Cinema, estética e ideologia. O cinema no Estado Novo, anos 40

July 21, 2017 | Autor: Carla Ribeiro | Categoria: Cultural History, Cinema
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Cinema, estética e ideologia. O cinema no Estado Novo, anos 401.

“Oh inclemência! Oh martírio! Estará porventura periclitante a saúde daquele nobre menino que eu ajudei a criar?” (Diálogo do filme Pai Tirano, 1941 de António Lopes Ribeiro)

Introdução Inscrito na esfera cultural, o cinema apresenta-se como um dos elementos de maior influência, uma vez que traz consigo “uma qualidade que às outras [artes] falta em absoluto: o ritmo da vida, o seu dinamismo” (Manuel de Azevedo, 1941, O Cinema em Marcha, p. 14). Entre nós, rapidamente se faz sentir a novidade estética que é o cinema. Temos assim o precoce ensaio de António Ferro, de 1917, As Grandes Trágicas do Silêncio; em 1921, o estudo psicológico, social e crítico da autoria de Mário Gonçalves Viana, intitulado Da sugestão ao animatógrafo e, em 1925, o ensaio de cinefilia de Roberto Nobre, Charlotim e Clarinha. No contexto das ideias futuristas, então em voga, os intelectuais acolhem o cinema como uma arte jovem, uma arte nova, verificando-se o emergir em Portugal de uma cultura cinematográfica.

O cinema dos anos trinta e a primeira metade da década de 1940 A década seguinte, de trinta, constituiu um período de intensa atividade no que ao cinema dizia respeito, com o desenvolvimento do meio cinematográfico nacional, através de uma “geração de jovens furiosamente cinéfila” (João Bénard da Costa, 1991, Histórias do Cinema, p. 38) que se vai afirmando, começando na crítica especializada nas revistas, como as lisboetas Cinéfilo, Animatógrafo, Imagem, Kino ou, no Porto, a Invicta Cine, a Cine-revista, Movimento e o Porto Cinematográfico. António Lopes Ribeiro, o teórico desta geração, e José Leitão de Barros, o seu eixo impulsionador, com ligações aos meios jornalísticos afetos ao salazarismo, trazem consigo Chianca de Garcia, Arthur Duarte, Cottinelli Telmo, Jorge Brum do Canto, que então se começam a afirmar,

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Tem de se começar por dizer que só em termos de calendário é possível falar de um cinema dos anos 40. Com efeito, existem nesta década duas fases bem distintas: a primeira, que prolonga os anos 30 e vem até ao fim da Segunda Guerra Mundial (ou, no máximo, até 1947, de acordo com Bénard da Costa); a segunda, que corresponde à segunda metade da década e se prolonga até aos anos 50. 1

dominando a produção, a nível de códigos, paradigmas e géneros fílmicos. De origens e formações diversas, provinham todos, no entanto, do mundo das belas-artes, partilhando uma “paixão revolucionária” e a fidelidade ao Estado Novo que, acreditavam, “era tão capaz de os entender como eles de se entenderam nele” (João Bénard da Costa, 1991, Histórias do Cinema, p. 40). Este período ficou ainda marcado pelo aparecimento de diversas salas de cinemas, bem como de infra-estruturas produtivas: a Lisboa Filme, de Francisco Quintela, surge em 1928; a Ulysseia Filme, de Manuel Albuquerque, Raul Lopes Freire e José Nunes das Neves, no ano seguinte e, em 1932, nascem os estúdios da Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros Tobis Klangfilm (mais tarde Tobis Portuguesa), na Quinta das Conchas, ao Lumiar. Foi este o estúdio que marcou grandemente a vida cinematográfica nacional nos anos trinta e quarenta, partindo da seguinte premissa: “Move-nos, muito mais do que quaisquer considerações de carácter industrial ou comercial, um pensamento eminentemente patriótico: o de tornar possível a criação duma arte nacional que em muitos aspectos e por muitos títulos pode e deve ter uma vasta influência na vida e no progresso da Nação” (Avelino de Almeida, 1932, “O êxito da subscrição pública”, Cinéfilo, nº. 199, p. 3), apresentando um projeto que trabalhava “para a criação do cinema português, feito em Portugal com elementos portugueses e para exclusiva utilidade nacional” (Herculano Pereira, 1933, “Um caso sério de organização”, Imagem, nº. 83, p. 5).

Em termos de produção, de destacar o primeiro filme sonoro português, de 1931, realizado por Leitão de Barros, A Severa, uma adaptação ao grande ecrã de uma peça de Júlio Dantas, de 1901, tendo constituído um enorme êxito de público e de crítica: o filme esteve em cartaz mais de seis meses, visto só nesse ano de 1931 por 200 000 espectadores. Dois anos depois, em 1933, surge o primeiro filme sonoro inteiramente rodado em Portugal, realizado pelo (já então renomado) arquiteto José Cottinelli Telmo, A Canção de Lisboa. Revela-se novo êxito junto do público e da crítica, em Portugal e no Brasil, sucesso este em parte alcançado pelo ambiente publicitário criado à sua volta desde o início, em jornais e revistas da especialidade, facto a que não serão alheios os contactos que com esses meios mantinham muitos dos que estavam ligados à produção do filme. A Canção de Lisboa ficou para a história do cinema português, na opinião de vários críticos, como a matriz da comédia portuguesa. E este foi, efetivamente, o género cinematográfico mais explorado e com maior sucesso de bilheteria, nestes anos trinta e na primeira metade de década de quarenta:

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TÍTULO A Canção de Lisboa O Trevo de Quatro Folhas Maria Papoila A Aldeia da Roupa Branca A Varanda dos Rouxinóis João Ratão O Pai Tirano O Pátio das Cantigas O Costa do Castelo A Menina da Rádio A Vizinha do Lado

GÉNERO: COMÉDIAS ANO DE PRODUÇÃO 1933 1936 1937 1938 1939 1940 1941 1942 1943 1944 1945

REALIZADOR José Cottinelli Telmo Chianca de Garcia José Leitão de Barros Chianca de Garcia José Leitão de Barros Jorge Brum do Canto António Lopes Ribeiro Francisco Ribeiro Arthur Duarte Arthur Duarte António Lopes Ribeiro

Até 1947, e segundo Bénard da Costa, 11 das 40 longas-metragens de ficção pertencem a este género. Razão para este sucesso? Vários autores propõem que tal se deve à utilização de temáticas, contextos e locais nos quais o grande público, sobretudo a pequena e média burguesia urbana, facilmente se reconhecia. Com efeito, parecia que “a ficção que encenavam era a sua verdade. Verdade deles e verdade desses filmes, na grandeza da encenação e na pequenez do encenado” (João Bénard da Costa, 1991, Histórias do Cinema, p. 71). Por outro lado, este êxito assentava no elenco de atores, provenientes da revista à portuguesa, como Beatriz Costa, António Silva, Vasco Santana ou Ribeirinho. Luís de Pina realça ainda o contributo dos excelentes dialoguistas, como José Galhardo ou Ramada Curto, e das partituras e canções de toda uma geração de exceção, onde se contam nomes como Raul Portela, Raul Ferrão ou Luís de Freitas Branco. Neste período, outro género se destacou na produção portuguesa, o histórico-literário, de pendor melodramático: GÉNERO: FILME HISTÓRICO-LITERÁRIO TÍTULO ANO DE PRODUÇÃO REALIZADOR As Pupilas do Senhor Reitor 1935 José Leitão de Barros Bocage 1936 José Leitão de Barros Os Fidalgos da Casa Mourisca 1938 Arthur Duarte Amor de perdição 1943 António Lopes Ribeiro Inês de Castro 1945 José Leitão de Barros Camões 1946 José Leitão de Barros Através deste tipo de filmes, procurava-se explorar o “filão” nacionalista, veiculando a consciência de nação, orgulhosa do seu passado, herança do futuro. No geral, pode afirmar-se que 3

esta filmografia constituiu êxitos de crítica (Camões, por exemplo, recebeu o prémio SNI de melhor filme, em 1946) mas obteve uma dececionante resposta do público, constituindo, em alguns dos casos, flops comerciais. Talvez isso justifique o facto de, entre 1931 e 1955, terem sido produzidos em Portugal apenas seis filmes desta tendência historicista, o que torna ainda mais expressiva a discrepância entre a importância ideológica deste género e a sua modéstia em termos numéricos.

O cinema português entre 1945 e o final da década de 50 O fim da Segunda Guerra Mundial marca tempos difíceis para o cinema português, que se prolongam pela restante década de quarenta e pelos anos cinquenta. O interesse do público pelo cinema nacional ia esmorecendo, vítima de uma filmografia onde a dificuldade de criação de enredos expressamente feitos para cinema era remediada com adaptações sucessivas de êxitos do teatro ou da literatura. E assim, o cinema de qualidade dos anos quarenta tem apenas para dar aos cinéfilos portugueses três obras, todas de 1942: Aniki-Bobó, a primeira longa-metragem de Manoel de Oliveira, situada na zona ribeirinha do Porto, um filme que narra as aventuras e desventuras de um grupo de crianças da beira Douro; Ala Arriba, uma realização de Leitão de Barros, ambientada no seio da comunidade de pescadores da Póvoa do Varzim, e Lobos da Serra, de Jorge Brum do Canto, uma obra sobre o contrabando na região de Trás-os-Montes. Todavia, estas obras pouco impacto têm na produção destas décadas, até ao “ano zero” de 1955 (ano em que nenhuma longa-metragem foi produzida em Portugal), pode afirmar-se que, havendo cinema em Portugal, não existia cinema português, tendo-se entrado numa verdadeira rotina de “fórmulas oportunas” (Luís de Pina, 1986, História do Cinema Português, p. 122).

Percebe-se claramente que à indústria fílmica portuguesa faltava

quase tudo: mais e melhores cinemas, incentivos fiscais, liberalização da Censura e, até, bons realizadores, já que a primeira geração de intelectuais nacionalistas associados a Ferro – António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros, Cottinelli Telmo, Jorge Brum do Canto, Chianca de Garcia – é substituída por uma segunda geração de “serventuários intelectuais” do regime – Henrique Garcia, Perdigão Queiroga, Augusto Fraga ou Constantino Esteves –, a “geração do Salazarismo vulgar, aquele que destilava uma ideologia e uma prática do quotidiano” (Jorge Leitão Ramos, 1993, “O cinema salazarista”, p. 400, in História de Portugal (dos tempos pré-históricos aos nossos dias), vol. XII).

Assim, embora a comédia permanecesse como género popular entre o público, verifica-se um esvaziamento do seu conteúdo e uma perda da graça, da invenção e da desenvoltura técnica 4

das décadas anteriores, apostando-se agora nas fórmulas do nacional-cançonetismo, do desporto, da fé e religião e na trilogia do fado, touros e touradas: CINEMA PORTUGUÊS: 1945-1960 ANO DE TÍTULO REALIZADOR PRODUÇÃO Ladrão Precisa-se! 1946 Jorge Brum do Canto O Leão da Estrela 1947 Arthur Duarte O Grande Elias 1950 Arthur Duarte Sonhar é Fácil 1951 Perdigão Queiroga Os Três da Vida Airada 1952 Perdigão Queiroga O Comissário de Polícia 1953 Constantino Esteves Agora é que são elas! 1954 Fernando Garcia O Costa de África 1954 João Mendes Rainha Santa 1947 Aníbal Contreiras Vendaval Maravilhoso 1949 José Leitão de Barros Frei Luís de Sousa 1950 António Lopes Ribeiro O Primo Basílio 1959 António Lopes Ribeiro Chaimite 1953 Jorge Brum do Canto Chikwembo! – Sortilégio Africano 1953 Carlos Marques Rosa de Alfama 1953 Henrique Campos A Costureirinha da Sé 1958 Manuel Guimarães Bola ao Centro 1947 João Moreira O Homem do Dia 1958 Henrique Campos Senhora de Fátima 1951 Rafael Gil A Garça e a Serpente 1952 Arthur Duarte Planície Heróica 1954 Perdigão Queiroga A luz vem do alto 1959 Henrique Campos Um Homem do Ribatejo 1946 Henrique Campos Capas Negras 1947 Armando de Miranda Fado, História de uma Cantadeira 1948 Perdigão Queiroga Sol e Toiros 1949 José Buchs Cantiga da Rua 1950 Henrique Campos

GÉNERO Comédia Comédia Comédia Comédia Comédia Comédia Comédia Comédia Histórico Histórico Histórico Histórico Colonial Colonial Drama/Musical Drama/Musical Desportivo Desportivo Religioso Religioso Religioso Religioso Fado/Touros Fado/Touros Fado/Touros Fado/Touros Fado/Touros

Este cinema, contudo, não parece ter condições para durar, já que a conjuntura das décadas de trinta e quarenta se tinha modificado profundamente, em especial no fim da Segunda Guerra Mundial, com as consequências políticas e sociais daí decorrentes, que o inviabilizam. Desta forma, em finais da década de quarenta surge entre nós o movimento dos cineclubes, com o Cineclube do Porto que, fundado em 1945, ganha agora novo fôlego, pela entrada para a direção de Manuel de

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Azevedo, Henrique Alves Costa, os irmãos Virgílio Pereira, Mário Bonito e José Borrego. Ao seu lado, outros cineclubes vão-se formando: o Clube de Cinema de Coimbra; o Cineclube Universitário; o ABC Cineclube de Lisboa; o Cineclube Imagem. Tiveram um enorme impacto na sociedade portuguesa, quer elevando o nível de exigência dos espectadores, quer contribuindo para o surgimento de profissionais ligados à área do cinema, quer aliciando os próprios distribuidores a exibirem outro tipo de filmes, quer, ainda, promovendo a criação de uma crítica cinematográfica de especialistas na maioria dos jornais diários. É ainda na década de cinquenta que se assiste a uma tentativa de introdução de uma temática social de tipo neo-realista nas obras cinematográficas nacionais; porém, foi uma tentativa tímida e inconsequente, expressa maioritariamente por Manuel Guimarães, com os seus filmes Saltimbancos (1951), Nazaré (1952) e Vidas sem Rumo (1956).

António Ferro, o SPN e o cinema português Está agora na altura de introduzir uma personagem central para a compreensão desta relação ente o cinema e a política entre nós – António Ferro. Ferro foi, segundo o historiador Luís Reis Torgal, um dos “intelectuais orgânicos” do Estado Novo, isto é, um homem que “relaciona a sua visão da sociedade e da política com as suas escolhas culturais e estéticas” (Luís Reis Torgal, 2005, “«Intelectuais orgânicos» e «Políticos funcionais» do Estado Novo (Os casos de António Ferro, Augusto Castro, João Ameal e Costa Brochado, p. 240, in Transformações estruturais do campo cultural português, 1900-1950).

Homem paradoxal e controverso, artisticamente Ferro aderiu na sua juventude ao Modernismo: - Editor, aos 19 anos, da revista Orpheu, lançada em 1915, mercê do seu convívio, enquanto aluno do Liceu Camões, com Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, e da cumplicidade geracional com poetas e artistas como Luís de Montalvor, José Pacheko e Almada Negreiros. Todavia, esta solicitação tinha como fim prático salvaguardar as reacções menos positivas do meio lisboeta ao conteúdo vanguardista da revista e Ferro foi um mero editor formal; - Criador, em 1925, do Teatro Novo; - Autor de livros, novelas e peças de teatro de cariz vanguardista, como A Teoria da Indiferença (1920), Leviana (1921) ou Mar Alto (1924). Politicamente, Ferro assume-se como defensor do Nacionalismo Autoritário:

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- Autor de uma série de entrevistas a líderes carismáticos da Europa, ao serviço do Diário de Notícias, como Mussolini (a quem entrevistou 3 vezes e que admirava profundamente) ou D’Annunzio [tendo ingressado no curso de Direito em 1913, dele desiste, seduzido pelo jornalismo e pelas artes]; - Autor de uma série de 5 entrevistas a Salazar, em 1932, publicadas no livro de 1933, Salazar, o homem e a sua obra; esse encontro marca a sua entrada no aparelho do Estado Novo, enquanto diretor do Secretariado Nacional de Propaganda, SPN (criado pelo Decreto-Lei nº. 23 054, de 25 de Setembro de 1933, sendo um organismo diretamente dependente da Presidência do Conselho e, concomitantemente, de Oliveira Salazar. Alvo de operações de cosmética, em 1944, perto do final da Segunda Guerra Mundial, passa a Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, SNI, e, no período marcelista, em 1968, transforma-se em Secretaria de Estado de Informação e Turismo, SEIT).

Enquanto diretor do SPN/SNI (entre 1933 e 1949), Ferro foi o mentor de uma prática estético-cultural dominada pelo vetor político-ideológico – a (sua) Política do Espírito, um projeto de “estetização da política” (Jorge Ramos do Ó, 1992, “Salazarismo e Cultura (1930-1960)”, p. 404, in Nova História de Portugal, vol. XII).

Tratava-se de um projeto globalizante de gestão sócio-ideológica das artes,

construído por programas sectoriais para o cinema, teatro e o bailado, as artes plásticas, decorativas e gráficas, a música, literatura, imprensa e o turismo, com dois grandes objetivos: a) Criação de uma arte nacionalista; b) Aprimoramento dos padrões estéticos da sociedade. Tal como outros regimes autoritários europeus, o Estado Novo “precisou de criar uma imagem de si próprio e, consequentemente, de impor essa imagem de um modo que fosse simultaneamente eficaz e (…) discreto” (Eduardo Geada, 1985, Estéticas do Cinema, p. 74). Essa revelou-se a tarefa central de António Ferro à frente do SPN/SNI: a propaganda oficial do regime. Num país com a taxa de analfabetismo mais alta da Europa, o cinema apresentava-se como o meio de comunicação mais acessível para a criação da imagem desejada; nas palavras perspicazes do cineasta António Lopes Ribeiro, “um poderoso factor social, instrumento seguro de acção civilizadora (…), a sétima arma” (António Lopes Ribeiro, 1940, “Sétima Arte - Sétima Arma”. Animatógrafo, nº. 6, p. 1).

O seu uso foi potenciado politicamente pelo facto de Ferro ser um apaixonado por esta arte, seduzido desde cedo pelo cinema. Bem antes de se ter tornado uma figura política proeminente no regime de Salazar, terá sido, seguramente, um dos primeiros portugueses a viajar até Hollywood, em 1927, onde contactou com figuras conhecidas do mundo cinematográfico americano, como Walt Disney, Douglas Fairbanks ou Mary Pickford, e onde se apercebeu do poder deste meio de

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comunicação, enquanto espaço de projecção do imaginário, na sua natureza quimérica, mistificadora, encarando-o como instrumento de antecipação do real, transfigurador. É este poder, de influenciar, de persuadir, de promover que, em Portugal, António Ferro, à semelhança dos seus congéneres italiano, alemão ou espanhol, utiliza como veículo de propaganda do país, convencido como estava que “mais do que a leitura, mais do que a música, mais do que a linguagem radiofónica a imagem penetra, insinua-se sem quase se dar por isso, na alma do homem (António Ferro, 1950, Teatro e Cinema, p. 44).

Assim, desde o início, verificou-se uma tentativa clara de

defesa e orientação da cinematografia nacional. O apelo de Ferro era claro: “Lançar as bases dum cinema nacional, com o seu carácter inconfundível, com as suas qualidades e defeitos mas sempre com certa elevação, fugindo do reles, do corriqueiro, do vulgar” (António Ferro, 1950, Teatro e Cinema, p. 63).

Amigo pessoal de dois dos assim apelidados “cineastas do regime” – António Lopes Ribeiro e

José Leitão de Barros – partilhavam uma visão comum no que ao cinema, e ao seu poder, dizia respeito, como se pode constatar pelas palavras dos realizadores:  “Já ninguém ousa contestar-lhe [ao cinema] o alcance como instrumento difusor de ideias […]. Os seus processos são directos, concretos, objectivos, insinuantes e amáveis […], podendo portanto influenciar multidões já constituídas […]. A imagem retém muito mais facilmente o argumento dum filme que um artigo de jornal ou um discurso” (António Lopes Ribeiro, 1933) 

“Se ao Estado interessa que haja um cinema nacional […], terá que fazer como todos os Estados têm feito: protegê-lo […]. Ausência total de cinema português, em nosso entender, é ausência de nação” (Leitão de Barros, 1946) Vejamos então por partes: comecemos pela perspectiva do projecto cinematográfico oficial

de Ferro protagonizado pelo SPN/SNI: Documentarismo, a que se dedicou em especial a Secção de Cinema do SPN, construindo aquilo que Luís Reis Torgal designa de “memória histórica do Estado Novo” (Luís Reis Torgal, 1996, “Cinema e Propaganda no Estado Novo” in Revista de História das Ideias, vol. 18, p. 303).

Neste capítulo, Ferro contou

igualmente, a partir de 1938, com um jornal nacional de actualidades cinematográficas, o Jornal Português, patrocinado pelo SPN e confiado a António Lopes Ribeiro, ligado à Sociedade Portuguesa de Actualidades Cinematográficas (SPAC), servindo como um noticiário cinematográfico de divulgação da obra do regime, assumindo como matérias privilegiadas as comemorações oficiais (como as Comemorações do Duplo Centenário), as obras e os organismos/instituições do Estado 8

(campanhas do governo, como a de “Produzir e Poupar” e organismos como as Forças Armadas, a Mocidade Portuguesa ou a Legião Portuguesa), na perspectiva de uma imagem idealizada do regime; Cinema Ambulante, que desde 1935 funciona como um “missionário civilizador, no meio dos numerosos sertões de Portugal” (1933, “Os cinemas ambulantes”, Cinéfilo, nº. 254, p. 3 e 8), percorrendo as vilas e aldeias de Portugal e levando a novidade cinematográfica a públicos maioritariamente analfabetos e pouco sofisticados. Estas jornadas cinematográficas eram realizadas nos espaços de juntas de freguesia, de sociedades recreativas e mesmo de igreja onde, além do visionamento de documentários de carácter nacionalista, além de filmes ficcionais, o SPN/SNI patrocinava breves conferências doutrinárias, onde convidados, figuras destacadas da comunidade, esclareciam as virtudes do regime e o valor educativo dos filmes; Cinema de Ficção, baseado no financiamento de filmes de tónica claramente nacionalista, com características propagandísticas e na produção de duas obras consideradas filmes “políticos”: A Revolução de Maio (1937) e o Feitiço do Império (1940), ambos realizados por António Lopes Ribeiro. São obras claras de propaganda política estadonovista, quer a nível dos enredos, quer no que às questões financeiras diz respeito, uma vez que foram patrocinadas pelo SPN e pela Agência Geral das Colónias, respectivamente, contando ainda com ajudas de outros organismos estatais, como o Comissariado do Desemprego. Constituem produtos cinematográficos criados, como tão claramente o colocou o seu realizador, para “servir a propaganda de Portugal e servir a política de Salazar” (António Lopes Ribeiro, 1936, “Os Quatro Pontos Cardiais de A Revolução de Maio”, Cinéfilo, nº. 459, p. 2-3). O primeiro contou inclusive com o empenho e envolvimento directo de António Ferro, autor do argumento (sob o pseudónimo Jorge Afonso), conjuntamente com o realizador. Ambos os filmes, contudo, apesar da publicidade feita, quer durante o período de filmagens, quer a nível das estreias, apesar dos elogios da crítica mais conservadora, passam ao lado dos favores do público português; Prémios Cinematográficos, estabelecidos em 1944. Verifica-se que os géneros mais galardoados são os dramas morais e os filmes históricos, alguns resultado da adaptação de clássicos da literatura portuguesa. Portanto, filmes que correspondiam no essencial aos desejos de Ferro;

Diploma nº 2 027, de 18 de Fevereiro de 1948, que formaliza a Lei de Protecção ao Cinema Nacional e cria o Fundo do Cinema Nacional; administrado pelo SNI, chamava a si responsabilidades até aí

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dispersas, centralizando o cinema e controlando-o efectivamente através do poder de financiamento de que dispunha. Para Ferro, este diploma, pelo qual lutara longamente, seria uma forma de “reabilitar o cinema português e elevar o nível do gosto do público” (António Ferro, 1950, Teatro e Cinema, p. 69),

feito precisamente para os filmes que não se consideravam suficientemente

comerciais e que, como é referido no diploma, deveriam “ser representativo[s] do espírito português, quer traduza a psicologia, os costumes, as tradições, a história, a alma colectiva do povo, quer se inspire[m] nos grandes temas da vida e da cultura universais” (António Ferro, 1950, Teatro e Cinema, p. 118).

Quanto à segunda perspectiva, o pensamento de António Ferro relativamente ao cinema português: Ferro deixa claro a sua rejeição películas comerciais de carácter cómico, o género mais popular entre o público nacional, consideradas o “cancro do cinema nacional […], onde se procura fazer espírito com a matéria, com o que há de mais inferior na nossa mentalidade” (António Ferro, 1950, Teatro e Cinema, p. 65-66).

Defende ainda, face ao insucesso comercial dos chamados filmes

“políticos” já mencionados, os “filmes regionais”, considerados óptimos elementos de propaganda de Portugal, através do folclore nacional, desde que “convenientemente racionado”, nas palavras de Ferro (António Ferro, 1950, Teatro e Cinema, p. 51). Assim se justifica o seu apoio, em 1942, ao filme Ala-Arriba, de Leitão de Barros, na planificação e montagem e, claro, no financiamento. Ala-Arriba obtém uma das taças Volpi no Festival de Cinema de Veneza de 1942 e, por essa razão, seguem-se obras do género, como Aqui, Portugal (1947), de Armando de Miranda ou, de João Mendes, Rapsódia Portuguesa (1958), um filme premiado pelo SNI e pelos meios cinematográficos iberoamericanos. Tendo em atenção que um dos defeitos apontados pelo director do Secretariado ao cinema nacional era a escassez de bons argumentos, Ferro incita os realizadores portugueses a usarem a História e a literatura nacionais, assumidos como bons exemplos e boas práticas, como fontes cinematográficas. Desta forma, o género histórico, inspirado na literatura, destaca-se, nas palavras de Ferro, como “um dos caminhos seguros, sólidos do cinema português” (António Ferro, 1950, Teatro e Cinema, p. 64). Por fim, a chamada de atenção para dois géneros quase que ausentes do

panorama da produção cinematográfica nacional, e que Ferro gostaria de ver entre nós, no intuito de construção de uma forte personalidade artística para o cinema nacional, um estilo autónomo e distinto: os “filmes de natureza poética” e os filmes do quotidiano, destacando 10

(surpreendentemente?) o filme de um dos realizadores mais reprimidos pelo Estado Novo – AnikiBobó de Manoel de Oliveira.

Considerações finais No cômputo geral, partilha-se das conclusões de Luís de Pina, quando afirma que o cinema português viveu condicionado por três conjuntos de factores: uma produção irregular e intermitente, que em muito contribuiu para o fracasso do projecto da indústria cinematográfica nacional; o trabalho sem a profissão, isto é, a quase ausência de uma actividade profissional normal ligada ao circuito de produção fílmica e, por último, as limitações económicas, que conduziram a concessões ao “gosto do público”, e de natureza ideológica, sob a forma da censura do Estado. Desta forma, a produção de filmes portugueses nunca ultrapassou os três/quatro filmes por ano, atingindo-se uma média de sete ou oito filmes em períodos excepcionais (como foi a temporada de 1946-47, com a produção de nove filmes). E assim, “fazem-se filmes em Portugal por carolice, por paixão, por inércia, por golpe, mas quase nunca por virtude de uma actividade profissional” (Luís de Pina, 1986, A Aventura do Cinema Português, p. 100).

No que diz respeito ao Ferro e ao organismo que dirigiu, o SPN, pode concluir-se que a realidade produzida pela sua acção governativa não se coadunou com as suas ambições pessoais. A Política do Espírito de Ferro revelou-se a “política do possível”, dentro da lógica normalizadora do regime estadonovista. Tal foi especialmente verdade a nível cinematográfico, quando Ferro viu o seu arrojado projecto de regeneração estética e artística confrontado com os desígnios puramente ideológicos e propagandísticos do cinema salazarista, de horizontes culturais certamente menos largos do que os seus próprios. Por outro lado, a Política do Espírito definida por António Ferro gera uma “política de esmola” para o cinema nacional, que depende da protecção oficial, nos moldes estabelecidos em 1948, para poder criar. Há, com efeito, uma politização do cinema português, incentivando-se a partir desta data um cinema subsídio-dependente, convencional, de fraca qualidade e mais vigiado que o anterior.

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