CINEMA COMO PRÁTICA DE RESISTÊNCIA CULTURAL EM SALVADOR NOS ANOS 1970

July 22, 2017 | Autor: Izabel de Fátima | Categoria: Censura, Cinema brasileiro, Festival de Cinema, História Do Cinema, Jornada de Cinema da Bahia
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CINEMA COMO PRÁTICA DE RESISTÊNCIA CULTURAL EM SALVADOR NOS ANOS 1970 Izabel de Fátima Cruz Melo1 Resumo: Compreendendo o período relativo à ditadura militar, como um tempo de politização da cultura, ambicionamos, a partir da trajetória das Jornadas de Cinema da Bahia, analisar a prática cinematográfica como um exercício de resistência às imposições da censura. Isto nos é possível por visualizarmos a atividade cinematográfica, especialmente a de curta-metragem, como locus que oportunizava naquele momento, discussões e questionamentos que poderiam ser inseridos numa disputa de representações e construção de memória sobre o Brasil, sua população e cultura. Esse tensionamento entre os cineastas – inseridos na influência cultural das esquerdas e o estado ditatorial, pôde ser sentido nas Jornadas tanto pela proibição dos filmes, como pela linguagem utilizada por seus realizadores e no formato do evento. Palavras-chave: Jornadas de Cinema da Bahia; cultura; censura Foi a melhor época que teve, porque, apesar da censura, a gente conseguia meio ludibriar a censura um pouco [...] (Nélia Belchote)2.

Ludibriar, driblar, enganar... eram alguns dos verbos conjugados pelos cineastas para a manutenção da sua produção no Brasil dos anos 1970, imerso num período de ditadura militar, numa sociedade que foi integrada compulsoriamente num processo de modernização autoritária, inserindo o Brasil nos modelos de uma organização econômica que associou a interferência do Estado com amplas possibilidades para a iniciativa privada, especialmente de capital internacional, gestando uma nova organização política e policial que reprimiu duramente as vozes dissonantes do coro do “país que vai pra frente”. Nesse sentido, a esfera da cultura esteve vigiada constantemente, pois num período em que os canais de participação e organização política estão bloqueados para a sociedade civil, as expressões artísticas têm a sua tônica política exacerbada, servindo como palco de tensões entre os realizadores de diversas áreas e o Estado autoritário. Estes tensionamentos no campo das artes podem ser observados, a partir da disputa em torno do conceito de nacionalidade, que perpassa necessariamente pelo campo da cultura e das suas relações com o Estado. Segundo Elisa Reis (1988:188), existe uma simbiose entre os conceitos de nação e Estado, no sentido de uma legitimidade recíproca no discurso que é formulado em torno de uma concepção de territorialidade, hábitos e moral comum a um conjunto de sujeitos. Contudo, ela mesma atenta para um dado importante - esta relação se constitui num processo histórico que é sempre dinâmico. Neste sentido, podemos 1 2

Mestre em História Social pela Universidade Federal da Bahia Entrevista concedida por Nélia Belchote no Escritório da Jornada Internacional de Cinema da Bahia em 16 de setembro de 2003. Nélia é secretária executiva da Jornada.

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entender o desenrolar dos tensionamentos entre os intelectuais que se opunham ao Estado ditatorial, às estratégias e táticas que se estabeleciam e as posteriores acomodações nessas relações. Ao se pensar na manutenção de um Estado autoritário, a principal característica a ser considerada é o recurso à violência física. Contudo, ela não pode ser aplicada sem uma justificativa, sem algum escopo que legitime a sua existência. No caso brasileiro, no pós-64, a estratégia utilizada pelo Estado era a Lei de Segurança Nacional, sustentada pela “Ideologia de Segurança Nacional”. Para Renato Ortiz (1994:83), a sua função era através de métodos autoritários forjar o conceito de integração nacional, pensando a cultura como suporte da nacionalidade que deve ser estimulada, mas sempre sob os auspícios do estado, visando a segurança nacional, por supostamente livrar a sociedade brasileira das influências perniciosas advindas do comunismo e do socialismo, que se manifestavam através das organizações consideradas subversivas, que subvencionariam a desordem social. Entretanto, apesar do apoio de setores das elites ao governo ditatorial, esta estratégia ficou comprometida em fins da década de 60, especialmente após 68, com a decretação do AI-5, que suprimiu com uma intensidade ainda maior o já exíguo espaço de mobilização da sociedade civil, pondo sob suspeição uma parcela maior das classes médias, através da proibição das manifestações públicas e da implacável perseguição aos estudantes, professores, operários e toda sorte de pessoas das quais se desconfiasse minimamente, auxiliando na emergência da luta armada. É necessário ressaltar que a modernização conservadora com seu ideal de integração nacional, ainda que pensado de forma verticalizada, consegue atingir com a expansão dos serviços de telecomunicações a locais mais distanciados dos centros urbanos, aumentando assim, a possibilidade do alcance as produções culturais, e do estabelecimento de novos mercados, e fortalecendo especialmente a televisão como um dos principais modos de expressão da ideologia de cultura brasileira pensada pelo regime. Neste período de extrema repressão, surge o milagre econômico, momento no qual as políticas culturais do Estado começam a ser sistematizadas, de modo a tentar uma aproximação com a esfera da cultura, que estava desde a década de 50, sob a hegemonia dos grupos de esquerda. Esta aproximação realiza-se através da iniciativa de criação de órgãos federais responsáveis por áreas específicas, como o Serviço Nacional de Teatro, a Funarte e a Embrafilme, por exemplo. Segundo José Mário Ortiz Ramos (1983: 89),

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É sob o signo do AI-5 e de uma nova constituição que se processa a tensa articulação entre as conseqüências da modernização, como o crescimento da indústria cultural e uma rígida repressão e censura. Nesse momento, caracterizado como a segunda fase do Estado ditatorial, assiste-se às tentativas de redefinições para o setor cultural, numa clara preparação de terreno para uma política que só surgirá de forma articulada e explícita posteriormente.

Ou seja, a esfera cultural foi disputada de modo enfático pela ditadura nos anos 70 e as suas principais armas foram além da normatização proposta pelos órgãos de fomento federais, também a censura, que tentou inviziblizar os temas incômodos e refratários à idéia do “Brasil grande”, envolvendo desde assuntos relacionados diretamente a política, violência, pobreza até as mudanças de comportamento influenciadas pela contracultura. A perseguição empreendida pela censura foi em grande medida responsável pelo clichê do ‘vazio cultural’ que ainda persegue os anos 1970. Todavia, estes anos supostamente vazios aninharam um grande número de produções artísticas em todas as áreas, literatura, música, teatro e cinema, como nos acenam compilações como “Anos 70”. É possível afirmar que a principal característica dessas produções uma espécie de balanço crítico em relação às propostas frustradas dos anos 1960, nos quais há espaço para a ressignificação de questões como os conceitos de cultura brasileira e autenticidade, repensados a partir das novas experiências estéticas, sociais e políticas que foram colocadas a partir de meados da década. No tocante ao cinema, existe nos anos 1970 um esforço de criação e manutenção no Brasil, da atividade cinematográfica, esforço este evidenciado por Ismail Xavier (2001). Enquanto a década de 1960 constituiu-se como um momento de rupturas e transformações no cinema brasileiro de modo geral, a década de 1970 inaugura um momento de tentativa de continuidade, de garantir a existência da produção cinematográfica, a partir do acionamento de um capital simbólico, que tenta reconhecer pontos positivos, mas sem perder a perspectiva crítica, como na análise empreendida por Paulo Emílio Sales Gomes (2002). E embora essas discussões propostas por Gomes e Xavier, detenham-se prioritariamente no cinema de longa metragem, cremos que as Jornadas podem ser compreendidas como parte desse esforço, pois, através delas, o cinema baiano articula novas possibilidades de produção, a partir do curta-metragem e o cinema brasileiro encontra espaço para as discussões organizacionais e políticas, de modo menos exposto a ação da censura. Neste panorama, foram organizadas as primeiras Jornadas de Cinema da Bahia, servindo durante toda a década de 1970 como um local de convergência para os realizadores e

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interessados em cinema. De modo geral, as atividades propostas pela organização do evento consistiam num bloco de atividades freqüentes anualmente, de modo que é possível acompanhar sua ocorrência pelos seus regulamentos e programas. Elas consistiam basicamente na mostra competitiva em que eram exibidos os filmes selecionados para concorrer à premiação; mostras paralelas, que poderiam ter diversos motes, geralmente homenageando algum realizador ou seguindo temáticas específicas; seminários e simpósios objetivando discutir a “problemática do curta-metragem” em seus diversos matizes e acepções. Mais do que um festival de cinema, as Jornadas se configuraram como um respiradouro cultural não só soteropolitano, como brasileiro, espaço no qual foi possível através da exibição dos filmes e dos debates se constituir uma prática de resistência cultural à ditadura. Essa resistência pode ser identificada e compreendida pelas características do próprio evento, que foi gradualmente organizado num sentido de privilegiar produções que não teriam condições de exibições no circuito comercial, ou em outros espaços menos protegidos da coerção do Estado. Além das exibições, os debates eram também definidores de um espaço franqueado a fala e a todas as possíveis discordâncias, em plena vigência da ditadura. As Jornadas se iniciaram em 1972 como I Jornada Baiana de Curta-Metragem, com o objetivo de reativar a produção cinematográfica baiana, dando ênfase a produção curtametragista3. Guido Araújo, o idealizador e principal organizador das Jornadas justifica essa ênfase inicial nos filmes de curta-metragem, pela impossibilidade real de produção de longasmetragens na Bahia, nos anos 1970 4. Esta primeira Jornada ocorre com seis filmes na mostra competitiva e sem nenhum problema com os órgãos repressivos. Em 1973, a Jornada já se configura como nordestina, aninhando filmes nas bitolas de 35 e 16mm, além da Super85. A partir deste ano, a maior parte do evento, passou a ser realizado no Instituto Goethe, também conhecido como ICBA, o que deu a organização e aos participantes a possibilidade de ousar em relação as determinações autoritárias.

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Regulamento da I Jornada Baiana de Curta Metragem. (13 a 16 de janeiro de 1972). Setor de Cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Caixa Jornada 1972. Entrevista concedida por Guido Araújo no Escritório da Jornada Internacional de Cinema da Bahia em 20 de dezembro de 2007. Chama-se de bitola a largura da tira da película. Cf SALLES, Filipe. Princípios de cinematografia parte 2: bitolas e formatos. Disponível em http://www.mnemocine.com.br. Acesso em 12/12/2007. A bitola de 16 mm foi criada na década de 1920, como opção mais barata que a 35mm, para o uso de cineastas amadores. A bitola super-8, foi criada na década de 1960, a partir de modificações implementadas na 8 mm, que já era por sua vez, uma alternativa mais em conta que a 16mm. Cf. SALLES, Filipe. Breve história do super-8. Disponível em http://mnemocine.com.br. Acesso em 12/12/2007.

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O Instituto Goethe se constituiu durante as décadas de 1960 e 1970, como um dos principais espaços estimuladores das inovações artísticas em Salvador. Os Institutos existem desde 1956 em diversas partes do mundo, e foram criados objetivando a difusão da língua e cultura alemã.6 Sabe-se que sua fundação em Salvador data de 1962 e que a partir de 1970, com a chegada de Roland Schaffner, a instituição passou por transformações que a colocaram como protagonista de diversas atividades culturais, como vernissages, shows de artistas iniciantes e consagrados, mostras de filmes, cursos sobre cinema e artes plásticas e das próprias Jornadas7. A existência dessa concentração de atividades foi facilitada por ser o ICBA uma entidade civil alemã, que era equivocadamente considerada como diplomática pelos responsáveis pela repressão na Bahia. Ou seja, os agentes do Estado não agiam de modo tão violento, quanto poderiam, se as atividades ocorressem em outros espaços. É importante salientar que esse “cuidado” não significava falta de vigilância. Tanto nas entrevistas realizadas quanto na documentação impressa e jornalística, encontramos menções a censores assistindo a programação dos filmes e debates, e também casos de censura parcial ou total a filmes selecionados pela comissão de seleção do festival, que geraram documentos de repúdio a ação da Censura. Já em 1973, ocorreram os primeiros casos de censura, que atingiram dois superoitistas baianos, Ailton Sampaio (Espaço Vazio) e Fernando Bélens, que nos relatou a sua experiência: E eu apresentei um filme que eu adoro muito, mas ele não existe mais. Foi destruído, que é o “Viva o Cinema!” É fácil te contar porque ele era muito sintético. Ele tinha “Viva o Cinema” escrito em verde e amarelo, um calendário com a data do AI-5, 13 de dezembro de 1968. Aí vinham várias fitas queimadas, pedaços de fitas, de várias tonalidades, claro, escuro, azul, preto, aquelas fitas que sobram. E no final tinha uma folhinha sem data. E ai a polícia, a censura pegou e levou pra... a Polícia Federal me chamou e eu tive que responder um processo... Isso também, a repressão a algo que você acha que é seu direito falar, também influiu [no processo de aproximação com o cinema] (...) Apesar de que eu morria de medo de ser torturado. Menti na polícia, disse que não era o AI-5, que era a festa de Santa Luzia (...) Menti adoidadamente. Eles fingiram que aceitaram, mas eles não liberaram

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Cf. http://www.goethe.de/ins/br/sab/ptindex.htm. Acesso em 12/12/2007. TRIBUNA DA BAHIA. ICBA reúne artistas para aperfeiçoamento musical. Salvador. 20 de setembro de 1975. p 11. Maço Tribuna da Bahia Setembro de 1975; TRIBUNA DA BAHIA. Artista jovem é apoiado na política cultural do ICBA. Salvador. 22 de setembro de 1975. 2° Caderno. p 11. Maço Tribuna da Bahia Setembro de 1975. TRIBUNA DA BAHIA. Núcleo de pesquisa afro-brasileiro. Salvador. 22 de setembro de 1975. 2° Caderno. p 11 Maço Tribuna da Bahia Setembro de 1975. TRIBUNA DA BAHIA. Isto acontece no ICBA. Salvador, 24 de março de 1976. 2° Caderno. p.11. Maço Tribuna da Bahia Setembro de 1976

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o filme. O filme não foi exibido na Jornada, foi mandado pra Brasília e se perdeu8.

Neste trecho da entrevista é possível perceber aos tipos de pressão aos quais os cineastas estavam submetidos no momento em que se aventuravam em publicizar suas realizações. Contudo, mesmo com este tipo de interferência, a Jornada cumpriu uma das funções a que se propôs no seu primeiro regulamento em 1972, que era a de estimular o interesse da juventude baiana pela produção cinematográfica, o que realmente ocorreu, não só na Bahia, mas em outros estados do país, especialmente em Pernambuco e sua produção superoitista. Com isso quero dizer que, os jovens realizadores se organizavam anualmente para produzir filmes que poderiam ser selecionados para a exibição nas Jornadas. Esta prática foi mencionada tanto por Bélens, quanto por Edgard Navarro e Póla Ribeiro, além de ser mencionada por Figuerôa (1994). Na I Jornada, apesar do regulamento admitir a inscrição de filmes em super-8, não houve nenhuma, mesmo constando na programação, o seminário “Perspectivas de profissionalização do super-8”. A partir da II Jornada Nordestina, em 1973, há uma participação crescente dos cineastas superoitistas, que se expressou tanto na quantidade de filmes, na participação nos debates e na cobertura da imprensa. Durante a II Jornada houve a “Mostra Informativa Nacional Super-8”, que fez um panorama da produção em super-8 brasileira, e que foi organizada de modo a fazer interface com o “Seminário Super-8”9, ministrado por Jorge Bodansky, cineasta paulista com experiência em curtas e longas-metragens, que com aulas teóricas e práticas, buscou exercitar o uso do super-8 de modo que, mesmo sendo voltada mercadologicamente para cineastas amadores, os filmes obtivessem qualidade estética e de linguagem. Contudo, as lições de Bodansky aparentemente não foram utilizadas do modo desejado ou esperado pelos cineastas mais experientes das bitolas tidas como profissionais, o que ensejou críticas duras às produções superoitistas no decorrer das Jornadas10.

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Entrevista concedida por Fernando Belens em 16 de agosto de 2008, em sua residência. Belens foi um dos cineastas superoitistas participantes das Jornadas JORNAL DA BAHIA. Super-8: resultado depende de quem usa. Salvador, 04 de setembro de 1973. p 2 Maço Jornal da Bahia Setembro de 1973. JORNAL DA BAHIA.Um marco na defesa do curta e uma etapa na luta dos cineastas. Salvador, 16 de setembro de 1977. capa do 2º caderno; JORNAL DA BAHIA. A VI Jornada e o Documento Final. Salvador, 18 de setembro de 1977. p. 2. 2º Caderno. (as duas notícias são do Maço Jornal da Bahia Setembro de 1977).

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Grande parte dos filmes inscritos e exibidos nas Jornadas, especialmente os das bitolas em 16mm e Super-8, tratavam de temas que consistiam em algum tipo de afronta ao regime militar. Existia uma divisão informal, polêmica, mas também com limites bastante fluidos sobre a ligação dos temas dos filmes com as bitolas nas quais eles foram realizados. No caso dos filmes superoitistas inscritos houve tanto filmes com características políticas mais delineadas, como Abílio matou Pascoal, de Póla Ribeiro (1977), quanto a vertente experimental, que se realizava com maior intensidade (mas não exclusivamente) nesta bitola, devido ao seu custo reduzido, em relação as outras proporcionando a entrada de jovens realizadores na atividade cinematográfica. Estes filmes geralmente tratavam de questões relacionadas à sexualidade, exercícios estéticos sem vinculações políticas aparentes, e traziam para a Jornada os questionamentos comportamentais trazidos pela influência contracultural, e que consideramos também de teor político por questionar os valores morais instituídos e abalizados pela ditadura. Filmes como O Palhaço Degolado de Jommard Muniz de Brito e, sobretudo, O Rei do Cagaço de Edgard Navarro, causaram incômodo e insatisfação aos críticos e realizadores das outras bitolas, Considerando ainda o nível dos filmes, Bernardo Vorobow acha importante que se discuta os filmes sérios e não as curtições que estão sendo feitas e que daqui para frente seja traçada uma linha geral do que poderá ser feito adiante. Cita ainda o filme “O Rei do Cagaço” como um filme fascista, da repressão, porque “enquanto se faz um filme desse tipo não se pode discutir um outro que mostre a realidade nacional”11.

Entretanto, haviam também manifestações críticas que compreendiam a manifestação superoitista por outro viés, tais como Jairo Ferreira, Os filmes exibidos, com raríssimas exceções, foram de baixa qualidade; de resto, ficou-se no naturalismo, positivismo, tendências ao jingle, conceitualismo superado, registros passivos de festas populares, nostalgia e outras abordagens que desembocam no fascismo, servindo ao interesse da ordem vigente. O Rei do Cagaço, de Edgar Navarro Filho, é a maior explosão fílmica dos últimos anos em qualquer bitola, liberando justamente a energia reprimida por esse realismo socialista caboclo que atualmente nivela a esquerda à direita, reduzindo tudo a um fascismo geral12.

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JORNAL DA BAHIA. Um marco na defesa do curta e uma etapa na luta dos cineastas. Salvador, 16 de setembro de 1977. capa do 2º caderno. Maço Jornal da Bahia Setembro de 1977. FERREIRA, Jairo. apud TAVARES, Bráulio O Curta Metragem Brasileiro e as Jornadas de Salvador. Salvador: Gráfica Econômico, 1978.p.160.

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Estas duas opiniões antagônicas que tomam o mesmo filme como centro da discussão, evidenciam, que dentro do mesmo evento cinematográfico considerado de esquerda e curtametragista - que já indicava uma certa condição de marginalidade na prática cinematográfica em geral - coexistiam de modo conflituoso diferentes concepções e sentidos da atividade cinematográfica, que nos indicam também um fenômeno geracional. Os cineastas das bitolas consideradas profissionais eram muitas das vezes pessoas que já estavam envolvidas com a atividade cinematográfica antes do golpe de 1964 e tinham como referencial estético e teórico um cinema gestado nos ideais do nacional-popular, expressos pelo Cinema Novo, que de modo geral entendia o cinema como um espaço privilegiado e necessário para as discussões e possíveis transformações da “realidade nacional”. Entretanto, os cineastas superoitistas eram em sua maioria, jovens realizadores que chegavam naquele momento nas plagas cinematográficas, e que se apropriaram de modo crítico da herança cinemanovista, partindo das influências do tropicalismo e da contracultura, construindo assim novas maneiras de diálogo com a “realidade”, que geralmente destoavam do que seria considerado um “bom filme”, pelos cineastas mais velhos. Havia também ai uma “disputa pela tela”. Segundo Belens, era uma “briga de meios de produção e de espaço. Chega uma nova geração com novos meios de produção, e esses produtos finais são exibidos no mesmo espaço. É isso, a tela era a mesma.” 13. Edgard Navarro explicita a sensação inicial dos superoitistas em relação à Jornada: A Jornada era colocada pra gente, primeiro como uma vitrine onde a gente poderia colocar nossa merreca, nossa pequena bitola no meio de filmes feitos com todo um aparato, em 35 mm, com uma respeitabilidade, suporte, né.. nacional, quer erm filmes que vinham do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas, Rio Grande do Sul, do Nordeste, de várias partes do Brasil, principalmente do Rio e São Paulo, a produção sempre mais concentrada lá (...) Então a gente tinha a possibilidade de fazer uma porcariazinha de um filmezinho pequeno, na sua produção, que era feito com a sobra de salário que a gente tinha. Era muito barato fazer um filme em relação aos orçamentos que você teria para um curta-metragem. E isso exibido democraticamente em uma tela única, onde estava presente uma parte muito significativa do foro cinematográfico nacional.14

Póla também fala sobre a mescla das bitolas na tela: E a Jornada tinha uma coisa maravilhosa, embora fosse uma discussão dentro da classe, as categorias: ‘o Super-8 não é cinema, ‘o Super-8, não existe

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Fernando Bélens. Op. it. Entrevista concedida por Edgard Navarro na sua residência, em 03 de junho de 2008. foi um dos cineastas superoitistas participantes das Jornadas.

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isso’. Na real é que Guido organizava a Jornada de uma forma que os filmes passavam intercalados. Então passava o 35, o 16, o Super-8, o outro Super8, o outro 35, o outro 1615.

As falas de Belens, Navarro e Póla elidem o período inicial da Jornada, entre 1972 e 1975, em que mesmo exibidos na “grande tela”, os programas eram realizados de acordo com as bitolas e a premiação também seguia a mesma divisão, o que, denota uma tela ainda não tão democrática - e se referem diretamente a reorganização acontecida em 1976, que estabelece a programação dos filmes independentemente da sua bitola. Este é o indicativo do crescimento de importância que a produção superoitista tem nas Jornadas, que parece ultrapassar o que aparentemente se pretendia pelos cineastas tidos como profissionais, ou seja, o Super-8 como porta de entrada, e, portanto, provisório e domesticado enquanto suporte para atividade cinematográfica, terminou desenvolvendo-se enquanto linguagem própria de uma geração que se utilizou do respiradouro que foram as edições da Jornada, para se expressar durante os anos 70. Por sua vez, os filmes em 16 mm eram os que estavam mais ligados ao conceito mais usual de cinema político, discutindo temas ligados a experiência dos operários das fábricas, da construção civil, migração, seca, entre outros temas, tais como, Migrantes – João Batista de Andrade, 1973; Roças Comunitárias – Rogério Correia, 1975, Acidentes de trabalho – Renato Tapajós, 1977, os filmes do Cinema de Rua (Ambulantes, Herança, Buraco da Comadre, Domingo em construção e Pau pra toda obra). O caso de Pau pra toda obra, filme de Augusto Sevá é significativo para apreendermos a importância da Jornada como espaço de convergência para a produção cinematográfica brasileira. Este filme foi exibido e premiado junto com os outros pertencentes ao projeto Cinema de Rua, na V Jornada Brasileira de Curta-Metragem, em 1976. No mesmo ano, ele participa do Festival de Curtas-Metragens, promovido pela Aliança Francesa do Rio de Janeiro. Lá ele ganha o primeiro prêmio, mas não pôde ser exibido, assim como outros oito filmes que foram também censurados. Assim, Inimá Simões chama atenção para as características da produção curtametragista nacional, que poderia ser considerada como um serviço de contra-informação, pois com as câmeras de 16mm e super - 8 tinham tornado mais fácil a produção de filmes inde-

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Entrevista concedida por Póla Ribeiro sua residência, em 19 de abril de 2008. Póla foi um dos cineastas superoitistas participantes das Jornadas.

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pendentes, que conseguiam ser exibidos nas fímbrias da repressão, em cineclubes, levando de forma sub-reptícia muitos filmes curtos para sindicatos, faculdades, associações de bairro e classe, suscitando discussões sobre os problemas sociais e políticos do país, que não eram bem-vistos pelos órgãos repressivos. Os debates que ocorriam após as exibições programadas nas Jornadas foram onde os tensionamentos entre bitolas e num certo sentido contra o regime emergiram com bastante força. Entretanto, na documentação escrita consultada até este momento, a referência aos debates está diretamente ligada aos simpósios e grupos de trabalho e discussão, que estão relacionados com as discussões que tratavam de política cinematográfica e diálogo com os órgãos estatais, com a criação ou rearticulação de associações de classe, com o que poderíamos localizar na esfera considerada mais séria e profissional do evento. Contudo nas entrevistas realizadas, inclusive com Guido Araújo16, existem muitas menções aos debates ocorridos depois da exibição dos filmes. Segundo Guido, os debates eram gravados, mas as sucessivas mudanças do escritório da Jornada, além das transformações tecnológicas, fizeram com que esses registros se perdessem. Os debates emergem nas entrevistas sendo um dos principais momentos da programação da Jornada. Eles foram sempre referidos como o espaço onde de fato os freqüentadores da Jornada podiam participar, expressando-se de maneiras consensualmente consideradas livres, pois, neles as pessoas podiam expressar suas discordâncias e concordâncias estéticas e políticas tendo os filmes como mote. Segundo Belens, Depois de toda exibição, tinha uma coisa fantástica na Jornada. Isso devia acontecer sempre, mas é uma coisa quase francesa. Acontecia: a gente via aqueles dois blocos de filme e as pessoas permaneciam no espaço e havia discussão; com público participando, com cineastas participando, outros artistas participando, e era depois do filme. Havia um evento cultural importantíssimo onde aconteciam mil coisas, onde a coisa mais simbólica colocada foi a nudez17.

A nudez referida por Belens, é a de Edgard Navarro, que foi mencionada na sua própria entrevista18, bem como na de Póla Ribeiro, Aí é aquela história: o meio é a mensagem mesmo. A existência do debate era a grande mensagem. Não era o que se falava no debate. Ah, porque o cara... Leon Hirzman vai falar... foda-se Leon Hirzman, o cara é garoto ali e 16

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Entrevistas concedidas por Guido Araújo no Escritório da Jornada Internacional de Cinema da Bahia em 10 de abril de 2004 e 20 de dezembro de 2007. Fernando Bélens. Op. cit. Edgard Navarro Op. cit.

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identifica “não confio em ninguém com mais de 30 anos”, entendeu? Então, já tinha essa fervura, e essa fervura era o barato. Você compreender isso no momento exato em que está acontecendo é mais difícil, mas era essa fervura. Quer dizer, as performances de Edgard nos debates, eram, eram a fervura. Edgard tirar a roupa, Edgar mostrar um espelho pro cara que tá perguntando a ele. Tudo isso era uma coisa a mais do que os movimentos políticos poderiam tá dando como resposta19.

Compreendemos que a existência dos debates auxiliou a Jornada a se estabelecer como um dos principais eventos culturais de Salvador, atraindo estudantes universitários e secundaristas além dos realizadores e militantes das esquerdas. O que emerge das descrições realizadas sobre os debates, é que, muito mais importante do que o que se discutiam neles, eram tão somente a sua existência, que amparada pela suposta imunidade diplomática do ICBA, caracterizaram as Jornadas como um espaço de respiradouro, onde ainda era possível falar e comportar-se com relativa liberdade, na ditadura militar. Todavia, apesar de elidida de algumas falas, o espectro da censura se fazia presente, tanto que há referências de censores infiltrados na platéia, como explicita a fala de Luiz Orlando: “Na censura você tinha que mandar a programação toda, debate. Tudo. Ele censurava, mas muitas vezes ele participava, você via os caras lá na sala”20. Ou seja, a possibilidade do acesso à expressão, nas diversas formas possíveis era o que segundo a fala dos participantes, dava sentido ao debate, e em última instância, a própria Jornada. Eram nesses momentos em que os espectadores e os realizadores, partindo das mais diversas convicções colocavam suas opiniões e conflitavam diversas compreensões de realidade, ainda que consideradas no espectro difuso das esquerdas. E mais uma vez nas entrevistas, surgem as clivagens, em que se criam dois campos opostamente complementares, segundo Fernando Belens, “uma esquerda” e uma “outra esquerda”. Uma esquerda, considerada tradicional, que como já foi dito anteriormente, tem nas suas preocupações e práticas o contato com os movimentos sociais e a resistência política a ditadura, e a outra esquerda, autodenominada pelos pertencentes ao “desbunde”, que tinha um enfrentamento no campo do comportamento, levantando questões relativas à sexualidade, experimentações com substâncias alteradoras de percepção e novas propostas de linguagem. 19 20

Póla Ribeiro, Op. cit. Entrevista concedida por Luis Orlando da Silva em 27/04/2005. Luis Orlando participou da organização e produção das Jornadas desde 1977. Foi também um militante de atuação e reconhecimento nacional no movimento cineclubista.

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Assim, consideramos as duas posturas resistentes à ditadura, pois a seu modo, cada uma dialogava com campos que foram elididos do discurso de identidade e nacionalidade criado pelo regime. A esquerda “tradicional”, por visibilizar os movimentos sociais, e as dificuldades das parcelas mais pobres da população, acuadas pela modernização conservadora imposta pela ditadura, que aprofundava as diferenças sociais e econômicas. E por sua vez a esquerda “desbundada”, por dialogar com as influências contraculturais, que mexiam com as bases de uma moralidade calcada na religiosidade católica, que era confrontada pelas idéias e práticas que chegavam dos mesmos países desenvolvidos que o Estado autoritário desejava seguir, ao compreender o Brasil como um país em desenvolvimento. Deste modo, justamente pelos conflitos e discordâncias dos posicionamentos expostos nas suas atividades é que consideramos a Jornada como um respiradouro essencial para atividade cinematográfica baiana e brasileira durante a ditadura militar.

REFERÊNCIAS

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