«Círculo do Riso», Românica, vol. 11, Lisboa, Ed. Cosmos, 2002, pp. 53-84. Co-autores: Ana María García Martín e Pedro Serra.

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CÍRCULO DO RISO ANA MARÍA GARCÍA MARTÍN PEDRO SERRA

O Hissope recorda–nos, com Henri Bergson, que não nos rimos a sós, o riso requer «cumplicidade»1. Produzido num momento anterior ao primado cultural do «subjectivismo» romântico, foi todavia precisamente na deriva portuguesa dessa configuração estético–ideológica que o poema herói–cómico viria a ter uma como que segunda vida2. A reflexão bergsoniana sobre o riso vale–nos especialmente pois, como já foi referido, a perspectiva psico–social que adoptou assenta na procura do irrepresentado da psiqué colectiva, superando assim o mecanismo (e mecanicismo) «egótico» romântico: «L' interprétation du rire proposée par Bergson diffère radicalement de toutes celles qui précèdent, en particulier parce qu' elle déborde le partage disciplinaire et qu' elle s' émancipe de la causalité subjective. Pour la première fois – et cette extrême originalité explique peut– être les malentendus qui se sont attachés à sa réception – le rire est compris comme l' une des formes les plus socialisées de l' impensé émotionnel et de ses effects incontrôlés dans les groupes sociaux»3. A julgar pela tradição impressa do poema, o muito que terá feito rir durante o século XIX, obviamente, denuncia uma re–semantização do riso.

1

Cf. 1978: passim. A editio princeps do poema, póstuma, data de 1802. Seguiram–se inúmeras e assíduas edições ao longo do século XIX: Lisboa, 1808; Paris, 1817; Paris, 1821; Paris, 1834; Lisboa, 1834; Rio de Janeiro, 1844; Rio de Janeiro, 1853; Braga, 1872; Barcelos, 1876; Lisboa, 1879; Porto, 1886; Lisboa, 1889. Cf. Pimentel, 1921. 3 Nelly Feuerhahn, 1996: 29. 2

A fábula que se foi configurando à volta da origem de O Hissope é bem reveladora desse facto. Vai tomando forma, fundamentalmente, a imagem de um Cruz e Silva criando o poema em sede íntima. O Elpino Nonacriense de um Teófilo Braga é já um sujeito romântico que, no espaço fantasmaticamente arcádico do elvense Sótão do Falcato, mais próximo de um cenáculo informal de amigos, faz a observação de vícios públicos e utiliza o riso como modo de denúncia e transcenção. Depois de passar em revista os tipos humanos da cidade da província, diz–nos: «Todos eles davam elementos de risota nas conversas desenfadonhas do Sótão do Falcato. Dinis vivia o seu poema herói–cómico em estado virtual»4. Um Cruz e Silva que fizesse preceder «virtualmente», i.e., pela imaginação, o poema devolve–nos algo como aquela injunção baudelairiana segundo a qual «la potencia de la risa radica en el que ríe y en modo alguno en el objeto de la risa»5. O risum movet é lido pelo prisma de uma cultura plenamente subjectivada, i.e., burguesa. Neste quadro mental o indivíduo reage à comédia de costumes, distanciando–se dela precisamente pelo riso, i.e., um ponto de vista desde o qual pode transcender o social: «Elvas abundava em uma galeria de figuras ridículas e personalidades grotescas, que eram o pábulo contra a monotonia da vida provinciana; tudo isso produziu em Dinis uma disposição para a sátira, que uma anedota prolongada o impeliria para um poema herói– cómico»6. Por palimpsesto, Teófilo parece querer ver um Eça, talvez aferindo o poema por uma arte afim à literatura nova. Note–se como o comentário do membro da Geração Crítica pressupõe um meio em si mesmo «ridículo» e «grotesco» que moveria um dictum poético – a «sátira» – originado na «disposição» do autor. Todavia, como argumentaremos ao 4

Braga, s.d.: 151. 2000: 1241. 6 Ibidem: 149. 5

longo deste ensaio, a poetologia de um Cruz e Silva não é exactamente homologável a este modelo epistémico e estético. O riso que move Elpino Nonacriense dista ainda daquele que será o de um espaço público plenamente autonomizado como foi o que conformou a Geração Crítica. O círculo ridente, digamos universal, que as condições materiais da cultura portuguesa a partir da segunda metade do século XIX permitem, contrasta com as contigências culturais da segunda metade do século XVIII, que determinam uma esfera pública de amplitude completamente diferente. A fábula de Teófilo não terá falhado por muito. Cabe recordar aqui, neste sentido, aquele momento imediatamente anterior à formação de uma publicidade autónoma, para que nos chama a atenção Jürgen Habermas: «Aún antes de que la publicidad se volviera pugnaz respecto del poder público – para acabar completamente distanciada de él –, a través del raciocinio político de las personas privadas, se formó bajo su manto una publicidad de configuración impolítica: el embrión de la publicidad políticamente activa»7. O universo burguês que é o de António Dinis da Cruz e Silva, e do movimento arcádico em que se inscreve, é um universo contíguo ao mundo aristocrático. A reanimação arcádica do Humanismo é a cultura com que se representa essa sociedade burguesa– aristocrática no âmbito da centralização/estatização do Poder sob o impulso pombalino8. O Hissope não foi legitimado na Arcádia, nem tal legitimação, pelas especificidades do poema, como argumentaremos, teria sido pensável. Todavia, ele pede muito à cultura arcádica, ou à sua deriva, depois de um momento álgido que vai de 1757 a 1761. O ethos do «clássico» é plenamente convocado no poema. O riso que solicita passa, precisamente, pela aferição 7

1997: 67. O arcadismo, neste sentido, é um espaço não plenamente autónomo em relação à referida estatização. Idealmente pensado como locus de uma Razão emancipada, não deixou de ser speculum do narcisismo desse estado. Cf. Saraiva–Lopes, 1996: 593 e ss. 8

do «real» por essa cultura, que se perfila, assim, como estalão moral que nega esse «real». Por «real» entendemos o Outro da cultura arcádica, cortesã e fundamentada no bon goût. Não se trata, pois, de carnavalizar a língua do genus épico9 – ao jeito de uma Eneida Travestita de Giambattista Lalli ou de um Virgile Travesti, de Scarron, poemas seiscentistas –, ou, menos ainda, da literatura que faz o «bom gosto». O círculo do riso culto em que se insere o poema bloqueia a função crítica desse riso. Isto porque a circulação restrita desse impulso ridente, vinculada de modo determinante ao curso manuscrito do poema, não nos permite interpretar O Hissope como imagem dialéctica. Outra coisa não seria de esperar de uma obra que só viria conhecer a publicidade do impresso no século XIX. Antes dela, o riso que pode ter movido foi, neste sentido, «impolítico», precisamente por não indiciar um qualquer auto–distanciamento.

PODÃO PINTADO Em «Sobre o estilo das Éclogas, para se recitar na Arcádia a 30 de Setembro de 1757»10, a dissertação pede aos circunstantes que distingam Elpino Nonacriense de António Dinis da Cruz e Silva. A monoglossia do recitador acaba por fazer ouvir, pelo menos, duas vozes, mas ela não é tão fática que da duplicação alegórica faça símbolo. A fala de pastor é a que permite nomear esse outro mundo do et in arcadia ego, travestido como Monte Ménalo e habitado por Elpino Nonacriense. No círculo destes 9 Claude Maffre, analisando o estilo herói–cómico presente em Nicolau Tolentino maneja o seguinte conceito: «Le style héroï–comique peut–être, à juste titre, consideré comme une parodie de l’ épopée» (1994: 488). Em O Hissope, do nosso ponto de vista, do que se trata é de produzir uma competente mímica da linguagem da epopeia, de modo a desvincular o mundo representado do modo discursivo que o representa. A décalage não ocorre tanto por excesso do significante mas sim por defeito do significado. 10 Cf. Cruz e Silva, 2000: 237–262.

faladores, é este estilo que fala por eles. Todavia, nessa ocasião, pede–se à assembleia que descure a metamorfose, e veja assim apenas um homem: «O ardor da disputa me obrigará talvez a deixar aquela humildade de frases, com que a nossa singeleza se costuma explicar, e valer–me de alguns termos pouco usados entre a ditosa simplicidade de nossas Cabanas; e assim vos peço que na presente ocasião me não considereis como Elpino, um rústico guardador do Ménalo, mas como um homem, que contra o seu próprio conhecimento, e o que lhe dita a modéstia, se vê obrigado a discorrer sobre coisas mais elevadas, que estão muito distantes das suas ideias»11. Numa sessão ordinária, a simplicidade é a pauta do decoro, pelo que apela ao regime de excepção para um uso divergente da palavra, agora sub specie «crítica». Toda a cortesia na introdução da dissertação delata as aporias desta assembleia, já iniciada na arenga crítica que se vai seguir, mas muito necessitada de se legitimar na autoridade de controlar a linguagem do «Cajado». O visado pela irritação é também um «homem», concretamente Francisco de Pina e Melo, ao que tudo indica o Ronsard que Cruz e Silva encontra para circunstacialmente se cumprir Boileau12. O «espírito vaidoso» de Pina e Melo faz dele alguém pouco sociável, i.e., alguém cuja auctoritas não é outorgada numa negociação no Monte Ménalo. É este bel–prazer que fundamenta o «estilo rústico» do assim excluído – um estilo composto por «infinitos barbarismos, e grande número de acções, e frases toscas, e grosseiras»13 – o motivo que faz dele um indócil, derrogado pela putativa 11

Ibidem: 238. Lemos em L’ Art Poétique, justamente a respeito de Ronsard: «Au contraire, cet Autre en son langage / Fait parler ses Bergers, comme on parle au village. / Ses vers plats et grossiers dépoüillez d’ agrément, / Toûjours baisent la terre, et rampent tristement. / On diroit que Ronsard sur ses pipeaux rustiques, / Vient encor fredonner ses Idylles Gothiques, / Et changer sens respect de l’ oreille et du son, / Lycidas en Pierrot, et Phylis en Thoinon» (Boileau, 1966: 163). 13 Op. cit.: 239. 12

passionalidade que o moveria, segregada pelo Juízo. A dissertação visa dirimir o sentido da pastorícia, o que significa, a priori, o necessitar prover – gesto aporético – à sua auto–evidência. Isto é, a pastorícia não é natural, ainda que seja ela precisamente a Natureza, ou pelo menos a memória aurífera desse illo tempore anterior à Cidade, anterior ao vínculo social, quando os homens viviam «na solidão dos bosques, e entre a aspereza das serras»14. Todavia, se a Poesia provém desse estado bárbaro, ela só se torna Moral quando sobrevém ao balbuceio não marcado, que se supõe mimetizava «o doce murmúrio das cristalinas fontes, o sussurar do brando vento, e o cantar das harmoniosas árvores»15. É no processo de urbanização da «criação bárbara, e agreste» que, agora sim, a «Poesia se [reduz] à sua maior perfeição»16. A pastorícia cum estilo, deste modo, é a fala investida simbolicamente do poder de socializar a natureza e, no mesmo gesto, naturalizar a sociedade. É, este, o privilégio e prerrogativa do Monte Ménalo, lugar onde se desvincula a origem social dos membros17 para os vincular a uma areté, legitimada contratualmente como qualquer outra, que visa totalizar o social através do controlo da sua representação. É o que lemos no nome cifrado «Elpino Nonacriense», que faz a ascese da «mancha mecânica» de António Dinis da Cruz e Silva, enquanto «homem» sempre 14

Ibidem: 238. Ibidem. 16 Ibidem. 17 Lembremos o Capítulo XV dos estatutos da Arcádia Lusitana: «Poder–se–ão eleger membros desta Sociedade todos os sujeitos que parecerem capazes de a ilustrar sem que obste o não assistirem nesta corte à sua eleição, na qual só se olhará para o mérito pessoal, sem atender a outras circunstâncias que costumam servir de reparo a alguns contemplativos, que ignoram o preço e estimação que se deve à virtude» (in Garção, 21982, II: 245). Como se sabe, a Arcádia era composta por membros da aristocracia de sangue – é o caso de Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho –, de representantes do funcionariado público – é o caso de Garção ou Cruz e Silva – e de trabalhadores manuais – como Domingos Reis Quita, cabeleireiro. 15

disposto a denunciar o «falso heroísmo» da legitimação sanguínea, mas aspirando à nobilitação. Há um Mesmo, o classicus scriptor – epigonizado por Elpinos, Coridons, Alcinos, Lícidas, Tirses, Almenos, Metalézios, Cândidos, Silvanos, Fidos, Sivenos, Nemerosos, Titiros, Sinceros, Sílvios, Dametas, Mirtilos, Montanos, Melibeos, Albanos, Fábios, Ergástulos, Leucácios, Lemanos, Lusistos, Veríssimos, Ismenos ou Silvandos18 –, que assenta nessa transferência recíproca da correcção das Letras e da preeminência social19. Tudo se joga, pois, na jurisdição que discrimina «estilo bucólico» de «estilo rústico», aquele primeiro não tão rústico que se afaste da Natureza domesticada. Outra coisa seria contrária à imitatio: «este estilo chamado rústico é um monstro, uma quimera formada na ideia de uns homens faltos de gosto, e delicadeza, contrários às Leis da Poética, e Oratória, e que deve ser abominado por todas as pessoas assistidas de da boa razão»20. A razoabilidade indexa o «estilo rústico» à categoria do «monstro dos Estilos» ou do «aborto». O anátema, como se sabe, é reincidência de uma tópica epocal, detectável, por exemplo, num Jerónimo Contador de Argote: «Ha hum modo de fallar a lingua Portuguesa mao, e viciado, ao qual podemos chamar Dialecto rustico, e delle usa a gente ignorante, rustica, e incivil, e delle he necessario desviar os meninos bem criados»21. A rusticidade incivil

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Cf. Braga, s.d.: 115–116. Cf. Braga, 1899: passim. O sentido desta contaminatio é esclarecido por Aguiar e Silva do seguinte modo, aludindo muito concretamente à diacronia do termo «clássico»: «Compreende–se facilmente a transferência do vocábulo do domínio sociológico para o domínio literário: tal como o classicus era o cidadão de primeira classe, proeminente e importante, assim o classicus scriptor era o autor que se distinguia pela correcção – sobretudo pela correcção linguística – das suas obras, ocupando por conseguinte o primeiro plano na república das letras» (81988: 503). 20 Cruz e Silva, op. cit.: 241. 21 Apud Marquilhas, 1991: 11. 19

no português usado devolve–nos uma língua cujos cabedais simbólicos se adscrevem ao espaço cortesão22, foco irradiante de literacia. Todavia, a complexidade do espaço coevo da literacia assemelha–se mais a um todo de múltiplos vários. O «caso» da ortografia é, neste sentido, exemplar. Rita Marquilhas, observando os usos ortográficos no processo que vai do manuscrito autógrafo até ao impresso final, conclui o seguinte: «[A]pesar de no século XVIII se terem criado em Portugal excepcionais condições culturais para a convenção de uma única ortografia, essa convenção nunca chegou a ser celebrada, nem sequer tacitamente, podendo falar–se apenas de várias ortotipografias, umas vezes paralelas, outras vezes divergentes»23. Madureira Feijó, cujo pendor para a ortografia etimológica é movido pela impossibilidade de um uso linguístico universal24, pretende prover um instrumento, a sua Orthographia, ou Arte de Escrever, e Pronunciar com acerto a Lingua Portugueza, que cumpra os seguintes objectivos: «E finalmente acabará a obra com hum compendio dos erros do vulgo, e emendas da Orthografia para bem pronunciar, e escrever; e huma breve instrucçaõ para os Mestres das Escholas, aonde principiaõ os erros da Orthografia»25. Juntamente com proposta de Verney, que advoga por uma ortografia fonética no Verdadeiro Método de Estudar, temos as duas correntes sobre que se jogará o esforço de uniformização ortográfica, num contexto «teórico» que entende a Gramática fundamentalmente como Arte (ars)26 que pragmaticamente provê à racionalização dos indivíduos. 22

Cf. ibidem. 1991: 8. 24 Cf. Kemmler, 2001: 216. 25 1734: 20. 26 Carlos Costa Assunção, num ensaio sobre António José dos Reis Lobato, argumenta: «No século XVIII, em Portugal, a bipolarização também se faz notar: a gramática como ciência e como arte, embora tenha prevalecido na maioria dos gramáticos, quer latinos, quer portugueses, o conceito de gramática como arte, significando arte a faculdade de prescrever regras e preceitos para fazer com correcção as coisas» (1997: 55). 23

Já na posteridade de sónicos e etimológicos27 – ou pseudo– etimológicos –, opções de escrita que tradicionalmente reflectem claros valores sociais – mais «socializante» uma, mais «aristocratizante» outra – convém por último destacar a opção mais abrangente de Soares Barbosa, cujo modelo de síntese é a «ortografia usual». Na sua Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza lemos o seguinte passo, onde colhemos informação preciosa: «Ja se vê que as Orthographias Etymologica e Usual estão totalmente fóra do alcance do Povo illiterato. Porque nenhuma regra segura se lhe póde dar, ou elle perceber para deixar de errar a cada passo, que não seja a de largar a penna a qualquer palavra, que queira escrever, para consultar o vocabulario da Lingua. // Porêm a Orthographia da Pronunciação não he assim. Rectificada que seja esta; não tem elle mais do que distinguir os sons, quer simples, quer compostos, de que consta qualquer palavra, e figural–os como os caracteres proprios, que os Alphabetos Nacionaes para isso lhe dão. // Mas esta Orthographia, ou por facil, ou por estranha ao uso presente da Nação, não he do gosto dos homens Litteratos, que não tendo a mesma difficuldade que tem os idiotas, para escreverem segundo as Etymologias, julgarião ter perdido seus estudos, se por isto não se distinguissem do vulgo imperito. Eu, para satisfazer a todos, porei primeiro as Regras communs a todas as Orthographias, e depois ás proprias a cada huma dellas. Quem quizer poderá escolher»28. Esta é já uma perspectiva «filosófica», que provê à consciência da ausência da identidade do fenómeno linguístico através da sua historicização e ulterior síntese. Como argumentam Américo António Lindeza Diogo e Osvaldo Manuel Silvestre29, é como função deste capital linguístico que temos o capital simbólico do literário nesta etapa histórica. A linguagem literária 27

Cf. Seguimos aqui Gonçalves, 1992: 101 e ss. 1822: 57–58. 29 Cf. Diogo–Silvestre, 1996: passim. 28

dos pastores do Ménalo tem esencialmente uma valência «cultural» que passa pela proscrição de usos diatópicos da língua. A simplicidade que é atributo seu rege–se por uma pureza – uma moral da língua – que tem como oposto a seguinte anamorfose gramatical: «no rústico há muitos barbarismos, solecismos, e outros vícios, não só opostos à elegância, mas ainda contra a boa Gramática: o simples, ainda que imita o uso de falar nas conversações de pessoas elegantes, foge das frases baixas, escuras, vis, e próprias do Povo ignorante, e ao mesmo tempo o rústico tece delas as suas galas»30. O Corvo do Mondego vicioso será, então, aquele que traz para a écloga, por exemplo, formas como aburrido, par Deus, estar de borco, ressonar como um porco ou escaimoso, ranhoso e languinhoso. A impropriedade destas formas não reside no facto de elas não possuirem eficácia mimética: atentam contra o decorum precisamente por serem cifra do «Povo ignorante», imiscuindo na Cidade uma Natureza não corrigida pela Arte. O atentado reside no facto de um uso da língua acabar por falsificar o estilo, sendo que um barbarismo não é estilo mas língua não marcada pelo «gosto»31. Vale a pena voltar à fábula da origem da poesia por que começa a dissertação, mais da ordem do mythos que da história. A topografia da origem agrega os seguintes isótopos: bosques, serras, prados e fontes, uma geografia que, quando modalizada pelo humano, supõe o primitivo: aspereza, solidão, criação bárbara agreste a que há que acrescentar a atribuição positiva de inocência e simplicidade. O caldo, assim, não é 30

Cruz e Silva, op. cit.: 242. Recorde–se, ainda, que a proscrição do «bárbaro» é recorrente. O estilo, «lapis Lydius» do «Juízo» para Luís António Verney, é o que distingue a civilidade da plebe: «Não quero dizer que um homem civil fale como a plebe, mas que fale naturalmente. A matéria do estilo humilde [ou «simples»] não pede elevação de figuras, etc. [seria o caso do estilo «sublime»], mas nem por isso se deve exprimir com aquelas toscas palavras de que usa o povo ignorante. Não é o mesmo estilo baixo que estilo simples. O estilo baixo são modos de falar dos ignorantes e pouco cultos; o estilo simples é modo de falar natural e sem ornamentos, mas com palavras próprias e puras» (1950: 93–94). 31

«estável», faltando a completude do socius. Razão pela qual um (primigénio) homem enfadado é movido a viver em comum. Segue–se, pois, um estádio já grupal de «povoações», construído sobre a união e a comunicação. Esta comunicação, todavia, faz–se com a fala que já trazia(m) do bosque, uma fala que é a Poesia ainda em estado bárbaro mas mimetizando uma Natureza pré–social, amena, doce, branda e harmoniosa. Mas não exactamente perfeita, pois esta culminação sim pressupõe o processo grupal que exclua as relíquias de uma criação bárbara32. A diacronia deste processo só é completada, por último, com a sedimentação da Poesia na «Cidade». O factor apontado para esta ascese derradeira é a sua aferição por «filósofos» e «sacerdotes» que, fundamentalmente lhe concedem um conteúdo moral: (i) apologia da «virtude»; (ii) proscrição do «vício»; (iii) sanção da posteridade das «acções» heróicas. A este estádio, entretanto, chega–se como ao fim da história do devir poético que, especializando–se em última instância em «Poesia Pastoril» e «Poesia Urbana», se subsume imperativamente ao ideal da «imitação da Natureza»33. Chega–se, digamos, ao cânone, um depósito aurífero que, sendo o valor máximo, nivela por cima quaisquer valores: Teócrito, Virgílio, Camões, Tasso, Garcilaso ou Fontenelle. Tal lugar, sem tempo nem espaço claro está, não é nem demasiado natural nem demasiado culto: ser lugar do simples passa por esta simplicidade. Uma simplicidade certamente útil ou funcional – pelo menos para a ordem social que a ostenta – no contexto de uma sociabilidade urbana pautada por «confusão, e enganos»34. Tudo isto – é o próprio Cruz e Silva quem no–lo adverte – cabe dentro do óbvio do «congresso» ao qual se dirige. Dissertar num círculo de 32

Cruz e Silva, op. cit.: 238. Cf. Aguiar e Silva, 1988: 517. 34 Ibidem: 240. 33

homens «tão eruditos» e «dotados de uma crítica tão sólida» é, fundamentalmente, parafrasear os tesouros que todos usufruem, o que faz do parafraseado um conteúdo «evidente» submetido ao reforço de um consenso ritualizado. Boileau, Muratori, ou o doméstico Francisco José Freire, entre outros, são nomes dessa Tradição que, conquanto seja vara ou cana, é quem legitima o «Cajado». Dissertar, assim, é prover ao círculo das «pessoas assistidas da boa razão»35, sublinhando os protocolos formais sobre que assenta. O saber que circula, neste sentido, tem todo o valor e nenhum, é tão vazio como a simbólica do poder literário que ali se vai afirmando. É nesta pequena estufa formal que gostaríamos de salientar o modo discursivo utilizado quando Cruz e Silva incide sobre o «particular» das éclogas de Pina e Melo. Ao recitar exempla do «estilo rústico» do Corvo do Mondego, recorre à ironia, essa forma restrita do riso na formulação de Bakhtin36. O passo não é excessivamente longo, razão pela qual o transcrevemos integralmente. Depois de citar versos da Écloga VIII de Pina e Melo, lemos o seguinte: «Toda a prática, que há entre estes dois Pastores [i.e. Nuno e Antão] desde o princípio da Écloga até esta passagem, está cheia daquela doçura, suavidade, e delicadeza, que é própria de uma Écloga; é um pequeno quadro, onde com todo o primor se vêem fielmente imitadas as pinturas de Teócrito, Mosco, Bion, Virgílio, Sannazaro, e Bernardes; mas aonde brilha mais a delicadeza, e bom gosto do Autor, é nos lugares apontados. Contemplem, Senhores, a graciosidade daquele estás aburrido, o polido daquele termo Par Deus, aquela agradável imagem estar de borco, a elegância daquela comparação a ressonar como um porco, e verão que tudo são (como se costuma dizer) pinceladas de Mestre. Tudo isto é excelente, e maravilhoso, ao menos não se pode duvidar que a matéria e artifício têm

35 36

Ibidem: 241. Cf. 1998: 123.

uma notável proporção»37. O registo antifrástico, que irrompe por breve trecho na dissertação, é de suma importância. Cruz e Silva foi jogando ao sério, possivelmente até ao enfado, pela prolixidade da exposição38, mas momentaneamente a arenga move–se em função do espasmo ridente. A semantização do dito, neste momento, decorre da contingência da cena. Que é uma cena literária, evidentemente. O exercício crítico é aí melhor ostentado, enquanto repetição «ao vivo» do processo de superação do «bárbaro» como fundamento da Poesia. Um Pina e Melo assilvestrado – aquele que se representa marcado pela «fantasia», pelo «engenho», pela «vaidade» e pelo capricho da auto–fundamentação – é passado pelo crivo das «pessoas assistidas da boa razão». O riso – colectivo – irrompe no momento em que a solidariedade cultural da assembleia se revê na segregação do seu Outro. Os «meninos bem criados», num contexto político–social em que a centralização do Estado os amplia qualitativa e quantitativamente, acabam por rir da irrupção do reduto infindável de ridículo que é, sob a óptica aristocrático–burguesa que é a sua, a língua do Povo não domesticado(a). Este modo de rir mostra–nos um riso não completamente «individualizado», pois só tem graça para quem está dentro do círculo do riso. É o riso próprio, neste sentido – ou, pelo menos, uma das suas manifestações – da cultura da cour et de la ville39. Trata–se de um riso de culto e, neste sentido, de classe, ligado à ideologia das Luzes, valendo para ele o que nos diz Fracisco Sánchez– Blanco Parody, debruçando–se sobre o caso espanhol em datas coincidentes: «Buscar, pues, manifestaciones de la risa en el siglo de las Luces es buscar 37

Cruz e Silva, op. cit.: 245. Recorde–se o seguinte lugar do texto: «Mas, Senhores, a vossa alta compreensão, o vosso escrupuloso e justo critério está pedindo argumentos mais claros, e evidentes; ela me obriga a que, pondo de parte o receio de parecer prolixo, pretenda mostrar que este estilo chamado rústico é um monstro» (op. cit.: 241). 39 Cf. Diogo–Silvestre, 1996: passim. 38

formas, más o menos explícitas, de ‘Ilustración’»40. Assenta, neste sentido, numa lógica silogística que, como argumenta Domique Bertrand, provê à distinção: «Le ridicule reflète une logique implicitement syllogistique: tout ce qui est déraisonable est ridicule, or le peuple est déraisonnable, donc le peuple est ridicule. La volonté de distinction, qui détermine l’ exclusion du populaire, vaut à tous les niveaux: politique, social, religieux»41. A legitimação da língua dos Pastores, assegurada pela auctorictas dos modelos antigos42, é subsumida sobretudo ao «conceito», i.e., à Razão, moeda de troca no universo da assembleia, mas socialmente pouco universal ou «democrática». É uma questão de Gramática dizer–se Elpino Nonacriense ou António Dinis da Cruz e Silva. Pouco tardou para que, do seio do próprio Ménalo, se manifestasse o bloqueio da tensão «crítica», revertendo o sentido do riso: «o podão pintado em nosso escudo ameaçava ou fazia rir aos estranhos»43. Toda a «plenitude» do falar cum «cajado», assim, e pelo riso, se sustenta sobre um «vazio», avatares de uma gramaticalidade pela qual, como recorda Bourdieu por Frege, «las palabras [ou, no caso, os estilos] pueden tener un sentido sin referirse a nada»44.

UM FETO RIDÍCULO Se para Cruz e Silva o «estilo rústico» se pode comparar a uma mulher que «não cuida em encobrir os defeitos da natureza com os estudos 40

1991: 191. 1995: 292. 42 O que não significa, como é bem sabido, que não mereçam correcção do «Cajado». O espírito da ilustração repudia o servilismo. Cruz e Silva aproveita a correcção que faz de versos de Camões para que conste, em público, que a crítica a Pina e Melo não é movida pelo capricho. Cf. Cruz e Silva, op. cit.: 257. 43 De Correia Garção, na Oração Quarta a 30 de Junho de 1759 (1982: 185). 44 1985: 15. 41

da Arte»45, idêntica cifra simbólica reverbera na escassa teoria coeva da parodização agenciada pela mímica da épica. Num lusitano algo cândido, é conhecida a seguinte proposição de Francisco José Freire: «Não é justo, que acabemos de tratar da Epopeia, passando em silêncio a Paródia. É esta uma espécie de Poesia, que sai do Poema Épico, assim como de uma mãe formosa nasce muitas vezes um feto ridículo»46. O mínimo denominador comum do «estilo rústico» e do híbrido herói–cómico é a «enormidade», rasgo pouco natural – no quadro da forma mentis neoclássica – uma vez que significa o descaso da proporção harmoniosa47. É dentro deste universo cultural pouco caro à miscigenação de genera – pense–se no caso da proscrição da tragicomédia, considerada uma mistura do «Soco com o Coturno»48 – que devemos pensar O Hissope. O genus herói–cómico, cujas categorias formais tiveram em Le Lutrin de Boileau o exemplum paradigmático49, assenta numa meta– discursivização da língua da épica, fundamentalmente da expressão elevada e do tom épicos, bem como da presença constante da mitologia, que contrastam com o particular do tema (anti–heróico) abordado. A tradição histórico–literária tem vindo a vincular O Hissope a Le Lutrin em virtude de ambos poemas poderem ser afinados tanto pela implicação paródica do 45

Cruz e Silva, op. cit.: 243. 1759: 219. 47 Bergson considera o exagero uma forma de cómico, na origem do poema herói–cómico. Cf. 1978: 93. 48 Cf. Garção, 21981: 189. 49 Paul Hazard, no clássico La crise de la conscience européene (1680–1715), refere o carácter «europeu» do riso despoletado pelo poema. Um riso evidentemente «histórico»: «Le Lutrin nous a fait rire pourtant, quand nous étions encore à l'école et que nous n'avions pas d'autre pâture; il a fait rire une Europe que avait deux cents ans moins que la nôtre et qui n'était pas blasée, l'Europe classique, l'Europe des honnêtes gens. Toute la fleur de l'Europe, puisqu'il n'est guère de pays où cette oeuvre plaisante de M. Boileau, le grand satirique, n'ait été admirée, traduite, imitée» (1961: 347). Não refere O Hissope, que deve ser enquadrado, precisamente, dentro da geografia do prestígio cultural do «século francês». 46

género épico, como pelo facto de versarem sobre uma temática crítico– satírica que envolve a instituição clerical. É possível uma revisão destes lugares, sobretudo fora do quadro hermenêutico da influência de um autor sobre o outro. Não se trata de negar o débito de Cruz e Silva em relação a Boileau, de resto assumido no próprio poema50. O que acontece é que para além de uma afinidade, digamos, formal (tanto a nível da forma de expressão como de conteúdo), a historicidade dos poemas – interessa–nos sobretudo O Hissope, evidentemente – é cerceada precisamente por esse óbvio genérico. Não devemos esquecer, neste sentido, um facto que a historiografia literária, não o descurando, tem negligenciado. O Hissope correu manuscrito51, e é possível que não se pensasse para ele outra forma de circulação52, num momento cultural em que a funcionalidade do manuscrito é positiva. O poema de Boileau conheceu uma publicidade ao seu poema que não podemos homologar a O Hissope. Lembramos as seguintes palavras do satírico francês: «Il ne faut donc pas s' éttoner si personne n' a esté offensé de l' impression de ce Poème, puisqu' il n' y a en effet personne qui y soit veritablement attaqué»53. Na verdade, não terá sido exactamente assim, pois teve uma origem bem mais venal e «político»54. Ambos os poemas são 50 O poema começa, precisamente, por esse reconhecimento: «Musa, Tu, que nas margens apraziveis, / Que o Sena borda de arvores viçosas, / Do famoso Boileau a fertil mente / Inflammaste benigna, Tu me inflamma, / Tu me lembra o motivo, Tu as causas, / Por que a tanto furor, a tanta raiva / Chegarão o Prelado, e o seu Cabido» (I, 3–9). 51 Cf. García Martín, 2000. Sobre a evolução do próprio poema, cf. García Martín, 2002. 52 Aliás, a restante obra de António Dinis da Cruz e Silva só conheceria a letra impressa também no século XIX. Em seis volumes, de 1807 a 1817. 53 1966: 189. 54 Remetemos para o estudo de Paul Emard e Suzzane Fournier (1963), que após uma minuciosa investigação, estabeleceram de modo muito convicente o universo circunstancial que moveu à escrita de Le Lutrin. Sobre o partidarismo de Boileau no caso que opôs o chantre e o tesoureiro da Sainte Chapelle, e os contornos políticos que o envolveram, afirmam os autores: «Il y a donc à l’intervention de Boileau d’autres motifs qu’une gageure. Il faut y voir la manifestation indirecte mais indiscutable, de l’antagonisme, habituel alors, entre les deux influences qui se disputent Anne d’Autriche, depuis que Mazarin gouverne la France: d’

o desenvolvimento de bagatelles, mas o valor delas é muito diferente, precisamente por serem elas a cifra do circunstancial e do contingente presente nos dois textos. É precisamente o que mais pode unir estes textos – a procura do ridens et ridiculus – o que também os afasta mais. É a permeabilidade à «história» o que os separa irremediavelmente55. Boileau, no prefácio «Au Lecteur» da primeira edição do poema, datada de 1674, comenta a origem do poema. Ao contrário do que se possa pensar, diz–nos que a bagatela que o terá motivado não é a do episódio do âmbito eclesiástico tratado no poema, mas sim um discussão literária. Vale a pena citar integralmente esse esclarecimento: «C' est une assez bizarre occasion qui a donné lieu à ce Poëme. Il n' y a pas long–temps que dans une assemblée où j' étois, la conversation tomba sur le Poëme Heroïque. Chacun en parla suivant ses lumières. A l' égard de moi, comme on m' en eut demandé mon avis; je soûtins ce que j' ay avancé dans ma Poëtique: qu' un Poëme Heroïque, pour estre excellent, devoit estre chargé de peu de matière, et que c' estoit à l' Invention à la soûtenir et à l'estendre. La chose fut fort contestée. On s' enchauffa beaucoup; Mais après bien des raisons alleguées pour et contre, il arriva ce qui arrive ordinairement en toutes ces sortes de disputes; je veuz dire, qu' on ne se persuada point l' un l'autre, et que chacun demeura ferme dans son opinion. La chaleur de la dispute estant passé, on parla d' autre chose et on se mit à rire de la manière dont on s' étoit eschauffé sur une question aussi peu importante que celle–là. On moralisa fort sur la un côté, le Premier Ministre qui distribue toutes les places a ses partisans, sans souci de leur valeur morale et dans le seul but de s’assurer leur dévouement stipendié; de l’autre, MM. Vicent et Olier, Guillaume de Lamoignon et la compagnie du Saint–Sacrement qui soutiennent les intentions plus scrupuleuses de la Reine Régente, à qui la maladie inspire des sentiments de meilleure justice» (10). 55 Insistimos no seguinte: não se trata de obviar a dívida de Cruz e Silva, que toma a forma inclusivamente da tradução/reformulação de versos de Le Lutrin. A questão está em que, ainda que assim seja, a fixação ao «empírico» dos dois poemas significa que devemos ler os casos de repetição como repetição na diferença.

folie des hommes qui passent presque toute leur vie à faire sérieusement de très grandes bagatelles, et qui font souvent une affaire considérable d' une chose indifférente»56. Como já alertámos, devemos entender estes desígnios como o esforço de um elegante de suplementar a elegância do poema. Efectivamente, como podemos ler, a bagatela a que alude, ou talvez melhor, bagaletas, são as seguintes: o poema heróico parte de um pouco de matéria que o poeta, através da inventio, amplia; o pouco importante que considera ser discutir sobre uma questão como esta; dum ponto de vista moral, conclui sobre um humano que acaba por assentar sobre a monumentalização de bagatelas. O poema que daí resulta perfila–se, neste sentido, como um exercício da «invention» do poeta, que tem como corolário a produção de um burlesco novo: não aquele que passava por colocar na boca de Dido ou Eneias a fala de um «horloger» ou dum «crocheteur», mas precisamente pelo recurso inverso. O ditame Etudiez la Cour, et connoissez la Ville, que encontramos no canto III da Art Poétique e que aqui reverbera57, não legitima a representação, na inversão dos usos linguísticos das figuare do poema herói–cómico, Des mots sales, de modo a charmer la populace58. O poema legitima–se, assim, enquanto forma que assiste, e é assistida, pelo bon goût. Cruz e Silva, como pudemos observar na sua dissertação na Arcádia Lusitana sobre a écloga, tão–pouco aliena este legado «clássico». Ostenta–o, precisamente, no contexto da assembleia à qual se dirige, tanto como Elpino Nonacriense como na condição de António Dinis da Cruz e Silva. Todavia, O Hissope foi produzido num contexto jurídico outro, e conviria dizer que ulterior. O socius restrito e provinciano da cidade de Elvas é lugar de reverberação do arcadismo, mas mais como Ersatz. Podemos observá–lo nos 56

Ibidem: 1005. Ibidem: 178. 58 Ibidem. 57

estatutos da Academia dos Aplicados Elvenses, que terá sido frequentada por Cruz e Silva a partir de 1764, uns estatutos que simplificam notavelmente a codificação da Arcádia Lusitana. Nesse espaço cultural excêntrico em relação a uma cultura cortesã em processo de estatização, a disciplina do classicus scriptor é des–histerizada. Assim, e de modo significativo, O Hissope vai significar a irrupção do «estilo rústico», modo que o afasta do decorum a que Boileau submete Le Lutrin, e que, como vimos, o próprio Elpino proscreve na Arcádia. Por outro lado, Cruz e Silva produz um poema que reequaciona o binómio delectare/docere que, todavia, não deixará de modalizar o texto. Nas suas reflexões sobre a poesia anteriormente abordadas, argumentara que o deleite decorre tanto da «matéria» como do «artifício». Em ambos os casos, do que se trata é de permear a representação da Natureza pela Arte do poeta, que ora descobre acções não produzidas pela Natureza ou reveladas por outro poeta, ora lhes concede uma beleza que não possuem59. Acrescenta, ainda, que a «grossaria da dicção» ou uma «afectada incultura» – atributos do «estilo rústico» –, «por nenhum princípio pode agradar aos homens que uma vez chegaram a tomar o gosto à pureza da sua língua»60. Por último, destacamos o facto de argumentar que no que toca ao carácter instrutivo da poesia, neste sentido, a representação da verdade é menos necessária que o imperativo do deleite.61 Tendo presente este conjunto nocional, podemos extrair algumas consequências para a consideração da genologia de O Hissope. Tanto ao nível da matéria como do artifício, temos nele derrogado, pelos termos atrás explicitados, o deleite. O poema trata, nos antípodas da poetologia pastoril, de acções «grosseiras» e «indignas» e recorre, como já dissemos, ao «estilo 59

Cf. Cruz e Silva, op. cit.: 243. Ibidem: 244. 61 Cf. ibidem: 247. 60

rústico». Pensamos que, concomitantemente, o pendor instrutivo do poema é deflectido. Vejamos. Para a écloga vale, neste particular, o seguinte ditame: «Verdade é que se num Écloga se pode unir o útil com o deleitoso, não pode deixar de causar um admirável efeito, mas faltar alguma destas partes, seja a primeira»62. Derrogando claramente, em O Hissope, o «deleitoso», como pode a representação da «grossaria» agradar, mediando o pouco de útil que pede à poesia? O ridens et ridiculus procurado pelo poema, situado além da «teoria poética», como que cancela a enteléquia do par docere/delectare. Por outras palavras, o poema não visa mover à virtude: por um lado, propõe um distanciamento em relação ao «mundo» representado através do riso; por outro lado, intervém como «crítica» nesse mundo; por último, não dialectiza riso/crítica – diremos que pára no momento negativo. Vejamos, pois, o desenvolvimento da «bagatela» de O Hissope. Tem–se insistido muito no carácter «insignificante» do caso que serviu de base ao poema, uma «bagatela» referente ao cumprimento de uma norma de cortesia entre o Bispo da Sé de Elvas e o respectivo Deão: o deão da catedral de Elvas deixa de oferecer, como era costume, o hissope ao bispo à entrada deste na catedral, onde vai exercer as suas funções63. Tal gesto de desacato provoca a ira do prelado, que consegue que ou Cabido catedralício penalize ou deão pela sua atitude. Este recorre a instâncias religiosas superiores, que desestimam a sua queixa. O episódio, ocorrido no milieu da alta hierarquia eclesiástica elvense quando Cruz e Silva se encontrava exercer funções de magistratura na cidade alentejana, é aproveitado para criticar a vaidade e a futilidade do alto clero, a sua relaxação moral, a sua preocupação pela vida 62

Ibidem. Esclarece Vitorino Magalhães Godinho sobre estas duas formas de tratamento: «Excelência é reservado aos grandes tanto esclesiásticos como seculares, ao Senado de Lisboa e às damas do Paço; a Senhoria pertence aos bispos e cónegos, aos viscondes e barões, aos gentis– homens da Câmara e aos moços fidalgos do Paço; abaixo, há só direito a Vossa Mercê» (1975: 73). 63

mundana – consumida entre banquetes e jogos de cartas, a sua ignorância, o seu nocivo ascendente sobre determinados grupos sociais, e, numa palavra, a sua corrupção generalizada. Simultaneamente, Cruz e Silva amplia a sua crítica ao francesismo em voga, à filosofía escolástica e à literatura barroca, de modo que o poema resume exemplarmente muito do ideário crítico iluminista64. O «caso» do hissope não é de somenos importância, pois nele está implicada a polémica questão das precedências e das formas de tratamento. O plano «mitológico» do poema, justamente, é constituído por amplexo de figuras alegorizadas. «Intermundio» liderado pelo Génio das Bagatelas, consiste numa corte cujos súbditos são a Excelência, a Senhoria, o Dom, a Discórdia ou a Lisonja. Sobretudo diegeticamente importantes são a Excelência, que protege o Bispo, e a Senhoria, que tem como valido o Deão. Esclarece Vitorino Magalhães Godinho sobre o uso destas duas formas de tratamento durante o ancién régime: «Excelência é reservado aos grandes tanto esclesiásticos como seculares, ao Senado de Lisboa e às damas do Paço; a Senhoria pertence aos bispos e cónegos, aos viscondes e barões, aos gentis–homens da Câmara e aos moços fidalgos do Paço; abaixo, há só direito a Vossa Mercê» (1975: 73). Ora, a «bagatela» desenvolvida pel’ O Hissope remete–nos para um momento do processo social de depreciação destas duas formas de tratamento, expressão de uma sociedade que, como já dissemos, assistia à legitimação de uma burguesia aristocratizada. 64

Assinale–se que o universo eclesiástico, em O Hissope, é «observado» de fora, ao contrário de Le Lutrin. O affair do hissope não é restringido ao âmbito puramente da Igreja, precisamente porque o universo social do burgo elvense não descontinua sociedade laica/clerical. Leia–se o seguinte passo sobre o poema francês: «Le Lutrin est une oeuvre d’Eglise, un poème de sacristie, une gageure tenue contre des Chanoines, c’est–à–dire des Ecclésiastiques de bonne compagnie et de haute éducation, de foi sereine et d’esprit mordant» (Emard–Fournier, 1963: 198). Em O Hissope temos representada uma vida social organizada pelo clero – sobretudo relevantes são dois «banquetes», organizados respectivamente pelo Bispo e pelo Deão.

O Hissope intervém de modo crítico, precisamente, sobre uma sociedade que generaliza esses modos de tratamento. A insignificância do «caso» do hissope é medida tanto pela circunstacialidade de um episódio ocorrido na província, como pela desvalorização dos termos nele implicados. O «caso» é mínimo também pela banalidade que representa. Tudo isto pressupõe um cânone – simultaneamente moral e estético – que é o de uma cultura arcádica que, como já dissemos, desvincula o social da sua esfera. Daí que, e aqui reside o núcleo central da nossa proposta de leitura, a crítica exercida pelo poema seja uma crítica cultural, precisamente. Dá conta – e ri – daqueles que confundem «Páris» com «Paris» ou «Madama Pena–Lopes» com «Penélope». Ri do «bárbaro», aquele que nem prima pelo «bom gosto» nem pelas «boas maneiras», homologáveis de resto65. O riso agencia a negação desse «bárbaro», ao mesmo tempo que oficia, repetindo a cena da Arcádia que começámos por evocar, o privilégio de quem exclui.

CORTE NA ALDEIA A Academia dos Aplicados Elvenses, activa a partir de Junho 1761, é acolhida na casa do bacharel Francisco José da Silveira Falcato66 (1742– 65

Cf. Eagleton, 1999: 17. Para uma informação mais detalhada sobre esta academia, remetemos para o estudo, não isento de imprecisões, de Eurico Gama (1979: 325–357). Reproduzem–se aí os seus 11 estatutos. Segundo Gama, «Estes não diferiam dis da 'Arcádia Ulyssiponense', redigidos por António Dinis da Cruz e Silva, um dos seus fundadores e quero crer que da Academia dos Aplicados também» (ibidem: 342). Ora, na verdade, os estatutos, claramente inspirados nos da Arcádia, permitem–nos, todavia, vislumbrar diferenças fundamentais do que terá sido a academia da província. Os estatutos da Arcádia são claramente emagrecidos, conservando–se apenas aqueles que se referem aos cargos – Presidente, dois Árbitros, dois Censores, um Secretário e um Vice–Secretário –, às funções do sercetário, à presença exclusiva de académicos nas sessões, à periodicidade mensal das mesmas. Em aberta dissonância com os estatutos da Arcádia, prescreve–se um número máximo de académicos, que não poderão 66

1824), formado em Leis pela Universidade de Coimbra em 1764, lugar de reunião de um pequeno círculo de homens de letras e que ficará conhecido, já o dissemos, como o Sótão do Falcato.67 Entre eles, tudo leva a crer, conta–se António Dinis da Cruz e Silva, que em 1764 se fixa na cidade alentejana como Juiz Auditor do 2º Regimento de Infantaria. A praça militar, sob o prisma de uma cultura aburguesada que privilegia a paz comercial e que já não tem como epicentro social a nobreza titular «guerreira», é um lugar desajustado no tempo: o ênfase dos versos «soberbos / guerreiros muros da triumphante Elvas», no canto V de O Hissope, assinalam precisamente esse anacronismo. O poema representa–nos, neste sentido, isso mesmo: a des–sincronização entre o olhar treinado na Corte e os olhados da província. Submetidos ambos ao cânone da Razão, é em função dela que se distribuem sa legitimidades «culturais». A fauna social elvense, fundamentalmente, tanto é detentora de um cabedal cultural obsoleto – aí se ultrapassar os 30. Por outro lado, nada nos permite asseverar que Cruz e Silva tenha sido «fundador» da Academia dos Aplicados Elvenses, argumento que Eurico Gama vai reiterando sem provas fidedignas. Sabe–se, pelo contrário, que Cruz e Silva se viria a fixar em Elvas apenas em 1764. O corpus textual referente à actividade da academia da província, também coligido por Gama, data predominantemente de 1761. 67 Para além de Francisco José da Silveira Falcato, almotacel, provedor da Comarca de Elvas (1802), desembargador da Casa da Suplicação (1806) e posteriormente membro da Junta Governativa convocada depois da subida ao trono de D. João VI, faziam parte do núcleo académico o Dr. Joaquim José da Silva, mesário da Misericórdia (18822–1824); António Caetano Falcato, irmão de Francisco José também formado em Leis pela Universidade de Coimbra; D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, capitão e mestre de campo do Regimento de Cavalaria de Elvas, neto, por via materna, do Visconde de Asseca; Bernardo José de Mira, de quem se conservam algumas composições poéticas, e Fr. Sesinando, que exerceu as funções de Presidente (cf. Gama: 342 e ss). A reconstituição dos frequentadores do Sótão do Falcato é muito lacunar. Registe–se que Teófilo Braga distingue a actividade da Academia dos Aplicados das reuniões do Sótão do Falcato: «As reuniões formais da Academia dos Aplicados Elvenses restringiam–se ao fim de cada mês e a temas peculiares seiscentistas, com soporífera leitura e prosa erudita de banal ostentação; as palestras vivas e agradáveis, com as novidades chistosas da terra, constituíam o chamado Sótão do Falcato, onde chispava a livre crítica» (s.d.: 150).

inscreve a crítica à escolástica, por exemplo –, como mimetiza de modo imperfeito o capital cultural que é moeda de troca na Corte, ou, talvez melhor, mimetiza a deformação também cortesã desse capital – pensamos na crítica ao francesismo daqueles para quem «O saber o Francês é saber tudo», como podemos ler no canto V já mencionado. Foi notável e, até certo momento assíduo, o esforço filológico por conservar a memória dos visados pelo poema. O Hissope não vela propriamente a identidade das figuras da sociedade elvense. As alusões não são escusas, pois quer o apelido, o cargo público ou o apodo denunciam os implicados. Para além do Deão, José Carlos de Lara, e do Bispo de Elvas, D. Lourenço de Lencastre, um contingente substancial de figuras locais vão sendo aludidas: João Alberto de Bastos, Cónego; Pedro António de Soiza Almeida Castellobranco, Cónego–reitor da Sé de Elvas; António Tomás de Sousa Almeida Castellobranco e José António de Almeida Castellobranco, irmãos do anterior e ajudadores do sub–tesoureiro da Sé; José de Almeida, gentil–homem da Casa do Bispo; João Andrade da Fonseca, cónego doutoral; Manuel Martins Ceia Vidal, advogado; António Luís Pereira de Abreu, cónego penitenciário; João Rodrigues Ramalhete, cónego magistral; António Mendes Sachetti, tesoureiro–mor; Matias Franco Pereira Barreto, chantre; Gregório José Pinto da Silveira, auditor do Regimento de Serpa, pertencente à Praça de Elvas; António Fernandes Freire, advogado com escritório em Elvas; Fr. Manuel de Arronches, capucho; Bernardo Gonçalves, escrivão do Judicial; Manuel Ribeiro, beneficiado da Sé; Vicente Ferrer de Sequeira, filho de um negociante elvense, João António de Sequeira; Cipriano Luís de Sá Coutinho, capitão de infantaria do 1º regimento da guarnição da praça de Elvas; José Maria Urbano da Guarda, cónego; João Velez de Lima, comissário da tesouraria–geral do exército do Alentejo; António José Cazadinho, barbeiro do Bispo; Jerónimo da Fonseca Reboredo, filho segundo de João de Reboredo Cardim, governador de Vila Viçosa; Manuel Leote de Matos Marreiros, capitão de Infantaria; José

Caetano Salgado, médico; Dom Luís de Aguilar, Cavaleiro de Malta; Fr. João da Costa Aragão, prior da Igreja de Santa Maria de Alcáçova; José da Silva Machado, oficial da administração das munições para o exército do Alentejo; Gonçalo Pires de Gusmão, ajudante de Cavalaria reformado; Eugénio da Silva Furtado e Francisco Xavier Felix, músicos da Sé; Francicos Vidigal, beneficiado e músico da Sé; Cristóvão Correa Barreto Pimentel, capitão mandante do 2º Regimento da guarnição da Praça de Elvas... O catálogo não é exaustivo, mas permite avaliar a amplitude da vinculação do poema ao contexto social – e, claro está, do riso que moveu –, fundamentalmente constituído por clero regular e secular, militares, membros da magistratura e algum membro da fidalguia, de uma cidade cujo peso na geografia política e administrativa do país se prende, precisamente, com o facto de manter a sede catedralícia e conservar ainda alguma importância estratégica «marcial», todavia já em crescente perda funcional, como dissemos. Optámos, ainda, pela inscrição desta nomenclatura porque ela nos permite considerar o modo do «real» representado no poema. O nome próprio dá-nos conta do «singular» que se pretende representar, uma singularidade que, simultaneamente, se alia à tipificação. São indivíduos que devolvem o humano com vícios. O elenco devolve–nos, assim, a extensão do particular que estrutura a acção do poema e que nos permite, ainda, circunscrever o círculo do riso que foi o seu. Um estilo «nobre» a predicar ou mediar não o que é universal ao humano, mas sim o situacional ou acidental é o que nos propõe O Hissope. O riso assim visado por uma inversão nos protocolos mais firmes da imitatio naturae – subordinada à Ideia – bloqueia o poema como Arte. Trata–se de representar acções «vis, grosseiras, indignas de entrarem num poema», utilizando mesmo, como veremos, uma dicção «bárbara». Uma representação que, deste modo, é subsumida por essa intrínseca negatividade. O riso é o momento, assim, desse absoluto negativo que, sendo

afecção do «real» contigente, cancela a teleonomia da Arte. O poema, objecto necessitado do socius, está para além do consenso universal do poético. Não é um lugar de acordo em que a sociedade negoceia a verdade da sua «realidade», inserindo–a na série idealizada de um passado e um futuro heróicos. Esta representação negativa, não dialéctica pois ensimesmada no domínio da Razão, não circulou impressa em vida de António Dinis da Cruz e Silva. Este facto, ao contrário do que deixam entrever as leituras históricas do poema, é em si mesmo positivo. A especificidade do espaço público coevo passa pelas potencialidades pluri-mediáticas, chamemos–lhes assim com alguma liberdade, de uma cultura não totalizada pelo impresso, muito pelo contrário68. Ora, em O Hissope a circulação manuscrita do poema, notável sobretudo nas décadas de 70–80 do século XVIII, chegando ao XIX mas declinando progressivamente à medida que o seu curso impresso se vai impondo69, permite–nos estabelecer uma relação de reciprocidade entre esse 68

Fernando Bouza, aludindo muito especificamente ao universo cultural barroco peninsular, faz a seguinte reflexão ao dar conta da necessária mudança de perspectiva na consideração da funcionalidade que o manuscrito conservará ainda durante bastante tempo: ««[Hay] que reconocer que se solía considerar su realidad [i.e., do manuscrito] teniendo a lo tipográfico como referencia principal, lo que indudablemente repercutía en los resultados de los analisis. Así, por ejemplo, los manuscritos preparados para la imprenta han despertado el mayor interés de los estudiosos, al suponer que gracias a ellos se podría establecer la edición más fidedigna de aquel texto que había terminado por circular impreso. Por otra parte, otros textos manuscritos eran definidos como una realidad esencialmente opuesta al impreso, al entenderse que eran creaciones no pensadas para la difusión, la cual estaría reservada a la tipografía. Manuscritos como epistolarios, las meditaciones espirituales o las poesías de la academia, por ejemplo, cumplían funciones de privacidad o de sociabilidad cerrada y detrás de ellas se descubriría una voluntad expresa de incomunicación» (2001: 20–21). Cf. Buescu, 1999: 11–32. 69 Simultaneamente, há que registar o seguinte facto. O curso impresso coincide com o imperativo, crescente, de uma anotação profusa do poema. Uma anotação que provê à necessidade de «saturar» a historicidade, em perda, sobre que se estrutura. Ela é concomitante, ainda, à sua configuração como «objecto estético». Em ambos os casos, trata– se de estabilizar o objecto, inserindo–no numa cultura absolutizada pelo livro, onde ocupa o

meio material de mediação e o genus herói–cómico que é o seu. O riso cúmplice, culto, propaga–se pelo manuscrito num espaço de semi– privacidade, tem uma exposição restrita, circunscrita pelo limes da competência do «bom gosto» e, ainda, pela referencialidade do nível alusivo do texto. A circulação manuscrita é aquela que permite, do nosso ponto de vista, sustentar ainda o regime de «publicidade» do Ideal Arcádico. O texto circula entre «amigos»70, inseridos numa «publicidade» distinta daquela que é configurada pelo impresso71.

ALTO E SUBLIMADO, GRANDÍLOQUO E CORRENTE

O António Dinis da Cruz e Silva de Teófilo Braga, um sujeito cuja experiência individual do mundo daria conta da realidade social «dada», é desdito por Elpino Nonacriense, isto é, por uma forma de subjectividade que lugar de monumento. Lembremos a seguinte reflexão de Ernst Cassirer, que colhemos do conhecido ensaio Zur Logik der Kulturwissenschaft: Fünf Studien: «Religion, language, art: these are never tangible objects except in the monuments that they themselves have created. They are the tokens, memorials, and reminders in which alone one can grasp a religious, linguistic or artistic meaning. And it is just in this reciprocal determination that we recognize a cultural object. Like every other object, a cultural object has its place in space and time. It has its here and now, it comes to be and passes away» (2000: 42). 70 Cf. Blecua, 1983: 219. 71 O peso específico do livro e a sua correlação com o manuscrito vivem, neste momento, ajustamentos assinaláveis, sobretudo a partir da criação da Real Mesa Censória em 1768. Comenta André Belo: «Com efeito, no período pombalino a administração central desenvolveu uma nova relação com o mundo do impresso e com a circulação de textos, institucionalizada na criação da Real Mesa Censória (1768), o novo tribunal régio em que foram centralizadas as anteriores funções da censura tripartida. Com o edital de 10 de Julho de 1769, exigindo o envio àquele tribunal de catálogos de todas as obras possuídas no reino, acabava por ser o próprio legado literário da época joanina que era submetido a exame régio. Instituía–se um controle mais apertado dos textos e das estampas em circulação e criavam–se novos critérios para a demarcação entre o que era lícito e o que era ilícito publicar» (2001: 36–37).

medeia o mundo colectiva ou arcadicamente. A forma herói-cómica é, precisamente, a que lhe permite a afecção do «real», mas é também a que garante ainda a mediação desse mesmo «real» pela Tradição. Lemos a funcionalidade da épica deste modo: ela é o filtro que sustenta a negação. Um tanto intempestivamente, diríamos que o impulso de representação da contemporaneidade tem esta expressão possível no poema herói-cómico. A filologia oitocentista, neste sentido, num momento em que a burguesia configurara já a sua forma – o romance – editou o texto terá visto nele sobretudo «comédia de costumes» e proto-realismo, para além evidentemente de capital anti-clerical. O aproveitamento das categorias formais da épica em O Hissope consistem, fundamentalmente, na mímica do carácter «oratório» que sobredetermina o up–to–date camoniano do género. Mas não apenas. Neste sentido, o poema começa com uma exposição do tema e a invocação às musas. O aproveitamento humorístico deste recurso épico é patente no início do canto VII, quando ou autor invoca as deusas do Parnaso, a quem reclama ajuda para descrever o curioso grupo de comensais que assistem a um jantar oferecido pelo deão aos seus partidários:72 «Vós, Deosas de Parnasso, vós agora / Novo fogo inspirai dentro em meu peito; / Regei–me a voz cansada, e o débil canto, / Por que nelle celebre dignamente / De tam altos varões nomes, e manhas» (VII, 2193–2197). Outro recurso épico aproveitado no poema com intenção humorística é o do episódio profético, que encontramos em O Hissope no relato do infausto agoiro do galo, que na economia do poema ocupa o final do canto VII. Acrescente–se, ainda, os auspícios do mago Abracadabro, no canto VIII, que auguram ao deão o infeliz final da sua apelação. Cruz e Silva vale– 72

Citamos pela editio princeps de Londres [Paris] de 1802. A numeração entre parêntese corresponde ao canto e ao verso. A transcrição que fazemos é paleográfica. Cf. António Dinis da Cruz e Silva, O Hissope. Poema Herói–cómico, edição crítica por Ana María García Martín e Pedro Serra, Braga–Coimbra, Angelus Novus, 2002.

se deste procedimiento para anticipar ao leitor factos posteriores aos acontecimentos narrados, posteriores inclusivamente à morte do deão – que viria a ser sucedido no cargo por um sobrinho que se negou também a cumprir o ritual de oferecimento do hissope. Tendo sido melhor aconselhado, apelará a tribunais laicos que acabam por conceder–lhe a razão, em detrimento do bispo, restituindo, deste modo, a honra do deão falecido. A intenção paródica é evidente no caso da profecia do galo, pois o vaticínio é colocado na boca de uma ave trinchada e servida no banquete com que o deão, rodeado pelos seus partidários, celebra a apelação movida contra o bispo.73 De igual modo, a presença do mago Abracadabro e do mundo da magia negra no canto VIII é objecto de ridicularização humorística, se bem que tenha sido mal interpretada pelos contemporâneos de Cruz e Silva.74 Característica fundamental que compartem os poemas herói– cómicos é a ampla utilização, imitando a épica, da mitologia. Neste sentido, O Hissope manifiesta–se como una obra singular, pois ou autor cria para ou poema uma mitologia específica, constituída por entidades como ou Génio das Bagatelas, a Excelência e a Senhoria – formas de tratamento alegorizadas que protegem o bispo e o deão respectivamente –, a Lisonja ou a Discórdia. Como é tradição na épica clássica, Cruz e Silva mantém ao longo da obra a sobreposição de dois planos, o do real e o do maravilhoso, cuja separação nunca se quebra – de facto, as divindades só entram em 73 São estes os versos: «Quando, subitamente (caso horrendo! / Que as carnes faz tremer ao repeti–lo!) /O velho Gallo, que n'um prato estava, / Entre frangãos, e pombos lardeado, / Em pé se levantou, e as nûas azas / Tres vezes sacodindo, estas palavras, / Em vóz articulou triste, mas clara: /– Em vão, cruél Deão, em vão celebras / Com nósso sangue ou próspero successo, / Que a futura victoria te promette; / Que por fim cederás a teu contrario. / Disse: e cahindo sobre ou grande prato, / Sem mexer–se ficou» (VII, 2569–2581). 74 O ms. Gab. 451 de O Hissope (cf. García Martín, 2000), pertencente à Biblioteca Municipal de Elvas, que comenta vários aspectos relacionados com a elaboração e significado de O Hissope, refere–se nas páginas 14–20 às críticas coetâneas feitas ao poema pela presença de elementos inverosímeis e extraordinários.

contacto com as personagens humanas através de sonhos. Todavia, para além deste aparato mitológico realmente efectivo e criado especificamente para o poema, em O Hissope surgem constantemente referências à mitologia clássica greco–romana – neste caso apenas como meio de elevar o estilo,75 como é o caso das menções a Melpòmene, e Thalîa (I, 36), Anticyras (I, 57), Amphitrite (I, 114), Neptuno (I, 116 e V, 1530), Tritões (I, 117), Zèphyro (I, 134), Flora (I, 136), Górgones, e Cerastas (II, 355), Adònis e Páris, (III, 532), Baccho (III, 634 e V, 1757), Morpheo (IV, 922), Ceres (IV, 923), Jove, Marte, e Juno (IV, 961), Juno, Pallas, Venus (V, 1381), Arachne (V, 1461), Minérva (V, 1461), Circe, Medéa, Alcina (V, 1479), Canidia (V, 1480), Alcmena e Jove (V, 1614), Amphitrião (V, 1616), Juno (V, 1629), Achilles (VII, 2473), Jove (VII, 2496), Lethes (VII, 2355), Seméle (VII, 2385), etc. A alusão mitológica é introduzida também na adjetivação, procedimento de claro influxo camoniano. Assim, temos sintagmas como Itureo arco (I, 205–206), Idalia sélva (III, 533) ou Neptunina Troya (V, 1521), entre outros. Se estes mecanismos próprios da epopeia são aproveitados parodisticamente pelo género herói–cómico, importa–nos destacar sobretudo a mímica do estilo «alto e sublimado, grandíloquo e corrente»76. A lição que segue O Hissope, como já dissemos, é a de Boileau, que propôs um riso baseado não numa carnavalização da linguagem dos personagens «altos» da 75

O recurso constante à mitologia não impede, todavia, Cruz e Silva de realizar um processo de depreciação de figuras clássicas e mitológicas com intenção humorística, como quando o deão chama a Páris e Helena, respectivamente, esse Marmanjo (V, 1399) e Valente marafona (V, 1420), ou quando o clérigo define Alcides como «Filho de barregan! Môço de mulas! / Vejão de que relé éra a criança» (V, 1640–1641). 76 Registe–se, neste sentido, que encontramos em O Hissope os seguintes versos tomados ipsis verbis de Os Lusíadas: «Ah! que não sei de nojo como o conte!» (Hiss. III. 43) > «Oh! Que não sei de nojo como o conte» (Lus. V. 56); «Dignos todos de fama, e maravilha» (Hiss. VI. 165) > «Dinos todos de fama e maravilha» (Lus. X. 73). O mesmo acontece com versos de Le Lutrin, de Boileau, da Eneida, de Virgílio, ou da Ilíada de Homero. Neste momento, e neste lugar, importa–nos destacar apenas o intertexto camoniano.

epopeia, mas sim a atribuição do falar «elevado» a personagens «baixas». Podemos dar como exemplo desse estilo altiloquente em O Hissope os fragmentos I, 209–219, II, 348–367, III, 594–598, III, 728–732, IV, 909– 944, VI, 1823–1827, VII, 2187–2192 e VIII, 2947–2955. Propomos, como exemplo a valer pelos demais, estes últimos versos do canto VIII: «Já a Aurora, deixando enfastiada / Do potroso Titão ou frio leito, / Sobre ou Carro, de aljofres guarnecido, / Com um mólho de rozas excitava / Ao veloz curso a[s] remendadas Pias, / Que os freios mastigando de diamante, /Por ólhos, e por ventas scintillavão / Trémulos rayos, que de luz cobrião / Os longo–apavonados horizontes». O vocabulário culto, em muitos casos de herança camoniana, torna– se particularmente evidente no uso de formas nominais, substantivas ou adjectivas: perfidos Solípsos (I, 25)77, Lunàtica gente (I, 74), excelso / Magnifico palacio (I, 100–101)78, Neptuno undoso (I, 116)79, escusa pòrta (I, 125), règio sòlio (I, 185)80, funesto influxo (I, 218)81, idoneo tempo (I, 239)82, sacro Aspèrges (I, 291)83, lautas mesas (II, 305), faustosas assembléas (II, 321), caso execrando (III, 557), execravel attentado (III, 594), trémula luz (III, 731)84, distincta honra (III, 742)85, înclytas façanhas (III, 775)86, infausto aviso (IV, 857), agra montanha (V, 1234), virente jardim (V, 1294), marmoreas Campas (V, 1347), facundo decantado Ulisses

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V. g., Os Lusíadas, X. 26. Cf. Cunha, 21982: p. 162. V. g., Os Lusíadas, X. 51. Cf. Cunha, op. cit.: p. 79. 79 V. g., Os Lusíadas, VII. 21. Cf. Cunha, op. cit.: p. 217. 80 V. g., Os Lusíadas, X. 146: «Conselho estais no régio solio posto». Cf. Cunha, op. cit.: p. 198. 81 Referimo–nos ao substantivo. V. g., Os Lusíadas, X. 146. Cf. Cunha, op. cit.: p. 111. 82 V. g., Os Lusíadas, VIII. 78. Cf. Cunha, op. cit.: p. 107. 83 V. g., Os Lusíadas, III. 74. Cf. Cunha, op. cit.: p. 186. 84 V. g., Os Lusíadas, X. 135. Cf. Cunha, op. cit.: p. 214. 85 V. g., Os Lusíadas, VIII. 43. Cf. Cunha, op. cit.: p. 63 86 V. g., Os Lusíadas, X. 43. Cf. Cunha, op. cit.: p. 109. 78

(V, 1518)87, [Néstor] Undîvago (V, 1532)88, infandos prodigios (VI, 1833)89, aureo técto (VI, 1857)90, férvidas areias (VI, 1874)91, sórdidas trapaças (VI, 1930)92, pânico terror (VI, 1932)93, terráquea mole (VI, 2110), fausto principio (VI, 2157), Pérfido Achates (VII, 2207)94, pródiga Merenda (VII, 2489), rubida mão (VII, 2497)95, rubra vara (VII, 2360), virentes parras (VII, 2389), [cidade] memoranda (VII, 2431), Eximio Prégador (VII, 2533), aureos discos (VIII, 2612), sordidas pennas (VIII, 2745), horrendo fragor (VIII, 2858)96, etc. Seguramente também se deve à imitação da língua de Camões o contraste de tempos verbais numa mesma sequência frásica97: «Pela comprida salla passeava, / Sorvendo uma pitada de tabaco, / De quando em quando sua Senhoria, / Ora à janella chêga, e applicando / Uma pequena lente à curta–vista, / Ou que passa na Praça vigiava; / Ora arrotando, para dentro, torna» (I, 229–235) ou «Nem joga, nem Caffé, nem Chà bebîa (VIII, 2658)». Trata–se de um estilema muito utilizado por Cruz e Silva, como podemos cotejar nos fragmentos I, 173–179; I, 220–225; II, 373–375; II, 457–460; V, 1645; VI, 2058–2059 e VIII, 2616–2618, fragmentos que pela sua extensão não transcrevemos.

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V. g., Os Lusíadas, II. 45: «Que se o facundo Ulisses escapou». Cf. Cunha, op. cit.: p. 81. V. g., Os Lusíadas, VIII. 67. Cf. Cunha, op. cit.: p. 217. 89 V. g., Os Lusíadas, III. 160. Cf. Cunha, op. cit.: p. 110. 90 V. g., Os Lusíadas, IV. 68. Cf. Cunha, op. cit.: p. 21. 91 V. g., Os Lusíadas, X. 12. Cf. Cunha, op. cit.: p. 87. 92 V. g., Os Lusíadas, V. 79. Cf. Cunha, op. cit.: p. 199. 93 V. g., Os Lusíadas, III. 67: «Dum pânico terror todo assombrado». Cf. Cunha, op. cit.: p. 156. 94 V. g., Os Lusíadas, X. 26. Cf. Cunha, op. cit.: p. 162. 95 V. g., Os Lusíadas, II. 13. Cf. Cunha, op. cit.: p. 185. 96 V. g., Os Lusíadas, IV. 28. Cf. Cunha, op. cit.: p. 105. 97 Cf. Os Lusíadas (I, 90): «Já blasfema da guerra e maldizia / O velho inerte e a mãe que ou filho cria». 88

As enumerações, repetições de esquemas sintácticos, quiasmos e hipérbatos contribuem igualmente para o estilo «alto e sublimado, grandíloquo e corrente»98. De uso reiterado todos eles no poema, coligimos aqui apenas uns poucos exemplos, como são «Aquî, sobre um feroz Dragão montando, / Rapidamente vôa: incendios, mortes, / Sacrilégios, traições, roubos, ruinas / Vai deixando a Cruél, por onde passa» (II, 429–432); «Não géme, tam convulsa, tam raivosa, / Não córre, não retorce os vivos ólhos» (II, 511–512); «Se em Africa Catão, se em Roma Cesar» (VI, 1872); «A noticia dos Régios Desposorios / Da Princesa Real, Real Infante» (VII, 2486–2487); «Quantos graves Varões, que sobre os livros, / Ou de cans sob os élmos se cobrirão?» (II, 319–320); ou, por último, «Mil, em silencio deixarei, successos» (VII, 2437). Também de tradição épica, assinalamos ainda o uso recorrente no poema do epíteto caracterizador de personagens. Às principais figurae da intriga aplica–se–lhes reiteradamente um adjectivo, não apreciativo como no caso da épica, mas sim depreciativo – é o caso de gordo bispo e farfante deão99. Em contrapartida, Cruz e Silva recorre à adjetivação apreciativa para caracterizar as figurae «reais» da vida social elvense. Estes epítetos apreciativos, contrastando com a figura ou a situação descritas, resultam ser claramente irónicos. Assim, temos: famoso Martin (I, 118), illustre Almeida (I, 264), grande Almeida (III, 588), douto Andrade (III, 615), famoso Bastos (III, 676), douto Accursio (III, 699), grande Abreu (III, 737), bom Fernandes (IV, 1180), grande e intrepido Gonsalves (VI, 2005), denodado Gonçalves (VI, 2106), o grande Eugenio e o famoso Felix (VII, 2370), grão Gonsalves (VII, 2519), entre outros. No pólo oposto, a caracterização depreciativa do clero, que pretende denunciar a sua corrupção física e moral, chega ao extremo da animalização de algumas personagens: «E o calor, que as goèlas 98 99

A anáfora é también um recurso constante no genus herói–cómico (cf. Maffre 1994: 474). Cf. O Hissope, ed. cit.: passim.

lhe seccava» (I, 237); «Ao caminho se pôz, aos ilhàes dando» (IV, 887); «E màis ligeiro, que um ligeiro Galgo» (IV, 1202); «Aos Capuchos, de tròte, se encaminha» (V, 1233); «Aquî, suando, pois, como um Cavallo» (V, 1252); «E mais ligeiro, que ou ligeiro Gamo» (VI, 2034); «quàes ráyvosos, / Arremessados Cães» (VI, 2084–2085); «frades, / Que tem fóme canina» (V, 1715–1716); «E correndo, e saltando, como um Corço» (V, 1741); «Crês por ventura / Que elle te livrarà das suas garras» (VI, 1958–1959); «indigno Furão, vil e rasteiro» (V, 1801); acrescente–se, enfim, o seguinte exemplo: «De féro Lobo, se fará Cordeiro» (VIII, 2943). A hiperbolização é outro dos mecanismos básicos da linguagem heróico–cómica100. Um dos recursos mais rentáveis em O Hissope para conseguir esse efeito hiperbólico consiste na utilização de numerais, sobretudo cem e mil, formas absolutamente recorrentes no poema.101 Assim, temos: «Cem cáras, cem véstidos, cem figuras, / Cem linguas toma» (I, 196– 197); «Começão a chover lógo os manjares, / Cem Perdizes, cem Pombos vem voando, / Cem especies de môlhos, cem de assados, / Grandes Tortas, Timbales, pasteis, cremes» (III, 624–627); «Mil fructas, mil corbelhas, mil compótas» (III, 632); «Quando ou Monstro veloz, que por cem ólhos / Todas as cousas vê, e as cousas todas / Por cem boccas, cem linguas palra, e conta, / Com cem azas fendendo os largos ares» (IV, 849–852); «Mil vezes faz descer trovões e rayos; / Arranca do alto Céo a branca Lua; / Em negro Urso mil vezes se convérte, / Mil em Lôbo Cerval, e mil em Touro» (VIII, 2717), entre outros casos. A adjetivação, em regime antifrástico, provê igualmente ao exagero. Eis alguns exemplos: espantosa guerra (I, 1), vastos intermundios (I, 10), grão payz (I, 11), immenso povo (I, 12), Magnifico Palacio (I, 101), tam grande e atroz delicto (III, 575), horrendo, execravel attentado (III, 594), 100 101

Cf. Maffre, 1994: 468–474. Uma vez mais, encontramos este recurso em Tolentino (cf. Maffre 1994: 469–470).

importantissima reforma (III, 750), grande estrondo (VI, 1842), phantástica dor (VI, 1850), horrendo stridor (VI, 1861), portentosos vaticinios (VI, 1869), Appellação descommedida (VI, 2050), lettra garrafal (VI, 2051), grande Appellação (VIII, 2595), enórme attentado (VIII, 2626), grande pleito (VIII, 2967) e grão litigio (VIII, 2688). Finalmente, o registo irónico percorre todo o poema, modo de acentuar a representação, em negativo, dos costumes clericais. Vejam–se os seguintes exemplos: uma sancta vaidade respirando (I, 290); E, nèstas vans idèias engolfado, / Foi devoto cantar a grande Missa. (I, 295–296); A vida em ócio sancto consumião (II, 300); Sem saber ou que diz, a Missa canta (III, 549); santo propòsito (IV, 879) do deão, referindo–se a Comer, jogar, dormir, e divertir–me (IV, 875); em sancta paz, jogando (VI, 1895); ou, ainda, deste Prelado a sancta rayva? (VI, 1939). A capitalização derisória do estilo elevado intensifica–se em O Hissope com a inclusão do registo linguístico «baixo», com objectivos claramente disfemísticos. São exemplo desse registo «rústico» vozes como comua (I, 160), traseiro (I, 161), cu (I, 162), sorver (I, 243), lamber (I, 245), pança (I, 248; III, 726), cachação, (II, 522), murro (II, 522), escarrar (I, 144; III, 723; IV, 902), pregar um escarro (VII, 2466), escumar (III, 545; IV, 868), bradar (I, 238), roncar (II, 454), esfregar (II, 486), soluço (III, 559), empantufado (III, 569), babar–se (III, 611), roer (III, 650), pastejar (III, 651), monco (III, 722), suar (IV, 888), barregar (VI, 1985), ressonar (IV, 944), assoar (III, 722), cordoveias (III, 809), tossir (IV, 902), chupar (VII, 2564), modorra (IV, 1225), estercar (VI, 1862), arrepiar (VIII, 2801), zombar (V, 1434), zoupeira (V, 1438), empanturrado (VII, 2559), entre outros. A língua coloquial manifiesta–se igualmente no poema mediante o emprego de expressões idiomáticas de cariz popular, como a perna solta (II, 452), meter o bedelho (III, 822–824), dar ao beque (VII, 2242), dar sota e az (VII, 2331–2332), crescer agua na boca (VII, 2504), malhar em ferro frio (VII, 2530), dar ao demo (VII, 2592), dar no goto (V, 1611), ou em

locuções adverbiais como a montões (VIII, 2607), às rebatinhas (VII, 2494), em tropel (VII, 2507), às duas palhetadas (V, 1764), a trouxe–mouxe (III, 827), entre outras. O vocabulário vulgar, mais próprio do género burlesco, penetra na linguagem heróico–cómica, afastando–se neste particular no cânone proposto por Boileau. No poema de Cruz e Silva, o contraste entre língua culta e língua popular, por vezes patente em versos imediatamente contíguos, é talvez o estilema mais produtivo do poema. Mimar o estilo «alto e sublimado, grandíloquo e corrente» com fins paródicos não é exactamente parodiar esse estilo, ainda que tal mímica passe pela sua des–funcionalização. O momento cultural «crítico» que é o de Cruz e Silva, como se sabe, significou também passar o «cisne canoro» pelo crivo da Razão. Verney, pouco caro à música das esferas, não ouve a língua do vate como lugar do «consenso», modo de ser muito investido pela Academia102. Para o barbadinho é uma questão da extensão das «orelhas»: «Quem disser que estes versos [de Camões], e outros que podia apontar, são harmoniosos e enchem bem a orelha, é necessário que tenha orelhas mui compridas. São poucos os versos de Camões que não tenham algum defeito de dissonância. A obscuridade ninguém lha pode negar, quando queira examinar as suas composições»103. Mas é de crer que a tendência epocal tenha sido, precisamente, a de fazer do épico expoente do thesaurus português, um valor que demanda experts104. Na verdade, o que temos em O Hissope pode ser pensado a partir das reflexões levadas a cabo por Iris M. Zavala a propósito de Fray Gerundio de 102

Cf. Castro, 1980: 13–36. 1949: 315–316. 104 Cf. Castro, op. cit.: passim. Sobre esta questão, esclarece Gunvald Walhöo: «A definição da literatura pela 'língua de Camões' nomeia performativamente a necessidade social dos peritos não em literatura mas em 'língua de Camões' (é pouco plausível que o social instituído se ache necessitado de literatura). Ao mesmo tempo, visto o desconhecimento de tanta e tanta gente em 'língua de Camões', implica a raridade do conhecimento em 'língua de Camões' – o capital que esse conhecimento deve ser» (2001: 70). 103

Campazas, do Pe. Isla, duas obras que, assinale–se, compartem um comum pendor satírico centrado no mundo clerical. Zavala, identificando as relações dialógicas que Fray Gerundio estabelece com o texto cervantino, adverte: «En este punto, conviene comenzar con una aclaración: dentro del encuadre teórico que planteo, Isla no parodia El Quijote, más bien, se apoia en una serie literaria orientada hacia el horizonte de expectativas del lector culto»105. No caso de O Hissope é a cifra camoniana no «horizonte de expectativas» do universo de leitura, a que a obra se destina, aquilo que visa a mímica do estilo épico. Esse «estilo», todavia, não assiste a algo como uma «série literária» autonomizada. O «horizonte de expectativas» é mais cultural do que literário, num contexto que precisamente ainda não autonomizou a literatura, ou que começa precisamente a fazê–lo.

...ABRIREM–SE OS MONTES E SAIR UM RIDÍCULO RATINHO106 O riso pedido pel’O Hissope é aferível pela deflacção da ambivalência107 do «realismo grotesco» bakhtiniano, devir histórico do riso de que já dava conta Eça de Queirós, para quem o proprium hominis se perdeu enquanto «gargalhada»108. O mundo social dessublimado do burgo elvense ecoa de algum modo o princípio de vida material e corporal rabelaisiano, aproveitando as suas formas ao representar uma falange eclesiástica movida pelas paixões da «gula», da «vaidade», da «soberba», da 105

1987: 84. Garção, 21982: 189. 107 Cf. Eagleton, 1998: 224–225. 108 Lembramos o conhecido passo: «Já ninguém ri! Quase que já ninguém mesmo sorri, porque o que resta do antigo sorriso, fino e vivo, tão celebrado pelos poetas do século XVIII, ou ainda sorriso lânguido e húmido que encantou o romantismo – é apenas um desfranzir lento e regelado de lábios, que, pelo esforço com que se desfranzem, parecem mortos ou de ferro» (Queirós, 1913: 238). 106

«ira» e outros atributos vinculados ao terrenal. Mas esse eco será apenas um resto, uma redução e debilitação que faz parte do processo crónico do riso popular – medieval, ambivalente, universal, utópico – estudado por Mikhail Bakhtin. A poetologia de Cruz e Silva assenta, como vimos, no esforço de contenção das emanações do popular, subsumido por uma pastorícia idealizada, a que o magistrado, de resto, terá aderido de modo négligé109 . O poema herói–cómico, neste sentido, representa–nos uma brecha no imperativo da «civilidade» Arcádica. O Outro dela é dado por essa sobrevivência do princípio de vida material e corporal, que todavia não significa uma fecundação pregante do carnaval popular no âmbito da literatura elevada. Pensamos que vale para o poema de Elpino o que Bakhtin assevera para o século voltairiano: «La influencia de la forma, los temas y los símbolos del carnaval, es muy importante en el siglo XVIII. Pero es una influencia formalizada: las formas del carnaval son transformadas en «procedimientos» literarios (esencialmente a nivel del tema y la composición) al servicio de diversas finalidades artísticas»110 . Sob o império da Razão, a comicidade aberta devém abstracta e negativa. Cruz e Silva, juíz do «bom gosto» e das «boas maneiras», desce do Monte e vê ratinhos, aqueles precisamente que, emanados da ampliação material da «cultura» distinta são também os segregados dela, pois apenas a mimam ridiculamente.

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Já Teófilo Braga apontou o facto de Elpino considerar que «um magistrado se deslustrava cultivando as Musas» (s.d.: 144). A lição, neste sentido, recorda uma vez mais Boileau: «Que les vers ne soient pas vostre éternel employ» (op. cit.: 182). O modo de Cruz e Silva se relacionar com as Letras dista consideravelmente da forma como o fez, por exemplo, Correia Garção. 110 1998: 109.

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