Claire Fontaine: em vista de uma prática ready-made

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C-L-A-I-R-E F-O-N-T-A-I-N-E EM VISTA DE UMA PRÁTICA

READY-MADE

C-L-A-I-R-E F-O-N-T-A-I-N-E *

EM-VISTA-DE-UMA-PRÁTICA

READY-MADE

tradução Aurore Zachayus, Fabio Morais, Lucas Parente, Noara Quintana e Revista Punkto organização e edição Alex Flynn e Leonardo Araujo

C-L-A-I-R-E F-O-N-T-A-I-N-E *

EM-VISTA-DE-UMA-PRÁTICA

READY-MADE São Paulo, 2016

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Autora: Claire Fontaine Edição e Produção: Glac Edições Gustavo Colombini e Leonardo Araujo Editores: Claire Fontaine: em vista de uma prática ready-made Alex Flynn e Leonardo Araujo Tradução: Revista Punkto (http://www.revistapunkto.com) Dossiê Claire Fontaine Luhuna Carvalho Carta a A. Artistas ready-made e greve humana: algumas clarificações Mariana Pinho Somos todos uma singularidade qualquer Nuno Rodrigues Notas de rodapé sobre o estado de exceção Glac Edições Noara Quintana Claire Fontaine: em conversa com... Aurore Zachayus Artista ready-made, genealogia de um conceito Fabio Morais Curadores Invisíveis Lucas Parente A.C.M. Adaptação: Leonardo Araujo Revisão: Gustavo Colombini Projeto Gráfico: Leonardo Araujo

organização

o ready-made como um ser

artistas ready-made e greve humana: algumas clarificações, 2005

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artista ready-made, genealogia de um conceito, 2014

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relações: artista-instituição

a.c.m., 2012

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curadores invisíveis, 2012

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perspectiva pra agora

somos todos uma singularidade qualquer, 2006

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notas de rodapé sobre o estado de exceção, 2007

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carta a A., 2008

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posfácio, Claire Fontaine: em conversa com Alex Flynn e Leonardo Araujo, 2016

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notas

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A Claire Fontaine é um coletivo de arte de Paris, criado em 2004, formado pela italiana Fulvia Carnevale e pelo inglês James Thornhill. A autora furtou o seu nome de uma marca popular de cadernos escolares e diante disso declarou-se um artista ready-made. A prática de Claire Fontaine se caracteriza como interrogação e reflexão constantes sobre a impotência política e a crise da singularidade do sujeito, que aparentemente definem, aos seus olhos, a arte contemporânea hoje. Se o artista da atualidade é o equivalente subjetivo de um urinol ou de uma caixa Brillo - tão descolocado, tão privado de valor de uso e tão trocável quanto os produtos que produz - a perspectiva que lhe sobra é única, a greve humana.

o ready-made como um ser

Concatenando alguns textos em que Claire Fontaine exerce a conceitualização do artista ready-made, como se auto denominam, esse conjunto pretende apresentar o caminho histórico e intelectual que o coletivo realiza como crítica e reflexão ao que faz constituir a si mesmo. A greve humana e a universalidade de uma singularidade qualquer para qualquer ser-artísta são, como pano de fundo, a estrutura em que se constrói a particularidade de uma prática readymade prevista.

artistas ready-made e greve humana: algumas clarificações 2

Portanto, ao invés de acrescentar um filme aos milhares de filmes que já andam por aí, prefiro deixar aqui clara a razão para não o fazer. Isso se resume a substituir as aventuras fúteis contadas pelo cinema por um sujeito importante: eu mesmo. Guy Debord, In girum imus nocte et consumimur igni, 1956 A minha auto-imolação foi um fogo-de-artifício sombrio e humedecido. Não foi certamente moderna, no entanto a reconheci em outros; depois da guerra a tinha reconhecido em cerca de uma dúzia de honrados homens ativos. Francis Scott Fitzgerald, The crack-up, 1931 Vivo apenas daqui até ali, dentro de um pequeno mundo em cuja inflexão perco a minha inútil cabeça. Franz Kafka, Diário, 1911

Não vamos mostrar-lhes a morte do autor outra vez. Não, isso não! Não, não iremos dizer nada sobre o assunto, nem sequer falar a favor do esforço terapêutico, nem sobre a possibilidade da massagem cardíaca ou da eutanásia. Vamos abordar a questão a partir de uma perspectiva totalmente diferente, a do processo de subjetivação e das suas relações com o poder. O problema presente não é tanto o de saber se

artistas ready-made

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o paradigma do DJ pode ser estendido à situação de todos os criadores contemporâneos, ou se qualquer espectador/ leitor, por meio do seu zapping e da sua atenção curta, é comparável a qualquer artista celebrado. A crise, que deve ser mencionada, é mais vasta e, sem dúvida, mais antiga; alcançou o seu apogeu no vigésimo século, mas as suas convulsões ainda nos perturbam. Falamos da crise das singularidades. Foucault a explicou bem: o poder produz mais do que reprime, e os seus produtos mais importantes são as subjetividades. Os nossos corpos são cruzados por relações de poder e os nossos devires são orientados pelos meios através dos quais nos opomos a este poder ou nos colamos ao seu fluxo. A construção de si mesmo sempre foi uma tarefa coletiva, uma questão de interferência e resistência, da distribuição de competências e da divisão de tarefas. As marcas de inferioridade, sexualidade, raça e classe estão inscritas no ‘ser’ por uma série de intervenções por parte dos polos retransmissores de poder, que agem em profundidade e deixam traços permanentes. Negro, francês, heterossexual, jovem, pós-graduado acima de linha de pobreza...Todos estes parâmetros e outros, que podemos facilmente assumir, resultam de uma negociação social para a qual não fomos convidados. A despossessão que sentimos em relação à nossa identidade presumida é a mesma que sentimos face à história, agora que já não sabemos como conseguir participar dela. Sem dúvida que este sentimento de indigência se intensifica devido ao fato de que sabemos, como escreve Agamben em A comunidade 12

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que vem, que a ficção hipócrita de uma singularidade insubstituível do ser serve, na nossa cultura, apenas para garantir a sua representatividade universal. Quer se fale de “singularidades quaisquer” ou de homens sem qualidades, é quase desnecessário enumerar todos os que diagnosticaram um empobrecimento da subjetividade ocidental na literatura, na sociologia, na filosofia, na psicologia, etc. De Joyce à Pessoa, de Basaglia à Lang, de Musil à Michaux, de Valery à Duchamp e de Walser à Agamben passando por Benjamin. É evidente que a sutura que a democracia deveria ter exercido nessas vidas mutiladas pela história recente produziu até agora uma desconhecida infecção. Os feridos pela modernidade, mais do que ver as suas feridas cicatrizar recuperando a sua habilidade de trabalhar, descobriram todo o tipo de transtornos de identidade, e viram tanto os seus corpos como as suas mentes marcadas por uma fenda aberta. Quanto mais se multiplicava e reproduzia o “eu” em todos os produtos culturais, menos se podia encontrar a consistência de si próprio na vida real. Nos últimos 50 anos, o poder democrático, operando sob a promessa de uma igualdade geral, produziu equivalência entre aqueles que estavam previamente separados por tudo (classe, raça, cultura, idade, etc.). Este processo não partiu de uma ética partilhada, que teria produzido igualdade ou conflito total, mas de um universalismo do centro-comercial. Desde o início, este universalismo foi concebido como uma mentira breve, desenhado para nos distrair do fato que o desenvolvimento do capital iria degradar tão profundamente a sociedade civil, criando abismos de artistas ready-made

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desigualdade tão grandes que nenhuma tendência política poderia emergir deste desastre com dignidade, muito menos propondo uma solução possível. As revoltas dos anos 703, em particular as que ocorreram na Itália em 1977, trouxeram tanta roupa suja que nenhuma família política ou biológica a conseguiu lavar totalmente: o colonialismo, cuja herança racista estava de ótima saúde; o machismo, apenas mais forte depois de 68; os espaços de “liberdade” dos grupelhos extraparlamentares que se tinham tornado fontes de micro-fascismos, a “emancipação” através do trabalho que era a versão pós-moderna de uma escravidão ao pai e ao avô, etc. O que triunfou foi o sentimento de termos sido enganados e de ter recebido, numa Europa rural e subdesenvolvida, um kit fora de validade do american way of life dos anos cinquenta, enquanto nos Estados Unidos as pessoas cuspiam no consumismo e lutavam por trazer a guerra do Vietnã para casa. Estes movimentos foram únicos, no sentido em que não cabiam nas categorias sociológicas normalmente empregadas para mistificar as insurreições. Na Itália, falou-se de um “irracionalismo difuso”, porque os jovens se recusavam a trabalhar e rejeitavam a emergente pequeno-burguesia global, não acreditando nem no que a sociedade dizia deles nem no futuro que lhes era oferecido. Que estes anos de fertilidade criativa inédita, tanto em termos de formas de vida como de produção cultural, tenham passado para os livros de história como os “anos de chumbo” nos diz muito sobre o que 14

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devemos esquecer. O movimento feminista lançou esta transformação, que dissolveu todos os grupos que centralizavam as energias desde 68. “Não seremos mães, esposas ou filhas: destruamos a família!” era o grito ouvido nas ruas. As pessoas exigiam direitos ao estado mas afirmavam uma estranheza em relação ao estado do mundo, uma afirmação que se fazia escutar: ninguém queria ser incluído ou descriminado num novo paradigma. Estes movimentos eram manifestações da greve humana. Pierre Cabanne: a sua melhor obra foi o uso que deu ao seu tempo. Marcel Duchamp: é verdade. Marcel Duchamp, Conversações com Pierre Cabanne, 1966 Como você está? Bem! Há muito tempo! Desde a Frieze… Meu deus! Você vai pra Basel? Sim! Nos vemos em Basel! Diálogo entre duas pessoas não identificadas, ouvido na inauguração do pavilhão Escocês na Bienal de Veneza de 2005

Na arte, os sintomas manifestaram-se desde logo de forma violenta. O Dadaísmo, o urinol de Duchamp e os outros ready-made, a arte Pop, o détournement, algumas apresentações de arte conceitual, apenas para citar os mais óbvios: todos estes são oscilações luminosas da clássica posição soberana do artista. Mas não vamos desenhar uma genealogia da transformação no domínio da produção de objetos: o que aqui nos interessa é o que aconteceu no domínio da artistas ready-made

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produção de artistas. Sem dúvida, o modo como os mais brilhantes entre eles se colaram ao fluxo de um capital ainda fordista através do princípio dos “múltiplos” – onde começaram a desmaterializar a produção e a exibição – diz algo acerca da nova relação que ainda hoje nos liga aos objetos, inclusivamente aos objetos artísticos. Mas estas ondas iniciais de transformação na relação entre os artistas e a sua prática davam a impressão de serem inócuas (para os museus, galerias e colecionadores tratava-se apenas de encontrar novos critérios para a comercialização) ou gentilmente dissonantes (para os críticos tratava-se apenas de provar que existia valor para além da provocação). Na verdade, estas perturbações prepararam o terreno para vastas mudanças. Não nos referiremos à reprodutibilidade mecânica da obra de arte, mas à reprodutibilidade dos artistas na época das “singularidades quaisquer”. Numa era que foi qualificada enquanto pós-fordista, onde o ondemand substituiu o stock, os únicos bens ainda produzidos numa linha de montagem – a de um sistema educativo – sem que se saiba para quem nem por por quê, são os trabalhadores, incluindo os artistas. A extensão do mercado de arte, sobre a qual já existe uma literatura considerável, tem como particularidade o fato de ter gerado uma massa de gente, produtores/consumidores, que se movem de vernissage em vernissage, de residência em residência, de feira de arte em bienal. Esta massa compra mais ou menos as mesmas roupas, conhece as mesmas referências musicais, visuais e cinematográficas, e concebe as suas produções dentro do enquadramento do mercado com o qual se familiarizou 16

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através das escolas de arte e das revistas. Não é uma questão de moralizar os gostos, as atitudes e as aspirações dos que são chamados “artistas”. É uma questão de perceber as consequências desse tipo de mercado nas subjetividades daqueles que o mantêm vivo. É óbvio que a crescente circulação de obras, de imagens de obras, e dos seus autores, acabou por criar uma base de dados de informação visual e teórica, bem como livros de endereços mais ou menos uniformizados, preservando simultaneamente as mesmas descriminações e desigualdades que caracterizam o resto da sociedade, sintonizadas com o protocolo de todos os processos de democratização. O tecido autorreprodutor chamado “mundo das artes” alcançou um estado onde interrogar o termo “criatividade” já não faz muito sentido. Nada de “novo”, no sentido mais ingênuo da palavra, pode vir à luz neste espaço. As “singularidades quaisquer” que conhecem o juízo e gosto do público e são sujeitas a processos análogos na estimulação da sua criatividade, dentro de um contexto e segundo normas rígidas, produzem obras igualmente genéricas. E se a novidade da obra já não é sequer necessária para o mercado ou para os consumidores, esta massiva criação de uniformidade irá, apesar de tudo, gerar uma disfunção genuína no espaço social que rodeia a arte contemporânea. A razão pela qual insistimos neste ponto não está relacionada com a superstição de que o trabalho artístico, ao contrário de outros tipos de trabalho, deva surgir de uma ligação profunda e direta com a singularidade do autor. É evidente que se levássemos a cabo o sonho de artistas ready-made

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Foucault e, durante um ano ou mais, identificássemos as produções apenas pelos seus títulos, omitindo os nomes dos autores, ninguém conseguiria reconhecer a paternidade de uma determinada obra. Este debate deveria ter sido encerrado pelo Fluxus e muitos outros, já que dada a relativa transparência dos protocolos produtivos adotados pelos artistas e a acessibilidade dos meios técnicos empregados, um número considerável de pessoas acaba, sem saber, fazendo a “mesma coisa” em residências situadas a milhares de quilômetros. O contrário é que seria espantoso. Quando, numa noite, depois de beber vinho e de jantar, você descobre que falou durante uma hora com fulano de tal, artista internacionalmente famoso que você pensava ser um caminhoneiro, e assim não pode deixar de comparar sua impressão com aquela produzida duas semanas antes, por um jovem brilhante, cheio de boas leituras, antes de, no entanto, visitar o seu site e ver aquilo que ele dizia ser o trabalho artístico. Os dois problemas, sendo distintos (o da eterna discordância entre as qualidades dos seres humanos e as qualidades das suas obras e o da crise na qualidade singular das produções artísticas) têm uma base comum: o espaço social que os abriga, a ética dos que o povoam, o valor de uso da vida vivida dentro dele. Ou, por outras palavras, a possibilidade de viver em relações sociais compatíveis com a produção artística. O problema aqui levantado, que pode parecer escandalosamente elitista, diz, na verdade, algo sobre as políticas aplicadas à criação artística e a sua relação com a política em geral. O único modo de ajudar a criação é proteger aqueles que não criam nada e que nem sequer 18

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se interessam por arte. Se uma relação social extraída à miséria capitalista não é necessariamente uma obra de arte em si mesma, então é necessariamente a única condição possível para que a obra de arte possa ocorrer. Os artistas contemporâneos têm as mesmas necessidades de todos os outros: viver uma vida interessante onde os encontros, o cotidiano e a subsistência se relacionem de uma forma que faça sentido. Não necessitam ser apoiados pelas mesmas multinacionais que arruínam suas vidas, não necessitam fazer residências por todo o mundo, onde ninguém gosta deles e onde não têm nada para fazer com os seus dias senão turismo. Tudo o que necessitam é um mundo liberto das relações sociais e dos objetos gerados pelo capital. Niquez en haut debit (Fode em banda larga) Détournement do slogan publicitário da Bouyges Telecom, Communiquez en haut debit [Comunica em banda larga]. Metrô Chatelet, Novembro de 2005 …o que não se pode comercializar está destinado a desaparecer. Nicolas Bourriaud, Esthétique relationnelle, 2001

“Rirkrit Tiravanija organiza um jantar na casa de um colecionador e deixa-lhe o material necessário para preparar uma sopa tailandesa. Philippe Parreno convida pessoas a praticar os seus hobbies preferidos no primeiro de Maio, mas numa linha de montagem industrial. Vanessa Beecroft veste vinte mulheres de modo similar e lhes dá uma peruca vermelha; mulheres que apenas podem ser artistas ready-made

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vistas pelo buraco da fechadura. Maurizio Cattelan...”. Toda a gente terá reconhecido nesta lista interrompida o início da Estética Relacional de Nicolas Bourriaud. A intenção do autor é apresentar as práticas “revolucionárias” de uma série de artistas que deveriam nos ajudar a nos opor à uniformização comportamental através da criação de “utopias de proximidade”. Não julgaremos aqui a pertinência dos exemplos escolhidos para desenvolver a sua tese, que começa precisamente por um reconhecimento partilhado da homogeneização das nossas condições de vida. O livro mal envelheceu; tanto a história quanto os críticos mostraram até que ponto este sonho era ingênuo. Acima de tudo, a experiência demonstrou aos visitantes/ atores que estas pequenas utopias acumulam uma tal quantidade de desvantagens que acabam por se tornar grotescas. Para além de repetirem as falhas já encontradas no teatro participativo – que pelo menos se desenvolveu nos anos 70, num clima de excesso e generosidade social inimaginável hoje –, estas práticas são levadas a cabo com a arrogância da obra de arte imaterial e efémera, reclamando o princípio obsoleto e suspeito da “criação de situações”. Se o sonho infantil das vanguardas era transformar a totalidade da vida numa obra de arte, eles transformaram apenas momentos separados das nossas vidas no recreio de diversos artistas. Para utilizar outra metáfora, se, por exemplo levamos a sério a leitura tradicional do modernismo, que afirmava que a abstração na pintura era um regresso à primazia do suporte, no caso destes artistas é como se nos 20

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tivesse pedido que fabricássemos molduras e telas com um manual de instruções do tipo IKEA. A estética relacional expõe as condições mais básicas da produção de criatividade: sociabilidade, convivialidade à volta de refeição ou de uma bebida. Mas dado que as singularidades dos autores estão empobrecidas, estas circunstâncias já não se apresentam na distância aurática das autobiografias dos grandes. Estes não são mais que meros objetos, móveis, totalmente prosaicos, que devem ser usados. Caso vocês ainda não acreditem em nós, lembrem-se, entre outras coisas, de uma obra de Tiravanija em que se expôs o carro que o conduziu do aeroporto para o local da exposição. Um carro tocado, “miraculado” pelo contato com o artista, mas infelizmente um carro antigo, um ready-made justificado pela mera história do seu valor de uso, que é exatamente o oposto do conceito de readymade! (Como se o suporte para garrafas ou as caixas Brillo fossem obras de arte por terem sido usados por artistas!). As obras da estética relacional, que têm em comum o fato de fazerem um uso inadequado do espaço da galeria ou do museu, acabam estranhamente por produzir uma surpreendente impressão de familiaridade. (Este não é o lugar para avaliar, de acordo com um critério platônico, a qualidade destas obras como simulacros da vida ou da libertação controlada da vida, num meio semifechado. A arte sempre foi mais experimental do que representativa e, por isso, sempre necessitou de um laboratório, de um meio separado em que esta experimentação pudesse ser desenvolvida, visando contaminar – ou não – o mundo exterior). A familiaridade, que nos agarra, é exatamente a artistas ready-made

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mesma que experienciamos no que diz respeito ao capital e às suas operações do dia-a-dia. Entre as zonas consagradas à experiência relacional da arte e a livraria do museu, ou o jantar após a inauguração, não existe nenhuma diferença substancial; os afetos e preceitos que emergem são, em suma, similares aos das lojas e espaços comerciais. É verdade que nos poderíamos perguntar se o público que viu o urinol de Duchamp pela primeira vez não terá reagido da mesma maneira. Afinal de contas, que objeto era mais familiar ou mais trivial? Mas a operação do ready-made duchampiano não tinha a intenção de ser desconcertante naquilo que permitia ver; mas na posição em que colocava o espectador, que era o oposto de qualquer incentivo à interatividade. Expor objetos dos quais se subtraiu definitivamente o valor de uso, de tal maneira que lhes pode ser atribuído um valor de exposição, diz-nos que o valor de uso é um conceito que diz respeito à vida e não à arte (a piada da Mona Lisa e da tábua de engomar é outra prova disso)... Hoje, o lugar do artista acometido pela indecência já não é o objeto que ele descontextualiza, nem as instalações que fabrica com elementos banais. É o gesto de querer produzir uma obra “original”, que transforma os autores em múltiplos de “singularidades quaisquer”. Mas não são somente os pobres artistas “relacionais” que pretendemos visar. Sob as circunstâncias de produção da subjetividade artística que acabamos de descrever, somos todos artistas ready-made e a nossa única esperança é compreender isto o mais rapidamente possível. Somos todos tão absurdos e deslocados como um objeto vulgar, 22

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privado do seu uso e decretado objeto artístico: quaisquer que sejam as singularidades, supostamente artísticas. Nas presentes condições, como qualquer outro proletariado, estamos expropriados do uso da vida, porque, na maior parte das vezes, o único uso historicamente significativo que podemos fazer disto resume-se ao nosso trabalho artístico. O trabalho, contudo, é somente uma parte da vida e está longe de ser a mais importante. Dez anos de trabalho para pagar um carro novo e levaram dois meses de prisão por terem-no incendiado. Pierre, 48 anos, pintor da construção civil, ao jornal Libération, 7 de Novembro de 2005

O conceito de Jacques Rancière de um regime estético das artes clarifica, para nós, a legitimidade filosófica de hoje se exibir tudo e a impossibilidade de aplicar argumentos éticos contra tal feito. Sob o regime estético, “tudo é igual, e igualmente representável”, as hierarquias e proibições que tiveram origem no velho mundo das representações estão arruinadas para sempre. A nossa experiência diária e a sua transcrição artística são da ordem da “conexão paratáxica de pequenas percepções”; a promiscuidade de tudo e de qualquer coisa aparece claramente na sintaxe da literatura, em que “a liberdade absoluta da arte se identifica com a absoluta passividade da matéria sensual”. Num texto intitulado “Se o irrepresentável existe”, Rancière coloca Antelme e Flaubert lado a lado: “Fui urinar – podemos ler em A espécie humana de artistas ready-made

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Antelme – Ainda era noite. Ao meu lado, outros urinavam também; não nos falávamos. Atrás do mictório ficava a fossa das latrinas com um pequeno muro em que os outros sujeitos estavam sentados, as calças arriadas. Um pequeno telhado recobria a fossa, mas não o mictório. Atrás de nós, barulhos de botinas, de tosse, eram outros que chegavam. As latrinas nunca ficavam desertas. A essa hora um vapor flutuava sobre o mictório… A noite de Buchenwald era calma. O campo era uma imensa máquina adormecida. De tempos a tempos, projetores iluminavam-se nas torres de vigilância. O olho das SS abria-se e fechava-se. Nos bosques que cercavam o campo, as patrulhas faziam ronda. Seus cães não latiam. As sentinelas eram tranquilas”. “Voltou a sentar-se e retomou a costura, umas meias brancas que estava cerzindo - lemos em Madame Bovary - trabalhava com a cabeça baixa; não falava. Charles também não. O ar, passando por baixo da porta, empurrava um pouco de poeira sobre as lajotas; ele olhava a poeira se arrastar e ouvia apenas o batimento interior da sua cabeça, com o cacarejar longínquo de uma galinha que punha ovo no quintal”4. Mesmo que a justaposição destes dois extratos seja orquestrada de forma a interpelar o leitor, e mesmo que a análise crítica e semiótica deste agrupamento pudesse levar um livro inteiro, tomaremos como um efeito da sintaxe paratáxica entre outros, ainda que particularmente significativo. A nossa intenção é sustentar a hipótese que Rancière rejeita abertamente na sua argumentação. Segundo ele, devemos interpretar o gesto de Antelme como alguém que no meio da catástrofe usa a sintaxe 24

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flaubertiana como ato de resistência e re-humanização da sua experiência limite. O silêncio das pessoas descritas nestes dois excertos e a relação entre a sua resignada ausência de palavras e os objetos circundantes hostis levanta outra questão: a da continuidade entre os afetos nos campos de concentração e os da vida cotidiana em tempos de “paz”, e até com os da “paz” que precedeu a existência dos campos. Situada na intimidade forçada entre os seres humanos e todos os tipos de objetos vulgares e odiosos, que constituem a vida cotidiana da maioria no capitalismo desenvolvido, esta continuidade produziu efeitos nas nossas subjetividades que são muito mais perniciosos do que os que Marx pôde descrever. A reificação, a subsunção real e a alienação não nos dizem nada da ausência de palavras que nos aflige quando confrontados com a nossa evidente familiaridade para com as mercadorias e a sua linguagem, bem como a nossa capacidade simultânea de nomear os fatos mais simples da vida, a começar pelos acontecimentos políticos. Sem dúvida, foi a este talento de fazer tudo coexistir num dia, esta capacidade de chamar tudo e todos de “trabalho” que a máquina de extermínio deveu a sua espantosa eficácia durante a Segunda Guerra Mundial. Foi claramente uma banalidade paratáxica do mal que transformou um simples empregado em Eichmann: tudo o que ele fazia, afinal, era elaborar listas; estava só cumprindo as funções que eram do seu trabalho. Mas além da aparência de fragmentação, que caracteriza a montagem de atividades abstratas e díspares que constituem obras no mundo contemporâneo, a tarefa artistas ready-made

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de tecer permanentemente uma qualquer continuidade que mantenha a vida nos é oferecida a cada um de nós, uma tarefa que colabora com o sistema enraizado, feito de pequenos gestos e leves ajustes. Desde os anos de 1930 que a mobilização total não tem parado; continuamos permanentemente mobilizados pelo fluxo da “vida ativa”. Ao sermos singularidades quaisquer, somos como páginas em branco em que qualquer história poderia ser escrita (a de Eichmann, a do grande artista, a de um empregado sem vocação); vivemos cercados por objetos que poderiam tornar-se ready-made, poderiam permanecer como objetos do dia-a-dia, ou que atravessam estes dois estados. Porém, perante estas possibilidades, num sono leve, por debaixo da superfície do real, a proliferação de slogans publicitários e uma série de tarefas sem sentido saturam o tempo e o espaço. Até que haja interrupção, continuaremos estranhos a nós próprios e aliados de coisas. Uma imagem é aquilo onde o Outrora encontra o Agora num clarão, formando uma constelação. Por outras palavras, a imagem é a dialéctica imobilizada. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a do Outrora com o Agora é dialéctica: não de natureza temporal, mas imagética. Walter Benjamin, Passagens, 1940

A parataxe é, assim, a forma exata da nossa existência num regime dito democrático. As diferenças de classe permanecem calmas, o racismo escondido, a discriminação é praticada entre uma miríade de outros fatos, tudo espalmado no mesmo plano horizontal de um presente 26

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senil e amnésico. As imagens, as impressões e a informação que recebemos são uma sucessão de “coisas” que nada diferencia ou organiza. A collage e o zapping já não são duas atividades separadas, são a metáfora da nossa percepção da vida. É por isso que achamos que já não é preciso optar por ir por uma via ou por outra na questão da morte do autor: pois, se o autor como “convenção” parece mais necessário do que nunca nas lutas inócuas pelos direitos de autor e nas entrevistas com criadores que infestam os jornais, então já nem sequer temos de nos perguntar se tudo não passa de uma convenção para servir os interesses do poder. Sempre pensamos através de assemblages, edições e justaposições, mas, conforme argumenta Deleuze, o espelho mais fiel do pensamento é a “imagem-movimento”. Se considerarmos esta afirmação como figura do real e não simples metáfora, somos obrigados a inquirir sobre a função ontológica da imagem fixa no meio da mobilização total. Num artigo de 1987 intitulado “L’interruption. L’instante” [A inrupção. O instante], Raymond Bellour observa que a história da imagem fixa nunca foi escrita. De alguma forma, conseguimos identificar os rastros dessa ausência na obra de Benjamin: a definição que avança para a imagem dialética responde em parte ao que inquirimos: “Ao pensamento pertencem tanto o movimento quanto a imobilização dos pensamentos. Onde ele se imobiliza numa constelação saturada de tensões, aparece a imagem dialética”5. Produto tanto de uma cessação como de uma saturação, a imagem dialética é primordialmente um local onde o passado encontra o presente. Mas este encontro acontece como num sonho e como se o presente estivesse purificado de artistas ready-made

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qualquer contingência e tivesse cedido ao movimento puro do tempo e da história. O passado encontra o presente como possibilidade pura. Os motivos pelos quais Benjamin passou tanto tempo analisando os processos de suspensão e cessação no teatro brechtiano estão inextricavelmente ligados à sua visão da história e à função que a arte pode assumir nela. Grande parte do seu pensamento parece ser um lugar para a construção de conhecimento, tanto verbal como visual, que funcionaria como ponte entre a imagem e a vida, a imagem fixa e a imagem-movimento. No centro da sua investigação emerge sempre uma mudança de ritmo, seja devido ao choque ou a outros tipos de interrupções. Quando Brecht, no teatro épico, insiste nos processos que produzem um olhar, estranho tanto por parte do público como dos atores, a suspensão aparece como o dispositivo técnico aplicado para libertar esse afeto. Em 1931, Benjamin descreveu o processo do seguinte modo: “O exemplo mais primitivo: uma cena de família. A mulher está amassando um travesseiro, para jogá-lo na filha; o pai está abrindo a janela, para chamar a polícia. Nesse momento, aparece na porta um estranho. Tableau, como se costumava dizer, no princípio do século. Ou seja: o estranho se depara com certas condições travesseiro amarfanhado, janela aberta, móveis destruído. Mas existe um olhar diante do qual mesmo as cenas mais habituais da vida de família apresentam um aspecto semelhante. Quanto maiores as devastações sofridas por nossa sociedade (e quanto mais somos afetados por elas, juntamente com a nossa capacidade de explicá-las), maior 28

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deve ser a distância mantida pelo estranho”6. O prisma do estranho no pensamento de Benjamin permite-nos compreender ligações lógicas e políticas que tendem a permanecer escondidas. Nos tornamo estranhos por meio de uma paragem, pois, quando o movimento é retomado, é como se a evidência paratáxica da sequência das coisas aparecesse sem restrições, como se nessa interrupção um espaço intersticial ficasse exposto, sugando a ordem instituída e o nosso pertencimento a ela. Num comentário aos poemas de Brecht, em 1939, Benjamin escreve que “quem quer que lute pela classe explorada se torna um estrangeiro no seu próprio país” 7. Tornar-se um estranho, um processo que opera por meio de uma paragem sucessiva de imagens de pensamento, bem como um abandono do eu, manifestado por uma interrupção e seguido de um contra-movimento. Este processo de desfamiliarização salvadora, que nos permite recuperar lucidez, parece estar em relação próxima com a arte, mais concretamente com a arte como fonte e dispositivo destes novos afetos recuperados, mais do que um espaço para a sua concretização. Tal pode ser explicado pelo estado da arte como um espaço para a desfuncionalização de subjetividades: as singularidades emergem aí emancipadas de qualquer utilidade. Como um espaço puramente estético, o mundo da arte abriga uma crítica potencial da organização geral da sociedade e da organização do trabalho em particular. O processo de se tornar estranho como ato revolucionário aparece na obra de Benjamin mais cedo, num texto de 1920, que não tem nada a ver com arte, artistas ready-made

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intitulado “Para uma crítica da violência”. Aqui se pode ler que “o trabalho organizado é hoje, além do estado, provavelmente a única entidade autorizada a exercer violência”8. Mas pode-se dizer que as greves são violentas? Pode uma simples suspensão de atividade, “uma não ação, que é o que uma greve é na verdade”, ser categorizada como gesto violento? De forma geral não, responde Benjamin, pois é equivalente a uma simples “ruptura de relações”. E acrescenta: “do ponto de vista da concepção do estado, ou da lei, o direito à greve concedido aos trabalhadores é certamente não um direito para exercer violência, mas antes para escapar de uma violência indiretamente exercida pelo empregador; as greves conformes a isto poderão, sem dúvida, ocorrer de tempos em tempos e envolver uma mera ‘retirada’ ou ‘distanciamento’ para com o empregador” 9. O que acontece neste momento singular de distanciamento que nos permite perder a nossa familiaridade com a miséria da exploração comum, tornando-nos subitamente capazes de decretar que, por um dia, o patrão não é patrão? É uma interrupção da rotina normal, uma mobilização a seguir de uma imobilização. Isto ocorre graças à paragem que nos transforma em espectadores espantados, ainda assim prontos a intervir. Foucault escreveu que a exigência implícita de qualquer revolução é “termos de nos mudar a nós próprios”10. O processo revolucionário transforma-se, assim, simultaneamente no meio e no fim desta mudança, dado que esta transformação tem de gerar para si própria um contexto de persistência possível. É neste sentido que Benjamin diz que uma verdadeira greve radical seria um 30

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meio sem fim, um espaço em que a totalidade da organização hierárquica juntamente com a burocracia política cairia face à potência dos eventos. A parataxe seria arrasada pela irrupção da descontinuidade. Mas existirá hoje um meio para a prática de uma greve, que não seja sindical nem corporativista, mas maior e mais ambiciosa? A pergunta é complexa, mas talvez devido à nossa singularidade empobrecida somos os primeiros cidadãos da história para quem a afirmação metafísica do ser humano como ser sem destino profissional nem social detém um sentido bem concreto. Agamben escreve que “há definitivamente algo que os seres humanos deveriam assumir, mas este algo não é uma essência, nem sequer uma coisa: é o simples fato da sua própria existência como possibilidade ou poder”11. Algumas feministas italianas dos anos de 1970 já perspectivavam uma greve que seria uma interrupção de todas as relações que nos identificam e subjugam mais do que qualquer atividade profissional. Sabiam envolver-se numa política que não era considerada política. Durante a luta pela penalização da violação, pela legalização do aborto e pela aplicação dos sistemas de cotas, elas pediam simplesmente à lei para não decretar sobre os seus corpos. Em 1976, o coletivo pelo salário doméstico, em Bolonha, escreveu que “quando fazemos greve não deixamos produtos a acabar ou matérias por transformar; ao interromper o nosso trabalho não paralisamos a produção, mas a reprodução da classe trabalhadora. E isso seria realmente uma greve mesmo para aqueles que normalmente fazem greve conosco”12. artistas ready-made

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Este tipo de greve que interrompe a mobilização total a que todos estamos submetidos e que permite que nos transformemos pode ser chamado de greve humana, pois é a mais geral das greves gerais e o seu fim é a transformação das relações sociais informais que constituem a base da dominação. O caráter radical deste tipo de revolta reside no seu desconhecimento de qualquer tipo de resultado reformista com que pudesse ficar satisfeita. À sua luz, a racionalidade dos comportamentos que adotamos na nossa vida cotidiana pareceriam inteiramente ditados pela aceitação das relações econômicas que os regulam. Cada gesto e cada atividade construtiva onde investimos uma parte de nós têm a sua contrapartida na economia monetária ou na economia libidinal. A greve humana decreta a falência destes dois princípios e instala outros fluxos afetivos e materiais. A greve humana não propõe nenhuma solução brilhante para os problemas produzidos por quem nos governa que não a máxima de Bartleby: Preferiria não – I would prefer not to. Paris, Novembro de 2005

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o artista ready-made, genealogia de um conceito 13

1. O ready-made é um objeto estético que não tem estética ou, cujo princípio de individuação, não é estético. “A escolha desses ready-made, escreve Duchamp em 1961, nunca me foi ditado por qualquer deleite14 estético. Essa escolha estava baseada numa reação de indiferença visual, combinada, ao mesmo tempo, com uma ausência total de bom ou mau gosto… na verdade uma anestesia completa”15. No Dictionnaire Abrégé du Surréalisme 16 (1938), está escrito que o ready-made é um objeto usual17 promovido à dignidade de objeto de arte pela simples escolha do artista. A escolha indiferente do artista e o momento em que ela acontece são os únicos fatores que provocam a transubstanciação do objeto banal em obra de arte. Um objeto qualquer, escolhido em um momento qualquer, por uma singularidade qualquer se torna uma obra de arte: é apenas uma questão de tempo e de potência. 2. Nas notas para La Mariée [A Noiva] escritas entre 1915 e 1916 e que foram publicadas em La boîte verte [A caixa verde], podemos ler que um ready-made é algo profundamente ligado a um momento, uma data, uma ocasião, é como um instante congelado (Duchamp define os 3 Stoppages étalons – 3 Paradas padrão - como um “acaso enlatado”). Os ready-made são, então, comparados com genealogia de um conceito

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um discurso pronunciado para uma ocasião, qualquer que seja ela, ele precisa: “a ocasião de qualquer coisa, mas nesse horário específico”18. É o tempo do discurso que importa, a data de nascimento exata de um evento. Sendo um evento qualquer, é apenas sua posição no tempo que o tornará único. Por isso o fetichismo do momento preciso não entra em contradição com a réplica e a repetição: “Um outro aspecto do ready-made é que ele não tem nada de único... A réplica do ready-made transmite a mesma mensagem”19. 3. Duchamp declara, em entrevista a Guy Viau, em maio de 1960, que o ready-made “é uma obra de arte que não é uma obra de arte, ou seja, que não é uma obra feita à mão, feita pela mão do artista. É uma obra de arte que se torna obra de arte pelo fato de que eu declaro ou o artista declara que ela é obra de arte, sem ter nenhuma participação da mão do artista em questão para fazer isso”20. Mas a partir do momento que a mão do artista não está envolvida na produção do objeto de arte, a atuação e a definição de artista mudam. Três anos depois, Duchamp falava para Francis Roberts que “um Ready-made é uma obra de arte sem artista para fazê-la, se eu puder simplificar a definição [...] Ele não era o gesto de um artista, mas sim de um nãoartista, de um artesão, se quisermos. Eu queria mudar o estatuto do artista ou, pelo menos, mudar as normas utilizadas para definir o artista”21. 4. Uma interpretação possível dos fatos é que Duchamp usa da sua autoridade de pintor famoso e de figura importante dos salons parisienses para interceder a favor 34

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dos objetos vulgares, fazendo com que eles, desse modo, penetrassem no campo exclusivo e fortificado da Arte. Criaturas materiais, tanto ríspidas e inquietantes quanto o Odradek do Kafka, se tornaram das maiores obras de arte porque elas foram escolhidas. Essas “coisas” anunciavam uma nova descendência para as obras de arte, que vinham então diretamente da cabeça do artista mais do que de sua mão, e que eram cidadãs de uma república imaterial regida pelo instinto e associação livre, em que a beleza é perfeitamente irrelevante. 5. O artista e sua obra - nascida do espírito e vinda ao mundo sem a ajuda da mão criadora - agora têm uma relação privada de intimidade e cheia de ironia. As máquinas, produtoras e muitas vezes protagonistas da obra, estão aqui para revelar o conflito entre os objetos e o corpo humano e não para reconciliar a arte e a tecnologia. 6. Não teríamos interesse nenhum em cobrar de Duchamp o fato de que os ready-made possuem uma aura – até mais fortes que muitas outras obras – e que haja uma recuperação do seu gesto pelo sistema da arte – como sugere Dan Graham no livro Ma position [Minha posição]22. Duchamp era o que mais acreditava na magia, talvez a do resultado, ou pelo menos a do processo criativo que ele desempenhou. Em uma entrevista a Katherine Kuh, em 1961, ele declara: “A coisa estranha em relação ao Ready-made é que eu nunca consegui achar uma definição ou uma explicação que me satisfizesse plenamente. Ainda há magia na ideia, de modo que eu prefiro mantê-la assim, em vez de ficar exotérico23 genealogia de um conceito

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sobre essa questão”24. 7. A postura de Duchamp, interpretada como a de um metido e de um dândi, deveria ser reconsiderada a partir de sua concepção do artista como um “vidente”25, como um espírita. Assim, podemos compreender porque o título se torna tão essencial na economia do ready-made. Se o artista se torna embaixador do mundo mudo, só a linguagem o ajudará a completar a descontextualização do objeto. As palavras são responsáveis para levar o espectador da silenciosa terra da mercadoria para o metafísico terreno baldio que se estende entre as metáforas e as metonímias. 8. Dentro dessa perspectiva, o autor do ready-made é aquele que se coloca, humildemente, a escutar a potência, contida em cada objeto, em se tornar obra de arte, ele é o príncipe encantador que supostamente acorda a beleza adormecida no artigo industrial. Segundo Duchamp, o resultado dessa ação modesta e miraculosa é mensurável: cada obra de arte contém um “coeficiente de arte” pessoal, que é a relação aritmética entre “o que não está explicito, mas é projetado” e “o que está expresso intencionalmente” 26. O espectador – e apenas ele – é o juiz final daquilo que Duchamp chama de “transmutação”, a mudança da matéria inerte em obra de arte, de fato um tipo de transubstanciação. Essa concepção precisa do processo criativo foi exposta no congresso da American Federation of the Arts27 em Huston em abril de 1957, em um debate extraordinário que contava com Rudolph Arnheim, Gregory Bateson e Duchamp, o qual se apresentou como o “pobre artista”. 36

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9. Os primeiros esboços para La Mariée foram realizados em 1912, um ano antes do nascimento do primeiro readymade. Segundo seu autor, Le Grand Verre [O Grande Vidro28] e os ready-made resultam similarmente da mesma preocupação e processo criativo. A primeira etapa dessa trajetória decisiva, que Duchamp nunca abandonou, se encontra em Le Nu descendant un escalier [O Nu descendendo uma escada]. Nessa pintura, Duchamp dá plena voz à sua obsessão pela redução e assim transforma a cabeça do nu em “linha nua”29. Ele percebeu, então, que um artista pode utilizar qualquer coisa para expressar o conteúdo das suas ideias, um ponto, uma linha, o símbolo mais banal e, desse modo, começou a trabalhar em cima do projeto La Mariée mise à nu par ses célibataires, même [A Noiva posta nua para seus solteiros, mesmo]. Nesse momento, fica claro para ele que o único meio de fugir da estética e do bom gosto, “até do gosto de La Broyeuse de chocolat [O Triturador de chocolate]”30, foi aderir a uma forma de nudez. 10. Os ready-made são, segundo André Gervais31, de certa forma tão nus quanto La Mariée e Le Nu descendant un escalier: a roda de bicicleta foi privada dos seus pneus, o suporte para garrafas é um esqueleto vazio. Mas a nudez dessas obras de arte é, compreendamos, uma condição mais filosófica que física. Esses objetos são “expostos” do mesmo modo com que Heidegger se utiliza do termo para falar dos seres humanos, jogados no mundo e indefesos.

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11. Em Les Transformateurs Duchamp [Os Transformadores Duchamp], Jean-François Lyotard formula uma hipótese crítica: o nominalismo duchampiano deveria estar ligado à nudez de suas obras. “A relação entre Le Grand Verre e a última obra (Étant donnés: 1° la chute d’eau 2° le gaz d’éclairage – Dados: 1° a queda d`água 2° o gás de iluminação) é uma projeção ou um conjunto de projeções, que faz todos os elementos do Verre transpassarem aos do último Nu. [...] Eu diria resumidamente que passamos de uma formulação plástica ascética e crítica, a do Verre, para uma formulação popular, pornográfica, pagã, a de Étant donnés..., mas ambas do mesmo objeto. Esse objeto ainda é um nome (Duchamp é um nominalista), o nome da mulher posta nua”32. A natureza fertilizadora do nome e da fala, que leva muitas pessoas a encarar Duchamp como sendo um poeta que se aventurou no espaço visual, é – segundo Lyotard – o resultado de uma concepção energetista 33 da vida, que faz de Duchamp um transformador: “Não há arte, pois não há objetos. Apenas há transformações, redistribuições de energia. O mundo é uma multiplicidade de dispositivos que transformam unidades de energia. O transformer 34 Duchamp não quer repetir os mesmos efeitos. Por isso, ele tem que incorporar muitos desses dispositivos. E se metamorfosear muito [...] Duchamp as several transformers”35. A lista duchampiana de todos os tipos de energia, vindos de fenômenos tanto patológicos quanto fisiológicos, estando espalhados quando poderiam ser utilizados, vai da queda das lágrimas a de excrementos, da expulsão da fumaça ao ronco. Todas essas atividades impalpáveis e cotidianas são portadoras de um poder 38

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secreto que é, provavelmente, o inefável poder do ready-made. 12. Em uma entrevista a James Johnson Sweeney, o diretor do Guggenheim Museum de Nova York, realizada em 1955 para o filme de Robert D. Graff, Sweeney perguntou para Duchamp se a libertação de toda intervenção humana na pintura e no desenho tinha alguma coisa a ver com o readymade. A resposta de Duchamp foi que ele tinha chegado ao ready-made como última etapa da desumanização da obra de arte. A tarefa de tornar os objetos expressivos e reativos aos sentimentos humanos, que foi cumprida pelos artistas durante milhares de anos, é, nesta altura, realizada essencialmente pelo capitalismo através da televisão. O que está posto em jogo, na visão capitalista do mundo anunciada pela propaganda, é a produção contínua de uma energia libidinal dentro da qual os comportamentos, as expressões e os gestos contribuem à criação de um novo corpo humano, que não é nada mais que um novo produto bem-sucedido entre outros. O artista desumanizado não pode criar obras de arte humanizadas e o nascimento do artista ready-made é um efeito colateral desse estado das coisas. 13. Em A comunidade que vem 36, Giorgio Agamben examinou meticulosamente as consequências da industrialização e a mercantilização do corpo humano. Em um parágrafo intitulado “Collants Dim”, Agamben recorda a propaganda das meias-calças Dim dos anos setenta na qual, da intimidade e quase da confusão entre genealogia de um conceito

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os corpos das dançarinas e do nylon que cobria suas pernas, emanava a promessa de uma felicidade recémnascida da promiscuidade entre a tecnologia e a carne humana. Os movimentos das pernas das moças, levemente dessincronizados, foram gravados separadamente e, depois, editados em conjunto. Até o ponto em que tudo era uma construção artificial, até mesmo a imagem-movimento que despertava o desejo: a coreografia e os gestos coordenados das mulheres jovens foram obtidos pela adição mecânica das solidões. O erotismo das dançarinas era tão humano quanto a máquina representando a noiva. 14. A colonização da fisiologia pela indústria começou nos anos vinte e atingiu o seu apogeu quando a fotografia permitiu que a pornografia circulasse massivamente. Os corpos anônimos mecanicamente reproduzidos sobre papel eram perfeitamente capazes de provocar a excitação de qualquer um; eram, como diz Agamben, absolutamente quaisquer. A singularidade qualquer, protagonista da A comunidade que vem, é a subjetividade resultante do casamento desapaixonado entre a democracia representativa e o capitalismo. É o ser humano inteiramente desumanizado, capaz do melhor e do pior, que nós descobrimos ao longo dessa viagem filosófica. Liberto de todo destino moral ou de toda obrigação ética, o membro contemporâneo da pequena-burguesia mundial é o sujeito que o fascismo não criou, mas apenas registrou e explorou. Musil, Michaux, Walser, Dostoiévski, Kafka, Valéry, Pessoa foram os primeiros mensageiros da chegada 40

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dessas criaturas ambíguas, familiares dos objetos e angustiadas com os seus similares, espécimes da mesma singularidade qualquer à qual nós todos pertencemos hoje. 15. O ready-made e o artista, cuja mão não intervém na obra, são epifenômenos do mesmo mundo fabricado. Apesar da retoma dos movimentos ecológicos, a inocência biológica da criatura vivente não pode mais se opor à organização inteiramente sintética da vida na época da singularidade qualquer. Nossa cumplicidade com o mundo artificial passa da boa vontade de de se escapar dele ou de combatê-lo. A força de Duchamp na operação do readymade é a de confrontar o fato de que o artista e a obra de arte são prisioneiros da analogia entre os sujeitos e os objetos produzidos industrialmente. Agora, não tem mais pai ou filho, apenas irmãos órfãos. 16. A industrialização das condições de vida foi facilitada pela proliferação das imagens, representando o casamento feliz dos seres humanos e dos produtos. Essa confusão, que é mais do que a simples reificação e radicalmente diferente do fetichismo, é um fenômeno que compromete de uma vez por todas a relação privilegiada que ligava o artista com a obra de arte. A presença inquietante de máquinas simbolizando os desejos humanos, em Le Grand Verre, ou nas obras de Picabia e Man Ray, anunciava uma mutação afetiva irreversível. As consequências dos nossos desejos de consumo para as mercadorias contaminaram nossa maneira de amar, de fazer arte e purgaram a ética e a estética de qualquer mitologia vinda da cultura humanista. genealogia de um conceito

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17. Em Male Poetics37, David Hopkins reconstrói a genealogia das representações esquemáticas e mecânicas de Duchamp, partindo do pequeno quadro Moulin à café [Moinho de café], realizado em 1911 para a cozinha do seu irmão. Mas as implicações de pintar os retratos de máquinas se desenvolveram mais tarde com Duchamp e seus acólitos. Os desenhos maquinistas de Picabia tornaram-se mais específicos e mais interessantes durante sua estada em Nova York com Duchamp em 1915, começando por Fille née sans mère [Filha nascida sem mãe] e culminando na série de retratos de máquinas, publicados no jornal 291 de Stieglitz, em julho-agosto do mesmo ano. O título, Fille née sans mère fazia profunda referência à condição de órfão do objeto mecânico e sublinhava seu abandono na terra dos humanos; a expressão vinha de um artigo publicado no 291 por Paul Haviland, no qual ele escreveu “vivemos na era da máquina. O homem faz a máquina à sua imagem. Ela tem um pulmão que funciona, um coração que bate; um sistema nervoso que propaga eletricidade [...] A máquina é sua filha nascida sem mãe”38. Além da hipótese de uma relação homossexual entre Duchamp, Picabia e Man Ray, podemos relevar o florescimento de uma sensibilidade para os objetos nas suas funções políticas e não só no seu potencial estético, como anteriormente foi o caso com os surrealistas. 18. O artista solteiro que escapa à procriação é sem dúvida incapaz de partilhar da preocupação do protagonista do curto conto do Kafka, escrito em 1917, A preocupação de um 42

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pai de família. Às vezes, o pai de família se inquieta ao ver, saindo de casa, uma bobina chamada Odradek, envolvida em ramos de fios, na escada, sem intenção nem finalidade. Odradek, ele pensa, é um objeto curioso que pode parecer quebrado, mas que não está e é desprovido de qualquer sentido, mas de uma certa maneira é completo. Seu riso é aquele de quem não tem pulmão, um barulhinho de folhas caindo da árvore. Mensageiro da repressão que não para de voltar, Odradek é uma fonte de angústia inexplicável; o pai de família se pergunta se essa criatura morrerá um dia, ou se ela continuará se coxeando entre os pés de seus filhos e dos seus netos. Mesmo que esse objeto sem moradia fixa e sem utilidade – com a aparência de ready-made – não faça nenhum mal, a simples ideia que ele possa viver mais tempo do que o pai de família, o machuca.

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relações: artista-instituição

A fim de visibilizar a perspectiva exercida na compreensão do artista ready-made à suas relações profissionais e afetivas, unimos dois textos que apresentam certo panorama ácido aos recentes curadores e artistas de reconhecimento mundial, que clarificam como Claire Fontaine reconhece suas aproximações e distâncias políticas dentro de seu próprio meio de atuação.

a.c.m.39

Sem imaginar nada, sem saber desenhar nada, sem se cansar você pode virar um artista contemporâneo mundial (A.C.M.) convocando os serviços da agência “os ready-made pertencem a todo mundo”. Trecho de BDDP/Paris, Essa publicidade pode mudar sua vida, os ready-made pertencem a todo mundo® Quem pode negar o prazer de ler um lugar, e o fato que isso apenas melhora com jantares desse tipo? Aprendemos a ver a insignificância que começa a amarelar a coloração de um pintor como o estágio nascente de um câncer. Chegamos a ouvir o dinheiro que ri no seu jeans rasgado, ao longo de todo o aposento. Podemos quase saborear um artista que emerge na lama de um galerista. No final sabemos até mesmo localizar os ausentes e predizer os recém-chegados.40 John Kelsey, Rich Texts, Selected Writings for Art

A estranha aventura da recepção institucional da obra de Philippe Thomas inquieta. Não tanto porque, na linha de Broodthaers mas de maneira bem mais perturbadora, Philippe Thomas fez dos dispositivos de amostragem, de conservação e de convenções de mercado o que ele tinha para mostrar, para conservar e para vender, mas porque uma verdade emerge, a nosso ver, claramente de sua história: é que há uma ligação muito estreita entre a recepção institucional e um certo tipo de solidão própria ao indivíduo41. Deve-se poder extrair e isolar do resto a.c.m.

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um objeto, um procedimento, um autor para incluí-lo na história da arte oficial. Pode-se até dizer que a solidão da obra e a do artista que a produz são as condições fundamentais da exposabilidade. Isso vale igualmente para os grupos e os coletivos: tanto quanto estes permaneçam reconhecíveis e que seus membros não mudem, eles funcionam exatamente como um indivíduo, como uma SPA ou uma SARL na economia do arquivo e da coleção. Porque há claramente um reconhecimento anterior ao reconhecimento público, feito de observações frias, quase clínicas, alguma coisa que se acumula pesadamente em um silêncio branco, à maneira do dinheiro. A consagração do museu se constrói sobre constantes, formas, atitudes que devem poder se amontoar sem ruído na memória dos especialistas formando uma coerência, para que um dia estes decretem que gestos físicos e intelectuais atribuídos a uma pessoa têm o direito de cidadania na história da arte. E é assim que eles trancham, que eles decupam, mutilam sequências de trabalhos para isolar as obras-primas, é assim que eles escolhem um ser em um viveiro social e separam-no de todos aqueles que deram sentido a seus dias, porque apenas ele vale alguma coisa e os outros não valem nada42. Philippe Thomas não estava nem um pouco sozinho. Mesmo para além de sua associação explícita com Jean-François Brun e Dominique Pasqualini para formar Ligne Générale [Linha Geral] primeiro e Information Fiction Publicité [Informação Ficção Publicidade] em seguida, ele fez parte durante toda a 48

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sua vida de uma espécie de comunidade na qual ele se dissolvia em permanência. Poderíamos acreditar que ele tenha multiplicado os pseudônimos, que tenha criado uma agência publicitária para ceder os direitos de autor, que ele tenha construído um espelho do aparelho digestivo da memória institucional para proteger sua obra e controlar sua recepção. Nos enganaríamos. A meta-ficção, a multidão de identidades reais e imaginárias, a acumulação de dispositivos plásticos e conceituais foram elaborados como um gigantesco mecanismo de contaminação e de inclusão contra o mito da singularidade do gênio do artista. Até que, quando nos aproximamos de Philippe Thomas desde uma geração mais jovem, por exemplo para assegurar a curadoria de uma seção de exposição, como é o nosso caso, e que não o conhecemos a não ser por seus textos, alguma de suas obras e suas (raras) reproduções fotográficas, sentimos um círculo muito fechado de conivência e de cumplicidade, quase um campo magnético. Porque Philippe Thomas adquiriu os meios não apenas de fazer partilhar suas obras, mas de distribuir – e diluir – sua glória, mesmo póstuma. Ele tinha curto-circuitado a distância crítica, deixando, no seu lugar, colaboradores de estatuto incerto e uma multidão de questões em aberto. Primeiro a obra enquanto enigma: os escritos, as imagens, as esculturas, as exposições e as performances são inteiramente concebidos como um quebra-cabeça e, a partir do momento em que logramos reunir um número suficiente de peças, começamos a ouvir uma pequena risada a.c.m.

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tal como a de Odradek43, como um ruído de folhas, um riso sem pulmões que faz arrepiar. No vazio deixado pela função de autor, Philippe Thomas capturou os dispositivos de subjetivação em ação, os desejos dos colecionadores de mudar de vida sem mudar, de viver por procuração através das obras de arte. Ele fez da relação mais complexa e mais constrangedora, a relação entre o artista e o comprador de seu trabalho, sempre conjurada pela mediação do galerista, uma colaboração, uma convergência paradoxal de interesses que fez funcionar ao contrário as leis do capital. “Estas peças – escreve ele – que não teriam finalmente sido possíveis se não fosse por uma colaboração mínima entre duas pessoas (digamos, Philippe Thomas e um colecionador), [a agência os ready-made pertencem a todo mundo®] responde com uma razão social que bastaria para fazer dela como que a ampliação dessas ‘micro-sociedades’ cujo cada uma delas teria fornecido a prova”44 e é a prova de um possível paradoxal, uma evidência incriminatória talvez? E se sim, para quem? Deleuze é certamente o filósofo que melhor apreendeu a mesma questão, notadamente nos Diálogos que co-assinou com Claire Parnet, mas de onde a voz de Parnet está ausente porque ela não fez mais que engendrar o espaço entre eles dois e desaparecer: “quando se chega a esse ponto – escreve Deleuze –, se está sozinho, mas se é também como uma associação de malfeitores. Não se é mais um autor, é-se um escritório de produção, nunca se esteve tão povoado”. E trata-se de fazer um uso rico dessa solidão entre dois ou mais seres, sem querer negá-la, de “servir-se dela como de um meio de encontro, fazer uma 50

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linha ou um bloco passar entre duas pessoas, produzir todos os fenômenos de dupla captura, mostrar o que é a conjunção E, nem uma reunião, nem uma justaposição, mas o nascimento de uma gagueira, o traçado de uma linha quebrada que parte sempre em adjacência, uma espécie de linha de fuga ativa e criadora? E... E... E...”45. Nossa hipótese é que apagando as fronteiras entre colecionadores e artistas, integrando os dispositivos de apresentação nas obras e em seus títulos, Philippe Thomas quis mostrar que as últimas consequências do ready-made deviam ser buscadas nos corpos dos artistas, tornados à sua vez ready-made, sujeitos sem qualidades promovidos ao grau de pessoas excepcionais simplesmente pelo contexto no qual estão colocados. Que não somente a função autor deixou um vazio, mas que o que resta de “pleno” nela, especialmente o papel do artista, está para ser desmascarada e redistribuída. Philippe Thomas encontrou um tom desapegado para mostrar sem cinismo, com uma cólera fria, os efeitos do capitalismo sobre nossas ideias e nossos corpos, para ilustrar calmamente as conivências nas quais estamos todos imersos, e para desfazer os estereótipos. Ele faz isso sem balbúrdia, laboriosamente, com elegância, em anos terríveis, rodeado de cumplicidades silenciosas e olhares constrangidos. *

Em cada um de nós há como que uma ascese, em parte dirigida contra nós mesmos. Nós somos desertos, mas povoados de tribos, de faunas e floras. Passamos nosso tempo a arrumar essas tribos, a dispô-las de outro modo, a eliminar algumas delas, a fazer prosperar outras. E

a.c.m.

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todos esses povoados, todas essas multidões não impedem o deserto, que é nossa própria ascese; ao contrário, elas o habitam, passam por ele, sobre ele. G. Deleuze, C. Parnet, Diálogos, Editora Escuta, 1998, São Paulo.

Philippe Thomas criou um território e o povoou, ofereceu sua propriedade e partilhou àqueles e àquelas que queriam acompanhá-lo em sua aventura; mas agora que o autor está fisicamente morto, a expansão deste espaço chega a seu fim e os habitantes deste lugar se tornaram, a contragosto, vigilantes, mensageiros, protagonistas de uma história concluída. Para além dos pseudônimos que Thomas empregava, nos encontramos diante de um corpus de trabalho que tem uma multidão de assinaturas e pouco importa que possamos ou não chamá-los autores, porque Philippe Thomas não se escondeu nesta multidão, ele se misturou com ela, mesmo quando isto parecia pouco recomendável ao se livrar de todo moralismo para ir mais longe. Dissemos que sua obra foi uma operação de ventriloquismo, mas na realidade o que há de mais apaixonante na “constelação Philippe Thomas” é que as vezes seus personagens são reais. Mesmo se, submetidos à sábia supervisão do artista, certas vozes levam com elas a sua identidade verdadeira, portando-a como uma máscara e se misturando com o coro das outras ficções. Neste sentido é exemplar o diálogo entre George Verney-Carron e Eric Duyckaerts, que dá título à publicação do Mamco de 1999, Sur un lieu commun [Sobre 52

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um lugar comum], onde Verney-Carron atua seu próprio papel até à vertigem. Este empreendedor encarna ao mesmo tempo a velha burguesia e o novo espírito do publicitário. Filho de mercadores de armas, mas colecionador e organizador de eventos artísticos, ele faz emergir uma visão da arte terrivelmente pragmática sobre o fundo da qual se configura a inquietante substituição. A exposição montada por Yves Aupetitallot na Maison de cultura de SaintEtienne em 1988 levava o título de Agencement 88: Georges Verney-Carron. Víamos nela, particularmente a magnífica escultura Agencement 88 [Agenciamento 88], realisada com uma raquete Decaux. Ele portava, de um lado, o nome de Verney-Carron e, do outro, uma frase extraída de sua conversa com Duyckaerts, impressa sobre uma fotografia de mesa de reunião vazia: “Basta dizer sim para que isso mude a face das coisa”. Interrogado com relação à sua transformação em artista e autor, Verney-Carron confessava que isto lhe gerava um efeito “engraçado”: se normalmente ele comprava espaço publicitário para seus clientes, dessa vez ele tinha comprado para ele mesmo, quando ele não era nem mesmo “o criador da campanha”. Mas isso tinha sentido para ele, porque estava convencido de que o museu onde se encontrava a obra era, por sua vez, um “espaço publicitário”. Construtor de passarelas entre o que ele chama o mundo econômico e o mundo cultural, Verney-Carron nos conta uma história ordinária da produção de comunicação entre arte e negócio: “Por exemplo, quando o grupo Monin entregou a Bernard Ceysson, em Saint-Etienne, uma obra no ano passado, a.c.m.

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Gilbert Monin tinha organizado um seminário para seus executivos em um hotel de Saint-Etienne e, depois do almoço, todos os executivos foram visitar o museu, com visita guiada, etc… Levamos ao museu pessoas que não teriam jamais postos seus pés lá. Quanto ao chefe da empresa, ele é obrigado a assumir sua ação sobre o plano cultural, podendo manter um discurso diferente sobre o papel do negócio, de forma que os executivos se sintam orgulhosos que sua empresa participe do patrimônio da França. Há um efeito de comunicação interna, de comunicação externa e o círculo se cerra”46. Com os almoços de negócios, as visitas guiadas, a comunicação interna e externa, são os afetos corporativistas que fazem valer seu direito de cidadania no museu. As obras de arte, tomadas neste círculo cerrado, não podem certamente dizer muito da vida aos executivos que caminham à força para o museu em plena digestão de sua refeição de trabalho, e isso é absolutamente normal porque a arte se tornou não somente compatível com a economia de mercado, mas equivalente a outras mercadorias, como uma segunda casa ou carros. Seu lugar, no mundo da arte contemporânea, pode ser comprado e La pétition de principe [A petição de princípio] mostra-o muito claramente, é assim que nos tornamos atores desta ficção. “Pessoalmente – diz Verney-Carron –, estimo que eu tenha sido ator a partir do momento que comecei a comprar. É claro que para mim, atuar, em matéria de arte, de vida cultural, quer dizer comprar, o que quer dizer que ao invés de comprar um carro, num fim de semana, eu consagro o dinheiro à compra de quadros, de obras de arte. Aí eu começo a ser ator”47. 54

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A natureza ativista do dispositivo de Philippe Thomas está clara: os colecionadores foram suficientemente representados, agora veio o momento de fazê-los intervir. “A história da arte – escreve Verney-Carron na Publicité publicité [Publicidade publicidade] (onde ele não fala com sua própria voz) –, quando ela faz daqueles mesmos que, digamos, a cortaram em dois os heróis radicais de um gesto do qual ela se faz o eco, incita reconhecer na representação uma força de desestabilização a parir da qual a agência nova-iorquina, depois de Warhol e Johns, teria certamente querido lucrar”48. * “Para ter sapatos, ela vendeu a sua alma; Mas o bom Deus riria se, ante infâmia tal, Eu desse de tartufo e macaqueasse o Senhor, Eu que vendo o pensamento e quero ser autor” Poesia de juventude de Baudelaire, Je n’ai pas pour maîtresse une lionne illustre, citada por W. Benjamin em “A Boêmia”, em Walter Benjamin: Sociologia, Editora Ática, 1991, pp. 64. Três anos antes da fundação da agência nova-iorquina, colecionadores emprestavam sua imagem e seu nome a uma obra. Os rostos que nos olham em Hommage à Philippe Thomas, autoportrait en groupe [Homenagem a Philippe Thomas, autorretrato em grupo] de 1985, são a reflexão deles mesmos (“sim, nós estamos em situação de espelho” diz Georges Verney-Carron com relação aos efeitos que produz a agência os ready-made pertencem a a.c.m.

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todo mundo®49) e se não tínhamos notado que o cartaz que se encontra sob a fotografia/quadro conceitual de Thomas está invertido, seguramente a cobertura em espelho de Frage des Präesentation não pôde nos escapar. Podemos nos deixar levar pela vertigem dos múltiplos níveis de leitura diante desta obra (a imagem do mar que “representa” Philippe Thomas, eco provável do mar no qual mergulha Thomas no obscuro de Blanchot, a composição que cita explicitamente a Homenagem a Delacroix de Fantin-Latour…), mas o contexto no qual a obra está apresentada nos leva além. O autoretrato do grupo, supostamente uma homenagem dos sete colecionadores ao artista, foi mostrado pela primeira vez em 1985 na galeria Claire Burrus em uma exposição que é definida como coletiva e intitulada Fictionnalisme. Une pièce à conviction [Ficcionalismo. Uma evidência incriminatória]. O inquérito policial, explicitamente evocado pelo título, faz referência à investigação de uma espécie particular, a única que poderia se valer desse tipo de “provas”. Porque a estranha reunião dos colecionadores ao redor do retrato/ simulacro do artista demonstra uma cumplicidade com seu negócio de interferência da função autor, ao ponto que eles rendem homenagem a ele, como o título sublinha, mas a homenagem que eles pagam ao artista é também alguma coisa da qual eles são proprietários de maneira inalienável. Olhando-os, não podemos impedir de achar que eles foram pegos de reféns pela história da qual eles são os protagonistas. A presença (pagante) de um comandatário em um retrato é algo corrente na história da arte, mas o 56

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papel que a imagem de alguém desempenha no seio da composição é um caso tão complexo quanto a intriga de um romance policial. *

Temos que exigir dos fotógrafos a capacidade de colocar em suas imagens legendas explicativas que as libertem da moda e lhes confiram um valor de uso revolucionário. Walter Benjamin, “O autor como produtor”, em Walter Benjamin: Magia e técnica, arte e política – vol. I, Editora Brasiliense, 1985, pp. 129.

Em suas pesquisas dedicadas a fazer emergir os nomes dos personagens que povoam os quadros flamengos e aqueles da primeira renascença florentina, Warburg fala de seu trabalho de historiador como sendo comparável ao de um detetive. Enrico Castelnuovo diz de seu método que “Warburg se empenhou tanto para que falassem estas figuras, que elas revelaram seus nomes”50. Nos estudos de 1902 de Warburg, assistimos especialmente a identificação meticulosa de rostos que foram fixados nos quadros de Ghirlandaio ou de Memling e que levavam uma vida anônima para os espectadores do começo do século vinte. É pelas descobertas das pequenas histórias triviais de trocas de dinheiro e de mulheres nos arquivos que Warburg rastreia os personagens reais que foram os modelos destes quadros e, assim fazendo, ele irriga com a história material as superfícies fósseis da pintura. A idade, a situação familiar e a posição dos homens de negócios no seio do mercado já tão internacional, aclaram a.c.m.

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estas figuras e revelam a dupla vida dos personagens enquanto figurantes. Estes rostos não são os penitentes ou os pastores que acreditamos ser: o que vemos é uma ficção plena de sentido, os Médicis, Francesco Sassetti, Catarina Tanagli são atores e a posição que o artista lhes atribui na composição nos fala, de maneira alegórica, de suas vidas. Compreendemos, por exemplo, que Maria Baroncelli, de apenas 14 anos, foi dada como esposa em 1470 a Tommaso Portinari, que tinha na época 38 anos e que aos olhos de Warburg suas três aparições em telas evidenciavam as fases sucessivas da vida de uma mulher, “decifráveis com uma clareza inexorável, quase simbólica”. Vemos Maria ainda criança no primeiro quadro de Memling, desconfortável sob um chapéu rendado e com um longo véu, em seguida, no segundo, a esposa orgulhosa vestindo um colar faustuoso, e por fim esvaziada e resignada mãe de quatro filhos no tríptico de Hugo Van der Goes51. As mudanças do olhar, a qualidade das joias, o vestuário permitem a Warburg arrancar do silêncio esta história de esposa infeliz escrita nos menores gestos e nas pedras preciosas mais ou menos reproduzidas fielmente pelos pintores. A palavra de ordem de Warburg, nós sabemos, era “o bom Deus se esconde nos detalhe”. É a partir desta frase que Daniel Arasse desenvolve as razões de sua história aproximada da pintura e aclara, a nosso ver, o gesto de Philippe Thomas que consiste em decupar o autorretrato em um grupo de colecionadores em sete ampliações de detalhes, cada uma assinada por um dos colecionadores, cada um portando um título pesado de implicações52. O detalhe, segundo Arasse, é uma forma de 58

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corte, a extração de uma parte do todo. Tanto para o autor quanto para o espectador da obra, esse corte abre uma multidão de possibilidades, algumas das quais podem ser até mesmo catastróficas para o conjunto da composição, mas cuja importância não pode ser reduzida. O saber não deve, de fato, jamais predominar sobre o ver porque “assim conduzida, a interpretação histórica não faz mais que reconhecer o comum no singular, o conhecido no desconhecido, a convenção no incongruente. Ela nega o que justamente havia ‘alertado e desencadeado’ a pesquisa: a brecha que constituía o detalhe em relação às práticas correntes”53. Se o detalhe é revelador, é por causa do “como” e não do “porque” ele nos intriga. Pouco importa que aqui Arasse faça referência unicamente à pintura, porque as obras de Philippe Thomas em questão reivindicam (e jogam conscientemente com) seus parentescos com esta. Leitor de Barthes, Thomas provavelmente também considerou estas ampliações como “punctum”, e portanto mais que alguma coisa que “pica” e que “machuca”, parece-nos que trata-se mais ainda de “cortes”, de alguma maneira, detalhes que supõem nos dar informações sobre o autor de uma obra ou de um crime54. Sabemos a partir de Carlo Ginzburg que é graças a uma extrema habilidade em distinguir e interpretar os detalhes que podemos comparar os métodos do historiador da arte, do psicanalista, do detetive e do caçador, todos funcionando segundo o “paradigma indiciário”55. Estas quatro figuras têm em comum uma curiosidade policial que não fica sem parentesco com um certo instinto de sobrevivência, porque como escreve Deleuze, falando de Em busca do tempo perdido – romance a.c.m.

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inteiramente construído de acordo com um paradigma indiciário, segundo Ginzburg –, “quem procuraria a verdade se não tivesse aprendido que um gesto, uma inflexão, uma saudação devem ser interpretados? Quem procuraria a verdade se não tivesse inicialmente experimentado o sofrimento que causa a mentira do ser amado?”56. É de fato na obra de arte, diz Deleuze, que aninham-se as verdades do tempo perdido, aquelas que têm um valor de uso, não como as que a inteligência descobre, animada como ela é pela boa vontade, e que não são normalmente nada mais que sucedâneos do sofrimento. “As comunicações de uma amizade tagarela nada são em comparação com as interpretações silenciosas de um amante. A filosofia, com todo o seu método e a sua boa vontade, nada significa diante das pressões secretas da obra de arte. […] A obra de arte não só nasce dos signos como os faz nascer; o criador é como o ciumento, divino intérprete que vigia os signos pelos quais a verdade se trai”57. E a verdade do autor se trai em seus traços, estes que Philippe Thomas nos assegura que são deliberadamente ausentes de sua obra 58, a tal ponto que, em suas paisagens de rugas e de carne, não vemos quase nada, não reconhecemos ninguém. Em Sinais: raízes de um paradigma indiciário, Ginzburg conta como, entre 1874 e 1876, na “Zeitschrift für bildende Kunst” aparecem artigos assinados por um misterioso russo de nome Ivan Lermolieff, traduzidos em alemão por um desconhecido Johannes Schwarze. Alguns anos mais tarde o verdadeiro autor dos artigos, Giovanni Morelli, tirou a máscara: Lermolieff sendo quase o anagrama de seu nome e Schwarze sua tradução 60

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aproximativa em alemão. Esse método que avançava sob pseudônimos era uma técnica de identificação dos autores que consistia em estabelecer a atribuição de quadros, analisando os detalhes menos importantes das pinturas, especificamente os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos dos pés e das mãos. A este sujeito, Edgar Wind explicava que, para identificar a mão de um mestre, Morelli se baseava nas pequenas idiossincrasias, nas partes do corpo que parecem secundárias, inexpressivas, porque é aí que o artista e evidentemente o imitador vão provavelmente se deixar levar quando os pintam, e é precisamente por causa disso que eles vão se desmascarar sem falha. Se em certas críticas de Morelli pôde parecer bizarro o fato que a personalidade se revela onde o esforço pessoal é menos intenso, a psicologia contemporânea nos garante, escreve Wind, que nossos gestos inconscientes e incontrolados são os verdadeiros reveladores de nosso caráter59. Ginzburg explica que em 1914 o jovem Freud cita Ivan Lermolieff/Morelli em Le Moses de Michel-Ange [O Moisés de Michelangelo] para dizer que ele achava que seu método era estritamente aparentado com o da psicanálise. Este ensaio, ademais, apareceu primeiro de forma anônima e Freud reconheceu sua paternidade somente no momento de incluí-lo em suas obras completas. Mas para além destas coincidências e estas interferências mais ou menos perturbadoras, o aspecto mais interessante deste ensaio é o lugar onde ele conclui, mostra-nos porque as transformações do paradigma indiciário nos conduzem ao nascimento da sociedade de controle. No parágrafo três de Sinais, lemos a amarga constatação que “cada sociedade a.c.m.

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alerta a necessidade de identificar seus membros, mas as maneiras de responder a esta necessidade variam de acordo com as tempos e os lugares”, sabemos do nome, que ele é insuficiente, da assinatura, que ela é falsificável e, além do mais, que ela não se adapta aos iletrados. Nas últimas décadas do século dezenove, escreve Ginzburg, novos sistemas de identificação foram propostos. Esta necessidade urgente de reconhecer nascia de novas lutas de classe, da constituição de uma associação internacional de trabalhadores, da repressão da oposição operária depois da comuna, das modificações da criminalidade. Os narizes, as orelhas, os dedos que tinham – reproduzidos nos quadros – denunciado o nome de seu autor sob a lupa paciente de Morelli, cessavam de ser traços inocentemente postos sobre os rostos para tornarem-se ferramentas mensuráveis de reconhecimento policial. Berthillon inventa, nesta mesma época, o método antropométrico, que colocava uma série de problemas e devia ser parte do retrato falado, ou seja, a descrição verbal de cada traço do rosto tomado separadamente, mas, mesmo associados, os dois procedimentos permaneciam muito aleatórios. As páginas de orelhas de Berthillon, escreve Ginzburg, lembram irresistivelmente as ilustrações de Morelli colocava em suas publicações nos mesmos anos. São ampliações, estudos para associar um nome a uma forma. A identificação por impressões digitais foi formalizada por Purkyne, primeiro, e por Galton, em seguida, e terminou por predominar sobre todo outro sistema. Assim, conclui Ginzburg, os ingleses puderam exercer a repressão aos colonizados de forma eficaz nas 62

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Índias, onde os oficiais britânicos viam apenas uma massa indiscernível de “rostos sujos”. *

Eu me fazia um certo numero de perguntas: eu me dizia que, da mesma forma, há autores na filosofia e na literatura […] Pois bem, estou completamente convicto, por que tenho a impressão de que em uma espécie de prestidigitação, extremamente brilhante, o que Michel Foucault tomou do autor, ou seja, sua obra, ele Ihe devolveu com lucro, o nome de instaurador de discursividade, já que não apenas ele Ihe restitui sua obra, mas também a dos outros. Jean d’Ormesson, debate depois da conferência de Foucault “O que é um autor?”, em M. Foucault, Ditos e Escritos: estética – literatura e pintura, música e cinema, vol III, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2001 (264-298).

O ensaio de Ginzburg Sinais: raízes de um paradigma indiciário apareceu pela primeira vez em 1979, exatamente dez anos depois de Foucault ter pronunciado sua conferência memorável no Collège de France entitulada “O que é um autor?”. A importância deste último trabalho para o procedimento de Philippe Thomas é muito clara para que nos atardemos sobre isto, insistiremos apenas no fato de que Foucault sublinhou as consequências das leis que surgiram entre o século XVIII e o XIX, nesta mesma sociedade burguesa que buscava as melhores medidas para reconhecer e punir delinquentes e colonizados. “Os textos, os livros, os discursos começaram a ter realmente autores [...] na medida em que o autor podia ser punido, ou seja, na medida em que os discursos podiam a.c.m.

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ser transgressores”60. É a partir desse momento que a transgressão se torna, segundo Foucault, uma espécie de dever na literatura (e na arte), para tornar uma escrita (ou uma criação) perigosa, à qual garantimos os benefícios da propriedade. Há então uma economia monetária que acompanha a economia do risco, a maneira de contrapartida ou fator de oscilação. Philippe Thomas não ignorava o problema em absoluto, chegando a aprofundar a questão ao lado de Jean-Joseph Goux, que faz parte da mesma luminosa constelação que Alfred Sohn-Rethel. Os dois aproximavam a história da metafísica e a da abstração monetária da economia61. O museu enquanto padrão de medida de valorização de obras faz ele mesmo parte do comércio, quando Duchamp fabrica as maletas e Boodthaers cria seu museu de águias, estas operações participam, Jean-Marc Avrilla/Philippe Thomas nos asseguram, da mesma economia, da mesma transgressão remunerada e consciente dela mesma na qual todo autor se encontra atrapado porque “entre o Cretense que afirma que todos os Cretenses são mentirosos e o artista que pretende condenar o museu que justamente o ostenta, trata-se sem dúvida de uma mesma contradição performativa”62. Na foto atribuída a Marc Blondeau intitulada Lisboa de 1991, sobre uma mesa de café deserta e salpicada de luz, em uma composição perfeitamente artificial digna de um spot publicitário, vemos o rosto de Fernando Pessoa reproduzido sobre um bilhete de cem escudos. É dado a nós de ressentir diante disto os afetos do equivalente geral abstrato, as consequências metafísicas do fato que o rosto 64

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do escritor, cujo corpo foi o hospedeiro de tantas vozes diferentes e as mãos as transcritoras de estilos e escritos os mais variados possíveis, seja reproduzido em milhões de exemplares de papel-moeda. *

Não se deixem enganar! A vida é pouco.63 B. Brecht, Contre la tentation [Contra a tencação]

Enquanto este texto chega a seu fim, nos damos conta que há muitas coisas que tivemos que deixar de lado, entre elas a imensa tristeza que sentimos quando entramos em contato estreito com o trabalho de Philippe Thomas. O rosto de Pessoa impresso em bilhetes de banco é uma metáfora do que Thomas não cessou de prever, ou seja, que o sucesso em nossa sociedade pode ser para um artista o pior dos venenos e uma vergonha que lhe persegue mesmo após a morte, um jogo de soma zero em que o artista perde quando ganha e perde quando perde. Se ele ganha, além do mais, é à maneira de um cavalo de corrida: são em realidade outros que ganham em seu lugar. E portanto, a vida continua, ainda feroz, na carne triste daquele que leu e compreendeu todos os livros, e com ela o desejo de operar. Como falar deste desejo de maneira sincera? Como sair da economia do valor? Pensamos nas greves dos operários do setor privado, onde os nomes das marcas reaparecem em cortejos, mas metamorfoseados, enfim reconectados aos corpos que fabricam os produtos, que gritam sua destreza e sua exploração. É assim que Lip, a.c.m.

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Peugeot, Rhodia Acétate, as usinas Wonder64 se tornaram, graças aos documentários imortalizados pelos operários em luta, nomes de massas de trabalhadores, nomes próprios de relações de força a serem transformadas. Eis o milagre da greve, e de uma greve similar Philippe Thomas se fez portador, tomando nomes de patrões e apagando regularmente o seu. Isto deve ter sido muito difícil em alguns dias. Alguém nos disse que no final de sua vida ele se via desaparecer enquanto que ele sabia já ter desaparecido aos olhos da história da arte, para a qual ele tinha recrutado estrangeiros sem cessar. Estranho gesto aquele que faz do proprietário o autor (e que desvela também a que ponto o autor é sempre também um proprietário), se compreendemos que não há cinismo nisto, percebemos aí uma tentativa de reencantar a prostituição ordinária do comércio, uma maneira de fingir amor ou amizade justo onde o dinheiro produz terra queimada de sentimentos. A razão pela qual os ready-made pertencem a todos não é certamente aquela segundo a qual cada um pode tornar-se colecionador, mas que todos podem se fazer sensíveis ao potencial, à possibilidade de ser ou de não ser obra de arte, que cada objeto vulgar e fabricado em série oculta. Cada coisa poderia ser ready-made, qualquer um poderia ser artista, basta apenas desenvolver a sensibilidade que permite desmascarar, detrás das classes sociais, a universalidade quase fisiológica da singularidade qualquer, aquela que em nossas sociedades não aparece senão degradada nas instituições totais, sob forma de vida nua. A obra de Philippe Thomas, que carece, por 66

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vezes, de leveza, parece por momentos controlada ou quase escolar, enquanto que, outras vezes, é luminosa e potente, elegante e sem concessões. Mas compreendemos as razões que pesam sobre o ímpeto literário ou que impulsionam a aferrar-se a um roteiro bastante escrito. Não há espontaneidade na ficção, tudo deve aí ser calculado para ser acreditável: não perdoamos a mediocridade e as lentidões a não ser à verdadeira vida, esta que aparece em filigrana detrás do trabalho de Thomas (e de outros), pungente por sua ausência, generosa, estrangeira à economia de mercado, despreocupada com relação às leis de valor, anônima. Se a história deste artista nos inquieta é porque ela nos diz respeito. É necessário que este texto termine com as palavras de outro alguém, mas que sempre nos fez pensar em Philippe Thomas durante estes últimos anos, nas Notes éparses et perdues [Notas dispersas e perdidas] a poetisa italiana Ameria Rosselli escrevia: eu tenho por você o amor o mais surpreso o mais surpreso que possamos imaginar e é a sua a vida que eu perdi.65

a.c.m.

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curadores invisíveis 66

Hoje, artistas com mais de quarenta anos talvez pertençam à última geração que começou no mundo da arte sem saber claramente o que, ou quem é, um curador. Uma das razões disso é a recente multiplicação de programas de estudos curatoriais e a consequente multiplicação de curadores fazendo contato com artistas. Outra razão pode estar na postura dos próprios artistas, cujas tarefas e competências profissionais, mesmo no mundo ocidental, mantiveramse relativamente imprecisas até muito pouco tempo, com aspirações e contextos de trabalho bastante variados, às vezes bem distantes de galerias e instituições. A relação entre artistas e curadores é estruturalmente assimétrica. Um artista pode facilmente trabalhar sem estar a par do que curadores fazem, já curadores necessariamente precisam saber o que fazem os artistas, pois este é seu campo de pesquisa. Eles adquirem conhecimento visitando exposições, lendo publicações e, sobretudo, através de um tipo particular de encontro chamado “visita de ateliê”. Raramente estas visitas de ateliê acontecem nos ateliês, a menos que os artistas estejam em uma residência ou escola de arte nas quais um ateliê que lhes foi alocado é preenchido artificialmente por uma pesquisa confinada em um limite específico de tempo e de espaço. Mesmo quando o artista e o curador

curadores invisíveis

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encontram-se no ateliê, a visita de ateliê não passa de uma “visita de laptop”. Ateliês não são espaços expositivos e as pessoas não armazenam muitos trabalhos no lugar onde tentam pensar e produzir. Quando os artistas são ativos, as obras são expostas e rapidamente saem do ateliê, logo que concluídas. Durante estas visitas de laptop, o artista é obrigado a fazer um trabalho que é essencialmente do curador: explicar as obras. Este exercício pode ser profundamente humilhante e é sempre bem difícil porque força o artista a mostrar distância em relação à sua própria prática, algo que não se faz sem algum grau de esquizofrenia. E ainda há uma disparidade inacreditável nisso tudo: enquanto o artista luta contra o caos de seus arquivos a fim de fazer uma apresentação coerente para um desconhecido, ele ou ela nunca pensa em pedir o currículo do curador, uma carta de intenção ou mesmo uma descrição de seus eixos de pesquisa. E mesmo que o artista solicitasse ao curador uma visita de laptop – algo do tipo: “Você poderia me mostrar seu trabalho mais recente?” – isso seria inútil pois é sempre o curador que escolhe o artista. Por isso o artista é condenado a uma estratégia de autopromoção, a uma atitude de boas-vindas a todos que o visitam, a uma abertura genérica para propostas ou, no mínimo, a mostrar alguma competência na arte da sedução. É claro que com o acúmulo deste tipo de visita, ou de convites por e-mail para participar de exposições coletivas – quando curadores não têm nem tempo nem dinheiro para encontrar pessoalmente os artistas –, 70

relações: artista-instituição

aumenta a necessidade de dar um Google nos curadores. Assim, os mapeamentos, com toda a violência que esse tipo de representação esquemática implica, começam a tomar forma na mente dos artistas: identifica-se famílias, grupos, genealogias ou tipologias de curadores. É possível então descobrir que alguns curadores podem se tornar amigos e que um diálogo constante com eles é uma grande fonte de inspiração. Quando não estão movidos pela competitividade ou devorados pelo ciúme, mas sim interessados sinceramente no que os artistas fazem, curadores podem ser interlocutores maravilhosos, conselheiros especializados, grandes fornecedores de referências interessantes, mas também pessoas muito frustrantes. Isso porque o ritmo de trabalho dos curadores de exposições é implacável: protegidos (e reprimidos) pelas instituições, ou abandonados no faroeste das atuações independentes, os curadores têm uma enorme obrigação de resultado. Para eles, seria um grande luxo poder trabalhar em um projeto durante o tempo que o projeto realmente requer, mas inúmeras outras atividades amontoamse em sua agenda. Das aulas às viagens, da captação de fundos às reuniões com artistas, da escrita à direção de bienais, os curadores têm sempre um monte de gente para encontrar e não podem passar muito tempo com você. Você não passa de um nome na multidão de coisas a fazer e de pessoas a encontrar que consta em sua lista – a programação de um museu pode contar com 20 ou mais exposições anuais; alguém tem que organizá-las e se não houver planejamentos institucionais, o curador deve então curadores invisíveis

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inventar suas próprias oportunidades profissionais através de jantares, de reuniões ou de deus sabe lá o quê. Curadores têm uma vida afetiva? Uma vida sexual? Será que dormem? Eles costumam viajar para onde o trabalho os leva, tal qual trabalhadores migrantes. Se forem seus vizinhos, não se apegue a eles! Os boatos que correm sobre Hans Ulrich Obrist não passam do sintoma que caracteriza sua categoria profissional e sequer têm origem em sua personalidade supostamente extravagante. Não é por acaso que seu livro Uma breve história da curadoria inicia-se com uma conversa com Walter Hopps, de 1996, na qual a introdução original, publicada pela Artforum, dizia: “Passamos a conhecer seu horário preferido (o dia de trabalho começa pouco depois do pôr do sol e segue até a manhã seguinte) e seus desaparecimentos quase mágicos (sua capacidade de sair sem ser visto levou os funcionários da galeria Corcoran, em Washington, que ele dirigiu nos anos 1970, a confeccionar broches que diziam ‘Walter Hopps estará aqui em vinte minutos’)”67. Relações idílicas entre artistas e curadores, como a de Cuahutémoc Medina e Francis Alÿs, são raras, quase impossíveis de reproduzir. Sabe-se, no entanto, que depois de certo número de convites recebidos por e-mail e de visitas de laptop, a frustração se intensifica. Além da inevitável pergunta – “por que você me quer neste projeto?” – há situações paradoxais de radical incompreensão: por exemplo, quando a legenda da obra exposta no museu está totalmente errada ou nem mesmo a menor das instruções de montagem foi seguida, e o fato de insistir sobre questões como estas é visto como 72

relações: artista-instituição

um inútil excesso de zelo por parte do artista. Pessoas ocupadas erram e às vezes não percebem quanto cuidado afetivo os artistas têm em relação às obras para deixá-las partir e lhes permitir travar um diálogo com obras de artistas que nem sequer conhecem. O curador é um maestro, alguém que sussurra nos ouvidos das obras de arte, um inventor de alquimias, mas como qualquer pai ou mãe de uma família numerosa e solicitante, ele ou ela pode achar impossível atender as demandas simultâneas de todas as vozes. Recentemente, com Ami Barak, ultrapassamos sem querer a linha marcada no chão do espaço expositivo e, presos em um corredor estreito, descobrimos que dois néons de Bruce Nauman, montados sobre armações, tinham dupla face. Porém, um dos lados tinha ficado invisível e inacessível ao público. Enquanto estávamos incrédulos admirando as mãos e os pênis luminosos que subiam e desciam sobre uma parede escondida, fomos expulsos por um segurança injuriado. O curador havia decidido que só podíamos ver uma face de tais obras. Ele as mutilou a fim de mostrar alguma outra coisa... Mas, que coisa? Quem havia decidido punir estes dois néons para que um outro trabalho pudesse ganhar espaço? Poderia ter sido por causa do nosso próprio trabalho, também participante da exposição, e que se beneficiava de um grande espaço? Deve haver uma inevitável brutalidade inerente às políticas curatoriais, algo que tem a ver com o espaço e o tempo, fatores que impõem severas limitações aos curadores e que são exatamente os elementos com os quais os artistas podem mais jogar, curadores invisíveis

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transformando-os à vontade. E não se trata apenas da brutalidade do trabalho administrativo, com prazos e orçamentos apertados, nem da necessária promiscuidade e incompatibilidade em relação às exigências dos artistas. Ser um curador não deve ser um trabalho gratificante. Quando a exposição se coloca a cantar através de todas essas vozes diferentes e o espectador trava um diálogo com o campo energético que, de alguma forma, o curador criou, qualquer pessoa fora do mundo da arte irá ler apenas os nomes dos artistas e os títulos das obras, esquecendo completamente que há um autor dessa aproximação de cores e sensações, um moderador dessas intensidades. De fato, o curador precisou desaparecer para criar um campo de visibilidade e isto é, sem dúvida, a razão pela qual ele ou ela já está em algum avião a caminho do próximo projeto.

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relações: artista-instituição

perspectiva pra agora

Este último conjunto de textos abrange o olhar que a artista mantém com relação ao recente contexto político, ao capitalismo e à tomada revolucionária intelectual francesa que surgiu após os anos 2000. Reúnem-se aqui horizontes políticos sem a ansiedade de um objetivo.

somos todos uma singularidade qualquer68

As razões de um amor que nunca morre fundamentamse frequentemente mais no passado do que no presente. Provavelmente porque o amor não tem, por assim dizer, o sentido da realidade, mas tem o sentido do possível, e está relacionado intimamente com o “ainda não” e o “não mais”. Que amemos o comunismo – e que o amemos ainda – significa que para nós o futuro existe e que ele não é apenas a propriedade privada dos dominantes de hoje ou de amanhã. Significa que o amor que alimenta a passagem do tempo, que torna os projetos e as recordações possíveis, não é possessivo, ciumento, indivisível, mas coletivo; que não teme nem o ódio nem a raiva, não se refugia desarmado nas casas, mas percorre as ruas e abre as portas fechadas. Acredita-se, hoje, que os afetos são um assunto privado e pessoal, mas na verdade são o lugar que o governo global escolheu para colonizar, através das mercadorias ou do terror. Todos nós temos desejos e medos que não aceitamos e que não queremos confessar, porque advêm das obrigações que nos são impostas e não das preferências de cada um. Por exemplo, todos esses terríveis corpos de desconhecidos que nos rodeiam, o que poderiam partilhar conosco se não as ruas, as lojas e os transportes públicos?

somos todos uma singularidade qualquer

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No entanto… uma possibilidade dorme sob os nossos dedos cansados no final do dia, nos olhares perdidos que lançamos das janelas, sobre as viaturas paradas no trânsito debaixo de um céu metropolitano. É a possibilidade de descobrir que todos somos uma singularidade qualquer, igualmente amável e terrível, prisioneira das malhas do poder, à espera de uma insurreição que nos permita mudar a nós mesmos. Que amemos o comunismo quer dizer que acreditamos que as nossas vidas, empobrecidas pelo comércio e pela informação, estão prontas a elevaremse como uma onda e a reapropriarem-se dos meios de produção do presente. Setembro de 2006

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perspectiva pra agora

notas de rodapé sobre o estado de exceção 69

1. a guerra acontece. Da guerra nada se sabe e disso somos lembrados incessantemente. Desde a nossa mais tenra infância, a guerra – sempre una e múltipla – tem estado nos nossos pratos, naquilo que não se deveria desperdiçar. Eles nos incriminam pela nossa suposta ignorância da guerra, como se essa grande-ausente-guerra tivesse acabado de vez e tivesse de ser recordada como alguém lembra de um familiar morto. Por pesar. 2. bem-estar. A guerra, todos aqueles que nasceram longe ou depois dela, sabem muito bem que ainda não acabou. Conhecem-na enquanto possibilidade, como uma ameaça que pode vir a ocorrer. E quando a guerra estala e queima ao longe as infâncias dos outros, os odores da cozinha, os lençóis, todo este conhecimento torna-se confuso. O passado abriu uma cova no presente e enterra novamente os vivos – dizem eles, mas isto é mentira. Porque ela é, na realidade, um dos nomes do nosso presente e não apenas uma história de dias já passados, vive nos corpos, flui pelas instituições, atravessa as relações entre estranhos e conhecidos, mesmo aqui, neste momento, há muito tempo. E quanto mais pretendemos ser inocentes e alheios aos eventos, mais sabemos que somos culpados. Culpados de não estarmos no lugar onde o sangue é derramado, e ainda assim, de certo modo, estamos lá… Costumavam notas de rodapé sobre o estado de exceção

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nos dizer, “vocês, filhos do bem-estar” como se dissessem “vocês, filhos da puta”, mas quem invocou e construiu este bem-estar, fonte inesgotável da guerra? Às vezes, chegamos mesmo a suspeitar que se a guerra está em outro lugar, então a vida também deverá estar. 3. descansar em paz… Da guerra, sabemos tudo, como sabemos tudo sobre prisões sem a necessidade de ter estado nelas, dado que elas estão no coração da “paz” e da “vida livre”, pois são implícitas a elas. Tal como sabemos que não há inocentes no nosso sistema, que só há relações de força e os castigados são tanto os perdedores como os não culpados. É por isso que a guerra se tornou o trabalho sujo dos outros: é isso que somos obrigados a ignorar. Em todas as esquinas nos é pedido para esquecermos tanto a possibilidade como a realidade, para ficarmos surpreendidos sem sermos cúmplices, agradecendo-nos antecipadamente a nossa vigilância. Apenas nos resta escolher entre sermos os colaboradores da paz social ou os partidários do terror. A guerra já não nos olha, nós é que a olhamos, ela não nos vê, está próxima demais. A sua distância a nós é relativamente diferente da distância entre um espectador e um jogo de futebol, no qual ainda podemos desejar a vitória de uns e a derrota de outros. Ela reside no limbo das coisas que gostaríamos de abolir. Para que nunca mais se tenha que tomar um partido ou acreditar que as palavras têm um peso que se ressente no corpo, ou que a vida tem um sentido e que esse sentido também pode causar um fim 80

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repentino. 4. …e viver em guerra. Se não sabemos o que significa viver em guerra é porque não sabemos o que significa viver em paz. Quanto mais somos governados, mais temos medo e necessidade de que outros se armem em nosso nome e é assim que a guerra continua. Os esforços realizados no passado para obter direitos e liberdade de expressão não são reconhecidos por nós como uma experiência (de conflito e de vitória), mas sim como um resultado. Não somos mais que os herdeiros atordoados de uma fortuna impossível de gastar: um patrimônio arqueológico que se desmorona dia a dia, sem qualquer valor de uso. Essas velhas vitórias não foram adquiridas por nós, mas são coisas já perdidas, porque não sabemos defendê-las sempre que são ameaçadas. O devir revolucionário é um processo que parece agora excluir a nossa participação. Ao esquecermos a opressão do controle em nome da garantia de proteção, foi que expulsamos a nós mesmos da nossa história. A partir daí, confundimos a luta com a guerra e deixamos que ela fosse tanto criminalizada como entregue a profissionais. Ao mesmo tempo que a luta foi isso que surgiu da desmesura entre o que os governos exigem e o que os governados lhes podem dar. À luta, nós vamos para encontrar aqueles que nos acompanham e que nos fortalecem, enquanto que para a guerra se vai só e dela se regressa sozinho (já que são sempre os outros que morrem). 5. o jogo da guerra. As vanguardas históricas e a guerra: uma história de amor que não chega a ser tumultuosa, um notas de rodapé sobre o estado de exceção

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romance sem obstáculos, salvo algumas mudanças. Podiase, ainda, antes do estado de exceção, jogar a singularidade excepcional, jogar com amigos e inimigos o jogo da guerra. Mas isso é algo diferente da nossa experiência atual. A guerra, paradigma das lutas entre pequenos grupos, a guerra, matriz de estratégias para ou pseudomilitares de guerrilha imaginativa, os surrealistas, os situacionistas, os mao-dadaístas (e a lista podia se prolongar), viviam num mundo onde a palavra e a experiência mantinham um diálogo apaixonante que podia ser levado ao extremo, converter-se em escândalo, inclusive, interromper-se de vez. Estas eram guerras-brinquedos, guerras para ricos em espírito. Hoje podemos enquadrar e exibir essas belas gesticulações e regressar ao toque de recolher do nosso cotidiano já-filmado, às superfícies saturadas de imagens publicitárias, às nossas solidões socioeconomicamente integradas. E compreender de uma vez por todas que o campo de batalha mudou, que precisamos inventar derivas muito mais ambiciosas, nem que seja para podermos escapar à normatividade amplificada das nossas percepções. 6. visões do mundo. Agora que as nossas consciências foram desmobilizadas, deitamo-nos confortavelmente no pesadelo de um presente ilegível e surdo-mudo, num território marmorizado de ansiedades. As celas onde se encerram e se esquecem os presumíveis culpados, as habitações vazias com cadeiras e os escritórios onde se torturam para que se confessem, estas continuam a existir, mesmo que não saibamos vê-las: percebemo-las. Os seus odores, os seus silêncios, as suas luzes brancas povoam a 82

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capa sem aparência de um cotidiano administrado. Não desapareceram. A eterna noite dos noticiários televisivos nos traz essa intuição que desliza em nós através das imagens dos teatros de guerra propriamente ditos. As esquadras, os hospitais, as autoestradas, as escolas, as prisões, as zonas de alta segurança e os quartéis, passando pelos caminhões, aviões e comboios que exportam o ódio em nome daquilo que enfim concordamos em chamar a guerra, tudo isso nos enche de medo. Porque nós os contemos e eles nos contêm. 7. coerências. Às vezes, nas nossas vidas ritmadas pela precariedade, entrevemos um fio de coerência. O mesmo fio em que se transmite o conhecimento de uma guerra que não vivemos, mas cujos efeitos e afetos circularam nos nossos corpos. O fio que liga os gestos mais comuns do nosso cotidiano daqui com os dramas que se consomem em outros lugares – fio eléctrico, fio paratáxico, que transmite essa ligação feita de ausência de ligações. Eichmann alinhava números sem se torturar pelo fato destes representarem seres humanos enviados para o matadouro. Deste hábito de participar no desastre sem ser capaz de interrogá-lo, a arte contemporânea formou o seu princípio estruturante. Constrói superfícies de coexistência entre elementos incompatíveis, questiona aquilo que nós não compreendemos e, contudo, contribui, tanto como essas mesmas linhas, para o funcionamento da máquina. Os meios para interromper o nosso devir ou para transformar a nossa subjetividade já não nos parecem acessíveis. A forma da nossa vida foi desenhada por outros: só nos resta notas de rodapé sobre o estado de exceção

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escolher a forma dos nossos produtos e esperar que a nossa propriedade privada nos proteja da guerra. Ainda que a propriedade privada seja ela mesma o estado de agregação primeiro da guerra. 8. a noite onde todas as singularidades são quaisquer. O simples soldado ou o partidário armado de qualquer causa única são sempre representados anonimamente, carne para canhão condenada a ser pulverizada por uma nação ou por um ideal, corpos abstratos, vidas automatizadas. O simples cidadão, pelo contrário, – o civil livre – é o indivíduo único e diferente de todos os outros, envolvido em relações sociais específicas, que supostamente o isolam do seu próximo, enaltecendo-o na sua identidade irredutível. E, contudo, podemos encontrar em qualquer parte este indivíduo verdadeiramente humano sem encontrá-lo em nenhuma região do mundo do trabalho: atrás dos balcões, nos supermercados, nos escritórios, interagimos com singularidades intercambiáveis, unicidades insignificantes, que reproduzem todas a mesma tarefa apenas para não serem expulsos do processo produtivo. 9. exceções. Pelo contrário. A experiência, por mais empobrecida que esteja, nos ensina que o amor não é uma ligação que um sujeito define de antemão, mas que o que amamos ou o que nos liga ao outro é a sua singularidade enquanto tal, a sua singularidade-qualquer, porque o amor não tem uma causa específica nem uma razão que possa ser comunicada. Aquilo que se ama no outro é o agenciamento social possível ou real de que este é portador, o seu 84

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potencial de conexão e de liberdade que faz com que os nossos sentimentos possam surgir e perdurar. Então, quanto mais somos governados ou incluídos numa disciplina, mais somos controlados e isolados nas nossas ações e nos nossos comportamentos. O governo olha as massas, mas não vê senão indivíduos. Ele mede a potência, mas só se concentra nos atos. Compreende-se então como uma singularidade amada é qualquer e não intercambiável enquanto uma singularidade produtiva está isolada e individualizada e, contudo, é em qualquer momento substituível. As regras produtivas da substituibilidade universal fazem vacilar a nossa certeza. O saber, que os órgãos de controle detêm sobre as nossas vidas, faz com que para o poder todos nós nos tornemos exceções. E quando somos tomados pelo braço da lei, o que acontecerá conosco não dependerá das convenções estabelecidas, mas da contingência única desta fricção. O nosso presente tornouse imprevisível, cada instante um momento potencialmente excepcional. É assim que a nova configuração da guerra opõe o Poder Identificador às singularidades quaisquer; obriga uns à guerrilha suicida, outros à solidão anônima rodeada de objetos. 10. as regras do jogo. Viver em sociedade tornou-se de novo uma experiência nova. E aterradora. O humanismo tradicional nos assegurava que o progresso consistiria numa melhor gestão das nossas vidas. Mas agora sabemos que a disciplina que nos governa pode tanto produzir mercadorias como cadáveres. notas de rodapé sobre o estado de exceção

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A nossa percepção deste novo estado de coisas não encontra um nome conveniente, ela é feita de imagens e gestos, não permanece duradouramente na linguagem. Esta nova solidão fez de nós sujeitos extraordinariamente contemplativos. Milhares de dispositivos nos permitem uma visualização intermitente e hipnótica do monopólio da violência que nos governa. O nosso contato com a informação geopolítica aumentou, mas é cada vez menos íntimo e o vocabulário, convocado para definir toda estas exterioridades, começa a se desgastar. Os corpos que recebem este mar de notícias da frente tornaram-se inorganizáveis. Os olhares repousam sobre os ecrãs. Recordações-ecrãs, imagens-ecrãs: a realidade fragmentada dá origem a novas necessidades de diversão. As nossas percepções apenas se alinham esporadicamente: este é o efeito mais devastador e inédito desta guerra. Esta é também a razão pela qual não conseguiremos combater esta guerra no terreno das imagens ou da iconoclastia (o ecrã negro não é monocromático, porque a pintura jamais pretendeu nos informar diretamente sobre o estado do mundo). E nunca o espectador foi tão influente, pois ele nunca tinha sido precisamente o nome da condição de ninguém. É o valor de uso ético das nossas percepções que está a se negociar e estabelecer, mas que existe já em potência, à espera dos gestos que o ponham em circulação. Porque, em tempos de guerra, não são apenas as trocas monetárias que se modificam, mas é a economia do desejo na sua totalidade que é tocada pela inflação. 86

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carta a A.70

Paris, 22 de março de 2008 Caro A., prometi a mim mesma várias vezes começar este exercício, mas havia algo que sempre me interrompia. E, no entanto, o que me interrompe está na origem da necessidade do exercício. Perdoarás então este texto cheio de fraturas, de obstáculos, pobre em soluções. Estou de novo presa, desta vez intelectualmente, perante o mesmo obstáculo que nos bloqueia a ação: precisamos de estruturas para transportar e para não desperdiçar forças, mas para as construir necessitaríamos da energia que as lutas desorganizadas do cotidiano nos roubam. Necessitamos urgentemente de um fora, mesmo que seja mínimo, para apoiar as mãos enquanto nos tentamos levantar, juntos e sós, cada um por si. Este fora é chamado, é invocado. Como se numa sessão de espiritismo estudássemos as insurreições do passado para as trazer para perto do nosso vocabulário e dos nossos corpos, ainda que continuem, na verdade, distantes dos olhos e do coração. Para escrever um texto que fala das relações entre arte e luta necessitaria de uma língua estrangeira dentro da própria linguagem, uma língua de saltimbancos que materialize a possibilidade de dançar numa corda bamba e de combater. Ao invés disso, tenho apenas os trapos de

carta a A.

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palavras gastas que tento coser à volta dos problemas. Por exemplo, o problema de nem sequer conseguir pensar em atravessar a ponte que liga a arte e a vida, se ela alguma vez existiu, sem cair nos braços da lei. E de não conseguir admitir este estado de coisas sem me deixar cair em covardia ou depressão Quando se nomeavam os inimigos (capitalismo, imperialismo, patriarcado, globalização), uma alteridade binária e confortável era inventada. Participamos para não participar. (Nas lutas e não no trabalho, nas dinâmicas militantes e não na sociedade de classes.) Queríamos ser um outro para que aquilo que odiávamos fosse algo externo a nós mesmos. A dessubjetivação foi um processo de distanciamento performativo e lógico. Se não conseguíamos mudar os aspectos da realidade que mais nos magoavam, então iríamos nos transformar em algo de inassimilável, escalando os moralismos, revelando o aspecto político da ilegalidade. Tornamo-nos fora-da-lei, junkies, prostitutos, pervertidos, violentos – e inevitavelmente ladrões, porque a propriedade privada e os afetos que ela conserva são a justificativa de todas as outras opressões. A prisão foi uma etapa necessária porque foi sempre imposta e porque, de certo modo, também ela é uma separação do mundo clerical e medíocre do bem-estar do século XX. E um problema surgia no decorrer deste devir. O modo como os outros/excluídos se misturavam conosco, aqueles que politicamente não tinham escolhido 88

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a sua exclusão, mas a sofriam – porque eram privados até da escolha inicial de posicionamento. Este modo deixava muito a desejar. Na verdade, não é que fosse pouco satisfatório; era na verdade intolerável, tanto para nós como para eles. Totalmente insuficiente. Porque os outros-excluídos continuavam a sentir-se os outros de alguém, mesmo se tinham o direito de nos fazer pesar, sempre com a obrigação de carregar o peso do que nos dividia, que em vez de se tornar o motor da revolta se tornou um fato de atraso cinético. Quem sofre é menos produtivo, mesmo na subversão social, assim o diziam os movimentos, assim dizia a psiquiatria e os professores. Amém. Aí tocávamos o limite das nossas capacidades, do nosso livre-arbítrio alimentado por dogmas secretamente democráticos, que era o de não podermos mudar a nós próprios sem uma ruptura social que pudesse varrer o veneno do juízo e do cálculo, a doença da comparação idiota e brutal, esta polícia dos comportamentos. Recusar a participação num processo revolucionário enquanto dever foi algo adquirido desde os anos setenta. E, no entanto, o adiamento permanente da satisfação, num mundo que já permitia bem poucas ocasiões de prazer, tinha transformado os “militantes” em figuras ascéticas, incapazes de contaminar. A escolha da Margem como local a partir do qual era possível difundir engajamento acabou por se tornar um dever simétrico ao que recusávamos, e talvez ainda mais carta a A.

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insidioso. Por vezes a única reação aos nossos gestos que certificava o nosso caráter político era a repressão. Era como se a sociedade fosse plastificada, e não só era infiltrável, mas nos mudava mais do que mudávamos a ela. Quem recusa a luta armada parte logo de uma posição derrotada no braço de ferro militar contra a sociedade. Quem quer que aceite a luta armada aceita estar só nesta luta, porque sabe que os seus camaradas não só não gostam do braço armado, mas têm horror a ele. E éramos, afastados do rio tumultuoso dos movimentos, nada senão presenças isoladas, prisioneiros da nossa identidade de naufragados, um episódio que se faz por esquecer. Se não havia qualquer prazer de estar no espaço que escolhemos, a culpa era sempre de um ou de outro, mas nunca do inimigo que nos perseguiu até estes túneis sociais asfixiante e nos condenou à endogamia. Sobreviventes de um acidente não-declarado, veteranos de um Vietnã imaginário, cheios de histórias que não interessam a ninguém, oprimidos pela necessidade de nos adaptarmos ao presente para melhor o destruir, em coexistência forçada. (perdoa-me por todas estas metáforas, e também pelas que não vou conseguir evitar mesmo mais tarde: sei que fazer metáforas serve para expor a insuficiência da linguagem em reconstruir histórias, quando a lógica é uma séria necessidade. Fazer metáforas é estar em falta de exemplos concretos e de sentir um desconforto com a história. Ou 90

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talvez só um pudor burguês em dizer as coisas tal como elas são, nem sempre literárias, nem sempre linguísticas.) A conclusão a que fomos forçados a chegar é que os privilégios não podem ser destruídos renunciando-os. A separação permanece e permanece ligada à própria decisão dessa renúncia, uma decisão nobre que é dada a poucos e em virtude dessa nobreza é reversível. Os privilegiados que se expõem ao perigo de lutar contra a sociedade, de viver nos seus interstícios, capitalizam esta experiência de estranhamento e podem, mais fortes e mais capazes, regressar ao local social de onde vieram. Este fato, mais do que reforçar a crença num determinismo de classe (ex: um burguês nunca lutará tão sinceramente quanto um proletário), o faz vacilar perigosamente. Porque se é verdade que, na desubjetivação de um processo revolucionário, ninguém pode mudar quer a si próprio quer a sociedade dessubjetivando-se à margem, então também é verdade que a alegria e os privilégios que se saboreia num mundo que continua capitalista são prazeres baseados na submissão e na pilhagem dos outros, prazeres separatórios e insociáveis. Prazeres bestiais em última análise, desde que se possam pretender refinados. A Margem das lutas, com todos os seus defeitos, permanece um local melhor, uma fonte de criatividade, uma forma de luxo, um Eldorado perdido para quem regressou à casa, mas não pode recuar no caminho sem se recusar. Mas o problema é que se o objetivo é nos livrar do burguês dentro de nós próprios, ou do pequeno-burguês carta a A.

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para ser mais preciso, isto não pode ser feito mimetizando o contrário ou gesticulando a automutilação social. Não pode ser feito pensando na pequeno-burguesia enquanto uma audiência de espectadores distraídos, a converter ou escandalizar. Em 1968 encerrou-se um ciclo de lutas juntamente com uma tempestade de subjetivações, que não apenas se tornaram argumentos para a venda de perfumes, roupas e etc., mas que nos deixaram, do ponto de vista de um ser humano e não apenas de um ser social, numa situação semelhante à aquela em que se viu a abstração emergir na paisagem da história da arte. O caráter prescritivo de cada teoria revolucionária – e note que aqui economizo citações no sentido de manter o afinamento com a pobreza que descrevo – soa hoje patético e irrealizável, porque está sempre atrasado em relação à miríade de outras necessidades efetivas imediatamente impostas na subjetividade pelas instruções comerciais. As empresas são as primeiras produtoras de mundos já possíveis, e depois das instruções para o seu uso agradável. A ideia de uma política de meios sem propósitos que pudesse apontar à reabilitação da humanidade e à desqualificação da máquina política que digere a vida é ainda auroral. Talvez porque uma política que sugira um terreno de imanência pura de modo a se elevar oculte o fato de este terreno estar colonizado por uma mercadoria sempre nova, que ocupa cada espaço onde as mãos possam 92

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pousar, continuamente varrendo o possível que lhe poderá servir de alavanca, rapidamente o deixando infestado de fetichismo e de desejos errados. A doença econômica e social já não é este exterior; já não é, por agora, uma zona energética que possa gerar lutas de modo a transformar os habitantes do planeta e a assegurar que o próprio planeta possa mudar. Saber isto nos dá dor, mas não nos dá a força. E nem os constrangimentos nem a dor fazem ainda mundos. Nas democracias liberais, como já ocorreu nos regimes totalitários, saímos do registo lírico e trágico, saímos do expressionismo, estamos na abstração econômica. Cada imagem de extermínio é para o poder, e em breve será para nós, tão figurativa quanto monocromática. O realismo sempre foi uma questão de tradução, uma construção feita de códigos, mas agora para acreditar na realidade necessitamos de imagens e palavras mais libertas do presente, porque o presente é feito de mercadorias e dos afetos que delas derivam. Outros problemas bloqueiam-me e paralisam-me e estes são ainda mais perigosos, porque habitam a relação entre subversão e conhecimento. Se é fácil criticar o conceito de cultura acumulativa e mnemónica que informava a boa e velha burguesa e a sua escola, é difícil compreender porque é que os movimentos políticos radicais não podem ir mais frequentemente pescar na margem da informação fragmentada e preciosa das vanguardas. A vanguarda (requiescant in pace), com seu cortejo habitual de carta a A.

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museificações e encapsulações em jarros de vidro, é há 40 anos apenas sinônimo de mais-valia sofisticada. Recordo ainda a grande desconfiança com que os autônomos olhavam para os pós-punks nos anos 90. “Todos filhos da burguesia” diziam, como se a revolta desfuncionalizada, emancipada do ativismo e colocada num espaço existencial, fosse um luxo inaceitável. Como se a rejeição ao trabalho devesse sempre ser convertida em formas de luta produtiva de subversão e socialização, como se trabalhar para as condições de uma revolução fosse uma atividade tão linear e progressiva como a do trabalho assalariado, só que apontada em outra direção... A vanguarda permanece, de fato, carta morta, permanece um luxo não desejável porque o seu valor de uso é desconhecido. Como dizer que o único paradigma de transmissão de saber que nos é familiar é o da universidade, com o seu sistema fechado de poder e de compromissos, mas sobretudo com o seu acordo tácito de nunca fazer uma utilização efetiva dos conhecimentos transmitidos, criados e acumulados. Grandes barricadas colocadas entre a arte e a vida, entre o saber e o viver, catedrais erigidas à glória da masturbação mental, as universidades ainda desajustadas do mercado que deveriam oferecer refúgio do inferno da mercadoria, pelo menos por alguns anos, aos jovens à procura de pesquisa, já não hospedam qualquer conflito entre os seus muros e aniquilam quem faz perguntas demais. As universidades após 68 revelaram-se aquilo 94

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que são: vetores de humilhação e reprodução social, casernas de polícia para os desejos de empenho político, tumbas de intelectuais militantes. A transmissão, a discussão e o estudo deixaram assim, a partir de um certo ponto, de poder ser momentos socializantes, de reforço e não comerciais. Se estes sobreviveram nas faculdades conservaram pouco valor de troca e perderam qualquer valor de uso. O saber resiste, estendido morto entre as páginas, mas não há ninguém para o animar e que lhe permita alcançar e transformar os corpos. E dito isto caímos uma outra vez nas escadarias da história para regressar ao ponto de partida. É deste ponto que te escrevo ou tento escrever. A certo ponto, no meio dos anos 80, recordo que se perdeu a noção de cultura. Não que se tenha perdido o sentido, mas se perderam as suas instruções de uso. Foi esquecido então que a cultura não se produz nem se assimila com cada um fechado na sua própria fortaleza contemplativa, mas só animando relações sociais compatíveis com as verdades políticas que a animam. As culturas existem apenas no plural e ativam-se não estudando tanto mas fazendo filhos, tendo amizades, cultivando amores que nos tornam capazes de compreender e agir. São os nossos comportamentos cotidianos recíprocos que já não nos colocam em condições de passar uma tarde a ler Lénine ou Foucault e permitem fazer algo de real e imediatamente subversivo. Se a cultura é a crítica permanente ao conceito de “patrimônio”, então porque regressa sempre à filiação, ao estado, à imposição a cada vez que dela se fala? Mais carta a A.

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do que uma pistola, desta vez é um arsenal nuclear que nos afronta. Você pode responder que vivemos um momento violento. E que a violência baixa o nível dos debates porque usurpa o posto da palavra, traz os corpos ao primeiro plano, com a sua fragilidade e desadequação, recorda quanto e como somos governados. Mas nos recorda também que a abstração não deveria mascarar nem a urgência dos desejos nem a abjeção do racismo, do machismo e da contínua ofensa à infância que cada dia se perpetua sobre todos nós. A abstração deveria permitir pensar mais longe, levando conosco todo o peso das nossas insuficiências, mas sem qualquer vergonha, deveria lutar contra a força da gravidade e não nos fazer escorregar. Isto talvez seja jogado – como os malabaristas sem experiência lançam as tochas, segundo uma lógica de sobrevivência, mas sem rigor coreográfico – na arte contemporânea, sem nos queimarmos. Mas a arte não é um refúgio, não é uma posição, não é uma postura, é apenas um trabalho. Isto deve ser recordado e quando se diz “os artistas” deveríamos dizê-lo como dizemos “os médicos” ou “os construtores”. Um amigo meu dizia: o problema nunca é a repressão, o problema é o medo. O problema não é receber o golpe, porque quando somos atingidos somos suficientemente fortes para o suportar, o problema é viver toda a vida evitando o golpe, procurando fugir dele, mas frequentemente apanhando-o em cheio e perdendo não apenas a saúde mas também a dignidade. 96

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conversa

Após a organização, adaptação e tradução dos textos que abrigam esta edição, iniciou-se uma ampla conversa com Claire Fontaine. O interesse, tanto da autora quanto dos editores, foi clarificar, num segundo momento, sem falsas utopias, posicionamentos inerentes às possibilidades de diálogo com o leitorespectador.

claire fontaine: em conversa com os editores71

“Para escrever um texto que fala das relações entre arte e luta necessitaria de uma língua estrangeira dentro da própria linguagem, uma língua de saltimbancos que materialize a possibilidade de dançar numa corda bamba e de combater. Ao invés disso, tenho apenas os trapos de palavras gastas que tento coser à volta dos problemas.” – Trecho de “Carta a A.”. Como esta língua estrangeira tem se desenvolvido? Será que em suas práticas textuais-artísticas vocês já encontraram este vocabulário crítico? Qual seriam as características de tal léxico, caso ele exista? C.F.: A pesquisa para esta língua estrangeira dentro da própria linguagem é um horizonte, algo que se move de acordo com o nosso próprio movimento, não é um objetivo para ser alcançado, mas um processo que habitamos e que nos habita. Esta ideia surge da análise de Deleuze e Guattari sobre os escritos de Kafka, do conceito de “literatura menor” 72. A procura por uma língua estrangeira, dentro de uma linguagem, não se trata de adquirir um vocabulário mais amplo, em particular, um que seja crítico. É uma aventura no processo de desaprendizagem, um abandono das certezas e das noções que nos estruturam, a fim de encontrar o que Deleuze e C.F.: em conversa com os editores

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Guattari chamaram de um “próprio Terceiro Mundo”. De fato, não é um enriquecimento de qualquer natureza, nem mesmo a aquisição de um domínio, mas a descoberta de uma nova forma de pobreza potente, que permita com que o presente, com toda sua estranheza e privação, ressoe e expresse seu significado perturbador, para que enfim o mundo possa aprimorar-se. * “Grandes barricadas colocadas entre a arte e a vida, entre o saber e o viver, catedrais erigidas à glória da masturbação mental, as universidades ainda desajustadas do mercado que deveriam oferecer refúgio do inferno da mercadoria, pelo menos por alguns anos, aos jovens à procura de pesquisa, já não hospedam qualquer conflito entre os seus muros e aniquilam quem faz demasiadas perguntas” Trecho de “Carta a A.”. Como vocês se sentem em relação à academia, ao terem participado desse contexto? Quais seriam as limitações desta? Como vocês comparam a produção de conhecimento, por exemplo, entre o campo antropológico e o artístico? E quais seriam as diferenças nas práticas de ambos e nos lugares epistemológicos, se de fato houver diferenças? C.F.: Nunca participamos ativamente da academia. Nos parece que as universidades são diferentes em países diferentes, ainda que suas lógicas e modos de organização vêm sendo amplamente homogeneizados na Europa nos últimos anos. Do que sabemos e testemunhamos, não 100

c.f. em vista de uma prática ready-made

há universidades que analisam, ou até mesmo discutam, a relação entre o conhecimento transmitido, o presente e o futuro dos estudantes e o próprio contexto politico. Sob estas condições, lugares que deveriam fornecer uma educação para jovens adultos parecem perfeitamente desonestos, ainda mais quando estes são regulamentados por princípios elitistas ou quando são privados. É óbvio que estimular o amor à liberdade ou cultivar a paixão ao engajamento político não é a prioridade da academia neste momento, e desde muito nem faz parte da agenda. Por conta disso, não há nenhuma responsabilidade à sociedade, nem mesmo uma prioridade direcionada à missão de protegê-la dos interesses privados que a assolam ou do poder político despótico: levantar tais questões explicitamente dentro das universidades pode ser um alto risco para os estudantes. Conhecimento artístico não é um termo que faz sentido para nós; não existe tal coisa que possa assim ser unificada e descrita. Digamos que a posição do artista pode coincidir com a do antropólogo certas vezes, mas há uma diferença central entre ambos: os antropólogos necessitam de alguma distancia do seu objeto, o que para artistas, caso tentassem aplicar tal distanciamento, seria até mesmo prejudicial às suas práticas. Outra diferença relevante reside na relação com a “verdade”: antropólogos devem lealdade a esta verdade que eles próprios produzem, agarram e reconhecem, caso contrário, não haveria nenhum ponto a pesquisar. Por outro lado, artistas não têm nenhum vínculo ou dívida com a veracidade, eles tem liberdade absoluta.

c.f: em conversa com os editores

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* No texto “Carta a A.”, 2008, em certa altura, se comenta que as metáforas são ineficientes para reconstruírem histórias pois demonstram a insuficiência da linguagem para tal. Disto, decorreria uma necessidade lógica, já que o movimento narrativo do próprio texto transita de uma prisão intelectual à uma prisão prático-revolucionária, seja da ordem de uma militância, seja da violência desmedida, seja do amor ou seja do desconhecido. Wittgenstein, em seu segundo momento com Investigações Filosóficas, argumenta que o mundo próprio de cada um é de todo o limite de suas experiências pois elas estão ostensivamente ligadas a linguagem. A linguagem, neste sentido, não é o conhecimento do mundo, mas justamente o mundo que se conhece, é ele mesmo. Em contraponto, “Carta a A.” apresenta: “O realismo sempre foi uma questão de tradução, uma construção feita de códigos, mas agora para acreditar na realidade necessitamos de imagens e palavras mais libertas do presente, porque o presente é feito de mercadorias e dos afetos que delas derivam.” A partir disso, podemos pensar que o que se diz não é necessariamente algo que se possa esclarecer facilmente e, anteriormente a isso, talvez seja algo que a própria linguagem não possa dar conta, de seu peso, do que se pretende dizer. Hoje o chamado revolucionário não é mais que universal, generalista e ainda eurocêntrico, talvez estaríamos incorrendo no erro de denominar ou significar (gerar qualidades, adjetivos, e materialidade, substantivos) ao o que ainda apenas é consciência e não 102

c.f. em vista de uma prática ready-made

ação? Digo da insurreição revolucionária, seja estética e política, anônima e legítima, como algo a ser vislumbrado como vida presente, uma realidade ainda em códigos. C.F.: Esta questão é longa e complexa. Não concordamos com todas as viradas conceituais que ela implica. Mantemos que as experiências das pessoas no mundo de hoje não são tão moldadas pela linguagem - Wittgenstein viveu em uma época muito diferente -, mas por suas condições financeiras e suas capacidades em navegar por mundos sociais diferentes e contextos efêmeros, e estes, é claro, estão todos gangrenados com problemas de raça e de classe, todos sobrecarregados e contaminados pelo patriarcado e pela reificação. Para reconectar com as questões anteriores sobre uma linguagem estrangeira dentro da língua e, também, o tipo de conhecimento disponível nas escolas e nas universidades, fica claro que nós estamos vivendo momentos de extrema miséria neste mundo, o que significa que entre linguagem e formas de vida há laços muitos frouxos, assim neste mundo a ética e a estética correm e brincam em torno de si mesmas, numa indiferença generalizada, sem qualquer tipo de coerência. Mesmo a ideia de uma chamada revolucionária parece risível, dado o pouco significado que a vida tem hoje, objetivamente, é a ideia surreal, considerada somente por razões pragmáticas de sobrevivência, de que todos partilhamos a mesma concepção sobre o que constitui o indivíduo e o sujeito. Humanos raramente têm se desrespeitado tão profundamente nas transações comerciais cotidianas, nos perfis online que visitam e c.f: em conversa com os editores

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com os quais se conectam, relações estas de brutalidade socioeconômica absoluta. Na Europa, já alcançamos o ponto mais baixo possível se considerarmos a quantidade de pessoas deslocadas e desalojadas que ignoramos em nossos territórios - as ignoramos como seres humanos e como força política, como portadoras de significação e experiências trágicas importantes, como pessoas buscando liberdade. Secretamente as enxergamos como bocas para alimentar, mendigos sob nossas marquises, pessoas privadas de dignidade e importância, porque estão destituídas de riqueza e de status social. O ódio que alimenta e que é alimentado por atos de terrorismo politicamente patéticos, o nível destrutível e ofensivo de vigilância ao que estamos submetidos e o tipo de repressão que países “democráticos” mobilizam contra qualquer tipo de protesto, nos fez internalizar a criminalidade da crença em mudanças sociais e esquecer a necessidade de proteger a liberdade privada e pública. Qual tipo de vocabulário poderia nos salvar desta situação? A linguagem neste estado das coisas desceu para além de uma “hierarquia que é estruturada por uma ordem ética e epistemologicamente pré-determinada”, ela se torna inútil se não encontrar um “agenciamento” que dê certo com o poder, que a extraia da impotência do politicamente correto. Precisamos de práticas que nem se quer se vejam como radicais (até esta fantasia já é de algum modo poluída), devemos bloquear urgentemente o desastre e continuar pensando, enquanto o fazemos, que podemos pensar com nossas mãos, com nossos corpos, com cores. O movimento de 1977 nos ensinou uma lição preciosa: as vezes a linguagem deve 104

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ser desfuncionalizada para que a poesia se torne mais eficiente que qualquer convenção política. “Carta a A.” é uma reflexão sobre o consumo do luto de uma certa ideia de radicalismo e sobre a forma como nos enxergamos vivendo através dele, ao mesmo tempo que somos por ele subjetivados e salvos. Precisamos fazer melhor que isso, precisamos repensar a liberdade e a vida, como o feminismo o faz fora das lógicas de antagonismos binários. * Durante nosso encontro anterior, ficou claro que vocês não concordam necessariamente com a visão política apresentada pelo Comitê Invisível. Apesar de uma inicial ênfase no potencial de comunas insurrecionais em contraposição às revoluções centralizadas, em seu segundo texto, Aos nossos amigos, o Comitê parece ter um foco diferente, com certa constatação de que “a revolução sempre acaba na fase da manifestação”, mesmo que seja entendida como um processo. Primeiro, gostaríamos de saber se vocês acreditam nesta diferenciação teórica entre insurreição e revolução e, segundo, como vocês comentariam ou responderiam a essa diferença. Será que politicamente o Comitê Invisível representa um passo para trás? Será que na ênfase deles, sobre organização e necessidade de desenvolver uma “inteligência estratégica do presente”, estamos vendo uma recaída em posições ortodoxas? C.F.: Confessamos que não estudamos esses dois textos com profundidade. De um modo geral - apesar da c.f: em conversa com os editores

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diversidade das duas publicações - vemos um desejo de seduzir, de atrair, de envolver o leitor em algum tipo de cumplicidade turva e invisível. Como dispositivo literário, isso não é nada novo. No entanto, se o entendêssemos como estratégia política de um grupo, esta seria simplesmente a de um ato suicida. De alguma forma, o absurdo no caso Tarnac demonstra que o poder está disposto a acreditar em histórias e não medirá esforços para criminalizar, de um modo que não faz sentido algum, as pessoas que correspondem à descrição romântica das formas ameaçadoras da vida. Ele acusará essas pessoas de terem escrito o livro e de terem supostamente realizado as ações que este livro descreveu (como se essas pessoas que moraram em Tarnac tivessem inventado a insurreição e a sabotagem, como se fossem os “donos” destes conceitos e que A insurreição que vem contivesse receitas magicas para a revolução, como se essas não pudessem ser encontradas por milhares de pessoas em qualquer biblioteca pública). Voltando a estes escritos, algumas coisas são lindas, porém os vemos mais como obras literárias que como manifestos políticos. O Aos nossos amigos vem depois do caso de Tarnac e de muitas ondas de manifestação e repressão por todo o planeta, por isso, é de algum modo mais sábio e menos ingênuo que A insurreição que vem, mas nele ainda se sente uma vontade de gerar magicamente uma rebelião geral e de ativar uma mudança social através de uma ferramenta que está totalmente obsoleta e inadequada à ambição. * “Desaprender os gestos, as palavras, as relações. 106

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Libertar através dos corpos e das mentes, transformar as subjetividades” - Sally Bonn, “Ressonância”, introdução do livro Grève Humaine 73. Esta pergunta se refere ao que se tornou conhecido como a “virada subjetiva” dos movimentos sociais e da teoria da mobilização social e como esta atravessa o modo como imaginamos novas possibilidades de mundo. Maple Razsa, antropólogo contemporâneo, aponta como atores do movimento antiglobalização procuram por modos alternativos de mobilização ao se afastarem de fins utópicos e de uma autoridade centralizada, optando por formas de democracia direta e agindo através de uma política prefigurativa74. Em sua análise, a subjetividade emerge como um lugar chave, do conflito e da criatividade, em virtude dos ativistas que buscam independentemente “tomar posse dos meios de produção de si mesmos como sujeitos” 75. Como suas práticas atravessam tal entendimento? E como vocês responderiam às configurações alternativas desse potencial emancipatório da arte, caso vocês acreditem que a arte tenha este potencial? C.F.: O potencial da arte não pode ser mensurado, o que o encontro com uma obra de arte pode fazer pelo sujeito, como a liberdade impregnada numa escultura, numa pintura, numa afirmação pode influenciar uma singularidade ou a massa, não tem como ser dito. Isto também explica nossa posição: não temos nenhuma crença supersticiosa na eficácia política imediata do nosso trabalho, de alguma forma não é nossa principal preocupação. Esperamos que c.f: em conversa com os editores

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obras de arte sobrevivam aos artistas, e o tempo para que o nosso trabalho realmente toque as pessoas talvez nem tenha chegado ainda. Como qualquer artista, trabalhamos porque precisamos, é nossa forma de nos mantermos vivos. Em nossa pesquisa, partimos do mesmo diagnóstico de Razsa - tal análise não é tão nova -, a subjetividade hoje é a arma e o campo de batalha. É óbvio que a prática de liberdade tem prevalecido nos movimentos sociais por todos as partes através de tal lógica da libertação, algo que é politicamente e pessoalmente maravilhoso para todos nós. Certas formas de autoridade e de dinâmicas gregárias sociais da unificação parecem já não atraírem mais as pessoas, e isto é um avanço político incrivelmente importante, o qual todos devemos valorizar e proteger em nosso próprio meio. * Em oposição à ênfase de Maple Razsa sobre o potencial criativo da mobilização social, na qual se sustenta a pergunta anterior, recentes teorizações de uma “arte póscontemporânea” argumentam que a arte hoje tornou-se uma indústria altamente sistematizada e que seu potencial emancipatório, por conta disso, pode ser entendido numa posição intersticial entre as esferas do marketing e do branding. Tendo em vista tais graus de inserção, como vocês respondem criticamente à apropriação, por exemplo, dos escritos do Tiqqun76 nas últimas obras do artista Bjarne Melgaard, na Bienal de Berlim de 2016? C.F.: Tudo é uma indústria hoje em dia: sexo, 108

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maternidade, morte, cada momento de nossas vidas ou cada ação, qualquer prática individual entra, de alguma forma, numa dinâmica comercial, agora até imagens podem ser publicadas, trocadas..., qualquer momento pode ser vendido, contido, imortalizado, acumulado, ou seja, roubado da inquietação transitória de nossas vidas. As brechas da chamada sociedade do espetáculo foram fechadas pelas novas tecnologias: a publicidade (e a pornografia) não precisa da vida como modelo, porque a vida está imitando e, cada vez mais, se fundindo com ela, pelo Facebook, Instagram, Tinder, Grinder e pelas ruas das nossas cidades. Como algo tradicionalmente precioso e valioso como a arte poderia escapar deste sistema de subsunção superinteligente e pervasivo? Pensamos que em relação ao significado, há uma forma de indiferença assustadora que está presente em certos níveis do mundo da arte; um enfraquecimento de conceitos, estes tratados somente como sinais para gerar abstração ou para recompor - às vezes de forma aleatória - a superfície da realidade. Acho que Melgaard - que também usou os escritos do Comitê Invisível - estava tirando um sarro da tentativa dos livros lutarem contra a falta de sentido, ao reduzi-los a sinais vazios numa sessão fotográfica. Eu não sei se a vontade dele é explicitamente niilista, acho que provavelmente Melgaard nunca leu esses livros e só está tentando escandalizar as cinco pessoas do mundo da arte que os conhece. Talvez nem ele mesmo saiba o que quer fazer. De qualquer forma as pessoas já esqueceram.

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* Antes de iniciar sua explanação sobre o estado de exceção, Giorgio Agamben, ao dar parâmetro de sua partida - na partilhada entre o direito público e o fato público e entre a ordem jurídica e a vida – se pergunta diante de uma afirmação: “... se a exceção é o dispositivo original graças ao qual o direito se refere à vida e a inclui em si por meio de sua própria suspensão, uma teoria do estado de exceção é, então, condição preliminar para se definir a relação que liga e, ao mesmo tempo, abandona o vivente ao direito” 77. O que o Agamben aponta é uma trajetória, inclinação está que se dá justamente entre os dispositivos e as subjetivações, porém, a meu ver, vocês, em “Notas de rodapé sobre o estado de exceção”, não apenas já tratam destes dois procedimentos como conjunção inseparável como também praticam esta uniam no texto. Se o que nos torna singulares é a qualidade qualquer que nos é subjetivada (e por isso entendo um controle anterior que se ergue antes de qualquer construção subjetiva), então a única coisa que temos é a contemplação como modo de experienciar as faltas e não o presente, o que nos sobra em excesso. Desse modo, se existe somente um modo de vida, comum a todos e sem escape, “esta é também a razão pela qual não conseguiremos combater esta guerra no terreno das imagens ou da iconoclastia...”, o que teria o pensamento como potencial de reconfiguração de uma exceção para a vida em imagens, com sua imaginação e acontecimento, e não mais para a vida em governo, com sua jurisprudência e institucionalidade?

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C.F.: Primeiramente, a conceitualização de Agamben sobre a relação entre vida e lei é paralela e, profundamente conectada, com sua própria descrição da relação entre bios e zoe. Na verdade, o discurso, o social, a vida supostamente significativa e política que partilhamos oculta em si a vida biológica, que é muda e animal, a nossa atividade intelectual a inclui e a exclui, ao mesmo tempo. Isto é o que a lei faz com a vida: a inclui para no fim excluí-la e exterminá-la, quando necessário; é por isso que o estado de exceção não é o oposto da democracia, mas o é, de algum modo, sempre que incluído nela como uma possibilidade escondida. Não há “somente um modo de vida, comum a todos e sem escape” como vocês afirmam: estruturas jurídicas e leis têm fortes vínculos históricos com o patriarcado, isto está longe de ser o único modo em que podemos viver juntos e sermos subjetivados. Hoje em dia, por exemplo, essa forma de vida está passando por uma grande crise por todo o planeta. Houveram importantes movimentos feministas centralizados na ideia de extrair da vida os processos legais e jurídicos, que partia de como estes dispositivos mutilam e deformam vidas - especialmente as vidas das mulheres. Não podemos eliminar o poder, mas o poder tem uma história que pode funcionar e nos afetar de várias maneiras diferentes, há sempre uma possibilidade de se opor a ele, de desviar sua trajetória, ao atravessá-lo de outra forma e disto ganhar forças. O coletivo Milan Women’s Bookstore78 (La Libreria delle donne di Milano - Livraria das Mulheres de Milão) publicou um livro que muitas vezes citamos, seu título em Italiano soa como Não c.f: em conversa com os editores

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acredite que você tem quaisquer direitos 79; o contrato social, a maneira como vivemos juntos é - e deve permanecer negociável o tempo todo, cabe a nós proteger a dinâmica social da violência e da exclusão (que são complementares entre si). O equilíbrio diferente que nos interessa é obviamente aquele que não despreza a vida biológica, mas, ao contrário, que a reconhece com dignidade e importância que merece, nos mostrando instantaneamente sob outra luz, a infância, a velhice, a vida das mulheres e o destino do planeta. Em outras palavras, o antropoceno não existe, o que temos é o que o patriarcado fez com o mundo através do capitalismo, do massacre, dos discursos e das práticas para mantê-lo do jeito que está ou se opor a ele. * No texto “Notas de rodapé sobre o estado de exceção”, a significação inominável do amor se dá da seguinte forma: “... o amor não tem uma causa específica nem uma razão que possa ser comunicada. Aquilo que se ama no outro é o agenciamento social possível ou real de que este é portador, o seu potencial de conexão e de liberdade que faz com que os nossos sentimentos possam surgir e perdurar.” Em “Somos todos uma singularidade qualquer” continua-se: “É a possibilidade de descobrir que todos somos uma singularidade qualquer, igualmente amável e terrível, prisioneira das malhas do poder, à espera de uma insurreição que nos permita mudar a nós mesmos”. Em sequência, as duas explanações se aproximam da realidade desse sentimento, ou melhor, dessa forma de sentir sem forma, o que, de algum modo, pode ser 112

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retomado através de Maurice Blanchot. Em A comunidade inconfessável, o autor disserta sobre os termos comunismo e comunidade: “conceitos desonrados ou traídos, isso não existe, mas conceitos que não são ‘convenientes’ sem seu próprio-impróprio abandono (que não é uma simples negação)” [...] “o que se dá com esta possibilidade que é sempre engajada de uma maneira ou de outra em sua impossibilidade?”. A pergunta requer, através da possibilidade, o que Blanchot mesmo justifica por imanência, da invenção à subversão prática da ordem da própria vida. Desse modo, é possível que concordemos que antes de qualquer encontro haja sempre uma disposição para amar a comunidade em sua simples conflituosidade, ou melhor, que amar, como posso interpretar dos textos, é também dar-se à partilha de si como comunhão? Tal revisão não nos colocaria novamente em uma conhecida assepsia da própria vida na política clássica? Ou, há nesta singularidade de amar o comunismo uma subtração que não é mais da vida e sim do que já está partido, a vida presente? C.F.: Blanchot é um autor bastante inspirador, sobre seus escritos podemos refletir por anos, porém, em termos de providenciar uma linha de ação e especificar instruções éticas (que vocês parecem procurar nesta pergunta) não é o filósofo mais claro para isto. Não acreditamos que “antes de qualquer encontro haja sempre uma disposição para amar”. Existe entre as pessoas afinidades, antipatias, antagonismos e complexidades que não podem ser negados - e nunca foram, dentro da história dos movimentos revolucionários, c.f: em conversa com os editores

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mesmo no movimento hippie - estas coisas são muito importantes e também fazem parte do amor sob suas diferentes formas. Em “Somos todos uma singularidade qualquer” tentamos revelar a natureza afetiva de nossa existência social e política e dar a ela uma voz, uma voz de esperança. No entanto, amor é trabalho, não é uma fusão, algo que transforma “a partilha de si [em] comunhão”: o patriarcado cria narrativas e, por consequência delas, mulheres são espancadas, estupradas e mortas a cada minuto por seus entes queridos. O amor não é um instinto, ele pode ser carinhoso, mas não se prolonga desta energia inicial, precisa ser valorizado, cultivado, acompanhado, compreendido, corrigido e alimentado continuamente. Não é uma força imutável em que podemos contar, é algo tão necessário à vida, como o oxigênio, porém ninguém ensina as pessoas a mantê-lo, e o primeiro lugar onde adoece e morre é dentro das comunidades militantes, onde as incapacidades todas emergem e as opostas são altas. De um lado, pessoas sentem-se melhor com uma vida afetiva medíocre e sem ambição, e elas são melhores mesmo, porque só para manter uma família unida e viva dá muito trabalho. Mas quem, por outro lado, realmente vive “em assepsia cansada”? A vida de ninguém é asséptica, a vida não pode simplesmente ser assim; o amor pelo comunismo intensifica a vida - caso o pudermos mantê-lo vivo por algumas semanas, meses ou, se tivermos sorte, por anos -, faz com que a gente sinta a vida como ela realmente deveria ser: isto não pode ser negado por ninguém que tenha experimentado este tipo de amor, que não subtrai a vida de nenhum lugar, mas que cria um presente real, 114

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completo e luminoso. * “É que a terra sobre a qual caminhamos mudou de valor e nossas vidas com ela” – Trecho do texto “Sem vida familiar”80. Uma pergunta sobre temporalidade. Os escritos e as práticas de Claire Fontaine se expandiram e se desenvolveram ao longo de um período de tempo substancial. O que mudou desde 1999-2001, na época do Tiqqun, até a orientação teórica apresentada no escritos no Grève Humaine? C.F.: Primeiro, nem todas as pessoas que integram Claire Fontaine fizeram parte de Tiqqun. Tiqqun, a revista, foi a concretização de um processo coletivo. De alguma forma, escrever não era o foco principal: fizemos parte de um movimento social por volta de 1997, em Paris, que questionou noções de trabalho, de emprego, de uso do tempo e de distribuição de renda, entre outras coisas. Era um movimento interessante porque juntou vários sujeitos sem nenhuma qualificação profissional ou social, era um movimento de singularidades quaisquer que questionava a organização da sociedade, a estrutura de classe, a forma como as pessoas eram profissionalizadas e formadas nas universidades… Costumávamos nos reunir todos os dias num anfiteatro em Jussieu, mas de nenhum modo não era um movimento estudantil. Lá, percebemos que a prática de estarmos juntos, conversando o tempo inteiro, não estava criando uma linguagem comum e, que esta assembleia c.f: em conversa com os editores

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contínua e diária, não estava indo a lugar nenhum, em termos da construção de um léxico político sobre o qual todos pudessem concordar. Deste modo, a primeira motivação para escrever Tiqqun foi agrupar uma série de conceitos como Bloom (Teoria do Bloom), Jeune-Fille (Menininha), Le Parti Imaginaire (O Partido Imaginário), para citar alguns deles - o termo Greve Humana apareceu no segundo volume de Tiqqun - e para definir algumas coisas e fenômenos que não tinham nome, mas que estavam presentes. Logo em seguida, a situação política, social e humana que vivíamos mudou drasticamente: Tiqqun Vol. 2 reflete esta mudança, um certo desespero que surgiu dos tempos anunciados no 11 de setembro de 2001, tempos que ainda estamos vivendo. A Claire Fontaine é um coletivo artístico, ela não é um grupo político, ela não nasce de nenhuma ambição política qualquer, fazemos arte e escrevemos: não estamos tentando fornecer à próxima geração de revolucionários um kit de ferramentas conceituais e visuais, isso seria muito pretensioso. Nossos escritos nascem ao lado de nosso trabalho visual, o que fazemos é uma operação completamente diferente de Tiqqun (Vol. 1 e Vol. 2). A Claire Fontaine nasceu a partir do diagnóstico da impotência política, costumávamos dizer que alguns artistas no final dos anos 1990 e no início dos 2000 eram refugiados políticos dentro do espaço da arte contemporânea; isso também pode ter mudado nos últimos dez anos, os refugiados não permanecem nessa condição para sempre: a arte não é um campo de refugiados.

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NOTAS

Reunimos aqui notas de editores. Nenhuma delas foram escritas pela autora. São notas da edição portuguesa da Revista Punkto para o Dossiê sobre o coletivo, da editora francesa Macula para o livro Grève Humaine de Claire Fontaine e da nossa edição, tanto de tradução como das referências.

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1. Este livro está apropriado. 2. Publicado em Pacemaker n° 9-10, dezembro de 2005. A tradução deste texto ao português é parte integrante do Dossiê Claire Fontaine, coordenado por Luhuna Carvalho, Mariana Pinho e Nuno Rodrigues. Traduzido por Luhuna Carvalho e Pedro Augusto. 3. “Em 1977, na Itália, ocorreu uma ampla mobilização política e social que tomou forma de um movimento de massa. Os protagonistas dos eventos que decorreram disso não aparentavam ter classe social ou política definida, mas defendiam uma intensificação da vida através da reapropriação do espaço público, das mercadorias, do tempo e as vezes invadiam os cinemas, os teatros ou os transportes públicos recusando pagar as entradas. O movimento se fez fortemente heterogêneo e largamente se difundiu sem reinvindicações claras ou líderes. Uma onda de repressão se encerrou sem histórico em 07 de abril de 1979, lançada pelo ‘teorema Calogero’. A hipótese formulada pelo juiz Calogero se revelou falsa por conectar todas as desordens vindas das ruas, as mobilizações de massas e ocupações, com o terrorismo, em parte, praticado por grupos políticos de esquerda (como as Brigadas Vermelhas) e, em parte, pelo serviço secreto do próprio Estado italiano, às vezes em conluio com grupos de

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extrema direita. É por isso que estes anos também são conhecidos como ‘anos de chumbo’”. Tradução livre. 4. RANCIÈRE, Jacques. “A Representação do Inumano”, em O Destino das Imagens. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, pp. 135-136. 5. BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte/São Paulo: ed. Ufmg/Impresa Oficial SP, 2006. 6. BENJAMIN, Walter. “Que é o teatro épico? – Um estudo sobre Brecht”, em Walter Benjamin: Magia e técnica, arte e política – vol. I. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, pp. 81-82. 7. Walter Benjamin, Ibidem. 8. BENJAMIN, Walter. Walter Benjamin: escritos sobre mito e linguagem (1915-1921). São Paulo: Editora 34, 2011. 9. Walter Benjamin, Ibidem. 10. FOUCAULT, Michel. “O espírito de um mundo sem espítiro”, in Repensar a Política. Ditos e Escritos vol. VI. São Paulo: Forense Universitária, 2010. 11. AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Portugal: Editora Presença, 1993. 12. Coordenação emiliana (norte da Itália) pelo salário ou trabalho doméstico, Bolonha, 1976.

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13. Publicado em inglês em Qui parle? Critical Humanities and Social Sciences, vol. 22, n° 2, primavera-verão de 2014. Seu título original é “Artiste ready-made, généalogie d’un concept”. Este texto foi traduzido por Aurore Zachayus para a presente edição. 14. Em francês, délectation significa, formalmente, um prazer, uma satisfação, uma felicidade diante de um objeto. 15. DUCHAMP, Marcel. “À propos des ‘Ready-mades’”, em Duchamp Du signe. Paris: Flammarion, 1975, p. 191. Tradução livre. 16. Dicionário abreviado do Surrealismo. Sem tradução em português. 17. Usuel, em francês, remete a uma noção utilitária, mais do que “habitual”, por isso a tradução optou por “usual”. 18. M. Duchamp, “Readymades”, ibid, p. 49: “O importante é então esse relojeirismo, esse instantâneo, como um discurso pronunciado na ocasião de qualquer coisa, mas nesse horário específico. Um tipo de encontro marcado”. Tradução livre. “Encontro marcado”, rendez-vous em francês, subentende-se como algo romântico. 19. Ibid, p. 192. Tradução livre. 20. Citado por André Gervais em Note sur le terme Readymade

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(ou Ready-made), Étant Donné Marcel Duchamp n° 1, primeiro semestre de 1999, Paris, p. 121. Tradução livre. 21. Ibid, Tradução livre 22. Ma position: écrits sur mes œuvres, Les presse du réel, 1992. Livro editado em francês para uma retrospectiva da obra do Dan Graham no Nouveau Musée/Institut. Esse livro compila traduções dos escritos de Dan Graham sobre sua obra, traduzidos para francês. 23. O termo exotérico se diferencia da significação de “esotérico”. O primeiro diz respeito a algo destinado a ser vulgarizado, esvaziado de seu mistério, enquanto o segundo qualifica algo reservado, guardado em segredo por poucos.

24. Katherine Kuh, Marcel Duchamp entrevistado em The Artist’s Voice: Talks with Seventeen Artists, New York, 1962. Tradução livre. 25. Médium, em francês, tem o duplo sentido de “meio” (matéria da qual é feita uma coisa) e de “vidente”. A segunda opção foi escolhida em relação ao contexto do parágrafo. 26. M. Duchamp, “Le processus créatif ”, ibid., p. 189. 27. Em inglês no texto. 28. Verre, em francês, significa tanto “vidro” quanto “copo”.

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29. Ibid., p. 171. 30. Ibidem, p. 181. 31. André Gervais, Ibid. 32. LYOTARD, Jean-François. Les Transformateurs Duchamp. Paris: Éditions Galilée, 1977, p. 38-39. Tradução livre. Livro não traduzido em português. 33. Énergétiste, em francês, é um neologismo que reproduzimos em português. 34. Em inglês no texto. 35. Ibidem, Tradução livre. Em inglês no texto. 36. AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Belo Horizonte: ed. Autêntica, 2013. 37. HOPKINS, David. “Male Poetics”, em Duchamp, Man Ray, Picabia. London: Tate Modern, 2008, p. 78. Não traduzido em português. 38. Ibidem, p.79 39. Este texto foi publicado em Retour d’y voir n° 5, “Retratos do artista” em Philippe Thomas, revista Mamco, Genebra, 2012. Este texto foi traduzido por Lucas Parente para a presente edição.

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40. KELSEY, John. Rich Texts, Selected Writings for Art. Berlim: Stenberg Press, 2010, p.77. Tradução dos autores. 41. A este respeito ver Bernard Edelman, De la propriété littéraire et artistique. Propos recueillis par Jacques Salomon: “A ideia mesmo de direito de autor fez parte deste imenso movimento de individualismo jurídico [...] Para o direito, ‘morte do autor’ não quer dizer nada. Está em total contradição com nossa cultura, da qual consideramos que o grande momento foi o do nascimento do invidíduo”, em Jean-Marc Avrilla, Marc Blondeau, Daniel Bosser, Carine Campo, Laura Carpenter, Simone de Cosi, Sylvie Couderc, Lidevij Edelkoort, Bernard Edelman, Jean-Louis Froment, Michel Gransard, Stéphane Mallarmé, Christoph Sattler, Estelle Schwarz, Philippe Thomas, Michel Tournereau, Georges Verney-Carron, Sur un lieu commun et autres textes, Genebra, Mamco, Presses Universitaires de Rennes, SaintEtienne, 1999, pp. 258 e 259. O direito aqui, evidentemente, é o direito de fazer, juridicamente, parte da história da arte.

42. Philippe Thomas era particularmente sensível à temática do “desmembramento” institucional, e podemos mesmo emitir a hipótese de que a disseminação de si mesmo e de sua obra que ele praticou intencionalmente foi uma forma de prevenir isso. Especialmente sobre este assunto, ele cita Duchamp, que em 1955 declarava em sua conversação com James Johnson Sweeney: “Eu sempre senti que mostrar uma pintura aqui, uma outra acolá, era como se, a cada vez, nós te amputássemos um dedo ou uma perna”. Em Jean-Marc Avrilla, “Le Musée réfléchi”, in Sur un lieu commun, p. 247.

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43. Odradek é o nome de um objeto-personagem em uma história curta de Kafka entitulada A preocupação de um pai de família. 44. Georges Verney-Carron, Publicité publicité. De quelques cas de figures, em Sur un lieu commun et autres textes, Ibid., p. 121. 45. DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Editora Escuta, 1998, pp. 8-9. 46. Georges Verney-Carron, Sur un lieu commun, Propos recueillis par Eric Duyckaerts, em Sur un lieu commun et autres textes, Ibid., p. 174. 47. Ibid., p. 173. 48. Georges Verney-Carron, Publicité publicité. De quelques cas de figures em Sur un lieu commun et autres textes, Ibid., p. 122. 49. Georges Verney-Carron, Sur un lieu commun, Ibid., p. 173. 50. A citacão é de E. Castelnuovo, 1973, Portrait de société dans la peinture italienne, Gérard Monfort, Paris, 1993, recuperada por G. Didi-Huberman, em A imagem sobrevivente. História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg, Rio de Janeiro, Editora Contraponto, 2013. 51. I ritratti di Madonna Portinari por Aby Warburg, La rinascita del paganesimo antico, La Nuova Italia, Milano, 2000, p. 161.

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52. Jean Brolly: “Pesquisa do grande copo”, George Bully: “Reverso do objetivo”, Herman Daled: “Ausência”, Lidewij Edelkoort: “Fundo tingido”, Françoise Epstein: “Um singular plural”, Dominique Païni: “Casa de figura”, Michel Tournereau: “Questão de apresentação”. Sobre este assunto, consultar as de Alexis Vaillant Fictionnalisme. Une pièce à conviction, em Sur un lieu commun, Ibid., p. 318. 53. D. Arasse, Ibid, p. 10. 55. Barthes escreve em A câmara clara, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, p.46, que o punctum é um elemento “que parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar. Em latim existe

uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por um instrumento pontudo [...] A esse segundo elemento que vem contrariar o studium chamarei então punctum; pois punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados”, enquanto que Arasse, falando do detalhe, explica que “a língua italiana diferencia o que é um particolare do que é um dettaglio. Ocultada no emprego da única palavra detalhe, esta primeira distinção é fundamental. O detalhe-particolare é uma pequena parte de uma figura, de um objeto ou de um conjunto. [...] Como revela Omar Calabrese, neste sentido, o detalhe “pressupõe um sujeito que “talha” um objeto” [...] Deste ponto de vista, tudo pode tornar-se detalhe. O detalhe-dettaglio não pode ser definido e apreendido senão enquanto “programa de ação”, deixando eventualmente sua marca no quadro. Neste sentido ele está no cerne mesmo do vínculo entre o detalhe e o prazer experimentado com o quadro – basta que o amador decupe materialmente o quadro, desmembrando-o

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para obter como que um extrato concentrado de desfrute, basta também que, tomado pela beleza de sua interpretação, o historiador “de-talhe” no quadro um detalhe que o pintor não produziu...” Daniel Arasse, Le Détail, Ibid., pp. 11-12. 56. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário, em Mito, emblemas, sinais: Morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 57. DELEUZE, Gilles. Signo e Verdade (cap. 2), em Proust e os signos. 2˚ ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. 58. Ibid., p. 119 59. Georges Verney-Carron, Publicité publicité, op.cit. em Sur un lieu commun, p. 120. 60. WIND, Edgar. Art and Anarchy. Great Britain: North Western University Press, 1985, p.37-38. Art et anarchie, traduzido para o francês por Pierre-Emmanuel Dauzat, Paris, Gallimard, 1988. 61. FOUCALT, Michel. Ditos e Escritos: estética – literatura e pintura, música e cinema, vol. III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, pp. 264-298. 61. Philippe Thomas cita Les Monnayeurs du langage em JeanMarc Avrilla, Le Musée réfléchi sobre Sur un lieu commun, p.250, Alfred Sohn-Rethel devolve a mesma problemática da abstração filosófica como profundamente ligada à economia monetária em

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La Pensée marchandise, Ibid. 62. Ibid. p. 247. 63. Tradução livre. 64. Documentários: Les LIP, l’imagination au pouvoir, de 2007, de Christian Rouaud; Avec le sang des autres, de 1974, de Bruno Muel; Rhodia 4/8, de 1969, de Les Groupes Medvedkine; Reprise du travail aux usines Wonder, de 1968, de Jacques Willemont. 65. Tradução livre. 66. Publicado em inglês em Text zur Kunst, 86, junho de 2012. Este texto foi traduzido por Fabio Morais para a presente edição. 67. OBRIST, Hans Ulrich. Uma Breve História da Curadoria. São Paulo: Bei Edições, 2010, p. 19. 68. Optou-se por traduzir o título original italiano “Siamo tutti singolarità qualunque” por “Somos todos uma singularidade qualquer”, embora outra tradução possível pudesse ser “Somos todos singularidades quaisquer”. Este texto fez parte da exposição “Siamo tutti singolarità qualunque”, apresentada em Cubo di Garutti à Bolzano, entre setembro 2006 e janeiro 2007, na Itália. O texto foi afixado no interior do cubo, que era inacessível ao público, situado no parque infantil de um bairro social, e foi deixado para distribuição livre dentro de um recipiente de plástico, apresentado

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em versão bilíngue, italiana e a alemã. A tradução deste texto para p português é parte integrante do Dossiê Claire Fontaine, coordenado por Luhuna Carvalho, Mariana Pinho e Nuno Rodrigues. Traduzido por Mariana Pinho. 69. Este texto foi distribuído aos visitantes da exposição de Claire Fontaine na Reena Spaulings Fine Art de New York, entitulada “Footnotes on the State of Exception”. A tradução deste texto para português se encontra no Dossiê Claire Fontaine, coordenado por Luhuna Carvalho, Mariana Pinho e Nuno Rodrigues, da Revista portuguesa Punkto. Traduzido por Nuno Rodrigues. 70. A tradução deste texto ao português é parte integrante do Dossiê Claire Fontaine, da revista portuguesa Punkto, coordenada por Luhuna Carvalho, Mariana Pinho e Nuno Rodrigues. Traduzido por Luhuna Carvalho. 71. Este texto foi traduzido por Noara Quintana para a presente edição. 72. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: Por uma literatura menor. São Paulo: Autêntica. 2014. 73. Grève Humaine é uma coletânea de escritos do coletivo Claire Fontaine, publicada pela editora parisiense Éditions Macula. 74. A política prefigurativa deriva do pensamento anarquista, é o modo como a política se estrutura no presente para refletir a sociedade futura a qual se propõem. Nesta política as ações também se voltam a si mesma, visando implementá-la na vida

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cotidiana de quem nela atua. 75. RAZSA, Maple. Bastards of Utopia: living radical politics after socialism. Bloomington: Indiana University Press, 2015. 76. Tiqqun foi uma revista francesa que publicou dois volumes: o primeiro em 1999 e o segundo em 2001. Tiqqun foi concebido por autoria coletiva, um dos membros que atualmente integra a Claire Fontaine, também participou do coletivo. Logo depois da segunda publicação Tiqqun se desfez. Além da revista, Tiqqun também publicou os livros, que derivam de textos já publicados na revista: Materiais preliminares para uma teoria da menininha (2001), Teoria do Bloom (2004), Isto não é um programa (2006) e Contribuição à guerra em curso (2009). 77. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 12. 78. “Milan Women’s Bookstore” ou “La Libreria delle donne di Milano”: fundada em 1975, se descreve como realidade política composta por movimento, organização e reunião (www. libreriadelledonne.it). 79. Non credere di avere dei diritti, publicado em 1987 pela La Libreria delle donne di Milano. Em 1990 é publicado a versão em inglês, cujo título é traduzido como Sexual Difference, A Theory of Social-Symbolic Practice (Bloomington: Indiana University Press, 1990), tradução de Patricia Cicogna e Teresa de Lauretis. 80. Texto de autoria de Claire Fontaine publicado no livro Grève Humaine, da editora Éditions Macula.

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A GLAC edições surge da união do crítico de arte Leonardo Araujo e do dramaturgo Gustavo Colombini. Desde 2011 os dois produzem publicações independentes das ideias e textos de seus trabalhos conjuntos. A GLAC intenciona tornar público trabalhos que tenham o texto como objeto especifico de produção, que lidem de modo experimental com a linguagem e que articulem o livro como objeto, criando projetos gráficos que atendam as demandas inclusas nas experimentações linguísticas dos textos. Atualmente a GLAC segue com três frentes de trabalhos: os livros gráfico-textuais produzidos por seus editores e convidados; edição, tradução e adaptação de textos anônimos e de artistas estrangeiros de caráter político; e o exercício de editar textos literários e dramatúrgicos de novos escritores no formato códex. cargocollective.com/glac

1˚ Edição Tiragem - 200 exemplares Papel - miolo Pólen Soft 80g / capa Color Plus 240g Tipografia - Desdemona, Adobe Caslon Pro e Corbel

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