Cinema Novo e(m) São Paulo In: 37º Encontro Anual da ANPOCS, 2013, Águas de Lindóia, 2013

August 16, 2017 | Autor: Caroline Gomes Leme | Categoria: Sociology of Culture, Sociology of Cinema, Brazilian Cinema, São Paulo (Brazil), Cinema Novo, Cinema brasileiro
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37º Encontro Anual da ANPOCS

SPG17 Pensamento social e análise da cultura

Cinema Novo e(m) São Paulo

Caroline Gomes Leme (UNICAMP/FAPESP)

Águas de Lindóia 2013

1. Introdução Um “movimento notadamente carioca, que engloba de forma pouco discriminada tudo o que se fez de melhor – em matéria de ficção ou documentário – no moderno cinema brasileiro”, assim Paulo Emilio Salles Gomes (1996, p.81) define o Cinema Novo. Referência forte e longeva no meio cinematográfico brasileiro, o Cinema Novo tomou forma no Rio de janeiro na virada dos anos 1950 para 1960, congregando jovens culturalmente bem formados que se reuniam em espaços como a cinemateca do MAM (Museu de Arte Moderna) e bares como o Alcazar. Discussões estéticas se entremeavam a questões políticas e a capital carioca – também sede de uma expressão forte do CPC (Centro Popular de Cultura) – estava no vórtice daquele momento efervescente.1 Ademais, foi no Rio que ficou sediada a Embrafilme, empresa de capital majoritariamente estatal, fundada em 1969 e que sucedeu iniciativas governamentais anteriores como a CAIC (Comissão de Apoio à Indústria Cinematográfica), no âmbito estadual e o INC (Instituto Nacional de Cinema), de caráter federal. Desse modo, é possível afirmar que o Rio de Janeiro se tornou nos anos 1960 e 1970 a capital do cinema brasileiro ou ao menos o polo mais rico em prestígio cultural e o mais forte em termos de influência na política cinematográfica. Era o lugar onde se congregaram cineastas bem formados e talentosos, onde se concentravam as principais discussões estéticas e políticoculturais e, ao mesmo tempo, lugar de proximidade “geográfica” com o Estado. Ante a efervescência carioca, a metrópole paulistana, marcada pelo fracasso do cinema industrial dos anos 19502, era percebida como um lugar de “solidão da cultura cinematográfica”, na expressão do cineasta Maurice Capovilla (apud MATTOS, 2006, p.101). Francisco Ramalho Jr. complementa: “na medida em que o cinema que estava começando a nascer se encontrava no Rio de Janeiro, e não fazíamos parte do grupo, do Cinema Novo, não estávamos na Embrafilme, nada. Éramos, digamos assim, apenas paulistas” (RAMALHO apud SABADIN, 2009, p.51). Ainda que “notadamente carioca”, o Cinema Novo manteve relações com a cidade de São Paulo, em grande parte mediadas pelo importante papel da Cinemateca 1

Sobre o processo de formação do Cinema Novo, ver Yuta (2004), Simonard (2006) e Fernandes (2008). Nos anos 1950 a burguesia paulistana fundou companhias cinematográficas de pretensões industriais. A principal delas foi a Vera Cruz, fundada em 1949, e na sua esteira foram criadas outras companhias como a Maristela e a Multifilmes. Todas malograram ainda na década de 50. Cf. Galvão (1981) e Catani (2002). 2

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Brasileira, o que incluía interlocuções com os críticos a ela vinculados, notadamente Paulo Emilio Salles Gomes, Jean-Claude Bernardet e Gustavo Dahl – este tornado um “cinemanovista” do núcleo central do movimento. Outros “paulistas”, como Maurice Capovilla, embora participassem das discussões ou mesmo mantivessem relações amistosas com os cineastas congregados no Rio, não chegaram a fazer parte senão de um “segundo círculo ampliado” do movimento (Cf. PARANAGUÁ, 2000, p.145). Esta comunicação – vinculada à pesquisa de doutorado em andamento, "Os “paulistas” do “entre-lugar”: cinema em São Paulo entre o Cinema Novo e a Boca do Lixo"3 – pretende lançar luz a essas pouco consideradas relações entre o Cinema Novo e a cidade de São Paulo, colocando em pauta as reverberações paulistas do movimento, as condições de produção nessa cidade, os diálogos ou divergências com os cineastas sediados no Rio de Janeiro, bem como as características singulares da filmografia paulistana em relação aos filmes cinemanovistas, notadamente no tocante à abordagem da modernidade urbana capitalista. Fundamentada em autores como Raymond Williams (1977, 2000), Jean-Pierre Esquenazi (2004, 2007), Pierre Bourdieu (1986, 1996) e Pierre Sorlin (1977), a pesquisa não pressupõe dicotomia entre abordagens “externalistas” e “internalistas” do cinema, entendendo que o social está tanto fora dos filmes – na configuração do meio cinematográfico, nas redes de relações entre cineastas, na relação entre cinema-Estado – como dentro deles, isto é, nas problemáticas que eles apresentam por meio de sua tessitura formal. Busca-se então conjugar a análise do meio cinematográfico à análise fílmica, evitando estabelecer determinações mecânicas entre esses dois âmbitos. As fontes utilizadas compreendem ampla bibliografia sobre o Cinema Novo, o cinema brasileiro dos anos 1960 e 1970 e o contexto histórico; biografias de cineastas que realizaram filmes naquele período; documentação primária, como críticas, entrevistas, reportagens e debates da época; e filmes realizados no período. 2. Cinemateca Brasileira e seu círculo: vértice importante na formação do Cinema Novo Ivana Bentes em sua Introdução a Cartas ao mundo, livro que reúne significativa correspondência do principal porta-voz do Cinema Novo, Glauber Rocha, salienta que a 3

Pesquisa realizada com apoio inicial da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e atualmente da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).

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“base geográfica” do movimento se constituiu no circuito Bahia-Rio-Europa, conforme pode ser percebido pelo trânsito das cartas de seus principais articuladores: Lendo a correspondência fica claro como a geografia do Cinema Novo se configura: Glauber entre a Bahia e o Rio; Paulo César Saraceni na Itália; Gustavo Dahl entre Roma e Paris; Joaquim Pedro de Andrade pela Europa. No Rio, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, David Neves, Luís Carlos Barreto, Leon Hirszman, Walter Lima Jr., Zelito Viana, Ruy Guerra. Essa base geográfica – o circuito Bahia-Rio-Europa integrado pelas cartas, com São Paulo um pouco à margem (Roberto Santos, Paulo Emilio Salles Gomes...) – é decisiva para o Cinema Novo acontecer como movimento. (BENTES In: ROCHA, 1997, p.24). 4

Em texto escrito no momento de emergência do Cinema Novo, o jornalista, crítico e futuro cineasta paulista, Maurice Capovilla (1962), identifica três grupos originais do movimento, geograficamente classificados: o da Bahia, o da Paraíba e o do Rio. Da Bahia, ele destaca o curta documentário Um dia na rampa (1959), de Luiz Paulino dos Santos, o curta-experimental de Glauber Rocha, O pátio (1959), e os filmes de Roberto Pires, Redenção (1959), A grande feira (1960) e Tocaia no Asfalto, ainda por lançar. Destaca ainda os nomes do produtor Rex Schindler e do crítico Walter da Silveira, bem como o filme Barravento (1962) que Glauber realiza a partir de argumento e roteiro original de Luiz Paulino dos Santos. Da Paraíba, surpreende-se com o documentário Aruanda (1959) de Linduarte Noronha. Do Rio, refere-se ao grupo “proveniente em geral dos cine-clubes” que começou com o curta O maquinista (Marcos Farias, 1958), de precárias condições técnicas, e prosseguiu com curtas de interesse como Arraial do Cabo (Paulo César Saraceni e Mário Carneiro, 1959), O mestre de Apipucos (Joaquim Pedro de Andrade, 1959), O Poeta do castelo (Joaquim Pedro de Andrade,1959) e aqueles que constituiriam o longa produzido pelo CPC, Cinco vezes favela (1962) – Um Favelado (Marcos Farias), Zé da Cachorra (Miguel Borges), Escola de Samba Alegria de Viver (Cacá Diegues), Couro de Gato (Joaquim Pedro de Andrade) e Pedreira de São Diogo (Leon Hirszman). 4

Logo após a realização de filmes seminais do Cinema Novo - entre os quais, Arraial do Cabo (1959), de Paulo César Saraceni e Mário Carneiro e O mestre de Apipucos (1959) e O Poeta do castelo (1959) de Joaquim Pedro de Andrade – os jovens Paulo César Saraceni, Joaquim Pedro de Andrade e Gustavo Dahl receberam bolsas de estudo para estudar cinema no exterior patrocinadas por instituições estrangeiras e complementadas por ajuda de custo do Itamaraty. Saraceni ingressou no Centro Sperimentale di Cinematografia em Roma em 1960; Joaquim Pedro fez estágio no IDHEC (Institut des Hautes Études Cinématographiques) e na Cinémathèque Française, em Paris entre 1960 e 1961, seguindo para Londres para estudar na Slade School of Art e depois para Nova York onde estagiou com os irmãos Maysles, documentaristas do então inovador “direct cinema”; enquanto Gustavo Dahl estudou no Centro Sperimentale di Cinematografia entre 1960 e 1962 e retornou à Europa entre 1963 e 1964 para um curso de cinema etnográfico no Museu do Homem, em Paris, ministrado por Jean Rouch. Cf. Fernandes (2008, p.274-280).

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Havia, porém, um outro grupo, o de São Paulo, no qual se incluía o próprio Maurice Capovilla e ao qual Cacá Diegues se refere como o grupo dos “protegidos de Paulo Emilio Salles Gomes” (DIEGUES, 1987, p.202, tradução nossa). Muitos anos depois, em entrevista concedida a Alex Viany e que compõe o livro O processo do Cinema Novo, Capovilla se incluí nesse grupo e expõe sua visão sobre a posição dos paulistas nesse processo: É curioso, sempre penso nisso: em São Paulo o Cinema Novo nasceu da atividade de divulgação, e nos agrupamos em torno da Cinemateca. No Rio e na Bahia foi diferente, mas aqui, Jean-Claude Bernardet, Rudá [de Andrade], Sérgio Lima e Gustavo [Dahl] saíram da Cinemateca, como eu. Foi muito importante a função da Cinemateca Brasileira no sentido de divulgar o Cinema Novo, que começava a acontecer. (CAPOVILLA, 1983, In: VIANY, 1999, p.344).

Essa importância da Cinemateca Brasileira e seu círculo para a divulgação do Cinema Novo é reconhecida por Glauber Rocha. Falando sobre a célebre “Homenagem ao Cinema Brasileiro”, organizada pela Cinemateca no contexto da VI Bienal de São Paulo de 1961 – na qual foram exibidos os curta-metragens, Aruanda (1959), de Linduarte Noronha; Arraial do Cabo (1959), de Paulo César Saraceni e Mário Carneiro; O mestre de Apipucos (1959), O Poeta do castelo (1959) e Couro de gato (1960), de Joaquim Pedro de Andrade; Um dia na rampa (1959), de Luiz Paulino dos Santos; Apelo (1960), de Trigueirinho Neto; Igreja (1960), de Sílvio Robato e Desenho abstrato (1960) de Roberto Müller5 – Rocha afirma: [...] esta semana na Bienal de 1961, com artigos de Gustavo Dahl, Jean-Claude Bernardet; apoio definido de Paulo Emilio Salles Gomes, Rudá de Andrade e Almeida Salles; ruptura com os cineastas adeptos da co-produção, do filme comercial, da chanchada intelectualizada, do cinema acadêmico com a polêmica irradiada entre os intelectuais através de um discurso de compreensão e apoio de Mário Pedrosa; esta semana teve para o novo cinema brasileiro a importância da Semana de Arte Moderna, em 1922. (ROCHA, 2003 [1963], p.130).

Jean-Claude Bernardet corrobora a asserção de Glauber ao descrever a principal noite de exibição de documentários na Bienal de 1961 como uma “noite-manifesto” na qual se deu “a afirmação de um outro cinema” (BERNARDET In: SOUZA e SAVIETTO (Orgs.), 1980, p.70). Saraceni (1993, p.126) também faz referência a essa histórica noite da Bienal na qual se estabeleceu o confronto entre os jovens propositores de um novo cinema e os cineastas da velha guarda pós-Vera Cruz, como César Mêmolo e Carlos Alberto de Barros. Para Capovilla, a mostra de documentários constituiu um momento 5

Cf. Saraceni, 1993, p.126.

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fundador ao dar forma fílmica às discussões por um novo cinema que já vinham surgindo pelo menos desde a Primeira Convenção Nacional de Crítica Cinematográfica ocorrida meses antes, também organizada pela Cinemateca Brasileira. A seu ver, naquela noite da Bienal: As duas coisas juntas – os filmes e as teses discutidas delineavam uma nova posição perante o cinema brasileiro […] Foi a origem de uma explosão de consciência. Em primeiro lugar, um novo sistema de produção, apontado por Aruanda – cinema de rua, cinema fora, precariedade, cinema pobre. Depois uma nova temática, a busca do homem. Por fim uma nova linguagem. (CAPOVILLA In: GALVÃO e BERNARDET 197-, p.23).

Teoria e prática se conjugaram, num histórico encontro entre críticos e jovens cineastas que começavam a realizar propostas que vinham germinando desde o final da década de cinquenta. Assim como na formação da Nouvelle Vague francesa, na constituição do Cinema Novo essa articulação entre teoria/crítica cinematográfica e a realização de filmes foi fundamental. Glauber Rocha (2004) ressalta a centralidade de três ensaios na formação do movimento: Uma situação colonial?, apresentado por Paulo Emilio Salles Gomes na Primeira Convenção Nacional de Crítica Cinematográfica e publicado no Suplemento Literário do Estado de S.Paulo em novembro de 1960; Coisas nossas de Gustavo Dahl publicado no mesmo Suplemento em janeiro de 1961 e Três filmes, de Jean-Claude Bernardet, publicado em maio de 1961 no mesmo espaço editorial. Segundo ele, esses três ensaios compõem: “a Sagrada Trilogia Crítica Original do Cinema Novo, sem a qual eu a turma do Rio não teríamos descoberto o específico fílmico”. (ROCHA, 2004 [1980], p.405). Desse modo, a despeito das divergências e rupturas que se seguiram e das quais trataremos mais adiante, verifica-se que São Paulo foi um vértice importante na formação do Cinema Novo. O círculo da Cinemateca – Paulo Emilio Salles Gomes, Rudá de Andrade, Jean-Claude Bernardet, Gustavo Dahl e Maurice Capovilla –, teve um destacado papel de base teórica e de discussão, expresso numa série de artigos do início dos anos 1960 que colocavam em questão aspectos que diziam respeito direta ou indiretamente ao movimento nascente.6 E, em paralelo com o trabalho teórico dos críticos a ela vinculados, a Cinemateca Brasileira foi também responsável por trazer ao país obras fundamentais da cinematografia internacional. Entre 1958 e 1963 vultosos festivais por 6

Ver, em especial, artigos de Paulo Emilio Salles Gomes, Gustavo Dahl e Jean-Claude Bernardet no Suplemento Literário do Estado de S.Paulo. De Bernardet e Capovilla na Revista Brasiliense e no Última Hora. E de Dahl e Bernardet na Revista Civilização Brasileira.

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ela promovidos em São Paulo e em parceria com a Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) no Rio de Janeiro trouxeram ao país centenas de obras clássicas e contemporâneas do cinema italiano, francês, americano, alemão, soviético e polonês. Essas exibições, além de propiciarem o contato com o cinema estrangeiro, de maneira inédita7, se configuravam como espaços de sociabilidade para cineastas e cinéfilos, instaurando debates e favorecendo o estabelecimento de amizades e redes de relações que se somavam à intensa atividade cineclubística e à circulação de ideias e teorias sobre cinema a partir da leitura de livros e artigos estrangeiros e nacionais.

3. Paulo Emilio Salles Gomes e Jean-Claude Bernardet: divergências dentro e fora de São Paulo Essa posição em linhas gerais “pró-Cinema Novo” foi responsável pela ruptura do grupo da Cinemateca Brasileira com o círculo paulista que defendia outro tipo de cinema, mais “universalista”8, cujo principal representante era o crítico e cineasta Rubem Biáfora. O grau de ressentimentos e animosidades entre os dois grupos paulistas, pode ser verificado, por exemplo, pelo depoimento do crítico José Júlio Spiewak, amigo de Biáfora, no questionário promovido pela revista Filme Cultura sobre o Cinema Novo9. Em suas respostas, Spiewak volta-se veementemente contra os “pseudo-nacionalistas que defendiam cangaceirismos” e afirma que os “despeitados cinematecários paulistanos” viram na emergência do Cinema Novo uma forma de canalizar seus rancores contra aqueles que faziam cinema “de qualidade” em São Paulo. Em suas palavras: Para os despeitados cinematecários paulistanos era oportunidade única pra dar vazão aos seus despeitos. Ao apoiar candidatos a cineastas que viessem a se promover fora de São Paulo, que além do mais fariam campanha contra o cinema de São Paulo, afirmariam sua pretensa posição de autoridade suprema em questões cinematográficas de São Paulo e, sendo em média muito jovens os novatos que apoiariam, também com muita facilidade se afirmariam como mentores intelectuais destes, com o que compensariam sua frustração por nunca terem sido eles capazes de sequer tentar fazer seus filmes. (SPIEWAK In: A CRÍTICA e o cinema novo (II), 1967, p.53).

Cabe ressaltar que, a despeito do entusiasmo dos mais jovens “cinematecários”, 7

Maurice Capovilla afirma “nós fomos a única geração absolutamente informada em relação ao cinema mundial”. (CAPOVILLA, 1993 apud SIMONARD, 2006, p.101). 8 A vertente “universalista” ou “cosmopolita” é entendida por José Mário Ortiz Ramos como aquela que não vê problemas em o cinema brasileiro “absorver, sem críticas, formas de produção e moldes artísticos estrangeiros” (RAMOS, 1983, p.23). A dicotomia “nacionalistas” versus “universalistas” pode ser matizada, mas o esquema é importante para compreender os polos do conflito que permeava o meio cinematográfico. 9 A CRÍTICA e o cinema novo (II). Filme cultura. Rio de Janeiro, INC, n. 3, p. 52-55, jan./fev.1967.

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Maurice Capovilla, Gustavo Dahl e Jean-Claude Bernardet, em relação ao nascente Cinema Novo, Paulo Emilio Salles Gomes – possivelmente o alvo preferencial dos ataques de Spiewak – nunca chegou a assumir a posição de padrinho ou ideólogo do movimento, mesmo quando foi chamado pelos cinemanovistas para tal, o que colaborou para gerar certos ressentimentos também do lado de lá. A tese de Pedro Pinto (2008) constitui um trabalho minucioso de análise dessa relação entre Paulo Emilio e a emergência do Cinema Novo, mostrando que o reconhecido crítico e conservador da Cinemateca adotou sempre uma postura distanciada, recusando-se a chancelar integralmente o movimento que então tomava forma. De acordo com Pinto (2008), entre Paulo Emilio e os jovens cinemanovistas, notadamente David Neves e Glauber Rocha, observa-se uma “relação relativamente destemperada, marcada pela mudança de tons, larga amplitude de documentos e silêncios gritantes” (PINTO, 2008, p.146). Fonte inspiradora, cujas ideias (notadamente aquelas sobre a condição subdesenvolvida do cinema brasileiro) estiveram na base do Cinema Novo10, Paulo Emilio foi, contudo, cauteloso quando se viu encampado pelos jovens cineastas. Essa postura pode ser percebida nas declarações reticentes quanto à existência do movimento11; no redirecionamento de seu trabalho trocando as páginas do Suplemento Literário – onde publicara artigos-chave, como Uma situação colonial? e Artesãos e autores12 – por um espaço singelo no jornal de esquerda católica Brasil, Urgente em 1963, momento de plena efervescência do Cinema Novo13; na não publicação de texto sobre o destacado livro de Glauber Rocha, Revisão crítica do cinema brasileiro (1963), restringindo-se a expressar sua opinião sobre a obra num debate promovido pelo jornal Última Hora em parceria com a Cinemateca Brasileira, quando declarou: “Gosto muito de G.R.[Glauber Rocha], com certeza, vou gostar muito das coisas que ele faz. Agora as 10

Glauber em diversos momentos referiu-se a Paulo Emilio como “pai” ou “papa” do Cinema Novo (Cf. Rocha, 2004, p.50, 318,466). David Neves o designou como seu “guru eterno” (Cf. Neves apud Pinto, 2008, p.59). 11 Na Semana do Cinema Novo Brasileiro em Florianópolis, 1962, por exemplo, Paulo Emilio declara: “Cinema Novo é um grito de guerra à procura das guerras que mais lhe convém. É uma bandeira indiscutivelmente revolucionária que ainda não encontrou sua revolução.” (GOMES apud PINTO, 2008, p.105). 12 O último artigo de Paulo Emilio no Suplemento Literário data de 1965, porém desde 1963 suas intervenções naquele espaço passam a ser raras. Depois de um artigo escrito em março de 1963, só volta a publicar mais um em outubro de 1964 e outros dois entre setembro e dezembro de 1965. Cf. Pinto, 2008, p.108. 13 Para Pinto: “Brasil, Urgente representa o silêncio gritante, o escape do nicho em que estava sendo adorado, o recado entrelinhas de alguém que não se quer fixado. É propriamente o momento denegatório e a abertura de novas perspectivas.” (PINTO, 2008, p.108).

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suas ideias, as coisas que diz ou escreve, só me interessam porque o G.R. vai fazer bons filmes”. (GOMES, 1963, In: ROCHA, 2003, p.207). Mais tarde expressaria também um bem-humorado distanciamento em relação às citações que dele faz o cineasta: “Glauber às vezes me cita e quase sempre o que me atribui não tem nada a ver comigo: passagens entre aspas não foram escritas nem faladas por mim, ideias brilhantes que, diferentemente do que ele pensa, não são minhas infelizmente” (GOMES, 1977, p.9 apud PINTO, 2008, p.100). Em seu célebre ensaio Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, publicado originalmente em 1973, Paulo Emilio faz uma arguta avaliação do Cinema Novo e aponta para um aspecto já salientado por Jean-Claude Bernardet no livro Brasil em tempo de cinema (1967), do qual escreveu o prefácio: a origem de classe dos cinemanovistas e sua dificuldade em estabelecer um efetivo diálogo com as classes populares. Utilizando um vocabulário que remete ao processo de colonização e à condição subdesenvolvida do país e seu cinema, Salles Gomes afirma: Os quadros de realização e, em boa parte, de absorção do Cinema Novo foram fornecidos pela juventude que tendeu a se dessolidarizar da sua origem ocupante em nome de um destino mais alto para o qual se sentia chamada. [...] Ela sentia-se representante dos interesses do ocupado e encarregada de função mediadora no alcance do equilíbrio social. Na realidade esposou pouco o corpo brasileiro, permaneceu substancialmente ela própria, falando e agindo para si mesma. [...] A homogeneidade social entre os responsáveis pelos filmes e o seu público nunca foi quebrada. O espectador da antiga chanchada ou do cangaço quase não foram atingidos e nenhum novo público potencial de ocupados chegou a se constituir. (GOMES, 1996 [1973], p.103).

Do mesma forma que o livro de Bernardet foi, como veremos, responsável por um severo afastamento entre ele os cinemanovistas, os comentários de Salles Gomes feriram fundo especialmente Glauber Rocha, que, em seu balanço de 1980, devolve ao crítico-“pai” as ofensas quanto à origem ocupante. O texto é longo, complexo e por vezes contraditório, como quando defende o sucesso de público do Cinema Novo citando Roberto Pires – cineasta baiano criticado em Revisão crítica do cinema brasileiro por sua adesão ao espetáculo e sua insuficiente “profundidade ideológica”14 –, mas aponta contradições no próprio pensamento e trajetória de Paulo Emilio, além de expressar ressentimentos quanto ao fato do crítico ter “recusa[do] a coroa várias vezes, deixa[ndo] o grupo sem o Comando Imperial” (ROCHA, 2004, p.462). No entender de Glauber: “Atacando o Ocupante com olhos de Ocupante, Paulo reprimiu o cinema novo dos 14

Cf. ROCHA, 2003 [1963], p.158.

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Ocupados. Ainda feto, escrevi cartas a Paulo anunciando o cinema novo com argumentações irrefutáveis e mesmo assim o empréstimo cultural veio a prazos curtos e juros altos.” (ROCHA, 2004, p.460). Foge ao nosso intento original adentrar nos meandros das relações entre Paulo Emilio e os cinemanovistas, tarefa que foi, em larga medida, cumprida pelo trabalho de Pinto (2008). Procuramos aqui fundamentalmente fazer um mapeamento das relações entre o Cinema Novo e o círculo cinematográfico paulista e para tal outra figura central a ser considerada é a do crítico belga radicado em São Paulo, Jean-Claude Bernardet. Diferentemente de Paulo Emilio Salles Gomes (1916-1977), Bernardet, nascido em 1936, compartilha com os cinemanovistas o pertencimento a uma mesma geração. 15 Seus caminhos, entretanto, são um tanto distintos devido à sua origem imigrante. Morando no Brasil desde 1949, mantinha com o país poucas relações; e, vivendo entre círculos de imigrantes franceses, começa a escrever, em francês, críticas sobre cinema estrangeiro. Aproxima-se da Cinemateca a partir de um curso para dirigentes de cineclubes oferecido pela instituição da qual passaria a integrar o quadro de funcionários. A convite de Paulo Emilio, escreve para o Suplemento literário do Estado de S.Paulo. Esse período coincide com o contexto efervescente da renúncia de Jânio Quadros seguida pela Campanha da Legalidade em favor da posse de seu vice, João Goulart. De acordo com Bernardet, essa conjuntura o incita a se integrar mais à vida social e política do país. Em suas palavras: Então a presença, digamos, da sociedade, do teu papel na sociedade, do teu papel como agente transformador da sociedade – por mais romântico que fosse, dogmático, seja lá o que for – aquilo era algo que você tinha que levar em consideração em absolutamente todos os momentos. […] E começo a me interrogar sobre as relações entre o meio em que se vive e o papel que você tem nesse meio e o trabalho da crítica. (BERNARDET In: SOUZA e SAVIETO (Orgs.), 1980, p.70).

Nesse momento de inflexão em sua trajetória, Bernardet aponta como decisiva a percepção de que seu trabalho como crítico só teria sentido se realizado em interlocução com os cineastas. Conforme ele relata em outra entrevista, foi um “momento absolutamente chave” quando, ao obter considerável repercussão com uma crítica sobre La Dolce Vita (1960) de Fellini, se deu conta de que mesmo com a recepção alargada o cineasta italiano não leria aquele seu texto, concluindo a partir daí que “o crítico tinha de

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O intervalo de datas de nascimento dos principais nomes do Cinema Novo vai de 1928 (nascimento do veterano Nelson Pereira dos Santos) a 1940 (nascimento de Cacá Diegues). Cf. Fernandes (2008, p.89).

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se inserir na sociedade em que essas obras estavam sendo produzidas”. (BERNARDET In: MOURÃO et.al., 2007, p.23). Esses relatos são importantes para compreender a relação de Bernardet com o Cinema Novo, mais próxima do que aquela do veterano Paulo Emilio. Ele esteve pessoalmente envolvido na organização da histórica “Homenagem ao Cinema Brasileiro” que lançou o Cinema Novo na Bienal de 1961, acompanhou de perto os debates e, ao longo de toda a década de 1960, escreveu sobre o movimento e filmes a ele identificados16. Rompeu com o círculo de Rubem Biáfora e Walter Hugo Khouri ao qual estava inicialmente aproximado17 e se tornou um “aliado” do Cinema Novo, conforme assinala Glauber Rocha em carta coletivamente endereçada a Gustavo Dahl, Paulo César Saraceni e Joaquim Pedro de Andrade em 1961.18 Assim, quando escreve o polêmico Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o Cinema Brasileiro de 1958 a 1966 (2007 [1967]), seu olhar é de dentro do movimento, o que se expressa na significativa epígrafe: “Este livro – quase uma autobiografia – é dedicado a Antônio das Mortes.” No prefácio de Paulo Emilio Salles Gomes, este salienta que na obra “Jean-Claude está presente de corpo inteiro, mergulhado até o pescoço nos filmes e na sociedade”. (GOMES In: BERNARDET, 2007, p.18). E o própro autor procura justificar seu

trabalho

apresentando-o não como um julgamento mas como uma forma de participar do debate e contribuir para os rumos do movimento, situando-se “dentro da luta”. Em suas palavras: Ainda que seja um trabalho de reflexão, não se coloca num nível superior ao das obras que aborda. Situa-se no mesmo nível; situa-se (ou pelo menos pretende) dentro da luta; é uma tentativa de esclarecimento, um esforço para enxergar melhor, não um livro de história, nem uma atribuição de prêmios aos bons filmes e reprovação aos maus. (BERNARDET, 2007 [1967], p.22).

Nas cartas para Glauber Rocha, é significativo o uso que Bernardet faz do “nós”, mesmo nos momentos em que coloca questionamentos sobre Terra em transe (Glauber Rocha, 1967), como veremos. Até o lançamento de Brasil em tempo de cinema, o crítico e o cineasta tratam-se mutuamente como “querido” e Glauber, escrevendo entusiasmado de Paris em 1967, relata que está fazendo propaganda do aguardado livro do amigo entre os críticos franceses e sugere uma lista de nomes para os quais ele deveria enviar

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Parte desses textos pode ser encontrada no livro Trajetória crítica. Cf. Bernardet (1978). Cf. Bernardet In: SOUZA e SAVIETO (Orgs.), 1980, p.70. Glauber Rocha descreve essa conversão a seu modo, no texto Cinema Novo (62) “Jean-Claude, dando uma virada louca, mandou Bergman plantar batatas na Suécia e disse que Rossellini era o começo” (ROCHA, 2004 [1962], p.51). 18 Cf. ROCHA, 1997 [1961], p. 157. 17

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exemplares. 19 Ao tomar contato com o livro, porém, Glauber rompe com Bernardet. Este ainda lhe escreve, pouco depois do lançamento, indagando uma opinião que já podia ser antevista pela recepção que a obra obteve entre os círculos cinemanovistas cariocas: Glauber Querido, […] Se você já recebeu e leu o Brasil em tempo de cinema, diga o que você achou. Aqui em S. Paulo foi o maior silêncio: até hoje não saiu nenhuma crítica, nem resenha, nem registro nos lançamentos do mês. No Rio, a pichação foi geral: sou um indivíduo desprovido de sensibilidade; elaboro na minha cabeça belíssimos esquemas em que boto a realidade a tapas; sou politicamente irresponsável; sou contraditório (principalmente na primeira parte do livro, que é péssima: cheia de falhas graves) e, quando não sou contraditório, me limito a dizer o óbvio, faço apenas crítica destrutiva, quando o cinema novo precisa de crítica construtiva; me nego a levar em conta a juventude dos diretores que fizeram os filmes que abordo. […] (BERNARDET, 1967 In: ROCHA, 1997, p.296).

A resposta pessoal nunca veio20, mas Glauber passou a expressar publicamente seu descontentamento. Refere-se ao argumento central do livro da seguinte maneira: “Pra Jean-Claude, num barato mecanicista, o cinema novo materializa uma ideologia de classe média” (ROCHA, 2004 [1976], p.309). E segue distribuindo ofensas a Bernardet referindo-se aos “seus textos traduzidos do belga” e afirmando que “seu racionalismo pseudomarxista o prende na impotência e por isso não filma” (ROCHA, 2004, p.465). Em 1979, em entrevista à Folha de S.Paulo citada por Raquel Zangrandi (2011) teria ido mais longe e designado o ex-amigo como “um canalha e ponto final […] Era o crítico mais reacionário do Brasil. Não quis reconhecer o coeficiente revolucionário dos filmes. Quem não entendeu o Cinema Novo, repito, é burro.” (ROCHA, 1979 apud ZANGRANDI, 2011). Todo mal-estar gerado pelo livro provinha, de fato, de sua tese central que focalizava os dilemas vividos pelo cinema brasileiro realizado do final da década de 1950 até meados dos anos 1960 – incluindo aí, não exclusivamente, os filmes identificados ao Cinema Novo – a partir de uma perspectiva sócio-política. Tratava-se do primeiro estudo a abordar a recente produção cinematográfica como um todo, buscando os nexos entre as problemáticas presentes nos filmes e a realidade social brasileira. Suas conclusões tocavam no ponto nevrálgico do projeto do Cinema Novo que, tendo o “povo” como mote central e querendo-se revolucionário, via-se atado aos limites da classe média

19 20

Cf. ROCHA, 1997 [1967], p.281. Cf. Zangrandi, 2011.

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progressista constrangida entre o apoio às classes populares e a subserviência às classes dominantes. A personagem emblemática desse dilema, na interpretação de Bernardet (2007 [1967]), é Antônio das Mortes, de Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964), dividido entre opressores e oprimidos, matando o povo em prol de sua desalienação, ao mesmo tempo em que o faz a mando dos poderosos: “Se ele mata a soldo do inimigo, não pode ser pelo bem do povo; se é pelo bem do povo, não pode ser obedecendo ao inimigo. Antônio das Mortes é essa contradição.” (BERNARDET, 2007, p.97). Toca também na questão do público, constatando que o Cinema Novo não atingiu a grande maioria da população brasileira, não só por problemas na estrutura de distribuição e exibição no Brasil, mas por problemas de comunicação da linguagem, esta ainda ligada à “cultura oficial”, isto é, à cultura erudita dos círculos de onde emergiram os cineastas21. Suas palavras finais são enfáticas: “Este livro teve a pretensão de contribuir para desmascarar uma ilusão, não só cinematográfica: o cinema brasileiro não é um cinema popular; é o cinema de uma classe média que procura seu caminho político, social, cultural e cinematográfico”. (BERNARDET, 2007, p.284). Nesse sentido, os filmes mais valorizados por sua análise são aqueles que explicitamente tomam para si a tarefa de problematizar a própria classe média, notadamente O desafio (Paulo César Saraceni, 1965) e São Paulo, Sociedade Anônima (Luiz Sérgio Person, 1965). Essa problemática acompanha os escritos de Bernardet ao longo de boa parte de sua trajetória, pelo menos até Cineastas e imagens do povo (2003 [1985]), no qual consegue conjugar com maior refinamento suas preocupações ideológicas quanto ao “conteúdo” dos filmes com a análise formal. Para o momento, é interessante observar que antes mesmo do lançamento do primeiro livro ele expressou suas inquietações em carta a Glauber Rocha. Incitado pelo então amigo a falar a respeito do recém-lançado Terra em transe, Bernardet escreve longas páginas de comentário sobre o filme e expressa sua inquietação em relação à representação do povo. Por que utilizar atores para expressar as falas dos personagens representantes do povo quando já havia no filme pessoas do povo como figuração? Para ele seria insuficiente a resposta de que não se poderia confiar papeis a atores não profissionais. A questão é mais profunda: Eu pergunto se, propositalmente ou não (o que é mais provável), não se deve ver aí uma manifestação, uma intuição da dificuldade que Paulo Martins [poeta de esquerda protagonista do filme] tem, que você tem, que eu tenho, em atingir o povo. Assim como

21

Cf. Bernardet, 2007, p.164-172.

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as autoridades federais tem o seu povo oficial (o pelego, no caso), nós também temos o nosso povo, o qual nosso povo [sic] é uma imagem que nós fizemos do povo, mas não é o povo. Nós vivemos dentro das nossas metáforas. E a escolha de atores para encarnar os elementos populares que se manifestam me parece expressar de modo profundamente angustiado o fato de que realmente ainda não vemos no povo uma escolha política viável, ou seja, uma escolha política que seja uma ação. Você entende qual seria a outra solução (que seria talvez artificial): que os elementos populares quebrem a unidade de interpretação do elenco. Mas isso não corresponderia à visão de Paulo, nem à nossa realidade político-intelectual. (BERNARDET In: ROCHA, 1997, p.287-8).

Bernardet pede explicitamente que Glauber se manifeste sobre esse ponto e o cineasta responde, demonstrando que para ele essa questão não se colocava como um problema: […] Quanto a atores, do povo ou não, creio que [Emanoel] Cavalcanti, Flávio M.[Migliaccio] são todos povo. Os atores representam motivos reais do povo. Eu conheço bem camponeses e nada é inventado. Eu sou da média rural, eu me criei junto com filhos de camponeses na fazenda do meu avô. Sobre povo eu tenho vivência profunda e posso lhe dizer que, pelo fato de meu avô ser protestante, não tínhamos problemas de classe. [...] Assim não nego contradições. Você está certíssimo em suas críticas e isto me deixa feliz principalmente por ver que você está tão lúcido a respeito de tudo. Esperava mesmo que você me esculhambasse. (ROCHA, 1997, p.301-2).

O “esculhambo” público efetuado por Brasil em tempo de cinema, no entanto, foi forte demais para que a amizade entre os dois se sustentasse.

4. Rio X São Paulo: a questão da “brasilidade” e as disputas no “campo” Na ruptura entre os cinemanovistas e Jean-Claude Bernardet esteve ainda em questão um outro fator: as disputas e rivalidades entre os círculos cariocas e paulistas. Em recente reportagem, Raquel Zangrandi (2011) divulga que Bernardet era designado pelo grupo carioca como “aquele viado belga de São Paulo”. Eduardo Escorel, membro do grupo cinemanovista e que teria sido a fonte a revelar o comentário ofensivo, escreveu um artigo resposta, repudiando a publicação da grosseria, mas admitiu o: [...] sectarismo predominante entre os integrantes do Cinema Novo, no período que vai de 1962 a 1968. Reunidos nos finais de tarde em um bar de Botafogo, a conversa sem compromisso fervia, temperada, entre outros condimentos, com bairrismo, xenofobia e machismo. Que o digam Walter Hugo Khoury, Anselmo Duarte, Ruy Guerra, Luis Sérgio Person e o próprio Jean-Claude Bernardet, todos vítimas daqueles papos de botequim. O fato de ser francês naturalizado brasileiro, de ter sotaque, morar em São Paulo e, mais do que tudo, pensar com a própria cabeça, fazia de Jean-Claude um alvo preferencial. (ESCOREL, 2011).

Sem resvalar para o anedótico, cabe refletir sobre o que está subjacente a esse antipaulistanismo. Parte da questão relaciona-se à própria concepção de cinema e de cultura que florescia nos meios de esquerda naquele momento e que em larga medida 14

estava ligada ao que Marcelo Ridenti denominou de “estrutura de sentimento da brasilidade (romântico) revolucionária”, a qual “implicava o paradoxo de buscar no passado (nas raízes populares nacionais) as bases para construir o futuro de uma revolução nacional modernizante que, ao final do processo, poderia romper as fronteiras do capitalismo”. (RIDENTI, 2010, p.88-89). Buscava-se o “autêntico homem do povo, com raízes rurais, do interior, do “coração do Brasil”, supostamente não contaminado pela modernidade urbana capitalista” (RIDENTI, 2000, p.24). E o Cinema Novo encontrou no sertão nordestino a imagem maior para expressar essa problemática: imagem da miséria, do atraso, do subdesenvolvimento e cujo coeficiente de violência trazia em si um potencial revolucionário, tal como sintetizado no célebre ensaiomanifesto Estética da fome, de Glauber Rocha: “nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida […] uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária, eis o ponto inicial para que o colonizador compreenda a existência do colonizado” (ROCHA, 2004 [1965] p.65-66). A cultura paulistana não se coadunava com essa proposta. Para Glauber Rocha: “São Paulo, no Brasil, é um país estranho como cultura. Está além de nossa estrutura geral no que se refere a progresso e muito diferente do resto do Brasil na formação de sua gente. Sua cultura é mais importada e mais desligada de nossa realidade” (GLAUBER, 1959 apud YUTA, 2004, p.102). A partir desse “diagnóstico”, a figura maior do Cinema Novo condena o cinema paulista ao fracasso eterno: O cinema paulista foi um cinema sem possibilidades: erro de raízes, origens culturais, conhecimento do Brasil e seus problemas. Os cineastas paulistas erram, e errarão sempre, pelo sentido de grandiosidade que marca esta própria civilização. [...] Neste meio difuso, metropolitano e descaracterizado – aberto a todas as correntes culturais do mundo que são importadas mas pessimamente digeridas – é possível a deformação de talentos. Gimba, presidente dos valentes, de Flávio Rangel, é um lamentável exemplo disso.” (ROCHA, 2003 [1963], p.116-117).

A malograda experiência da Vera Cruz na década anterior era referência a ser superada: cinema de estúdio, empreendido pela burguesia paulistana com pretensões industriais, técnicos estrangeiros, moldes artísticos importados, temáticas “universalistas” ou retratos “inautênticos”, caricaturais e folclorescos do povo brasileiro. O Cinema Novo pretendia caminhar em via diametralmente oposta. E a cidade de São Paulo, onde ainda tinham força críticos e cineastas identificados àquelas propostas – B.J. Duarte, Rubem Biáfora, José Júlio Spiewak, Alfredo Sternheim, Walter Hugo Khouri – era marcada pelo

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estigma da Vera Cruz e, assim, considerada “túmulo do cinema”.22 Estavam também em questão disputas por posições no “campo” cinematográfico – emprestando a terminologia de Bourdieu (1996, 1998)23. Um interessante indício dessas disputas pode ser encontrado em trechos de cartas de Gustavo Dahl para Glauber Rocha. Dahl, conforme mencionamos, fora radicado em São Paulo e fizera parte do círculo da Cinemateca, passando temporadas na Europa e depois se estabelecendo permanentemente no Rio de Janeiro, inserido no núcleo central do Cinema Novo. Em 1963, escrevendo de Paris para Glauber, coloca São Paulo em posição nitidamente coadjuvante em relação ao núcleo protagonista do Cinema Novo: “São Paulo tem que ser usado, quem quiser fazer CN [Cinema Novo] que faça, mas são eles que têm que se botar no ritmo da dança, como eu fiz.” (DAHL, 1963 In: ROCHA, 1997, p.222). Em 1967, porém, a carta deixa transparecer um receio de que os coadjuvantes pudessem assumir o papel de protagonistas ou ao menos almejá-lo: “São Paulo vai melhor, estive lá, todo mundo quer fazer cinema. O diabo é que eu acho que na próxima saison e já um pouco nessa começará a haver um escalonamento de genialidades e ninguém vai querer ficar em segundo ou terceiro plano. Tenho medo que comecem a surgir ressentimentos.” (DAHL,1967 In: ROCHA, p.299) Em 1967, Gustavo Dahl não havia ainda lançado seu primeiro longa, O bravo guerreiro (1968), e o cinema de São Paulo vivia um momento promissor. São significativas, desde 1966, reportagens que apontam para um “renascimento” do cinema paulista, tais como: O cinema novo em São Paulo, de José de Moura (1966); Cineastas de Amanhã I - As Vozes de São Paulo e Cineastas de amanhã III - A nova realidade dos jovens de São Paulo, de Miriam Alencar (1966) e Cinema paulista, sinal verde de JeanClaude Bernardet (1967). Saúda-se o retorno do veterano Roberto Santos com o bemsucedido A hora e a vez de Augusto Matraga (1966), depois de oito anos sem conseguir realizar um longa-metragem – desde O grande momento (1958), considerado ao lado de

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É significativo nesse sentido o depoimento de Nelson Pereira dos Santos, paulistano de geração anterior a dos jovens cinemanovistas mas incorporado ao movimento: “Fui ficando no Rio e também não podia voltar para São Paulo, que não só era o túmulo do samba, como também o túmulo do cinema. Com o fracasso da Vera Cruz e aquelas outras empresas de produção - Maristela, Multifilmes e tal -, a idéia de fazer cinema em São Paulo era coisa ultrapassada”. (SANTOS In: D'ÁVILA, 2002, p.28). 23 Levamos em conta as considerações de Fernandes (2008) que entende que o termo “campo” só pode ser utilizado entre aspas para se referir ao cinema brasileiro uma vez que a “relativa autonomia” a que se refere o conceito original é nesse caso questionada pela condição periférica do Brasil, pelo domínio de companhias cinematográficas estrangeiras, pela dependência do Estado e pela influência de instâncias e critérios externos para a consagração de seus agentes.

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Rio, 40 graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955) um dos precursores do Cinema Novo. E apresentam-se novos projetos recém-lançados ou em vias de realização, como os próximos dois filmes de Roberto Santos: As cariocas (3º episódio, 1966) e O homem nu (1967); O caso dos irmãos Naves (1967), de Luiz Sérgio Person com roteiro em parceria com Jean-Claude Bernardet; A Margem (Ozualdo Candeias, 1967) – que seria um dos precursores do Cinema Marginal24 que viria a fazer frente ao Cinema Novo – Bebel, garota propaganda (1967), primeiro longa de Maurice Capovilla e Anuska, manequim e mulher (1968), primeiro longa de Francisco Ramalho Jr., sendo esses dois últimos fruto de novas empresas produtoras recém-fundadas: respectivamente, a CPS (de Maurice Capovilla, Luiz Carlos Pires e Roberto Santos) e a TECLA (de cinco sócios entre os quais Francisco Ramalho Jr. e João Batista de Andrade). Bernardet (1967) assinala ainda uma terceira produtora, a RACINE, de Rudá Andrade e Carlos Augusto de Albuquerque. O momento parecia auspicioso também para as produções não-ficcionais, depois da boa acolhida entre a intelectualidade dos documentários produzidos por Thomas Farkas entre 1964/196525, favorecendo a criação de um setor de produção de documentários junto ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP). Novos documentaristas se destacavam, entre eles, Sérgio Muniz, João Batista de Andrade e Renato Tapajós, que protagonizam a terceira reportagem de Miriam Alencar sobre os “Cineastas de amanhã”. O tom era francamente otimista e Miriam Alencar, que escreve para o Jornal do Brasil, editado no Rio de Janeiro, chega a afirmar: “O Rio é o grande centro […] Mas é em São Paulo que, no momento, está havendo uma revolução cinematográfica: um grande grupo, novíssima geração, trabalha isoladamente, ligados pelo mesmo ideal, e faz com que São Paulo se desligue de sua arcaica estrutura cinematográfica e se integre no novo cinema.” (ALENCAR, 1966, destaque da autora). O próprio crítico Jean-Claude Bernardet expressa em uma de suas últimas cartas a Glauber Rocha, em 1967, o desejo de também dirigir um filme.26 No entanto, as perspectivas não se cumpriram como o desejado. O próximo projeto que Bernardet e

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O Cinema Marginal foi um movimento que teve lugar entre 1968 e 1973, quando o Cinema Novo se afastava de suas propostas mais radicais da “Estética da fome”, buscando o público. O Cinema Marginal, ao contrário, se caracterizou por produções que se colocavam à margem da indústria, tanto em suas condições de produção quanto nos temas e formas adotados, numa estética pode ser denominada de “estética do lixo” (Cf.Xavier, 2006, 2012). Sobre as características do movimento, ver Ramos (1987b). 25 Falando sobre os filmes de Farkas, Bernardet afirma: “Comercialmente o empreendimento não rendeu, o sucesso cultural foi enorme” (BERNARDET, 1967, p.96). 26 Cf. BERNARDET, 1967 In: ROCHA, 1997, p.284.

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Person pretendiam realizar em parceria, A hora dos ruminantes, baseado na obra homônima de José J. Veiga e cujo roteiro foi finalizado em 196827, nunca conseguiu condições de produção, representando uma grande frustração na trajetória de Person28 que realizou, antes de sua morte precoce em 1976, duas comédias que destoam bastante da filmografia que vinha construindo com São Paulo S.A. (1965) e O caso dos irmãos Naves (1967), quais sejam: Panca de valente (1968) e Cassy Jones, o Magnífico Sedutor (1972), que se somam ao também díspar episódio A procissão dos mortos do longa coletivo Trilogia do terror (Ozualdo Candeias, Luis Sérgio Person e José Mojica Marins, 1968). Os demais cineastas paulistas em atuação nos anos 1960 e 1970 igualmente tiveram dificuldades em construir trajetórias regulares e coesas, que pudessem levar a se consolidar uma cinematografia forte em São Paulo. Adversamente, esses cineastas, transitando entre o “cinema de autor” e o “cinema comercial” e alternando trabalhos para o cinema, para a televisão e para a publicidade, construíram trajetórias significativamente irregulares e heterogêneas que os colocaram em posição relativamente secundária na História do Cinema Brasileiro.29 Um fator importante a se considerar para a compreensão desse quadro são as condições de produção cinematográfica em São Paulo. 5. Condições de produção e os “paulistas do entre-lugar” A hipótese central da pesquisa em andamento é a de que ao longo das décadas de 1960 e 1970 um conjunto de cineastas “paulistas” – leia-se estabelecidos em São Paulo – esteve situado numa espécie de “entre-lugar”, tendo, de um lado, o Cinema Novo que se configurava como principal referência estético-cultural e grupo dominante da época e, de outro, as condições de produção cinematográfica que se apresentavam em São Paulo, as quais passavam em larga medida pela chamada Boca do Lixo paulistana, lócus de produção eminentemente comercial30.

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Roteiro depositado na Cinemateca Brasileira. Cf. PERSON, Luís Sérgio, BERNARDET, Jean-Claude. A hora dos ruminantes. Extraído da obra homônima de José J. Veiga. São Paulo: s.n., 1968. 79 p. 28 Ver, por exemplo, as entrevistas de Person ao programa Luzes, câmera da TV Cultura e ao Pasquim publicadas em Labaki (2002). 29 Abordagens panorâmicas sobre o cinema brasileiro tendem a tomar a produção do Cinema Novo como fio condutor para as análises dos anos 1960 e 1970, ficando obscurecidas as produções paulistas, com exceção daquelas do efêmero movimento Marginal. Filmes como Bebel, a garota propaganda (Capovilla, 1967), Anuska, manequim e mulher (Ramalho Jr, 1968) e O profeta da fome (Capovilla, 1970) – apenas para citarmos longas-metragens de ficção, geralmente mais prestigiados em abordagens panorâmicas – não são sequer mencionados em obras como História do Cinema Brasileiro, organizada por Fernão Ramos (1987a), e Brazilian Cinema, organizada por Randal Johnson e Robert Stam (1995). 30 A produção sediada na região da Boca do Lixo, nas imediações da estação da Luz, era caracterizada como

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Ingressados na vida adulta antes do golpe de 1964, oriundos dos meios universitários e com tendências políticas de esquerda, os cineastas “paulistas” Roberto Santos (1928-1987), Luiz Sérgio Person (1936-1976), Maurice Capovilla (1936- ), Sérgio Muniz (1935- ), João Batista de Andrade (1939- ), Francisco Ramalho Jr. (1940- ) e Renato Tapajós (1943- ) compartilhavam com os cinemanovistas um “caldo de cultura” comum e não se identificavam organicamente a outros núcleos que produziam em São Paulo, como os “universalistas” Rubem Biáfora, Walter Khouri, Flávio Tambellini e Fernando de Barros ou os jovens do Cinema Marginal afinados à contracultura. No entanto, por não ocuparem a mesma posição dos cinemanovistas no meio cinematográfico, produziam conforme as possibilidades disponíveis, por vezes recorrendo à estrutura da Boca do Lixo paulistana. O malogro da experiência da Vera Cruz e das outras produtoras paulistas que surgiram na sua esteira deixou para São Paulo não só um estigma “cultural”, por assim dizer, mas também acarretou consequências econômicas, como a dificuldade de se obter financiamentos junto aos bancos. Conforme relata João Batista de Andrade: “aqui em São Paulo a gente lutou muitas vezes para tentar que o Banco do Estado financiasse. Nós tentamos inclusive o Banco Nacional aqui também, mas era muito fechado, e o Banco do Estado não queria nem saber porque ainda tinha dívidas da Vera Cruz. Então havia esse lado econômico negativo”. (BATISTA In: SOUZA e SAVIETO (Orgs.), 1980, p.37). A mesma reclamação aparece nas declarações de Maurice Capovilla à reportagem de José de Moura (1966), cuja primeira frase, citadando o cineasta é: “só está faltando uma coisa para o cinema paulista: financiamento”. (CAPOVILLA apud MOURA, 1966). A comparação com a conjuntura do Rio é inevitável. Ambos os cineastas fazem referência ao apoio da CAIC (Comissão de Apoio à Indústria Cinematográfica), vinculada ao Banco do Estado da Guanabara, ao Cinema Novo que teve ainda o Banco Nacional de Minas Gerais como relevante apoiador. De acordo com Fernandes (2008), as redes de relações nas quais estavam inseridos os cinemanovistas abriram os caminhos para o acesso a esses financiamentos. No trânsito junto à CAIC teria contribuído o relacionamento do

a de um “cinema utilitário”, como classificou Capovilla (apud Tosi, 2006), patrocinado muitas vezes pelos exibidores que buscavam produções de baixo custo e apelo comercial para atender à obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais, a chamada “cota de tela”. Essa produção ganhou vulto notadamente nos anos 1970 com as “pornochanchadas”, mas, antes disso, foi nessa região que, na virada dos anos 1960 para os 1970, ficou sediada a vertente paulista do chamado Cinema Marginal. Cf. Abreu (2006), Gamo (2006) e Simões (1981).

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produtor Luiz Carlos Barreto com o vice-governador Rafael de Almeida Magalhães, a amizade de Glauber Rocha com Luís Carlos Mendes, filho do deputado baiano João Mendes que era amigo do governador Carlos Lacerda, bem como o parentesco de Joaquim Pedro de Andrade com Almeida Braga, presidente do Banco do Estado da Guanabara. E o Banco Nacional de Minas Gerais era presidido por Magalhães Lins, casado com uma prima de Joaquim Pedro. Em 1966, ainda sob vigência da CAIC, é criado o INC (Instituto Nacional de Cinema) sob hegemonia do grupo “universalista” que até então se organizava em torno do GEICINE (Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica), criado em 1961. Capitaneado por Flávio Tambellini, que se tornou primeiro presidente do INC, este grupo foi alvo de forte oposição de cinemanovistas, como Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos que protestaram publicamente contra a criação do Instituto. Conforme assinala Johnson (1987, p.109), as preocupações dos cinemanovistas relacionavam-se não só a uma possível perda da liberdade de expressão em decorrência da centralização da política cinematográfica em um órgão criado pelo Estado militar, mas também ao receio de perder liberdade econômica com a monopolização do capital de produção cinematográfica pelo grupo antagônico. Enquanto isso em São Paulo, segundo Johnson (1987, p.111) e Ramos (1983, p.53), cineastas aliados ao Cinema Novo e/ou próximos à vertente “nacionalista”, como Rodolfo Nanni, Maurice Capovilla e Gustavo Dahl manifestavam apoio à criação do Instituto, com pequenas restrições. A meu ver, esta divisão de posições no interior da tendência nacionalista/de esquerda em relação ao INC deve-se à própria configuração do meio cinematográfico que cindia São Paulo e Rio. Não por acaso os signatários do apoio ao INC são cineastas como Capovilla e Dahl que, estando imersos na discussão sobre o Cinema Novo desde o início dos anos 1960, ainda não tinham, em meados da década, realizado nenhum longa-metragem ou que estavam parados há anos, como Nanni31. Criado o INC, conforme assinala Johnson (1987, p.111-2), os cinemanovistas cessam o discurso mais truculento e adotam uma postura pragmática de tentativa de aproximação ao órgão visando obter participação em seus mecanismos. Não obstante, nos primeiros anos de funcionamento do instituto verifica-se um favorecimento ao grupo “universalista” que tem apoiados filmes como: Até que o casamento nos separe (1968) e 31

Depois da realização de O saci, em 1953, Nanni só realizaria seu segundo e último longa em 1971, Cordélia, Cordélia, justamente com apoio do INC.

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Um uísque antes... e um cigarro depois (1970), de Flávio Tambellini; As amorosas (1968) e Palácio dos Anjos (1970), de Walter Hugo Khouri; O quarto (1968), de Rubem Biáfora; As armas (1969), As gatinhas (1970) e Fora das grades (1971), de Astolfo Araújo; A Arte de amar…bem (Fernando de Barros, 1970); Uma mulher para sábado (1971) de Maurício Rittner. Em menor número, filmes ligados ao Cinema Novo também recebem recursos do INC, como Os herdeiros (Cacá Diegues, 1970); Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969); Juliana do amor perdido (Sérgio Ricardo, 1970); Pindorama (Arnaldo Jabor, 1971); Como era gostoso o meu francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971).32 Quanto aos “paulistas do entre-lugar”, percebe-se que, nesse período, o eventual acesso deles a recursos do INC se deu antes pelo relacionamento com o grupo “universalista” do que com o grupo Cinema Novo: O homem nu (Roberto Santos, 1967) teve produção de Fernando de Barros; Noites de Iemanjá (Maurice Capovilla, 1971) foi produzido por Astolfo Araújo e Rubem Biáfora e Um anjo mau (Roberto Santos, 1971) – embora citado por Ramos (1983, p.62) como um filme ligado ao Cinema Novo – foi produzido por Walter Hugo Khouri. Em 1969 é criada a Embrafilme, Empresa Brasileira de Filmes S.A., de capital majoritariamente estatal e cuja atribuição principal seria promover e distribuir filmes brasileiros no exterior, atuando em complementariedade com o INC. Entretanto, a empresa vai ganhando força e em 1975 absorve oficialmente as funções do INC que é extinto. Com orçamento aumentado, ela assume as atividades de coprodução de filmes e amplia sua envergadura como distribuidora. A gestão do cineasta Roberto Farias, nomeado diretor da empresa desde 1974 a partir de influência do grupo do Cinema Novo33 , é alavancada e tem início a fase de notória hegemonia do grupo junto ao Estado que se estende até 1979, contando ainda com a direção de Gustavo Dahl no setor de distribuição da empresa. 34 32

Cf. Ramos (1983, p.61 e 62). Johnson (1987, appendix B, p.202-204). De acordo com Fernandes (2008), o pai de Cacá Diegues, Manuel Diegues Jr., dirigente do Departamento de Assuntos Culturais do Ministério da Educação e Cultura, teria indicado, em 1974, diretamente ao ministro Ney Braga, de quem era amigo, o nome de Roberto Farias para a direção da Embrafilme, o qual, por sua vez, convidou como assessores os “cinemanovistas” Zelito Viana e Gustavo Dahl. Este ocuparia a direção da Embrafilme Distribuidora a partir de 1975. 34 Trabalhos como os de Ramos (1983), Johnson (1987), Amâncio (2000) e Jorge (2002) demonstram que houve durante a gestão Roberto Farias (1974-1979) na Embrafilme um favorecimento de produções cariocas, notadamente ligadas a cineastas oriundos do Cinema Novo, no aporte de recursos da empresa, assinalando uma relação de influência daqueles cineastas sobre o Estado, estabelecida a partir de redes de relações pessoais e articulada a partir de interesses comuns em relação ao fortalecimento do cinema brasileiro e ao alcance da audiência, levando a uma conciliação com o Estado que naquele momento 33

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Percebe-se que o período em que o Cinema Novo encontrou-se relativamente “desamparado” em termos de apoio de órgãos estatais foi entre 1969 e 1974, período que coincide com o recrudescimento da repressão ditatorial.

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Em 1969, o então secretário-

executivo da CAIC, Fernando Ferreira, apoiador dos cinemanovistas, foi substituído por um militar36 e o INC estava sob hegemonia do grupo “universalista”. Não obstante, mesmo nesse período, verifica-se que a produção dos cinemanovistas não foi interrompida. Alguns filmes, citados acima, receberam recursos do INC, sendo que em 1970 a posse de Ricardo Cravo Albin marcou uma vitória, ainda que singela, do movimento37 e a primeira carteira de financiamentos da Embrafilme, antes da gestão Roberto Farias, também destinou recursos a alguns filmes do grupo, como: São Bernardo (Leon Hirszman, 1970); A casa assassinada (Paulo César Saraceni, 1971); Os condenados (Zelito Viana, 1972); Toda nudez será castigada (Arnaldo Jabor, 1972).38 Além disso, os cinemanovistas estavam inseridos em amplas redes de contatos no exterior e acionaram essas redes nesse momento de maior repressão política no Brasil. Assim, Glauber filma O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969) com apoio das televisões francesa e alemã39 e realiza na sequência quatro filmes no exterior: O Leão de Sete Cabeças (Congo, Itália, França, 1970); Cabeças Cortadas (Espanha, 1970); História do Brasil (Cuba, Itália, 1972-1974, codireção de Marcos Medeiros) e Claro (Itália, 1975), além de montar em Cuba Câncer (1968-1974), que fora filmado no Brasil. Como era gostoso o meu francês (Nelson Pereira dos Santos, 1971), além de contar com recursos do INC, conta com coprodução francesa; Quem é beta (Nelson Pereira dos Santos, 1972) é também uma coprodução francesa e Os Inconfidentes (Joaquim Pedro de Andrade, 1972) e Uirá – um índio em busca de Deus (Gustavo Dahl, 1973) são realizados em coprodução com a TV italiana. Diante do exposto, ainda que não se possa creditar o êxito artístico e o prestígio encampava, à sua maneira, o debate acerca da cultura nacional-popular. 35 Cabe registrar que, conforme assinala Ismail Xavier, a partir de 1972/73, o “Cinema Novo é antes uma sigla para identificar um grupo de pressão, aliás hegemônico junto à Embrafilme, do que uma estética”. (XAVIER, 2006, p.80). 36 Cf. Carvalho, 2008, p.8. 37 De acordo com Johnson, a nomeação de Albin para a presidência do INC foi vista por pessoas como o secretário-executivo do instituto e crítico de cinema Antonio Moniz Vianna como “uma vitória da 'esquerda festiva' (leia-se Cinema Novo)” (JOHNSON, 1987, p.125). Embora sua gestão tenha durado apenas um ano e meio, ela deixou marcas como, por exemplo, a instituição do prêmio Coruja de Ouro que, segundo Ortiz Ramos (1983, p.72-74) consagrou vários filmes do Cinema Novo em detrimento das produções “universalistas” que vinham sendo preponderantes nas premiações anteriores. 38 Cf. Jorge, 2002, p.177. As datas referem-se ao ano de financiamento. 39 Cf. Ramos, 1983, p.65.

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do Cinema Novo às redes de relações ou ascendências de seus integrantes, temos de considerar que esses fatores tiveram significativa ou mesmo decisiva importância na continuidade de suas carreiras, permitindo que seus principais membros continuassem realizando em média um longa-metragem a cada dois anos, mesmo nos períodos mais difíceis. Isso esteve longe de ocorrer com outros cineastas, sejam aqueles expoentes do chamado “cinema independente” dos anos 1950 que em grande parte deixaram de filmar ao longo dos anos 1960 e 1970, como César Mêmolo Jr., Galileu Garcia, Rodolfo Nanni e Alex Viany; sejam os “universalistas” que gozaram de um breve período de hegemonia, mas depois perderam força e tiveram dificuldades de realização; sejam os jovens “marginais” que por vezes filmaram um único longa-metragem ou que seguiram suas carreiras aproximando-se do cinema erótico; sejam os nossos “paulistas do entre-lugar” que, como mencionado, dedicaram-se a outras atividades alheias à direção cinematográfica, como a publicidade e a televisão, e construíram trajetórias significativamente irregulares, afastando-se do cinema notadamente no período entre 1971 e 1976. A filmografia que não segue um mesmo modelo de produção e financiamento é um traço significativo na trajetória dos “paulistas do entre-lugar”: alguns filmes foram produzidos contando com o esquema de produção da Boca do Lixo; outros por sistemas de cotas oferecidas a investidores, como São Paulo S.A.; outros estão ligados à chamada Caravana Farkas40, como Subterrâneos do futebol (Capovilla, 1965) e a maioria dos filmes de Sérgio Muniz; alguns contaram com recursos da ECA/USP como As três mortes de Solano (Roberto Santos, 1976); há filmes realizados sob encomenda como Noites de Iemanjá (Capovilla, 1971) e filmes financiados por movimentos políticos, como Universidade em crise (Tapajós, 1966) e Liberdade de Imprensa (Batista de Andrade, 1967), subvencionados pelo movimento estudantil e Linha de montagem (Tapajós, 1981), produzido com recursos do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. Tais variações são percebidas não só na filmografia de um cineasta em relação a do outro mas também na filmografia de um mesmo cineasta, particularmente na de Roberto Santos em que encontramos o marco do chamado “cinema independente”, O grande momento (1958); A hora e a vez de Augusto Matraga (1965), realizado num esquema característico do Cinema Novo (produção de Luiz Carlos 40

Designação cunhada a posteriori para agrupar os documentários produzidos por Thomaz Farkas. Cf. Gilberto Sobrinho (2008).

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Barreto, financiamento da CAIC e do Banco Nacional de Minas Gerais, distribuição da Difilm); As cariocas (3º episódio, 1966) e O homem nu (1967), com produção do “universalista” Fernando de Barros e Um anjo mau (1971), produzido pelo também “universalista” Walter Khouri; Vozes do medo (1970) e Contos eróticos (episódio Arroz e feijão, 1977), que contaram com recursos da empresa de filmes publicitários Lynxfilm, de César Mêmolo, ex-cineasta paulista; e seus três últimos filmes, Os amantes da chuva (1979); Nasce uma mulher (1983) e Quincas Borba (1988), que contaram com investimento da Embrafilme. Cabe assinalar que no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, vários dos “paulistas” em pauta conseguiram obter recursos da Embrafilme após se organizar em torno da APACI (Associação Paulista de Cineastas), fundada em 1975, e pressionar publicamente a estatal. Contaram com recursos da Embrafilme – alguns por meio do Polo Cinematográfico Paulista que previa a conjunção de aportes da Embrafilme e do governo de São Paulo – os seguintes filmes: O jogo da vida (Capovilla, 1977); Doramundo (Batista de Andrade, 1977); O Cortiço (Ramalho Jr., 1978); Paula – a história de uma subversiva (Ramalho Jr., 1979); O homem que virou suco (Batista de Andrade, 1980); A próxima vítima (Batista de Andrade, 1983). A Embrafilme contemplou ainda os episódios-piloto do que seriam séries para televisão41: Os imigrantes - Andiamo in´Merica (Sérgio Muniz, 1978); Alice (Batista de Andrade, 1978) e Caramuru (Ramalho Jr., 1978). Roberto Santos e Maurice Capovilla são os “paulistas do entre-lugar” mais próximos ao grupo do Cinema Novo. Roberto Santos mantinha relações de amizade com Nelson Pereira dos Santos estabelecidas desde os anos 1950 quando trabalharam juntos em São Paulo, tendo Nelson produzido o primeiro longa de Roberto, O grande momento (1958). Já Capovilla foi colega de escola de Gustavo Dahl e aproximou-se do grupo do Cinema Novo no início dos anos 1960 quando trabalhava na Cinemateca Brasileira e, de certo modo, estabelecia “pontes” entre Rio e São Paulo, particularmente interligando os cinemanovistas a Paulo Emilio Salles Gomes e vice-versa42. Nesse processo teceu

41

A Embrafilme lançou o concurso para propostas de séries televisivas, os cineastas selecionados realizaram os episódios-piloto, mas a empresa não levou o projeto adiante. Cf. Johnson (1987) e Amâncio (2000). 42 Conforme Capovilla relata a Mattos (2006) e Tosi (2006), ele atuava favorecendo o intercâmbio entre Paulo Emilio e os cinemanovistas sediados no Rio, fazendo circular textos e ideias. Por exemplo: “Eu levava para São Paulo coisas escritas pelo Glauber para o Paulo Emilio, artigos do Glauber foram publicados no Estadão, no Suplemento Literário do Estado de São Paulo [em que Paulo Emilio assinava a página de cinema], artigos escritos aqui no Rio”. (CAPOVILLA apud TOSI, 2006).

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relações de amizade particularmente com Mário Carneiro, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, Leon Hirszman e David Neves. A convite deste dirigiu o curtametragem institucional, Esportes no Brasil (1965), com patrocínio do Itamaraty; com Leon Hirszman filmou passeatas em 1968 para a UEE (União Estadual dos Estudantes) e com Paulo César Saraceni codirigiu as primeiras filmagens de Copa 78 – o poder do futebol (1979), filme posteriormente concluído por Maurício Sherman e Victor di Mello.43 A maior proximidade de Santos e Capovilla com o Cinema Novo pode ser percebida pela relação diferenciada que eles estabeleceram com a Difilm, empresa distribuidora e coprodutora fundada pelo grupo carioca em 1965 e desfeita parcialmente em 1969. Roberto Santos teria sido o único cineasta de São Paulo a fazer parte do quadro societário da Difilm44 e seu filme A hora e a vez de Augusto Matraga (1965) contou com coprodução e distribuição da empresa; enquanto Bebel, garota-propaganda (1967), de Capovilla, teve produção associada da Saga Filmes, de Leon Hirszman e Marcos Farias, e distribuição da Difilm. Ambos os filmes foram exibidos em festivais internacionais como representantes do Cinema Novo45 e são citados por Glauber Rocha como parte do “texto audiovisual” do movimento46. Os demais “paulistas do entre-lugar” mantinham com o Cinema Novo relações mais distantes. Person conhecera alguns cinemanovistas quando cursou na Itália o Centro Sperimentale di Cinematografia, por onde passaram Gustavo Dahl e Saraceni, mas, segundo Capovilla “não tinha uma amizade, era uma coisa muito fria.” (CAPOVILLA apud TOSI, 2006). Embora tenha seu filme São Paulo S.A. (1965) associado à segunda fase, “urbana”, do Cinema Novo, ele estava mais próximo dos círculos teatrais de São Paulo, em especial de Antunes Filho e Flávio Rangel47, e em declarações da época marca distância do grupo carioca, notadamente na polêmica entrevista concedida ao Pasquim 43

Cf. biografia de Maurice Capovilla realizada por Carlos Alberto Mattos (2006) Cf. Capovilla a Viany (1999, p.344). As fontes divergem um pouco quanto ao quadro societário da Difilm. Bueno (2000, p.61), informa os seguintes nomes: Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos Santos, Paulo César Saraceni, Glauber Rocha, Leon Hirszman, Luís Carlos Barreto, Roberto Farias, Rivanides Faria, Roberto Santos e Rex Endsleigh. Já Fernandes (2000, p.239) inclui entre os onze Marcos Faria, Walter Lima Júnior e Zelito Viana e exclui Nelson Pereira dos Santos, Roberto Santos, e Rex Endsleigh. 45 A hora e a vez de Augusto Matraga participou do Festival de Cannes de 1966 e figurou em publicações internacionais como representante do Cinema Novo brasileiro e Bebel integrou a III Mostra Internazionale del Nuovo Cinema em Pesaro. 46 Cf. ROCHA, 1997 [1974], p.494-5. 47 Cf. Documentário Person (Marina Person, 2006) e entrevistas publicadas em Labaki (2002). 44

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em 197348. Sérgio Muniz mantinha contato com cinemanovistas e teve alguns de seus documentários encampados pela crítica internacional e por Glauber Rocha como expressões do movimento, enquanto os mais jovens, João Batista de Andrade, Renato Tapajós e Francisco Ramalho Jr., tiveram maiores dificuldades em ser absorvidos pelo grupo carioca, embora estivessem “sob o total impacto do Cinema Novo” conforme relata Tapajós a Ridenti (2010, p.98). Batista de Andrade vai mais longe ao denominar as reverberações paulistas do movimento carioca como “Cinema Novo Tardio de São Paulo” (ANDRADE, 2002, p.50). À época do auge da Difilm esses cineastas paulistas mais jovens tentaram se integrar à iniciativa carioca, mas não foram aceitos. Associaram-se então a Luiz Sérgio Person na fundação da RPI Filmes Brasileiros em Distribuição, empresa distribuidora cuja sigla significava “Reunião de Produtores Independentes”, reunindo as produtoras TECLA (de João Batista de Andrade e Francisco Ramalho Jr.), LAUPER (de Person e Glauco Mirko Laurelli) e Servicine, do cineasta carioca Iberê Cavalcanti.49 A iniciativa, entretanto, não teve sucesso. Conforme relatam João Batista de Andrade (a Caetano, 2004) e Francisco Ramalho Jr (a Sabadin, 2009), como os grandes filmes eram distribuídos pela Difilm e, a partir de 1969, pela Embrafilme, restavam a RPI filmes bastante alternativos, com difícil penetração no mercado, como Meteorango Kid – o herói intergaláctico (1969), de André Luiz Oliveira; Caveira My Friend (1970), de Álvaro Guimarães e os filmes “marginais” de João Batista de Andrade, Gamal, o delírio do sexo (1969) e Em cada coração um punhal (Sebastião de Souza, Rubens J.Siqueira e João Batista de Andrade, 1969), sendo a viabilização comercial dessa distribuidora, durante o pouco tempo em que se sustentou, proporcionada por alguns filmes antigos de Mazzaropi conseguidos por meio do sócio de Person, Glauco Laurelli, que dirigira vários filmes do comediante no início dos anos 196050. Os limites do presente texto não permitem adentrar na exposição dos diferentes caminhos trilhados por cada um dos cineastas que designamos “paulistas do entre-lugar”, 48

Na referida entrevista Person afirma: “Em primeiro lugar, São Paulo S.A. não é uma obra do Cinema Novo; segundo, não é contra o Cinema Novo; terceiro, é uma obra que precede o Cinema Novo [...] eu não sou do Cinema Novo. Eu nasci antes dele. Sou um sujeito dessa cultura que nasceu com o teatro brasileiro, o bom teatro, o novo teatro brasileiro. [...] São Paulo S.A. não nasceu das improvisações das noites cariocas, da falsa subversão da linguagem que não deu em nada […] Nasceu do conhecimento.” (PERSON, 1973, In: LABAKI, 2002, p.44-48). 49 Cf.Caetano, 2004, p.113-115 e Sabadin, 2009, p.39-51. 50 Foram dirigidos por Glauco os seguintes filmes protagonizados por e Mazzaropi: O Vendedor de Lingüiças (1961); O Lamparina (1963); Casinha Pequenina (1963) e Meu Japão Brasileiro (1965).

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mas podemos assinalar como um traço comum os consideráveis “desvios” de trajetória, com projetos irrealizados, lacunas entre um filme e outro e filmografia temática e estilisticamente heterogênea. Algumas de suas obras foram abrigadas sob a chancela de Cinema Novo ou de Cinema Marginal, mas, efetivamente, nenhum deles fez parte do núcleo de um ou outro desses movimentos. Não cabe, todavia, forçosamente propor que eles constituiriam outro movimento cinematográfico, uma vez que são heterogêneos tanto o conjunto da filmografia como a trajetória de cada cineasta. A proposta de apreender essas trajetórias em conjunto tem por intuito identificar proximidades e distanciamentos, permitindo observar as possibilidades e os limites do “entre-lugar”. 6. Os filmes e a modernidade urbana capitalista No que tange especificamente aos filmes, a análise preliminar nos indica que há duas vertentes paralelas na produção dos “paulistas do entre-lugar”, perceptíveis quando eles são tomados em conjunto e mesmo na trajetória individual de cada um. De um lado, há filmes, não só do início dos anos 1960 mas também dos anos 1970, que colocam em tela o Brasil “profundo”, rural e tradicional, afinados àquela “estrutura de sentimento da brasilidade (romântico) revolucionária” que, conforme Ridenti (2010), marcou a cultura brasileira dos anos 1960 e os primeiros anos do Cinema Novo, como é o caso de A hora e a vez de Augusto Matraga (1965) e Um anjo mau (1971) de Roberto Santos; Terra dos Brasis (1971), O último dia de Lampião (1975) e O Boi Misterioso e o Vaqueiro Menino (1979) de Maurice Capovilla; e a maioria dos filmes de Sérgio Muniz, entre os quais Roda & outras histórias (1965); O povo do Velho Pedro, anotações (1967); Beste (1969); Rastejador,s.m.(1969); De raízes e rezas, entre outros (1972). De outro, há um conjunto de obras nas quais se observa uma quase ausência da perspectiva utópica e um distanciamento

da

tônica

do

“nacional-popular”

e

da

problemática

do

subdesenvolvimento que, de diferentes formas, pautaram o Cinema Novo em suas várias “fases”.

51

Em filmes como O grande momento (Roberto Santos, 1958); São Paulo

51

O Cinema Novo geralmente é dividido pelos estudiosos em três fases. A primeira, de 1960 a 1964, é marcada pela temática rural e pela expressão da miséria e do subdesenvolvimento, com um horizonte revolucionário – Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), Deus e o Diabo na Terra do Sol (Glauber Rocha, 1964) e Os Fuzis (Ruy Guerra, 1964) marcam esta fase. A segunda fase, iniciada com a frustração imposta pelo golpe-civil militar de 1964 vai até 1968 e é caracterizada por filmes urbanos que enfocam a classe média e a intelectualidade sob um ponto de vista (auto)crítico, destacando-se O Desafio (Paulo César Saraceni, 1965), Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967) e O Bravo Guerreiro (Gustavo Dahl, 1968). De 1968 a 1972 identifica-se uma fase “alegórico-tropicalista” expressada em filmes como Brasil ano 2000

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Sociedade Anônima (Luiz Sérgio Person, 1965); Bebel, garota propaganda (Maurice Capovilla, 1967); Vozes do medo (longa coletivo sob coordenação de Roberto Santos, 1970) e O homem que virou suco (João Batista de Andrade, 1979) estão menos em questão as agruras do atraso do país do que as contradições da própria modernidade, como o trabalho alienado, a indústria cultural e a reificação das relações sociais, de uma maneira que se distingue consideravelmente das principais linhas de força do Cinema Novo. É esta segunda vertente que interessa à nossa pesquisa investigar mais de perto, uma vez que parece estar aí a contribuição diferencial do cinema dos “paulistas do entrelugar”.52 Referências A CRÍTICA e o cinema novo (II). Filme cultura. Rio de Janeiro, INC, n. 3, p. 52-55, jan./fev.1967. ABREU, N. Boca do lixo: cinema e classes populares. Campinas (SP): Editora da UNICAMP, 2006. ALENCAR, M. Cineastas de amanhã I - As vozes de São Paulo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31 mai. 1966. ______. A nova realidade dos jovens de São Paulo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p.8, 2 jun.1966. AMÂNCIO, Tunico. Artes e Manhas da Embrafilme: cinema estatal brasileiro em sua época de ouro (1977-1981). Niterói: EDUFF, 2000. ANDRADE, J.B.O povo fala: um cineasta na área de jornalismo da TV brasileira. São Paulo: Ed. SENAC, 2002. BERNARDET, JC. Cinema paulista, sinal verde. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, p.94-99. 20 mai. 1967. ______. Trajetória crítica. São Paulo: Polis, 1978. ______. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. ______. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. BOURDIEU, P.As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. ______. A economia das trocas simbólicas. 5 ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. _______ . L’Illusion Biografique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales. n.62/63, juin./1986. BUENO, Z. Bye bye Brasil: a trajetória cinematográfica de Carlos Diegues (1960-1979). Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000. CAETANO, M.R. Alguma solidão e muitas histórias: a trajetória de um cineasta brasileiro ou João Batista de Andrade: um cineasta em busca da urgência e da reflexão. (Walter Lima Jr, 1968), Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (Glauber Rocha, 1969). 52 Esboçamos uma reflexão inicial sobre esses filmes em Leme (2013).

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