial para que o processo de comunicação se realize. A experiência estética não se esgota em um ver cognoscitivo – aisthesis – e nem em um reconhecimento perceptivo ­–anammesis. O expectador pode ser afetado pelo que se representa, identificar-se com as pessoas em ação, dar, assim, livre curso às próprias paixões despertadas e sentir-se aliviado por sua descarga prazerosa, como se participasse de uma cura – katharsis. De acordo com ALMEIDA (2004, p.14-15): Interpretar um filme somente pela mensagem implícita, visível ou dedutível pela história narrada é também uma interpretação incompleta, um naturalismo científico, mesmo que essa interpretação venha fundamentada em teorias estéticas, sociológicas e políticas.

A interpretação deve partir do caos aparente da imagem, encarar o mistério dos intervalos significantes e valer-se também do caos das teorias. Assim como numa obra literária, os filmes também utilizam elementos fantásticos, são habitados por imagens inesquecíveis em movimento. E, por serem discursos em língua da realidade, trazem dela a ambiguidade, o conflito, a história. Nos pontos compensatórios da junção literatura/cinema/televisão existem movimentos capazes de promover uma profunda reflexão de nossos anseios, sonhos, ideologias e lutas, ajudando, enfim, o indivíduo a compreender seu mundo nas formas culturais e espirituais.

A obra, no cinema de poesia, é o lugar da reflexão do cineasta, que expõe seus pensamentos. A hora da estrela, de Suzana Amaral, inspirado no romance homônimo de Clarice Lispector, acredito, é o lugar para estudar a definição de cinema de poesia elaborada por Pasolini. Tais obras trazem definições subjetivas e são repletas de simbolismo, ao mesmo tempo em que traduzem opções estéticas diferenciadas. Classicamente, o tempo é a condição de qualquer narrativa; esta não está presa à linearidade do discurso e preenche o tempo com a matéria dos fatos organizada em forma sequencial. No romance de Clarice Lispector a ação é vista como movimento, a forma narrativa em discurso indireto abala as estruturas do romance tradicional.

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Sabemos que o conto, a lenda ou o mito, os clichês da cultura de massas, são motivos e decalques em forma visual alegórica em A hora da estrela. A forma narrativa, tão semelhante às narrações modernas do cinema e da televisão, subvertem nossas noções de tempo e de espaço, algo recorrente às problemáticas do cinema de poesia. Diante disso, o romance, o filme e o seriado, todos eles, direta ou indiretamente, articulam as sequências temporais, não importa se lineares ou truncadas, invertidas ou interpoladas. No primeiro, as sequências se fazem com palavras e, no segundo e no terceiro, com imagens. De fato, no cinema, o tempo é invisível, é preenchido com o espaço ocupado por uma sequência de imagens visíveis; misturam-se, assim, o visível com o invisível. Desse modo, ele condensa o curso das coisas, pois contém o antes, que se prolonga no durante e no depois, significando a passagem, a tensão do próprio movimento representado em imagens dinâmicas, não mais capturado num instante pontual, estático, como na fotografia. Assim, os domínios do percebido – o espaço imagético – e o do sentido ou imaginado – o tempo –, o visível e o invisível, não se distinguem mais, pois um não existe sem o outro. Vejamos uma cena escolhida para análise:

Dessa forma, observa-se a descrição e narração no romance, processo que acumulou mudanças que vieram se processando ao longo do tempo, em razão da incorporação de técnicas visuais, na direção de uma crescente sofisticação das técnicas de representação – monólogo interior, fluxo de consciência, desarticulação do enredo, fragmentação, descontinuidade, desaparecimento do narrador etc. Mudanças que, paradoxalmente, envolvem uma crescente incorporação de elementos das ruínas da linguagem, na medida em que se vai, aos poucos, se despindo cada vez mais de seus acessórios qualificadores – figuras, advérbios, adjetivos etc. – para dar lugar à substancialidade absoluta de nomes e ações, numa tentativa de imitar/representar a imagem visual na sua construída objetividade. Essas rápidas e incompletas reflexões sobre o funcionamento das categorias narrativas, e sua relação com o horizonte técnico de produção de imagens – desde

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E lá foram para a esquina. Macabéa estava muito feliz. Realmente ele a levantou para o ar, acima da própria cabeça. Ela disse eufórica: - Deve ser assim viajar de avião. É. Mas de repente ele não aguentou o peso num braço só e ela caiu com a cara na lama, o nariz sangrando. Mas era delica e foi logo dizendo: - Não se incomode, foi uma queda pequena. Como não tinha lenço para limpar a lama e o sangue, enxugou o rosto com a saia, dizendo: - Você não olhe enquanto estiver me limpando, por favor, porque é proibido levantar a saia. Mas ele emburrara de vez e não disse mais nenhuma palavra. Passou vários dias sem procurá-la: seu brio fora atingido. (LINSPECTOR, 1993, p. 69-70)

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as estáticas até as eletrônicas –, colaboram para identificar a criação de novas formas de percepção e representação, a formalização de uma preocupação maior, de caráter ético, digamos, com relação aos caminhos que abrem para a literatura neste novo século. A seguir a descrição de uma cena do filme de Suzana Amaral: A sequência inicia-se com uma panorâmica a partir do viaduto. Ao fundo percebemos que houve o encontro de duas vias. À frente, em primeiro plano, Macabea e Olímpico estão sentados. Ela olha para chão. Ele come pipoca. Eles conversam: Olímpico: - Viu Macabea. A cara é mais importante do que o corpo. Sabe por quê? Porque a cara mostra o que a pessoa está sentindo lá dentro. Por exemplo: você tem uma cara de quem comeu e não gostou. Vê se muda de expressão pelo menos uma vez na vida. (Nesse momento Macabea carinhosamente passa a mão nas pernas de Olímpico. O foco no primeiro plano o mostra oferecendo pipoca para ela) Macabea: - Sabe, ontem escutei uma música tão linda. Eu até chorei. Olímpico: - Era samba. Macabéa: - Não sei. Acho que se chamava uma-furtiva-lágrima. Era cantado por um homem que já morreu. Era assim, oh! Acho que até sei cantar essa música. Nananinã Nananinã. Nananinã. (Isso enquanto a câmera desliza em panorâmica de 180 graus, fechada no rosto da personagem. Olímpico dá uma bofetada no rosto dela. Novo plano, ela sentado no chão após o tombo). Olímpico: - Chega, levante-se. Venha. Macabea: - Não foi nada. Não precisa não. Olímpico: - Venha, levante-se. Ele a puxa pelo braço. Levanta-a como se segurasse um troféu. Diz: Olímpico: - Ah! Vou te mostrar quem é o Olímpico, Macabea. Macabea: - Ahh! Deve ser assim viajar de avião! Ahhh Olímpico a gira no ar. Ela grita. A câmera livre mostra o olhar de Macabea sobre os escombros do viaduto da estação. Ouvimos os sons e o trem passando os trilhos.

Notemos, a cena descrita no livro é diferente da filmada, mas o que importa não é a tradução literal daquilo que foi criado pela escritora e, sim, o processo de sintaxe visual e sonora construído principalmente durante a montagem. A câmera cinematográfica capta a noção do tempo que passa, que é inseparável da experiência perceptiva visual e sonora, que não mais repousa na perspectiva única do indivíduo que vê: a câmera é uma espécie de olho mecânico finalmente livre da imobilidade do ponto de vista humano. Os pontos de fuga não convergem mais todos eles para o

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olho humano, como numa pintura ou numa fotografia. Essa conquista fundamental do cinema se refletirá na narrativa moderna, através das técnicas da montagem e de colagem – justaposição. É o ápice de um longo processo de amadurecimento de mudança, do conceito de tempo e da experiência da realidade, em virtude das condições econômico-sociais e culturais específicas, a partir do fim do século XIX.

BENJAMIN (1994, p.97), refletiu sobre essa problemática, no seu ensaio sobre a fotografia: “A fotografia nos mostra essa atitude, através de seus recursos auxiliares: câmara lenta, ampliação. Embora entre dois fotogramas exista algo mais do que o abrir e fechar de um diagrama, não existe uma objetividade completa, pois a câmera não é neutra.” Assim como na criação literária há sempre alguém que seleciona, recorta e combina, extraindo uma nova sintaxe do material desordenado que

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As mudanças que, com o cinema, atingem a concepção de tempo, alteram também o caráter e a função do espaço. Ele perde sua qualidade estática, tornando-se ilimitadamente fluido e dinâmico, adquirindo uma dimensão temporal que repousa na sucessividade descritiva e/ou narrativa; deixando de ser espaço físico homogêneo e fixo, “pintura”, assume a heterogeneidade do movimento do tempo que o conduz. A liberdade em relação à coerção espacial e temporal é resultado de uma similaridade notável entre o filme e o próprio pensamento, em virtude do fluir veloz das imagens.

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o mundo visível oferece. Portanto, “a técnica mais exata ainda pode conferir às suas criações um valor mágico” e, apesar de toda a perícia do olho por trás da câmera, como afirma BENJAMIN, cada um pode descortinar o acaso, “a realidade [que] chamuscou a imagem”. Veja o roteiro da mesma cena no seriado Cena aberta – A magia de contar uma história: CENA 40 – PARQUE. Olímpico e Macabea no parque. Olímpico e Macabea ficam de pé. Ele a segura pela cintura e a ergue no ar. Ela abre os braços. Ele a gira no ar. MACABEA: Deve ser assim viajar de avião! Ele se desequilibra e ela cai. Ela se ergue rapidamente. MACABEA: Não se incomode, foi uma queda pequena. Ela ergue a saia para limpar o nariz, sangrando. MACABEA: Você não olhe enquanto eu estiver me limpando, por favor, porque é proibido levantar a saia. Sentam. Ele fica emburrado. (ARRAES e FURTADO, p.22)

A cena do seriado Cena aberta, de fato, pode ser considerada uma “adaptação”, com forte presença do livro. Os diálogos são reproduzidos literalmente. Notemos que a referida cena foi ambientada à noite e não possui os silêncios e pausas nas falas de Macabea. A interpretação dos atores se assemelha a caricaturas em movimento. No conjunto da obra, vale ressaltar que os depoimentos das meninas distanciam a adaptação do jogo meramente literário, levando-o de volta às contingências da televisão. Os criadores partiram de trechos de entrevista de Clarice sobre a obra para inventar o seriado, assim, a literatura ficou no meio disso tudo e ajudou a construir o projeto desenvolvido por Guel Arraes, Jorge Furtado e Regina Casé, mistura de elementos do que poderia ser uma “adaptação” literária, de um programa sobre os bastidores de um programa, ou ainda, um minidocumentário sobre imigrantes nordestinos. Os três simultaneamente, em doses mínimas de tempo.

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Quando mostra a vida das sete candidatas ao papel da sofrida Macabea de A hora da estrela – elas guardam semelhanças com a personagem de Clarice Lispector –, Cena aberta consegue alternar a presença do livro e a do filme de Suzana Amaral. Lembremos que quase todas as sequências desse seriado possuem sobreposições nítidas do que foi criado no cinema. O programa se propõe a fazer um making of de si mesmo, mas faltou muito para dar uma ideia precisa dos bastidores de uma gravação. Ali só se mostrou a escolha de elenco e do figurino, e um tantinho de direção de cena. Mas, como o tempo é curto na televisão, as etapas escolhidas funcionaram até certo ponto. Cena aberta conseguiu soar interessante até ao contar em poucas cenas, com a figura didática da narradora Regina Casé, a história escrita por Clarice Lispector. De início, poderia parecer um erro entregar logo de bandeja para o público o fim da trama. Mas eis que o programa dá um golpe de mestre quando inventa um outro desfecho para os personagens. Na verdade, não ‘’outro’’, mas um desfecho adicional, levando os personagens a mais uma dimensão de existência. Ao mesmo tempo, respeita a decisão de Clarice e não deixa o telespectador ir para a cama triste com a história. Nem triste com a televisão brasileira.

No momento, o cinema e a televisão já criaram uma nova cultura: a das imagens e sons. Milhões de pessoas frequentam os cinemas todas as noites, e unicamente através da visão vivenciam acontecimentos, personagens, emoções, estados de espírito e até pensamentos, sem a necessidade de muitas palavras, pois elas não

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Não se quer tirar da cultura da palavra sua importância e nem substituí-la pela cultura da imagem, pois não se pode renunciar a um tipo de aquisição humana em razão de outra. Ao atingir o valor poético, o cinema e a televisão podem recuperar movimentos e expressões talvez não explorados no romance e que, através dos recursos que o cinema dispõe, podem se transformar em algo mais revelador e artístico. O cinema transforma palavras em imagens, mas para tal façanha é necessária a palavra materializada em roteiro. A multiplicidade de sentidos que são apresentados, seja pela literatura, seja pelo cinema, seja pela televisão, a complexidade do jogo de relações dos textos escritos é aparentemente substituível por imagens. As relações entre cinema e a televisão nos ensinam que tais artes podem ser tão criativas e profundas quanto a literatura – para tanto é necessário olhar com sinceridade para a problemática da tradução de linguagens.

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atingem o conteúdo espiritual das imagens, são meros instrumentos passageiros de formas de arte ainda não codificadas, conforme BALÁZ (1983, p.79) “A mensagem imediatamente visível foi assim transformada numa mensagem imediatamente audível. No decorrer deste processo, como acontece com cada tradução, muito se perdeu. O movimento expressivo, o gesto, é a língua-mãe aborígene da raça humana.” A humanidade aprendeu a linguagem rica e colorida do gesto, do movimento e da expressão facial. Essa não é apenas uma linguagem de signos aparentemente simples, substitutos de palavras, como seria a linguagem-signo do surdo-mudo. É um meio de comunicação visual sem a mediação de almas envoltas em carne. O homem tornou-se novamente visível e parece ter-se desprendido das páginas do livros e folhetins. Notas 1 - Cena aberta, 2003. Direção de Jorge Furtado, Guel Arraes e Regina Casé. Sinopse: parte de uma obra literária, mas não é sobre literatura. Grande sacada de Guel Arraes e Jorge Furtado, o programa usa uma história e vai buscar no mundo real o exemplar humano da personagem retratada. (Leila Reis, O Estado de São Paulo). Episódios: A hora da estrela, de Clarice Lispector, com Wagner Moura, Regina Casé e Ana Paula Bouzas. Negro Bonifácio, de Simões Lopes Neto, com Lázaro Ramos e Caroline Dieckmann. As 3 palavras divinas, de Leon Tolstói, com Regina Casé e Luis Carlos Vasconcelos. Folhetim, baseado em Ópera de sabão, de Marcos Rey, com Márcio Garcia, Regina Casé e Karla Tenório. Atores: Regina Casé, Wagner Moura, Ana Paula Bouzas, Lázaro Ramos, Carolina Dieckmann, Luis Carlos Vasconcelos, Márcio Garcia, Karla Tenório. Direção: Jorge Furtado, Guel Arraes e Regina Casé. DVD Cena Aberta - A magia de contar uma história, Som Livre, 2003. 2 - A hora da estrela, 1985. Direção de Suzana Amaral. Sinopse: Macabea (Marcélia Cartaxo), uma imigrante nordestina semianalfabeta, trabalha como datilógrafa em uma pequena firma em São Paulo e vive em uma pensão miserável. Conhece casualmente o também nordestino Olímpico (José Dumont), operário metalúrgico, e os dois começam um casto e desajeitado namoro. Mas Glória (Tamara Taxman), esperta colega de trabalho de Macabea, rouba-lhe o namorado, seguindo o conselho de uma cartomante. Macabea faz uma consulta à mesma cartomante, Madame Carlota (Fernanda Montenegro), e esta prevê seu encontro com um homem rico, bonito e carinhoso. Baseado no romance de Clarice Lispector. Filme de estréia da diretora Suzana Amaral. Prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim para Marcélia Cartaxo, em 1986. Duração: 96 min. Brasil: Estúdio Raiz Produções Cinematográficas. Roteiro: Clarice Lispector, Suzana Amaral, Alfredo Oroz. Produção: Assunção Hernandes.

REFERÊNCIAS ALMEIDA, Milton José de. Imagens e Sons: Uma nova cultura oral. 3º edição. São Paulo: Cortez, 2004.

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ARRAES, Guel, FURTADO, Jorge. Roteiro A Hora da Estrela. Porto Alegre: Casa de cinema de Porto Alegre. Disponível em http://www.casacinepoa.com.br/port/roteiros/horaestr.txt BALÁZ, Bela. O homem visível. In: XAVIER, Ismail. A experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983. BENJAMIM, Walter. Obras escolhidas I– magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Historia e Narração em Walter Benjamim. São Paulo:Perspectiva, 1994. LEITE, Sebastião Uchoa. Jogos e Enganos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. LIMA, Walter Junior. A sombra da Televisão. São Paulo: Revista Trópico. Disponível em:http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/2498,1.shl. Acesso em 29/10/2005. LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo hereje. Lisboa: Assírio Alvin, 1982. PELLEGRINI, Tânia. In: Literatura, cinema e televisão.São Paulo: Editora Senac, 2003. SAVERNINI, Érika. Índices de um cinema de poesia: Píer Paolo Pasolini, Luís Bunel e krzysztof Kiéslowski. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. XAVIER, Ismail. A experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

FILMOGRAFIA Cena aberta: a magia de contar uma história. Direção: Guel Arraes, Jorge Furtado, Regina Casé; Casa de Cinema de Porto Alegre, 2005.

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A hora da estrela. Direção: Suzana Amaral, Raiz Produções Cinematográficas, 1985.

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17 ARUANDA DE LINDUARTE NORONHA: DO RECONHECIMENTO AO PENSAMENTO Eduardo Tulio Baggio

O RECONHECIMENTO DO OLHAR ORIGINAL DO POBRE ARUANDA Linduarte Noronha (1930 – 2012) foi um cineasta decisivo para o cinema brasileiro. O impacto causado por sua obra foi tão forte que acabou tornando-a um dos pontos mais marcantes do cinema no Brasil. Linduarte teve uma carreira de poucos filmes, dirigiu apenas dois curtas-metragens documentários, Aruanda (1960) e O Cajueiro Nordestino (1962); e um longa-metragem de ficção, O Salário da Morte (1971). Dentre os três, Aruanda (1960) é o mais destacado. Trata-se de um filme que teve como ponto de partida uma matéria de jornal escrita pelo próprio Linduarte, e acabou por ser uma das grandes referências para o Cinema Novo brasileiro, tanto que ainda no ano do lançamento de Aruanda, mais precisamente em 6 de agosto de 1960, Glauber Rocha escreveu no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil: Linduarte Noronha e Rucker Vieira entram na imagem viva, na montagem descontínua, no filme incompleto. Aruanda, assim, inaugura o documentário brasileiro nesta fase de renascimento que atravessamos, apesar de todas politicagens de produção. Sentimos o valor intelectual dos cineastas, que são homens vindos da cultura cinematográfica para o cinema, e não vindos do rádio, do teatro ou literatura. (ROCHA, 2003, p.125-126).

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GLAUBER via em Aruanda a crueza de um filme de iniciantes, mas dedicado ao povo brasileiro, dedicado de uma forma como não se via até então nos documentários feitos no Brasil. Para ele, antes de Aruanda o “documentário brasileiro sempre foi a burrice dos propagandistas comerciais fartamente paga pelo Estado”. (ROCHA, 2003, p.144) Além da dedicação às questões que considerava pertinentes em um momento muito particular da história do Brasil e também da história do cinema, GLAUBER entendia que Linduarte Noronha era um homem preparado para falar das questões do Nordeste brasileiro, às quais se propunha em Aruanda e, posteriormente, em O Cajueiro Nordestino. “Linduarte Noronha é um repórter com ressonâncias de ensaísta. É um homem culto, trinta e dois anos, conhecedor do Nordeste, sua literatura de ficção e sua tradição crítica.” (ROCHA, 2003, p.144) GLAUBER ainda reforçava o fato de Linduarte ser “naturalmente ligado às características da arte nordestina”, em especial, à literatura poética de João Cabral, à dramaturgia de Ariano Suassuna e à novelística de Graciliano Ramos e José Lins do Rego. (ROCHA, 2003, p.144) Assim, é natural pensarmos na obra de Linduarte Noronha em suas ligações com as letras, sejam as da reportagem que originou Aruanda, ou as do romance Fogo, de José Bezerra Filho, que deu origem ao longa-metragem de ficção O Salário da Morte, primeiro longa feito na Paraíba, na cidade de Pombal. Linduarte ainda teve a intenção de filmar A Bagaceira – precursor da literatura modernista brasileira –, do também paraibano José Américo de Almeida, mas não conseguiu viabilizar tal intento.

BERNARDET, em uma consideração semelhante a que Glauber já tinha exposto, vai valorizar Aruanda por seu caráter não institucional, por suas propriedades enquanto questionamento político-social. Para ele, trata-se de um filme que faz parte de uma nova postura, que “se dá à tarefa de levar para a tela a miséria, de denunciar a injustiça social e, eventualmente, de sugerir soluções.” (BERNARDET, 2011, p.132). E é justamente por suas características de pioneirismo na reflexão crítica e de denúncia sobre as mazelas sociais, especialmente as vividas pelo povo nordestino,

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Mas não só Glauber Rocha iria reconhecer esse potencial de Linduarte Noronha com o filme Aruanda. Com o passar dos anos, o filme foi se sedimentando como um marco histórico no documentarismo brasileiro e, a despeito de alguns problemas de ordem técnica e mesmo de suas propriedades cinematográficas, o filme continuou, ano após ano, a ser reverenciado pelos que percebiam sua importância artística, histórica e social. Por vezes, as fragilidades de Aruanda chegavam a ser apontadas como fatores determinantes de sua relevância: “A pobreza da realização é expressão da miséria que não está apenas presente na realidade representada, mas contamina a própria materialidade do filme.” (BERNARDET, 2011, p.131)

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que Aruanda tornou-se um precursor do Cinema Novo brasileiro. “A imagem do povo e da natureza nordestina, tão cara ao primeiro Cinema Novo, surge finalmente estampada na tela. Aruanda é uma pequena jóia que dá forma às potencialidades que estavam no ar.” (RAMOS, 2004, p.85). Logo depois de Aruanda e O Cajueiro Nordestino o documentário brasileiro passa a estreitar sua relação com as ideias cinema-novistas e “a partir de 1962, encontramos a presença das novas opções estilísticas do documentário mundial exercendo imediatamente uma forte influência no Brasil.” (RAMOS, 2004, p.83) Tais opções estão relacionadas ao que os filmes do chamado Cinema Verdade – notadamente a partir de Crônica de um Verão, de Jean Rouch e Edgar Morin, 1960) – passaram a incorporar em seus discursos: o intento de ruptura do modelo clássico através da revisão do paradigma da transparência (XAVIER, 1984). Para esse cinema que trazia a verdade no nome e nas intenções, esconder o plano da expressão, a elaboração da linguagem, era como esconder parte do filme, talvez a parte mais importante, a que mostra como foram elaboradas as asserções e como elas se relacionam com o tema do filme e com o seu contexto. Aruanda e O Cajueiro Nordestino não chegam ao ponto de utilizar as novas opções ético-estilísticas do Cinema Verdade, que como aponta RAMOS (2004), só estariam presentes no Brasil a partir de 1962, ano em que passaram a ser conhecidas e disponíveis tecnologicamente, após o seminário promovido pelo cineasta sueco Arne Sucksdorff, em uma ação da UNESCO e da Divisão de Assuntos Culturais do Itamaraty. Sucksdorff trouxe duas câmeras leves e dois gravadores de som direto Nagra, e teve como alunos jovens que formariam a geração cinema-novista, como Arnaldo Jabor, Eduardo Escorel, Dib Lufti, Antonio Carlos Fontoura, Luiz Carlos Saldanha, Vladimir Herzog, Alberto Salvá, Domingos de Oliveira, Oswaldo Caldeira, David Neves e Gustavo Dahl. (RAMOS, 2004, p.86). As possibilidades desses novos equipamentos associadas às intenções de um cinema que exercesse um alto grau de interação com os intervenientes fez nascer no Brasil, uma vertente de documentários que se tornaria hegemônica por pelo menos três décadas. Mas, por que Aruanda, realizado anteriormente a está mudança de paradigma que significou o início do Cinema Verdade no Brasil, tornou-se um marco do cinema moderno brasileiro? Além do que já foi apontado, há em outro comentário de Glauber Rocha apontando para um indicativo para a resposta, ou uma das respostas, para essa questão. Segundo ele, Linduarte Noronha e Rucker Vieira – diretor de fotografia de Aruanda – se aproximavam de Rossellini, com um “realismo da miséria material como ela mesma, em seu caráter poluído das superfícies da terra e na cara faminta dos homens.” (ROCHA, 2003, p.145). Parece ser essa resposta que unifica as opiniões até aqui levantadas sobre os documentários de Linduarte Noronha e, em especial, sobre Aruanda. Não é sua for-

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ma final, seu caráter cinematográfico em si o que mais interessa, mas suas intenções e a originalidade da percepção de seu autor da necessidade de abordar os temas presentes no filme. O realismo a que faz menção Glauber Rocha é o realismo relacionado à atenção para o mundo que nos cerca, para como vivemos em sociedade, portanto, não se trata do realismo mais formal ao estilo baziniano. Diante disso uma nova pergunta desponta, como Linduarte Noronha chegou nessa proposta fílmica? Como um cineasta estreante, vindo do jornalismo, tornou-se fundamental para o cinema brasileiro? Para responder a essas perguntas acredito que seja necessário um diálogo com as ideias de Linduarte Noronha, com as suas proposições e com os filmes que realizou. Algo que podemos chamar de uma teoria do autor sobre o cinema em seu papel na sociedade, metodologicamente semelhante ao que propõe Jacques Aumont em As Teorias dos Cineastas, onde investiga os pensamentos dos cineastas diante da arte cinematográfica e da sociedade em que estão inseridos. A ORIGINALIDADE DO PENSAMENTO DE LINDUARTE NORONHA – TEORIA DE UM CINEASTA BRASILEIRO Há muitas afirmações de Aruanda como marco do cinema brasileiro, sendo já um reconhecimento sedimentado na história do cinema no Brasil. Portanto, o intento aqui não é o de ratificar o que já está ratificado, mas o de procurar compreender o pensamento de Linduarte Noronha em seu percurso até Aruanda e O Cajueiro Nordestino, em suas obras documentais, em uma proposição que se inspira no estudo das teorias dos cineastas. (AUMONT, 2004)

Optei por me limitar à parte verbal da teoria dos cineastas, sem dissimular para mim mesmo a arbitrariedade de tal opção. Quando escreve um artigo, participa de uma entrevista, escreve sua correspondência, um cineasta fornece a si para reflexão a ferramenta mais comum: a língua. (AUMONT, 2004, p.10).



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Segundo AUMONT, “o cineasta que se considera um artista pensa em sua arte para as finalidades da arte: o cinema pelo cinema, o cinema para dizer o mundo. É essa obsessão que me pareceu estar no centro da teoria dos cineastas.” (AUMONT, 2004, p.8). É esse pensar do cinema pelo cinema e do cinema para dizer o mundo que norteia cineastas e que, quando bem sucedido, leva a filmes tão definidores como Aruanda. Seguindo a proposta metodológica de AUMONT quanto à forma de acessar tais ideias dos cineastas – que ele considera que sempre podem ser vistos como teóricos –, a melhor opção é dedicar-se ao que escreveram ou falaram, sem deixar de lado o diálogo com as obras fílmicas.

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Ao percorrer esse caminho, da busca das ideias de Linduarte Noronha, precursor de uma cinematografia tão relevante e definitiva para o cinema brasileiro quanto o Cinema Novo, busco apontar para uma maneira que permita discutir tal cinematografia diante dos motivadores ideológicos e estéticos que a cercam. Mais uma vez me inspiro em uma proposta de AUMONT, que diz: Pressuponho que, no meio dos cineastas de uma determinada época, reina uma concepção do cinema que tem aspectos ideológicos, estéticos, e também teóricos. Da mesma forma que Louis Althusser falava da ‘filosofia espontânea dos eruditos’, seria possível falar de uma ‘teoria espontânea dos cineastas’. (AUMONT, 2004, p.12-13)

Em suma, o que orienta o olhar para o que falam ou falaram grandes cineastas é uma opção metodológica em busca dos processos de criação. “Como esse criador cria? É uma velha questão à qual a noção de autor respondia em termos estéticos.” (AUMONT, 2004, p.13) Em outras palavras, de onde surgiu a concepção criativa de Linduarte Noronha para seus filmes, em especial para Aruanda, visto que este é seu primeiro filme e um ponto de virada, um precursor? Enquanto iniciador, Aruanda não pode ter sido concebido tendo em vista antecessores, pelo contrário, é um ato crítico aos filmes que vieram antes dele. Trata-se de uma concepção bastante original de seu diretor e que pode ser explorada, pelo menos em parte, se nos concentrarmos no pensamento de Linduarte. Evidentemente trata-se aqui de um foco no cinema documentário, mas não sem fazer referência a uma concepção de cinema que nortearia todo o Cinema Novo, ficcional e documental. Isso porque quando Glauber e Bernardet, por exemplo, destacam Aruanda como filme seminal, como grande referência de uma geração, o fazem sem referir-se apenas aos documentaristas, mas alargando as possibilidades diante de um filme que tornou-se marcante pelo que expressa enquanto proposição de ação cinematográfica. O acesso às ideias de um cineasta, via o que este escreveu ou falou, é uma forma relativamente incomum para se organizar pressupostos teóricos, mas mostrase muito eficaz porque permite um canal de diálogo com os atos criativos. “A teoria dos cineastas não é perfeita nem completa, mas é mais sedutora, mais vibrante, muitas vezes mais límpida do que a teoria dos teóricos. Isso basta.” (AUMONT, 2004, p.13) A limpidez a que se refere AUMONT não pode ser vista como constante e absoluta. Evidentemente as proposições de qualquer criador podem ou não tornarem-se presentes em sua obra, podem ou não ser relevantes para obra. Ao tratar aqui de um cineasta tão reconhecido, como demonstrado anteriormente, estou demarcando a relevância e o poder criativo de sua obra de antemão.

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DO PENSAMENTO DE LINDUARTE NORONHA EM ARUANDA Linduarte Noronha não escreveu muitos textos sobre cinema ou sobre o ato criativo cinematográfico. Também não concedeu muitas entrevistas que tratem desses aspectos. Antes de sua morte, em janeiro de 2012, Linduarte já estava afastado da realização cinematográfica há mais de quarenta anos, pois seu último filme é de 1971. Em parte é esse afastamento que explica a relativa falta de entrevistas com Linduarte ou mesmo a falta de textos dele sobre o fazer fílmico. Diante dessa escassez de fontes, centro o levantamento para a sistematização das ideias de Linduarte em uma entrevista realizada por mim na casa do diretor, em João Pessoa, na Paraíba, em17 de julho de 2003. Trata-se de uma entrevista que nunca foi publicada, salvo como anexo de minha dissertação de mestrado que tem o título O Cinema Documentário e seu Caráter Distintivo: a similaridade entre o objeto imediatoe o objeto dinâmico. (BAGGIO, 2004) Além da gentileza e dedicação reconhecidas por todos que conheceram Linduarte Noronha, há em seu pensamento uma matriz fundamental, o humanismo. Antes da realização de Aruanda, Linduarte trabalhava como jornalista, tinha escrito uma matéria sobre o antigo quilombo na Serra da Talhada, material que deu origem ao argumento do filme. Para o autor, tal humanismo está relacionado à capacidade de uma cultura de gerar discussões referenciais sobre a sua própria realidade, grande potencialidade do cinema, “e o documentário surgiu, então, como um elemento básico e fundamental na interpretação de questões sociais, antropológicas, de qualquer país.” (NORONHA, 2004)

Assim, Linduarte aponta para seu entendimento do cinema como fundamental “para dizer o mundo”, como nos diz AUMONT. Portanto, não é estranho que tenha saído da cabeça de um jornalista, já com 30 anos de idade, a proposição do fundamental Aruanda, pois se tratava de uma proposição marcadamente ideológica, de alguém que pensa no cinema como catalisador de um novo processo social. Tanto é assim que os termos de reconhecimento com relação ao filme utilizados por Glauber Rocha, Jean-Claude Bernardet e Fernão Ramos, demonstram essa essencialidade da intenção social que Aruanda trazia de forma inovadora. Para chegar a esse discurso fílmico de abordagem inovadora Linduarte passou pelo questionamento da situação vivida pelos moradores do antigo quilombo da Serra da Talhada, suas dificuldades e as mazelas de uma vida isolada e esquecida.

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Para o diretor, no caso específico do Brasil, não haveria como deixar de lado o potencial do cinema de interpretar tais questões. “Um país problemático como o nosso, complexo, com uma dinâmica surgindo a cada dia, acho que o campo está vastíssimo aí, eu acho que inexplorado. Isso vai caber às gerações que vêm por aí, que tenham interesse pela coisa.” (NORONHA, 2004)

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E eu já comecei a indagar naquela época a origem daquela segregação, por que não havia documentação em torno do fato? Por que aquele pessoal tinha se refugiado numa serra perdida do sertão? Por quê? A força que os mandou pra lá, por quê? Bem, o documentário está lá, está lá a razão, a explicação. Aquilo adveio de uma pesquisa que eu fiz durante quase dois anos, em torno dos fatos. (NORONHA, 2004)

Típico ato do investigador que parte do incômodo ideológico, da percepção e não aceitação de uma situação social inaceitável. O Linduarte humanista passa a agir como repórter – e de fato vai produzir e publicar a reportagem As Oleiras de Olho d’Água na Serra do Talhado, em 1958 –, e então o repórter tornou-se cineasta com roteiro e a direção de Aruanda. Linduarte costumava dizer que o argumento de Aruanda partiu da reportagem, mas relativizava muito o papel do roteiro, enquanto peça determinista de um filme documentário: Porque quando você chega para realizar o seu documentário, você joga fora o seu roteiro e qualquer coisa, porque você está diante, na sua frente, encontra a realidade ali, na sua frente. Isso aconteceu com Aruanda e O Cajueiro Nordestino, uma realidade que não está dentro dos papéis, nem de classificações técnicas cinematográficas. (NORONHA, 2004)

O cineasta que tinha um roteiro em mãos tornou-se um realizador realista, que acreditava no estar fenomenológico diante do mundo mais do que em qualquer coisa. Já em 1960, Glauber Rocha tinha percebido isso: “Fiquemos certos de que Aruanda quis ser verdade antes de ser narrativa: a linguagem como linguagem nasce do real, é o real, como em Arraial do Cabo”. (ROCHA, 2003, p.145) Se era verdade antes de ser narrativa, como afirmou Glauber, era porque havia uma preocupação realista acima de qualquer valor estético. Linduarte afirmava que o documentarista deveria “procurar se isentar e ver o fato, quando muito, analisar, talvez, em narração. Mas o elemento próprio, característico, daquilo que está se filmando, eu acho que deve se prevalecer, deve ficar.” (NORONHA, 2004) Essa pureza proposta pelo diretor condizia muito com o contexto da época e com suas preocupações humanistas/realistas. Tais preocupações se tornariam fundamentos do Cinema Novo, mesmo em seus filmes ficcionais. Linduarte ainda iria radicalizar seu intento realista em O Cajueiro Nordestino, quando postula a não interferência. “Eu não usei interferência, não há diálogo, não há narração, não há nada, é somente a sonoplastia e o fato, claro, com a fotografia.” (NORONHA, 2004) Esse tipo de entendimento do documentário, enquanto cinema realista que deve buscar a não intervenção já tinha surgido com força nos Estados Unidos, com o grupo de Robert Drew, mas era extremamente original no

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Brasil, entretanto, não foi tão bem recebido quanto foi Aruanda, com sua música comentada e sua narração em voz over. Essa busca da não interferência por parte de Linduarte origina-se, também, de seu entendimento do ato da filmagem como fundamental para o cinema documentário, mais uma vez é a valorização do estar fenomenológico, da presença do documentarista diante dos desafios do mundo. O cineasta deveria sentir esse desafio, deveria estar pronto para lidar com os problemas do mundo de modo sensível, sendo capaz de compreender a realidade que está diante de si e de torná-la filme. “Eu acho que isso foge a qualquer esquema, a qualquer técnica específica de fazer isso ou aquilo outro, é espontâneo, o documentário é muito espontâneo, é do momento.” (NORONHA, 2004) O diretor fez uma transição, entre Aruanda e O Cajueiro Nordestino, na qual aprofundou a ideia de não intervenção e da ênfase na espontaneidade como postura essencial do documentário. Mas, quanto ao poder do documentário e a responsabilidade do documentarista, não houve mudança, a preocupação humanista era o cerne das intenções de Linduarte. Por isso para ele era tão importante a exibição, não se deveriam fazer filmes no Brasil que não fossem vistos, que ficassem guardados, para um filme “a grande coisa é que seja visto”. (NORONHA, 2004) Ele acreditava no poder transformador do cinema, no poder transformador do documentário e, por isso mesmo, dizia “que o documentário é um gênero importantíssimo no cinema, se não o mais importante, porque ele escapa ao artificialismo da interpretação, da narração.” (NORONHA, 2004)

REFERÊNCIAS AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. Campinas: Papirus, 2004. BAGGIO, Eduardo Tulio. O Cinema Documentário e seu Caráter Distintivo: a similaridade entre o objeto imediato e o objeto dinâmico. Dissertação de Mestrado, UTP, 2004. BERNARDET, Jean-Claude. O Documentário. In: COHN, Ensaios Fundamentais. Rio de Janeiro: Beco do Azougue Editorial, 2011. NORONHA, Linduarte. Linduarte Noronha: entrevista. Curitiba: O Cinema Documentário e seu Caráter Distintivo: a similaridade entre o objeto imediato e o objeto dinâmico. Entrevista concedida a Eduardo Tulio Baggio. 2004. RAMOS, Fernão Pessoa. Cinema Verdade no Brasil. In: TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. (org). Documentário no Brasil: tradição e transformação. São Paulo: Summus, 2004. pp. 81 - 96. ROCHA, Glauber. Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

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Refletir sobre um cineasta tão importante como Linduarte Noronha é refletir sobre a grande relevância do cinema brasileiro, sobre a grande relevância dos cinemas nacionais. A proposta de que isso seja feito com um método que busca voltar-se para o pensamento do cineasta, além de olhar para os filmes e para a crítica, parte do entendimento de que o ato de criação cinematográfica é um ato de proposição teórica, é um ato de desenvolvimento de ideias que podem ser sistematizadas como teoria dos cineastas.

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18 BRICHOS: UMA EXPERIÊNCIA DE REALIZAÇÃO AUDIOVISUAL E CONSTRUÇÃO DE FRANQUIA Paulo Munhoz

Agradeço o convite feito pela FAP, através da Professora Salete Sirino, para a escritura deste estudo de caso, sobre as personagens Brichos e sobre os filmes produzidos com essa turma. Esta publicação é uma boa oportunidade para dividir essa experiência com colegas da academia e do mercado audiovisual, bem como apresentar ao público em geral um pouco da aventura que é criar e produzir obras de animação no Brasil. Este convite também constituiu uma chance para a reflexão sobre os últimos doze anos de construção da franquia Brichos e sobre as novas estratégias a desenvolver num cenário em intensa e rápida transformação. Imaginamos apresentar também nossa experiência em distribuição, mas a limitação de espaço fez com que deixássemos a descrição dessa saga para uma próxima oportunidade. Espero que este trabalho ajude a mostrar a importância da animação. Essa é uma atividade tão presente em nossas vidas, seja no Cinema, na TV, nos Games, na Internet, na Arquitetura, na Engenharia, na Medicina, na Odontologia, na Física, na Química, na Administração, na Educação, na Computação, etc., que é difícil entender a falta de textos brasileiros sobre esse assunto. Pelas características deste capítulo, onde os objetos de estudo são criações minhas, produzidas dentro da minha empresa, optei por uma abordagem descritiva para apresentá-lo, tendo como fonte principal a memória (escrita, audiovisual e oral) da Tecnokena. Dessa forma, tomo a liberdade de escrevê-lo ora em primeira pessoa do singular, ora em primeira pessoa do plural, evitando a clássica impessoalidade (uso terceira pessoa e partícula ¨se¨) pois entendo que assim ele se apresenta mais verdadeiro e deve soar mais agradável aos ouvidos-olhos do leitor.

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Figura 1 – Bandeira, Tales e Avizinho. Ao fundo a escola da Vila dos Brichos.

BRICHOS – QUE BICHO É ESSE? BRICHOS significa BICHOS BRASILEIROS e identifica uma turma de personagens inspirados na fauna brasileira e no povo brasileiro. As diversas espécies revelam nossa diversidade em suas muitas formas, costumes e sotaques. A Vila é habitada também por imigrantes como a vaca Letícia Van Der Buerger ou visitada, de vez em quando, por estrangeiros.

O universo dos Brichos é uma espécie de Brasil em miniatura, no rumo certo, misturando autogestão, ecodesenvolvimento, muita responsabilidade e alta tecnologia, mas que sofre ataques sistemáticos da turma que quer ver o circo pegar fogo, da turma do jeitinho, da turma da malandragem. Num misto de soluções caseiras e alta tecnologia, referências do passado e apostas no futuro, discussões locais e visões globais, a vida na Vila se desenvolve na busca da felicidade. BRICHOS – NASCIMENTO DA IDEIA Em 2002 eu vivia um momento muito importante em minha vida. Finalizava meu Mestrado no PPGTE UTFPR – Programa de Pós-Graduação em Tecnolo-

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Na Vila dos Brichos, por exemplo, pode-se ver: uma anta (Dona Gina) sendo a supermãe adotiva de um quati (Jairzinho); um nerd tamanduá (Bandeira) enfiado na internet; uma jacarezinha (Jaca) tocando bateria e compondo as músicas de sua banda; um cientista joão-de-barro (P. Dumont) desenvolvendo máquinas de alta tecnologia, ajudado por seu filho Dumontzinho que, para desgosto do pai, é discípulo da esotérica arraia Madame Ísis. Também encontramos Ratão gerando discórdia e confusão através de suas tramoias e golpes, sempre confrontado pelas forças da justiça que se organizam ora com a energia de Tales (filhote de jaguar) e sua turma, ora com a contribuição dos adultos.

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gia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, lançava meu curta-metragem O Poeta, e comprava, junto com minha esposa e sócia1, a casa que se tornaria núcleo familiar e sede de nossa empresa2. O Poeta é um filme que me permitiu grandes experiências e descobertas. Por um lado, permitiu que refletisse sobre poesia e linguagens de maneira profunda, apoiado e inspirado pelas leituras do mestrado e pela orientação dos professores Carlos Alberto Faraco3 e Sonia Ana Lesczczynski4. Por outro lado, marcou meu retorno à animação, pois embora minha carreira tivesse começado pelo desenho animado em 1985, eu vinha trabalhando em diversos caminhos, ora com programação multimídia, ora com vídeos de ficção, ora com documentários, usando animação apenas como acessória nesses trabalhos. Nesse momento de casa nova, título novo e filme novo, além de um sentimento de base mais sólida, de melhor estrutura (física, emocional e intelectual), passei a acalentar a ideia da criação de uma turma de personagens com a qual eu pudesse gerar diversas ideias, desenvolver novos produtos, produzir filmes, séries, livros e games, sem ter que, a cada novo projeto, estruturar tudo do zero. Eu precisava criar uma turma que permitisse uma relação contínua com os espectadores, que gerasse empatia e que pudesse se tornar, a médio e longo prazo, um caso de grande sucesso. Passei então a trabalhar arduamente nessa direção. Esbocei turmas de crianças, adolescentes, jovens e adultos. Imaginei famílias, mundos, temas, conflitos. Mas toda e cada nova ideia parecia mais uma cópia do que já existia. Num mundo cheio de livros, personagens, marcas, heróis, games, filmes e séries, é muito difícil ser original. Aliás, basta um pouco de atenção para se perceber em cada novo show as várias influências que o mesmo recebe. Cheguei à conclusão de que uma ideia realmente original e forte deveria nascer de um grande problema real. Exatamente após ter esse pensamento, veio-me à mente o complexo de vira-latas do brasileiro, apontado por Nelson Rodrigues. Ou seja, a nossa dificuldade em autovalorização que faz com que não enxerguemos nossos potenciais, que nos torna cegos às nossas riquezas, que nos faz escravos admiradores de distantes modelos estrangeiros. Então, falei para mim mesmo: “É isso aí, vamos criar uma turma para resolver esse nosso complexo de inferioridade”. Ao mesmo tempo em que decidi isso, comecei a pensar nos grandes valores da nação brasileira: criatividade, natureza, diversidade, alegria, receptividade, natuDaniella Rosito Michelena Munhoz, Designer, Especialista em Ciências da Computação, Mestre em Antropologia, Doutoranda em Design na UFPR.

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2 TECNOKENA AUDIOVISUAL E MULTIMÍDIA LTDA, fundada em 1998, em Curitiba, PR, com atividades de produtora audiovisual, editora e distribuidora.

Doutor em Linguística pela University of Salford, Inglaterra (1982), ex Reitor da UFPR.

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PhD em Educação pela University of Iowa, Estados Unidos (1993).

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reza, rios, flora e fauna. “Opa! Fauna! Temos a maior biodiversidade do planeta!” E aqui a fortaleza da condição brasileira se unia ao problema de fundo em questão. Ora, se você perguntar a uma criança ou adulto brasileiro a respeito de animais, de pronto virão os leões, ursinhos, tigres e elefantes. E se fizer uma pesquisa sobre marcas brasileiras: Tubos Tigre, Matte Leão, Escovas Condor, Peru da Sadia, Elefante da Cica, etc. Ou seja, o povo que habita o espaço de maior biodiversidade do planeta não enxerga a sua fauna, ou não se lembra dela como fator positivo. No falar brasileiro, é comum o uso de expressões como “anta gorda”, “pessoa jaguara”, “língua de cascavel”, “amigo da onça”, “pessoa jacu”, “fedido como um quati” etc. Isso revela nosso colonialismo cultural. Bacana é o “bicho de fora”. O nosso é feio, perigoso, fraco, indolente. Ou seja, replica-se aqui a valorização do estrangeiro, como se este fosse melhor pela própria condição de alteridade, de distância. Assim, a turma dos Brichos surgiu para ajudar a alterar essa equação. Ou seja, a missão dessa turma é entusiasmar o povo brasileiro no sentido da busca da solução de seus problemas a partir da descoberta e valorização de seus próprios potenciais. Não somos apenas carnaval, futebol, matas, cobras e bundas. Somos também o país da diversidade cultural e religiosa; somos o país do inventor do avião; somos um país musical; somos um país audiovisual; somos um país rico em recursos naturais; somos um país de empreendedores; contamos com empresas como Petrobras, Boticário, Gerdau, Caixa, Itaipu, Weg, Votorantin, Positivo Informática, Embraer, etc.; somos um país que consegue, quando pode e quer, encontrar soluções próprias para enfrentar suas dificuldades.

Cito o Plano Real para frisar que nada ocorre por acaso e também para lembrar algo de cunho simbólico que sempre me chamou a atenção e que agora posso registrar. Ao se criar a moeda Real (R$) substituíram-se as efígies de brasileiros notáveis por animais brasileiros, quais sejam: garoupa, onça-pintada, mico-leão-dourado, arara, garça, tartaruga de pente e beija-flor. Minha hipótese é de que esse feito simbólico de carregar em nosso dinheiro esses animais foi responsável por boa parte da força dessa nova moeda. Dá-me a impressão de que essa assunção de um poder realmente nosso, presente em nossa natureza, na realidade das matas, rios e mares, iluminando arquétipos de nossas mentes, nos trouxe confiança e cuidado para esse papel portador de valores. Dentro desse espírito, os Brichos foram criados para revelar matizes, características, valores e potenciais de nosso povo, para destruir estereótipos, para instigar novas visões de mundo e de país, apresentando os conteúdos sempre de forma refle-

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Um exemplo inspirador nesse sentido é o Plano Real, liderado pelo então Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso no governo Itamar Franco, que, junto com sua equipe e apoio da nação, conseguiu estabilizar nossa economia. Plano esse cujas bases têm se mantido, sabiamente, nos seguintes governos de Luís Inácio da Silva e Dilma Rousseff.

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xiva, crítica e bem-humorada. Afinal, como dizia Paulo Leminski: “Isso, de querer ser aquilo que a gente é, ainda vai nos levar além!” BRICHOS – DESENVOLVIMENTO DA IDEIAE O PRIMEIRO FILME Não basta ter uma ideia, há muito que trabalhar para seu desenvolvimento e concretização. Após os primeiros insights, estudei vários livros de Zoologia e Botânica e retomei leituras de Antropologia, em especial os textos de Roberto da Matta e Darcy Ribeiro. Passei a desenvolver o conceito do universo e as características de cada personagem. Foram vários meses de um trabalho tão intenso que não encontrei em minha agenda uma data específica da criação dos Brichos. Apenas sei que a turma nasceu no segundo semestre de 2002. Embora goste de desenhar, há muitos anos não tenho mais tempo para isso e efetivamente não me considero um bom artista nesse mister. Assim, fui agregando outros talentos para o desenvolvimento de personagens, cenários, máquinas, roupas, utensílios e objetos do universo Brichos. É importante frisar que esse desenvolvimento é contínuo e que essa agregação de talentos sempre ocorre a cada novo trabalho. Além da parte visual em si, também agregamos talentos para a animação, criação de roteiros, criação e produção musical, design sonoro, vozes, etc. A maneira mais correta de perceber essa contribuição é ler os créditos dos filmes5, livros6, séries de TV7, games8 e outros produtos9. Todas as pessoas pensam, mas nem todos podem ser considerados criativos. Criação supõe colocar no papel ideias, argumentos, sinopses, desenhos, roteiros. Criação supõe escrever os primeiros códigos de um programa, elaborar diagramas, enumerar necessidades, elencar regras e objetivos. Criação supõe o uso de lápis e papel, ferramentas, computadores e softwares. Criação supõe o estabelecimento de hipóteses, a busca de informações, a formulação de um projeto. Criação supõe a busca de referências, o aproveitamento do saber acumulado, a busca de parceiros. Criação significa imaginar e trabalhar. Daí a existência do termo “realizador” que adjetiva o ser criador com suficiente coragem, determinação e capacidade para materialização de suas ideias. Como realizador, além da geração de ideias e caminhos, do trabalho nos primeiros rabiscos e textos, trabalho já de início com a enumeração de objetivos, Brichos; Brichos – A Floresta é Nossa; O Mistério das Iaras.

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Brichos; A Floresta é Nossa; O Mistério das Iaras. In Mitorama Lendas Brasileiras.

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Brichos – A Natureza da Cultura; Brichos – Série de TV Primeira Temporada.

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Games do Site www.brichos.com.br; Brichos Mobile (em produção).

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Flip Books, Sites na internet, Cartazes, Folders, Paper Toys, Mascotes.

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desafios, oportunidades e o desenvolvimento de estratégias. Primeiro penso e registro tudo livremente. Num segundo momento retorno aos registros munido de observações de contextos, pesquisas, condições, necessidades, capacidades e chances de viabilização. Num terceiro momento transformo tudo em projeto e elaboro uma estratégia. Essas etapas muitas vezes são solitárias e noutras vezes se dão com a colaboração de outras pessoas. Com um projeto bem elaborado é possível conseguir as condições materiais para a sua realização. Obtido isso, agregam-se pessoas e empresas para a efetiva produção da obra. Finalizada a obra, ela é lançada. Depois vêm os retornos do público e crítica, as prestações de contas dos apoios recebidos, a análise dos resultados e o arquivamento de materiais para utilização futura. Com Brichos, uni sonho e oportunidade. Se comecei a criação da turma pensando numa produção industrial de conteúdo, cuja distribuição mais lógica seria a televisão, por outro lado os recursos para financiamento, à época, só viabilizavam a criação de produtos cinematográficos10. Como sempre quis fazer um longa e como já iniciava o desenvolvimento da turma, cheguei à conclusão que o ideal era constituir essa turma focado na realização de um primeiro filme de longa-metragem, pois assim teríamos um objetivo concreto, datas e parâmetros a considerar.

O primeiro artista chamado para contribuir no desenvolvimento das personagens foi o ilustrador curitibano Antonio Eder que já havia trabalhado conosco em outros projetos e que possui uma grande capacidade de síntese em seu traço. Os desenhos da próxima página mostram alguns dos primeiros resultados de nosso diálogo criativo. Nessa primeira fase, a turma ainda era formada apenas por adultos, ou melhor, por personagens sem idade definida. Testamos esses personagens, utilizando uma animação muito econômica, no vídeo A Lenda das Iaras, produzido para o DVD Mitorama – Lendas Brasileiras, da Tecnokena. Também agregamos, com vistas ao primeiro longa, um conjunto de outros profissionais que formou o primeiro time para a realização de Brichos. Convidamos o roteirista Erico Beduschi, o músico Vadeco, os animadores Tadao Miaqui, Walkir Editais de baixo orçamento do Ministério da Cultura; Edital de Cinema do BNDES; Edital de Cultura da Petrobras.

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Àquela época não havia como pensar numa produção de Computação Gráfica 3D, pois não tínhamos um volume de profissionais capacitados e não tínhamos recursos para a compra ou locação de hardwares e softwares necessários. Assim, optamos desde o início pela animação 2D, pois sabíamos que teríamos condições de adquirir máquinas, softwares e treinar uma equipe capaz de produzir mais de 70 minutos de imagens em movimento. Essa decisão definiu o caminho dos primeiros estudos e a posterior evolução das personagens.

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Fernandes e Odirlei Seixas para formar o núcleo criativo inicial do primeiro filme. Daniella Michelena já participava da equipe e foi nossa Diretora de Produção.

Figura 3 – BRICHOS - Primeiros estudos: Personagem Jaguar

O roteiro foi escrito a quatro mãos, muito rapidamente. Ele serviu de base para o primeiro storyboard que possuía imagens como a seguinte:

Figura 4 – Dumontzinho

Nota-se nesses traços a manutenção da irreverência, a inclusão da cor e sombras e a condução do desenho para um estilo bem adequado à animação 2D. Em 2004 ganhamos o edital da Petrobrás que viabilizou a produção do filme. Recebemos R$ 580.000,00 para a produção e finalização, o que é um valor muito

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baixo para um longa em animação, mas o suficiente para, dentro de nossa filosofia de conseguir fazer muito com pouco, levar às telas a nossa obra. Logo em seguida, nosso roteiro foi selecionado para o Laboratório SESC Rio de Roteiros Infantis, dirigido pelas cineastas Carla Camuratti e Carla Esmeralda. Durante uma semana ficamos submetidos à análise crítica de vários autores, nacionais e internacionais que, efetivamente, fizeram um grande raio-X sobre nossa criação, apontando suas qualidades e defeitos. Foi um processo intenso que nos exigiu muito bom senso e coragem para, ao fim da semana, jogar nosso trabalho no lixo, voltar para casa e escrever tudo de novo. Para nós, não bastava termos um projeto já aprovado, queríamos fazer um filme que funcionasse junto ao público. Assim sendo, mantivemos o conceito geral, mas fizemos uma revisão total no conjunto de personagens. Estabelecemos melhor as famílias e os grupos de mesmas idades. Deixamos o protagonismo para os pré-adolescentes, incluímos o game no universo desses personagens, definimos melhor as regras do Universo Brichos. Assim, produzimos novos model sheets, novas plantas da cidade e das locações principais, novas versões do roteiro e um novo storyboard. Além disso, lançamos o curso “Animatiba” para formar mais animadores para trabalharem no filme.

Distante no tempo, fica difícil agora lembrar o quanto foi trabalhoso realizar esse primeiro longa, nas condições que tínhamos. A nosso favor a qualidade dos talentos humanos que estavam envolvidos totalmente no projeto e que iam melhorando a cada semana em termos de habilidade artística e eficiência. Contra nós o cronograma enxuto, os poucos recursos e a falta de experiência de vários elementos da equipe.

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Figura 6 – Tales, Jairzinho e Bandeira na versão que foi para o cinema em 2006.

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Todo o áudio foi feito na empresa Astrolábio, de Curitiba. As músicas do filme e o design sonoro são criações de Vadeco11, e as canções são composições suas sobre letras minhas. A música que abre o filme se chama “Quem sou eu?” e indica a missão desse primeiro filme que é efetivamente gerar a reflexão sobre essa questão. O som foi finalizado no padrão Doby Digital. Atores como Mario Schoemberger, Enéas Lour, Mauro Zanata, Marino Junior, Fabiula Nascimento, Regina Vogue, Renet Lyon, Michelle Pucci, entre outros, fizeram as vozes das personagens. Para os 77 minutos de filme, a produção de animação gerou 110.880 imagens finais, no formato 2048 x 1107 pixel correspondente à janela de cinema 1:1,85. Cada imagem final foi gerada a partir de uma imagem original composta de camadas de fundo, camadas de habitações, camadas de árvores, camadas de personagens. Ou seja, devemos ter produzido um mínimo de 500.000 desenhos. Inventamos um sistema de nomenclatura de arquivos e disposição em pastas que garantiu a organização de nossa produção. Além disso, tínhamos uma prancha de controle de produção visível para todo o grupo e um sistema de distribuição de cenas coordenado pelos próprios animadores. Nosso projeto ganhou ainda um edital do BNDES no valor de R$ 100.000,00 e um novo edital de apoio à distribuição da Petrobrás, também no valor de R$ 100.000,00. Esses valores deram um certo alívio às nossas condições e permitiram que tivéssemos um lançamento digno nas salas de cinema (15 cópias em película de 35 mm) e em DVD. A primeira exibição não comercial do filme ocorreu no Festival Anima Mundi, em julho de 2006. A pré-estreia comercial ocorreu em Curitiba, lotando 4 salas do Complexo Cinemark Muller. O filme foi lançado pela Panda Filmes em codistribuição com a Tecnokena. Ficamos algumas semanas em cartaz em diversas capitais e fizemos um público inicial de aproximadamente 10.000 pessoas. Esse número pequeno nunca parou de subir, pois o filme continuou sendo exibido. Em 2009 fomos surpreendidos com a notícia que o filme havia chegado a marca de 130.000 pessoas no interior de São Paulo. Em festivais nacionais e internacionais o filme contabilizou aproximadamente 40.000 pessoas. Como já foi e continua sendo exibido na televisão (TV Brasil, TV Cultura, TV Aparecida, Canal Ra-tim-bum, Gloob, Netflix, Youyn) ele já atingiu dezenas de milhões de espectadores. Brichos ganhou o Prêmio Amigo do Cinema Infantil da Mostra de Cinema Infantil, o Prêmio de Melhor Trilha Sonora do Festival de Maringá e foi indicado ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2007. Entrou para o acervo do Itamaraty como exemplo de obra importante para nosso patrimônio cultural. Circulou por dezenas de mostras e festivais do Brasil e do Exterior. Valdemar Schettini.

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O que mais marcou a existência desse primeiro filme foi sua calorosa recepção pelo público e o retorno que muitos nos deram, através de e-mails, telefonemas e cartas. Os exemplos seguintes dão uma ideia do retorno que tivemos: Augusto Piratelli [email protected] Cidade: Sorocaba – SP Mensagem: Sou Biólogo e professor da Universidade Federal de S. Carlos Campus Sorocaba. Estando pelo Rio, pude assistir ao Brichos, e gostaria de parabenizar toda a equipe, não somente pela beleza do filme, mas principalmente pela mensagem. Sou professor da disciplina Biologia da Conservação, e sempre passo aos meus alunos essa preocupação de que eles infelizmente conhecem mais animais estrangeiros do que brasileiros. O filme fala na linguagem dos jovens e resgata valores de nossa cultura, sem, entretanto, ser piegas e sem lições de moral no final. Parabéns mesmo, me emocionei ao ouvir a apresentação do diretor antes do filme. Augusto Marcia Gomes [email protected] Cidade: Rio de Janeiro – RJ Mensagem: Ola pessoal! Minha paixão pelo longa foi tanta, que hoje assisti pela 2° vez. Queria parabenizar a todos os responsáveis pelo longa. Foi maravilhoso! Criei uma comunidade no Orkut, pra ninguém nunca mais esquecer dessa linda estória.

Ricardo Max [email protected] (Local não identificado) Mensagem: Olá! Só gostaria de parabenizar toda a Equipe que produziu o longa Brichos, que foi um grande sucesso no Anima Mundi. Eu gostei muito e vi que a receptividade do público foi excelente ao sair da sala, não só das crianças. Aproveito para parabenizar pelos troféus conquistados pelo curta Pax, que tive a oportunidade de assistir duas vezes. Excelente tanto a animação quanto o roteiro. Merecidos os prêmios. Fico feliz de ver que Curitiba está se saindo muito bem no cenário de animação nacional. Hemily [email protected] Suzuka – Japão. Mensagem: Eu moro no Japão e fui no evento de Kameyama assistir de grátis. Queria puxar esse filme para a minha família ver porque no dia em que eu fui, fui com a minha escola! Por favor, me passa alguma coisa sobre como adicionar o filme para mostrar para a minha família.

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Betania L. D. de Araujo [email protected] São Paulo – SP Mensagem: Sou professora de Arte e estudo os desenhos dos meus alunos e dos cartunistas. Assisti com a minha família ao Brichos hoje e achei fenomenal. Sinto que vocês perderiam o tema maior de identidade e cultura, se não criarem projetos junto a prefeitura de São Paulo e demais prefeituras. As crianças de São Paulo sentem-se qualquer coisa, menos brasileiras. Ao assistir ao desenho vi o quanto nos faz falta desenhos animados brasileiros. Conhecemos todos os estrangeiros Da Cartoon network, Disney, Boomerang, Discovery kids. As crianças não se reconhecem porque a TV não faz com que elas reconheçam a sua aldeia. Acredito que devam ampliar o projeto deste bom desenho animado. Quero todos os materiais. Sempre levo Anima Mundi aos meus alunos da prefeitura e gostaria dos materiais do desenho.

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Esses retornos foram um bálsamo para nossos corpos e mentes. O filme é esteticamente simples, mas tocou o coração das pessoas, ele encontrou e dialogou com seu público. O cansaço foi recompensado. E quando digo cansaço não me refiro somente às horas de trabalho, às tensões, ao esforço pela manutenção da harmonia da equipe, aos desafios tecnológicos. Falo também do cansaço do enfrentamento das burocracias, do cansaço das múltiplas formatações de projetos, das diversas horas passadas preparando e conferindo prestações de conta. Um desses cansaços, vale a pena registrar, deveu-se ao enfrentamento da decisão do Ministério da Justiça em considerar nosso filme como inadequado a menores de dez anos, conforme sua Classificação Indicativa. Isso prejudicou a distribuição de nossa obra, mas me fez gerar uma defesa de 14 páginas em relação às especificidades da animação. O Ministério reviu sua posição e mudou totalmente a forma como se dá a avaliação dos filmes dessa natureza hoje em dia. Outro fator que exigiu e continua a exigir muita energia é o ciclo de formação, treinamento, aproveitamento e perda de talentos. Após Brichos, tentamos manter a equipe, mas foi impossível. Usamos o time para fazer uma série de interprogramas para a TV12 e ainda conseguimos fazer mais um longa13, de baixíssimo orçamento. O lado positivo é que essa experiência ampliou os conhecimentos e habilidades de todos os envolvidos e estimulou a criação de novas empresas. Os animadores Odirlei Seixas, Filipe Grosso e Fábio Viana fundaram o Estúdio Cabong e os animadores Walkir Fernandes e Tiago Américo se juntaram ao Diretor de Arte Antonio Eder para fundar a Sputnik. Outro fator positivo é a contínua geração de know how. Esse conhecimento acumulado permitiu o grande salto de qualidade que veio com Brichos – A Floresta é Nossa. BRICHOS 2 – A FLORESTA É NOSSA Desde a concepção de Brichos imaginei poder fazer três filmes que dessem conta destas perguntas filosóficas básicas: “quem sou eu?”; “para onde vou?”; “de onde venho?”. Brichos 1 lançou a primeira questão. Brichos 2 foi realizado sob inspiração da segunda e Brichos 3 deverá abordar a terceira. Brichos – A Natureza da Cultura. Série de 20 episódios de 1 minuto cada, viabilizado através da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Curitiba, com apoio da empresa Siemens.

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Belowars, 2007, com roteiro baseado no livro Guerra Dentro da Gente de Paulo Leminski, viabilizado através do Edital Estadual de Cinema do Paraná, prêmio da categoria Telefilme.

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Figura 7 – Vista da Biblioteca, Hospital ao fundo e Dirigível passando no céu em Brichos 2.

O projeto do segundo longa-metragem nasceu, então, voltado para o futuro e teve a questão ecológica como principal motor da história. Escrevemos o primeiro tratamento do roteiro buscando criar uma aventura internacional, com mais cenas de ação e humor14. Essa decisão foi baseada nas reações do público ao primeiro filme. Como havíamos perdido toda a equipe, relançamos o curso “Animatiba” no qual formamos novos animadores que constituíram o grupo principal de artistas para enfrentar o novo desafio.

Erico Beduschi se mudou para a Itália e não participou da escritura dos demais tratamentos.

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Começamos a viabilizar a produção de Brichos 2 já em 2007 com a premiação de nosso projeto no Edital do BNDES. Naquele momento estávamos ainda em dúvida se o filme deveria se chamar A Floresta é Nossa ou Brainforest (o modo como os estrangeiros de Noforest e Iceforest se referem à Vila dos Brichos no filme). Mas o que importava era que o projeto já estava em curso. Esse prêmio aportou R$ 700.000,00 à produção. Graças ao apoio do produtor Beto Rodrigues, da Panda Filmes de Porto Alegre, conseguimos apoio da CORSAN – Companhia de Saneamento do Rio Grande do Sul – no valor de R$ 100.0000,00. Ao longo do tempo conseguimos novos aportes de R$ 25.000,00 do SESI PR e R$ 25.000,0 do SENAI PR. Em 2010 ganhamos o Edital da Petrobrás que nos aportou R$ 580.000,00. Em 2012, com o filme já pronto, conquistamos o Prêmio de Distribuição da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Curitiba que representou mais R$ 100.000,00. Assim, pela primeira vez, tivemos recursos para finalizar e distribuir um filme de forma mais adequada. Se compararmos o orçamento de nosso filme com outros projetos de animação 2D que estavam em curso à época, como Peixonauta (orçamento aproximado de R$3.000.000,00)

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e Histórias de amor e Fuga (orçamento aproximado de R$5.000.000,00)15, veremos que Brichos 2 continuou o processo de fazer muito com pouco. BRICHOS 2 – A FLORESTA É NOSSA – INOVAÇÕES A primeira inovação em Brichos 2 se deu no storyboard. Eu mesmo produzi a primeira versão do storyboard do filme, com um traço muito simplificado, mas com a indicação precisa, plano a plano do que eu, como Diretor, queria ver na tela. Assim sendo, eu já conversava com toda a equipe, munido de uma primeira tradução gráfica do roteiro. Isso foi fundamental para a necessária imaginação coletiva do filme. Depois, todos os artistas participavam do “passar a limpo” o storyboard para a sua forma final, inicialmente em preto e branco e finalmente a cores. Essas instâncias permitiram ao grupo se envolver mais a fundo na história e até mesmo sugerir mudanças de planos e encenações.

Figura 8 – Storyboard do Diretor. Cena 30. Planos 05 e 06.

Figura 9 – Storyboard da Equipe. Cena 31. Planos 06 e 07

Fonte: Levantamento da Produção. In: Revista de Cinema. São Paulo, Edição 106, página 43, setembro e outubro de 2011.

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Outra inovação foi a completa mudança do design das personagens e do projeto gráfico dos cenários e objetos. Nesse caso, nossa busca foi manter as características originais das personagens em termos de funcionamento dramático – psicologia, voz, gestual, relação com os outros, tiques, etc. – e o conceito original do universo, mas avançando para um design mais arrojado. Alguns tipos tomaram muita energia da equipe para essa transformação. Provavelmente o caso mais complicado foi Tales. Outros tiveram uma mudança mais fácil como Dumontzinho que já estava bem resolvido desde o primeiro trabalho. Uma contribuição notável veio da Direção de Arte, encabeçada pelo Designer Rafael Dias, o qual bebeu do conceito original, colocando-o em uma nova dimensão estética. Sua experiência em Arquitetura ajudou muito, bem como sua capacidade de pesquisa, rapidez e perfeccionismo. Outras contribuições fundamentais foram dadas por Marcos Yuji, Filipe Laurentino e Gustavo Ogg, principalmente na modernização das personagens e na determinação do estilo de animação.

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Desde o início a VIla dos Brichos foi concebida como uma mistura de Floresta e Cidade onde vivem os seus habitantes, os Brichos. Sua arquitetura tem referências no modernismo brasileiro e nos modelos tradicionais de construção das diversas partes do Brasil. Ao mesmo tempo cheia de natureza e de soluções de tecnologia avançada, ela apresenta diversas soluções de Design Ecológico. Por exemplo, o laboratório de P. Dumont é um conjunto de esferas metálicas gigantes apoiadas num imenso Jequitibá. O posicionamento das esferas em braços radiais lembra outra árvore de grande porte e significado cultural, a Araucária. Silhuetas de árvores dão preenchimento às cenas, criando uma sensação de profundidade e envolvimento pelo verde. Todas as silhuetas são representações de árvores da flora brasileira. A maioria dos habitantes vive em estruturas que são uma mistura de prédios e árvores, enquanto outros podem estar em casas de rocha, cimento, tijolos, ou mesmo de madeira. Alguns prédios lembram animais, como a escola que se parece com uma tartaruga. Outros são ultramodernos como a Toca da Sabedoria, onde temos um domo que flutua por magnetismo. Ele é inspirado nas ocas dos índios brasileiros e em ninhos de diversas espécies. A cidade gera sua própria energia e alimentos, cuida de suas águas e seus ares e estabelece trocas com outras partes do país e do planeta. Sabemos que ela está no Brasil, mas não exatamente onde, pois ela quer simbolizar a sua totalidade. Mobiliários, ferramentas, meios de locomoção são atuais, mas recebem um tratamento na linha Brichos. São carros, bicicletas, computadores, fogões, chuveiros, etc. adequados aos seus tamanhos, quantidade de patas e outras características particulares. No Brichos 2, além de usar esses conceitos, nós os alteramos em termos dimensionais, pois a Vila ficou bem maior. Criamos, também, uma nova condição de relação com o mundo, pois incluímos locações no hemisfério norte – Iceforest – e na África – Noforest. Além disso, definimos uma condição de maior profundidade para todas as cenas. Para as personagens principais, construímos modelos em 3D que

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permitiram aos animadores uma melhor condição de visualização para o desenho dos planos mais difíceis. Mantivemos em algumas cenas a utilização de silhuetas que já havia funcionado bem no primeiro filme.

Figura 10 – Tales e Jarzinho perseguindo o motoqueiro misterioso pelas ruas da Vila dos Brichos.

Em termos de organização da produção, sistemas de arquivos, backups, método de divisão de tarefas, Brichos 2 seguiu o padrão desenvolvido para o Brichos 1. Em termos de preparação da prestação de contas houve uma sensível melhora, não apenas porque melhoramos nosso controle, mas também porque a Ancine melhorou seus sistemas de informação e porque encontramos um contador inteligente e propenso ao entendimento das especificidades de nossa área. Por fim aumentamos o rigor em relação à animação, à interpretação das vozes, à produção de áudio. Nosso time deu conta desse desafio, com louvor. Foi prazeroso ver o contínuo aumento da qualidade da animação ao longo do tempo. Foi prazeroso contar com os grandes atores do primeiro filme e vê-los melhorando suas performances. Foi prazeroso ver a grande evolução alcançada por Vadeco e sua equipe de áudio, tanto em termos de estrutura tecnológica quanto em conhecimento e metodologia de trabalho. Foi fantástico conseguir um substituto à altura do falecido ator Mário Schoemberger para a voz do vilão Ratão, nesse caso o ator e músico André Abujamra. Foi um prazer imenso adicionar o talento do Marcelo Tas na voz do vilão Mr. Birdestroy. Foi maravilhoso poder contar com um monstro sagrado do teatro, do cinema e da televisão, como Antonio Abujamra em nosso elenco. Foi imensamente gratificante ver a admiração dos técnicos do laboratório Cinecolor Digital, em São Paulo – onde fizemos a mixagem final, transfer e DCP –, em relação à qualidade do material que produzimos. Marcante é perceber o amadurecimento pessoal que vem com a imersão em projetos dessa natureza. Ninguém sai de um longa-metragem em animação da mesma forma como entrou. A evolução é visível na melhoria das habilidades, comportamentos e conhecimento.

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Esse trabalho também exige muita humildade. Efetivamente estamos cem anos atrasados em relação a nossos concorrentes norte-americanos, europeus e japoneses. Assim, há que se ter em mente que o caminho é longo, difícil e perigoso. Há que se estar atento a toda e qualquer oportunidade. Durante o desenvolvimento do projeto, por exemplo, o número de salas de projeção 3D aumentou muito e se consolidou o gosto por este formato. Principalmente no caso da animação, filme para cinema virou sinônimo de filme 3D. Fomos atrás dessa solução e chegamos a fazer um teste de estereoscopia na empresa Mono 3D, de São Paulo. O resultado ficou muito bom, mas os custos eram muito altos e teríamos que adicionar mais 6 meses em nosso cronograma. Além disso, o roteiro não havia sido pensado para esse tipo de finalização. Conseguiríamos um grande argumento de marketing, mas os efeitos não seriam tão adequados à narrativa. Por fim, esse fator e a perda de esperança na captação de mais recursos, fez com que optássemos por um filme plano.

BRICHOS 2 – A FLORESTA É NOSSA – RESULTADOS Quando lançamos nosso filme, disputamos salas com gigantes como Detona ,Ralph16 e As Aventuras de Pi17, entre outros tantos filmes lançados na mesma época. Além da falta de salas e da pressão dos distribuidores sobre os exibidores, lidamos também com a mentalidade do público que só quer ver aquilo que acredita ser bom. Em termos de cinema, vir de Hollywood parece ser garantia de divertimento certo para as pessoas em geral.

O pessoal do estúdio Spirit Animation foi assistir nosso filme e relatou a

16 Detona Ralph, título original Wreck-it Ralph, direção de Rich Moore. Walt Disney Pictures. Orçamento US$ 165.000.000,00. Fonte Wikipedia. 17 As Aventuras de Pi, título original Life of Pi, direção de Ang Lee. 20th Century Fox. Orçamento US$ 120.000.000,00. Fonte Wikipedia.

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Figura 12 – Cena de Tales e Jairzinho na Floresta. Esse plano foi usado no teste para projeção 3D com um ótimo resultado.

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cena que viu na entrada do cinema. Havia uma criança grudada no display e pedindo à mãe para assistir a Brichos. Ao que a mãe respondeu “não, nós vamos ver um filme melhor, o Detona Ralph”. Ou seja, essa mãe não viu nosso filme, mas tem certeza de que ele é inferior ao concorrente. O filme foi lançado em 22 salas pelo Brasil, sendo 22 cópias em 35 mm e 2 DCP. O público atingido nas primeiras 4 semanas foi de 17.000 pessoas. Em termos de relação entre o orçamento da produção e o público pagante atingimos o índice R$ 88,23, melhor do que Detona Ralph da Disney (R$ 91,16) e de Peixonauta (R$ 428,57). Como chave de ouro, ao final de 2013, recebemos o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, da Academia Brasileira de Cinema. Nosso filme já está em DVDs e começa a ser vendido para televisões. Sua estreia na telinha se dará na Nickelodeon em setembro de 2014. Mas, o momento mais mágico na minha carreira foi lançar o filme no Anima Mundi, junto com o primeiro filme do meu filho, Tales, então com 7 anos. Além do orgulho e alegria familiar, o fato de ele estar concorrendo com sua obra Pow na categoria Futuro Animador e eu na competição de longas – sendo o primeiro representante brasileiro dessa modalidade –, gerou uma curiosidade muito grande da mídia, o que nos fez ter um imenso espaço numa edição de sábado do Jornal Nacional, além de uma entrevista para o Programa da Fátima Bernardes. Isso me dá muito otimismo, pois se a minha geração ainda luta para atingir as telas, a geração do meu filho já nasce conectada e com o poder de, já numa primeira obra, falar para centenas de milhões de espectadores. , REFERÊNCIAS ANDREATO, Neiane da Silva Azevedo; BARBOSA, Rafael Dias; MICHELENA, Daniella; MUNHOZ, Paulo Roberto. Mental e Ferramental. Curitiba: SESI. Departamento Regional do Paraná, 2012. Catálogo Oficial. Anima Mundi 2012 - Festival Internacional de Animação do Brasil. Rio de Janeiro, 2012. Digital Cinema System Specification. Los Angeles. Version 1.2. Digital Cinema Initiatives, LLC, Member Representatives Committee. March 07, 2008. Levantamento da Produção. In: Revista de Cinema. São Paulo, Edição 106, página 43, setembro e outubro de 2011. Tecnokena – Arquivos De Projetos. Curitiba: Tecnokena Audiovisual e Multimídia Ltda, 2012. FILMES: Brichos. Direção de Paulo Munhoz. Tecnokena. 2006. Filme de longa-metragem em animação. 35 mm e DVD. Brichos – A Floresta é Nossa. Direção de Paulo Munhoz. Tecnokena. 2012. Filme de longa-metragem em animação. 35 mm, DCP e DVD.

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19 CICLOS REGIONAIS NO PERÍODO MUDO Solange Straube Stecz

O cinema chegou cedo ao Brasil. Como em quase todas as capitais do mundo, os filmes de viagem dos Irmãos Lumiére se transformaram em um gênero popular e influenciaram a produção no final do século XIX e início do século XX.

Da mesma forma que em outras cidades, essas projeções, feitas por companhias de variedades, eram compostas de pequenas tomadas do cotidiano, denominadas vistas animadas, que mostravam a chegada de um trem ou um passeio de barco. As companhias de variedades viajavam pelo país trazendo diferentes atrações, como se fossem um grande circo, apresentando-se em parques ou teatros. Através delas chegavam as novidades, principalmente da Europa.

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Poucos meses depois da apresentação do invento dos Irmãos Lumière em dezembro de 1895 em Paris, os parques de diversões e teatros de praticamente todo o país incluíam a novidade em sua programação. No Rio de Janeiro, o “Omniographo” foi apresentado em 8 de julho de 1896, na Rua do Ouvidor, 57, com oito filmes de aproximadamente um minuto cada. Em São Paulo, em agosto de 1896, o público conheceu as “fotografias animadas” em sessão com a presença do Presidente Campos Salles e convidados. O jornal O Estado de São Paulo destacou a qualidade do evento, afirmando: “é digno de louvores o photographo, senhor Renouleau, que introduziu nesta capital o primeiro cinematographo que trabalha na América do Sul”. Em 1887, os curitibanos assistiam às primeiras exibições de cinema, nos intervalos das apresentações dos teatros Guaíra e Hauer, com exibição de filmes pela Companhia Francesa de Variedades de Faure Nicolay combinando “o deslumbrante e phantástico diaphanorama universal com o célebre cinematographo de Lumière”.

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A apresentação, quase que imediata, da nova invenção no país, traz consigo a dependência de mais um item de importação: a cultura estrangeira. O Brasil era fundamentalmente um país exportador de matérias-primas e importador de produtos manufaturados. As decisões, principalmente políticas e econômicas, mas também culturais, de um país exportador de matérias-primas, são obrigatoriamente reflexas. Para a opinião pública, qualquer produto que supusesse uma certa elaboração tinha de ser estrangeiro, quanto mais o cinema. O mesmo se dava com as elites, que tentando superar sua condição de elite de um país atrasado, procuravam imitar a metrópole. As elites intelectuais, como que vexadas por pertencer a um país desprovido de tradição cultural e nutridas por ciências e artes vindas de países mais cultos, só nessas reconheciam a autêntica marca de cultura (BERNARDET, 2007, p.20).

A presença estrangeira na cinematografia nacional pode ser constatada desde a chegada dos italianos Paschoal Secreto e Vittorio Di Maio, que teriam sido os primeiros a realizar sessões de cinema no país. Segundo pesquisa de Jorge Capellaro e Paulo Roberto Ferreira, “Verdades sobre o início do cinema no Brasil”, di Maio foi o primeiro a filmar no Brasil, em maio de 1897, na cidade de Petrópolis com o “cinematógrafo de Edison, antes mesmo de Paschoal Segretto, que registrou a baia de Guanabara em junho de 1898”. O registro de cenas do cotidiano, eventos sociais e políticos, e exibições itinerantes predominavam no início do cinema brasileiro. Nos primeiros dez anos de cinema, fotógrafos como o curitibano Annibal Rocha Requião fazem os primeiros filmes nacionais, como registros do dia-a-dia, recepção a personalidades e comemorações cívico-militares. A filmagem do Desfile Militar de 15 de Novembro, em 1907, marca o início do cinema paranaense, seguido por filmes como Festa da bandeira em Curitiba (1909), Da Serrinha aos primeiros saltos do Iguaçu (1909), e Passagem dos cavalheiros e senhoritas que compõe a nossa sociedade chique pela rua XV de novembro (1910). Dos trezentos filmes feitos por Requião, entre 1907 e 1912, apenas quatro sobreviveram, Carnaval em Curitiba, Panorama de Curitiba, Opera Sidéria e Fatos históricos do Tiro de Guerra Rio Branco. A inexistência de um sistema de exibição e a precariedade da energia elétrica são citadas por Paulo Emilio Salles Gomes para explicar a frágil estruturação do cinema nacional. Os dez primeiros anos de cinema no Brasil são paupérrimos. As salas fixas de projeção são poucas, e praticamente limitadas a Rio e São Paulo, sendo que os numerosos cinemas ambulantes não alteravam muito a fisionomia de um mercado de pouca significação. A justificativa principal para o ritmo extre-

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mamente lento com que se desenvolveu o comércio cinematográfico de 1896 a 1906 deve ser procurada no atraso brasileiro em matéria de eletricidade. A utilização, em março de 1907, da energia produzida pela usina Ribeirão das Lages teve conseqüências imediatas para o cinema no Rio de Janeiro. Em poucos meses foram instaladas umas vinte salas de exibição, sendo que boa parte delas na recém construída Avenida Central, que já havia desbancado a velha Rua do Ouvidor como centro comercial, artístico mundano e jornalístico da Capital Federal (GOMES,1980, p.29).

Na primeira década do século XX a maioria dos filmes brasileiros é de registros documentais. Os produtores desses filmes eram também os das salas de exibição, como Annibal Requião, em Curitiba, pioneiro na filmagem e na inauguração de cinemas no Estado – com seu cine Smart, em 1908. Ali, exibia suas “vistas” animadas e filmes estrangeiros, que, pouco a pouco, começavam a dominar o mercado.  As referências a filmes de ficção começam a aparecer em 1908 com Os estranguladores, de Antonio Leal e Nhô Anastácio chegou de viagem, representando dois gêneros de sucesso na cinematografia nacional: o filme policial e o do personagem rural. Segundo GOMES (1980) o filme de Leal, com quase quarenta minutos de projeção e dezessete quadros foi exibido mais de oitocentas vezes, “constituindo-se um empreendimento sem precedentes no cinema brasileiro”.

Vários estúdios de produção entram no mercado, o de Antônio Leal (1915) “era todo de vidro, uma forma de captar luz solar” (SIMIS, 1996), com 963 produções nacionais registradas até 1912, “grande parte destes filmes eram de curta metragem, vários deles documentários (768), tomadas de vista, e um quarto de ficção (240)” (SIMIS,1996). O desenvolvimento da indústria cinematográfica na Europa e nos Estados Unidos, a consequente dominação dos mercados nacionais, e os parcos recursos tecnológicos no país, levam rapidamente ao fim a Idade de Ouro e uma crise atinge produtores, diretores, roteiristas e exibidores. Os poucos que insistem em se manter produzindo não encontram espaço para exibição de suas obras. Com a Primeira Guerra Mundial, em 1914, o cinema norte-americano se expande e passa a dominar a circulação de filmes, inclusive no Brasil.

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É o inicio da curta Bela Época do Cinema Brasileiro, ou da nossa Idade de Ouro, com uma produção de mais de cem filmes em 1909/1910. Ademar Gonzaga, citado por VIANNY (1987), afirma que “nesse tempo o cinema brasileiro não temia a concorrência estrangeira, e nossos filmes realmente atraiam mais atenção do que The Violin Maker, de Cremona ou The Lonely Villa, de Griffith. Nosso cinema dava pancada mesmo no que vinha de fora.”

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De 1912 em diante, durante dez anos, foram produzidos anualmente apenas cerca de seis filmes de enredo, nem todos com tempo de projeção superior a uma hora... Em alguns meses o cinema nacional eclipsou-se e o mercado cinematográfico brasileiro, em constante desenvolvimento, ficou inteiramente à disposição do filme estrangeiro. Inteiramente à margem e quase ignorado pelo público, subsistiu, contudo, um debilíssimo cinema brasileiro (GOMES, 1980, p.28).

Os filmes de documentário ou naturais, como se chamavam na época, sobrevivem no mercado. Seus assuntos de interesse local, não concorriam com os filmes de enredo, dos quais as distribuidoras estrangeiras dominavam o mercado. Além dos “naturais”, o Período Silencioso é marcado pela produção de cinejornais. O mais conhecido, então, foi Rossi Atualidades, com 227 edições, produzido pela Rossi Film, empresa de São Paulo comandada por Gilberto Rossi. No Rio de Janeiro, Antonio Leal, Paulino e Alberto Botelho passam a dedicar-se à produção de jornais cinematográficos. Em outros estados a produção de “naturais” também está presente em todo o Período Mudo. Na Amazônia, Silvino Santos, entre 1913 e 1930, produziu nove longas e 57 curtas e médias-metragens, entre eles Índios Witotos do rio Putamayo (1913). Na Bahia, Rubens Guimarães, Diomedes Gamacho e José Dias lançaram o Lindermann Jornal, em Salvador (1909). Em Belém do Pará, Ramón de Baños produzia cinejornais quinzenalmente em 1912, com sua Pará Filmes. A produção nacional de filmes de enredo resumia-se a cerca de seis filmes por ano entre 1912 e 1922, com destaque para dezesseis filmes produzidos em 1917. Mas o acesso às salas de exibição é mais restrito. Nesta segunda fase, como definido por GOMES (1980), a produção é cada vez mais escassa, sobrevivendo através dos filmes de atualidades e do cinema de “cavação”, filmes de encomenda que registravam eventos públicos, negócios e histórias de famílias abastadas. A terceira fase do cinema nacional no período do filme mudo (1923/1933) marca um avanço quantitativo da produção, com cerca de cento e vinte filmes produzidos no período. Este aumento deve-se ao surgimento da produção descentralizada, os chamados ciclos regionais, em Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Sul e em Campinas (SP). CICLOS REGIONAIS O termo ciclos regionais pode ter vários significados, em geral ele é usado para se referir a um momento de crescimento da produção cinematográfica que se sucede a momentos de crise, como destaca ESCOREL (2005):

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O que os historiadores chamam de “ciclos” nada mais é do que o intervalo de tempo, em geral relativamente curto, entre as grandes expectativas e as crises que têm pontuado a história do cinema brasileiro. É um eterno recomeçar que viveu um dos momentos de expectativas mais positivas, posteriormente frustradas, nos anos 70 e que estaria então, ainda uma vez, vencendo uma doença terminal. A reincidência desse processo deveria servir como um sinal de alerta. A lição da história indica que a euforia pode ser passageira. Afinal, as crises parecem ser um traço definidor do nosso caráter subdesenvolvido. (ESCOREL, 2005, p. 14).

Na historiografia clássica do cinema brasileiro, autores como Paulo Emilio Salles Gomes e Alex Viany se referem aos ciclos regionais como o conjunto de filmes de ficção realizados nos anos 1920, fora do eixo Rio-São Paulo. Neste texto assumimos esta definição para descrever os momentos de produção fora do eixo, em particular em Recife, Cataguases e Campinas. Incluindo, para efeito de um panorama geral, a produção de “naturais” em Curitiba (PR), Barbacena (MG) e Pelotas (RS). CURITIBA (PR)

BARBACENA (MG) Paulo Benedetti, um italiano que chegou ao Brasil em 1897, estabeleceu-se em Barbacena (MG) em 1910, onde fundou a primeira sala de projeção local, o Cinema Mineiro, e a produtora Ópera Film. Cineasta, inventou a cinemetrofonia, que patenteou em 1912, para sincronizar a imagem com a música que acompanhava os filmes. Fez vários filmes “naturais”. Em 1912 dirigiu O guarani, adaptando parte da ópera de Carlos Gomes, e em 1915 Uma transformista original, baseado em uma opereta. O filme, com cinco partes, três das quais sincronizadas com o invento de Benedetti, tinha cerca de 40 minutos. Em 1928, Pedro Lima comentou o filme na Revista Cinearte: “Filme musicado e sincronizado, com intercalação de visões, truques e todo cantado. Para o tempo em que foi feito, denota um progresso extraordinário, o que justifica o entusiasmo causado no público quando de sua projeção em Barbacena”.

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A produção curitibana nos anos 1920/1930 não caracteriza exatamente um ciclo, mas registra a produção intensa de documentários, por Annibal Rocha Requião (1903 a 1912) e João Baptista Groff, que produziu em 1922 Iguaçu e Guaira, – que circulou internacionalmente com o título As maravilhas da natureza – e em 1930, Patria redimida, único registro fílmico da Revolução de 30. Groff acompanhou as tropas e o percurso da Revolução, até a posse de Getúlio Vargas, no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro. O filme foi distribuído para todo o país, e Groff continuou a produzir registros oficiais para o governo paranaense até 1942.

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Em 1940 Pedro Lima volta a comentar o filme em O Jornal: Uma transformista original, tendo como operadora a Rosina Cianello, talvez a primeira mulher no mundo empregada em semelhante trabalho. Este filme que ainda hoje é conservado em fragmentos, bem poderia ser recolhido a um Museu do Cinema, se nós tivéssemos entre tantos museus que possuímos, um, destinado a guardar o que já temos realizado na Arte das Imagens. (GALDINI, 2007).

A dificuldade em conseguir filme virgem em função da Primeira Guerra Mundial obrigam Benedetti a fechar sua empresa. Muda-se, então, para o Rio de Janeiro onde segue sua carreira de cinegrafista. PELOTAS (RS) Proprietário da Guarany Films e de uma sala de cinema, Francisco Santos é o autor do Os óculos do vovô, do qual foram preservados fragmentos, os mais antigos de um filme de ficção feito no país. Exibidor ambulante na Europa, Santos vem ao Brasil e dedica-se ao teatro até 1912, quando, em excursão pelo Rio Grande do Sul, fica no Estado, fazendo seus primeiros filmes em Bagé e Jaguarão e fixando-se definitivamente em Pelotas, com a Companhia Dramática Francisco Santos. Dedica-se ao teatro e ao cinema, adapta sua casa para um estúdio cinematográfico e produz atualidades “naturais” e curtas encenados. Os óculos do vovô foi escrito, dirigido e encenado por Santos, com a participação de seu filho Mário. A história de um menino travesso que pinta os óculos do avô, fazendo-o acreditar que está ficando cego, foi filmada nos estúdios da Guarany Filmes (a casa de Santos) e no Parque Souza Soares em Pelotas. Desaparecido por décadas os fragmentos – 4min34s dos 15 minutos originais – foram encontrados e restaurados pelo pesquisador gaúcho Antonio de Jesus Pfeil.

Fotograma do filme Os óculos do vovô

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Em 1914, Francisco Santos lançou em Pelotas O crime de Banhados, reconstituição de crime ocorrido em abril de 1912 na Fazendo Passo da Estiva, município de Rio Grande. Uma família inteira foi assassinada por jagunços em um crime que mesclava rixa política com questão de terras. Segundo a Enciclopédia do cinema brasileiro, o filme tinha, aparentemente, em sua versão final, quase duas horas de duração, com filmagens em locação reais e inúmeros cuidados artísticos, como viragens – colorização artificial de cenas – e caracterização apurada. O sucesso foi enorme e a Guarany Films aumentou seu 1 mil contos de réis, o que não impediu seu fechamento logo em seguida. CAMPINAS (SP) Tendo como espelho o modelo de produção norte-americana que caracteriza o cinema produzido nas décadas de 1920/1930, a produção do Ciclo de Campinas se inicia com João da Mata (1923), de Amilar Alves, homem de teatro e intelectual campineiro que adapta sua peça, de mesmo nome, em sua única incursão no cinema. Amilar Alves era secretário da Prefeitura Municipal de Campinas e financiou seu filme com apoio da elite local. Na equipe estavam Felipi Ricci e Thomas de Tulio, fundadores da Phenix Film, que dariam continuidade ao ciclo campineiro. A história é o drama de um lavrador expulso de suas terras e que depois de anos volta para se vingar e recuperar seu patrimônio. A linguagem regional é trabalhada com cuidado nos letreiros com os diálogos, dando veracidade ao drama, sem estigmatizar a figura do caipira. A imprensa local elogiou o filme, destacando o ator Ângelo Forti.

N’um cine local em 27 de janeiro assisti à segunda producção da Apa, A carne, adaptação do romance de Julio Ribeiro. Houve êxito, a peliculla, sob direção de Phelippe Ricci, na adaptação do livro, que li há muito tempo. O film, se bem com os senões inevitáveis nas pelicullas brasileiras é um portento como film nacional, muito superior aos que já se filmaram nesta cidade. Vê-se que quiseram realizar mesmo um bom trabalho, todo o esmero, todo o capricho de seu director resalta forte ao espectador que o analysa; assim emfim, vi um film campineiro verdadeiramente bom, com bons momentos dramáticos jogados por Angelo Forti e Isa Lins (...) (...) A Apa deve estar de parabéns com o seu director e que deu provas de um profundo conhecedor da arte cinematográfica, revelando-se mestre, eclypsando Kerrigan, que realizou Sofrer para gozar, com o bello film que dirigiu (...) (...) E aqui, com sinceridade, recommendo aos que allegram que os nossos films são por demais medíocres, não perderem a opportunidade de assistir

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Bem aceito pelo público em Campinas, o filme é distribuído no Rio de Janeiro onde recebe criticas favoráveis. Seu sucesso estimula a fundação de produtoras como Condor Film, a Selecta Film e a Apa Film, produtora da ficção longa-metragem Soffrer para gozar e de A carne, adaptação de Julio Ribeiro, também exibida no Rio de Janeiro e comentado na Revista Cinearte em 17 de março de 1926, por Aurélio Montemurro, na coluna “Sr. Operador”:

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A carne, quando se apresentar essa oportunidade, mesmo para ficar scientes uma vez que as nossas pelicullas melhoram, vencem, já despertam entusiasmo.” (CINEARTE,1926)

Eugene C. Kerrigan, pseudônimo do italiano Eugênio Centenaro, foi um dos diretores que integrou o Ciclo de Campinas, na Apa filmes. Associou-se a Thomas de Tulio e dirigiu em 1923, Sofrer para gozar. Kerrigan vivia em São Paulo e dizia ser um conde italiano. Em Campinas apresentou-se como um diretor norte-americano, de Los Angeles, e sustentou a mentira até ser desmascarado por um turista norte-americano, pois não falava inglês. Em 1925 voltou à São Paulo, e em associação com o industrial Almada Fagundes criou a Visual Filmes. Produziu Quando elas querem, fracasso de público e bilheteria. Muda-se para Guaranésia, no interior mineiro, onde os irmãos Carlos e Américo Massotti produzem documentários, e com eles produz Corações em suplício. Kerrigan ainda filma em Porto Alegre e Curitiba, mudando-se cada vez que suas falsidades eram reveladas. Em Porto Alegre, produziu Amor que redime (1927) para o qual levou de Campinas o cinegrafista Tomás de Túlio. CATAGUAZES (MG)

Iniciado na década de 1920, o Ciclo de Cataguazes representou uma intensa produção no interior mineiro e a revelação de dois dos nomes mais importantes do cinema nacional: Humberto Mauro e Edgar Brasil. Com seu amigo Pedro Comello, Humberto Mauro, na época um jovem mecânico eletricista, fundou a Phebo Sul America Film, renomeada para Phebo Brasil

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Film, em parceria com o comerciante Agenor Gomes de Barros. Mauro e Comello, depois de estudarem juntos as técnicas de cinema, com base na narrativa clássica da época, o cinema hollywoodiano, produzem cinco filmes de ficção longas-metragens: Valadião, o cratera (1925), filmado em 9,5 mm, com a filha de Comello, Eva Nil no papel principal. Na primavera da vida (1926), Thesouro perdido (1927), Braza dormida (1928) e Sangue mineiro (1929), os três últimos pela Phebo Films. Seus filmes revelam duas grandes atrizes da época Eva Nil e Nita Ney. O segundo filme do ciclo, com roteiro de Mauro, Na primavera da vida, foi exibido somente em Cataguazes e região, ficando conhecido graças a Ademar Gonzaga e Pedro Lima, da Revista Cinearte, que em seus artigos destacavam aquela a quem chamavam a nova estrela do cinema nacional Eva Nil. Valadião e Na primavera da vida refletem a influência do cinema norte-americano, adaptado para a Zona da Mata mineira, onde vivia Mauro. Comello pretendia dirigir o filme Os mistérios de São Mateus, um filme policial com Eva Nil no papel principal. Mas o filme não chegou a ser realizado, o que teria afastado Mauro de Eva, que se recusou a protagonizar Thesouro perdido, embora mantivesse a parceria com Comello. Ele desliga-se da Phebo Filmes no mesmo ano desse acontecido, e funda a Atlas Filmes, também em Cataguazes. Thesouro perdido é considerado um padrão de excelência do cinema brasileiro, um marco de uma identidade nacional que privilegia o mundo natural e o universo rural, aliados a uma critica romântica à modernidade, presentes na filmografia de Mauro. Essa característica o referenda como “o mais brasileiro” entre os diretores de então. Em um texto escrito em 1932, declarava o que seria a grande marca de todas as suas produções: “o cinema nacional deveria representar fielmente o que somos”.

A nostalgia presente em seus filmes, e que GOMES (1980) relaciona com o mundo mítico de sua adolescência, vai desaparecendo para dar lugar às demandas da modernidade e às influências de Ademar Gonzada, que na Cinédia produz o cinema dos ambientes luxuosos e da sofisticação, que atraía o público do início da década de 1930. A primeira fita O Thesouro perdido possui uma agilidade e, sobretudo, um frescor, que diminuem consideravelmente em Braza dormida e que desaparece em Sangue Mineiro. Tudo se passa como se uma seiva que animava o primeiro filme se esvaísse no segundo até desaparecer completamente no terceiro... A partida para trabalhar no Rio ao lado de Adhemar (Gonzaga) impu-

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O cinema brasileiro entre nós terá que nascer do meio brasileiro, com todos os seus defeitos, qualidades e ridículos, com a marcha precária e contingente de todas as indústrias que florescem traduzindo as necessidades reais do ambiente em que se formam. (SOUZA, 1987, p. 114).

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nha uma opção: abandonar Cataguases também dentro de si e entregar-se a Cinearte. (GOMES, 1974, p. 58).

CICLO DO RECIFE (PE)

Aitaré da praia (1926)

A filha do advogado (1927)

Os primeiros registros da produção cinematográfica em Pernambuco datam da década de 1910, com a produção continuada de filmes “naturais” até meados da década de 1920, quando se dá o Ciclo do Recife (1923 a 1931), tornando a capital pernambucana um grande centro da produção cinematográfica nacional. No período do Ciclo surgem pelo menos doze produtoras que lançam cerca de quarenta títulos no circuito local, entre curtas e longas-metragens. O ciclo começa com dois jovens italianos, J. Cambière e Hugo Falangola, que chegam ao Recife em 1922, fundam a Pernambuco Film e passam a registrar as atividades dos órgãos do governo pernambucano para cinejornais de propaganda. Em pouco tempo vendem o equipamento para Edson Chagas e Gentil Roriz que fundam a Aurora Filme, a mais importante produtora do Ciclo do Recife e que, desde o início, visava à produção de filmes de enredo. O grupo de Chagas e Roriz reúne cerca de 30 jovens que sonham em fazer cinema. A primeira experiência do grupo é Retribuição (1925), que depois de dois anos de produção estreia com sucesso no Cine Royal, ficando oito dias em cartaz. Filme de aventura, tem roteiro e direção de Gentil Roriz, fotografia de Edson Chagas e, no elenco, Almery Steves e Barreto Junior. O Cine Royal, que tinha sido inaugurado como uma sala de luxo na década de 1910, era, então, uma sala simples, mas de vital importância para a exibição dos filmes dos jovens cineastas que contavam com o apoio de seu proprietário Joaquim Matos. As sessões eram transformadas em eventos, atraindo o público. No mesmo ano produzem Um ato de humanidade, curta-metragem de propaganda encomendado pelos Laboratórios Maciel e com roteiro de Gentil Roiz. A

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ideia era difundir um remédio popular, a Garrafada do Sertão. Com 20 minutos de duração, conta a história de um jovem – vivido por Jota Soares – que se cura de sífilis após tomar a garrafada. Com o lucro do curta-metragem a Aurora Filme inicia um novo projeto, Jurando vingar, dirigido por Ary Severo, roteiro de Gentil Roiz, que é também ator do filme, e com fotografia de Edson Chagas. É mais uma vez um decalque da narrativa dos filmes norte-americanos. Mas é com Aitaré da praia (1925) que a Aurora Filme incorpora a busca por uma linguagem própria e a temática regional. Considerado por VIANY (1987) como uma grande afirmação do cinema nacional, Aitaré peca pela caracterização dos pescadores e dos elementos de sua vida cotidiana, colocando em risco sua proposta de valorização da temática regional. O enredo traz os jangadeiros Aitaré e Traíra disputando o amor da mocinha rica, Cora, e tem o flash-back como elemento de destaque em sua construção narrativa. Aitaré da praia tem grande sucesso de público, o que não impede a falência da Aurora Filme, que é comprada por Joaquim Tavares, um fabricante de sapatos, que, sem experiência na área, deixa a empresa a cargo de Edson Chagas, que passa a produzir institucionais para mantê-la em funcionamento.

Outras produtoras se destacaram em Pernambuco, mesmo que por pouco tempo, entre elas Planeta Filme, Vera Cruz Filme, Olinda Filme, Liberdade Filme,

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Em 1926 a Aurora dá inicio à sua produção mais ambiciosa A filha do advogado, um melodrama baseado na obra de Costa Monteiro. O filme seria dirigido por Ary Severo que briga com o produtor Edson Chagas, e Jota Soares assume a direção. Sua pouca idade – 20 anos – é destacada nos créditos de abertura. O filme estreia com sucesso em Recife e é exibido em 31 salas no Rio de Janeiro e São Paulo, onde os cuidados com a cenografia, figurinos e fotografia são destacados pela imprensa. Porém, sem ter saído de sua primeira crise a Aurora Filme vai definitivamente à falência.

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Veneza Filme, Sociedade Pernambucana de Indústrias Artísticas e a Goiana Filme, que produz o único longa-metragem do Ciclo, fora da capital pernambucana: Sangue de irmão, policial, dirigido por Jota Soares. Em sua maioria se evidencia a produção voltada aos institucionais e ao cinema de “cavação”, no qual cinegrafistas convencem mecenas a investir na produção de filmes que, por falta de originalidade e de excelência técnica, fracassam. Referindo-se ao cinema paulistano, Maria Rita Galvão, em Crônica do cinema paulistano comenta a presença dos aventureiros no cinema, mas sua afirmação pode se aplicar também à produção em outras partes do país, no período: Sob qualquer de suas formas, a cavação foi a base de sustentação do cinema paulista. Recorria-se a toda sorte de expedientes, nem sempre recomendáveis para arrumar dinheiro... Ao fim de cada experiência, voltava-se a estaca zero, com o agravante de que a cada fracasso diminua o crédito do cinema nacional e o número de candidatos a financiadores. (GALVÃO, 1975)

É a dificuldade de exibição e circulação dos filmes que realmente leva ao fim essa fase do cinema nacional. Os grupos que produziam de norte a sul do país não tinham contato entre si, as produções não circulavam para além de suas cidades de origem, salvo raras exceções. O surgimento do cinema sonoro torna inviável a produção, pela sua complexidade técnica, o que encerra de vez os ciclos regionais. REFERÊNCIAS ALTAFINI, Thiago. Cinema Documentário Brasileiro - Evolução Histórica da Linguagem, 1999. In: http://bocc.ubi.pt/pag/Altafini-thiago-Cinema-Documentario-Brasileiro.html. Acesso em agosto de 2010. Araújo, Luciana Corrêa de. “O cinema em Pernambuco nos anos 1920”, em I Jornada Brasileira de Cinema Silencioso (catálogo). São Paulo: Cinemateca Brasileira, 2007. ARAÚJO, Vicente de Paula. Salões, circos e cinemas de São Paulo. São Paulo, Perspectiva, 1981. BARRO, Máximo.  A primeira sessão de cinema em São Paulo.  São Paulo: Cinema em Close Up,1979. BERNARDET, Jean-Claude. Brasil em Tempo de Cinema: Ensaios sobre o Cinema Brasileiro. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2007. ­­___________. Cinema Brasileiro: Propostas para uma História. Rio de Janeiro: Companhia de Bolso, 2009. __________. O que é Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1980. CAPELARO, Jorge e FERREIRA, Paulo Roberto. Verdades sobre o início do cinema no Brasil. FUNARTE, Ministério da Cultura, 1996. CUNHA FILHO, Paulo C. Relembrando o cinema pernambucano: dos arquivos de Jota Soares. Recife: Editora Massangana, 2006.

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ESCOREL, Eduardo. Adivinhadores de água. São Paulo: Cosac & Naify, 2005. GALDINI, MÁRCIO. Italianos no Cinema Brasileiro. In: Arquivo Histórico da Imigração Italiana. http://www.asei.eu/it/2007/11/italianos-no-cinema-brasilero/ Acesso em abril de 2010. GALVÃO, Maria Rita Eliezer. Crônica do Cinema Paulistano. São Paulo: Ática, 1975. GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. GOMES, Paulo Emílio Salles; MAURO, Humberto. Cataqueses, Cinearte. São Paulo: Perspectiva, 1974. Revista “Cinearte”. Hemeroteca Digital Brasileira. http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/cinearte. Acesso em março de 2014 RAMOS, Fernão e MIRANDA, Luiz Felipe (org.). Enciclopédia do Cinema Brasileiro. São Paulo: Editora Senac, 2010. SIMIS, Anita. Estado e Cinema no Brasil. São Paulo: Annablume, 1996. SOUZA, Carlos Roberto de. Cinema Brasileiro. Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1987. SOUZA, Carlos Roberto Rodrigues de. O cinema em Campinas nos anos 20 ou uma Hollywood brasileira. Dissertação de mestrado, ECA-USP, 1979. VIANY, Alex. Introdução ao Cinema Brasileiro. Rio de Janeiro: Alhambra-Embrafilme, 1987.

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20 ENTRE O SOM E O SILÊNCIO: UM ENSAIO SOBRE O QUE OUVIMOS E O QUE NÃO OUVIMOS Ulisses Quadros de Moraes (Ulisses Galetto)

A produção americana encontrou um segundo fôlego no mercado mundial (...) com a multiplicação dos produtores independentes (...) Este cinema americano leva em conta as tendências do momento e os gostos de um público diversificado. Ele se apóia nas tecnologias de ponta tanto na definição quanto na produção dos filmes e tem a garantia de um sucesso mundial. No entanto, ele não responde às expectativas das grandes faixas de público árabe, indiano, asiático ou outros, que demandam filmes de evasão de acordo com sua sensibilidade e filmados em suas línguas, com atores locais. (WARNIER, 2000, p. 73-74)

Neste capítulo discutirei questões relativas à utilização do som como ferramenta narrativa em produções audiovisuais e ao aprimoramento das técnicas de edição e mixagem num contexto de crescimento da produção e consumo nacionais. Analisarei os caminhos do desenho de som para cinema e TV e seu impacto no sistema produtivo Audiovisual, tendo como referência os filmes Cidade de Deus (2002), Tropa de Elite II: o inimigo agora é outro (2010) e O Som ao Redor (2012). Para os dois primeiros, suas inserções num mercado globalizado de consumo se deram, também, através do reconhecimento dos trabalhos de edição e mixagem de som, cada qual com características bastante específicas. Já para o terceiro filme, também com reconhecimento internacional, a importância do som para a narrativa é trazida no próprio nome, o que justificou sua inclusão neste estudo. Em síntese, cada qual a seu modo tem contribuições importantes para o cenário da pós-produção de som no Brasil. Se não, de fato, pelas conquistas nesse plano, pelo menos em justificativas discursivas acerca da qualidade de suas produções.

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Antes de tudo, porém, é importante situar o leitor em um contexto recente do Audiovisual brasileiro. E é à explanação desse contexto que vou me dedicar agora. POLÍTICA E AUDIOVISUAL Em 1990, após a extinção da EMBRAFILME pelo então presidente Fernando Collor de Mello, vimos o estancamento de quase toda a produção cinematográfica, já nos primeiros anos daquela década. De aproximadamente 110 longas metragens lançados em média em fins dos anos 1980, a produção brasileira cairia para 17 em 1991, 7 em 1992, 8 em 1993 e apenas 3 em 19941. Foram vários os “antídotos” utilizados para que esse quadro se revertesse com uma relativa rapidez. Em 23 de dezembro de 1991, ainda sob o mesmo Governo, a aprovação da Lei n˚ 8.313 que ficaria conhecida como Lei Rouanet foi, sem dúvida, um passo importante para a “retomada”. Dois anos mais tarde, em 20/07/1993, já sob o governo de Itamar Franco, a aprovação da Lei n˚ 8.685, conhecida como Lei do Audiovisual, evidenciou a preocupação do Poder Público em relação às produções cinematográficas brasileiras. Logo depois,

Tais ações, aliadas a outras de não menor importância, foram determinantes para o estímulo a um círculo virtuoso que se estende até os dias de hoje. Como resultado, em pouco mais de 20 anos, não apenas a produção de filmes superou a marca dos 100 títulos anuais, como vários outros indicativos mostraram crescimento importantes. A participação no consumo do “produto brasileiro”, tanto em salas de cinema quanto nas programações das TVs a cabo (principalmente) e também aberta (em menor escala), sofreu impactos positivos graças, sobretudo, a Políticas Públicas Afirmativas para todo o segmento do audiovisual. Para se ter uma ideia, de 6,9 milhões de espectadores para filmes nacionais exibidos em salas de cinema em 2001, saltamos para 25,6 milhões em 2010. Isso representa uma evolução percentual no mercado interno de 9,3% para 19,0 % no período2. Um salto significativo não apenas para toda a escala produtiva, com a amFonte: Database Filme B. Compilação do autor. Disponível em http://www.filmeb.com.br

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Fonte: Database Filme B. Compilação do autor. Disponível em http://www.filmeb.com.br

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Já no início dos anos 2000, a criação da ANCINE através da Medida Provisório 2.228-1 de 06 de setembro de 2001, resultaria em uma série de medidas futuras com impactos significativos em toda a escala produtiva do Audiovisual: “Estabelece princípios gerais da Política Nacional do Cinema, cria o Conselho Superior do Cinema e a Agencia Nacional do Cinema – ANCINE, institui o Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Nacional – PRODECINE, autoriza a criação de Fundos de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional – FUNCINES, altera a legislação sobre a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional e dá outras providências. (MORAES, 2013, p. 205).

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pliação do parque industrial audiovisual, como também para questões relacionadas à representação da diversidade cultural brasileira. Com uma produção crescente e um aumento substancial no consumo interno, as relações globalizadas entram em cena no país, agora de maneira mais efetiva. Distribuidoras e grandes produtoras, em parceria com segmentos de empresas nacionais, incrementam sua participação em um mercado aquecido. Isso resultaria posteriormente na implementação de uma política de cotas de telas para salas de cinema, instituída através do Decreto n˚ 8.176, de 27 de dezembro de 2013, que determina, dentre outras coisas: O número de dias e a diversidade mínima de títulos brasileiros a serem exibidos nas salas de cinema do país em 2014 – a Cota de Tela.  A partir de janeiro, dependendo do número de salas de exibição, os complexos terão que cumprir uma Cota de Tela que varia de 28 a 63 dias por sala e exibir, no mínimo, entre 3 e 24 filmes nacionais diferentes.

Os impactos de tal medida ainda carecem de estudos pormenorizados, mas análises prévias indicam um relativo incremento em toda a cadeia de produção do audiovisual. Outra medida com impactos relevantes foi levada a cabo através do Projeto de Lei da Câmara – PLC n˚ 116/2010, que originou a Lei n˚ 12.485 sancionada em 12 de setembro de 2011, criando o Serviço de Acesso Condicionado. Na prática, essa medida instituiu cotas de telas também às TVs a cabo no Brasil, obrigando as transmissoras a cumprirem um percentual mínimo de conteúdo nacional de, aproximadamente, 3,3 horas semanais, em horário nobre de sua programação3. A Lei determinou o que segue: Art. 2˚ Para os efeitos desta Lei considera-se: I – Assinante: contratante do serviço de acesso condicionado; II - Canal de Espaço Qualificado: canal de programação que, no horário nobre, veicule majoritariamente conteúdos audiovisuais que constituam espaço qualificado; III - Canal Brasileiro de Espaço Qualificado: canal de espaço qualificado que cumpra os seguintes requisitos, cumulativamente: a) ser programado por programadora brasileira; b) veicular majoritariamente, no horário nobre, conteúdos audiovisuais brasileiros que constituam espaço qualificado, sendo metade desses conteúdos produzidos por produtora brasileira independente.4

Destaco que enumerei apenas o que julguei mais apropriado para nossas explanações, relativo ao tema proposto. Há, entretanto, várias outras ações de incentivo à produção para os diversos segmentos do audiovisual, sejam eles televisivos ou cinematográficos, desde o início dos anos 1990. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12485.htm

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Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12485.htm

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Entretanto, o incremento de recursos financeiros e de mecanismos institucionais de salvaguarda da produção nacional não garante, em si, a simpatia do público consumidor final. Em tempos de globalização, as opões se disseminam pelos diversos caminhos da comunicação de massa, com impactos importantes nos perfis de escolha de cada um dos consumidores e cidadãos do Brasil e do mundo. Assim, para se ter uma ideia da importância de medidas de cotas para mercados nacionais, vale atentar para o exposto por Nestor García Canclini: ,Nosso Continente é responsável por 0,8% das exportações

mundiais de bens culturais tendo 9% da população do planeta, ao passo que a União Européia, com 7% da população mundial, exporta 37,5% e importa 43,6% de todos os bens culturais comercializados. (CANCLINI, 2007, p. 22).

Lembremos que por “nosso Continente” o autor se refere à América Latina, contexto geográfico e político no qual o Brasil, evidentemente, está inserido. Vemos que para essa região, os dados de produção inseridos em um mercado global não são tão animadores. Pelo contrário, mostram uma realidade de predomínio de produções do Hemisfério Norte, repletas de valores culturais agregados que, potencialmente, poderão impactar sobre o reconhecimento das identidades nacionais e, por conseqüência, negativamente sobre as estruturas econômicas e de produção locais na América Latina, por exemplo.

A crise do cinema já não pode ser vista como uma questão interna de cada país, nem isolada da reorganização transnacional dos mercados simbólicos. É parte integrante do debate sobre as tensões entre liberdade de mercado, qualidade cultural e modos de vida específicos.

Em um ambiente regional de retração do consumo de produções nacionais, falamos dos países da América Latina, entre eles o Brasil parece ter conseguido encontrar o caminho viável para uma ampliação de seu potencial produtivo e consumidor, atrelado ao respeito e a manutenção das regras do “livre” mercado. Presumo aqui, após essa longa digressão, que estamos prontos para nos debruçarmos sobre a questão central de minha argumentação, qual seja, a análise dos caminhos da pós-produção de som de cinema e TV a partir do incremento da cadeia produtiva audiovisual brasileira. É sobre isso que me dedicarei a partir deste momento.

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Ora, se considerarmos os dados apresentados por CANCLINI, aliados aos dados relativos ao mercado produtor e consumidor brasileiro, apresentados anteriormente, veremos que o Brasil gradativamente se descola da tendência dominante do contexto Latino Americano. Produção e consumo em alta são as tônicas no país. Assim, é justificável supormos que o conjunto de ações públicas pode estar resultando em práticas dos segmentos produtivos, gabaritando o produto tupiniquim ao consumo exigente de seu próprio mercado interno. Novamente, recorrendo a CANCLINI (2006, p. 144):

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O SOM E O SILÊNCIO A ideia que as pessoas têm sobre o som no cinema favorece muito os profissionais que trabalham nesse segmento. Exemplificando, em uma cena de um filme fictício, há um diálogo entre duas personagens. Essa cena ocorre em um ambiente ruidoso no cruzamento de duas avenidas centrais de uma grande cidade. Ao pensar sobre o som, o espectador imagina um grupo de técnicos experientes (verdadeiro), munidos da mais alta tecnologia (às vezes, mas nem sempre verdadeiro) e alguns pares – ou dezenas – de microfones desenvolvidos especialmente pra captar sons específicos: vozes, passarinhos, carros, etc., etc. (falso). Nosso espectador “sabe” que é assim que se faz, pois já assistiu a vários making of onde aparecem tanto os microfones como as equipes de som. Além disso, às vezes ele vê alguns microfones “vazarem” nas cenas de um filme, mostrando que, realmente, todo o som é captado no set de filmagem. Lamento informar, mas quase a totalidade de todos os sons que ouvimos em um filme é pensada, elaborada e meticulosamente organizada em várias etapas e texturas por um Desenhista de Som ou Sound Designer e por equipes de editores e mixadores. Com muita sensibilidade, ouvidos altamente treinados e grande habilidade de gravação, organização e finalização em plataformas digitais (computadores), esses profissionais são responsáveis pela construção de uma narrativa sonora original, quase sempre5 relacionada com as imagens vindas do Departamento de Edição e Montagem. É importante dizer também que no cinema há inúmeras formas e métodos distintos de edição e mixagem de som. Minha abordagem é baseada em um tipo específico, no qual o ambiente sonoro pode conter até 10 “famílias” de sons. Essas famílias nascem da organização dos sons segundo sua natureza e semelhança, simplificam em muito todo o processo e proporcionam grande autonomia de escolha ao Sound Designer em todas as etapas do trabalho. Representadas por siglas universais, elas podem ser reconhecidas por qualquer profissional do ramo em qualquer lugar do mundo. Essas famílias são:

 Diálogos (DX): todos os diálogos das personagens de um filme;  Ambientes (BG): sons que caracterizam dia ou noite, cidade ou campo, dentro ou fora de uma casa, por exemplo;  Foley (FY): em geral, são sons resultantes de ações humanas vistas. Eles são subdivididos em FootSteps – passos (FS), ProPs – objetos (PP) e Clothes – roupas (CLTHS);  Hard Effects (HFX): sons muito variados e distintos, “vistos”, ou seja, estão em quadro. Podem ser motores de todos os tipos, ventos, rios, mar, cachoeiras, aviões, carros, etc.;  Sound Effects (SFX): geralmente são sons utilizados para reforçar a narrativa de movimentos de personagens ou mesmo de situações;  BG Effects (BGFX): sons também muito variados, embora “não vistos” (fora de quadro), esses efeitos de ambientes são utilizados para caracterizar/destacar um ambienAlgumas vezes esse princípio não é seguido.

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te. Por exemplo: pássaros específicos que cantam pontualmente à esquerda e atrás, um carro que passa à nossa direita, uma buzina num trânsito intenso ao longe, etc.;  Walla: voz ou grupos de vozes, geralmente de personagens não vistos (fora de quadro), que caracterizam um ambiente (bar, restaurante, aeroporto, hospital, parque, ruas e calçadas com pedestres, etc.);  Música (MX): ainda que seja um elemento sonoro, a composição, gravação, edição e mixagem da música de um filme é de responsabilidade de um setor distinto. Após finalizada, ela é entregue ao Sound Designer para que seja adicionada às outras famílias de som e, posteriormente, à trilha final.

Todo esse complexo sonoro gravado, editado, pré-mixado, mixado e finalizado em sincronia com as imagens, resultará em uma trilha única de 8, 6, 2 ou apenas 1 pista6, que chamamos comumente de “Som do Filme”. Nota-se a partir dessas informações, que o som que ouvimos em um filme é o resultado de um processo que exige muita qualificação por parte de todos os profissionais envolvidos, tempo e, é claro, uma gama considerável de recursos. Pensemos agora na história do som no Brasil das décadas de 1990, 2000 até os dias atuais. Inúmeros parâmetros podem ser evocados como primordiais e condicionantes para uma avaliação desse quesito. Aqui, lembro que já havia alertado para os motivos que nortearam a escolha dos três títulos: Cidade de Deus, Tropa de Elite 2 e O Som ao Redor. Todos eles, consagrados no Brasil pelo público e pela critica, também obtiveram trajetórias de sucesso no mercado internacional. Vamos então, à análise caso a caso.

Uma audição atenta do filme revela alguns dos motivos de seu destaque no campo do desenho de som. A complexidade e diversidade dos ambientes sonoros exigiram um alto padrão de profissionais, que utilizaram com prudência efeitos narrativos de uma maneira criativa e inovadora. Além dos Diálogos, os Sound Efects e BGs são os elementos que caracterizam melhor a genialidade dos processos de edição e mixagem de som do filme. Os elementos foram cuidadosamente desenhados em um contexto de diversidade e complexidade de timbres enormes. Os resultados finais de edição e mixagem são consequências de equipes extremamente competentes aliadas a condições materiais objetivas favoráveis. Recursos financeiros, por exemplo. Graças 6 Há um novo padrão digital de som pra cinema que conta com 64 pistas. Para maiores detalhes acessar: http://www.dcimovies.com . 7 Melhor direção para Fernando Meirelles, melhor roteiro adaptado para Bráulio Mantovani, melhor fotografia para César Charlone e melhor edição para Daniel Rezende. Nota do Autor.

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Cidade de Deus, antes de ser indicado a 4 categorias do Oscar em 2004,7 concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro no ano anterior, 2003, além de receber a indicação de melhor edição de som pelo Motion Pictures Sound Editors (MPSE), cuja equipe era formada também por um brasileiro, Alessandro Laroca, que assinou a edição de diálogos. A meu ver, essa pode ser uma das mais importantes conquistas do cinema brasileiro. Para uma categoria considerada erroneamente como técnica e não artística, a indicação teve significados amplos e repercussões não menos impactantes.

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a essa soma de condições, o filme ainda conquistou dezenas de premiações no Brasil e no exterior. Dez anos mais tarde, o mesmo Alessandro Laroca, agora com uma equipe de editores e mixadores sediados em Curitiba, Paraná, volta à cena internacional com Tropa de Elite 2: o inimigo agora é outro, um filme de José Padilha. Concorrendo ao prêmio de Melhor Edição de Som pelo mesmo Motion Pictures Sound Editors (MPSE), numa indicação inédita para uma equipe totalmente brasileira – que concorreria com In the Land of Blood and Honey, dirigido por Angelina Jolie, The Flowers of War dirigido por Zhang Yimou e A Pele que Habito, com direção de Pedro Almodóvar. Apesar de não ter conquistado o prêmio, não há dúvida de que mudanças importantes haviam ocorrido na escala de produção cinematográfica brasileira. O som tinha tido sua importância e significado reconhecidos. Em Tropa de Elite 2, todo o desenho de som foi estruturado com muita precisão. Ambientes internos e externos e todas as suas complexidades foram valorizados em uma narrativa realista e objetiva. Os Sound Efects e Hard Efects não foram a tônica preponderante, já que os grandes embates com armas de fogo presentes no primeiro filme da série, deram espaço a outras circunstâncias, não menos repletas de atritos, embora de outra natureza. A precisão e eficiência das equipes de edição e mixagem, colocaram o desenho de som de Tropa de Elite 2 entre os mais importantes do mundo em 2010 e 2011. O país que 20 anos antes praticamente havia estancado sua produção cinematográfica, contava agora com mais um destaque internacional expressivo. Por fim, o filme O Som ao Redor, do cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho, lançado em 2012, além de ter chamado a atenção de críticos especializados e do grande público, também colecionou diversos prêmios no Brasil e no exterior. A despeito de seu titulo, o desenho de som assinado pelo próprio diretor não chama a atenção. Alguns elementos de som como passos (foot steps) e objetos (props), não tem em sua edição o cuidado e a densidade dos outros dois títulos aqui analisados. Há vários momentos em que essas texturas, apesar de justificados pelas imagens, estão ausentes por completo. Também os Ambientes (BGs) e os Efeitos de Ambientes (BGFX) são bastante simplificados e, em certa medida, repetitivos e pouco dinâmicos. Por exemplo, em geral, os efeitos de construções ao redor das locações permeiam boa parte do filme, quando os ambientes de uma cidade grande como Recife permitiriam uma variação extrema de texturas, que seriam capazes de realçar todos os propósitos narrativos do filme. Outra peculiaridade diz respeito ao pouco contraste de elipses através dos BGs. Os reforços são minimamente utilizados, talvez propositalmente, mas em detrimento de uma melhor descrição das riquezas de variações propostas pela narrativa imagética.

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Em resumo, trata-se de um belo filme, com todos os méritos que a crítica e o público já reconheceram. Entretanto, ainda que conte com um desenho de som satisfatoriamente bem realizado, não proporciona, a meu ver, um espetáculo como os dois outros aqui analisados nesse quesito. Dessa forma, procurei nesse capítulo evidenciar um panorama de crescimento de todos os segmentos que compõe o Audiovisual no Brasil, seja em produções cinematográficas, destinadas às salas de cinema espalhadas pelo país, seja também em realizações televisivas, notadamente àquelas voltadas às redes de transmissão à cabo. Com isso houve um aumento significativo das demandas por conteúdos nacionais e, como conseqüência, um crescimento desses conteúdos em mercados globalizados, não apenas os da Ibero-América e países de língua portuguesa, mas também em países cuja indústria cinematográfica de porte global, já se encontra completamente estabelecida: os Estados Unidos da América, por exemplo. (CAETANO, 2011). As indicações e conquistas de premiações importantes em solo brasileiro e norte-americano, bem como o reconhecimento de público e de crítica nos mercados regional e global, comprovam o momento singular pelo qual o audiovisual brasileiro vem passando. A despeito do muito que ainda há a ser feito, é certo que as Políticas Públicas, implementadas a partir do início dos anos 1990 até os dias de hoje, em comunhão com a coragem de empreendedores e o talento de artistas e técnicos, vem mudando a realidade brasileira. Com resultados sem precedentes em nossa história, acredito que podemos esperar muito do que ainda está por vir. REFERÊNCIAS

FILMOGRAFIA

Cidade de Deus. Direção: Fernando Meirelles. Miramax, 2000. (130 minutos) O som ao redor. Direção: Kleber Mendonça Filho. Vitrine Filmes, 2012. (131 minutos) Tropa de Elite 2: o inimigo agora é outro. Direção: José Padrilha. Vinny, 2010 (115 minutos)

SITES

www.camara.gov.br www.cultura.gov.br www.filmeb.com.br

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CAETANO, Maria do Rosário. DOCTV: Operação de Rede. São Paulo: Instituto Cinema em Transe, 2011. CANCLINI, Néstor García. A globalização imaginada. São Paulo: Iluminuras, 2007. _______. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006. MORAES, Ulisses Quadros de. Políticas Públicas para o Audiovisual: as isenções fiscais e os limites entre o Estado e a iniciativa privada (1986-2010). Tese de doutoramento pelo Departamento de História da UFPR. 2012. CHION, Michel. Audio-Vision: Sound on screen. Columbia University Press, 1994. ORTIZ, Renato. Cultura brasileira & identidade nacional. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006. _______. Mundialização e Cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 2007. WARNIER, Jean-Pierre. A mundialização da Cultura. Bauru: EDUSC, 2003.

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os autores Prof. Dr. Acir Dias da Silva Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Professor Associado da UNESPAR/FAP. Agnes Vilseki Bacharela em Cinema e Vídeo da UNESPAR/FAP. Integrou a equipe do Projeto de Extensão Cinema Brasileiro na Escola vinculado ao USF-SETI/PR.

Fábio S. Thibes Bacharel em Cinema e Vídeo da UNESPAR/FAP. Integrou a equipe do Projeto de Extensão Cinema Brasileiro na Escola vinculado ao USF-SETI/PR.

Bianca Pasetto Bacharela em Cinema e Vídeo da UNESPAR/FAP. Integrou a equipe do Projeto de Extensão Cinema Brasileiro na Escola vinculado ao USF-SETI/PR.

Prof. Doutorando Paulo Munhoz Roteirista, diretor e produtor audiovisual através de sua empresa Tecnokena e criador da turma de personagens Brichos e ganhador do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de 2013 na categoria animação.

Carla Abraão Bacharela em Cinema e Vídeo da UNESPAR/FAP. Integrou a equipe do Projeto de Extensão Cinema Brasileiro. Professora substituta de Fotografia Cinematográfica na UFSC.

Profa. Dra. Salete Machado Sirino Produtora de cinema. Docente do Curso de Cinema e Vídeo e do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Cinema, da UNESPAR/FAP. Coordenadora e orientadora do Projeto de Extensão Cinema Brasileiro na Escola, USF-SETI/PR.

Prof. Dr. Eduardo Tulio Baggio Cineasta com ênfase em documentarismo. Professor, Pesquisador e Coordenador do Curso de Cinema e Vídeo, da UNESPAR/FAP. Professor do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Cinema da UNESPAR/FAP.

Profa. Doutoranda Solange Stecz Professora do Curso de Cinema e Vídeo da UNESPAR/FAP e de cursos de pós-graduação lato sensu na UNESPAR/FAP, Tuiuti e UP. Membro da Comissão de Implantação do Curso de Bacharelado em Cinema e Audiovisual da UNILA.

Érica Ignácio da Costa Bacharela em Cinema e Vídeo da UNESPAR/FAP. Integrou a equipe do Projeto de Extensão Cinema Brasileiro na Escola vinculado ao USF-SETI/PR. Mestranda em Letras pela UFPR.

William Manfroi Bacharel em Cinema e Vídeo da UNESPAR/FAP. Integrou a equipe do Projeto de Extensão Cinema Brasileiro na Escola vinculado ao USF-SETI/PR.

Prof. Doutorando Fabio Francener Pinheiro Professor do Curso de Cinema e Vídeo e do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Cinema, UNESPAR/ FAP. Orientador do Projeto de Extensão Cinema Brasileiro na Escola, USF-SETI/PR.

Prof. Dr. Ulisses Galetto Músico, produtor, compositor, arranjador e sound designer, integra o grupo FATO. Trabalhou em dezenas de filmes e séries para a TV. Ministra disciplinas sobre o som para cinema em cursos de Graduação e Pós Graduação.

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