Cisnes Negros: 1910: a revolta dos marinheiros contra a chibata

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Descrição do Produto

Mário Maestri Professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade de Passo Fundo.

Cisnes negros 1910: a revolta dos marinheiros contra a chibata

3ª edição revista e ampliada

CISNES NEGROS 1910: a revolta dos marinheiros contra a chibata Capa Reprodução Diagramação Tiaraju de Almeida MTE RS 16.669

Maestri, Mário, 1948Cisnes negros : 1910: a revolta dos marinheiros contra a chibata / Mario Maestri. - Porto Alegre : FMC Empreendimentos e Editora Ltda. (Coleção Brasil República, 2). 192 p. : il. ; 21 cm.

ISBN: 978-85-67542-02-7 1. Brasil. Marinha - História 2. Brasil - História - Revolta da Esquadra, 1910 3. Brasil - História naval I. Título: II. Título: Uma história da Revolta da Chibata.

2014

FCM EDITORA Caixa Postal 1524 - Campus Universitário 91.501-970 - Porto Alegre - RS Tel. 51 3336.3475

Conselho Editorial Coleção Brasil República In Memoriam: Dr. Ciro Flamarion Cardoso Dr. Edmundo Fernando Dias Dr. Octávio Ianni Dr. René Armand Dreifuss Coordenadores: Dr. Mário Maestri, PPGH da UPF, Passo Fundo, RS. Secretário Dr. David Maciel, UFG, Goiânia, GO Dr. Gilberto Grassi Calil, UNIOESTE, M. Cândido Rondon, PR Drª. Ana Luíza Reckziegel, UPF, Passo Fundo, RS Dr. Antonio de Pádua Bosi, UNIOESTE, M. Cândido Rondon, PR Drª. Carla Luciana Silva, UNIOESTE, M. Cândido Rondon, PR Dr. Carlos Zacarias de Sena Júnior, UFBA, Salvador, BA Dr. Claudio Lopes Maia, UFG, Goiânia, GO Dr. David Maciel, UFG, Goiânia, GO Dr. Diorge Konrad, UFSM, Santa Maria, RS Dr. Enrique Padrós UFRGS, Porto Alegre, RS Dr. Eurelino Coelho, UEFS, Feira de Santana, BA Dr. João Alberto da Costa Pinto, UFG, Goiânia, GO Drª. Mônica Piccolo, UEMA, São Luís, MA Dr. Manuel Loff, Universidade do Porto, Portugal Dr. Marcio Antônio Both da Silva, UNIOESTE, M. Cândido Rondon, PR Dr. Paulo Afonso Zarth, UNIJUÍ, Ijuí, RS Dr. Paulo Pinheiro Machado, UFSC, Florianópolis, SC Dr. Renato Lemos, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ Dr. Rômulo Mattos, PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJ Dr. Sonia Regina de Mendonça, UFF, Niterói, RJ Dr. Tiago Bernardom, UFPB, João Pessoa,PB Dr. Walmir Barbosa, IFG, Goiânia, GO Dr.Gelsom Rozentino de Almeida, UERJ, Rio de Janeiro, RJ Drª. Vera Barroso, FAPA, Porto Alegre, RS Drª. Virgínia Fontes, UFF / FIOCRUZ, Rio de Janeiro, RJ

Em memória de Mário Nascimento, amigo e companheiro de lutas e idéias

“Adormeci de novo. Acordei em meio de uma maravilhosa aurora de verão. A baía esplêndida com seus morros e enseadas. Seriam talvez quatro horas da manhã. E vi imediatamente na baía, frente a mim, para a saída do porto. Reconheci o encouraçado Minas Gerais que abria a marcha. Seguiam-no o São Paulo e mais outro. E todos ostentavam, numa verga do mastro dianteiro, uma pequenina bandeira triangular vermelha. Eu estava diante da revolução. Seria toda revolução uma aurora?” Oswald de Andrade, Os condenados (memórias)

“Sobre o levante da marinhagem, felizmente acabado, parece que o melhor é nada mais dizer. O país só tem a lucrar com o silêncio geral sobre esse fato. Na vida dos povos, como na dos indivíduos, há lembranças que se desejaria apagar de todo, pela tristeza, pelo revolta dos marujos é uma delas. Não se pense mais nessa vergonha ou nesse infortúnio.” O País, Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1910.

Sumário

Introdução........................................................................................................................7 1. Brasil, 1910: ricos e pobres num mundo rural ..................................15 2. A campanha civilista e a divisão das classes governantes ............27 3. A triste vida dos marinheiros da armada do Brasil .........................35 4. Modernização e anacronismo na armada ............................................45 5. A armada do Brasil: uma das mais modernas do mundo ..............55 6. Potemkin: marujos revolucionários contra a armada tzarista ...63 7. Marinheiros, soldados e operários de toda a Rússia: uni-vos! ....75 8. Os marinheiros negros conspiram ..........................................................89 9. A noite em que o clarim pediu combate ...............................................99 10. O contra-ataque impossível .................................................................. 109 11. O governo decide-se pelo diálogo ...................................................... 117 12. A vitória da revolta ................................................................................... 127 13. A anistia e o começo da traição ........................................................... 133 14. Armadilha fatal - a segunda revolta ................................................. 139 15. A revolta no Batalhão Naval.................................................................. 149 16. Vingança feroz e iníqua ......................................................................... 159 17. A vitória dos marinheiros negros....................................................... 165 ................................................................................................................ 169 Anexo............................................................................................................................ 175

Introdução Uma luta por cidadania

Rio de Janeiro, noite de 22 de novembro de 1910. O mar está calmo, o tempo sereno. Do cais avistam-se os vultos escuros e ameaçadores dos barcos de guerra da Armada, reunidos para a posse do presidente da República, realizada havia uma semana. A calma é absoluta na capital brasileira, uma das maiores cidades da América atlântica. Boa parte da população dorme. Apenas alguns trabalhadores retardatários voltam cansados para casa. Aqui e ali, um marinheiro, um boêmio ou uma dama da noite vagam sem destino pelo cais. No elegante Clube da Tijuca, a mais distinguia sociedade carioca participa com o recém-empossado presidente da República, o marechal Hermes da Fonseca, de uma luxuosa recepção. Na época, a República Velha [1889-1930] vivia alguns dos seus mais radiosos anos. O Brasil exportava, a preços elevados, imensas quantidades de café, de borracha e de cacau, entre outras mercadorias. Subitamente, às 22h55min., como o estampido de um raio em céu sereno, escutou-se um disparo de canhão na baía. A seguir, outros. Em terra, nada se sabe sobre o sucedido. Ninguém imagina o com os rostos enrijecidos pelo medo e pelo ódio.

Ninguém acredita no que é contado. Os marinheiros lutam, com as armas à mão, pelo domínio dos encouraçados. Nos combamais dúvidas — a vitória sorriu aos marujos. Os barcos estão em suas mãos. O presidente da República abandona incontinenti a festa ao ser informado que os marinheiros controlam os navios da marinha de guerra. Teme um golpe contra a presidência. A notícia paralisa os altos funcionários do Estado, do Exército e sobretudo da Armada. publicanos. A Armada acabara de ser aparelhada com as mais modernas e poderosas armas de guerra naval. Dois imponentes dreadnoughts encontravam-se entre os navios comprados na Inglaterra, a peso de ouro, e apenas chegados ao Brasil. São verdadeiras fortalezas navais, a mais terrível arma então existente sobre os mares. Possuem inúmeros canhões de grande alcance e de imenso poder destrutivo. São sos navios. — Mas o que querem os marinheiros, rompendo com a disciplina e chantageando o poder constituído? – clamam as autoridades da República. to? — todos querem saber. Os marinheiros da marinha de guerra, senhores das poderosas armas de guerra, exigiam apenas serem tratados como seres humanos. Exigiam simplesmente a cidadania republicana. Pediam soldo justo, condições de trabalho mais dignas. Clamavam, sobretudo, pelo Vinte e dois anos após a abolição da escravatura e 21, depois da proclamação da República, os marujos brasileiros eram chicoteados barbaramente, como se fossem cativos fujões, dos tristes tempos do Império! Havia poucos dias, um marinheiro fora condenado a 250 chicotadas e retalhado sem pena, como uma tainha, diante dos olhos atônitos dos companheiros de trabalho.

O castigo doía no corpo e na alma. Sobretudo por que os marinheiros revoltados, que levantavam bandeiras vermelhas nos mastros dos navios, eram negros, mulatos e caboclos, em grande maioria. Venceriam ou morreriam! Mas nunca mais seriam tratados como seus pais ou avós! *** Raros acontecimentos brilham tão intensa e fulgurantemente no passado republicano brasileiro como a revolta dos marinheiros ganização de uma corporação militar, dividindo a história de nossa marinha de guerra em antes e depois de 1910. Contraditoriamente, raros acontecimentos foram tão pouco negros. Apesar de ter sido uma das maiores rebeliões de todas as armadas de guerra modernas, e certamente a mais importante do século 20, esses fatos são quase desconhecidos, sobretudo fora do Brasil. Sobre a revolta, até poucas décadas, tínhamos apenas alguns Edmar Morel – A revolta da chibata —, de 1963, resgatou do esquecimento a saga de João Cândido, de Francisco Dias Martins e de seus companheiros. Ainda menos sabíamos sobre a revolta do Batalhão Naval, que se seguiu àquele movimento. rebelião, da pluma do vice-almirante Hélio Leôncio, não ampliou cumentos conhecidos e repetiu – com outro conteúdo – explicações desenvolvidas anteriormente. Nos últimos anos, publicaram-se trabalhos acadêmicos sobre as condições de vida na Armada, antes da tos. Desde 2011, contamos com alentado estudo sobre a revolta do Batalhão Naval.

Muitos aspectos da revolta são ainda ignorados. O movimento de 1910 exige investigação detida que esclareça muitas perguntas ainda existentes. Necessita de um trabalho de fôlego que integre os acontecimentos à história política e social do início do século. Falseus principais dirigentes. Muito ainda está por ser escrito. Momentos essenciais da revolta serão possivelmente reconsiderados. Pouco conhecemos das primeiras discussões dos conspiradores, ocorridas ainda nos estaleiros navais britânicos, quando da construção dos novos navios da armada brasileira. Quase nada sabemos Inglaterra. É escassa nossa informação sobre os acontecimentos e as deliberações no interior dos barcos, nos quatro dias da rebelião, assim como sobre as dissensões que conheceram. Conhecemos as reivindicações dos marujos, mas desconheceças dos marinheiros revoltados. Não sabemos se eram comuns os contatos dos marujos nacionais com marinheiros de outras nações. A revolta na marinha de guerra russa, de 1905, imortalizada pelo cineasta Sergei Eisenstein [1898-1948], em “O encouraçado Potemkin” , de 1925, ocorreu cinco anos antes do movimento brasileiro. Os marinheiros teriam começado a conspirar nos estaleiros ingleses, apenas um ano após aqueles acontecimentos dramáticos. Diversos atos e comportamentos dos marujos brasileiros indiPotemkin. O movimento dos marinheiros russos do mar Negro sugere, por analogia, possíveis explicações para atos e acontecimentos internos do movimento no Brasil. Sobretudo por isso analisamos brevemente a revolta na esquadra russa. intenções e as dissidências exatas dos diversos setores do governo, do Congresso e das Forças Armadas. Avançamos muito no conhecimento da segunda revolta dos fuzileiros do Batalhão Naval, de 10 de dezembro de 1910, mas segue forte dissenso sobre muitos de seus aspectos. É crível que tenha sido um movimento parcialmente insu-

se tratou de provocação policial. A revolta dos marinheiros negros merece estudo de fôlego que de encontrar. Esse estudo teria que se basear no que resta da memória dos marinheiros revoltados. Teria que consultar os papéis de Hermes da Fonseca e dos políticos da época. Sobretudo, teria que analisar a documentação detida pela marinha de guerra brasileira, apenas parcialmente acessível. Para a compreensão exata desse movimento, é necessário o estudo das pequenas revoltas ocorridas nos navios da armada nacional, antes de 1910. *** Em 1979, durante a Ditadura Militar, realizamos um primeiro levantamento sobre o movimento dos marinheiros no Arquivo da Marinha, no Rio de Janeiro. Boa parte da documentação referente à revolta fora recolhida, nos informou o responsável pelo centro de documentação. Por exemplo, não tivemos acesso aos livros de castigo dos navios envolvidos na rebelião. Disseram-nos que eles não mais existiam. Alguns anos mais tarde, para preparar uma segunda edição, ao visitarmos o mesmo arquivo, parte da documentação que havíamos estudado sobre a revolta não mais se encontrava lá. Destinado ao grande público, o presente ensaio foi publicado, inicialmente, pela Editora Global, tendo conhecido diversas republicações. Mais tarde, foi relançado, atualizado, na Coleção Polêmica, da Editora Moderna, antes de ser retirado do catálogo, com dezenas de outros títulos, devido à reorientação mercadológica. Segundo explicaram aos autores, era mais interessante economicamente divulgar muito, alguns poucos livros, do que trabalhar pouco, muitos títulos. Com este livro, procuramos realizar uma reportagem sobre os acontecimentos. Discutir alguns pontos e interpretações sobre a rebelião. Ajudar a divulgar um momento de tamanho brilho de nosso passado. Para escrevê-lo, trabalhamos sobretudo com os livros e documentos publicados e com a documentação obtida, no Arquivo da

Marinha, no Rio de Janeiro. Devido às características das coleções propostas defendidas no trabalho apóiam-se essencialmente na doNesse trabalho, desenvolvemos a proposta de que o grande estopim da revolta foi a contradição entre o desenvolvimento sóciotecnológico da nova marinha de guerra e o tratamento semi-servil dos marinheiros. Defendemos a importância que as relações raciais desempenharam, como questão subjacente, no movimento social e popular que eclodiu apenas 21 anos após a Abolição. Abraçamos a 1905, nas jornadas no Brasil, de 1910. A saga dos marinheiros negros e dos fuzileiros navais tem um conteúdo extremamente atual. Diz respeito a uma das mais essenciais questões da sociedade brasileira. A revolta de 1910 não foi apedos setores mais subalternizados da sociedade da época pelo reconhecimento de seus direitos de cidadãos. Mais de cem anos após os fatos, milhões de brasileiros — em boa parte negros, mulatos e pardos como os marujos e fuzileiros navais rebeldes — esperam ainda que seus direitos civis mínimos sejam respeitados. Essa não é uma história ‘imparcial’ dos acontecimentos de 1910. Procuramos relatar os fatos do ponto de vista das classes subalternizadas e, portanto, dos próprios marinheiros e fuzileiros. Isto, sentidos. Em 1910, nas lutas e nas reivindicações dos marinheiros da Armada encontravam-se o fermento de um Brasil mais justo, mais

***

A presente edição reproduz no geral o texto publicado, em 2000, na coleção Polêmica da Editora Moderna. Além de pequenas apoiado essencialmente na documentação apresentada por Henrique Samet, em , de 2011, sem abraçarmos todas as teses desse valioso trabalho. Ao iniciarmos a escrever este texto, tínhamos trinta anos – nada de estranho que nos julgássemos um pouco senhor do tempo! Pensamos diversas vezes procurar a Edmar Morel, para conhecê-lo, pois fortemente responsável por esta aventura e eventualte trabalho – “A Revolta da Chibata faz Cem Anos”, apresentado ao Seminário Internacional “A Revolta da Chibata – 100 anos: história dual do Rio de Janeiro. Os azares da sorte nos permitiram apenas encontrá-lo em seu neto, Marco Morel, a quem dedicamos a presente edição.

1. Brasil, 1910: ricos e pobres num mundo rural

O Brasil vivia um momento particularmente importante quando sua população acompanhou atônita pelos jornais a revolta de novembro de 1910. Vinte dois anos antes, em 1888, concluíra-se a única verdadeira revolução social e econômica vivida pela nação – a abolição da escravatura. O país ultrapassara a produção escravista e organizara-se a partir do trabalho livre. No ano seguinte, em 1889, proclamara-se a República. Na época da revolta dos marinheiros, as primeiras forças da industrialização desenvolviam-se no país. Timidamente, as classes trabalhadoras urbanas ingressavam na arena política e social. O mesmo fazia a classe média, até então com escasso papel social e político. últimos anos do Império. O campo continuava o centro das atividades produtivas. O café era a principal riqueza da nação — ou melhor dito, das classes proprietárias da nação. Para alguns poucos – cafeicultores, exportadores, banqueiros, etc. – ele queria dizer enormes riquezas. Para centenas de milhares de trabalhadores nacionais e sobretudo quando os imigrados superaram as exigências de braços da cafeicultura.

No Brasil, o latifúndio seguia dominando. Principalmente no sul do país, desde 1824, nas terras que não serviam para a grande plantação e criação, minúsculas colônias agrícolas foram doadas e, a seguir, vendidas para imigrantes europeus sem terra. As propostas de reforma legislativa em favor da pequena propriedade tinham sido recebidas com cara amarrada pelos deputados nacionais, representantes dos ricos proprietários de terra. No Brasil, praticamente eram desconhecidos os impostos sobre a propriedade da terra. Em 1910, a população nacional era estimada em 23 milhões de habitantes. Mais ou menos. A população urbana era pequena. Estudo de dez anos mais tarde assinalava que setenta por cento dos habitantes do Brasil viviam no interior, em um universo rural que produzia principalmente para a exportação. Tratava-se de uma realidade muito diferente da atual. Hoje, mais de oitenta por cento dos brasileiros vivem em cidades.

REPROduçãO

Nos campos, fora o açúcar e a carne, pouco se produzia de importância para o mercado interno. Desde inícios do século 19, colonos estrangeiros foram chamados para, entre outras funções, aliviar a carência dos gêneros alimentícios, fundando uma agricultura de pequenos proprietários policultores nas proximidades das capitais.

Fazenda cafeivutora escravista no Rio de Janeiro em meados do século 19.

Porém, a grande criação e a plantação latifundiárias eram o centro das atividades rurais. O café imperava nesse universo rústico. Na segunda metade do século 19, a maior parte das rendas do país provinha das exportada Proclamação da República, devido ao esgotamento da fertilidade das terras do Rio de Janeiro, o coração da produção cafeicultora transferira-se para a província de São Paulo. No início do século 20, outros dois produtos enchiam os cofres dos grandes proprietários, comerciantes e banqueiros — o cacau e a borracha.

Navegando em bons mares Em 1910, a economia exportadora vivia verdadeira euforia. Os velhos e novos ricos não conseguiam esconder os dentes, de tão contentes. O país sentira até 1906 a crise mundial de 1896. Entretanto, naquele então, ela era coisa do passado. As más recordações, que os ventos as levem... O governo praticava a política de sustentação das cotações do café. Ou seja, obtinha empréstimos internacionais e, com eles, comprava, retirava do mercado e estocava grandes quantidades de café. Com isso, os preços subiam. Portanto, tudo corria bem. Ao menos nesses anos ... Não se discutia – ou não se queria discutir – os tristes resultados que essa medida, que incentivava a superprodução no Brasil e no exterior, determinaria ao principal produto do país, a seguir. Os produtores de borracha estavam igualmente eufóricos. A riqueza amazônica dera seus primeiros passos no mercado internacional no distante ano de 1827. Mais tarde, o seu consumo explodira quando a borracha começara a ser usada nas rodas dos automóveis. Em 1910, os produtores brasileiros controlavam setenta e cinco por cento do mercado internacional. Na época, pagavam-se altos preços pela tonelada de borracha, nas bolsas de valores. A valiosa mercadoria representava quase trinta por cento das exportações brasileiras. O cacau era fonte de alegrias para os grandes produtores baianos. Eles dominavam o mercado nacional e não conheciam — ainda

— sérios concorrentes no exterior. Melhor ainda, a produção do Brasil e mundial não cobria a crescente demanda do mercado internaOs bons ventos econômicos não escondiam o atraso e as limitações da organização econômica, social e política do país, em relação ao coração do mundo de então. Mesmo independente, o Brasil seguia sendo uma nação semicolonial. Os bancos eram raros. O capital limitavam-se aos produtos primários. A indústria engatinhava no país, centralizada no Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e em alguns outros estados. A maior parte dos manufaturados consumidos vinha, a elevados preços, da Europa e dos Estados Unidos. As rendas do país produzidas duramente por milhões de trabalhadores rurais escorriam por entre os dedos esbanjadores das classes proprietárias para terminarem fortemente no exterior. No mundo rural e nas cidades, a maior parte da população capitais, o abastecimento de água e os serviços de esgoto pluvial e cloacal eram escassos, restrito comumente às regiões centrais. As moradias e as condições sanitárias da população eram precárias. Isso não impedia que os grandes proprietários vivessem, no campo e nas cidades, em micromundos dourados, como em um conto de fadas que acreditavam ser eterno e imutável. A grande maioria dos trabalhadores vivia nos campos, em milhares de fazendas e centros produtores de café, de açúcar, de borracha, de cacau, de algodão, de couro, de fumo, de charque, etc. Os trabalhadores rurais do país não eram uma força social homogênea e organizada. Viviam isolados pela distância e, sobretudo, por diferentes formas de produção. Eram assalariados, moradores, colonos, parceiros, meeiros, agregados. Eram separados igualmente por diferenças culturais, étnicas e linguísticas. Havia trabalhadores afro-brasileiros, caboclos, portugueses, espanhóis, alemães, italianos ... Não contrário das classes dominantes.

Primeiros passos O proletariado acabara de nascer como classe social estruturada. Em uma população de uns 23 milhões de habitantes, os trabalhadores fabris não ultrapassariam os 160 mil. Nem mesmo um por cento! E também eles encontravam-se relativamente dispersos. No Nordeste, os principais centros industriais, muito raquíticos, eram a Bahia e Pernambuco; no Centro-Sul, o Rio de Janeiro e São Paulo; no Sul, o Rio Grande do Sul. Mesmo nos diversos Estados, podia ser grande a dispersão da produção fabril. No Rio Grande do Sul, os pólos operários localizavam-se na grande Porto Alegre, em Pelotas, em Rio Grande e em Caxias. Esse primeiro momento da industrialização apoiou-se na produção de bens de consumo não duráveis — tecidos, alimentos, móveis, materiais de construção, etc. O elevado custo do transporte, as taxas interestaduais sobre a circulação de mercadorias e a baixa acumulação de capitais eram responsáveis pela dispersão da nascente indústria do país. O Rio constituía o principal núcleo urbano do Brasil, com aproximadamente um milhão de habitantes. Era uma das maiores cidades das Américas. Na época, possuía o décimo-quinto porto mundial, quanto ao movimento de carga e de passageiros.

século 20.

No Rio de Janeiro, em geral, os trabalhadores urbanos fabris eram estrangeiros — portugueses, espanhóis, italianos, etc. Em 1900, mais de 210 mil não-brasileiros viviam na capital da República. O estrangeiro era valorizado

discriminados quando da contratação. Eles e seus descendentes trabalhavam nas tarefas mais ingratas, entre as quais se encontravam a carga e a descarga de mercadorias no porto. Era comum que operários de diferentes nacionalidades — sobretudo brasileiros e portugueses — entrassem em confronto. elevados, a produção fabril e manufatureira produzia para os limitados mercados locais. Por isso, a indústria carioca privilegiava-se do seu relativamente amplo mercado regional. Entretanto, mesmo no Rio de Janeiro, eram poucas as grandes usinas, trabalhando com centenas de operários. Fora exceções, as fábricas pequenas dominavam. Elas produziam sobretudo materiais de construção, vestuário, alimentos, tecidos, móveis, etc. As condições de trabalho eram duras e os salários miseráveis. Homens, mulheres e crianças trabalhavam até dezoito horas diárias, sem repouso semanal remunerado. As jornadas das mulheres e das crianças eram comumente mais longas do que a dos operários adultos do sexo masculino. Os mais frágeis são sempre os mais explorados. Mulheres e crianças limpavam os locais de trabalho, após a longa jornada diária tida como normal. Crianças eram obrigadas a limpar, com as pequeninas e ágeis mãozinhas, máquinas em funcionamento. Acidentes mortais e amputações eram comuns e não se indenizavam os acidentados. Operários trabalhavam aos domingos e dormiam nos locais de trabalho. Nenhuma legislação social limitava a exploração. Os patrões e os mestres ditavam o horário, as condições e a remuneração do trabalhadoras. Na Estrada de Ferro Central do Brasil e em outras empresas, os operários faltosos eram encarcerados em prisões privadas. Os patrões confeccionavam listas negras de trabalhadores comem outras empresas. A polícia era utilizada para acabar com a reespias, alcaguetes e capoeiristas a serviço da polícia pululavam no Rio de Janeiro. A questão social era tida como um caso policial. Como os antigos proprietários de cativos, o nas-

cente empresariado considerava que o trabalho de seus operários fosse um dever e a remuneração, um privilégio. Uma ideia que segue profundamente enraizada na consciência dos empresários brasileiros contemporâneos.

Trabalhadores paulistas nas indústrias Matarazzo, no início do século 20.

Sem deus, sem pátria, sem patrões balhadores fundaram as primeiras organizações sindicais e políticas no Brasil. Inicialmente, surgiram as associações dedicadas ao mútuo -auxílio — em caso de doença, de desemprego, de acidentes, de morte, etc. Elas absorveram algumas funções assistenciais das antigas rio. No início do século 20, os anarquistas e anarco-sindicalistas conmédias manufaturas — facilitava as propostas individualistas. Os anarquistas chamavam os trabalhadores a se mobilizarem contra a religião, contra o Estado e contra o capital. Eles propunham uma sociedade libertária, sem Estado e sem governo, baseada na solidariedade dos trabalhadores independentes. Na Europa, com o desenvolvimento da industrialização e das organizações sindicais,

parte do movimento evoluiu de posições anarco-individualistas para anarco-sindicalistas. nheiros, evoluiu-se para a ação realizada no interior ou com o apoio sindicalistas defendiam a organização dos operários em sindicatos revolucionários. Esses últimos derrotariam o governo do capital e A ordem nova – a Anarquia – nasceria da colaboração dos diversos sindicatos confederados. Os anarco-sindicalistas dominavam o movimento operário do Rio de Janeiro, nos primeiros anos do século 20. Eles declaravam-se materialistas, deterministas e ateus e desenvolviam uma ativa propaganda contra o militarismo, contra a religião e contra qualquer não deixava espaço de representação ou expressão para as classes populares. Eles lutavam intensamente pela auto-educação operária. Mais tarde, após a vitória da Revolução Russa, em 1917, seus principais militantes participaram da organização do Partido Comunista do Brasil, em 1922, carregando consigo para a nova organização suas antigas concepções. Em 1906, no Rio de Janeiro, realizou-se o 1° Congresso Operário Brasileiro. Apesar do nome pomposo, tratava-se da reunião de alguns representantes de outros Estados da federação de, no geral, pequenas associações de chapeleiros, de marmoristas, de carpinteiros, de pedreiros, de ladrilheiros, de pintores, de sapateiros, etc. As teses anarco-sindicalistas dominaram o congresso. Na ocareivindicação operária do país. Nesses anos, existia no Brasil uma boa quantidade de jornais operários, de tendência anarquista, sobretudo – Folha do Povo, Germinal, A vida, La Lotta Proletaria, Il Meridionale, Ecos da Caserna, A Liberdade, O Lutador, A Voz do Povo, A Voz do Trabalhador, Il Ribelle, etc. Parte dessa literatura operária, de publicação intermitente, de vida breve e de escassa tiragem, era es-

crita em alemão, espanhol e italiano.

Periódico anarquista do Rio de Janeiro de 1914.

O ativismo sindical, a imprensa operária e a importante reunião sindical de 1906 não nos devem iludir. No Brasil, a produção rural dominava soberana e em nenhum momento as classes dominantes perderam o controle da situação social e política. Em breve, a repressão abateriase duramente sobre o ativismo operário, com a prisão, expulsão e morte de militantes, fechamento de jornais, etc. Em verdade, num Brasil rural, apenas se insinuava, lentamente, um apêndice fabril urbano. Em 1910, no momento da rebelião dos marinheiros, o movimento operário organizado apenas se recuperava da dura repressão que acabara de viver.

Crime e vagabundagem operários viviam em bairros populares, entre uma grande multidão de citadinos que vegetava à margem das atividades produtivas. Esses populares eram descendentes de cativos, de libertos, de homens livres, mas pobres, do Império; de imigrantes que fracassaram na aventura americana. Vastos setores urbanos de origem humilde — desorganizados pela ideologia escravista que tinha horror ao trabalho manual; barrados no acesso à pequena propriedade; incapazes de se inserir no reduzido mercado de trabalho — ocupavam-se em uma economia de subsistência ou sobreviviam na ilegalidade e na vagabundagem. Entretanto, não eram marginais. Eram apenas po-

pulares, dos dois sexos, marginalizados por uma ordem social que se despreocupava e se locupletava com a triste sorte de setores sociais tidos como inferiores, moral e racialmente. O Rio de Janeiro possuía uma grande população urbana que vivia precariamente, nos poros de uma sociedade de classe que se dedores ambulantes, as prostitutas, os funileiros, os capoeiristas, os amoladores de tesouras, os assaltantes, os compradores de garrafas vazias, os empurradores de cargas, os ciganos, etc. Os trabalhadores fabris temiam perder seus empregos e terminar fazendo parte da massa de desocupados, mobilizada com facilidade contra a própria classe operária. Os dedos-duros, os policiais subalternos ou, simplesmente, os fura-greves eram recrutados entre essa população Até o começo do século, a frágil classe média vivera à margem das decisões políticas e sociais. Porém, na época da revolta dos marinheiros, ela se fortalecera, relativamente, e se encontrava no Exércomércio, entre o clero. Entretanto, continuavam limitadas as possibilidades de progresso dos setores sociais intermediários. Fora um podia sonhar com uma real ascensão social. Os segmentos médios rava das classes operárias e marginalizadas, a quem votavam despredas instituições republicanas – as classes intermediárias passaram a desempenhar um papel político, digno do nome, no cenário nacional. grandes proprietários agrários, principalmente os plantadores de café, de açúcar, etc., encontravam-se no topo da pirâmide social. Eles dominavam o poder político da nação, desde o período presidencial de Prudente de Morais (1894-98). Efetivamente, a República pusera o poder político e social dos Estados para as suas respectivas oligarquias rurais. Após a conclusão do governo dos dois primeiros pre-

sidentes militares, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, as oligarquias do Centro-Sul apoderaram-se plenamente do governo do país, nos marcos da dispersão federalista do poder. Em 1910, os grandes proprietários agrários controlavam a nação. Subordinados e associados a eles, encontrades comerciantes, os nascentes industrialistas. Todo um mundo que resplandecia, com seus protagonistas pavoneando-se nos restaurantes, palacetes privados, jóqueis-clube, teatros, cassinos, cabarés, nas ruas e praças centrais das capitais, que lhes eram praticamente reservadas. Porém, esse

Industriais brasileiros no começo do século 20.

vam a vida política das próprias classes proprietárias do país. Divergência que contribuíram fortemente para a gênese do movimento dos marinheiros de 1910.

2. A campanha civilista e a divisão das classes governantes Devemos compreender a revolta dos marinheiros no contexto político da época. Em novembro de 1910, quando teve início a rebelião, o presidente Hermes da Fonseca acabava de assumir o governo. presidencial que dividira o país em hermistas e civilistas. Como nos pleitos anteriores, a disputa eleitoral dera-se entre os setores da oligarquia agrária nacional. Porém, desta vez, a campanha eleitoral despertara o interesse da população comum.

Gabinete de Afonso Pena. Em pé (esq. p/ dir.): Alexandrino de Alencar, Hermes da Fonseca e Tavares de Lira. Sentados (no mesmo sentido): david

Rodrigues Alves (1902-06) elegera-se com o apoio das oligarquias de três dos principais estados da federação — São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Apesar de a economia viver uma boa fase, seu governo fora agitado. -

mes as rédeas do poder, apesar de diversos sobressaltos. Uma das tubro de 1904, contra a vacina obrigatória, no Rio de Janeiro. A Revolta da Vacina registrou a oposição da população da capital da República contra medidas sanitárias e urbanísticas impostas, de cima para baixo, apoiadas na autoridade e na violência, sem ampla modernização do centro da capital. Para tal, expulsara, sem cerimônias, para a periferia, os humildes habitantes dos velhos sobrados decrépitos das estreitas ruas do centro da capital. Sem misericórdia, as antigas residências coloniais foram abatidas para dar lugar a pretensiosas avenidas traçadas segundo o modelo urbanístico racionalista europeu. O paulista Rodrigues Alves tivera como sucessor o mineiro Afonso Pena (1906-09). Ele representava as mesmas forças oligárquicas dominantes. Portanto, prosseguiu apoiando a política de valorização do café e de depreciação do valor da moeda nacional, em relação às moedas fortes internacionais – sobretudo a libra inglesa. A política de desvalorização da moeda brasileira encarecia as importações e o custo de vida da população — mas favorecia os plantadores e exportadores de café, pagos em moeda forte. A política nacional seguia seu curso normal: os grandes proprietários governavam o país, segundo seus interesses, sem a intervenção perturbadora das classes populares, mantidas à margem pela própria legislação eleitoral. Porém, houve uma pequena tempestade, neste céu quase sereno. O presidente Afonso Pena teimou em fazer seu sucessor. O que era malvisto pelos grupos oligárquicos estaduais. Essa decisão, caso fosse concretizada, fortaleceria o regime presidencialista e debilitaria o federalismo oligárquico estadual. O candidato de Afonso Pena era David Campista. Apesar das manobras do presidente em seu favor, ele terminou isolado, sem o estrondoso fracasso da candidatura de Campista permitiu o fortalecimento da candidatura de Hermes da Fonseca.

O marechal e a águia O marechal sul-rio-grandense alcançara algum prestígio como Ministro da Guerra do governo de Rodrigues Alves. Ele reformara o civilista e legalista. Nessa época, militares sonhavam ainda com a volta dos tempos da ditadura presidencialista de Floriano Peixoto (1891-1894), o Marechal de Ferro. O ministro Hermes da Fonseca soubera conquistar o Nenhuma grande força política civil participou inicialmente do lançamento de Hermes da Fonseca à presidência. Os principais inteos tempos de Floriano Peixoto. O Partido Republicano Paulista — representante da cafeicultura paulista — via com maus olhos uma candidatura que podia arrancar-lhe o governo das mãos. A candidatura de David Campista foi retirada. A desfeita ao seu candidato teria acelerado a morte do presidente Afonso Pena, já doPeçanha (1909-10). Ele era pró-marechal. A candidatura de Hermes da Fonseca recebeu outro forte apoio: o do político republicano Pinheiro Machado, que arrastava atrás de si os estados do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Pernambuco. O senador sul-rio-grandense seria o homem forte do governo de Hermes da Fonseca. Os oligarcas oligarquias do Rio Grande e de Minas Gerais, dois poderosos estados. Os paulistas contra-atacaram com o lançamento da candidatura de Rui Barbosa à presidência. O político baiano era homem público de prestígio. Ele fora ministro do primeiro governo republicano e sonhava, havia muito, com a magistratura suprema da nação. Rui Império, o poder político da Bahia — um dos Estados mais populosos da federação — decaíra com a profunda crise econômica que vivia. Apenas a boa situação das exportações do cacau diminuía a regressão baiana. Não havia diferenças sociais ou políticas profundas entre as

duas candidaturas. Ambas representavam os setores agrários e oligárquicos dominantes. Porém, Rui Barbosa era um político mais abrangente do que o Marechal. Era um intelectual de valor, reconhecido nacionalmente. Após sua atuação como delegado brasileiro na importante reunião diplomática internacional de Haia, na Holanda, em 1908, seu prestígio ultrapassara as fronteiras brasileiras. Rui Barbosa era mais sensível aos nascentes interesses industrialistas e urbanos. Sua desastrada atuação no ministério das Finanças — o encilhamento —, quando a República conheceu seu primeiro grande devera-se em boa parte a sua vontade de apoiar a nascente produção fabril nacional. Rui Barbosa fora, nos últimos anos da monarquia, um consequente abolicionista, amigo e companheiro de lutas do poeta baiano para terminar seus estudos universitários e estabelecer-se como advogado. Ele estava em melhores condições do que o marechal para interpretar o ainda difuso desgosto das classes médias e dos setores populares urbanos com a situação política, econômica e social do país.

Despertando esperanças Os setores oligárquicos que apoiaram Rui Barbosa imprimio senador baiano como o candidato “civilista” contra o perigo “militarista”. Propuseram a revisão da Constituição. A diminuição do po-

der das oligarquias. A reforma da Justiça. O apoio à educação. Uma reforma eleitoral. O voto secreto. A estabilidade cambial. O incentivo tico bem mais avançado do que o defendido pelo marechal Hermes da Fonseca. A campanha civilista invadiu as praças das grandes cidades. A populosa cidade do Rio de Janeiro foi o principal palco do combate entre civilistas e militaristas. A fratura política transitória entre as classes dominantes determinara que a candidatura mais frágil tentasse conquistar o apoio da opinião pública, como instrumento de pressão política. De certo modo, a política do país deixava de ser um assunto apenas das classes oligárquicas e envolvia a população. O que era perigoso. critor mulato Lima Barreto, sentiu-se na obrigação de expressar, em carta aberta, sob o pseudônimo de seu personagem Isaías Caminha, sua adesão à candidatura de Rui Barbosa e sua oposição ao militarismo representado pelo marechal Hermes da Fonseca. Em 1917, o As condições de vida e de trabalho dos soldados e dos marinheiros eram péssimas. Uma das principais reivindicações do nascente movimento operário era a extinção do “serviço militar obrigatório”. Em todo o Brasil, o alistamento militar para as forças de primeira linha era usado contra os inimigos políticos do governo. Rui Barbosa acolheu parcialmente as reivindicações dos setores subalternos das forças armadas ao lembrar, durante a sua campanha, a necessidade urgente de melhorar as condições de vida e de trabalho no Exército — melhores salários, treinamento, escola. Foram feitas promessas aos marinheiros da armada nacional. puta eleitoral. Não contava com a simpatia popular, mas contava com o apoio das oligarquias de mais Estados e do presidente em exercício, o que era essencial. O voto popular valia pouco nos pleitos e nas decisões políticas da República Velha. Em uma época em que não existia a Justiça eleitoral, o “voto de cabestro” apenas registrava a vontade das oligarquias mais podero-

sas nos locais de votação. Nas fazendas e cidadezinhas do interior era normal que trabalhadores, dependentes, agregados e parentes votassem nos candidatos dos grandes proprietários. Contara na disputa o fato de que, para as classes dominantes, o marechal Hermes da Fonseca, sob a direção do caudilho Pinheiro Machado, era um pociais no cenário oligárquico. Para os políticos e para os grupos políticos e econômicos que apoiavam a candidatura civilista, as críticas ao “militarismo” e à “oligarquia” eram parte do jogo eleitoral. Os políticos derrotados não tinham divergências essenciais com os vencedores. Não havia barreira intransponível entre vencedores e vencidos. Outras batalhas ocorreriam, com diferentes combinações políticas. Os inimigos de Marechal ou Águia de Haia, no governo, tudo continuaria — como dizia a população — “como dantes, no quartel de Abrantes”. O debate político e a demagogia civilista tinham agitado a polevantadas e as promessas feitas. Para os marinheiros da Armada, submetidos a desumanas condições de existência, o discurso antimilitarista tinha um sentido real — não eram palavras retóricas. As denúncias reforçaram a certeza na justiça de suas reivindicações. A divisão nas alturas, quando da disputa eleitoral, permitiu que os marinheiros levantassem, mais facilmente, a cabeça, nos porões da sociedade. diretamente dos acontecimentos de 1910. Mais tarde, em 1949, ele escreveria relato parcial sobre os combates, onde reconhece os efeitos da campanha civilista sobre a maruja brasileira: “[...] a grande agitação causada por essa campanha, das que mais exaltaram os ânimos em nosso país e que teve também sua dose de responsabilidade nas tristes ocorrências de 1910. Dividida a Nação em pró e contra militares, foram assacadas [lançadas] contra estes todas as torpezas possíveis, isso trouxe bastante abalo à disciplina [...].” A campanha civilista não criou a revolta de 1910. Porém, deulhe um bom empurrão. Outro acontecimento contribuiu determinan-

temente para a gênese do movimento – a importante modernização da armada brasileira, decidida em 1906. Ela tornaria ainda mais insustentáveis as condições de existência vividas pelos marinheiros da Armada. Nos três próximos capítulos, veremos, com mais detalhes, como eram as condições de vida dos marinheiros na época da revolta

3. A triste vida dos marinheiros da armada do Brasil Dezesseis de novembro de 1910. Os clarins e os tambores do encouraçado Minas Gerais, fundeado na baía de Guanabara, execuconvés do gigantesco navio. Os marinheiros vestem as fardas de ceconvés. Toca-se a ordem de sentido e ele é saudado como mandam as ordenanças. O cerimonial parece fazer parte de um dia de festa, na poderosa nave. Porém, não se trata disto. Mas sim do castigo do marinheiro baiano Marcelino Rodrigues de Menezes, condenado a 250 chicotadas. A cerimônia prossegue. O comandante Batista das Neves manda ler o trecho do regulamento da “Companhia Correcional” que permite, 22 anos após a Abolição, o açoite de marinheiros. A seguir, declama-se em voz alta a falta de Marcelino, registrada no Livro de Castigo do encouraçado. Ele tinha ferido com uma navalha de barbear, levemen-

te, o cabo Valdemar Rodrigues de Sousa, na madrugada de 11 de novembro. Valdemar denunciara Marcelino quando procurava introduzir no navio duas garrafas de aguardente. O cabo Valdemar era um Termina a leitura. O comandante Batista das Neves, tido como furioso chibateador, avança e faz breve discurso. Com a voz dura, fala de ordem, de disciplina, de hierarquia. Um médico examina Marcelimente apto para o suplício. Armado com a temida chibata, o executor encontra-se diante do marinheiro, que tem as mãos amarradas. Inicia-se o castigo. Faz um dia esplendoroso. Em 1910, o encouraçado Minas Gerais – que recém-chegara nome de dois: um tal de Alípio e o Luiz Apicuim. Na execução do castigo, chegariam a requintes de sadismo. Alípio atravessava uma corda de linho com agulhas de aço. Colocava-a na água e deixava que inchasse. Feito isso, e mal aparecendo as pontinhas, servia-se dela como chicote. Quando bem dada, a chibatada enrolava-se no corpo, cortando as costas e o peito. Tradicionalmente, o chicoteador batia e um marinheiro contava, em voz alta, os golpes. Comumente, os supliciados desmaiavam de dor. Só contavam as pancadas bem dadas, enquanto o miserável estivesse em pé. Pelo menos um marinheiro teria sido golpeado até a morte. Os primeiros golpes são dados. Imóvel, a tripulação do navio reage sem se mover, como uma tensa corda de violino. Os marujos sentem em suas costas cada chicotada que fere o companheiro. É marinheiros. Tudo recorda os macabros tempos da escravidão. Na grande maioria, os marujos são negros, mulatos, caboclos. Eram tratados como seus pais, como seus avós! Como cativo fujão! Como cidido! – pensavam os que sabiam da revolta planejada. Marcelino cretamente os olhos da cena. Dilacerada, a maruja assiste ao castigo até o último golpe.

Minas Gerais, um dos mais poderosos encouraçados da sua época.

Na noite do mesmo dia, nos porões do Minas Gerais, entre as estreitas redes, alguns marujos sussurram e deliberam sobre uma data. Será o dia 22 e não mais o 24, como anteriormente marcado. Não se referiam a uma festa, a um carteado, a um batuque, a uma roda de capoeira. No dia 22, os marinheiros tomariam em suas mãos o controle da armada brasileira, na época, uma das mais poderosas armas navais do globo. Então, exigiriam tratamento digno e humano. Finalmente, seriam cidadãos republicanos. E se suas razões não fossem escutadas, falariam os canhões!

Poucos Voluntários Segundo a Constituição republicana, as necessidades de homens do Exército e da Armada deviam ser supridas com voluntários. O parágrafo quarto do artigo 87 da Constituição determinava: “O Exército e a Armada” seriam formados “pelo voluntariado sem prêpreviamente organizado”. No meio século que antecedeu a Abolição, talvez apenas uns sete por cento dos marinheiros da armada teriam sido voluntários, sendo os restantes recrutados forçadamente! Em 1910, como no passado, as condições de vida e de traba-

lho dos marinheiros eram degradantes. Participar como marujo na marinha de guerra era um quase castigo. Os vencimentos eram péssimos. A comida era ruim. Era comum que carne podre fosse servida como refeição. O trabalho era pesado. Para manter uma disciplina preende-se por que motivo os voluntários fossem raros. Os quadros subalternos da Armada eram completados – semicompulsoriamente – com os setores mais desprotegidos da popucomo rebeldes, os quase miseráveis eram enviados para os barcos mada, realizava-se o “sorteio”. Folga dizer que o “destino” apontava sempre os que não possuíam protetores ou posses e jamais os protegidos dos “coronéis” da República. Logicamente estavam isentos, por lei, do sorteio os bacharéis, os padres, os caixeiros, os proprietários agrícolas, etc. As Escolas de Aprendizes de Marinheiros fundadas a partir dos anos 1840, destinadas a meninos e jovens de 10 a 17 anos, não constituíam exceções. Era sobretudo a polícia que se encarregava de provê-las de alunos, com adolescentes pobres aprisionados, com órfãos lhos para a Nação, prática conforme à tradição escravista. As escolas eram utilizadas habitualmente como instituições disciplinadoras da adolescência e da juventude tidas como rebeldes. Entretanto, elas não honravam o nome de escola, já que pouco ensinavam aos seus alunos, que saíam delas, quase sempre analfabetos, Se fosse necessário, alunos ainda quase crianças eram arrancados

Em 1890, em resposta ao requerimento de uma mãe que pedia para a Escola de Aprendizes de Marinheiro, o chefe do Estado Maior da Armada orientou o comandante da Escola que não o entregasse,

para a perdição” do menino já que, junto à mãe pobre, ele “inevitavelmente” iria “aumentar o número de vagabundos da rua”. Não raro, durante a guerra contra o Paraguai, cativos foram comprados e alforriados pelo Estado para serem alistados na Armatários para integrarem como voluntários a marinha de guerra. Os responsáveis pelo alistamento despreocupavam-se comumente com a origem desses raros voluntários, mesmo quando chegavam com os pés descalços e as costas lanhadas pelo castigo! Quando reclamados pelos escravizadores, eram devolvidos, não raro, após alguma resistência. Após a Abolição, recém-emancipados e descendentes de cativos foram alistados, à força, no Exército e na Armada, para não Assim, as necessidades de recrutas eram supridas e controlava-se parcialmente população que as classes dominantes olhavam com nha um sentido social saneador. Não raro, sobretudo no Império, as tripulações eram completadas, à força, a toque de caixa, com membros das tripulações dos barcos mercantes, que eram literalmente invadidos, antes que os navios de guerra partissem. Desde a Independência, sobretudo na Corte, à noite, patrulhas militares invadiam as tavernas, os prostíbulos e percorriam as ruas desertas à caça de futuros marinheiros. A marinha de guerra era igualmente uma das poucas possimentados, recebiam um soldo, tinham possibilidade de pequena progressão social. Devido a isso, em 1910, em grande maioria, os marinheiros eram homens negros, mulatos, caboclos e mestiços. Seapenas dez por cento dos marinheiros eram brancos. Não era diferente entre os fuzileiros navais. O povo negro trabalhador era – ontem como hoje – o grupo social mais marginalizado do Brasil. O ministro da Marinha, vice-almirante Joaquim Marques Batista de Leão, no relatório que apresentou ao presidente da República, em 1911, sobre a revolta do ano anterior, comentava sobre os

métodos autoritários de recrutamento: “Ainda existem várias gerações contemporâneas do recrutamento imperial e que podem dar testemunho dos recursos então usados para a composição de nossas mento forçado.” Não se referia ao fato que aquela realidade não se dadeira via-crúcis. Inicialmente, os recrutas eram enviados para o Corpo de Marinheiros Nacionais, na ilha de Villegaignon, no Rio de me médico sumário e eram fardados, antes de serem distribuídos através dos quartéis e dos navios da Armada, ao longo do litoral. O diversões – tudo pesava sobre o cotidiano triste do marinheiro. Os navios não possuíam dormitórios e refeitórios para os inferiores, que repousavam em redes estreitas estendidas nos porões igualmente, nos dias de maior calor. A comida era rústica e, muitas vezes, racionada, não raro, devido ao conluio entre os fornecedores do navio, embarque e desembarque de apetrechos e mantimentos, alimentação das caldeiras, treinamento, etc. E não havia perspectiva de alívio próximo. O jovem inscrito na Escola de Aprendizes de Marinheiro devia permanecer na Armada por quinze anos! O recrutado à força, ao contrário, era um felizardo – ele abandonava o serviço após apenas 12 anos. Aquele que tivesse se inscrito como voluntário, devia penar não mais do que nove anos. E, durante este período, ao marujo não era permitido casar-se. Os marinheiros realistados obtinham direito de reformar-se, com a metade do soldo, ao cumprirem 16 anos de serviço. Porém, o tempo transcorrido na Escola de Aprendizes, sob tratamento médico ou vivido em serviço baixo punição não era computado. A esperança de vida média da população brasileira, com destaque para os segmentos populares, era, então muito baixa. A disciplina despótica e as punições corporais degradantes tornavam a vida dos marinheiros ainda mais execrável. O chico-

blica – por decreto de 16 de novembro de 1889. Foram considerados, pelos políticos republicanos recém chegados ao poder, fortemente prias à escravidão e aos tempos medievais. Com a República, todos seriam cidadãos! As novas classes políticas governamentais republicanas rompiam, no papel, com os tristes tempos da monarquia escravista. O decreto determinava claramente a abolição na “Armada” do “castigo corporal” e diminuía o tempo mínimo de trabalho para nove anos “para os recrutados e para os procedentes das escolas de Aprendizes de Marinheiros”. As decisões reformistas foram acolhidas com grande alegria pelos marinheiros, já que satisfaziam velhas reivindicações dos porões da marinha de guerra. Em alguns navios, elas foram aclamadas pelas tripulações. As medidas pretendiam certamente favorecer a adesão dos marinheiros à República, já que na arma era fortíssima a simpatia cia que as medidas eram prêmio do “patriotismo e disciplina com que se houveram as praças da Armada que cooperaram no movimento nacional que deu em resultado a proclamação” da República.

Como bons pais A chibata, que fora expulsa pela porta, ao som das fanfarras, voltou pela janela, silenciosamente. Consolidado minimamente o o decreto n.° 328, de 12 de abril de 1890, criou uma “Companhia Correcional”, na qual eram enquadrados os marinheiros condenados por faltas disciplinares tidas como graves. O decreto levava a assinatura de Rui Barbosa. Os enquadrados na Companhia Correcional tinham uma letra “C” vermelha costurada à manga da farda e eram destinados aos trabalhos mais duros e ingratos. O Regimento da Companhia determinava como castigos possíveis a perda de regalias – licença, vinho,

aguardente, etc. –, a redução de vencimentos, o rebaixamento de grau, a perda de tempo de serviço, a prisão, os ferros, a solitária a pão e água e ... a chibata. por dia. Porém, castigos maiores eram deixados ao “prudente arbítrio do comandante”. A prudência não seria a principal qualidade dos senhores comandantes. Castigos acima de duzentos golpes, ministrados sem interrupções, eram comuns. Ia-se além do que permitira a legislação durante o cativeiro, de cinqüenta golpes diários, com pausa ao domingo. Octávio Brandão, em seu romance histórico, O caminho, fala de um marinheiro cearense, Francisco Chagas Lima, do cruzador Tamandaré. Ele teria sido condenado a setecentas chicotadas. Segundo o mesmo autor, Antônio Vicente Traipu, também cearense, do Batalhão Naval, fora condenado a novecentos golpes e surrado até a morte. tados por Octávio Brandão. O historiador Álvaro Pereira do Nascimento lembra o suplício do marinheiro Laurentino Manoel da Silva, do encouraçado Bahia, castigado, em 1873, com quinhentos açoites, ininterruptos, por haver “trocado tapas, socos, pontapés e xingamentos com a sentinela”. O mesmo autor assinala o caso do marinheiro rebelde Afonso Rodrigues de Oliveira, que, nos anos 1890, teve anotada em sua Caderneta do Livro de Socorros – espécie de folha corrida funcional do marinheiro – uma série impressionante de castigos: surpreendido dormindo no plantão, 25; ao insultar o comandante da guarda, 25; por ter abandonado o plantão e atirado o saco de roupas de colega ao mar, 50, etc. Esses foram alguns cebidos pelo marinheiro. dir, discricionariamente, sobre o número de chicotadas, enquanto o marinheiro era castigado. Se ele era de forte constituição e destemiou desmaiasse. O fundamental era vergar e humilhar o marinheiro -

plicou da seguinte forma o bárbaro castigo: “[...] vendo porém o pouco efeito que no delinquente [sic] fazia o castigo, fui forçado a fazê-lo continuar até chegar ao número de quinhentas pancadas de chibata.” O caminho, Octávio Brandão fala da “grunilha” – uma tábua com um buraco, onde era metido o pescoço da vítima. Havia também as palmatórias, com seus diversos bolos, ministradas nas mãos, nos pés e nas nádegas dos marinheiros, que tantos bons serviços haviam prestado aos proprietários na escravidão. Os “ferros” eram outra herança dos tempos do cativeiro. Eles imobilizavam os marinheiros pelos pés. A “sueca” – a ginástica executada até o quase desfalecimento –, era exercício considerado como verdadeira semitortura, particularmente odiada pelos marinheiros e fuzileiros navais. inferiores. Os marinheiros eram proibidos de olharem “de cabeça erguida para seus superiores”. Quando da escravidão, os cativos tamnha de guerra, ainda que a chibata não existisse como instituição no Exército: “Elas são requintadas: surras com ‘espadas sem corte’ ou com ‘palmatórias’; o ‘marche-marche’; as ‘solitárias’. As surras com quer superior: a tropa se reúne, o culpado no centro; dois soldados, nu, enquanto a banda toca músicas alegres para abafar os gemidos. As feridas sangram, o soldado desmaia; o médico toma-lhe o pulso e, mesmo estando ele inconsciente, manda que continuem o castigo.” Na guerra do Paraguai, praças receberam mais de mil golpes de espada de lâmina cega, em forma de execução disfarçada, praticada

Tronco de ferro usado durante a escravidão, semeljante aos utilizados pela Armada.

pelo Imperador. O “marche-marche” consistia em “punir o soldado faltoso duas vezes por dia: equipado com sua mochila pesando tinta quilos, ele marcha cinquenta metros e recebe ordem para voltar aceleradamente ao ponto de partida; isso se repete durante duas horas ininterruppor exaustão, quando então é levado para a solitária.” Também no

Tal era a situação vivida na Marinha que, entre 1836 e 1884, mais de 6.500 marujos desertaram do Corpo de Imperiais Marinheiros, sendo que apenas pouco mais de três mil foram capturados ou apresentaram-se voluntariamente. Ao igual que nos idos da escravidão, os marinheiros acreditavam como os cativos que, se “deus era grande, o mato era maior”!

4. Modernização e anacronismo na armada As concepções despóticas das classes governamentais e dopéssimas condições de vida dos marinheiros, nos inícios do século 20. As contradições estabelecidas entre um corpo de marinheiros que se modernizara, como veremos, sem uma consequente evolução do tratamento que recebia, tornaram quase inevitáveis os confronzes profundas no passado do país. As forças armadas reproduzem e exacerbam as diferenças sociais das comunidades das quais fazem parte. Em geral, as conquistas civis e democráticas alcançadas são absorvidas, lenta e parcialmente, pelos corpos militares, instituições de defesa das formas de dominação. Ainda hoje, raras forças armadas no mundo permitem que rio, os avanços tecnológicos são incorporados aceleradamente pelos exércitos, não raro antecedendo sua implantação na sociedade civil. Esses fenômenos eram ainda mais fortes nas armadas. Como instituição singular separada a sociedade, a marinha de guerra surgiu no mar Mediterrâneo, na Antiguidade escravista. Devido ao desprezo das classes escravistas pelo trabalho manual – fenômeno comum às sociedades baseadas no trabalho feitorizado –, a manobra e a manutenção dos navios eram comumente efetuadas por

cativos e criminosos acorrentados, condenados “às galeras”. Remar até a morte nas galeras de guerra era um dos castigos mais temidos da Antiguidade. diterrâneo consideravam-se totalmente estranhos e superiores aos miseráveis responsáveis pelos trabalhos pesados. Esses últimos deviam ser controlados, para que não se revoltarem, durante os come o terror. Eles eram tidos como espécie de inimigos embarcados. A marinha de guerra do Brasil nasceu com a Independência, herdeira da mesma arma portuguesa, e não cessou de desenvolverse durante o Império. Era grande a extensão territorial da nova nafoi sempre um valioso instrumento do governo imperial na repressão das revoltas liberais e na luta contra os movimentos separatistas e insurgentes – Confederação do Equador, Farroupilha, Cabanagem, Cabanada, Balaiada, etc. O Império serviu-se habitualmente da Armada na sua política intervencionista no Plata, com destaque para a guerra contra o Paraguai, onde, mesmo conhecendo impressionante aparelhamento, com destaque para os encouraçados, necessários para a ultrapassagem do forte de Humaitá, demonstrou muito baixo desempenho. Durancomo marujos.

Ventos e velas Nos primeiros tempos, a marinha de guerra imperial era formada por fragatas, corvetas, brigues-escunas, canhoneiras, bombardeiras e transportes. As fragatas e as corvetas eram grandes veleiros de três mastros e os brigues-escunas tinham apenas dois mastros. As canhoneiras eram pequenos navios, de pouco calado, com cascos de madeira e canhões de baixo calibre, utilizados no ataque e na deos canhões encontravam-se, lado a lado, no convés ou nas cobertas,

colocados em bateria. Até meados do século 19, a marinha de guerra imperial possuía apenas veleiros com canhões em bateria. Portanto, navegava-se e lutava-se literalmente ao sabor dos ventos. Os navios mistos caram um importante avanço tecnológico. Eles possuíam velas e rodas de pás, movidas a vapor, colocadas nos dois costados dos navios. dos canhões em bateria. As rodas estavam igualmente expostas ao bombardeamento. O primeiro grande navio misto da armada imperial, o dom Afonso, chegou ao país em 1847. A seguir, outros navios de rodas foram comprados no exterior ou produzidos no Rio de Janeiro. A partir de 1854, o Império adquiriu e fabricou também barcos impulsionados a hélices – a grande revolução náutica da época. Eles eram mais facilmente manejáveis e tinham seus mecanismos de propulsão menos expostos à artilharia dos inimigos. Em 1865, chegava ao país o

, primeiro couraçado nacio-

arrecadação popular, devido ao quase confronto militar entre o governo imperial e a Inglaterra, quando da chamada questão Christie. Sob os olhos estupefatos dos proprietários brasileiros, sob as ordens do embaixador inglês William Douglas Christie, navios da armada britânica bloquearam por seis dias o porto do Rio de a indenização de naufrágio e libertar africanos ilegalmente escravizados. Quando da Questão Christie claro que os ultrapassados veleiros e navios mistos da marinha imperial não podiam medir-se com os

Navio do século 19 de propulsão mista, velas e pás laterais. Veleiro do século 19 armado com canhões em bateria.

modernos barcos britânicos encouraçados e a hélice. O encouraçado era impulsionado por velas e hélices e construído em madeira e ferro. Possuía três mastros, 250 HP de potência, casco de ferro, artilharia central, em bateria, de 11 canhões de diferentes calibres. Era, portanto, um navio couraçado, mas não um encouraçado.

A Marinha Imperial contra o Paraguai A guerra contra o Paraguai determinou um poderoso rearmamento naval do Brasil. Em 1868, a marinha imperial possuía 79 unidades, com aproximadamente trezentos canhões. Os diversos couraçados, canhoneiras, transportes e outros navios – comprados na França e na Inglaterra ou construídos no Brasil – garantiram a superioridade naval total das forças imperiais, sobretudo nos estratégicos rios Paraná e Paraguai. Após a guerra de 1864-1870, eles garantiram igualmente a imposição das razões imperiais à Argentina. Em 1889, quando da proclamação da República, a marinha de guerra do Brasil possuía umas sessenta embarcações, sendo que trinta e três encontravam-se em bom estado e eram relativamente modernas. Com a “Revolta da Armada cialidade da marinha, de 1893 a 1895, contra o então presidente perderam-se. Com a Revolta da Armada, a marinha de guerra caiu no descrédito junto ao governo republicano. As aquisições posteriores ao e militar da Armada. Em 1908, envelhecida, ela constituía-se de um amontoado heterogêneo de barcos tecnologicamente superados. Alguns desses navios eram ultrapassadas naves com os cascos de madeira encouraçados em ferro. A evolução tecnológica da marinha republicana não fora acomblicanos. No Império, a marinha de guerra do Brasil nascera no seio de sociedade escravista onde era muito raquítica a classe dos traba-

lhadores livres e muito forte os preconceitos de classe e de raça. Na era dos veleiros, os navios exigiam uma numerosa mão-de-obra para manobra e conservação. No mínimo até Encouraçado do século 19 de propulsão mista, velas e hélices, com canhões em bateria.

muitos proprietários alugavam cativos para trabalharem como marinheiros e na Armada. A Armada comprava trabalhadores escravizados para empregar nos trabalhos mais duros. Durante a Guerra do Paraguai, a Armada serviu-se da população feitorizada para preencher suas necessidades de marinheiros. Em 1868, segundo o historiador Jorge Prata de Sousa, durante aquee arrolados na marinha de guerra imperial. Praticamente até 1888, os proprietários tinham o direito legal e a obrigação moral de surrarem a seu bel-prazer seus trabalhadores escravizados, para mantê-los no trabalho e na disciplina. As concepções elitistas e despóticas da sociedade escravista transferiam-se, naturalmente, para a marinha, onde a grande maioria dos marinheiros era constiuída de homens negros, mestiços e caboclos e, a alta tivos e de terras.

Arrolados à força pulsionados a hélice, quando se criou um “corpo de maquinistas”. Nos primeiros tempos, ele foi formado quase exclusivamente por

1. Convés 2. Coberta superior artilharia intermediária elevador de munição 4. Coberta inferior sala de máquinas

Convés de encouraçado do século 19 com canhões em bateria. Vê-se na cobertura inferior as máquinas e na intermediária os elevadores de munição.

estrangeiros, o que favorecia tratamento diverso desse corpo de trabalhadores especializados e seu isolamento em relação à maruja comum nacional. Entretanto, como vimos, ainda em inícios do século 20, as tripulações dos navios mistos da marinha de guerra do Brasil, requerendo crescente corpo de técnicos, eram formadas por populares arrolados à força e arrancados das prisões para serem transformados, aceleradamente, em marinheiros, carpinteiros, calafetes, despenseiros, etc. início do século 20: “Até então [1910], o Brasil só dispunha de uma Marinha de Guerra mista, tendo pertencido a essa categoria até as duas principais unidades couraçadas de nossa frota – o Aquidaban e trabalho se estabelecia em duas classes únicas [...] correspondentes aos serviços de náutica e de combate e de funcionamento das máquinas motoras e auxiliares.” eram uma

espécie de aristocracia que olhava com desprezo o pessoal das máquinas. Esses trabalhadores marítimos, nacionais ou algumas vezes ainda estrangeiros contratados, eram tidos como inferiores, mesmo quando eram técnicos especializados. Isso porque também trabalhavam com as mãos, nos conveses ou nos porões, como os cativos tinham trabalhado nos engenhos e nos cafezais, havia algumas décadas. O vice-almirante Hélio Leôncio Martins escreveu livro sobre a revolta dos marinheiros, mais de setenta anos após os acontecimentos. De certo modo, seu trabalho representa a interpretação seperplexo que o pessoal das máquinas – teoricamente mais próximo “simulacro de resistência”, durante a revolta. Ao contrário, muitos membros do pessoal das máquinas aderiram ao movimento, unindo-se aos marinheiros mais simples. Essa nicos especializados conheciam. Se eles eram tratados duramente simples marujos.

Os de cima e os de baixo Império, pouco se alterara quando da República. A arma naval continuava a ser o principal reduto da Monarquia deposta, nas forças da marinha de guerra brasileira se distinguiria pela adesão à Ação Integralista Brasileira, o movimento fascista no Brasil. sangue limpo e família de bem

vinham sobretudo das grandes famílias de proprietários de terras, com destaque para a antiga Corte, agora capital da República. Muitos tinham sido, poucos anos antes, eles ou seus pais, proprietários de

trabalhadores escravizados. era originária desse meio social empobrecido que se aferrava mais e mais aos antigos preconceitos de raça e de origem. vavam ainda mais a fossa que separava “superiores” e “inferiores”. não reduziu os preconceitos raciais de muitos setores das classes proprietárias brasileiras. Com a República, toda a população do país fora elevada formalmonopólio político das classes proprietárias. Precisamente nos primeiros anos da República, fortaleceram-se os delírios do “racismo e psíquica - dos não-brancos. Euclides da Cunha, um dos mais brilhantes defensores dessas doutrinas tresloucadas, morrera no ano anterior à revolta dos marinheiros, reconhecido nacionalmente como intelectual, sobretudo devido à obra Os sertões: a campanha de Canudos. Nesse livro, apresenta Antônio Conselheiro e seus seguidores como mestiços semi-degenerados, parte de segmentos populacionais destinados a desaparecerem, superados pelo maior dinamismo racial das vagas de imigrantes europeus que garantiriam, para ele, a emancipação da nação. te em boa parte dos antigos proprietários de cativos, encontrava-se uma maruja constituída majoritariamente por negros e mestiços descendentes de trabalhadores feitorizados. Em Política versus Marinha, livro posterior aos acontecimenmando que sempre fora escolhida entre a “alta sociedade do Brasil”,

dominava, ao contrário, o “negro boçal que mata e rouba”. A armada de guerra brasileira vivia situação social e racial muito tensa. Essa realidade chegou a um verdadeiro auge quando da modernização da Armada. O reaparelhamento radical da marinha Revolta da Chibata um acontecimento quase inevitável.

5. A armada do Brasil: uma das mais modernas do mundo Com os bons ventos econômicos da primeira década do século 20, o governo republicano decidiu rearmar radicalmente a Marinha, mal aparelhada, desde a Revolta da Armada, de 1893-95. A decisão determinaria um salto tecnológico de quase meio século na marinha de guerra. Entretanto, essa modernização tecnológica não foi acompanhada de igual avanço nas relações marinheiros. Em 1904, o ministro da Marinha da República do Brasil propôs encomenda faraônica para a modernização da Armada – três grandes couraçados, três cruzadores, seis contratorpedeiros, seis torpedeiros, seis torpedeiros menores, três submarinos e um navio carvoeiro. A proposta foi aprovada, com pequedos defensores da modernização da

encomendados à Inglaterra, principal construtor naval da época.

O inspirador dos gastos milionários – defendidos com a palavra de ordem “Rumo ao Mar” – foi o barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores. Os barcos permitiriam-lhe reforçar, com o argumento dos poderosos canhões e das couraças impenetráveis, as discussões fraternais sobre as fronteiras nacionais com as nações americanas vizinhas, praticamente desarmadas diante de tal poderio naval. O reaparelhamento da marinha deu-se em um momento singular, do ponto de vista da evolução do armamento naval. Na virada do século, a técnica da guerra marítima conhecera uma importante revolução. Os grandes, poderosos e rápidos encouraçados impuseram-se como a principal arma naval. Eles sintetizavam os múltiplos e importantes avanços tecnológicos da época. As naves compradas pelo Brasil eram o que havia de mais avançado em armamento naval. Os três super-encouraçados – reduzidos a dois, devido a pressões da Argentina, temerosa do novo poderio naval do Brasil – eram da novíssima classe dreadnought, a mais imponente arma marítima de então. Em verdade, tratava-se de uma arma experimental que mostrou todo seu valor apenas durante a I Guerra Mundial, que a consagrou. Sequer as armadas do Japão, da Itália, da Rússia e da França contavam com o poderoso armamento. E, em 1910, o Brasil possuía dois! Fora relativamente longo a evolução da engenharia naval até os poderosos dreadnoughts. A partir de 1860, a produção de grandes chapas de ferro, e a seguir, de aço, permitida pela Revolução Industrial, ensejou que os cascos de madeira dos veleiros de guerra fossem couraçados. Os novos motores náuticos e as hélices submersas facilitaram também o couraçamento dos costados dos navios, que absorveram outras importantes evoluções quanto ao armamento. A partir de então, os grandes barcos, poderosamente couraçados e armados, tornaram-se a mais temível arma naval. Apenas na II Guerra Mundial ele foram substituídos em importância pelos porta-aviões.

Matando-se à distância O poder de fogo dos navios acompanhou os avanços tecnolónos dois lados dos navios, em uma ou mais pontes, usados até meados do século 19, foram substituídos por canhões semimóveis carregados pelas culatras, ou seja, de retro-carga. Mais tarde, canhões mas móveis. Finalmente, imensos canhões foram postos em torres de artilharia, movidas mecanicamente. Com a nova tecnologia, ao mirar os alvos, eram as casamatas com seus canhões que se movimentavam, e não os navios, como anteriormente. A potência de tiro dos navios também cresceu. Nos últimos 25 anos do século 19, os mais poderosos couraçados, protegidos por chapas de aço, possuíam alguns canhões de grosso calibre e muitas armas de médio e pequeno porte. Os potentes canhões de 305 mm. eram colocados em torres de artilharia de dois canhões - binárias –, geralmente na proa e na popa dos navios. Com longo alcance, esses canhões disparavam sobretudo no início dos combates, à grande distância, quando as naves em luta estabeleciam contato balístico. Ao contrário, os canhões de calibre médio, de tiro mais rápido, disparavam quando os navios encontravam-se à média distância. Essas peças de artilharia de menor potência protegiam os encouraçados durante o demorado carregamento dos maiores canhões. Nos primeiros tempos, o municiamento dos grandes canhões demorava até quinze minutos!

Canhão marítimo semimóvel carregado pela boca.

Torpedo acionado por hélice lançado comumente pelas pequenas torpedeiras.

A invenção do “torpedo automóvel” tornou os pequenos e médios canhões imprescindíveis à defesa dos encouraçados. Desde então, pequenos e rápidos navios – torpedeiros – podiam atacar os grandes couraçados, devendo para tal aproximar-se duzentos metros dos seus alvos para lançarem os torpedos. Portanto, os encouraçados eram armados com canhões de calibres múltiplos. Muito logo, os encouraçados multicalibres mostraram suas limitações. Em 1905, a derrota da armada russa, pela esquadra japomou tendência já apontada pelos especialistas navais. Com os novos canhões de grosso calibre e de grande alcance, as batalhas davam-se necessariamente à grande distância. Agora, os novos e mais potentes navios de guerra não se aproximavam, quando dos combates. Doravante, o poder naval dependia da velocidade, da blindagem e do poder de alcance e de penetração dos grandes canhões dos encouraçados. Os pequenos e médios canhões perdiam importância. dreadnoughts monocalibres e, a seguir, dos super-dreadnoughts que reinaram sobre os mares até a II Guerra Mundial. Durante esse con-

Encouraçado pluricalibre.

diante dos ataques dos bombardeiros, transportados pelos porta-aviões. Em 1910, apenas os poderosos dreadnoughts podiam fazer frente aos dreadnoughts.

Navios poderosos Os poderosos dreadnoughts Minas Gerais e São Paulo encomendados pelo Brasil possuíam 21.200 toneladas, dois motores alternativos, com uma força de 23.500 cavalos vapor, que permitia uma velocidade de 21 nós [c. 40 km por hora] e uma autonomia de oito mil milhas marítimas [c. 15 mil km.]. Eles estavam armados com 12 canhões de 305 mm., distribuídos em seis torres de artilharia binárias. Quatro delas localizavam-se, superpostas, na proa e na popa, e duas, levemente descentralizadas, uma em cada lado do navio. Além desse armamento, os navios possuíam 22 canhões de 120 mm. e oito de 47 mm., e muitas metralhadoras. Portanto, havia domínio absoluto das armas de grande calibre. Daí o nome de encouraçados monocalibres que recebiam, apesar de não dispensarem armas defensivas de menor poder de fogo.

Torre coberta móvel acionada manualmente.

Os dreadnoughts eram produtos do desenvolvimento da mecânica, da hidráulica, da eletricidade, da balística, da metalurgia. Suas máquinas, suas caldeiras, os elevadores de munições, os mecanismos das torres móveis de artilharia, os meios de comunicação

As principais marinhas de guerra haviam reformado minimamente as condições de tratamento dos seus marinheiros. Os castigos da França, em 1860; dos Estados Unidos, em 1862; da Alemanha, em 1872; da Inglaterra, em 1881 e, da Rússia, em 1904. Na Inglaterra, de 1903 a 1906, os marinheiros britânicos mobilizaram-se fortemente por melhores condições de trabalho. grande número de marinheiros nacionais partiu para a Grã-Bretaram a língua e a situação social do país, principal centro industrial de então. Certamente conviveram com marinheiros de todo o mundo e com um dos mais politizados proletariados da época. Compreendese por que voltaram ainda mais revoltados com as condições de vida da armada nacional. A estada dos marujos na Inglaterra determinaria outro e talvez mais importante fenômeno. Os marinheiros que viajaram para o Velho Mundo constituíam os mais aptos e mais capazes membros da marinha do Brasil. Na Europa, foram enfronhados na verdadeira sendo treinado para manejar os complexos instrumentos, através de colaboração e articulação complexa. Os antigos barcos da marinha de guerra exigiam dos marinheiros sobretudo força bruta e escassos conhecimentos. Novas máquinas, produtos de novas tecnologias, exigiam novos conhecimentos, a escravidão não se adaptava tendencialmente à produção fabril, já nhecimentos técnicos exigidos pelos modernos navios entravam em

Consciência de classe Os novos navios da armada nacional eram máquinas complexas, geradas pela produção capitalista, que exigiam uma mão de obra especializada. Os marujos voltavam ao Brasil como modernos operários de uma das mais avançadas esquadras – eram agora foguisConstituíam um verdadeiro proletariado moderno embarcado. Povam em ver naqueles homens sobretudo negros brutos descendentes de antigos cativos. A situação tornava-se explosiva. cialidade reconheceu a importância da estada dos marujos na Europa na gênese da revolta. O comandante H. Pereira escreveria: “[...] à vista do grande número de homens necessários, foi mandado para a Inglaterra de roldão e sem antecedência precisa para uma adaptação [...] e lá, em contato com a marinha inglesa; adiantada em um século ência da comparação.” O ministro da Marinha assinalaria, também: “Mandamos à Europa para tripular as unidades em fabrico, lá sofresubversivas [sic] de um liberalismo mal compreendido [...].” Durante a revolta, nos manifestos dos marinheiros, era constante a lembrança que eles eram tratados como os antigos escravos.

São Paulo, um dos mais poderosos encouraçados de seu tempo.

Que eram, ao contrário, cidadãos. Que uma marinha de guerra mobros subalternos. Os marinheiros mostravam assim que ingressavam e empantanados nos preconceitos dos tempos da escravidão. Apenas a revolta desbloquearia esse impasse insustentável. Além da campanha civilista e da estada na Inglaterra, um aconmais poderosa – a revolta do Potemkin, que se concluíra no ano ansobre os relatos dos feitos dos marujos do encouraçado russo, que se sublevaram vitoriosamente no mar Negro, havia poucos meses. Os marujos certamente também discutiam – nos porões dos navios e nos humildes bares e hospedagens dos portos do Brasil – os heroicos atos dos seus irmãos, os marinheiros revolucionários russos.

6. Potemkin: marujos revolucionários contra a armada tzarista O Potemkin foi lançado ao mar em 1903. Da geração pré-dreadnoughts, era um dos mais poderosos couraçados russos. Com 12.600 toneladas, três chaminés, 113 metros de comprimento e quase 22 de largura, era blindado em aço. Além de armas menores, possuía quatro tubos lança-torpedos, quatorze canhões de 76 mm. e dezesseis de 152, em casamatas. Seu grande poder de fogo provinha dos quatro canhões de 305 mm., armados em duas torres de artilharia binárias, na proa e na popa. Eles lançavam projéteis de 350 quilos, a 20 km de distância, a cada três minutos. As modernas torres de artilharia e os elevadores municiadores eram movimentados eletricamente. Em 1905, o navio gantes e era pintado de negro e amarelo. O Potemkin sobrepunha-se a qualquer belonave do mar Negro e encontrava-se entre os mais poderosos navios da época, ainda que, nos anos

Encouraçado russo Potemkin.

perados, como vimos. O encouraçado inglês monocalibre dreadnought, que deu seu nome à nova classe, com dez canhões de 305 mm., dos marinheiros russos. Um acontecimento banal iniciou a mais famosa revolta de marinheiros do século 20. Em 26 de junho de 1905, o Potemkin lançou âncora na baía de Tendra, para executar, com o resto da frota do mar Negro, um exercício de tiro. Caía a noite quando o N 267, seu pequeno torpedeiro de escolta, aproximou-se com mantimentos trazidos de terra. Foram embarcados vinho, café, açúcar e outras regalias para tzaristas deixavam-se geralmente corromper, quando da compra de provisões. As carnes estavam em péssimo estado de conservação. Eram quatro horas da manhã. Apenas o dia raiava. O horrível mau cheiro das carnes chamou a atenção de um marinheiro em serviço. Ao aproximar-se delas, foi surpreendido pelas larvas brancas que pululavam quase alegremente sobre as peças. Logo, as carcaças serviriam de matéria-prima para o bortsch – ensopado de beterraba, carne e molho picante – servido comumente aos marinheiros. A agitação que tomou conta da tripulação foi comunicada ao comandante máximo do navio, o capitão Eugene Golikov.

cudia a Rússia. Eram imensos o descrédito do tzar, do Exército e sobretudo da Armada. O tzarismo esperara que a guerra com o Japão reforçasse seu prestígio e interrompesse a forte agitação social defracassos. Havia apenas um mês, a marinha imperial sofrera a mais grave derrota de sua história. Após realizar a longa circunavegação da Europa, da África e da Ásia e chegar ao Extremo-Oriente, uma poderosa esquadra russa fora destruída no estreito de Tsuchima pelos japoneses. Vinte e três navios e mais de cinco mil marinheiros foram perdidos. O desastre naval revelara o anacronismo da ordem política e social do Império e a enorme incompetência dos seus aristocráticos periores para com as tripulações. Sobretudo devido à forte agitação revolucionária que reinava entre os marinheiros do mar Negro. Porém, as próprias relações sociais despóticas vigentes no império rusordenar que o médico-major do navio se pronunciasse sobre a qualidade da carne. Após sumário exame, o doutor Smirnov declarou, arrogante, diante dos marinheiros perplexos, que as carnes estavam em boa condição. Bastaria que fossem lavadas com vinagre. Tratavam-se apenas de larvas depositadas, havia pouco, por moscas, crescidas devido ao calor. É claro que o questionável produto não terminaria nheiros provinham de classes trabalhadores submetidas a duros regimes de trabalho e de campesinato que vivia condições de existência semi-servis. O tratamento despótico dos marujos era natural na ordem social autocrática, havia séculos em vigor. Era quase impenas carnes. Sobretudo por que a decisão resultaria em uma investigação sobre a compra do alimento. Esperava-se apenas que a disciplina e o medo do castigo mantivessem os marujos submissos.

Os tempos eram outros e os marinheiros agitavam-se, mais e mais. A célula socialista do navio teria desempenhado importante papel na organização do movimento de protesto. Ao meio-dia, o seos marinheiros negavam-se a consumir o almoço preparado com a carne podre. Pediam chá, pão e manteiga, em vez do ensopado.

A vida por um prato de sopa suas ordens, os marujos negaram-se a ingerir o ensopado. Devido ao caráter amplo do movimento, ele comunicou, novamente, os fatos ao capitão Golikov, que, após consultar, outra vez, o doutor Smirnov, ordenou que a tripulação se reunisse na popa do navio. artilharia dos dois ameaçadores canhões. Olhando os subalternos de cima da ponte, Golikov explicou, com voz autoritária, que o médico garantira a excelência do alimento. Devido a uma insubmissão como

Vista superior e lateral do encouraçado russo Potemkin.

aquela, um marinheiro podia ser enforcado – lembrou. Golikov mandou dar um passo à frente, os que aceitassem comer o bortsh e os marujos menos politizados obedecessem. A indignação era profunda e Golikov pagaria com a vida a sua insensibilidade. Referindocom poucas alternativas, se fosse desobedecido. rinheiros. Sem alternativa, Golikov optou pela retirada. Outra vez, com voz autoritária, disse que comunicaria a indisciplina ao comando supremo. Que mandaria examinar, novamente, a carne. Que, caso não comessem o bortsch... não comeriam nada! A seguir, desceu da ponte, caminhou entre as duas colunas de marujos e desapareceu pela abertura na coberta superior. uma importante vitória parcial aos marinheiros. Eles mantinham a decisão de não consumir o alimento corrompido e sabiam que, daí Sobretudo, haviam feito ouvir sua voz!

Marinheiros russos do Potemkin

Possivelmente, o nome do encouraçado Potemkin não entraria na história se a inabilidade do capitão Golikov não fosse suplantada Indignado com a retirada do superior, esbravejando, ordenou que os marinheiros formassem novamente. A seguir, exigiu a vinda da guarda do navio e que trouxessem mento de marinheiros rebeldes, cobertos por uma lona, para facilitar ao pelotão a execução de companheiros. Quando chegou a lona e os homens da guarda prepararam as sem e dessem um passo adiante. Obedeceu apenas meia centena, dos mais de seiscentos homens. Atolando-se em seu orgulho, ordenou que doze marinheiros, escolhidos quase ao acaso, fossem colocados diante do pelotão e cobertos pela rústica mortalha. zimaria a tripulação, por negar-se a consumir um ensopado de carne podre! Os que aceitassem a ordem, que se retirassem! Os outros, que viam-se os vultos miseráveis, apertando-se uns contra os outros, desesperados. plexidade e desespero, desorganizaram-se parcialmente, dando passagem a três ou quatro marinheiros, que avançavam em direção à ponte, com os semblantes de tão sombrios que pareciam talhados em pedra, falando em voz baixa aos companheiros. À frente do grupara a história.

Poder nascente Matushenko era líder reconhecido pela tripulação. Exigiu com intervenção do grupo de marinheiros despertava os companheiros mais combativos, apontando-lhes uma alternativa ao massacre. Era necessário conquistar os indecisos. Organizar a oposição. Lutar pelo controle do navio, para salvar as vidas dos marujos. Os marinheiros mais decididos procuraram armas. Outros, cercaram o indeciso pelotão, apoiando-o na valente desobediência. A maior parte da tripulação, confusa e surpresa, explodiu em agitação crescente, envolvida pelo movimento que crescia como uma onda disparasse. A desobediência da ordem assinalava o surgimento de um novo poder, que lutava para impor-se. Porém, ainda nesse momenordenava o bom senso. A indecisão do momento foi rompida quando o marinheiro Gregório Vakulinchk, que se armara, disparou para o rebeldes, sem derramar sangue. Perseverando em sua corrida para o abismo, o capitão-de-fraVakulinchk, disparando, não para o alto, mas no marinheiro, que caiu mortalmente ferido. Matushenko, que chegara ao convés com alguns cial entregasse o navio à tripulação. A liderança do movimento tentava ainda resolver o confronto sem mortes.

da revolta, mortalmente. Nesse momento, o calor e a violência do combate apoderaram-se dos marinheiros. A sabor da revolta justa abraçava a alma e o espírito dos marujos humilhados. Com a adesão dos marujos indecisos e senhores do convés, os rebeldes partiram para apoderar-se do encouraçado. Era necessário

após o outro, no convés, e lançavam-se, ao mar, para nadar em direção do navio escolta. ciais. O doutor Smirnov, desesperado pelo inesperado resultado de Golenko, aderiu ao movimento. Subitamente, a tripulação agitou-se, outra vez, ao saber que o navio estava para explodir. Tratava-se de uma meia-verdade. Apriativar minas e afundar o encouraçado. Alexeev não era odiado. Ao Após denunciar o esconderijo do comandante, Alexeev pediu dos e foi libertado. Mais tarde, ele seria nomeado comandante máximo do encouraçado... sob as ordens dos líderes da rebelião e do comitê dirigente do Potemkin. Veremos que custou caro aos marujos à revolta. O capitão Golikov pediu e quase obteve clemência. Porém, um marinheiro lembrou suas ameaças, a ordem de destruição do encourevólver. Em meia hora de revolta, tinham morrido um marujo — lançados ao mar.

Barril de pólvora A importância do movimento ultrapassava a conquista do encouraçado. A situação de convulsão que vivia, havia meses, grande parte do império russo explicava a violência da revolta. A sublevação do Potemkin perigava alastrar-se à frota do mar Negro e transfor-

do tzarismo. Em 1905, era caótica a situação do império. Em um país sobretudo rural, multidões de camponeses apenas sobreviviam. Em 1861, ses tiveram que entregar parte das suas terras e pagar indenizações pelos terrenos com que permaneceram, mergulhando na miséria e na fome. Devido à agricultura atrasada, aos impostos, aos rústicos meios de comunicação, o campo e as cidades conheciam frequentemente a fome. As condições de existência das jovens classes trabalhadoras timos realizados sobretudo na França. Os casos de corrupção foram numerosos e o endividamento do país, enorme. As grandes decisões econômicas eram tomadas no exterior. Não havia leis e direitos trabalhistas. As condições de trabalho eram ditadas pelos empregadores. Algumas categorias sociais trabalhavam sete dias por semana. Os operários eram duramente reprimidos quando reivindicavam melhores condições de vida ou se organizavam, mesmo sindicalmente. representação parlamentar era abominada por ele, pela Igreja e pela aristocracia fundiária dominante. Contra essa situação, opunha-se um leque de forças políticas que iam dos conservadores monarquista-constitucionalistas ao radicalizado movimento socialdemocrata. Esse último grupo, clandestino e marxista, dividira-se, havia pouco, em duas tendências – os majoritários (bolcheviques) e os minoritários (mencheviques). Vimos que para reconquistar o prestígio com um sucesso militar, o tzar lançou-se em uma aventura bélica contra o Japão, potência emergente. A guerra motivou imensa hemorragia de homens e recursos, enquanto permitia enormes lucros para os banqueiros, industrialistas, fornecedores, ministros, etc. A derrota naval do estreito de Tsuchima e a própria revolta do Potemkin aceleraram a revolta popular que estremeceu o império durante 1905. Apesar dos conselhos operários [soviets] terem desempenhado um papel essencial durante a Revolução de 1905, os partidos po-

líticos reivindicavam, politicamente, apenas a democracia representativa. O que diferenciava as diversas correntes era o conteúdo da democracia que se esperava que substituísse a ordem absolutista. Em 1905, os bolcheviques e os mencheviques acreditavam que a revolução social seria uma conquista obtida após a democratização e a industrialização do império. Os objetivos políticos dos socialistas explicam por que os lídeRevolução de 1905 concluiu-se com a derrota do movimento revolucionário e com a consolidação transitória do tzarismo. Vista mais tarde como um “ensaio geral” da Revolução de 1917, o fracasso de 1905 levou a que operários e socialistas compreendessem o caráter pusilânime da burguesia russa e a necessidade do assalto ao poder, lação. Nesse contexto geral gestou-se a revolta do Potemkin. A derrota da esquadra russa do Extremo-Oriente reforçara o espírito revolucionário dos marinheiros, indignados com o comportamento do ção da esquadra do mar Negro era tida como momento essencial da queda do tzarismo. Havia meses que os marinheiros socialistas organizavam a sublevação na Armada. Em inícios de junho, a direção das células marxistas da Armada da baía de Tendra. A revolta fora planejada como um golpe de mão. galões arrancados e os mais renitentes seriam presos. Na manhã seguinte, os marinheiros adeririam ao movimento. Tudo ocorreria sem derramamento de sangue, esperava-se. A insurreição não é uma partida de xadrez, onde os lances próximos são previsíveis. Praticamente todos os grandes navios da esquadra do mar Negro possuíam células revolucionárias. Paradoxalmente, a maruja do Potemkin era tida como resistente à revolta. Porém, Matushenko, responsável da célula do navio, propusera que o barco se sublevasse, por primeiro, para facilitar a revolta. Isso não fora aceito pela direção do movimento.

Agora, a revolta triunfara no Potemkin. O comandante do torpedeiro N 267 tentou afastar-se para ir informar o alto comando, em Sebastopol, a umas oito horas de viagem. Algumas salvas de canhão submeteram o pequeno navio. Trazidos a bordo do Potemkin, aprisionados. Uma guarda de doze marinheiros foi transferida para o N 267. Os marujos elegeram um comitê diretor e formaram, com os dois navios, a Frota Russa Livre. A seguir, deliberaram sobre a continuidade do movimento. Segundo um tratado internacional, os navios de guerra não podiam ultrapassar o estreito de Bósforo, controlado pelas baterias turcas. Portanto, os marinheiros rebelados tinham, como palco de ação exclusivo, o mar Negro. Para movimentar-se, o Potemkin necessitava de muito combustível, água doce e de alimentos. Decidiu-se que se tomaria o rumo do porto de Odessa, para aguardar a sublevação da frota.

7. Marinheiros, soldados e operários de toda a Rússia: uni-vos! Odessa, com meio milhão de habitantes, era a quarta cidade do império russo. Bem localizada, cercada por campos férteis, era centro de importante atividade portuária e fabril. Tinha amplas artérias arborizadas, belas praças, importantes avenidas, luxuosas residências, ricos restaurantes, imponentes teatros. Uma grande e bela escadaria unia a parte alta à baixa da cidade. Era distinto o panorama da periferia da cidade, com suas usinas e fábricas recém-construídas e as miseráveis moradias operárias, verdadeiros tugúrios. Mesmo se em Odessa as classes populares vivessem melhor que em outras regiões, esse cenário

Homenagem fúnebre, no cais de Odessa, ao marinheiro Gregório Vakulinchk, morto durante a revolta no Potemkin.

novas classes operárias. Até poucos meses, Odessa desconhecia o desemprego. Em inícios de 1905, como em outras regiões, a crise econômica e política deteriorara a situação social.

Empresas fecharam e despediram trabalhadores. Os salários caíram. Populares conheceram literalmente a fome, sem terem para onde voltarem-se. Em 21 de abril, uma primeira grande greve paralisou o porto. A seguir, os padeiros, os sapateiros, os alfaiates, os impressores, etc. entraram em greve. As organizações operárias e socialistas decretaram uma greve geral, para 27 de junho, por melhores salários e a jornada de nove horas. Para o general Kokhanov, comandante militar de Odessa, a repressão era a única resposta possível aos operários. Já na tarde de 26 de junho, os cossacos – a impiedosa milícias de pequenos proprietários agrícolas – atacavam os manifestantes. Uma inesperada reação popular pôs em fuga os temidos cavaleiros. No dia seguinte, o governador militar impôs a lei marcial e preparou a repressão. Incidentes sucederam-se na cidade, que aderiu à greve geral. Bondes foram tombados. Barricadas, levantadas. Os manifestantes eram tratados como insurretos, mesmo desarmados. Foi durante a tarde deste dia que o Potemkin se insurrecionara. Pouco antes das 22 horas, quando os grevistas retornavam, batidos, aos bairros populares, um imponente encouraçado negro

penetrou, silenciosa e ameaçadoramente, na baía. Os operários que permaneciam nas proximidades do porto talvez acreditassem que se tratasse de mais um reforço do despotismo, para a repressão da população desarmada. Apenas na manhã seguinte, dia 28, quando o dia começou a raiar, a população revoltada notou, exultante, que os mastros do navio portavam a bandeira vermelha. A presença do encouraçado, com seus ameaçadores canhões, revigorou os grevistas. Se o poderoso navio se juntasse a eles, as forças militares de terra adeririam à revolta A cidade cairia nas mãos da revolução. Começaria a queda do tzarismo. Para os dirigentes grevistas, era imprescindível entrar em contato com os marujos e unir a ação dos dois movimentos. Os marinheiros iniciaram a aproximação. Na madrugada do 28, uma pequena guarda armada desembarcou no cais e expôs, sob uma tenda, para ser homenageado, o corpo de Gregório Vakulinchk, morto na revolta. Sobre o cadáver, um cartaz explicava: “Diante de vós repousa o marinheiro Gregório Vakulinchk [...], selvagemente abatido pelo vice-comandante do Potemkin, por ter reclamado da má qualidade do ensopado. Paz as suas cinzas. Vinguemo-nos de seus opressores. [...]. Viva a liberdade.” Logo, em torno do cadáver, concentrou-se uma pequena multidão, animada por oradores. No cais, sob às sombras do poderoso encouraçado, o movimento grevista agrupava-se, tomava novo impulso, preparava-se para voltar à parte alta da cidade. No seu quartel-general, Kokhanov organizava as forças para manter o movimento no cais e, a seguir, esmagá-lo, se possível.

Morte na escadaria Nas primeiras horas da tarde de 28, nova manifestação foi organizada em defesa das reivindicações operárias. Em resposta, o general Kokhanov lançou os temidos cossacos, outra vez, sobre os populares. O terreno escolhido para a repressão foi a escadaria da cidade.

Eisenstein, de 1925, foi apontado pela crítica internacional como «o é certamente o massacre da população desarmada nas escadarias de Odessa. Centenas de populares morreram ali, interrompendo a ofensiva do movimento. A derrota da greve era também resultado da indecisão dos marinheiros do Potemkin. Na manhã do 28, a grande célula socialista de Odessa estabeleceu contato com os marinheiros, quando o jovem militante Constantin Feldemann subiu a bordo do Potemkin. O estudante foi um poderoso reforço para os marinheiros socialistas. Os líderes dos marujos sabiam que, para vencerem, não deviam esperar a sublevação da Armada, mas aliar-se aos operários e soldados da cidade. Apenas o Potemkin chegara ao porto, Matushenko propusera que marinheiros armados unissem-se aos manifestantes. O nível de consciência e de disposição de luta dos marujos era desigual. Muitos deles acabavam de despertar para a luta política. Alguns tinham sido arrastados pelo movimento. Com razão se temera a capacidade dos marujos do couraçado de dirigirem a revolta geral da Armada. A maioria do comitê revolucionário do Potemkin opôs-se à proposta e defendeu que a tripulação se mantivesse, no encouraçado, à espera da revolta da Armada. Na sua primeira intervenção, Feldemann defendeu diante do comitê a necessidade da ação. O estudante foi apoiado por outros líderes socialistas, também embarcados. A discussão foi interrompida para que o Potemkin carregasse carvão. A decisão de não intervir foi mantida. À tarde do 28, uma delegação operária chegou ao navio para comunicar o massacre da escadaria de Odessa e pedir que os canhões do encouraçado respondessem à repressão e que marinheiros armados se unissem aos grevistas. Mais uma vez, o comitê decidiu permanecer à espera da frota. A proposta do bombardeamento foi afastada, sob a desculpa da falta de um alvo preciso. Decidiu-se que o massacre seria respondido com uma manifestação, de trabalhadores e de marinheiros armados, durante o enterro de Gregório Vakulinchk, no dia seguinte. Ao entardecer, uma delegação de soldados dos regimentos de Odessa pediu, também inutilmente, que os marinheiros liderassem o movimento.

A luta política era duríssima no Potemkin. Feldemann e dois outros socialistas revolucionários discursaram defendendo que, se ciais e alguns marinheiros propuseram que tudo fosse deixado como estava, à espera da revolta da Armada, e que Feldemann e os socialistas revolucionários fossem desembarcados. O primeiro choque frontal entre as duas propostas deu-se à noite, na assembleia que reuniu setecentos marinheiros. Enquanto Feldemann preparava-se para falar, uma voz exigiu que o estudante e os outros civis desembarcassem para que a deliberação se desse apenas entre marinheiros. Aos gritos, parte da tripulação apoiou a exigência. Feldemann esperou que a gritaria diminuísse, para falar. Ao aumentar o silêncio, impôs mais tensão ao discurso, elevando mais e mais a voz, conquistando a atenção dos ouvintes. Logo, escutava-se apenas a voz acerada do agitador, indo e vindo, quase em sincronia com o ruído da água do mar, batendo, ritmada, contra o casco do encouraçado. Em 1905, vivia-se a era dos grandes oradores. Então, desconhecia-se o rádio e a imensa maioria da população russa era analfabeta. Para atingir um público mais vasto, os jornais e os manifestos deviam ser lidos em voz alta, pelos raros alfabetizados. Em verdade, eles eram escritos mais para serem ouvidos do que lidos. Foi nessas jornadas que o dirigensurgiu como um dos maiores tribunos do século 20.

Leon Trotski, chefe da revolução oradores de sua época.

Falou, por quase duas horas, para um auditório magnetizado, sobre a triste vida dos trabalhadores das cidades e dos campos. Descreveu o massacre do Domingo Sangrento, em São Petersburgo, diante do Palácio de Inverno, no início de 1905. Falou do despotismo, do futuro da revolu-

ção, da responsabilidade dos marujos do Potemkin. Após ser aplaudido vivamente, passou a palavra ao socialista Kirill.

O preço da indecisão Entretanto, o fervor dos oradores revolucionários não se transformou em apoio aos grevistas. O general Kokhanov não deixou de aproveitar a indecisão dos marujos. Do navio, avistavam-se os incêndios que consumiam parte das instalações do porto e escutava-se o tiroteio que varria a cidade, massacrando impunemente a população sublevada. A assembleia discutia e a população de Odessa vivia o maior massacre da Revolução de 1905. Seis mil populares morreram naquela noite de luta e sangue. Após o massacre noturno, a repressão fortaleceu-se, novamente. Na manhã seguinte, 29, uma delegação de marujos dirigiu-se à cidade semi-destruída para pedir permissão ao governador militar para enterrar Gregório Vakulinchk. A delegação obteve apenas que o corpo fosse sepultado, às duas da madrugada, na calada da noite. Uma segunda delegação conseguiu que o ato fúnebre fosse realizado, às 14 horas, sob a escolta de apenas doze marinheiros desarmados. Os marinheiros rebeldes pediam, e não impunham sua vontade. A presença do encouraçado transformava a população de Odessa em uma espécie de Fênix, o pássaro mitológico que renasce das cinzas. À sombra do poderoso couraçado, a procissão fúnebre organizou-se no cais com centenas e, logo, milhares de acompanhantes. Às 17h30 min., o corpo foi enterrado. E, mais uma vez, o ódio tzarista abateu-se sobre a população. Após o enterro, participantes do cortejo foram metralhados. Três marinheiros da escolta – talvez mortos – não retornaram ao navio.

um alvo seguro. Durante uma agitada reunião, Matushenko e Feldemann convenceram o comitê a bombardear, seletivamente o teatro, em apoio à população. A seguir, uma delegação exigiria a liberdade dos prisioneiros e o abandono da cidade pelas tropas.

do Potemkin.

Um membro conservador do comitê obteve que uma assembleia geral decidisse sobre o ataque. Feldemann foi o primeiro oramarujos ao bombardeio dividiu a assembleia. Propôs-se demagogicamente que poderia causar vítimas inocentes, como se elas não seguiriam sendo abatidas, às centenas, caso a repressão não fosse à indecisão. As máquinas foram postas em funcionamento; os marinheiros ocuparam os postos de combate; o Potemkin penetrou no porto e ancorou próximo do cais, a uns dois mil metros do teatro. Às 19h30min., um canhão de 152 mm. disparou três salvas, para prevenir a população! Quinze minutos depois, efetuou o primeiro disparo, que se perdeu além do alvo. Um derradeiro tiro lançou um projétil dor militar de Odessa desconsiderou as ameaças da delegação dos marinheiros.

Armada em Movimento Os principais navios da poderosa frota do mar Negro eram os encouraçados Tchesme, Catarina II, Sinope e Jorge-o-Vitorioso, construídos entre 1886-92, com seis canhões de 305 mm., cada um, além de peças menores. Os grandes canhões eram dispostos, dois a dois, em plataformas móveis. Os outros encouraçados eram os Doze Apóstolos, o Santa-Trindade e o Tatislav – também armados com artilharia de 305 mm. e peças médias e menores. No manhã do 28, telegramas de Odessa sobre a revolta cheganiu-se, apressadamente, para deliberar sobre um movimento que sabiam fazer parte de uma conspiração maior. Havia que submeter rapidamente o Potemkin antes que a revolta se estendesse para o resto da frota e incendiasse os campos e as cidades. Durante a reunião, avaliou-se o moral das tripulações dos napara o Jorge-o-Vitorioso; péssimo, para o Catarina II. Nele, pela manhã, os marinheiros tinham-se negado a cantar o tradicional « Deus salve o Tzar ” . Portanto, o Catarina II não participaria dos planos de combate. Às 23 horas, o Santa-Trindade, o Jorge-o-Vitorioso e os torpedeiros, partiram para submeter o Potemkin. Logo, os outros navios juntaram-se a eles. Na madrugada do dia 30, Matushenko e os membros do comitê do encouraçado foram despertados, apressadamente. Escutavam-se couraçados e outros navios rumavam para Odessa.

Afundem o Potemkin! O Potemkin abandonou o porto, em direção ao alto mar, com a bandeira vermelha em seu mais alto mastro. Apesar do desequilíbrio de forças, os rebeldes tinham certeza e contar com a simpatia dos seus camaradas nos navios opositores.

O Potemkin aproximou-se da frota tzarista, com os canhões em posição de tiro, enviando, aos opositores, pelo rádio-telégrafo, incessantes convites à rendição. Quando os navios tzaristas encontravamem posição de combate, de frente para o Potemkin. Porém, a vontade bélica dos atacantes dissolveu-se como manteiga no fogo, sob o calor da revolta do Potemkin. Diante da decisão comandante da pequena frota ordenou o abandono da área de combate. A vitória do Potemkin foi breve. Antes do meio-dia, praticamente toda a esquadra do mar Negro – cinco encouraçados e diversos barcos menores – partia para Odessa. Por ordem do tzar, o Potemkin devia render-se ou ser inapelavelmente afundado. Às 12:30 horas, os marinheiros do Potemkin avistaram a expedição no horizonte, dividida em duas colunas, navegando muito próximas. Outra vez, o Potemkin e o pequeno N 267 partiram, arroO comandante da esquadra e os marinheiros rebeldes trocaram mensagens que exigiam a rendição. Com os canhões direcionados, o Potemkin navegava, em frente, orientando seu curso para passar pelo estreito espaço entre as duas colunas da esquadra, de uns quinhentos metros. As tripulações da frota tzarista abandonaram os conveses pelos postos de combate, preparando-se para interromper a canhonaços a marcha do couraçado insurrecionado. A sorte do confronto inevitável estava já determinada pela disparidade de forças. Entretanto, tratava-se sobretudo de uma luta pela consciência dos marinheiros. Majestosamente, com as torres dos canhões dirigidas à esquerda e à direita, o Potemkin ingressou no corredor de aço dos navios inimigos. O silêncio era total. Escutavam-se as máquinas dos encouraçados e o bater das águas do mar nos cascos. Subitamente, marinheiros invadiram o convés do encouraçado Jorge-o-Vitorioso, saudando aos gritos o Potemkin! Quando o encouraçado rebelde superou os últimos navios das

colunas, milhares de marinheiros saudavam a coragem dos companheiros sublevados. Em um movimento quase combinado, o Potemkin e a esquadra tzarista colocando-se, de novo, frente a frente, para uma segunda ultrapassagem. O Potemkin jamais correra perigo. Os navios da esquadra enros tinham decidido que não disparariam nos camaradas. A segunda a primeira.

Como em um desfile Richard Hough escreveu em seu trabalho clássico sobre a revolta: “Desta vez, o Potemkin passou entre as duas colunas [...] como o iate do rei da Inglaterra recebido pela Armada Real Inglesa [...].” ros do Potemkin tinham ganhado a solidariedade dos companheiros. Agora, decidia-se a adesão ao movimento. O exemplo do Potemkin rompia a frágil disciplina tzarista. Subitamente, o encouraçado Jorge-o-Vitorioso afastou-se da formação e sinalizou a vontade de unir-se à rebelião. Outra vez, a divisão entre os rebeldes impediu uma pronta ação. Feldemann e Kirill propuseram que fosse enviada uma delegação ao navio revoltado. Já vimos que o tenente Alexeev dirigia formalmente o encouraçado. Ele propôs que o Potemkin se afastasse do Jorge-o-Vitorioso, sob a desculpa de temer uma traição. Após tensa deliberação, um grupo de marinheiros partiu para o navio. A chegada dos marinheiros do Potemkin foi decisiva. Jorge-osangue. Apenas um tenente se matou, possivelmente sob o peso da vergonha da revolta de seus subordinados. A adesão do encouraçado fora uma grande vitória. Agora, era necessário conquistar a frota, obter a adesão dos soldados, insur-

recionar Odessa. Porém, logo, a conquista da armada do mar Negro tornaria-se impossível. Ao saber da revolta em outros navios, o comandante da armada ordenou que os cinco mil marinheiros da frota fossem dispensados. Ela não poderia mais se rebelar, já não mais existia! Para diminuir o impacto da rendição, permitiu-se que um dois grandes encouraçados. Nesse momento, a revolta declinava. No Jorge-o-Vitorioso, Feldemann esforçava-se, com um pequeno número de marinheiros socialistas, para manter o ânimo revolucionário. Porém, sobretudo os direção do navio. Uma reunião do comitê do Potemkin decidiu enviar uma guarda de marinheiros para o barco irmão, sob a direção de um líder decidido; aprisionar os elementos contra-revolucionários; animar os indecisos. Porém, os mais seguros dirigentes encontravam-se exaustos. Sobrava-lhes ardor, mas faltava-lhes voz! O doutor Golenko, segundo médico a bordo, que aderira a contragosto à revolta, ofereceuse para ‘reconquistar’ Jorge-o-Vitorioso.

O doutor Golenko não tivera papel na rebelião. O fato de ser marinheiros, para o navio. A decisão foi desastrosa. Momentos mais tarde, o Jorge-o-Vitorioso levantou âncora e sinalizou que se dirigia para Sebastopol.

Momentos finais Os marinheiros do Potemkin ocuparam os postos de combate e enquadraram o desertor nos canhões, obrigando-o a voltar a sua posição. Sem poderem reagir, os rebeldes viram o encouraçado realizar uma volta, dirigir-se para o porto e avançar em direção do cais, para encalhar em um banco de areia. O navio perdia-se para a revolução. Mais tarde, os rebeldes conheceram a dimensão da traição. Ao chegar ao encouraçado, o doutor Golenko dissera a um auditório vacilante que o Potemkin preparavam-se para entregarem-se. Ajudado ra o navio, para neutralizá-lo e permitir o abandono do mesmo. A imobilização do Jorge-o-Vitorioso deprimiu o espírito revolucionário. Uma patética assembleia decidiu que não havia possibilidade de perseverar na luta. Deveriam abandonar Odessa para internarem-se na Romênia, onde esperavam receber o apoio do importante partido socialista local. O Potemkin navegou, indeciso, por mais de uma semana, aportando aqui e ali, até ingressar, em 8 de julho, no porto de Constanza, onde o governo romeno concedeu refúgio e a nacionalidade aos que participarem no movimento. entre os marinheiros o dinheiro do cofre do Potemkin. A publicidade contra-revolucionária divulgaria fotos dos marujos abandonando o encouraçado, carregando os pertences e o que pudessem aproveitar

abertas, para que, afundando, não fosse mais utilizado. Quando os marujos brasileiros iniciaram a conspiração, em 1906, fazia apenas alguns meses que acabara a revolta do Potemkin.

Marinheiros abandonaram o Potemkin

8. Os marinheiros negros conspiram Hoje, já conhecemos, um pouco melhor, os movimentos dos marinheiros brasileiros anteriores a 1910. Em 12 de dezembro de 1891, os marujos do cruzador Paraíba, ancorado na baía da Guanabara, declararam-se revoltados, desobedecendo as ordens dos superiores. É possível que o movimento, muito desorganizado, reivindicontinuação. Mais importante foi a revolta de 6 de junho de 1893, no porto de Rio Grande, no sul do Brasil, dos marinheiros da canhoneira Marajó. Os marujos, no controle dos canhões e metralhadoras do barco, tão-tenente Carnier, acusado de castigar diversos marinheiros, sem camisas, com até duzentas chicotadas, registrando no livro de castique os castigados mantivessem a camisa e, até mesmo, portassem duas. Os rebeldes, que ameaçaram bombardear a cidade, eram liderados pelo segunda classe Juvino de Sá Barreto que, junto com dezesseis outros marinheiros, foi preso e denunciado. Durante a revolta, os marinheiros teriam demonstrado pouca decisão e disciplina, permitindo que se bebesse e jogasse a bordo do barco rebelado. As -

mocim – não aderiram ao movimento. No momento dos fatos, a maruja da Cananéa era composta em boa parte por “crianças”. Em 1904, em Gibraltar, teria havido um motim contra o castigo em Portugal. Na Bahia, quando do transporte do corpo do ex-vice -presidente da República Manuel Vitorino, a maruja do encouraçado Deodoro teria demonstrado a sua indignação com as trezentas chicotadas aplicadas a um marinheiro, devido a uma briga em terra. Não sabemos quando começou a conspiração que levou à revolta de 1910. Segundo Edmar Morel, que entrevistou detidamente João Cândido, o principal líder do movimento, ela iniciara na Inglaterra, durante o treinamento dos marinheiros nos novos navios. Em marinheiros mantinham “comitês nos próprios hotéis onde” residiam, à espera da “conclusão dos navios”, de onde mandavam mensagens para o Brasil. O certo é que havia muito que os marujos indignavam-se com e existência. A insurreição fora planejada como última alternativa, quando os marujos compreenderam que só se fariam escutar a partir de uma posição de força. Uma proclamação dos rebeldes, durante a insurreição, referese às reclamações anteriores: “Na marinha brasileira de há tempo já andávamos prevenidos para demonstrar que na Marinha atual não era preciso chibata e nem os castigos violentos de que temos sido vítimas para sermos bons marinheiros e para isto demos prova de que basta Vossa Excelência dar um golpe de vista pelas contínuas reclamações que sempre temos feitos, implorando aos comandanrogar-vos que acabasse com esses castigos bárbaros, essas infâmias que só fazem manchar e desgostar o bom andamento e união da marinha brasileira.” Os marinheiros tinham preparado uma verdadeira operação um quadro a carvão do presidente Nilo Peçanha. Em maio de 1910,

seis meses antes da rebelião, durante uma audiência, quando da entrega do retrato, João Cândido suplicara ao primeiro mandatário, em nheiro negro, nascido no Rio Grande do Sul, já era uma espécie de representante da marujada do Minas Gerais. nheiros prosseguiram com a organização clandestina da revolta, sobre a qual temos pouquíssima informação. João Cândido falou para Edmar Morel de um “comando geral” formado pelo marinheiro-paioleiro Francisco Dias Martins e Ricardo Freitas, pelo cruzador Bahia; Manoel Gregório do Nascimento, pelo dreadnought São Paulo; André Avelino, pelo encouraçado Deodoro, e ele mesmo, pelo dreadnought Minas Gerais. Marinheiros de outros navios estariam envolvidos na conspiração. Portanto, o núcleo da conspiração concentrava-se naqueles quatro navios. Era profunda a intranquilidade e a agitação entre os marinheiros. Um bom exemplo daquela situação foi o estado de tensão vivido pelos marujos da pequena frota que partiu, da baía de Guanabara, para participar dos festejos do centenário da independência chilena. Três navios participaram da expedição: o contratorpedeiro Timbira e os cruzadores Tamoio e Bahia. O último navio teria um papel essencial na revolta de 1910. Os cruzadores eram navios menores do que os encouraçados, com blindagem mais leve e com menor poder de fogo. O Bahia era um cruzador-ligeiro, lançado ao mar em 1909, com 22.000 cavalosvapor, 288 marinheiros, armado com dez canhões de 120 mm., seis de 47 mm. e dois tubos de lança-torpedos. Os contratorpedeiros ou destroyers eram navios rápidos, armados com canhões de médio ou pequeno calibre, destinados ao combate dos torpedeiros e a operações de exploração.

Viagem maldita A viagem ao Chile parecera mais uma expedição penal do que uma visita diplomática. O vice-almirante Hélio Leôncio Martins, em

seu livro, de 1988, antipático aos marinheiros, registra que « só no Bahia, entre junho e outubro de 1910, 911 homens foram incluídos no livro-registro de Contravenções, ou Livro de Castigos” . Nos livros de castigos eram anotadas as contravenções cometidas pelos marujos e os castigos ministrados. Esses “livros” não estavam à disposição dos pesquisadores, nos arquivos da marinha, quando da realização do presente trabalho. Pudemos pesquisar os “livros de quartos” e os “livros de correspondência”. Nos livros de quartos, são assinalados o estado do tempo e os acontecimentos extraordinários ocorridos nos navios. Essa documentação revela o verdadeiro terror que reinou a bordo, durante a viagem ao Chile. O cruzador-ligeiro Bahia partiu com destino a Montevidéu, primeira escala da viagem, em 10 de agosto de 1910, às 4 horas da manhã. Mais tarde, foi posto a ferros o marinheiro João Carlos Martins. No “livro de quartos”, após essa notícia sumária, anotou-se que a ... “banda de música tocou”. Seguem-se monótonas as anotações sobre marinheiros postos navio. Anotavam-se os gastos de combustível, o bom e o mal tempo, Francisco Xavier da Silva, Francisco Alves, Antônio Ferreira Lima e outros. E prosseguiu-se no mesmo trote-galope, durante toda a viagem. Diversos marinheiros teriam sido chicoteados. No “livro de correspondência” do cruzador Bahia está registrado o memorando 109, dirigido ao capitão-de-mar-e-guerra, comandante da pequena frota que visitava o Chile: “Tenho a honra de passar as vossas mãos o conselho sumário procedido a bordo deste navio para julgar da parte dada contra o marinheiro nacional de 1ª classe, da 9ª Companhia Correcional, porquanto é dado a frequentes atos de indisciplina.” Um mês mais tarde, ao largo de Punta Arenas, no extremo-sul chileno, pediu-se a inclusão na Companhia Correcional de mais dois marinheiros: José Martiniano Pereira da Silva e Silvestre Pereira de própria gestão do movimento. Em 23 de outubro, quando o cruzador Bahia voltou ao Rio de Janeiro, a situação possivelmente estivesse a

ponto de explodir. O pedido de enquadramento na “Correcional” de oito marinheiros do Bahia, por motivo fútil, encontra-se anotado no “livro de correspondência”: “[...] jogo a dinheiro depois do toque de queda!”

A mão da revolta Edmar Morel escreve sobre a agitação durante a viagem do cruzador Bahia ao Chile: “À passagem do estreito de Magalhães, rumo debaixo da porta do camarote do comandante [do Bahia], assinada por ‘Mão Negra’: ‘Venho por meio destas linhas pedir não maltratar a guarnição deste navio, que tanto se esforça para trazê-lo limpo. Aqui ninguém é salteador, nem ladrão. Desejamos Paz e Amor. Ninguém é o marinheiro Francisco Dias Martins, muito jovem, possivelmente branco, que desempenhou um papel de destaque na insurreição. Esse marinheiro, com estudos secundários, teria sido presidente de um grêmio literário fundado a bordo do Bahia. Alguns elementos destacam-se nesse documento. Os marinheiros deixavam claro que não eram salteadores ou ladrões. Duas çavam para cuidar do navio. É também importante a referência aos ciais, para serem chicoteados. O bilhete terminava com um pedido, drásticas. Não conhecemos com detalhes a atuação de Francisco Dias de diversos aspectos nebulosos da revolta. O comandante Pereira da Cunha, em seu livro A revolta na Esquadra em novembro e dezembro de 1910, cita longa carta, de 1948, assinada por um “ex-marinheiro” desconhecido. A carta, que tenta ridicularizar João Cândido, parece

misturar verdades e mentiras. Ela apresenta Francisco Dias Martins como o verdadeiro chefe da revolta. Edmar Morel, em seu livro, que certamente foi lido por João Cândido, antes da publicação, apresenta Dias Martins como o “cérebro” do movimento. Outros documentos sugerem o importante papel de Dias Martins na conspiração. Seu papel na direção da revolta teria sido possivelmente minimizado pela menor importância do seu barco, o cruzador Bahia. quando de uma estada em Buenos Aires, o “Mão Negra” teria discursado em “banquete” oferecido pelos marinheiros argentinos aos colegas brasileiros. Dias Martins teria falado da situação dos marujos nacionais e até mesmo de uma eventual revolta. Os marinheiros argentinos teriam prometido apoio, se necessário, à luta dos irmãos do Brasil. Divisão fundeava, de regresso, na baía de Guanabara. Dias Martins passou a comunicar-se com os conspiradores, para melhor articulação do movimento, foi alugado o sobrado da rua dos Inválidos n.º 71, João Cândido, que citou outros locais de encontro utilizados pelos líderes do movimento.

Qualquer governo A mesma carta fornece outras interessantes informações: “[...] na reunião dos conspiradores, realizada a 13 de novembro, [...] o conspirador Manoel Gregório do Nascimento, da guarnição do São da revista naval, em que a Esquadra, incorporada, ia sair fora da barra, para encontrar-se com o scout Rio Grande do Sul, no qual viajava o presidente eleito, marechal Hermes da Fonseca.” Francisco Dias Martins teria se oposto àquela data como dia da revolta, pois sugeriria uma revolta “política”. “Declarou mais – segue o autor da carta – que não interessava ao marinheiro qual fosse o presidente, nem mesmo qual fosse o regime de Governo, contanto

que os marinheiros nacionais não fossem escravos.” O horror à política partidária, a indiferença diante do regime de governo e a própria sentença “Paz e Amor”, da carta do “Mão Negra“, sugerem uma informação não permitam conclusão positiva. após a posse presidencial, em 15 de novembro. João Cândido relatou, a Edmar Morel, com maior precisão, os últimos momentos da conspiração: “Pensamos no dia 15 de novembro. Acontece que caiu forte cansada e muitos rapazes tiveram permissão para ir a terra. Ficou combinado, então, que a revolta seria entre o 24 e o 25.” Os marinheiros informados sobre o movimento esperariam intranquilos a data do levante. Um acontecimento inesperado precipitou a revolta e garantiu-lhe melhores condições de sucesso. Como vimos, em 16 de novembro, o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes foi retalhado por 250 chicotadas, diante de seus companheiros no convés do Minas Gerais.

Por duas garrafas de pinga Vejamos um pouco mais de perto os fatos que precipitaram a revolta dos marinheiros. Tudo se iniciou devido a duas garrafas de cachaça. A bebida era uma das poucas e tristes formas de distração dos marinheiros embarcados, originando frequentemente casos de cos. Desde os inícios da marinha brasileira, o vinho e a aguardente eram servidos comumente nos navios de guerra para seus tripulantes. Em 1890, a embriaguez passou a ser tida como agravante pelos Códigos Penal e Disciplinar da Armada. embarcado no Minas Gerais, relatou sobre os fatos: “Três dias antes de estalar o motim e estando eu de quarto, das 14 às 18 horas, aproximou-se do navio e atracou ao portaló um escaler em que vinha o cabo marinheiro Valdemar de Sousa. Este cabo subiu ao portaló,

apresentou-se, comunicou a quantidade de carne recebida e trazendo ao meu conhecimento que um dos marinheiros da guarnição do escaler das compras trazia suas garrafas de cachaça. Eu disse ao cabo futuras. O cabo respondeu que fazia aquela comunicação porque era dever dele e não temia ameaças.” Marcelino, o marinheiro acusado, foi condenado a “ferros” por tentar introduzir “suas garrafas de cachaça”. O pronome possessivo - “suas garrafas” - sugere que era habitual o ato de levar para bordo garrafas de cachaça. Marcelino foi preso pelos pés no convés do navio. Durante a noite, pediu para urinar e, quando passou ao lado da maca do cabo dedo-duro, feriu-o, levemente, com uma navalha de barbear, que lançou prontamente ao mar. As péssimas condições de existência a que eram submetidos os marinheiros levavam-nos a reproduzir comumente, entre eles, a violência de que eram vítimas. Os acontecimentos foram registrados no “livro de quartos” “Quarto da meia-noite às quatro horas. Tempo bom. O navio fundeado como anteriormente. Luzes claras. Vigias e plantões alertas. Presos: na solitária, Benedito Fortunato, marinheiro nacional, Alcino da Silva e Francisco Xavier das Neves, foguistas. Algemado e preso a um olhal [anel de ferro] do convés, o marinheiro nacional da 2ª classe, Marcelino. À 1h20, apresentou-se-me o cabo Valdemar Rodrigues de Souza, ensangüentado e apresentando dois ferimentos; declaroume ter sido agredido pelo marinheiro nacional Marcelino, quando dormia em sua maca. Imediatamente, mandei arriar e guarnecer a segunda canoa, que foi procurar o cirurgião de serviço no Andrada, navio-de-registro. Em seguida, procedi à prisão de Marcelino, que já se achava a ferros, mandando algemá-lo e prendê-lo a um olhal [...].”

Ferindo a alma tava embarcado no Minas Gerais durante os fatos, Marcelino teria “desfechado enorme golpe sobre o rosto do cabo, que foi desde a

comandante do Minas Gerais, Batista das Neves, ao seu superior, pevalhada a sua verdadeira dimensão: “Segundo o juízo do médico [...] – diz o documento – o ferimento é leve.” Devido a um ferimento leve em um colega delator, Marcelino foi condenado a 250 chicotadas! Octávio Brandão, em seu romance histórico O caminho, registra um castigo maior: 385 golpes! O castigo alma. aos subalternos, estava revestida de verdadeiro cerimonial. Ela procastigos – e a inferioridade dos marinheiros. Como vimos, Marcelino foi literalmente retalhado, na madrugada de 16 de novembro de 1910. Ao terminar o castigo, os marinheiros marcharam para a proa e debandaram. O supliciado foi levado à enfermaria: estava em para ser salgada”. Em plena República, apanhara como “negro fujão” dos tempos do cativeiro. O castigo estremeceu profundamente a tripulação do Minas Gerais. Possivelmente, os chefes da conspiração temeram um movimento espontâneo e, portanto, desorganizado. Na mesma noite, decidiram antecipar a data da insurreição. Juraram: Marcelino seria o último marinheiro chicoteado! O dia marcado foi o 22, às 10 horas da noite. O sinal seria o toque de recolher. Anos mais tarde, João Cândido explicaria a Edmar Morel: “Naquela noite o clarim não pediria silêncio e sim combate.”

9. A noite em que o clarim pediu combate Em 22 de novembro de 1910, a quase totalidade da marinha de guerra brasileira encontrava-se fundeada na baía de Guanabara. Entre os numerosos navios encontravam-se os poderosos dreadnoughts mortíferas armas dos mares da época. Lá se encontravam igualmente outras embarcações: cruzadores, contratorpedeiros, torpedeiros, etc. Porém, nenhuma delas competia em poder destrutivo com as duas terríveis máquinas de guerra. Foi de uma delas que partiu o sinal para o início da revolta. Às 22 horas de 22 de novembro, explodia a insurreição a bordo do dreadnought Minas Gerais. João Cândido relatou, com poucas palavras, a perfeita disciplina em que ela se desenvolveu, sinal do reconhecimento geral na direção do movimento: “Cada um assumiu o seu jos, com ordem de atirar para matar contra todo aquele que tentasse impedir o levante.” “Às 22h30, quando cessou a luta no convés, mandei disparar um tiro de canhão, sinal combinado para chamar à fala os navios comprometidos.” Como nos planos de insurreição da esquadra do mar Negro, a revolta foi lançada em uma hora em que os

Apesar de rápida, a luta foi intensa. Nela tombou o comandante do dreadnought Minas Gerais, Batista das Neves, ferido, primeiro na cabeça, por uma barra de ferro, e, a seguir, por bala. Pagou com a vida a incapacidade de reconhecer decisão naqueles marinheiros dispostos a acabar com as humilhações a que eram submetidos. Morreram tista das Neves seria promovido, post-mortem, a contra-almirante. Talvez devido à má repercussão do comportamento dos marujos do Potemkin, que jogaram os corpos dos superiores mortos ao mar, os uma câmara ardente, até serem enviados para terra. Pouco mais de um mês após a revolta, o primeiro-tenente Milcíades Portela Alves, que estava embarcado no Minas Gerais, escreveu sobre os fatos: “Até a hora em que rebentou o motim, de nada se suspeitou, a não ser que os cadeados dos paióis, havia dois dias, amanheciam serrados.” “O comandante tinha saído, para jantar a h. 05 [da noite] chegou uma lancha do Minas trazendo o almirante Gavião Pereira Pinto e o comandante Batista das Neves; o primeiro foi na mesma lancha para o Arsenal [...].” O comandante Batista das Neves conversava com o tenente Álvaro Alberto, que se encontrava de serviço. Nesse momento, nos porões, os marinheiros organizavam suas forças e o navio encontrava-se parcialmente sublevado. Quando o comandante Batista das Neves prepara-se para dirigir-se aos seus aposentos, os marinheiros iniciam o ataque.

As regras do jogo ciais tinham em seu favor quase tudo. A tradição da hierarquia e da educação no mando. Os pesadíssimos castigos ministrados aos recialidade representava o mundo legal, desde sempre dominante. As forças armadas. As instituições. A República. O mundo dos senhores

Sobre os marinheiros negros pesava mais do que um universo. Tinham sido desde sempre e continuavam sendo os “inferiores”, os “subalternos”, os “de baixo”. Os nascidos para obedecer, sem se questionarem. Os educados para baixar as cabeças. Para não olhar de trabalhadores escravizados. Deviam se apoiar apenas nas suas forças para acabar com aquela vida de cativo, em plena República. bem e os revoltosos as pressentiam. Se os marinheiros vacilassem, e eles estariam para sempre perdidos. A pequena crespa da revolta desapareceria na uniformidade da ordem constituída. Para vencer, a como uma onda gigantesca sobre o mar revolto. Nascida nos porões, a revolta devia invadir as cobertas, explodir no convés, apoderar-se da sala de mando, dos outros navios, da Esquadra. Os marinheiros envolvidos no movimento deviam ganhar o apoio dos indecisos, neutralizar os refratários, submeter os oposio impasse. Os marujos procuraram terminar tudo, logo, num sopro violento. Estabelecer um novo poder armado, ainda que restrito aos poderosos navios da Armada. É impossível estabelecer a sequencia exata dos acontecimentos. Os combatentes sabem apenas o que ocorre em seu redor. A carta revolta. Sua descrição da luta apresenta um comandante Batista das Neves consciente da situação em que se encontrava, tentando usar a tista das Neves teria exortado “a guarnição, dizendo que aqueles não eram os meios de que uma guarnição correta devia lançar mão para reclamar: que dissessem o que queriam, e que ele estava pronto para ouvi-los, desde que se portassem como homens dignos da farda que vestiam [...].” Ou seja, que abandonassem a insubmissão.

Tudo ou nada dos marinheiros. “Durante esse tempo – segundo o tenente Milcíades – os marinheiros agrupados junto da torre n° 6 gritavam: ‘Abaixo a ginástica [sueca]; viva a liberdade’ e atiravam contra nós pedaços de ferro e tudo quanto estivesse a seu alcance. Quando o comandante terminou a exortação, determinou que a guarnição formasse, no que foi contrariado. Como ele estivesse um pouco rouco, eu falei em voz alta perguntando se não cumpriam as ordens do Senhor comandante; nessa ocasião, mais ou menos 50 ou 60 marinheiros obedientes cumpriam minha ordem e vieram formar à ré [. ..].”. belecida e a revolta, perdida para sempre. Em resposta à ordem dos no Potemkin, poucos marujos obedeceram. A rebelião ganhara o coração dos marinheiros. Antes da revolta, no Minas Gerais, havia um tecimentos, dois comandos disputavam duramente a obediência dos marujos. A tensão era imensa e a indecisão devia ser resolvida, logo, em favor dos marinheiros, para que a ordem anterior não fosse restabelecida. Logo, apenas um poder reinaria no navio: o representado por João Cândido, o marinheiro negro, então com trinta anos, verdadeiro veterano entre os marujos rebelados. A revolta vencera sua Nos outros navios, a rebelião não se iniciara no mesmo momento que no Minas Gerais. O 1°. tenente Milcíades, que abandonara o encouraçado para transportar o tenente Álvaro, mortalmente ferido, dirigiu-se para o dreadnought São Paulo. “Quando deixei o São é mais preciso: “Depois que a guarnição do São Paulo teve aviso da sublevação do Minas Gerais, levantou vivas à liberdade e uma comisSalustiano de Lemos Lessa, a quem comunicou a resolução tomada. bordo, pedindo por isso que se retirassem.”

de vencerem sem mortes. Compreendendo que não tinham possiguinte, o primeiro-tenente Américo Salles de Carvalho, que permaneceu escondido a bordo para organizar uma eventual resistência, suicidou-se, possivelmente desesperado com a revolta e estressado com a noite passada a bordo do navio rebelado. A facilidade e a rapidez do domínio do São Paulo pelos marinheiros deviam-se ao fato de que eles já contavam com a certeza da vitória do movimento no encouraçado irmão. A revolta partia de uma posição de força. Sabiam que era possível vencer. Já tinham vencido, no Minas Gerais. Não era mais tudo ou nada. Se derrotados, os dreadnought. Sem guarnição, o São Paulo não poderia defrontar-se com o Minas Gerais. O Minas GeA revolta no São Paulo venceu quase sem derramamento de sangue. No cruzador Bahia, as coisas não ocorreram tão tranquilamente.

Brincando com a morte O autor da carta misteriosa já citada, de 1948, publicada pelo nheiro no cruzador Bahia, durante a revolta. Ele forneceu uma detalhada descrição dos fatos: “ Quanto ao primeiro-tenente Mário Alves, morto a bordo do Bahia, deveu sua morte a sua própria temeridade, pois que enfrentando sozinho a guarnição (visto já ter sido forçado a desembarcar o seu auxiliar de quarto e terem sido presos em seus Como no Potemkin, também no cruzador Bahia, o primeiro caído foi um marinheiro. A mesma carta relata que o tenente Mário Alves “matou à bala o marinheiro Balduíno Baiano da Costa, por se ter recusado a formar a guarda de bordo, da qual era [...] o comandante. De espada à destra e revólver à canhestra, o tenente Mário Alves enfrentava e atacava a guarnição como um louco, na ânsia de dominá frente para boreste, e assim decorreu cerca de duas horas, quando já

Segundo a mesma carta, Francisco Dias Martins, delegado do que terminaria desistindo, por cansaço. “Mas tendo ferido o segundo marinheiro e sempre atirando e investindo contra todos, acabou morto à bala, pois impossível fora prendê-lo ou subjugá-lo.” A poste-

derosos. Desde jovem, seu sobrinho trairia sua classe, optando pela trincheira dos humilhados. Aderindo ao Partido Comunista e, mais tarde, já como dirigente de destaque, participaria da fundação do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, morrendo sob torturas bárbaras, em 1970, de cabeça erguida diante dos verdugos de seu povo. Às 22h50min., quando o Minas Gerais disparou salva para comunicar-se com os navios comprometidos na rebelião, todos os barcos responderam. João Cândido lembrava: “As 22h50, quando cessou a luta no convés, mandei disparar um tiro de canhão, sinal combinado para chamar à fala os navios comprometidos. Quem primeiro respondeu foi o São Paulo, seguido do Bahia. O Deodoro, a princípio,

Sem saber por quê O encouraçado Deodoro fora construído na França, em 1898. Era, portanto, um barco mais antigo, de média tonelagem e reduzido raio de ação. Em seu livro, publicado em 1988, o vice-almirante Hélio Leôncio Martins apresenta uma estranhíssima interpretação para a eclosão do movimento no barco. O primeiro-tenente Antônio Barbosa Moreira Martins, de serviço no navio, ao ouvir tiros e gritos de revolta chegados dos grandes encouraçados, mandou notícias dos fatos para terra, às duas horas da manhã. Assinalou igualmente que Duas horas mais tarde, um pequeno barco aproximou-se do

cruzador Bahia, de onde foi afastado, por alguns disparos de armas leves. Ao atracar no Deodoro, um primeiro-tenente do corpo da Armada, João Paiva de Novais, pediu para subir a bordo. Apôs fazê-lo, sublevara para “depor o governo” e que era necessário pronunciarse, ou pela revolta, levantando a bandeira vermelha, ou contra ela, abrindo hostilidades contra o Bahia. Nos outros navios, a essa hora, os marinheiros içavam a bandeira da revolta e mantinham o pavilhão nacional, à meio pau, como símbolo de luto. O primeiro-tenente Moreira Martins, vendo que nenhuma das duas propostas do tenente Paiva prosperava, aproveitou para abandonar o navio, em um pequeno barco, com alguns marinheiros. A seguir, o cabo José Araújo assumiu o comando do encourade Novais, que então se encontrava dormindo. Mais tarde, diante do Conselho de Guerra, reunido para examinar as suas ações, o tenente Paiva esclareceu que se encontrava em terra, alcoolizado, quando soubera do movimento. Tentara voltar para seu navio, o cruzador Bahia, e terminara embarcando-se no Deodoro. Sobre sua adesão ao anos, na Armada. Ao saberem da revolta, inicialmente, o governo temeu movimento inspirado pelos civilistas para depor o marechal Hermes da Fonseca. Garantida a vitória nos dois principais barcos da Esquadra e

O encouraçado Deodoro desempenhou importante papel durante a revolta de 1910.

contando com o apoio decisivo do cruzador Bahia e do encouraçado Deodoro, a revolta conquistava clara superioridade naval sobre o restantes. Rapidamente, a revolta estendeu-se sobre diversos navios fundeados na baía e, até mesmo, entre as tropas de terra. A própria fortaleza Villegaignon – quartel central do Corpo de Marinheiros Nacionais – levantou, por algum tempo, a bandeira vermelha, antes de ser submetida. O Batalhão Naval, corpo de fuzileiros da marinha, na ilha das Cobras, também agitou-se, sem que a revolta tivesse entretanto prosperado e se imposto.

Navio-escola Em alguns barcos, como no navio-escola Benjamin Constant, rem. O cruzador República fora construído na Inglaterra, em 1892. Tinha casco de aço e propulsão mista hélice/vela. Esse e outros navios foram abandonados pela maioria da tripulação, que se transferiu para os grandes barcos rebelados. O segundo segundo-tenente Sosthenes Barbosa informa o que ocorreu no navio-escola Primeiro de Março. O navio estava perto do dreadnought Minas Gerais. Escutaram-se tiros de fuzil mauser no encouraçado e gritos de “viva a liberdade”. Compreendendo para os possíveis acontecimentos. Por volta das 23 horas, o Minas Gerais aproximou-se do navio-escola Benjamin Constant, exigindo que aderisse ao movimento. Sem resposta, disparou algumas salvas de artilharia. Logo após, voltou-se para o navio-escola Primeiro de Março, perguntando quem era o marinheiro mais antigo. Ele deveria

Verdadeiro alvoroço invadiu o navio-escola Primeiro de Março. Porém, o tenente Sosthenes conseguiu controlar a tripulação. Consferiores”. Eles eram malvistos pelos marinheiros. Encarregados da

navio-escola Primeiro de Março. Aproximando-se mais uma vez, o Minas assinalou que se preparava para vistoriar o navio. Se houvesse O tenente Sosthenes Barbosa ordenou que o navio se pusesse em marcha. O cabo responsável pelas máquinas encontrou diversas desculpas para não movimentar o barco. O dreadnought São Paulo acercou-se da embarcação. Os marinheiros da belonave vacilavam apenas formalmente o navio-escola. Os marinheiros do Primeiro de Março atiraram – como ordenaram os sublevados – sobre as pequenas embarcações que navegavam nas imediações das naves revoltamarinheiro, depois de falar rapidamente à tripulação. A revolta vencera. A seguir, os navios rebeldes patrulharam a baía de Guanabara, chamando as outras embarcações para o movimento. Desde logo, os revoltosos conquistaram o reconhecimento de sua superioridade bélica. A artilharia menor dos navios rebeldes disparou diversas vezes, breve e poderosamente, sobre os fortes da costa e sobre os navios renitentes. Quando o cruzador Barroso e o caça-torpedeiro Timbira tentaram bombardear o Minas Gerais, o dreadnought dirigiu contra eles seus poderosos canhões, calando-os. Nesse sentido, os marinheiros brasileiros mostraram maior decisão do que seus irmãos russos. Deixaram claro que, se ignorados, utilizariam as armas que dominavam, sem vacilações. Durante toda a revolta, morreram vinte marinheiros.

10. O contra-ataque impossível O presidente Hermes da Fonseca participava de uma recepção, Tannhauser, de Richard Wagner, em três atos, encenada pela primeira vez em 1845, com argumento apoiado em duas lendas germânicas. Nada mais distante da realidade brasileira de então! Hermes da Fonseca foi informado dos acontecimentos pelo próprio ministro da Marinha, o vice-almirante Batista de Leão, por contato telefônico. O ministro também acabara de ser empossado, havia sete dias. Imediatamente, o presidente retirou-se da festa, mudou de traje em sua residência e se dirigiu ao Palácio do Catete. Uma das primeiras preocupações de Hermes da Fonseca foi com a “ordem” da capital da República. Mandou colocar sob vigilância diversos inimigos políticos, pois ainda não sabia com certeza de onde provinha o golpe que lhe era assentado. Temia uma tentativa de deposição, sobretudo por parte dos civilistas de Rui Barbosa apenas derrotados. A seguir, o marechal encontrou-se com os ministros da Guerra e da Justiça. Era necessário preparar uma resposta militar aos rebeldes. As medidas pertinentes foram rapidamente tomadas. Mandouse guarnecer o litoral até a cidade de Niterói, no outro lado da baía. Ordenou-se a prontidão na fortaleza Villegaignon, no Batalhão Naval e na Escola Naval. A 8° Região Militar foi colocada em absoluto aviso.

cial e nos estados maiores. Era fundamental ter notícias precisas quanto às forças navais leais ao governo. Tratava-se de uma luta de marinheiros. O combate daria-se forçosamente no mar. Urgia saber com quantos canhões e barcos contava o governo. Por volta da 1h30min. da madrugada do gração da revolta em pelo menos três navios: os encouraçados Minas Gerais e São Paulo e o cruzador Bahia. O ministro informou que havia recebido telegrama dos revole de trabalho. Em seu relatório de maio de 1911, o vice-almirante Batista de Leão refere-se àqueles momentos: “Ainda antes de conhecer todos estes detalhes, expedi um radiograma para bordo do Minas Gerais indagando o que havia. Em resposta já me telegrafava a guarnição revoltada, intimando a abolição dos castigos corporais, a diminuição do trabalho e o aumento de vencimentos, sob a ameaça de bombardear a cidade.”

Aqui e agora A resposta dos marinheiros teria sido dura. “Não queremos a volta da chibata. Isso pedimos ao presidente da República, ao ministro da Marinha. Queremos resposta já e já. Caso não tenhamos, bombardearemos cidade e navios que não se revoltarem. Guarnições Minas, São Paulo e Bahia.” Ao contrário do movimento do Potemkin, o movimento brasileiro era essencialmente sindical. Não havia reivindicação política ou impedimento maior ao acolhimento das exigências. Porém, quando o telegrama dos rebeldes foi levado ao conhecimento do presidente, ele ordenou resposta em termos “enérgicos”. Não era possível o diálogo. A disciplina devia ser imposta, a todo custo. A resposta foi a seguinte: “O ministro da Marinha, em nome do presidente da República, declara que reclamações, quando justas e baseadas na lei, só podem ser atendidas quando feitas com subordinação e respeito aos

poderes constituídos.” “Em réplica – continuou o ministro em seu relatório – novo radiograma [...] insistia na satisfação imediata do exigido, ainda sob a quele momento, não havia certeza sobre os navios revoltados: sabia-se que o cruzador Barroso, os navios-escolas Benjamin Constant e Primeiro de Março, e a divisão de oito destroyers conservavam-se A divisão era formada pelos torpedeiros Alagoas, Amazonas, Pará, Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba, Santa Catarina e Mato Grosso. Eram pequenos navios recém-chegados da Inglaterra, armados com dois canhões de 102 mm e quatro menores, além de dois tubos de torpedos simples. Eram tripulados por em torno de oitenta homens. Na manhã do dia 23, os marinheiros revoltados chamaram lanchas para desembarcarem os corpos dos caídos e levar mensagem escrita ao presidente. Na carta, os marinheiros declaravam-se “cidadãos brasileiros e republicanos”, incapazes de suportarem a “escravidão na marinha brasileira”. Lembravam que, vinte anos de República não “foram bastante” para que fossem tratados “como cidadãos fardados em defesa da pátria”. Reclamavam que acabassem petentes e indignos de servirem a nação”, que reformassem o “Código imoral e vergonhoso que” os regia, abolindo a “chibata, o bolo e outros castigos semelhantes”. Os marujos pediam aumento de vencimento, diminuição das para que as reivindicações fossem cumpridas. Horas mais tarde, outra mensagem dos marinheiros ressaltava a consciência que tinham de serem tratados como cativos e não como cidadãos. “ Por isto pedimarinha brasileira seja uma armada de cidadãos e não uma fazenda de escravos que só têm dos seus senhores o direito de serem chicoteados.” A mensagem era assinada pelos “marinheiros revoltados”.

Fogo em palha Rapidamente, o governo tomava conhecimento da gravidade do movimento. Temia-se também o perigo remoto, mas real, que a rebelião envolvesse a totalidade da Esquadra e fuzileiros da Armafundamente distinta da de 1893, também na Esquadra. Aquela fora culo, monopólio dos grandes proprietários. Agora, tratava-se de movimento organizado e dirigido por membros dos setores tidos como situação explosiva. Podia alastrar-se às classes subalternizadas da capital. O governo vacilava, não sabia como comportar-se. governo na marinha não rebelada. Mais da metade dos marinheiros sediados na capital da República – 2.630 de um total de 5.000 praças simpatia com que contavam os rebeldes entre os marinheiros e solação, ela era conhecida pelos marinheiros revoltados. O coração dos marinheiros batia em uníssono com o dos cisnes negros que singrara entre os de cima e os de baixo! E os marinheiros, em sua grande maioria negros, mulatos e caboclos, estavam cansados de ouvir que deviam conhecer seu lugar! litar, por mínima que fosse. Decidia-se muito, mas realizava-se quase nada. Em seu relatório ao presidente, o vice-almirante Batista de

Leão falou longamente das medidas tomadas por seu ministério. O principal apoio governamental eram os oito torpedeiros – barcos minúsculos, armados de canhões pouco poderosos e alguns torpedos, impotentes diante dos encouraçados. E era necessário municiar os torpedos, para um eventual ataque.

Cabeças pouco combatentes Os torpedos, em tempo de paz, eram armados com cabeças de exercício. As cabeças de combate permaneciam nos depósitos. O vice-almirante ordenou que os navios fossem preparados. Durante a um depósito, na ilha do Boqueirão. Em vão. Não era lá que se encontravam. O engano foi responsável pela perda de inúmeras horas. Então, o ministro telegrafou para o Comando Geral dos Torpedeiros, ordenando que o torpedeiro Goiás fosse aprontado. Em novo telegrama, ao mesmo comando, ordenou que retirassem da “ilhota próxima da Armação as cabeças de combate e mais apetrechos necessários aos Niterói. patrulhavam atentos, disparando sobre as embarcações que navegavam na baía. O ministro telegrafou para o comandante das forças de Niterói, onde estavam aquarteladas as guarnições do Comando Geral dos Torpedeiros e do cruzador Tamandaré. Marcou um encontro para a noite de 23, na própria baía, ao norte da ilha do Engenho, para O telegrama não foi recebido. A lancha com as cabeças de combate navegou sem rumo durante toda a noite sem encontrar os torpedeiros. Passou-se a noite de 23 e esses últimos encontravam-se desarmados. Apenas na manhã de 24 a missão foi realizada. Infrutiferamente! Pequeno detalhe: as “cabeças” retiradas dos paióis não eram as utilizadas pelos torpedeiros. Somente na noite de 24, quando a anistia já fora votada no Senado, 48 horas depois do início da

rebelião, a missão seria cumprida. Parcialmente. Em verdade, menos de doze torpedos foram armados e “nem todos previamente regulados”! Como no mar Negro, também na baía de Guanabara a reação da Apenas na madrugada de 25 de novembro, após receber ordem do presidente, o ministro Batista de Leão assinou a ordem de ataque aos navios rebeldes. “Rio de Janeiro, 25 de novembro de 1910. O ministro da Marinha, por intermédio do [...] ordena que o Comandante [...] hostilize com a máxima energia aos navios revoltados, metendo criminosa.” Os rebeldes foram imediatamente informados sobre o ataque. O contratorpedeiro Timbira fora construído na Alemanha, mensagem aos seus camaradas: “Tenha cuidado com a noite. Os desorigem italiana vêneta, do torpedeiro Paraíba, posicionava-se também ao lado dos rebeldes. Como veremos, em resposta à tentativa de ataque, a esquadra rebelde simplesmente se retirou, em ordem, para o alto-mar. Lá, o combate contra os pequenos navios seria um verdadeiro massacre. Foi também considerada a possibilidade de minar a barra da baía. Como o material para armar as minas estava espalhado por diversos arsenais, como no caso dos torpedos, armou-se um númepacidade de vencer militarmente o movimento, o governo decidiu a aceitar as reivindicações dos rebeldes. Depois veria-se o que fazer. A ordem de combate geral foi anulada, antes de iniciarem-se as operações. Na desistência do governo de travar combate certamente também pesou a agitação que se apossara da capital. Em apenas um dia, três mil citadinos de posses partiram, em doze composições especiais da estrada de ferro, para se refugiarem em Petrópolis, distante da baía e da plebe. Sem recursos para abandonarem a cidade, milha-

res de habitantes deixavam o Centro pelos subúrbios, que se encontravam longe dos possíveis alvos dos rebeldes.

11. O governo decide-se pelo diálogo Os políticos republicanos optaram pela artimanha. Para ser estrela da operação-diálogo, foi escolhido o comandante José Carlos de Rio Grande do Sul. Gozava de certa simpatia entre os marinheiros, por ter proposto melhores salários e condições de trabalho mais digseus companheiros de farda por ter tentado encontrar uma saída poEm 23 de novembro, às 9 horas da manhã, o comandante José Carlos de Carvalho foi procurado em sua residência por emissário do chefe do seu partido e homem forte do regime – o senador rio-grandense Pinheiro Machado. Fora decidido em acordo com a oposição uma solução não-armada da crise. Nesses momentos, como vimos, militar para derrotar a revolta. O comandante José Carlos de Carvalho farda-se e parte para tos nos combates da véspera. Em uma lancha com bandeira branca, navega para o dreadnought Minas Gerais. Do São Paulo são disparadas salvas que o obrigam a dirigir-se até o encouraçado. Quando os tripulantes do grande navio percebem que se tratava de emissário

do governo, fazem-no subir a bordo, saudando-o com as honras de costume. No dreadnought São Paulo, o comandante é informado, outra vez, das reivindicações dos marinheiros. Dialoga com a guarnição e com Manoel Gregório do Nascimento –, 22 anos, alagoano, escolhido como comandante do navio. Enquanto isso, o comitê do Minas Gerais telegrafa ao São Paulo perguntando quem se encontrava a bordo. Ao saber tratar-se de enviado governamental, pede que visite, também, o encouraçado irmão. O comandante José Carlos de Carvalho dirige-se para o Minas gura da revolta – o marinheiro negro João Cândido. O enviado do governo percorre o navio, constatando a perfeita ordem e disciplina que reinava no encouraçado. Os próprios marinheiros fazem questão de mostrar-lhe o cofre do navio, intacto, guardado por quatro marinheiros armados. Tal ação talvez se explique pela repercussão, na grande imprensa, das fotos dos marinheiros russos abandonando o Potemkin carregados com os pertences do navio que puderam resgatar.

Prova viva O marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes, chicoteado poucos dias antes, foi exibido ao comandante José C. de Carvalho. Ao relatar sua missão aos parlamentares republicanos, como vimos, descreveu o miserável como “uma tainha lanhada para ser salgada”. Outra vez, repassa-se a lista de reivindicações e o pedido de anistia. E do mesmo dia, 23 de novembro. Os revoltosos exigiam “garantias de vida, segurança que não seriam desembarcados, nem transferidos para o Corpo de Marinheiros, ou quaisquer outros navios”. Exigiam também a nomeação do capitão-de-mar-e-guerra João Pereira Leite como comandante do Minas Gerais. -

uma verdadeira catástrofe, já que a blindagem e a velocidade dos navios e, sobretudo, o alcance de seus canhões, os colocavam praticamente a salvo das baterias da orla da baía da Guanabara. O deputado federal rio-grandense voltou à cidade para relatar sua missão. Conferenciou com o ministro da Guerra e dirigiu-se, a seguir, para o palácio do Catete, onde se encontravam reunidos senadores, deputados e dois ex-presidentes – Rodrigues Alves e Campos Sales. Nesse momento, estava quase decidida a anistia. Às 16h30 da tarde, o comandante José Carlos de Carvalho reuniu-se, mais uma vez, com o ministro Batista de Leão. Faltavam apenas sessenta minutos para que o comandante José Carlos de Carvalho se dirigiria, mais uma vez, aos navios, para, como veremos, criar as condições que facilitariam a aprovação do projeto de anistia. Já de volta ao Minas Gerais, depois de cumprir sua missão e declarar a decisão do governo de conceder o perdão, o comandante José Carlos de Carvalho pediu para que os marinheiros não bombaros marinheiros apenas queriam o exigido. Então, o deputado enviou telegrama ao Catete e partiu para o dreadnought São Paulo.

Enquanto o comandante Carvalho encontrava-se nos navios rebeldes, no Senado continuavam as discussões sobre a concessão de anistia. O projeto fora apresentado pelo senador oposicionista péssimas condições de vida e trabalho dos soldados e marinheiros. O senador baiano esquecera que, quando esteve no Governo Provisório, participara da reintrodução da chibata na marinha de guerra. Rui Barbosa reconheceu razão e dignidade à revolta dos marinheiros.

Dignidade da força “Eles – proclamou na tribuna Rui Barbosa – tinham lançado ao mar toda a aguardente existente a bordo para não se embriagarem; tinham feito guardar com sentinelas as caixas onde se acham depositados os valores; tinham mandado atalaiar [vigiar] com sentinelas os dado na organização do movimento um sigilo prodigioso entre os se fossem forças regulares contra inimigos regularmente constituídos.” O senador baiano reconheceu: “Gente desta ordem não se despreza. Lamentam-se os desvios, mas reconhece-se o valor humano que ela representa.” Não apenas a dignidade dos marinheiros – apenas descoberta – recomendava a concessão da anistia. Não era possível sufocar militarmente a revolta, a curto ou médio prazo. Rui Barbosa ironiza as pretensões de tomar por abordagem as naves reLembra as contradições dos que pretendiam destruir os imponentes dreadnoughts com pequenos torpedeiros. Os poderosos navios, que tinham custado somas altíssimas, eram ou não indestrutíveis, como se dissera, quando dos debates sobre a compra dos barcos? – perguntou o senador. Para Rui Barbosa e a classe política, estava claro: “ Ou o Governo da República dispõe dos meios cabais [totais] e decisivos para

debelar esse lamentável movimento, e então justo seria que os empregasse para restituir imediatamente a tranquilidade ao país, ou desses meios [não] dispõe o governo da República, e, em tal caso, o que a prudência, a dignidade e o bom senso lhe aconselham é a submissão às circunstâncias do momento. ” As palavras do senador baiano tocam os corações dos representantes dos donos da riqueza e do poder do país. Era necessário conceder a anistia e voltar à ordem, rapidamente. O senador baiano não perdeu a oportunidade para reforçar suas posições políticas, criticando o comportamento do governo. O barão de Rio Branco, ministro de Relações Exteriores da República, e o governo inglês insistiam igualmente na concessão da anistia. O primeiro, para não perder os valiosos navios, poderoso argumento nas negociações com os Estados vizinhos. O segundo, por motivos ainda não bem esclarecidos.

Porta-voz dos donos do poder A resposta do senador Pinheiro Machado – homem forte do regime – a Rui Barbosa é fundamental para elucidar as tratativas entre o comandante José Carlos de Carvalho e os marinheiros revoltados. José Gomes Pinheiro Machado era o segundo homem do Partido Republicano Rio-Grandense, de orientação positivista, e eminência parda da República Velha. Aos quinze anos, se arrolara e luta, por dois anos, na Guerra do Paraguai. Ele participara da fundação do PRP e lutara com destaque na Guerra Federalista rio-grandense, de 189395. O senador Pinheiro Machado inicia sua peroração solidarizancritamente, que ninguém, no governo e no Parlamento, sabia que se apanhava nas forças armadas! Ressaltar a ilegalidade da chibata era politicamente determinante. Com isso, controlava-se melhor a alta -

O discurso de Pinheiro Machado afasta-se rapidamente da intervenção do senador pela Bahia. Para ele, a anistia, dada naquelas condições, atentaria contra o intocável princípio da ordem. “Pode e deve surgir dentro do país e fora dele a suspeita, senão a humilhante convicção, de que o princípio da autoridade – que principalmente os governos democráticos devem manter forte e intangível – foi profundamente ferido [...].” A anistia só podia ser concedida quando os revoltosos abandonassem as armas. A intervenção de Pinheiro Machado elucida o sentido da primeira visita do comandante José Carlos de Carvalho aos navios revoltados. O emissário prometera a anistia desde que os marinheiros entregassem, primeiro, as armas – isto é, os navios. Os sublevados do comandante José Carlos de Carvalho não fora bem-sucedida porque “à última hora, os revoltosos, que se satisfaziam com a palavra daquele ilustre representante da nação, exigiram depois, como condição imprescindível, a votação [da anistia] [...] para então abaterem as armas.” Pinheiro Machado aceitaria a anistia, desde que não fosse concedida a marinheiros de “armas nas mãos”. Era a estirpe, a ordem, a autoridade, o regime que exigiam dos marinheiros negros uma mesura, uma reverência, um salamaleque de respeito hipócrita. Na discussão que segue, vislumbram-se as concepções políticas e ideológicas que separavam os dois principais políticos do Senado: Rui Barbosa e Pinheiro Machado. Ambos eram homens do regime e representantes -os. Rui Barbosa, abolicionista no passado, intelectual de destaque, sentia-se obrigado a reconhecer a coragem e a habilidade dos marinheiros negros. Simpático à ‘modernidade’ e ao ‘industrialismo’ ainda raquíticos no Brasil, talvez lhe embriagasse, por um momento, a força que via nascer das entranhas do povo brasileiro.

Cheiro de povo Pinheiro Machado, não. Era representante direto das classes dominantes sulinas e nacionais. Votava desprezo a tudo que chegasse das classes populares. A própria interpretação positivista do mundo, por ele já abraçada muito imperfeitamente, exigia a gestão do poder sem qualquer interferência das classes subalternizadas. A visão de Pinheiro Machado da revolta era diferente da de Rui Barbosa. Ele refere-se a ela com desdém: “[...] uma revolta capitaneada por nenhum chefe de responsabilidade, não dirigida por elementos que que podem causar [...].” Rui Barbosa havia criticado o excessivo crescimento das forças do, numerosos. Para Pinheiro Machado, o golpismo militar não era problema. Fala com clareza: “[...] não são os fortes armamentos que produzem revoluções – mas sim a indisciplina e a anarquia das classes sociais [ou seja, trabalhadoras].”

Marinheiros rebeldes no encouraçado Minas Gerais, quando da Revolta da Chibata.

O debate sugere as razões pelas quais Rui Barbosa jamais obteve a ses dominantes brasileiras. Foi homenageado, reconhecido, nomeado conselheiro do Império, ministro da República, embaixador, senador. Porém, jamais chegou à magistratura suprema da nação. Sua inclinação de-

mocrática, mesmo mantendo-se nos limites da ordem oligárquica, era inaceitável para as classe dominantes da época. A discussão não avançava. Pinheiro Machado defendia a possibilidade da vitória militar do governo, depois de pesadas baixas. bosa contra-atacava lembrando a eventual agitação popular, caso o governo iniciasse o confronto. Os dois senadores concordavam que seria grande o prejuízo, se houvesse perda total dos caríssimos navios e a capital da República fosse bombardeada. Em caso de combaPinheiro Machado lembrou que, naqueles momentos, o comandante José Carlos de Carvalho encontrava-se nos navios rebeldes, parlamentando com os marinheiros. A discussão prosseguia acesa até que Pinheiro Machado recebeu o telegrama que esperava, marinheiros aceitavam depor as armas!

Telegrama Prá Inglês Ver Era a seguinte a mensagem: “Excelentíssimo senhor Marechal Hermes da Fonseca. Mui digno presidente da República – arrependidos do ato que praticamos em nossa defesa, por amor da ordem e concedida anistia pelo Congresso Nacional, abolindo como manda a lei o castigo corporal, aumentando o ordenado e o pessoal, para que – Os Reclamantes.” Um telegrama de mesmo teor fora enviado ao Senado. O comandante José Carlos de Carvalho conseguira que o Minas Gerais expedisse os educados telegramas, quando de sua segunda missão. Ficavam respeitadas as ‘honras’ republicanas. Porém, todos sabiam que os marinheiros permaneciam nas miras dos canhões, esperando que a anistia fosse votada. Era telegrama “para inglês ver”, de mentirinha.

Recebida a mensagem, o senador Pinheiro Machado brada da tribuna não haver mais impedimento para o perdão. A ordem, a disciplina, a legalidade o governo oligárquica, e tudo mais fora resguardado, ao menos nas aparências ... Então, o Senado vota a anistia, por unanimidade. A sessão foi levantada às 17 horas e cinco minutos da tarde de 24 de novembro de 1910. Vinte e cinco minutos antes do prazo determinado pelos marinheiros negros. O primeiro secretário do Senado telegrafa então aos navios rebeldes, onde se encontrava ainda o comandante José Carlos de Carvalho: “Depois do recebimento dos telegramas dos reclamantes depondo as armas, o Senado votou a anistia, seguindo o projeto para a Câmara, que votará amanhã. Saudações.” Minutos mais tarde, por volta das 17h30min., o comandante José Carlos de Carvalho desembarca no Arsenal da Marinha. Vinham com ele os músicos italianos da banda do dreadnought. O maestro e seus músicos aproveitavam para escafederem-se do navio, juntos O projeto foi aprovado pelo Senado. No dia seguinte, foi votado pela Câmara e sancionado pelo presidente Hermes da Fonseca, não tes, um deputado que criticava violentamente a aprovação da anistia foi interpelado por um de seus colegas, de pistola na mão. Enquanto as discussões avançavam, o comandante José Carlos de Carvalho partia novamente, pela terceira vez, para os navios rebeldes, para comunicar a tramitação das reivindicações. Com a situação menos tensa, visitou os quatro navios, onde foi recebido com as honras pertinentes. Então, os rebeldes declararam que aguardariam em alto lidade estavam tensos. Às 22 horas da noite de 24 de novembro, os navios ultrapassavam a barra da baía.

12. A vitória da revolta

revolta. Desconhecemos as intenções exatas do presidente Hermes ataque, ou não, dos marinheiros. Porém, tudo leva a crer que, até a madrugada de 25 de novembro, quando o governo já prometera e o Senado votara a anistia, o governo e o ministério da Marinha preparavam-se ainda para o combate. Na madrugada de 25, em alto-mar, o Deodoro foi atacado. Planejou-se igualmente o bombardeamento dos navios pelos barcos çados rebeldes entrassem na barra. O ministro Batista de Leão – em seu relatório ao Presidente – foi claro sobre os preparativos militares: “Resolvido por vós o ataque aos revoltosos, por parte de todas as forças de terra e mar de que dispunha o Governo, pelas duas horas da manhã de 25, recebi ordem para tudo dispor com esse objetivo.” Então, teria sido assinada a ordem de combate. O ministro descreve como daria-se o ataque. “O ataque seria contratorpedeiro Timbira e o torpedeiro Goiás participariam da luta, se fossem preparados em tempo. Tudo fora organizado. Sobretudo, vios não pertenciam igualmente à marinha de guerra. Sabia-se que

contra os de baixo. O presidente ordenara a suspensão do ataque pouco tempo após ter assinado a ordem de combate. “Pouco antes das três horas da manhã [do dia 25], nova ordem vossa determinou-me que suspendesse temporariamente o ataque projetado [...]. Como o ataque aos rebeldes fora transferido para o momento de seu regresso a este porto, ocasião em que deveriam ser hostilizados combinadamente pelas forças de mar e pelas fortalezas da barra e outros portos então Floriano, imediatamente preparado para o ataque, e em seguida o República, Benjamin Constant e o Primeiro de Março, que foram rebocados para o ancoradouro de São Bento.”

Honra perdida O ataque chegara ao conhecimento dos rebeldes devido à corados planos. No Correio da Manhã, do dia 25, e na redação da Imprensa, foram noticiados que o governo preparava-se para atacar os marinheiros quando voltassem de alto-mar. Sentindo-se desautorizado e traído, o comandante José Carlos de Carvalho telefonara imediatamente ao senador Pinheiro Machado. Perguntara se era verídica a notícia e comunicara a informação enviada a ele pelos marinheiros rebeldes: o encouraçado Deodoro fora atacado na madrugada do 25. Pinheiro Machado assegura-lhe que tudo estava sob controle. Possivelmente, naquele momento fora decidido suspender o ataque e cumprir a palavra dada. Na manhã do mesmo dia, certamente já em conhecimento das ordens e contra-ordens, o comandante Carvalho telegrafou aos na“Guarnição Minas, São Paulo. Senado votou ontem anistia, que será votada hoje na Câmara, que se reúne a uma hora da tarde como de -

vossa causa.” A resposta dos marinheiros foi imediata. Nela, referem-se ao ataque ao encouraçado Deodoro: “Comandante José Carlos de Carvalho. Agradecemos penhorados vossa comunicação de ontem e esperamos ansiosos a resposta da Câmara. Ontem Deodoro foi atacado tes.” O ataque a um dos mais fracos navios dos rebeldes fora dispersado com “alguns tiros”! Tratara-se também de um ataque de mentirinha!

Senhores do alto-mar Os jornais da época registraram os ecos do confronto. “Hoje às primeiras horas – noticiava o Jornal do Comércio – foram ouvidos, fora da barra, alguns fortes disparos, acreditando-se geralmente que os dois dreadnoughts estivessem descarregando os grossos canhões das torres para voltarem ao porto e se entregarem.” No dia seguinte, o jornal corrigia a informação. “Infelizmente, porém, a calma é, como dissemos, relativa. O perigo foi adiado, mas por quanto tempo? Já a trégua foi alterada ontem [...].” Quando soube do ataque aos navios rebeldes, o comandante José Carlos de Carvalho aconselhou por telegrama os marinheiros a continuarem em alto-mar, onde eram imbatíveis. Durante a manhã do dia 25, os navios permaneceram em mar aberto. ras vermelhas, símbolo da rebelião, foram arriadas. Por voltas das 7h30min. da manhã, o dreadnought São Paulo e o cruzador Bahia aproximaram-se, entrando majestosamente na baía de Guanabara. O Minas Gerais e o encouraçado Deodoro só chegaram às 13 horas. A revolta vivia seus últimos momentos. Entretanto, alguns setores dos marinheiros rebeldes percebiam a armadilha em que pomanhã do dia 26, surgiu a bordo do encouraçado Deodoro um mani-

nheiro José Alves de Souza. Aclamado pelos seus companheiros, ele dividia com o cabo André Avelino o comando do navio. O documento questiona a direção dada por João Cândido ao movimento e registra a profunda democracia que reinou durante a rebelião, nos navios. Dizia o manifesto: “O comandante do Deodoro e a pequena guarnição que se encontra neste encouraçado, e que têm lutado com vida, nunca faltaram com seu apoio aos companheiros dos demais navios revoltosos desde 22 a 25 de novembro. E isto se tem dado mente desgostosos com os companheiros, a quem temos dado todo o nosso apoio. Todo este desgosto partiu do comandante João Cândido ter aceito a anistia, feita em terra, e não com a presença a bordo do Presidente da República e do seu ministério da Marinha.”

Desconfiança profética Os signatários do manifesto reclamavam que João Cândido levara a tripulação do Minas, do São Paulo e do Bahia a aprovarem as condições da anistia. Os tripulantes do Deodoro defendiam uma posição mais dura. Queriam que a anistia fosse assinada a bordo, com a presença do presidente e de seus ministros, como fora reivindicado, em manifesto, enviado para terra e publicada em O País, no dia 26. Os marinheiros dissidentes lembravam não ser necessário tanta pressa na entrega dos navios. Propunham que se esperassem alguns dias mais. Eram claros: o povo apoiava os marinheiros. Profeticamente diziam que era necessário resolver tudo “antes de aceitar a entrega da Esquadra, para que não nos arrependamos mais tarde”. eram possivelmente irrealizáveis. Jamais o presidente da República ato não garantiria o respeito da anistia. na palavra do Congresso e do Governo. Edmar Morel descreve com

mestria os últimos momentos da revolta, quando os navios foram te chegou a bordo do Minas Gerais [...] numa lancha do gabinete do ministro da Marinha. À aproximação do barco, João Cândido mandou formar toda a tripulação no convés e prestou as continências de estilo. Dirigiu-se à escada e recebeu o novo comandante, que trajava o seu uniforme azul, com um vigoroso aperto de mão, enquanto a banda de música executava um hino. Dezenas de binóculos, no Arsenal da Marinha, acompanhavam os detalhes do encontro do marujo com o capitão-de-mar-e-guerra, que, após a leitura do decreto de anistia, -o na mais perfeita ordem. João Cândido, um verdadeiro ídolo da marujada, deu um passo à frente e tirou o lenço vermelho que trazia ao pescoço, recolhendo-o ao bolso.” Pela soberana e exclusiva vontade dos marinheiros, terminava a rebelião. Os marujos negros venciam. Tudo que tinham pedido, de soldo, um tratamento de cidadãos. Entretanto, no mesmo momento em que alcançavam a vitória, iniciavam-se o calvário e a derrota dos marinheiros. Com a revolta gança.

13. A anistia e o começo da traição Os navios foram entregues. As bandeiras vermelhas, arriadas. parte do governo, começaram os preparativos para a repressão. Não vacilaram um minuto em trair a palavra dada. Em seu relatório, o ministro Batista de Leão deixa claro que era inaceitável que tudo terminasse com a vitória dos marinheiros: “As guarnições rebeldes, com a decretação da anistia, haviam obtido companheiros das vítimas que haviam trucidado, voltavam ao serviço ordinário nos mesmos navios em que se tinham rebelado. Com meios mais inequívocos, demonstrava seu desgosto e repugnância pela permanência no serviço da Armada.” os cantos contra a anistia e contra os marinheiros. O discurso de um valho, é paradigmático. O enterro ocorreu no dia 25 de novembro, enquanto os marujos dominavam ainda os encouraçados. No dia 26, o Jornal do Comércio comentou longamente a cerimônia e as palavras do tenente, em momento em que a anistia, não fora ainda sancionada: “[...] diz o orador que nunca se vira anistia de revoltados

que ainda não haviam deposto as armas. Era uma indignidade que nos amesquinhava aos olhos das nações civilizadas. Não é anistia. É covardia que os punhos de um Marechal não se aviltarão em sancionar.” O Clube Militar decidira manter a bandeira a meio mastro, em

artigo no mesmo jornal. O artigo exigia: “Temos também direito a uma anistia para nossos brios! Não constrangemos os Poderes da República, pedimo-lhe subordinadamente que nos permitam, sem um dos navios rebelados, no qual servisse a tripulação anistiada.

Preparando o golpe marinheiros. No próprio Senado, por unanimidade, foi votada e aprovada a construção de um “sarcófago” para serem depositados os restos mortais “de heróis que sucumbiram no cumprimento do dever [...] mortos [...] na tentativa de dominar a sublevação da maruja de alguns dos vasos da Armada Nacional.” Nenhuma palavra para os marinheiros escravidão na Esquadra. começaram a organizar a repressão dos anistiados.

Os marinheiros começaram a ser intimidados. No dia 27, os canhões dos navios foram desativados e as munições desembarcadas. Essas operações foram feitas, ao menos em parte, com a ajuda dos marujos que participaram na revolta. O que comprova serem inverídicas ordenou-se o desembarque de muitos líderes da revolta. No dia 28 de novembro, apenas dois dias após a anistia, os marinheiros receberam um violento golpe. O decreto n. 8.400 permitia ao governo dar baixa a qualquer marinheiro: “Atendendo ao que lhe expôs o Ministro de Estado dos Negócios da Marinha, resolve autorizar a baixa, por exclusão, das praças do Corpo de Marinheiros Nacionais, cuja permanência se tornar inconveniente à disciplina; dispensando-se a formalidade exigida pelo artigo 150 do Regulamento anexo ao Decreto n.° 7.124 de 24 de setembro de 1908 [...]..” O decreto comprovava que as palavras do Governo, da Câmara expulsar, sem explicações, os envolvidos no movimento. A repressão preparava-se para lançar-se faminta de vingança sobre os marujos negros. Em artigo premonitório, a Gazeta de Notícias, de 14 de dezembro de 1910, do Rio de Janeiro, noticiava que a Armada já -

Voz isolada Rui Barbosa não simpatizava com os rebeldes. Mas coerente com seus atos, palavras e opiniões, protestou no Senado contra o decreto iníquo. Disse claramente que “raras vezes em nossa história atos anteriores do próprio Governo”. Sem maiores constrangimentos, o senador Pinheiro Machado “concordou” com o político baiano e, hipocritamente, explicou que a decisão obedeceria a uma “solicitação dos próprios marinheiros”. Ou seja, teriam sido eles a encomendar a corda que os enforcaria!

listas dos nomes dos marujos combativos. O “livro de correspondência” do cruzador Bahia registra o memorando n° 26, de 9 de dezembro de 1910, enviado pelo comandante do navio para o “Comandante Geral do Corpo de Marinheiros Nacionais”. O documento registra os nomes dos dez marinheiros que deveriam ser expulsos da Armada. O segundo nome na lista era o do marinheiro de 1ª classe Francisco Dias Martins – possivelmente autor da carta do “Mão Negra”, quando da viagem ao Chile, delegado do cruzador durante a revolta, celebro da conspiração. Paradoxalmente, o próprio João Cândido teria fornecido lista ao comandante do Minas Gerais com os vinte marinheiros mais combativos do navio, os “faixas pretas”. Os marinheiros compreendiam o que lhes preparavam, mas para protegerem-se dos golpes traiçoeiros: “Uma comissão de ex-revoltosos esteve na residência dos senadores Rui Barbosa e Pinheiro Machado, não sendo recebida. Visitou, em seguida, as redações dos jornais, manifestando as suas apreensões. Um dos chefes da revolta, o cabo André Avelino, que comandou o Deodoro, achou mais seguro fugir para o Norte.” Precavido, o marinheiro Francisco Dias Martins teria pedido baixa da marinha, ainda em dezembro. Mesmo assim, terminaria preso, ao arrepio de qualquer legalidade. Essas defecções enfraqueciam o movimento.

Apertando o laço Mais e mais, o laço da traição cerrava-se sobre os angustiados marinheiros anistiados. Em 2 de dezembro, a polícia prendeu, em uma casa, no Lavradio, oito marinheiros e um soldado do Batalhão Naval. Dois dias mais tarde, 22 outros marujos foram surpreendidos em uma residência no bairro da Piedade e aprisionados no Presídio da ilha das Cobras, sede do Batalhão Naval. Todos foram acusados de conspiração. As prisões deixavam claro que os marujos estavam sendo viagora em contato direto com fuzileiros do Batalhão Naval. Em 7 de

dezembro, o alto comando da marinha declarou que todos os marinheiros envolvidos na revolta de 22 de novembro seriam afastados. Ou seja, haveria desembarque em massa dos marinheiros! No dia 8, oito outros marinheiros envolvidos naqueles fatos eram desembarcados do Minas Gerais e do São Paulo. Rapidamente, o movimento dos marinheiros mergulhou na confusão. davam marinheiros e, sobretudo, fuzileiros do Batalhão Naval, para participar de próxima abordagem dos navios rebeldes pelas tropas do exército, realizada com ou sem a permissão do governo. Para tal, dias antes da revolta do Batalhão Naval, no dia 9 de dezembro, man“degolar todos os marinheiros” que assassinaram os superiores. Não serviam agora no Batalhão Naval! Faltam-nos informações mais precisas sobre os acontecimentos que se seguiram. As lideranças dos marinheiros certamente reuniram-se para discutir como protegerem-se da repressão e do desrespeito da anistia. As opiniões possivelmente dividiram-se. Em seu dos surgiu um grupo de marinheiros que se opunha às propostas de No dreadnought Minas Gerais, o grupo seria formado pelos marinheiros Ernesto Roberto, Vitalino José Ferreira, Aristides Pereira, André Avelino, Vitório Nicássio de Oliveira, João José do Nascimento. O último marinheiro era acusado de ter desferido o golpe que teriam tido um papel de destaque na revolta e certamente temiam a repressão que se aproximava. ciais”. Em depoimento posterior, João Cândido lembrou que apresentara lista ao comandante do Minas Gerais, pedido o desembarque de mais de vinte marinheiros do navio, por ativismo, como assinalado. O próprio Edmar Morel assinala que João Cândido, o principal chefe da disciplina da tropa” e recriminara a deserção preventiva do cabo

André Avelino, que possivelmente lhe salvou a vida. Talvez as lideranças dos marinheiros tenham discutido a possibilidade de uma segunda revolta para defender os marinheiros dos ataques que estavam sendo preparados. Certamente compreenderam que a ação era inviável, já que os navios encontravam-se desarmados. Os fatos que levaram ao segundo levante, de dezembro de 1910, agora em terra, são ainda parcialmente nebulosos. Tudo sugere que o movimento, autêntico, foi manipulado pelas autoridaanistiados.

14. Armadilha fatal a segunda revolta

indecisão, a confusão, o desânimo, a traição abateram-se sobre os marinheiros anistiados. Não sabendo o que fazer para se protegerem da tempestade que se aproximava, muitos marujos tomaram decisões patéticas. Elas expressam o isolamento social e – até mesmo – a ingenuidade política dos ex-rebelados. As culatrinhas dos canhões dos navios participantes da revolta de novembro foram recolhidas por ordem do ministro Batista de Leão. A operação assinala a meticulosa preparação do golpe dado contra os marinheiros anistiados: “Como estas peças – escreve Pereira da Cunha – tivessem sido recolhidas ao Depósito do Armamento, que poderia ser assaltado pelos prováveis revoltosos e de lá roubadas, resolveu o sr. ministro que tal roubo fosse efetuado por nós.” las de ferro para transportar as culatrinhas, que foram escondidas o mais longe possível dos olhos dos marinheiros. Não querendo trapara transportar as pesadas malas! Com os canhões inutilizados, os grandes encouraçados perdiam todo poder bélico. Qualquer tentativa insurrecional defensiva estava fadada à derrota. Talvez por isso uma nova insurreição não

foi aceita pelos marinheiros do Minas Gerais, São Paulo e dos outros navios. A nova e confusa articulação ganhara força no cruzador-ligeiro Rio Grande do Sul e no Batalhão Naval que, segundo parece, mantinham suas armas. Na noite de 9 para 10 de dezembro, quando estourou o movimento, os ex-revoltosos dos grandes navios temeram serem comprometidos na conspiração. O movimento de dezembro, no Batalhão Naval e no cruzador -ligeiro Rio Grande do Sul, não só era de conhecimento do governo como, possivelmente, tenha sido manipulado e incentivado pela alta tins, que teve acesso aos documentos existentes nos arquivos da Arou processo de qualquer natureza” que elucidasse aqueles sucessos. Ao contrário do proposto por Leôncio Martins, os arquivos guardavam o “Inquérito da 3ª. Delegacia Auxiliar”, aberto “para averiguar as causas que motivaram a revolta das guarnições dos couraçados Minas Gerais, São Paulo, Cruzador ligeiro Rio Grande do Sul e Batalhão Naval”. A devassa empreendida pela Polícia Civil do Distrito Federal, que não teve seguimento judiciário, ampliou consideravelmente o conhecimento daqueles sucessos, dando origem ao estudo de Henrique Samet, de 2011. O inquérito reforça fortemente a hipótese de o movimento ter sido ria apenas o afastamento dos marinheiros anistiados.

Esclareça-se que compreendemos como provocação ou favoresentido de exacerbar os ânimos entre os marinheiros e os fuzileiros navais, criando assim as condições para a repressão de revolta previamente conhecida. Em nenhum momento, tal avaliação subentende a revolta como uma “armação” ou “farsa”, ou seja, um movimento

Revolta do dia 10 de Dezembro O quartel do Batalhão Naval e, secundariamente, o cruzador -ligeiro Rio Grande do Sul, foram os centros da revolta de dezembro. Desarmados, os navios que tinham participado na primeira rebelião não participaram da segunda. Mantiveram-se à margem do movimento ou, ativa ou passivamente, procuraram mostrar que não estavam de acordo com a ação dos revoltosos. O que certamente aumentou a confusão e deprimiu ainda mais o ânimo dos marinheiros e fuzileiros que participaram da revolta de dezembro.. Vejamos os fatos. Na primeira semana de dezembro, a intranquilidade apossara-se dos marinheiros anistiados. Eles esperavam, de um momento para outro, serem expulsos da marinha e que os natudo faziam para acirrar os ânimos, anunciando a próxima invasão dos barcos pelas forças do exército. Os acontecimentos do cruzador -ligeiro Grande do Sul assumem o contorno de verdadeira provocarecional, que registrou em seu livro. O estado de intranquilidade desse cruzador-ligeiro era conhetários da maruja separavam-se de seus companheiros. No dia 8 de dezembro, um foguista denunciara discussões sobre uma possível insurreição no cruzador-ligeiro Rio Grande do Sul. Ao saber da conspiração, o comandante do navio pediu ao Ministério que os possíveis líderes do movimento fossem afastados. Estranhamente, não foi atendido no seu pedido.

No mesmo dia 8, o marinheiro Manoel Pedro de Oliveira do cruzador mandara bilhete para João Cândido e Gregório Martins, perguntando “se [a] revolta” continuava marcada para “dia 8”. Ao menos é o propõe documento incorporado ao processo instaurado, mais tarde, contra João Cândido e outros marinheiros anistiados. A não participação do marinheiro no movimento anterior e a forma arriscada da consulta fortalecem a hipótese de penetração policial na segunda rebelião. No dia 9 de dezembro, o ministro Batista de Leão enviara ordem para que o capitão-de-fragata Pedro Max Fernando Frontin, comandante do cruzador-ligeiro Rio Grande do Sul, partisse para Santos, às 20:00 horas, para sufocar uma greve em navio da marinha mercante. Suprema ironia. Marinheiros semi-insurretos eram enviados para reprimir marinheiros em greve! Revelando Frontin ao comando militar a provável rebelião no seu navio, recebeu a visita do capitão-tenente Heitor Xavier Pereira da Cunha e do capitão-tenente Castro Menezes, destacados no gabinete do ministro da Marinha, e a garantia do envio de tropas do exército, que chegou a ser embarcada. Pela tarde, os marinheiros do Rio Grande do Sul já estariam informados da iminente invasão do navio por forças do exército. Ausido recolhidas e de que o comandante desse amplamente licença aos marinheiros que quisessem desembarcar, apesar de o barco estar hipoteticamente se preparando para zarpar. ciais, quase em trajes de festa, armados de carabina, esperando a havia mandado prender “a ferros” um marinheiro na proa do navio. pelos pés um marinheiro nacional, como um negro fujão dos tempos do cativeiro! E, depois, como na caça à onça, espreitava com seus companheiros, de armas nas mãos, os marinheiros que viessem libertar a “isca”.

Batalhão Naval Apesar da provocação, os marinheiros não caíram na armadilha. Estavam cientes que as culatrinhas e todas as armas pessoais do mente, como visto, fora dada ordem de desembarque para os marinheiros que quisessem, o que reduzira a guarnição do Rio Grande do tudo não pertencentes ao navio, armados e prontos para atacarem a tripulação. Ou seja, não há dúvidas sobre a emboscada. mos. Ao contrário. Assumiu a responsabilidade pela prisão e pelo afastamento dos possíveis líderes da maruja do cruzador-ligeiro Rio Grande do Sul. A tensão aumentava insuportavelmente no navio às escuras, segundo parece, por ordens do próprio comandante. As descrições divergem sobre os acontecimentos posteriores. rem-se as luzes no Rio Grande do Sul, parte da pequena maruja ainda ferro e com as poucas armas pessoas que mantinham escondidas. tantes à distância. “[...] à vista da agressão - relata Pereira da Cunha -, fechada [...] a porta que dá para o tombadilho, e aí enfrentamos a guarnição que, no convés, embaixo, atirava contra nós.” Outra versão, mais crível, propõe que a ordem para formar, às 23 horas, teria sido desobedecida pelos marinheiros, aos gritos “não forma”, já que temiam, com razão, serem desembarcados e aprisionados! A seguir, acossados, os marinheiros, portando armamento fortemente armados com quarenta carabinas, postados na parte traseira do navio. ros mais politizados optaram por dirigirem-se para a proa e tomar dois pequenos barcos e abandonar o cruzador-ligeiro. Uma das lanchas dirigiu-se para os dreadnoughts Minas Gerais e São Paulo, onde

seus tripulantes não teriam sido recebidos por seus companheiros, como veremos a seguir. Mais tarde, eles seriam majoritariamente degredados para o Acre. Após o abandono do navio, dois marinheiros foram comunicar ao comandante que a guarnição não estava revoltada ou que se rebelara apenas por temer a iminente invasão do cruzador. Ao desobedecer, a maruja desconhecia o sentido da ordem de formar e do desarmamento do navio. Nesses momentos, como vimos, corriam nos navios da Armada notícias sobre o eminente assalto dos barcos, tensivamente seus sabres de assalto, como proposto. Os dois delegados dos marinheiros garantiram que as ordens estava totalmente estabelecida sobre o cruzador-ligeiro. No rápido confronto, teriam morrido um marinheiro e o capitão-tenente Francisco Xavier Carneiro da Cunha, alcançado por um tiro e uma facada. Mais tarde, em seu livro, o comandante Pereira da Cunha referiu-se aos acontecimentos em forma exultante. Fora uma “noite agitada e em relação à revolta vitoriosa de 22 de novembro!

Minas Gerais e São Paulo A bordo do dreadnought Minas Gerais, em 9 de dezembro, às 22h30min., escutaram-se disparos no Batalhão Naval e no cruzador-ligeiro Rio Grande do Sul. A seguir, aproximou-se do encouraçado um pequeno barco com marinheiros que se diziam pertencer caçadores tinham invadido o cruzador-ligeiro e massacrado os marinheiros. raçado, apesar da tripulação não ter aderido à proposta rebelião. Certamente prevendo o movimento, comando da Armada determinara anteriormente o abandono dos navios. Após ter pedido insis-

o comandante Sadock de Sá, lhe teria dito “que tomasse conta do navio”. mando dos barcos, certamente fazia parte do conluio contra os marinheiros anistiados. Nas mãos dos marujos, reconstituía-se o cenário da rebelião, porém com os navios desarmados, pois sem as culatrinhas dos canhões, que os deixavam impotentes. Os marujos comprecialidade. Sabiam que, a médio prazo, seriam afastados da Armada. Naquele momento, temiam sobretudo a prisão e, eventualmente, o dade da marinha, caso desembarcassem. Os marinheiros anistiados optaram pela proteção dos navios e por não envolvimento na revolta do Batalhão Naval, que seguiria seu destino isolada. Sob as ordens de João Cândido, a tripulação do ao governo. Custasse o que custasse. Uma delegação enviada pelos fuzileiros revoltados do Batalhão Naval foi repelida. João Cândido ao governo e pedindo ordens. Prendeu desertores que foram refugiar-se no navio. Quando os navios da Armada passaram a disparar contra o Batalhão Naval sublevado, pateticamente, João Cândido ordenou que o Minas Gerais disparasse, durante horas, contra os rebeldes, com o seu único canhão de 120 mm., armado com uma culatrinha que fora escondida pelos marinheiros. Teria dado, no total, quinze tiros. João Cândido seguia na desesperada tentativa de demonstrar adesão ao governo. O núcleo de marinheiros radicalizados, os faixa pretas, obrigou-lhe, sob a ameaça de revólveres, a aprovisionar o dreadnought em carvão, afastando-o das baterias do morro de São Bento. Estas últimas disparavam contra o Batalhão Naval e contra o ... Minas Gerais. João Cândido foi ferido no calcanhar por disparo dos canhões de seus ‘aliados’. Reabastecido, o encouraçado reconquistava, ao menos, a autonomia de navegação.

A razão do lobo Os telegramas enviados ao Quartel General e ao Palácio Presiao governo e pedindo as culatrinhas para poderem participar das ações militares, não deixam margem de dúvida sobre a adesão dos encouraçados ao governo: “Data 10. Hora 4.40. Bordo Minas. Senhor ministro da Marinha. Arsenal da Marinha. Rio. Pedimos mandar com do) Guarnição.” dade e avisando encontrarem-se presos a bordo alguns soldados rebeldes. “Bordo do Minas [...]. Senhor ministro da Marinha – Arsenal da Marinha – Rio. Os soldados navais declaram que se acham a favor do governo, temos a bordo alguns soldados presos, eles declaram que foram atacados pelo Exército, eles continuam presos à ‘disposição’ de vossa excelência. (Assinado) Guarnição Minas.” Eram soldados escapados do Batalhão Naval. Eram inúteis e desnecessários esses atos. Os marinheiros já estavam condenados, antes mesmo da rebelião. Pouco importava se dela participassem ou não. Era como na fábula do lobo e do cordeiro: “Se não te revoltaste hoje, te revoltaste ontem. Deves pagar.” O comandante Pereira da Cunha sugere o maquiavelismo do complô urdido contra os marujos negros. As culatrinhas foram retiradas também para impedir que eles provassem a obediência ao governo.

não nos recordamos bem, que existissem ingênuos capazes de achar absurdo privar certos navios de provar sua lealdade ao Governo, mas, como ninguém sabia onde encontrar [as culatrinhas][...].” A revolta chegara a seu momento mais patético. Sem saída, de seus carrascos, disparando contra seus irmãos de farda. Porém, nada lhes asseguraria o perdão. Em Conselho de Guerra, de 25 de junho de 1912, o almirante negro seria acusado de mandar disparar contra o Batalhão Naval, sem ordens superiores!

Ao contrário do Minas Gerais, o São Paulo e o Deodoro não acontecimentos. Sua tripulação manteve-se em estado de grande intranquilidade, pois se esperava que os navios fossem assaltados por tropas terrestres, de um momento para o outro. Após esses aconmarinheiros anistiados e sobre os fuzileiros navais.

Ilha das Cobras.

15. A revolta no Batalhão Naval A sublevação restringiu-se essencialmente ao Batalhão Naval, Naval fazia parte do corpo de infantaria da Marinha. Ele encontraestreito canal, diante da Escola de Aprendizes da Armada. Na ilha tre outros prédios. O quartel-dormitório dos fuzileiros localizava-se mais para o interior, na parte mais elevada da ilhota, após as instalações do Hospital, próximo às águas da baía. Os fuzileiros integrantes do Batalhão Naval tinham no geral o Quatro anos antes dos sucessos, o genial Lima Barreto escrevia sooutro.” Na formação do corpo, quase não contava o voluntariado. ros, não brancos, de escassa instrução. A revolta dos marinheiros de 22 de novembro repercutira aqueles sucessos, fuzileiros haviam tentado se organizar em apoio aos marujos, mas a guarnição terminou não acompanhando a suble-

vação, devido talvez sua rápida conclusão. A vitória esplendida da rebelião e a ameaça de afastamento maciço dos marinheiros anisentre os infantes da marinha de guerra. Sobre a rebelião no Batalhão Naval, além valioso do Inquérito da 3ª. Delegacia Auxiliar” e dos jornais da época, contamos, entre outras fontes, com a descrição dos acontecimentos, de décadas mais tarde, do então sargento-ajudante e futuro capitão-tenente Antero José Marques, que viveu os fatos.

Forte Agitação Havia algum tempo que era grande a agitação no quartel. No dia 4 de dezembro, a polícia informara o comandante do Batalhão Naval, o capitão-de-fragata Francisco José Marques da Rocha, sobre a possibilidade de um segundo levante. No dia 5 ou 6, praças do Batalhão Naval negaram-se a formar para o exercício de esgrima e a tos em favor da liberdade. Não houve castigo e não se exigiu mais àqueles exercícios, em uma indiscutível vitória da tropa. No mesmo blevação. Há referência que no dia 6, quando os soldados da guarda do Arsenal da Marinha receberam ordem de debandar no pátio do quartel, foram dadas vivas à liberdade. Os responsáveis teriam sido convidados para nova revolta. Foi feita lista com os 39 nomes dos soldados considerados mais “indisciplinados” do quartel. Entretanto, o comandante não aceitou afastá-los, para não desfalcar a sua guarnição. Talvez sejam duas versões sobre o mesmo sucesso. No dia 9, por duas vezes, a polícia avisara ao comandante Marques da Rocha que se esperava, para a noite, rebelião no Batalhão Naval e em alguns navios. Ele limitou-se a determinar uma estrita revista das tropas, na manhã do mesmo dia. Entretanto, informou seus superiores sobre a eventual eclosão do movimento. Nesse mo-

mento, corria à solta o boato da iminente invasão do Batalhão Naval, por soldados do exército, para que participasse da abordagem aos navios que se haviam rebelado em novembro. Contra tal ação, os fuzileiros rebelariam-se. A conspiração podia ser anterior. A revolta, entretanto, teria sido combinada, no início da noite do dia 9, entre o cabo Jesuíno de Bernardino dos Santos Ferreira; o primeiro-sargento Benedicto Rodrigues de Oliveira, o praça Maurício Inocêncio Lima de Miranda, o cabo Tertuliano José do Nascimento, entre outros. A sublevação iniciaria pelo toque de clarim, a uma hora da madrugada.

A Revolta Às 21 horas, tocou-se recolher no Batalhão Naval. Momentos depois, chegou o marinheiro Manoel Francisco dos Santos, possivelmente da guarnição do torpedeiro Paraíba. Ele fugira de seu navio, pois o barco pretendia insurrecionar-se, segundo ele. O marinheiro Zanotti. Meia hora mais tarde, às 21h30 min., tocava o silêncio no quartel. O Batalhão Naval contava com quatro companhias de infantaria e duas baterias de artilharia. Porém, não ultrapassava de muito os quatrocentos homens. Às 22h30 min., escutou-se o toque de “Batalhão Naval, avançar em acelerado”, dado pelo corneteiro Antônio Arthur Ferreira/Pereira de Oliveira. Duas ou três companhias correram imediatamente para o pátio, em geral com seus fuzis, já que o quartel estava em prontidão, ainda que, em maior parte, as armas não tivessem munição. mandando os praças reunirem-se no pátio central, onde parte da guarnição aderia ao movimento, parte negava-se a incorporar-se. No pátio, eram dadas vivas à “liberdade”, ao “Minas Gerais”, a “João Cândido” e “morras ao carrancismo”. Isto é, a guarnição rebelasido ouvidos igualmente vivas ao “governo” e a “Hermes da Fonse-

anistiados, contra a vontade do governo. Um tenente tentara debelar a rebelião no pátio, sendo dissuadido pelo cabo Jesuíno de Lima Carvalho, Piaba, que lhe ameaçou de morte com um fuzil. Alguns tiros de fuzis dispersaram tentativa de resistência realizada pela 3ª Companhia, que abandonou com seus tas foram hostilizados pelos sentinelas do Batalhão, que aderiram à revolta. A insurreição começava no Batalhão Naval. Nesse momento, como vimos, as luzes apagavam-se no cruzador-ligeiro Rio Grande do Sul, segundo parece devido à ordem expressa do comandante do navio. No quartel, também se apagaram as luzes e os aparelhos telefônicos foram inutilizados. No pátio central, duas companhias alinharam-se com a rebeda liderança. O cabo Jesuíno de Lima Carvalho, Piaba, de 40 anos, rio-grandense como João Cândido, descrito como “crioulo reforçado”, que já fora marinheiro, teria pedido a um corneteiro, de mesmo grau, que assumisse a direção, já que, ao contrário dele, saberia ler e escrever. Porém, ele terminou liderando a revolta, aclamado pela

Libertando os Aliados Rapidamente, os rebeldes ocuparam a entrada do quartel e dos maiores do batalhão, sem encontrarem resistência, e controlarem o presídio, os revoltosos libertaram os 180 praças e marinheiros presos, muitos dos quais aderiram ao levante. Boa parte dos presos eram marinheiros anistiados. O domínio do hospital permitiu a incorporação à rebelião dos enfermos em condições e dispostos para tal.

Com o controle dos paiois de armas e de munições nos subterrâneos da fortaleza, foram guarnecidas com metralhadoras as margens da ilha, as muralhas do quartel e outros pontos nefrálgicos, impedindo-se embarque e desembarque na ilhota. Os telefones e o telégrafo foram silenciados. Sobretudo, foram recuperadas as culatrinhas da artilharia do batalhão, posta sob a direção do marinheiro sentenciado Avelino de Campos. O que permitiu que os fuzileiros sublevados dominassem “quatro bocas de fogo, bateria de desembarque com oito canhões, canhões-revólver de 75 e 45 mm, oito metralhadoras automáticas”, mil carabinas Mauser. Um arsenal não desprezível, mas absolutamente impotente diante das forças de mar e de terra governamentais. pertado pela sublevação da poderosa e intocável armada de guerra, em 22 de novembro. Os rebeldes guarneceram sobretudo o norte da ilha, o que lhes colocava parcialmente ao abrigo de assalto e bomArmada que iniciaram o bombardeio aos rebeldes. A guarnição do Batalhão Naval era de uns quatrocentos soldados, como visto. Uns 250 homens aderiram à revolta. O resto retirou-se do quartel. Prisioneiros libertados e praças hospitalizadas aderiram igualmente ao movimento. A revolta repercutiu na guarda praças da guarnição embarcaram-se em direção da próxima ilha das Cobras, para incorporarem-se à rebelião. Houve também defecções entre os revoltados, com destaque para o sargento Benedicto Rodrigues de Oliveira, líder do movimento, que desertou em bote com três outros sargentos. O comandante do Batalhão Naval, capitão-de-fragata Francisco José Marques da Rocha, foi despertado, às 22:30, pelos gritos e tiros, na sua requintada residência, na ilha das Cobras, conhecida pela qualidade das recepções que sediava. Após vestir-se, sem procurar dialogar com os rebelados ou tentar comandar resistência, com os Naval para o Arsenal da Marinha. Segundo suas palavras, temera ser “assassinado” pelos sublevados.

Contato com o Presidente Os navios e quartéis da Armada dispunham de telégrafos sem mas desde o Batalhão Naval, segundo parece pelo cabo Bernardino dos Santos Ferreira. Uma para o governo, as outras duas para o Minas Gerais e o São Paulo. Na primeira, os fuzileiros declararam-se Minas Gerais e a execução dos marinheiros anistiados. Inicialmente, teriam recebido resposta do governo. O principal líder da revolta, o cabo Piaba, declararia que recebera como resposta ao seu telegrama enviado à presidência da República que mantivessem a calma e a vigilância na ilha, para que ninguém desembarcasse nela. Após a resposta, o telégrafo teria sido nessa proposta. Entretanto, como visto, era de conhecimento geral

As mensagens enviadas aos dois dreadnoughts teriam o mesmo conteúdo. Segundo a imprensa, os telegramas desesperados propunham: “Precisamos auxílio. O Exército está contra nós. Querem abordar couraçados. Socorro! Esperamos resposta sem falta. Batalhão Minas Gerais, não teria dado qualquer resposta ao pedido de auxílio. Ao contrário, João Cândido teria instado por telegrama os marinheiros do São Paulo a não aderirem à revolta: “Está pronto ao lado bordo. Não devemos nos revoltar. Nós devemos defender o governo.” Alguns soldados, prisioneiros e marinheiros da ilha das Cobras e do Rio Grande do Sul que chegaram ao Minas Gerais, sob à ordem de João Cândido, teriam sido detidos e entregues, no dia seguinte, aos

Anistia e Rendição No Batalhão Naval, enquanto tentavam inutilmente obter a adesão dos navios da Armada, estabeleciam-se contatos com o governo e com o comando daquele corpo, já discutindo uma eventual anistia e rendição. Nesse momento, os fuzileiros rebelados compreendiam que não seriam apoiado pelos marinheiros da Armada e que Um escrevente da Armada fora enviado, talvez pelo capitãode-fragata Francisco José Marques da Rocha, para propor rendição desde que não fossem desarmados pelo exército. Antes do início do bombardeio geral, às cinco horas da manhã do dia 10, dois internos do hospital apresentaram-se ao Ministro da Marinha, recebendo a mesma exigência de rendição incondicional, aceita por Piaba, que exigiu igualmente não depor armas às tropas do exército. A seguir, iniciou-se o ataque geral. No governo, certamente sob a pressão da exemplar. Segundo parece, ao saberem que o governo estava unido na repressão e que não contariam com o apoio da maruja anistiada, os fuzileiros teriam pedido para retirarem-se para o Minas Gerais e o São Paulo. Um bote teria sido enviado do Minas Gerais à ilha, talvez para recolher delegado, já que não poderia evacuar mais de trezentos fuzileiros em uma tal embarcação. Ele não teria atracado devido a disparo inadvertido de um sentinela. Teria havido igualmente sinais através de lanterna vermelha entre o Minas Gerais e os fuzidireção da revolta no Batalhão Naval e a dos marinheiros deixados no comando dos encouraçados, devido ao abandono dos navios peQuando de inquérito posterior, João Cândido declararia às autoridades que não sabia de telegrama, que não recebera comissão. Propôs igualmente que “a guarnição do Minas”, “tendo recebido ordens” “para não receber a bordo os fugitivos do batalhão Naval”, deixara de receber “a embaixada dos revoltosos que ali fora com um

do São Paulo”. Em outra ocasião, declarou que recebera a delegação dos fuzileiros revoltados, mas que ordenara que seguisse para o navio capitânia Barroso, ou para onde quisessem. Propusera aos revoltosos do Batalhão Naval que o Minas estava desarmado e, seus marinheiros, anistiados. Parece certo que os sublevados do Batalhão Naval tentaram inutilmente estabelecer contato e receber apoio da tripulação dos navios sublevados em 22 de novembro, com destaque para o Minas Gerais e o São Paulo.

Servindo de exemplo A polícia, o governo e o alto comando da marinha tinham conhecimento da provável insurreição do Batalhão Naval e do cruzador-ligeiro Rio Grande do Sul. Possivelmente à espera daquela revoltas e, eventualmente, da adesão dos marujos anistiados, apenas meia hora após o inicio da revolta dos fuzileiros, tropas do exército, da marinha, da polícia e dos bombeiros ocupavam o cais e as praias nas melhores posições para iniciar o bombardeamento dos sublevados na ilha das Cobras. O ataque aos rebelados iniciou-se às 1:30 horas do dia 10, com artilharia de pequeno calibre, com destaque para o bombardeio dos talvez vinte navios da Armada, melhor postados para atingirem os rebeldes, concentrados no norte da ilha. Às 5:30 da manhã, deixando de lado as proposta de rendição, iniciou-se o bombardeamento pesado às posições dos fuzileiros, que responderam com as armas que possuíam. O encouraçado Deodoro teria participado com destaque no ataque desproporcionado. ramamento de sangue. Não ordenou igualmente o assalto ao Bataexemplo e arrastar o combate até que o Estado de Sítio fosse votado no senado. O ministro Batista de Leão escreveu: “Enquanto o morro de São Bento e outros pontos eram ocupados por baterias do Exérci-

to, aprestavam-se os navios para o começo das hostilidades, que foi marcado para as cinco horas da manhã de 10 de dezembro”. Ou seja, praticamente sete horas após o começo da revolta! Segue o ministro: “A essa hora, depois dos necessários avisos ao comandante da Divisão Inglesa então surta [ancorada] em nosso porto, romperam fogo contra a ilha das Cobras [Fortaleza] as baterias de terra, o couraçado Floriano, os cruzadores Barroso, Tamoio e o scout Rio Grande do Sul, enquanto os destroyers eram empregados lidade da marinha participava ativamente do banquete de desagravo ao seu pundonor ofendido. A esquadra inglesa prestou bons serviços ao massacre iluminando, durante a noite, com os potentes holofotes de seus navios, os marinheiros encurralados na ilha das Cobras. Os combates eram acompanhados por repórteres com poderosos binóculos postados em posições superiores ao quartel dos fuzileiros que podiam ver os redutos defendidos pelos revoltosos, onde haviam colocado canhões e metralhadoras, abastecidos em munições por rebeldes ainda com uniformes da prisão e do hospital.

O Fim do Combate Os fuzileiros do Batalhão Naval resistiram galhardos ao ataque desproporcionado, apesar de algumas defecções, segundo parece, no próprio alto comando. No início da manhã do dia 10, sábado, pelas oito horas, no momento em que enfuriava o combate, Piaba, possivelmente a favor da negociação, teria sido afastado do comando da revolta, sendo substituído pelo soldado Modesto Manuel Alves, libertado da enfermaria de presos. Pelas 14:00 horas, os revoltosos teriam disparado seus canhões por última vez, segundo parece devido à morte da guarnição da última bateria, alvejada pela artilharia governista. Então, após nove horas de furioso bombardeamento, o Batalhão Naval não se defendia mais. Pelas 15:00 horas, uma bandeira branca foi hasteada na capela do

Hospital, em signo de rendição. Contra todas as leis da guerra, o comando supremo governamental continuou a metralha por ainda uma longa hora. A continuação dos combates era imprescindível, como proposto, para que o Estado de Sítio fosse aprovado no Senado, por unanimidade, à exceção do voto corajoso do digno Rui Barbosa. Apenas às 15:00 interromocupado pela infantaria. O inquérito militar sobre a rebelião do Batalhão Naval determinou que o cabo Jesuíno de Lima Carvalho, Piaba, comandara a revolta. Ficou-se sabendo, também, que 45 sargentos e cabos destacaram-se no movimento. Ao contrário, os praças, em maior número, tinham fugido, antes do início dos combates. Apesar de possivelmensuas condições de vida e de trabalho. É incerto o número de mortos Propôs-se até vinte mortos nas tropas repressoras e um número certamente maior entre os rebeldes. Entretanto, muito dos valentes fuzileiros, que mostraram inusitada coragem e combatividade, ao enfrentarem a luta desproporcional até literalmente o último cartucho, seriam vilmente assassinados, nas semanas seguintes, jamais haviam abaixado os olhos.

16. Vingança feroz e iníqua Na manhã de 11 de dezembro, a tempestade abateu-se totalmente sobre os marinheiros. O Batalhão Naval fora massacrado. Os marinheiros estavam divididos e desmoralizados. Então, o Ministério da Marinha resolveu ocupar, à viva força, os encouraçados Minas e o São Paulo. Isso não foi necessário. Na manhã do mesmo dia, fora preso João Cândido, ao desembarcar em um cais do Arsenal. As tripulações do Minas e do São Paulo abandonaram os navios, sem resistirem. Os tripulantes do cruzador Bahia já tinham desembarcado, na noite de 9 de dezembro. nantes nacionais contra os marinheiros negros. Nos quatro primeiros meses de 1911, imitando a ação radical do comandante russo da frota do mar Negro, o governo expulsou da Marinha 1.216 marujos nacionais. Mais tarde, segundo parece, o número chegou a dois mil. Foram rarissimos os participantes da revolta que continuaram na força naval. Era necessário apagar qualquer recordação dos dias em que os marinheiros dirigiram a Esquadra. Apesar da anistia, ao serem ex-

e tinham agora a fama de revolucionários. A única preocupação do

governo foi fornecer – para mais de mil marinheiros – as passagens para seus estados de origem. Havia que livrar a capital da República desse perigoso contingente de ex-marinheiros. O destino dos principais líderes da revolta foi ainda mais trágico. Em seu livro, Edmar Morel refere-se pormenorizadamente ao foi enviado para o Presídio da Armada. Na ilha das Cobras, já se encontravam presos seiscentos marinheiros. No presídio, João Cândido defrontou-se com o ódio do comandante Francisco José Marques da Rocha, que não tivera coragem para antepor-se à revolta ou comandar a conquista do Batalhão Naval insurrecionado, sob seu comando. Scipião Zanotti, do torpedeiro Paraíba, e mais dezesseis marinheiros e soldados chegaram ao quartel, o comandante Marques da Rocha ordenou que fossem encerrados em uma estreitíssima solitária, a cela número cinco. A seguir, pede e guarda consigo a chave da masmorra, e parte para a cidade.

Gigante negro Era dezembro. A temperatura alcançava níveis insuportáveis, sobretudo durante o dia. À noite, apenas amainava. Na pequena cela, não se podia respirar. Os prisioneiros deviam urinar e defecar, como e onde pudessem. Certamente, gritavam pedindo ajuda. Na ilha das Cobras, era uma tradição atirar baldes de água e cal nas masmorprisioneiros, impedindo-os de gritarem. O pó da cal, na cela estreita e abarrotada de prisioneiros, pairou no ar, penetrando malignamente nos pulmões dos presos, que, retorcendo-se agoniados, tossiam, convulsivamente. Terríveis gritos foram ouvidos durante toda a noite. As ordens são claras, porém. As portas deviam permanecer – e permaneceram – fechadas. O rufar dos tambores é utilizado para abafar o ruído dos gritos já aterradores. Com o passar das horas, os pedidos de ajuda

lamúrias e sussurros. A seguir, faz-se silêncio. No dia seguinte, 27 de dezembro, quando se abre a prisão, prisioneiros mortos estão já inchando. Dos dezoito encarcerados, dezesseis morreram. Entre eles, a morte ‘natural’ dos marinheiros e soldados. Um dos dois únicos sobreviventes, em péssimo estado, era João Cândido - negro gigantesco, verdadeiramente indestrutível, de vontade de aço. Vivera. De birra, possivelmente. Morreria quase nonagenário. Um inquérito foi aberto para ‘elucidar’ os acontecimentos macabros ques da Rocha foi absolvido e inocentado. A seguir, seria conheceria rante. O próprio vice-almirante Leôncio Martins que, em seu competrou seu espanto quanto ao fato de as mortes dos marinheiros terem tenha continuado sua carreira “normalmente”.

Navio tumbeiro Esse não foi o único crime de sangue cometido contra os ex-revoltosos desarmados. Tão ou mais sinistro que o massacre da ilha das Cobras foi o caso do navio Satélite. No dia 25 de dezembro, o barco do Lóide Brasileiro partia do Rio de Janeiro para a Amazônia com 250 marinheiros prisioneiros e centenas de presos políticos e de di44 mulheres, além de 97 marinheiros deportados. Sete ex-marinheiros foram embarcados como “passageiros”, segundo parece, para agirem como provocadores.

O navio era comandado pelo capitão-de-longo-curso Carlos ‘passageiros’. Os tenentes Francisco de Mello, João da Silva Leal e Libânio da Cunha Mattos comandavam uma guarnição de cinqüenta soldados. Tratava-se de deportação ilegal. Entretanto, nas razões apresentadas pelo presidente Hermes da Fonseca ao Congresso Nacional, explicaram-se os ‘elevados’ motivos do desterro dos miseráveis. A mensagem assinala que o governo apressara-se em enviar para seus Estados os marinheiros expulsos. Porém, existiriam outros, “inveterados no crime, levados na agitação que continuava, após os grandes e inesperados acontecimentos de dezembro”, que – relatava o primeiro mandatário – se “recusavam” a abandonar a capital, “preTais “homens, de instintos maus, sem ocupação, instigados pelos tristes sucessos” recentemente passados –segundo a mensagem –, prosseguiam conspirando contra a ordem. Portanto, eram desterrados, pelo bem público, sem culpas ou julgamento. Mas não se mensagem. O governo não se despreocupara da sorte dos infelizes. “Não era intenção do Governo atirar essa gente, sem proteção, nas ões o trabalho indispensável a sua subsistência e ordenou que metaa outra metade à Companhia de Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.” Nas listas dos prisioneiros, alguns dos infelizes teriam seus nomes assinalados. Eram marinheiros que se tinham destacado nos acontecimentos de novembro. A viagem constituiu uma sucessão de bárbaros assassinatos, a sangue frio. Já no dia seguinte à partida, às 23 horas, impacientes, os nani Pereira dos Santos e a prisão a ferros, como animais, de sete outros anistiados. Mais tarde, apresentariam uma pretensa conspi-

Martírio sem fim A viagem macabra prosseguiu. No dia 31, o navio aportou em Recife. Os prisioneiros malditos puderam ver a bela cidade pelas bocas gradeadas das escotilhas. Mais 28 soldados embarcaram como escolta no Satélite. Na noite de 1° de janeiro, apenas o navio afastarase da cidade, o comandante e os três tenentes ordenaram a execução de mais quatro marinheiros. Na ocasião, possivelmente para aumentar o prazer da vingança, dois marinheiros foram lançados, com vida, algemados, ao mar. No dia seguinte, mais dois outros marinheiros foram abatidos, a tiros. Apenas podemos imaginar os maus-tratos Os executados seriam: Aristides Pereira, Argemiro Rodrigues de Oliveira, Hernani dos Santos, Isaías Marques de Oliveira, José Alexandrino dos Santos, Nilo Ludgero Bruno, Ricardo Benedito, Flávio Ao chegar ao destino, em 3 de fevereiro de 1911, o capitão-de a Companhia da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré não aceitou os prisioneiros. Os restantes foram vendidos aos seringueiros, ávidos de trabalho semi-servil. Ao comandante não bastara a fama de assassino. Conquistava o título de negreiro. Quanto às 45 mulheres, ex-detentas da Casa de Detenção, lhes subalternizadas. Desde o início, tinham destino seguro e determinado. O governo da República, tão sensível em questão de etiqueta e utilizar palavra mais forte. As mulheres foram distribuídas pelos acampamentos de trabalhadores para serem utilizadas sexualmente pelos operários da região. Certamente morreram, em grande número, silenciosa e anonimamente, de malária e de doenças venéreas. O marechal e seus empertigados ministros e altos funcionários atuavam assim literalmente como proxenetas. No Acre, outros marinheiros teriam sido fuzilados.

17. A vitória dos marinheiros negros

preparou-se minuciosamente a perdição dos marujos. Desarmados, foram atacados, manhosamente. Confusos, levantaram as armas contra os companheiros, tentando escapar da armadilha preparada. A masmorra da ilha das Cobras e o navio Satélite foram apenas parte dos sofrimentos que lhes esperavam. Os marinheiros que escaparam da morte foram afastados da Marinha sem indenização. Engrossaram o exército dos marginalizados do início do século 20. João Cândido é um bom exemplo do que a vida possivelmente reservou a esses marinheiros. Apesar de Edmar Morel ter resgatado seu nome para a história, morreu nonagenário, bordejando a miséria, após ter trabalhado durante anos no mercado da Praça XV, no Rio de Janeiro. Após o golpe militar de 1964, retiraram-lhe a humilde pensão concedida pelo governo João Goulart, a pedido dos marinheiros da Armada. Quase nove décadas após os acontecimentos, somos obrigados a perguntar: houve sentido na luta? Não teria sido preferível que os não o desemprego, a prisão, a morte? Uma pergunta agonia os que estudam o movimento de 1910.

Ele não poderia ter terminado de modo distinto? Onde erraram – se é que erram – os marinheiros? Com o passar dos anos, cada vez mais, a Revolta da Chibata conquista o lugar que lhe pertence em nossa história. Mostra que – apesar da derrota – os marinheiros negros foram vitoriosos. que as reivindicações funcionais dos rebeldes foram atendidas e o chicoteado, apoiado na lei. As condições de existência na marinha de guerra melhoraram substancialmente. Os marinheiros negros conquistaram respeito para toda a sua categoria. Desde então, ela foi respeitada e temida. A grande vitória dos rebeldes foi a própria rebelião. Enquanto viveram, recordaram-se. Tinham se levantado, em um só impulso, dos porões imundos de uma escravidão velada para resgatar sua humanidade. De marujos tidos como semi-cativos elevavam-se ao status de marinheiros modernos. De cidadãos plenos. Estarreceram o mundo, dirigindo uma moderna armada, sem mente perigosa. Transformaram-se nos heróis de sua gente. Certamente, com emoção e orgulho, um velho marinheiro, em um botequim qualquer, pôde responder, a um ouvinte incrédulo: O Minas Gerais? João Cândido? A Revolta da Chibata? Eu estava lá ... Eu me revoltei. Os marujos rebeldes jamais foram esquecidos pelos marinheiros e pelas classes trabalhadoras. A própria memória popular reelae lembrando apenas a vitória de novembro de 1910. Para a memória popular, os marinheiros negros foram vitoriosos. João Cândido seria para sempre conhecido como o Almirante Negro, mesmo que seus companheiros lhe tenham conferido apenas o título de “comandante”, como aos demais líderes dos navios suble-

vados. A revolta dos marinheiros contribuiu para desmentir as inverdades de intelectuais das classes dominantes sobre um povo brasileiro apático, acovardado e sem passado de lutas. Ele feriu fundo os preconceitos elitistas e racistas das ditas classes superiores do Brasil. A revolta dos marinheiros conquistou seu lugar na história nacional, ao lado de outros acontecimentos luminares como Palmares, Canudos e Contestado. Talvez a principal razão da revolta de 1910 fosse o abismo que separava – como ainda hoje separa – as classes excelentes das ditas subalternas. No Brasil da época, como ainda fortemente no de agora, a cidadania de fato era privilégio da pequena parcela proprietária da população. Contra esse fato, levantaram-se os marujos. Uma razão essencial do fracasso dos acontecimentos foi o profundo isolamento social dos marinheiros. Eles contaram com a simpatia da população pobre da capital. Porém, a classe trabalhadora urbana, a aliada natural dos marinheiros na luta democrática, a única capaz de sustentar e consolidar as conquistas dos marujos, apenas ensaiava tímidos passos. Eram poucos e débeis, os operários da cidade que poderiam ter estendido a mão aos marinheiros. Não possuíam a força objetiva de hoje. Na época, o mundo do trabalho concentrava-se nos campos. A meteórica revolta de 1910 foi praticamente ignorada pelo mundo Restou aos marinheiros apenas o apoio dos setores democráticos das classes ditas superiores e da frágil classe média, sobretudo do Rio de Janeiro, que aplaudiu temeroso e exultante aqueles sucessos. O movimento de 1910 poderia ter funcionado como uma espécie de desdobramento da campanha civilista, contribuindo para o fortalecimento do constitucionalismo e do respeito às instituições democráticas. Poderia ter contribuído para fazer recuar o militarismo e o elitismo das oligarquias.

Rui Barbosa expressou uma tímida tentativa de aliança entre esses frágeis setores e os marinheiros. Ele expressou igualmente os limites desse movimento. Terminou, amargurado, levantando sozinho a sua voz e seu voto contra o pedido de estado de sítio, que tenha sido o momento de maior coragem e dignidade de sua vida política. Os marinheiros tinham lutado tragicamente sós contra uma classe dominante que soube unir-se e esquecer suas divergências diante do “inimigo” comum. Fato constante em nossa história. Como Zumbi e seus negros, Conselheiros e seus beatos, o João Cândido e seus marinheiros, mesmo na derrota, continuaram escrevendo a história que hoje vivemos.

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Cronologia 1850 1854

Armada incorpora barco propulsionado à hélice

1865-70

Guerra do Paraguai

1865

Chega ao país o primeiro encouraçado – Brasil – propulsionado à hélice

1888

Abolição da escravatura

1889

Proclamação da República forças armadas

1890 1893

6 de julho: revolta da canhoneira Marajó, em Rio Grande, RS

1893/1895 contra Floriano Peixoto 1900

Primeiras organizações sindicais e políticas operárias no Brasil Mais de 210 mil não-brasileiros vivem no Rio de Janeiro

1903

Lançado ao mar o encouraçado russo Potemkin

1904

Governo decide rearmar a armada brasileira outubro: Revolta da Vacina no Rio de Janeiro

1905

Armada russa derrotada pelos japoneses no estreito de Tsuchima 21 de abril: primeira grande greve na Rússia socialmente convulsionada 27 de junho/8 de julho: revolta dos marinheiros do encouraçado Potemkin

1906

Primeiro Congresso Operário Brasileiro no Rio de Janeiro Marujos brasileiros viajam para a Inglaterra para acompanharem construção dos navios Brasil

1910 presidente Nilo Peçanha 22 de novembro: revolta dos marinheiros na baía de Guanabara 24 de novembro: a anistia dos marinheiros é votada pela Câmara dos deputados.

Denúncia sobre conspiração no cruzador-ligeiro Rio Grande do Sul 10 de dezembro: Segunda revolta dos marinheiros, talvez instigada pelos governos 11 de dezembro: massacre do Batalhão Naval e prisão de João Cândido 25 de dezembro/3 de janeiro: o cargueiro Satélite parte para o Norte com prisioneiros. Diversos marinheiros são executados durante a viagem 26 - 27 de dezembro: 16 soldados e marinheiros morrem em solitária na ilha das Cobras 1911

1.216 marujos são expulsos da Marinha de Guerra

1917

Revolução Russa

1922

Formação do Partido Comunista do Brasil

1925 1963

Edmar Morel lança o livro “A Revolta da Chibata”

1964

Governo militar cassa pensão de João Cândido

Anexo A Revolta da Chibata faz Cem Anos1 Em 22 de novembro de 2010, celebra-se o primeiro centenário da denominada Revolta da Chibata, quando milhares de marinheiros apoderam-se dos mais poderosos navios da esquadra brasileira, então uma das mais avançadas armadas do mundo, estacionada na baía da Guanabara para as comemorações da entronização do marechal Hermes da Fonseca [1855-1823], apenas eleito presidente da República. A maruja impôs-se pela força das armas à despótica, os canhões dos temíveis encouraçados para a capital da República, reclamaram a anistia, melhores salários, mais dignas condições de das após a Abolição e a República, os marinheiros, em sua maioria negros, mulatos, pardos e caboclos, eram açoitados como nos velhos tempos do cativeiro. Ainda que esse importante transcurso não passe, neste ano, quase despercebido, como o ocorrido quando dos seus noventa anos, temos que convir que são poucas as celebrações sobre ele, já que constitui um dos mais singulares sucessos da história social brasileira. Há poucos dias, ao falar para uma trintena de estudantes de história de uma universidade do interior do Rio Grande do Sul, 1

Intervenção para o Seminário Internacional “A Revolta da Chibata – 100 anos: história e Janeiro.

constatei surpreso que apenas um – e somente um – ouvira falar e podia algo dizer sobre a Revolta da Chibata. Essa não é, certamente, realidade singular, mas situação talvez dominante através do Brasil. Portanto, temos que registrar, destacar e felicitar o presente encontro promovido pela UERJ, em 9-10 de setembro, sob a coordenação dos historiadores Marco Morel e Sílvia Capanema. Salvo engano, ele reúne por primeira vez nos últimos cem anos, acadêmicos e não acadêmicos que estudaram e se interessaram diretamente por aqueles fatos, para debate sobre eles. Um encontro que, com razão, se dá no Rio de Janeiro, às margens da baía de Guanabara, o principal cenário Ainda hoje são raros e relativamente recentes os estudos sobre sintéticos sobre João Cândido, o principal dirigente do movimento, sejam um pouco mais abundantes. Fora livros e folhetos redigidos pouco fora escrito até o lançamento, em 1959, do memorável estudo do jornalista cearense Edmar Morel, que cumpriu, igualmente, no ano passado, seus cinqüenta anos.2 Com toda a pertinência, o encontro do Rio de Janeiro propôs centrar, também, suas discussões sobre aquele estudo germinal, que os anos não cessam de aumentar a relevância. Em 1959, o estudo de Morel – A revolta da Chibata: subsídios para a história da sublevação da Esquadra pelo marinheiro João Cândido, em 1910 – teve a merecida consagração por que, por primeira vez, retirava em forma inapelável aqueles sucessos do semi-olvido forçado em que haviam sido mergulhados pelas mal-chamadas elites nacionais, interpretando o movimento desde a ótica dos marinheiros sublevados. Seu sucesso deveu-se igualmente aos substanciais dotes literários do autor e à qualidade e seriedade da reconstituição Cearense de Fortaleza, José Edmar de Oliveira Morel nasceu em 17 de março de 1912, quase dois anos após a revolta.3 Filho de famí2 3

MOREL, Edmar. A revolta da Chibata: subsídios para a história da sublevação da Esquadra pelo marinheiro João Cândido, em 1910. Rio de Janeiro: Pongetti, 1959. MOREL, Edmar. Histórias de um repórter. São Paulo: Record, 1999. p.18.

os estudos primários para lutar pela existência. Após desempenharse em outros trabalhos, empregou-se como agenciador de anúncios, 4 Aos vinte anos, com a ajuda de amigos, embarcou-se para o Rio de Janeiro, em terceira classe, esperando realizar seu sonho de vida, ser plenamente repórter. Um primeiro humilde emprego no deu lística, interrompida apenas em 14 de novembro de 1989, por sua eles o historiador Marco Morel. Salvo engano, não contamos ainda com estudo mais detalhado da visão de mundo de Edmar Morel, indiscutível intelectual orgânico das classes populares do Brasil. Sem ter sido jamais comunista, conheceu forte atração pelo marxismo, pelo comunismo e pelo próprio PCB. Em livro de memórias, declarou orgulho: “Jamais pertenci ao Partido Comunista, a cuja causa prestei serviços, não como inocente útil, porém conscientemente.”5 Pensador e militantes inarredável de esquerda e do anti-fascismo, de forte viés nacionalista, socialista e popular, Edmar Morel participou muito ativamente da Aliança Nacional Libertadora, da luta contra a Lei de Segurança Nacional, na campanha “O Petróleo é Nosso”, na mobilização contra a Espanha e Portugal fascistas, etc.6 Em 1964, teve seus direitos políticos cassados, conhecendo igualmente mais uma vez o desemprego, por motivos políticos. Viveu portanto a repressão de um Estado sempre de costas para a população e a serviços das grandes classes proprietárias, nacionais e internacionais, que nunca deixou de combater. Certamente entre as razões das mesquinhas perseguições e agressões teladas pela força das armas e a serviço das classes proprietárias na sua reportagem histórica sobre a revolta da armada. O livro conhecera uma reedição, revista e ampliada, de ampla repercussão, precisamente um ano antes do golpe de Estado de 1964!7 4 5 6 7

Id.ib. p. 23. Id.ib. p. 23. Id.ib. 52, 151, 183 Id. A revolta da chibata.. 2 ed. Ver. e ampli. Rio de Janeiro: Letras & Artes, 1963.

Apesar de se propor a tratar os sucessos de 1910, já relativamente distantes na época da produção do livro, a obra de Edmar Morel registrava e discutia indiscutivelmente a forte continuidade entre o passado e o presente, no relativo à submissão em que eram e continuam sendo mantidas as classes populares e trabalhadoras no Brasil, realidade geral que ele tendia a apreender sobretudo a partir das categorias nação, nacionalidade e cidadania, em um viés popular e socialista. Como registra o próprio Edmar Morel, A Revolta da Chibata foi produto de uma ampla investigação sobre o movimento, apoiada no estudo cuidadoso de artigos jornalísticos, de folhetos e de opúsculos sobre os fatos. Suas amplas relações como intelectual e jornalista de destaque permitiram-lhe igualmente ter acesso a importantes documentos originais sobre a revolta, não raro em mãos de particulares, resgatados, assim, do extravio habitual em nosso país.8 Escrito pouco mais de quatro décadas após 1910, o livro registrou igualmente o depoimento e as visões explícitas e implícitas de inúmeros contemporâneos aos acontecimentos. Sobretudo nas suas repetidas edições corrigidas e ampliadas, A Revolta da Chibata constituiu-se também como importante orientação crítica sobre as publicações referentes à insurreição.9 Confesso que me comoveu especializada para o presente encontro, a breve referência elogiosa aos livrinhos de Marcos Silva e meu, de 1982.10 Lamento profundamente não ter podido agradecer, na época, a condescendência do mestre para com os pupilos que se engolfavam sem muito jeito na rota que ele singrara pioneira e majestosamente, com a maestria do navegador habilidoso. Bakhtin, assinalaria o caráter profundamente polifônico de A revolta da chibata. No mínimo, no texto soam três potentes vozes, ao lado das palavras dos inúmeros protagonistas e coadjuvantes que encenaram aquela epopéia e drama histórico. A primeira grande voz é a 8 9 10

MOREL, Edmar. Histórias de um repórter. Ob.cit. p. 232. Id.ib. 3 ed. Rev. e ampl. Rio de Janeiro: Graal, 1979; 4. Ed. Ver. e ampl. Rio de Janeiro: Graal, 1986. Id. A revolta da Chibata: subsídios para a história da sublevação da Esquadra pelo marinheiro João Cândido, em 1910. 5 ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2009. [Org. Marco Morel].

do autor, que investigou os fatos e organizou a narrativa, produzindo nesse processo poderosa e criativa interpretação geral, de tão ampla autorevole e sempre presente, em forma direta e indireta, do principal dirigente do movimento, o marinheiro sul-rio-grandense João Cândido. Valoriza enormemente o livro A Revolta da Chibata ter o já traquejado Almirante Negro, que autografava a obra como espécie de co-autor, como assinala conhecida foto de lançamento do livro em 1959. Sobre aquele lançamento, Edmar Morel anotou: “Tratei de apressar o livro para que saísse a tempo para o cinqüentenário do movimento, em 1960. A primeira edição saiu pelos Irmãos Pongetti Editores, e o dores que participaram da confecção do livro, regado a chope e salgadinhos, com o próprio João Cândido autografando os exemplares ao meu lado.”11 Finalmente, muitas vezes através de João Cândido e de outros registros, podemos escutar as múltiplas vozes, já roucas, abafadas e mais distantes, dos marinheiros rebelados. Com a competente quinta edição comemorativa do primeiro centenário do movimento e cinqüenta anos de edição de A revolta da chibata, organizada pelo historiador Marco Morel, o livro foi lançado, por primeira, por editora nacional de destaque.12 O que nos permite esperar que estejam igualmente dadas as condições para estudo acadêmico substantivo sobre a obra geral e as visões de mundo de Edmar Morel, com destaque para A revolta da chibata. Um estudo que certamente lançará mais luz sobre aqueles sucessos, sobre a própria Edmar Morel não escreveu sua reportagem para sagrar-se era materialmente impossível na época, nem que fosse devido à dimensão restrita do público leitor no Brasil. Apesar de sua importanmar Morel, “pingava algum dinheiro” relativo aos direitos autorais 11 12

Cf. “Edmar Morel e João Cândido autografam a primeira edição de A Revolta da Chibata. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.” In. Id. A revolta da Chibata. 5 ed. Ob.cit. MOREL, Edmar. A revolta da Chibata. 5 ed. Ob.cit.

de seus livros. O que certamente era então um desafogo, mesmo para um jornalista de destaque. E, no relativo ao livro sobre a Revolta da Chibata, o autor com singular solidariedade e desprendimento, deixou estabelecido, na primeira edição, “que os 10% de praxe seriam destinados ao velho marujo [João Cândido] enquanto ele vivesse.”13 Em Histórias de um repórter, Edmar Morel escreveu que, em 1959, com 47 anos, já escritor reconhecido e com “alguma prática dre Cícero, do jangadeiro Francisco Nascimento e do coronel Fawcett – compreendeu que havia na revolta de 1910 “uma bonita história”, transformada em um “tabu”, sobretudo pela marinha de guerra brasileira. História que travara conhecimento, por primeira vez, ainda menino, em Fortaleza, na barbearia do pai, em matéria da revista Semana ilustrada.14 O livro tratou-se certamente de operação política e cultural, promovida por autor imbuído, desde sempre, da missão de vingador, na qual chibatou com a virtualidade de sua pena, ao estripar segredos cuidadosamente guardados, os poderosos e os algozes do passado e do presente, que mantinham no cepo o povo e o país que ele amava desbragadamente. A dedicatória da edição original registra o caráter combatente da reportagem histórica: “A Ti, homem ou mulher, que morreu na prisão, lutando pela liberdade, este livro.” Em A revolta da chibata não há espaço para as pretensões pernósticas, hipócritas e pueris sobre a imparcialidade quanto às partes, no relativo ao estudo dos confrontos sociais. A simpatia de Edmar Morel esteve sempre com os marinheiros revoltados, não por opção aleatória, apriorismo ou preconceito, mas porque eles interpretavam o que via, com justa razão, de mais saudável nas entranhas de seu país. Uma adesão incondicional regida sempre pelo princípio cristão ou leninista, como se queira, que apenas a verdade, no seu caso, histórica, “liberta” ou é “revolucionária”. Processo epistemolóbrasileira, passados já cinqüenta anos. Já na primeira edição, A revolta da Chibata centrou fortemente 13 14

MOREL, Edmar. Histórias de um repórter. São Paulo: Record, 1999. p. 233. Id.ib. p. 231.

sua narrativa em João Cândido, o marujo de Rio Pardo, descendente de trabalhadores escravizados. Ao narrar sua ação decisiva durante a revolta e a terrível saga daquele prometeu negro, castigado incessantemente por sua ofensa aos falsos deuses do Olímpio nacional, Edmar Morel esculpiu em granito indestrutível a atuação do marujo como principal dirigente da rebelião, posição na que fora ungido livre e democraticamente pela maruja rebelada. Uma personalização da narrativa enfatizada nas edições subseqüentes, com o relato do inferno em vida que continuou sendo votado ao Almirante Negro, com destaque para seus últimos anos, vividos sob a ditadura militar, até sua morte, em 6 de dezembro de 1969. Desde seu primeiro momento, o livro A revolta da Chibata foi gro. Cremos que o destaque dado a João Cândido não se deveu apenas à disposição registrada pelo autor de ter “a honra de ser o biógrafo do marinheiro João Candido”.15 Ou à consciência da necessidade de personalizar os acontecimentos, para objetivar narrativa mais performativa. Tratou-se de uma orientação que talvez sequer se devesse à valiosa proximidade com o destacado protagonista. Possivelmente nessa solução contribuiu fortemente a visão profunda de Morel da história pátria, compreendida fortemente como o produto de protagonistas excelentes que não raro entregaram a vida na construção da nação com que o autor sonhava e pela qual lutava destemidamente. Heróis pátrios, que a “sociedade esquece com facilidade”, que habitaram, muitos deles, como coadjuvantes fortuitos, sua narrativa sobre os fatos de 1910 – Tiradentes, Dragão do Mar, Frei Caneca, etc.16 Segundo o próprio subtítulo do livro, João Cândido teria nada menos do que “levantado a Esquadra” em 1910. Tratou-se de escolha que centra os holofotes em João Cândido, o Almirante Negro, e, com algumas exceções, ilumina apenas rapidamente cenários em que ele não foi o protagonista, como as deliberações nos demais navios, a segunda revolta, de dezembro, etc. *** 15 16

Id.ib. p. 59. Id.ib. Ob.cit. p.60.

Gostaria de pedir licença para explicar porque e como terminei 1979, pouco após voltar ao Brasil de exílio de pouco mais de seis anos, decidi produzir estudo dirigido ao grande público leitor sobre a Revolta da Chibata, enquanto preparava minha tese de doutoramento sobre a escravidão colonial no Rio Grande do Sul, defendida em Louvain, na Bélgica, em 1980, e publicada, em 1984.17 Essa incursão em uma época e em um tema que sempre foram relativamente estranhos ao espaço central de meu trabalho como historiador merece explicação, pois creio que registra também momento e conjuntura necessários de serem intelectualmente restaurados. Sou membro da última geração brasileira que dedicou habitualmente à literatura rado diante da telinha da televisão. A leitura da segunda edição de A revolta da chibata, em 1968-69, quando estudante de engenharia na PUC-RS, causara-me enorme impressão pela plasticidade quase de Não vou responsabilizar Edmar Morel pelo meu abandono da Escola de Engenharia da PUC pelo curso de História na UFRGS, em 1969, em uma época em que já me envolvera plenamente na luta contra a ditadura militar e pelo socialismo. Mas indiscutivelmente, ele foi um dos primeiros autores brasileiros a me apontar um tipo de escritura da história que perseguiria e, confesso, persigo ainda, quarenta anos após a leitura da Revolta da chibata. Entretanto, o estudo de Edmar Morel foi responsável apenas indiretamente pela minha incursão na insurreição de 1910. Cinco anos antes, em agosto de 1973, marchara ao lado de apenas algumas centenas de manifestantes, pelas ruas de Santiago, em defesa dos marinheiros chilenos, que acabavam de ser encarcerados por ordem presidencial, sob a de conspiração. Em pronunciamento radiofônico, Salvador Allende declarara, pateticamente, imediatamente após as prisões, em verdanización celular en dos buques de la Armada Nacional. Se presume 17

MAESTRI Mário. O escravo no Rio Grande do Sul: A charqueada e a gênese do escravismo gaúcho Porto Alegre: EST; Caxias do Sul, EDUCS, 1984. 203 pp

que intervinieron miembros del sector de ultraizquierda. [...].” “El bineros e Investigaciones.”

18

que antecedeu o golpe militar de 11 de setembro de 1973. Na ocasião, relembrei fortemente a revolta vitoriosa de 22 de novembro de 1910, dos marinheiros brasileiros, que conhecera através de A Revolta da Chibata. O que mais me impressionara nos sucessos chilenos foi a oportunidade perdida, pois estavam dadas, em 1973, ao contrário de 1910, as condições perfeitas para a junção da ação dos destemidos marinheiros democráticos e revolucionários com uma população que esperava direção em que se apoiar. A repressão aos marinheiros desmobilizou a resistência anti-golpista nos quartéis e nos navios e aprofundou a confusão e desmoralização do ainda fortíssimo movimento chileno de massas. Em Santiago, marchava ao meu lado, em solidariedade aos marinheiros presos, o também jovem chileno Jorge Magasich, meu colega no curso de História do Instituto Pedagógico da Universidade de Chile, na militância política e, a seguir, no exílio na Bélgica. Certamente também golpeado por aqueles sucessos, ele publicaria, no Chile, em 2008, sua tese de doutoramento, defendida anteriormente na , na Bélgica, apoiada fortemente no depoimento da direção dos marinheiros que se organizaram contra Los que dijeron “No”: historia del movimiento de los marinos antigolpistas de 1973.19 No Chile, antes dos sucessos de setembro de 1973, envolvendo os marinheiros, eu lera e buscara me informar sobre a revolta dos marujos chilenos, de 1931, igualmente retirado do olvido pelo escritor, poeta, cantor e historiador Patrício Mans, com o livro , em uma edição de dez mil exemplares, de 1972, das Ediciones Universitarias de Valparaíso.20 18 19 20

El Mercúrio, 10.8.1973. Apud: MAGASICH, Jorge. Los que dijeron “No”: historia del movimiento de los marinos antigolpistas de 1973. Santiago: LOM, 2008. 2 vol. MAGASICH, Jorge. Los que dijeron “No”. Ob.cit. p. 141. Vol 2. MANS, Patrício. La revolución de la escuadra. Santiago: Nuestro Tiempo/Ediciones Universitarias de Valparaíso, 1972. 157 pp.

De volta ao Brasil e à luta que me afastara por quase sete anos do país, como dito, decidi, em 1979, realizar breve investigação sobre a Revolta da Chibata, que concluí após a defesa de minha tese de doutoramento, em 1980. Além de produzir livro de divulgação sobre aquele levante, pretendia investigar e enfatizar as razões que garantiram a vitória militar da primeira insurreição, de 22 de novembro de 1910. Nos marcos dos limites da pesquisa, o escopo central do trabalho era estudar a revolta como um todo e os marinheiros como seus protagonistas. Morando em São Paulo, viajei diversas vezes ao Rio de Janeiro para pesquisar na Biblioteca Nacional e, sobretudo, no Arquivo da Marinha, onde me apresentei sob a desculpa de estar preparando uma história do Minas Gerais, um dos dois principais encouraçados sublevados. No arquivo, fui atendido gentilmente pelo responsável, que insistia em carimbar o verso das fotocópias de livros e folhetos que me permitia realizar, para acertar sua autenticidade. Na ocasião, pude consultar ainda livremente, entre outros documentos, os registros dos castigos de algum dos navios sublevados, que, inexperiente, não transcrevi. Encerrei minhas visitas ao arquivo quando, visivelmente enfadado, o gentil responsável declarou-me que não pensasse que lhe enganava, pois sabia que estava, nos fatos, pesquisando João Cândido e a Revolta da Chibata. Certamente também já lera o livro de Edmar Morel! Em 1980, quando ultimava a redação de meu ensaio, durante o septuagésimo aniversário da Revolta da Chibata, proferi palestras e, sobretudo, publiquei dois artigos, um longo e outro mais breve, respectivamente nos semanários Em Tempo e Movimento, sob os títulos “A Revolta da Chibata” e “A vitória do Almirante Negro”.21 Atividades então comumente realizadas sob os olhos atentos e apenas mais contidos da repressão policial e militar. Finalmente, apresentei o ensaio, para exame, ao editor da coleção “Tudo é História”, da Editora Brasilense, onde publicaria, em 1984, síntese de minha tese de doutoramento.22 Com forte decepção, soube que alguém se adiantara, ao propor, anteriormente, um outro ensaio, já aprovado, se não me engana a memória. Tratava-se do excelente trabalho de Marcos 21 22

MAESTRI, Mário. “A revolta da chibata”. São Paulo, Em Tempo, 20.11 a 10.12.1980. PP. 12 e 13. Id. O escravo gaúcho: Resistência e Trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1984. [Coleção Tudo é História, 93].

Silva, autor que tive o prazer de conhecer mais tarde. Publicado em 1982 – Contra a Chibata : marinheiros nacionais em novembro e dezembro de 1910 –, o ensaio aborda principalmente o noticiário dos jornais, das classes dominantes e operários, destacando a fragilidade do movimento popular da época, elemento que assinalara igualmente no meu estudo. Finalmente, o trabalho, ao qual dera o título 1910: a revolta dos marinheiros negros, foi prontamente aceito pela Editora Global, para publicação como o sexto título da série “História Popular: Brasil”.23 do título limitava o sentido de uma revolta que via como eminentemente social, marinheiro de primeira viagem, aceitei a restrição ao título original, compensada pela promessa do subtítulo “uma saga negra”, que terminou grafado apenas na primeira página do livro, e não na capa, como acertado. Publicado em 1982, o livro teve, no mínimo, três edições, de relativamente amplas tiragens. De certo modo, o coordenador da coleção retomava a opção de Edmar Morel, em Revolta da chibata, em não enfatizar o confronto entre uma maruja negra, mulata, mestiça e cabocla, em boa parte descendente de ex-catide grandes famílias de ex-escravistas. Realidade registrada, comumente, nas palavras de João Cândido e em passagem e comentários do próprio autor em A revolta da chibata. É interessante registrar que, em seu opúsculo de 1916, O pre, que teve como mote precisamente a revolta de 1910, Álvaro Bonicar [1874-1957], conhecido por suas posições nacionalista de viés popular, destacava já os preconceitos “de classe e de raça” entre as principais razões causais daqueles sucessos. Assinalava os preconceitos raciais registrados nas “exigências estéticas de uma aristocracia arqui-ridícula, numa república demogro, ou o nosso mestiço” era uma “fera, um ser bestializado pelo vício e pelo instinto do crime, incapaz para os árduos labores da marinha de guerra”. Para aquele autor, a marinha brasileira necessitava, sim,

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MAESTRI, Mário. 1910: a revolta dos marinheiros: Uma saga negra. São Paulo: Global, 1982.

preconceitos de raça e de classe, para comandar maruja que, corretamente enquadrada, destacaria-se como uma das melhores do mundo.24 Edmar Morel não viu a insurreição como luta de classes. Integrou-a e aproximou-a às grandes revoltas populares, nativas e regenciais do passado brasileiro, das quais excluía a Balaiada. Era uma luta pela liberdade, pela dignidade e, sobretudo, pela cidadania. Cremos como razão fundamental da revolta, não devemos minorar a exigência de melhores soldos e melhores condições de trabalho e de vida como motivos igualmente determinantes de revolta. Revolta na qual participaram com destaque marinheiros que jamais haviam sido Quando de minha primeira investigação, enfatizei a dimensão racial racistas da escravidão – preconceitos fortalecidos no início da República [Hermes da Fonseca tinha 33 anos, quando da Abolição!] – a marinheiros comumente negros, mulatos, mestiços e caboclos. Naquele então, despertou-me igualmente a atenção a eventual insileiros. Um fato igualmente pouco referido e desenvolvido por Edmar Morel, apesar de também pertinentemente assinalado por ele. Arriscamos a pensar que, nacionalista ferrenho, em luta permanente contra os então chamados entreguistas e vende-pátrias, não lhe seria simpática a idéia que a nossa revolta nascera ou se fortalecera a partir do exemplo e lições de revolta estrangeira.25 Em 1910: a revolta dos marinheiros: Uma saga negra, destaquei igualmente a determinação da consciência dos marujos pela modernização da Esquadra, que os transformara em verdadeiro proletariado embarcado, ainda que tratados como os antigos e rústicos cativos. Utilizei e utilizo a categoria “proletariado embarcado” para descrever a metamorfose substancial da maruja, no contexto das grandes aquisições da armada, de operários sobretudo braçais em trabalhadores especializados. Eram agora artilheiros, eletricistas, foguistas, 24 25

BONICAR, Álvaro. Rio de Janeiro: e.ed., 1916. PP. 11 et seq. MOREL, Edmar. Histórias [...]. ob.cit. p. 47, 94, 179

como uma maruja moderna, parte integrante de proletariado embarcado [e desembarcado] mundial, com o qual mantinham incessantes e crescentes contatos, cotejando suas reivindicações, suas lutas e suas condições gerais de trabalho e de existência, com as daqueles setores. Uma contradição enfatizada, nos manifestos dos revoltosos, na permanente referência à oposição entre os direitos cidadãos e o tratamento recebido, próprio à fazenda escravista. Enfatizei igualpopulares, devido ao caráter necessariamente clandestino da conspiração; à fulminante eclosão e conclusão da revolta; à debilidade estrutural e conjuntural das classes trabalhadores na época; a fragilidade estrutural do proletariado em um país ainda essencialmente rural. Quando daquele estudo, tive plena consciência da necessidade de um melhor conhecimento da dinâmica interna do movimento, da segunda insurreição e de pesquisa mais ampla sobre a eventual inmar Negro. A retomada da luta pela democratização do país, em um viés crescentemente classista e anticapitalista, sob a direção do movimento operário organizado, com destaque para o proletariado metal-mecânico paulista, foi certamente responsável pela minha decisão de escrever, pela fácil publicação e pela ótima acolhida de meu ensaio. Realidade sobre a qual tinha, então, consciência limitada. a redação, publicação e ampla difusão da obra de Marcos Silva e, em 1979, a apresentação com indiscutível repercussão da terceira edição de A revolta da chibata, ampliada, que me foi presenteada pelo historiador sulino Décio Freitas, então marxista, que publicara uma segunda edição de Palmares: a guerra dos escravos, também pela Editora Graal, em 1978, responsável por aquele lançamento. Lenta mas inexoravelmente, esgotaram-se nos anos seguintes as condições sociais gerais que abriram espaço para a investigação e a legitimação de trabalhos sobre a revolta dos marinheiros de 1910. Seis anos mais tarde, em 1988, ou seja, já no contexto da enorme maré conservadora que arrasaria o mundo [Queda do Muro], o contra-almirante Hélio L. Martins publicou pela Companhia Edito-

ra Nacional um trabalho de maior fôlego, claramente antipático aos marujos e com poucas informações novas. Porém, o livro constituiu, indiscutivelmente, um real esforço para superar o partidarismo exse afasta sistematicamente. Quando retornei ao tema, em 1999, e li, com grande cuidado A revolta dos marinheiros : 1910, chamou-me atenção a quase absoluta semelhança do título desse importante estudo, em relação ao meu ensaio anterior, à exceção da inversão da colocação da data dos sucessos no título.26 Nos dez anos seguintes, fez-se silêncio quase absoluto sobre o viradeira se abatia sobre o Brasil e o mundo. Com a vitória da maré neoliberal, proclamou-se o com destaque para aquela com preocupações sociais, sobretudo quando escrita do ponto de vista dos oprimidos. No novo contexto socialmente árido, as histórias das mentalidades, dos hábitos, dos costumes e de outras questões gentis impuseram-se como grandes temas, abandonando-se, sob a ameaça de execração acadêmica, a velha proposta de compreender o passado para transformar o presente, que Edmar Morel interpretara, com tamanha galhardia. A retomada da temática deu-se em março de 1997, por Álvaro Pereira do Nascimento, que defendeu dissertação de mestrado, na UNICAMP, abordando indiretamente a Revolta de 1910, de título “Marinheiros em revolta: recrutamento e disciplina na Marinha de Guerra (1880-1910)”.27 Salvo engano, após quase 90 anos, era a primeira investigação de fôlego que discutia, ainda que indiretamente, a revolta de 1910, produzida em programa de pós-graduação. O pai do autor, seu Severino, consciente e esclarecido trabalhador marítimo e ex-militante do velho PCB, durante a ditadura, questionava e dos “verdadeiros heróis nacionais”. Não falava. Quem sai aos seus não degenera. Álvaro Pereira do Nascimento certamente honrou com seu trabalho seu Severino, João Cândido e os milhares de mari26 27

MARTINS, Hélio Leôncio. A revolta dos marinheiro : 1910. São Paulo: CEN; Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1988. (Brasiliana, 384). NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. A ressaca da marujada: recrutamento e disciplina na Armada imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001.

nheiros anônimos. Após rápida descrição da revolta, baseado sobretudo no estudo de processos-crimes, referentes ao período 1860-1912, deposio caráter forçado do arrolamento e do tratamento dos marinheiros, mesmo quando ainda quase crianças. No seu estudo, destaca-se a estudado apresenta o caso de Laurentino Manuel da Silva que, em 1873, foi condenado sumariamente pelo comandante a quinhentas chicotadas consecutivas, por haver destratado o cabo da guarda. Álvaro Pereira do Nascimento demonstra que a duração do castigo era do apenas quando o marujo se dobrava de dor. O trabalho corrobora igualmente as teses sobre a tensão raabonadas e proprietárias da época, e os marujos, negros e pobres, originários dos segmentos mais humildes de então. No Império, comumente, os marujos eram libertos e, não raro, cativos fujões que se arrolavam como marinheiros para escaparem ao cativeiro. O autor tos que agitaram a marinha de guerra, preparando a grande revolta. Hoje sabemos que, antes de 1910, ocorreram outros motes, em geral circunscritos a um navio, como em 1891, no cruzador Paraíba, na baía da Guanabara; em 1904, em um barco da Armada, em Gibraltar; e o ocorrido, na Bahia, no encouraçado Deodoro, durante o transporte do corpo do ex-vice-presidente Manuel Vitorino. Álvaro Pereira do Nascimento refere-se com detalhes a uma revolta, em 1893, no porto de Rio Grande, na canoeira Marajó de, dedicaria igualmente sua tese de doutoramento, Cidadania, cor e disciplina na Revolta dos Marinheiros de 1910, àqueles sucessos, publicada, em 2008.28 Em 1997, propus-me realizar reedição ampliada de meu ensaio, já há muito esgotado. Voltei, então, ao Arquivo da Marinha, no 28

NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Cidadania, cor e disciplina na Revolta dos Marinheiros de 1910. Rio de Janeiro: Mauad X, FAPERJ, 2008.

Rio de Janeiro, onde não mais encontrei meu conhecido – e quero crer amigo – arquivista e boa parte da documentação que pudera consultar, e não transcrevera, por falta de experiência e tempo, dez anos antes. Aceito pela Editora Moderna, o livro foi lançado quando dos noventa anos da Revolta que, diga-se de passagem, passaram quase despercebidos, como assinalado. Nesse estudo, aprofundei marinha de guerra, no contexto dos grandes encouraçados monocalibre, sobre uma maruja tratada como formada por cativos, apesar de sua proletarização, como também já destacado. Sobretudo, apresentei, em dois breves capítulos, a Revolta do Potemkin. Registro preocupação dos marinheiros brasileiros, em 1910, em não cometer os erros de seus camaradas, em 1905. O que destacaria o caráter e sentido também fortemente internacional desses sucessos. Registrese que, apesar do lapso, a celebre carta do Mão Negra, quando da insurreição, a revolta da “ torná-los mais receptivos às reivindicações dos marinheiros, incessantemente apresentadas.29 vimento russo. Uma decisão que ressaltava, igualmente, o caráter de classe e social do movimento. Não titubearam em bombardear os navios e as fortalezas que se opuseram ao movimento, sem mostrar a hesitação dos marujos do Potemkin, em 1905. Destruíram as bebidas alcoólicas, mantiveram sob guarda o cofre dos navios e as cabisuperiores mortos. Assim, te ao movimento de 1905, pela imprensa e em ensaios, na Rússia e através do mundo, sobretudo. Tinham certamente consciência divergências da revolta brasileira com a russa sugerem um cuidadoso e minucioso estudo daquele movimento, que apenas se concluíra, quando os marujos brasileiros chegaram à Inglaterra, para serem introduzidos no manejo das modernas máquinas. Também em 2000, o 29

MAESTRI, Mário. Cisne negro. Ob.cit. p. 64.

Cândido que aponta interessantes sugestões sobre as razões pelas quais ele se transformou quase naturalmente em principal porta-voz da revolta da Chibata. Ou seja, sua liderança anterior à revolta entre 30

Verdadeiro proletariado embarcado, os marujos brasileiros empreenderam movimento por realização de direitos civis e sindicais negados, avançando proposta de sociedade cidadã, que deveria necessariamente apoiar-se no mundo do trabalho, para sua efetiva realização. Ao tomarem os complexos navios em suas mãos, conduzindo-os com total maestria, desenharam na baía da Guanabara a explosiva metáfora da desnecessidade e anacronismo social das chamadas classes dirigentes e dominantes. Idéia-força já parte do programa das vanguardas da frágil classe operária brasileira, materializada, sete anos mais tarde, na Revolução Russa. Talvez por isso a forte atração que o movimento exerceu, fugazmente, sobre as classes médias e populares do Rio de Janeiro e, até mesmo, sobre um político e intelectual democrático como Rui Barbosa. Ao ter como cenário geral um país semi-rural, com as classes operárias fortemente regionalizadas e se recuperando de dura depressão e repressão, faltou ao movimento dos marinheiros a sustentação democrático-radical imprescindível, para manter-se, após a vitória de novembro. O Estado elitista nacional não podia permitir vitória dos marujos que se consolidasse como farol para o movimento social e apontasse para uma efetiva democratização das forças armadas. A revolta se solucionaria com a obtenção de conquistas imorredouras para os marujos da armada, em novembro, que teria como contraponto a impiedosa repressão e desligamento da arma dos marinheiros revolucionários, após a derrota/armadilha de dezembro, possivelmente produto de provocação policial-militar. A luta pela democratização efetiva da marinha de guerra e das forças armadas, retomada e novamente derrotada em 1963-4, segue como pauta inconclusa no Brasil.

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GRANATO, Fernando. O negro da chibata: o marinheiro que colocou a República na mira dos canhões. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. 139 pp.

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