Com espinha, por favor: o coletivo Filé de Peixe e o consumo do consumo da arte contemporânea

September 29, 2017 | Autor: Fernando Gonçalves | Categoria: Contemporary Art, Comunicação, Arte contemporáneo, Arte Urbana, Performance; Intervenções Urbanas
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Com espinha, por favor: o coletivo Filé de Peixe e o consumo do consumo da arte contemporânea

Fernando Gonçalves1 (Uerj) Milena Campe2 (UFRJ)

Introdução Este artigo busca analisar as estratégias criadas pelo coletivo de artistas carioca Filé de Peixe para discutir as relações entre consumo da arte e a visibilidade dos processos de inserção e acesso a obras contemporâneas, particularmente as produzidas em vídeo. O Filé de Peixe realiza ocupações artísticas em espaços públicos desde 2006 e vem se destacando por discutir criticamente os processos de recepção e circulação da arte enquanto mercadoria, as relações entre arte e vida, os limites entre objeto artístico e produto, colecionismo e consumo na arte. Neste texto abordaremos dois de seus projetos: o Piratão e o CM2. O Projeto Piratão surgiu em 2009 e com ele o grupo investiga e simula, na palavra dos artistas, “a economia informal e pirata como situação para inserção, visibilidade, acesso e circulação a trabalhos de videoarte”. Trata-se de uma obra-ação identificada com um gênero artístico chamado performance3. Nela, os artistas agem como se fossem camelôs e comercializam cópias de trabalhos artísticos em vídeo no formato de DVD piratas, os chamados “encartados”, através de ações nas ruas e em eventos de arte de diversas cidades brasileiras. A referência a um modelo do comércio popular, informal e pirata não é gratuita. Por um lado, a apropriação da estética e das estratégias de venda dos ambulantes visa difundir as obras de videoarte através da comercialização de objetos-DVD em espaços públicos e eventos de artes plásticas. Por                                                                                                                 1

Professor PPGCOM-Uerj. Mestre pelo PPGC-UFRJ. 3  Gênero artístico surgido nos anos 70, que representou um topos de experimentação com as linguagens cênica, corporal, textual e imagética e uma experiência de resignificação dos códigos culturais. Estabelecendo uma estética problematizadora, a performance constituiu um importante recurso que não apenas permite repensar discursos e práticas sociais cotidianas e da arte, mas também pensar a comunicação para além de seu aspecto midiático. Cf. GONÇALVES, Fernando. Comunicação e experimentações com a linguagem na performance. Logos (Rio de Janeiro), Uerj, v. 10, n.18, p. 10-29, 2003. Disponível online: http://www.logos.uerj.br/PDFS/anteriores/logos18.pdf. Acesso em 22/11/13. 2

outro, busca também discutir criticamente o culto da originalidade do objeto artístico e sua visão como mercadoria. O segundo projeto é CM2 Arte Contemporânea, iniciado em 2012, por ocasião da feira de arte contemporânea Artigo Rio. Neste projeto, o coletivo contata diversos artistas que já contam com uma certa projeção no mercado da arte ou que já estejam bem estabelecidos nele e propõem que produzam obras do tamanho de 1cm² para serem vendidas ao coletivo. Nesta relação de compra e venda, contudo, o artista só poderá vender o seu cm² pelo preço que for determinado pelo grupo e que passa a representar o preço médio do cm² das obras de cada artista. Através da descrição e da análise destas ações, o texto busca demonstrar que tanto no Piratão quanto no CM2, é o próprio sistema das artes que é performatizado e ao mesmo tempo subvertido por meio do modelo da economia informal (Piratão) ou da economia institucionalizada (CM2). Por meio dessas ações, os artistas revisitam as discussões sobre os modos de construção e de atribuição de valor ao “objeto artístico” no contexto do sistema das artes, baseado não em um valor de uso, mas no valor de troca. Com isso, os artistas questionam os sistemas de inserção cultural e comercial das obras que produzem modos restritos de acesso às produções contemporâneas por sua capacidade reduzida de incorporar e dar a ver outras produções não inscritas nesses sistemas. Um outro aspecto dessas ações que interessará ao texto discutir será a inserção dos próprios artistas no mercado das artes. Como diversos artistas que discutiram e discutem a relação entre arte e consumo, os artistas do Filé de Peixe também buscam uma inserção no sistema oficial das artes. Vai nos interessar observar nesse caso, porém, como essa inserção parece remeter menos às estratégias subversivas de um Cildo Meirelles (Inserções em Circuitos Ideológicos, 1970) e mais a uma estratégia duchampiana de jogo baseada numa ambivalência. Se, por um lado, há de fato uma apropriação de um espaço para subvertê-lo de dentro, por outro, os artistas não vão recusar totalmente esses espaços, que garantem seu reconhecimento enquanto artistas e a venda de seus trabalhos fora do Piratão e do CM2. Esse caráter de ambiguidade, intencional nesses trabalhos, será também discutido, aumentando, por um lado, a tensão entre a produção artística e o consumo de arte hoje e, por outro, deixando claros os traços de um “fazer arte” que se inscreve numa rede de atores diversos, que vai das obras, artistas, curadores e colecionadores até os

espaços da cidade, às formas de circulação e consumo das obras em galerias, eventos, feiras do circuito comercial e às políticas públicas de acesso à cultura. A estratégia Piratão "No Filé, nós estamos sempre vendendo o nosso peixe”. A frase traz à tona a estratégia de atuação escolhida pelo coletivo, que utiliza o ato da compra e da venda da obra de arte como fonte de inspiração para a criação das suas ações. Atualmente composto pelos artistas Alex Topini, Clóvis Caldas, Fabrício Cavalcanti, Fernanda Antoun e Zé Antunes, o coletivo atua desde 2009 produzindo um questionamento sobre o valor da obra de arte no mercado contemporâneo - isto é, sobre a lógica da troca monetária presente neste mercado e sobre o que seria o valor excedente desta troca através do projeto intitulado Piratão. A história do coletivo de certa forma se confunde com a do próprio Piratão, que surge da “indagação acerca do que poderia ocorrer caso o mundo da arte e suas regras fosse infiltrado pelos procedimentos do mercado informal” (Labra, 2011).   Neste projeto,   o coletivo apropria-se (por cessão dos artistas ou eventualmente sem sua autorização) dos arquivos de vídeo e de filmes de artistas visuais para então vendê-los na forma de dvds piratas a qualquer pessoa que quiser participar da ação. Para poderem realizar as vendas, os artistas copiam o estilo dos camelôs que circulam pelo centro do Rio de Janeiro e utilizam o bordão "um é 5, três é 10" (FIG 1) para atrair sua "clientela".

           

 

FIG 1 - Piratão #09 no Camelódromo, Centro do Rio de Janeiro, junho de 2010

Os dvds são chamados de "encartados" e cada um possui cerca de três vídeos de um determinado artista que tem sua obra escancaradamente revendida sem que ele receba qualquer tipo de remuneração4. O coletivo afirma que esta estratégia busca democratizar ou popularizar certas obras em vídeo que encontram-se "enclausuradas" em galerias e em coleções particulares, além de promover o trabalho de novos artistas atuantes através do vídeo. Eles definem o Piratão como "uma prática artística que investiga e simula a economia informal e pirata como situação para inserção, visibilidade, acesso e circulação a trabalhos de videoarte"5. Desta forma, para os artistas não se trata de vender de forma indevida ou obter lucro com o trabalho de outros artistas ou de apenas produzir um novo objeto de arte (já que os integrantes consideram os encartados como objetos produzidos e assinados pelo “Filé de Peixe”). O que dizem realizar é um trabalho de arte a partir da apropriação e da circulação de trabalhos de outros artistas através de uma ação performática. Logicamente, tal ação apresenta um cunho político, ao discutir a noção de obra de arte, o valor dos objetos artísticos e o funcionamento do mercado de arte (FIG 2). Mas também busca criar um modo de circulação mais democrático para as imagens em vídeo que não seja baseado somente na lógica do colecionismo.

FIG 2 - Encartados, dvd, capa plástica, papel e carimbo, Filé de Peixe, 2009.

                                                                                                                4

Em 2010, os artistas lançaram um novo projeto, que foi o “Piratão Jukevideo”, inspirado nas máquinas de música jukebox, onde se pode ver videos de arte sob escolha. 5 Disponível em http://coletivofiledepeixe.com/piratao/. Acesso em 20/07/2012.

Os encartados são eles próprios “obras-produto” que remetem a um sistema de produção e de consumo. Contudo, trata-se também de um objeto pirateado a baixo custo, tal qual um DVD de camelô. O coletivo possui uma estrutura profissional que inclui uma copiadora simultânea de mídias digitais para a confecção dos objetos-DVD; equipamento de TV e DVD-player para teste da mídia na hora da compra; um gradil para pendurar os “encartados”, além de projetor e telão para a realização das “Sessões Pirata” – quando recortes do acervo de videoarte do grupo são exibidos ao público gratuitamente. A circulação dos encartados através de um sistema de venda que simula o comércio informal possui, portanto, desdobramentos que vão além apropriação e venda das imagens contidas nos dvds. Ao popularizar estas imagens através da ação urbana da pirataria, o coletivo acaba prestando um serviço ao consumidor comum e, em particular, aos interessados em videoarte. Isto é, ele cria a possibilidade deste consumidor poder adquirir um objeto de arte por um preço popular. Contudo, como já dissemos, a ação do projeto não se resume apenas em “denunciar” o sistema das artes ou em difundir os grandes nomes nacionais e internacionais da videoarte. Ela também cria circunstâncias que permitem difundir as produções de jovens artistas. Em cada ação realizada pelo Piratão, o projeto busca incorporar novas produções aos encartados, que passam a compor o acervo do grupo e são postos para circular em seus deslocamentos pelo país, juntamente com as obras reconhecidas. Mesmo nesses casos os encartados assumem uma dimensão crítica e funcionam como uma espécie de “inserção em circuitos clássicos” (SILVA, 2011). Fazendo uma alusão aos trabalhos de Cildo Meirelles (FIG 3 e 4) nos anos 70 (“Inserções em circuitos ideológicos”)6, o coletivo insere, juntamente com os trabalhos de artistas mais conhecidos, o trabalho de artistas desconhecidos como “bônus”.

                                                                                                                6

Trata-se de um trabalho histórico na arte contemporânea brasileira, onde o artista intervinha sobre garrafas de coca-cola e papel-moeda escrevendo sobre elas mensagens contra o imperialismo americano e a ditadura. Esses objetos de grande circulação, simbolizavam o modelo de produção capitalista e a ideologia do Estado e funcionavam como uma contra-informaçã dentro do próprio sistema operado por essses atores. Sem poder ser controlado, exatamente por causa do tipo de canal que as veiculava, legitimados pelo sistema, as contra-mensagens podiam assim se disseminar e contaminar o tecido social. http://arte72pm.blogspot.com.br/2011/12/cildo-meireles-insercoes-em-circuitos.html

FIG 3 - “Inserções em circuitos ideológicos”, Projeto “Cédula”, 1970

FIG 4 - Projeto “Coca-cola”, 1970

Assim, ao levar objetos “fetichizados” para casa leva-se também obras que talvez não fossem compradas por causa dos nomes de seus artistas. O que eles fazem aí é chamar a atenção para como no próprio campo da arte, entre artistas ou espectadores, se reproduz a lógica do mercado de arte e das instituições. É uma ação complementar e tão subversiva quanto colocar durante as performances todos os encartados dispostos igualmente nos aramados, fossem artistas famosos ou desconhecidos, dispostos lado a lado, com o mesmo valor, todos a “um é cinco, três é dez reais”. É assim que o encartado assume interessante papel como obra e reflexão contemporâneas sobre arte, fruição e consumo: primeiramente, é uma forma de ampliar o acesso às criações artísticas que normalmente só podem ser vistas em museus, galerias ou coleções privadas de arte. É também uma forma de pensar sobre a condição de produção e de legitimação de uma obra imaterial ou informacional cujo preço é dado por um conjunto complexo de elementos presentes no mercado de arte, baseado numa mais-valia. Entre junho de 2009 (data da primeira edição do Piratão na Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro) e junho de 2013, ocorreram dezesseis edições do Piratão espalhadas por várias capitais do Brasil, que tiveram como resultado a venda de aproximadamente sete mil encartados. Enquanto um vídeo autêntico e certificado da artista Letícia Parente custa em média trinta mil reais no mercado de arte, durante um Piratão é possível adquirir doze vídeos da mesma artista por dez reais. O sucesso da ação torna evidente que os integrantes souberam atuar através de uma visão estratégica que se tornou possível devido a uma dupla operação: a apropriação dos trabalhos de outros artistas e a apropriação da ação da pirataria informal que é praticada nas ruas de grandes centros urbanos (FIG 5).

FIG 5 - Piratão #09 no Camelódromo, Centro do Rio de Janeiro, junho de 2010.

O baixo custo da produção do evento Piratão permite que os encartados sejam vendidos a preços muito baixos em comparação com os preços das obras praticados no mercado de arte. Além disso, a possibilidade de fazer um número ilimitado de cópias dos vídeos apropriados permite que a ação atinja um público cada vez mais ampliado que procura por estes baixos preços. Desta maneira, a performance adquire um efeito multiplicador, quase virótico, que gera um ruído no próprio sistema das artes. Segundo Alex Topini (2013), o coletivo possui uma lista com mais de vinte e oito mil emails que é acionada para divulgação de cada ação do Piratão. Já que a ideia de produção artística do coletivo não é somente a de produzir um objeto de arte, mas de atuar por dentro do sistema das artes - seja questionando-o ou relacionando-o com outros modelos de venda -, certas estratégias de marketing, de produção de eventos e de assessoria de imprensa, por exemplo, são necessárias ao coletivo para que as suas ações não sejam "terceirizadas" a profissionais do gênero que poderiam cumprir estas tarefas se fossem pagos para isso. O coletivo assume, desta forma, todas as etapas do processo de produção da performance, na qual o ato de compra e venda de um objeto de arte faz parte do cerne da ação. Isso importa na medida em que os encartados não são vendidos fora deste evento que, em si, já extrapola a noção tradicional de obra como a da criação de objetos para contemplação. De certo modo, os artistas acabam identificando o ato de criação artística a um evento que deve ser produzido e visto, isto é, que precisa de divulgação, de produção de folders, panfletos, emails, perfil no facebook e atualizações na página web do grupo.

A maneira como o coletivo vai buscar o seu espaço dentro do campo da arte é justamente através do desenvolvimento dessas habilidades, ou seja, da capacidade que possuem de se auto-produzirem. Esta produção desenvolvida pelo coletivo possui uma característica conceitual bastante pertinente com o momento atual da arte, que gira em torno da seguinte questão: como a arte pode se distanciar da Arte (como maiúscula) tal como ela vem sendo construída na história da arte e ser tão comum quanto a própria vida (DANTO, 2004)? Ao entrelaçarem os conceitos de apropriação, performance e pirataria nesta produção coletiva e autodidata, o coletivo discute o caráter ambivalente e de construção social da obra de arte, que na atualidade procura se fundir com a vida7 ou "fazer de conta" que é da “vida” e não da “arte”. Neste sentido, o coletivo se mobiliza para colocar em prática as ideias ou os conceitos elaborados pelo grupo, mesmo que isto signifique estar em contato com gráficas, adquirir um equipamento de som, saber instalar um telão para projetar filmes em espaços públicos, ter conhecimentos de edição e de fotografia, ter a capacidade de copiar mil dvds por dia, além de embalar, cortar e imprimir o material que irá ser utilizado como capa para estes dvds. Não são estas ações, por si mesmas, que os transformam em artistas, pois tais ações podem ser realizadas por qualquer pessoa. No vídeo da edição do Piratão realizado na rua em frente à galeria Gentil Carioca, no bairro do Centro do Rio de Janeiro, em 2010, há uma declaração de um transeunte que foi destacada pelo grupo: "Não tem graça nenhuma esta performance, qualquer camelô faz isso!" (FILÉ DE PEIXE, 2011). Mas, na medida em que tais ações não possuem um fim em si mesmas, sendo na verdade colocadas a serviço de um conceito ou de uma ideia, ou seja, a serviço da arte, elas passam a fazer parte de uma outra esfera. Uma esfera que não é a da rua, nem do camelô e nem a de alguém que copia e vende cópias piratas de vídeos em dvd, embora não prescinda delas para se constituir enquanto ação artística. Essa diferença nos parece fundamental para entender o cerne do projeto e ao mesmo tempo para pensar a ambivalência da proposta. Com relação à proposta, é possível observar que ao atuarem no campo da arte e ao se colocarem como artistas e                                                                                                                 7

As questões da natureza da obra de arte e da fusão entre arte vida não são novas. No século XX, desde pelo Marcel Duchamp, passando por Allan Kaprow, nos anos 60, a arte questiona a si mesma como prática social e histórica, problematizando seus cânones, discursos, práticas e sua própria história como forma de reinvenção de si mesma. Na arte dita “contemporânea”, o que vemos mais uma vez é esse gesto de auto-reflexão, onde noções como obra, belo, narrativa, representação e autenticidade são sistematicamente problematizados através de procedimentos de apropriação, combinação e recombinação e ressignificação como os do Filé de Peixe e tantos outros artistas e coletivos.

não como camelôs ou contraventores, o coletivo problematiza a noção de obra e de sua autenticidade como elemento constitutivo como seu reconhecimento e valor como objeto de arte. Um exemplo disso é quando Alex Topini (2013) afirma em uma entrevista que uma colecionadora de vídeos certificados do artista alemão Joseph Beuys8 (1921-1986) participou de uma ação do Piratão e quis comprar o produto pirata desse artista, vendido pelo coletivo. Se esta colecionadora compra estes “encartados”, ela os compra como “obras de arte” e não como “produtos piratas”? Será que isto nos permite afirmar que os objetos vendidos durante as ações do Piratão não são os vídeos de outros artistas, mas sim “obras” - apropriadas e pirateadas - produzidas e assinadas pelo Filé de Peixe? Topini afirma que o que estão fazendo não é pirataria, pois o “vídeo é um arquivo e pode circular sem prejuízo à obra em si (...) São objetos performáticos que ativam redes de troca em torno da produção audiovisual voltada para o campo das artes plásticas”. (TOPINI apud SILVA, 2011, p.15). Corroborando esse argumento, a curadora Daniela Labra vai afirmar que o que é vendido pelo grupo é um objeto resultante da apropriação desses trabalhos e cuja função é ao mesmo tempo a difusão da videoarte e a crítica à fetichização das obras e ao culto à originalidade, à autenticidade e à unicidade, que constituem a base do mercado da arte e onde as obras são tornadas mercadorias para consumo (Labra, 2011). Segundo Labra, interessados na crítica ao sistema mercantil e fetichista da arte, o grupo decidiu que cada encartado seria um “múltiplo” de tiragem limitada, à venda apenas durante as ações do grupo. Com isso, a produção do encartado como “obra de arte” (e não como “cópia de uma obra de arte”) embaralharia os códigos e regras desse mercado e do próprio campo da arte ao propor a discussão sobre a natureza da arte (ideia ou o objeto que corporifica a ideia) e seus objetos, bem como de suas formas de acesso e fruição. De fato, os encartados são considerados pelos artistas “objetos performáticos” e são inspirados nas cópias de dvds piratas comercializados informalmente nas ruas. Cada encartado só pode ser reproduzido em tiragens limitadas e posto à venda durantes as ações do grupo. Os vídeos são copiados digitalmente em mídias graváveis e recebem uma capa padronizada, xerocada e plastificada, além de um carimbo manual que o “autentica” como um produto 100% Filé de Peixe, ao preço de 3 por 10 reais. Mas além                                                                                                                 8

Joseph Beuys foi um artista alemão que produzia happenings e performances, tendo trabalhado também com escultura, instalação e teoria da arte. Criou a ideia de "escultura social" para a arte, que considera a participação do público como uma forma de atuar na sociedade e na política.

do nome do coletivo, o carimbo leva também uma numeração que confere à cópia um caráter “único” enquanto objeto. É o que garante seu duplo status de objeto comercial e artístico: trata-se não de um objeto comum, mas de um “objeto de arte”, uma referência clara aos processos de apropriação da pop art e dos trabalhos de Andy Warhol, especialmente Brillo Box. Ao retomarmos o início do processo da performance Piratão, vemos que a questão levantada pelo coletivo era a de investigar o que poderia ocorrer caso o estratificado mundo da arte, repleto de regras auráticas, pudesse ser infiltrado por procedimentos do mercado informal que sobrevive da comercialização de bens copiados e falsificados. Neste sentido, não eram a democratização e a popularização dos trabalhos em vídeo, tanto de artistas renomados quanto de desconhecidos, as justificativas para a ação radical do coletivo? Não é com este intuito de "abrir a arte para o povo" que o coletivo age quando se apropria de forma consentida e por vezes sem autorização das obras de outros artistas, sem que estes últimos recebam qualquer tipo de retorno com a venda dos “encartados”? Contudo, quando os encartados passam a ser vendidos como obras de arte, toda a ação passa da esfera da possibilidade de um ato ilícito para a esfera de uma produção artística e os integrantes passam a ser reconhecidos como artistas que criam uma “obra de arte”, no caso uma ação performática cujo motivo é a venda de obras apropriadas de videoarte. Isso nos leva à segunda questão que é a da ambivalência da proposta. No momento em que a ação é reconhecida como arte e que os objetos vendidos são parte da obra e, portanto, vistos como objetos artísticos e não meras cópias piratas de obras verdadeiras, os artistas acabam se valendo da “aura” e do “fetiche” que os encartados vão adquirindo ao longo das ações para obter reconhecimento no circuito da arte. Ou seja, os artistas acabam fazendo parte do mesmo sistema que criticam por meio de sua obra-ação. Além disso, se no futuro o coletivo decidir, por exemplo, que não fará mais esta performance, os encartados poderão subir de preço no mercado da arte. Talvez toda a coleção do Filé de Peixe com os vídeos da Letícia Parente, que atualmente custa dez reais numa edição do Piratão, passe a custar, daqui a alguns anos, dez mil reais ou até mais. Nesta lógica, o Filé de Peixe poderá ter se tornado um grupo de artistas renomado e os registros desta performance - como as fotografias e os vídeos produzidos durante as edições do Piratão - poderão valer fortunas no mercado artístico. Só nos resta saber se é possível, numa mesma ação e a um só tempo, tanto questionar o sistema da arte através

de ações políticas quanto criar obras de arte que alimentem este mesmo sistema que está sendo posto em xeque. Mas a situação exige um olhar cuidadoso. Por um lado, ao fazer isso, os artistas parecem ser recapturados no dispositivo9 artístico, pois os encartados passam também a possuir um valor de mercado, tornando-se peças de colecionadores. Além disso, a realização das ações, sua divulgação no campo da arte e sua participação em eventos especializados nesta área lhes confere visibilidade como artistas, o que facilita sua inserção coletiva e individual no sistema das artes. O coletivo se apresenta, por exemplo, em exposições em galerias e eventos (FIG 6) como o Projeto Performance Arte Brasil, no MAM-RJ; da Rede Funarte Artes Visuais, em Belém(PA); Projeto Novos Curadores, no Paço das Artes(SP) e no Santander Cultural(PE); 1ª Mostra Vide Urbe, no Oi Futuro e no MAM (RJ); III Bienal de Búzios (RJ), Abotoados pela Manga (SP), Mostra SESC de Artes (SP); SPA das Artes(PE); Semana Experimental Urbana (RS); o 9º Curta 8 – Festival Internacional de Cinema Super8 de Curitiba (PR); e o Screen Festival, em Barcelona (Espanha).

FIG 6 - Abre Alas, Galeria A Gentil Carioca, 06/02/10

Também os componentes alcançam notoriedade por seus trabalhos individuais. Alex Topini, por exemplo, é um jovem artista que conta com um relativo reconhecimento hoje e teve um de seus trabalhos selecionado no salão de artes do IBEU em 2012 (um dos mais concorridos do país) e realizou em naquele mesmo ano uma                                                                                                                 9

Por ser uma concepção que admite uma rede de agenciamentos de elementos heterogêneos, utilizaremos a noção de dispositivo, como definido por Michel Foucault, no intuito de compreender melhor as estratégias utilizadas pelos artistas.

exposição individual em uma galeria comercial de arte no Rio. Nela, o artista aparece com uma venda negra nos olhos com a inscrição “À venda”, em letras brancas (FIG 7). Na exposição, objetos, vídeos e trabalhos de fotografia estão à venda, como, simbolicamente, o artista. Esse caráter de ambiguidade, intencional nesses trabalhos, aumenta, por uma lado, a tensão entre a produção artística e o consumo de arte hoje.

FIG 7 – cartaz de divulgação da exposição individual de Alex Topini, 2012.

Por outro lado, deixa claro como a arte não é uma atividade desinteressada nem uma esfera separada do social como afirmava Bürger (2009), e sim uma instância do próprio social, como afirma Rancière (2009), com suas regras de produção, legitimação e visibilidade. Ou seja, o ato de fazer e mostrar arte se inscreve numa rede de atores diversos, que vai das obras, artistas, curadores e colecionadores até os espaços da cidade, às formas de circulação e consumo das obras em galerias, eventos, feiras do circuito comercial e às políticas públicas de acesso à cultura. Por isso mesmo, por outro lado, essa ambivalência talvez possa ser considerada, além de intencional, coerente com a linguagem, o conceito e as questões do Filé de Peixe e não uma contradição 10 . É o que parece demonstrar o projeto CM2 Arte Contemporânea.                                                                                                                 10

Esse tipo de procedimento no campo da arte que mimetiza formas de poder para criticá-lo foi analisado em dois artigos, uma sobre a artista Laurie Anderson e sobre as intervenções dos artistas-arquitetos mineiros Louise Ganz e Breno Silva. Respectivamente: GONÇALVES, F. N. (2002) Performing the Trojan Horse: Laurie Anderson's strategies of resistance and the postmedia era. In Body Space Technology, Brunel Univiversity, Londres, v. 0202, p. 1-15. Disponivel online: http://people.brunel.ac.uk/bst/vol0202/fernandodonascimento.html. Acesso em 18/12/2013. E GONÇALVES, F. N. Revisitando o lugar do poético e do político nas práticas artísticas urbanas. In: Joao Maia; Carla Helal. (Org.). Comunicação, arte e cultura na cidade do Rio de Janeiro. 1ed.Rio de Janeiro: Eduerj, 2012, v. 1, p. 13-34.

CM² Arte Contemporânea

Em 2012, o Filé de Peixe criou um projeto baseado na lógica do mercado de arte, intitulado CM² Arte Contemporânea. Neste trabalho, os integrantes do coletivo entram em contato com diversos artistas contemporâneos e propõem a estes que produzam obras do tamanho de 1cm² para serem vendidas ao Filé. Nesta relação de compra e venda, contudo, o artista só poderá vender o seu cm² pelo preço que for determinado pelo coletivo, que chega no valor final através de um cálculo matemático que envolve os preços e os tamanhos tanto da obra mais cara (vendida ou posta à venda) quanto da obra mais barata (vendida ou posta à venda) do artista em questão. Este cálculo é feito durante uma visita do Filé aos ateliês dos artistas e este valor passa a representar o preço médio do cm² de todas as obras desses artistas. Para Alex Topini (2013), o trabalho traz à tona um assunto considerado tabu no ambiente artístico, que envolve a questão "Quanto vale o seu trabalho?". Além disso, segundo ele, muitos artistas ficaram surpreendidos com o valor do cm² alcançado pelos seus trabalhos. Alguns esperavam que custasse mais e outros esperavam que custasse menos. Após esta primeira etapa, o coletivo assumiu o papel de um galerista, perguntando ao artista se desejava vender por aquele preço a totalidade de vinte peças de 1cm² que seriam revendidas em feiras de arte. A primeira edição deste projeto aconteceu em novembro de 2012, na feira de arte contemporânea Artigo Rio11 e contou com a participação de artistas como Cildo Meireles, Rosângela Rennó, Anna Bella Geiger, Carlos Vergara, Daniel Senise, Paulo Whitaker, Nino Cais, Rodrigo Braga, Antonio Dias, Laura Lima, Felipe Barbosa, Rosana Ricalde, Marcos Chaves, entre outros. Alex Topini (2013) afirma que, em vários momentos, o Filé prestou algum tipo de assessoria financeira aos artistas ao afirmarem que o preço final do cm² alcançado estava muito caro ou que estava muito barato com relação a outros artistas. Os valores do cm² entre os artistas escolhidos variaram entre dois centavos (o mais barato) e quarenta e quatro reais (o mais caro). Diferentemente do que ocorre no projeto Piratão, no qual os trabalhos são apropriados pelo Filé de forma por vezes consentida e por vezes compulsória, neste projeto todo o processo de cálculo e de compra das peças de                                                                                                                 11

Disponível em http://www.feiraartigo.com.br/, acesso em 16/11/2013.

1cm² é feito junto com os artistas. Há um acordo durante todo o processo e ambas as partes assinam um documento confirmando a venda dos trabalhos pelo valor encontrado através da fórmula matemática do Filé. Todas as peças vendidas vêm acompanhadas com certificados de autenticidade que são assinados pelos próprios artistas. Neste contrato, o Filé de Peixe se compromete a revender os pequenos trabalhos pelo valor que foi acordado. O artista recebe metade do valor total do lote vendido ao Filé no ato da venda (geralmente de dez a vinte peças, dependendo do artista). Somente uma dessas peças é adquirida pelo coletivo pelo valor total, já que é comprada com o intuito de ir para a coleção particular do Filé de peixe. As peças restantes são revendidas em feiras de arte pelo valor que foi acordado. Neste caso, o Filé não pode aumentar este valor. Mesmo devido à pequena dimensão das peças, que podem ser entendidas como mini-obras de arte (FIG 8), Topini (2013) ressalta a potência visual deste trabalho. Ao exporem as peças em conjunto, o coletivo chama atenção para a coleção total de cada artista que está sendo posta à venda. O preço barato das peças acaba incentivando os participantes da ação a comprarem a coleção inteira que, no caso de alguns artistas, sai por menos de vinte reais. O trabalho aproxima-se, de fato, com o formato de uma coleção de selos ou de moedas, estruturas em que uma peça sozinha não possui tanta força como em conjunto. Segundo Topini (2013), certa vez a coleção inteira de um determinado artista foi comprada por duzentos reais e, na mesma feira de arte em questão, revendida por três mil reais.

FIG 8 - Diversas mini-obras do projeto CM Arte Contemporânea, Filé de Peixe, 2012.

Um dos efeitos deste trabalho foi que o coletivo passou a receber telefonemas de alguns colecionadores em busca de adquirir as mini-obras e, neste caso, os artistas do Filé tiveram que fazer tanto o papel de curadores quanto o papel de galeristas para que pudessem negociar as vendas, tornando mais uma vez evidente que para ser artista na contemporaneidade não é mais tão necessário o domínio de um ofício específico (como fotografar, pintar ou desenhar) que exija o trato com uma determinada matéria-prima. É assim que em CM2 o Filé de Peixe simula, como no Piratão, instâncias do sistema das artes. Desta vez é o funcionamento do mercado e das galerias que é o objeto da ação. Dando a ver os procedimentos “misteriosos” e “invisíveis” das negociações entre artistas, colecionadores e galeristas, o Filé discute a fabricação do valor da obra e do artista, simbolicamente representados por um cálculo matemático. A escolha do cálculo como figura de um equacionamento das variáveis componentes do valor da obra é altamente significativa, pois apanha num só movimento: 1) o valor de um nome (artista) - dado pelo lugar que ocupa no sistema das artes, por sua liquidez e pela qualidade do trabalho; 2) a “qualidade” do trabalho - avaliada em parte pelos critérios vigentes no campo da arte referenciados pela academia e pela crítica, parte pelo lugar que ocupa na história da arte, mas também em parte pelo nome e a posição do artista no mercado e pela sua relação com outras obras e com outros artistas; 3) a liquidez da obra – dada pelas relações entre nome e qualidade do trabalho, o grau e tipo de inserção no mercado nacional ou internacional e sua posição na história da arte e em relação a outros artistas. Ou seja, o que eles encenam é a rede que performatiza a construção do valor da obra e do artista. Logicamente, ao fazer isso, o coletivo está pondo em questão, como fizeram anteriormente, a noção de obra e de autenticidade. Porém, mais do que isso, está abrindo a caixa de pandora que guarda as ferramentas com as quais o sistema das artes legitima, valida e autoriza a circulação das obras, algumas das quais pirateadas pelos artistas no Projeto Piratão. Com isso, o Filé de Peixe desta vez não apenas simula o mercado formal (da arte) como performatiza também seu making of, dando a ver o que Rancière chamou de partilha do sensível ou “sistema de evidências que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas” (RANCIÈRE, 2009, p. 15). O que CM2 dá a ver é exatamente as operações e as atividades que determinam e distribuem os lugares e partes de cada etapa e de cada ator na trama que envolve a produção, a visibilidade e fruição/consumo das obras de arte.

CM2 constitui assim, além de um trabalho de arte, uma prática estética e política, que de certa forma parece corroborar o pensamento de Rancière acerca das práticas artísticas. Diferentemente de Bürger, Rancière vai considerar as práticas artísticas como “modos de fazer” circunstanciados histórica e culturalmente. São práticas sociais que falam das lógicas, dos modos de ser da arte e de seus objetos num certo momento histórico. Para Rancière, as práticas estéticas não têm a ver com os processos criativos e de invenção, mas em como esses processos são eles próprios formas de visibilidade (reconhecimento e legitimação) da arte e seus objetos, que definem as condições de possibilidade de sua produção, validação e circulação no campo social e os lugares que a arte e seus objetos ocupa nele. O Filé e Duchamp Em CM² Arte Contemporânea, podemos observar elementos distintos do Piratão,

como

o

fato

de

os

artistas

escolhidos

para

participarem

da

"ação/performance/projeto" receberem uma participação com a venda dos seus trabalhos. No entanto, como vimos, as duas ações possuem mais elementos em comum do que diferenças. Ambas procurar "jogar" com as regras do mercado de arte, valendose destas mesmas regras para criar performances assinadas pelo próprio coletivo. Tanto no Piratão quanto em CM² Arte Contemporânea, é da lógica de compra e venda que existe no mercado da arte que os trabalhos tratam, mesmo que um queira subverter esta lógica e o outro tente reproduzi-la. Mas será que este "jogo" criado pelo coletivo (muitas vezes irônico e com pitadas de sarcasmo) que brinca com regras e situações extrínsecas ao objeto de arte pode ser considerado genuíno na história da arte? De acordo com o conceito moderno de arte, a atividade artística é entendida como uma atividade que difere de todas as outras: como um "reino da criação sem propósito e do prazer desinteressado" (BÜRGER, 2009, p. 42) cuja totalidade pode ser contrastada com a vida de uma sociedade pré-capitalista baseada na divisão do trabalho e possuidora de estritas regras de ordenação e racionalização da produção. Neste contexto moderno, a estética presente nos trabalhos artísticos é oferecida como um "objeto especial de prazer" (BÜRGER, 2009, p. 39) que contribui para a criação de uma esfera específica e autônoma da arte em relação à vida comum. O resultado disto é que a

produção artística se divorcia da totalidade das atividades sociais e passa a confrontá-las de forma abstrata. Os movimentos de vanguarda podem ser definidos, em parte, como um ataque a este status da arte muito presente na sociedade burguesa oitocentista. O que estes movimentos negam não é uma forma de arte anterior ou um estilo, mas uma ideia de arte como atividade ou prática que se encontra dissociada da práxis da vida cotidiana. Tal crítica se dirige ao modo como a arte funciona na sociedade e à categoria daquilo que é concebido como "obra de arte". Para Bürger, "os vanguardistas não destróem, mas conseguem modificar profundamente a categoria denominada de obra de arte" (BÜRGER, 2009, p.51) uma vez que não vêem mais a obra como algo que se torna o seu próprio fim, ou seja, como algo portador somente de uma forma estética cujo efeito seria o de um prazer estético. A partir da noção de que a produção artística individual é algo fundamental para a arte na sociedade burguesa, as chamadas vanguardas históricas propõem uma negação radical em relação a esta categoria de produção individual, tendo sido muito influenciadas pelo trabalho do francês Marcel Duchamp12, que em 1917 se apropria de um urinol e o transforma numa das mais influentes obras de arte produzidas no século XX, denominando-a A Fonte. A partir do momento em que objetos de produção em massa escolhidos arbitrariamente são assinados e colocados em exibições de arte, toda reinvindicação de criatividade individual ou de gênio artístico valorizadas anteriormente passa a ser ridicularizada. A provocação de Duchamp não somente desmascara o mercado de arte em que a assinatura significa mais do que a qualidade dos trabalhos, ela questiona radicalmente o princípio básico da arte como instituição e a natureza e o valor de seus objetos na sociedade burguesa, segundo o qual o artista é considerado o criador único da obra de arte. Para Bürger, "os ready-mades de Duchamp não são obras de arte, mas manifestações" (BÜRGER, 2009, p. 52). Através de um ato aparentemente simples de apropriação de um objeto e do consequente deslocamento do espaço habitual do mesmo, Duchamp consegue, de forma inesperada e irônica, colocar em xeque as ideias mais convencionais presentes no campo das artes no início do século passado (FIG 9).

                                                                                                                12

Marcel Duchamp é um artista francês nascido em 28 de julho de 1887. Seu trabalho é frequentemente associado com o Dadaísmo e com o Surrealismo.

FIG 9 - A Fonte, Marcel Duchamp, 1917.

Um questionamento trazido à tona pelo trabalho A Fonte é a irrelevância com relação à produção direta de um objeto artístico por um determinado artista através dos seus próprios meios ou capacidades técnicas ilustres. O fato de ser evidente que o objeto em questão não tenha sido construído por Duchamp, mas sim apropriado de uma loja de materiais de encanamento chamada JL Mott Ironworks13 situada em Nova Iorque, é um fato de pouca importância para o artista. Duchamp escolhe o urinol, leva-o para casa, coloca-o apoiado sobre a parte de trás e assina na parte da frente "R. MUTT 1917", um autor imaginário, mas cujo nome remete a sua loja de origem. O que o ato provocativo de Duchamp torna evidente é a capacidade de uma escolha e não de um saber-fazer, isto é, a possibilidade de retirar-se um objeto ordinário do cotidiano e recontextualizá-lo de tal forma que o seu significado utilitário anterior desapareça para que um novo discurso sobre ele possa surgir. O desafio duchampiano imposto a nós, espectadores, não é tanto o de admirarmo-nos com a forma e o aspecto do urinol em questão, isto é, com a sua apresentação sensível, mas sim o de refletirmos sobre os desdobramentos que este ato provocativo reinvindica, os quais giram em torno da aparentemente simples questão: de que trata (ou pode tratar) uma obra de arte? Percebemos que Duchamp não coloca o seu próprio nome no urinol. A assinatura inventada por ele aparece como uma pista com relação a origem ou ao lugar de onde veio o objeto. No projeto Piratão, esta mescla entre autor da obra e aquele que se apropria - denominado apropriador - também aparece. Nos “encartados”, vemos tanto o nome do coletivo File de Peixe - que cria e produz toda a ação performática da                                                                                                                 13

Disponivel em http://www.telegraph.co.uk/culture/art/3671180/Duchamps-Fountain-The-practicaljoke-that-launched-an-artistic-revolution.html, acesso em 29/09/2012.

ativação de uma rede de troca - quanto os nomes dos artistas autores e dos seus trabalhos em vídeo apropriados em questão. Trata-se, portanto, desde Duchamp e passando pela arte pop, da abertura de uma possibilidade estética no campo das artes que permite o surgimento ou invenção de uma obra de arte possuidora de um caráter múltiplo ou híbrido na medida em que sua própria materialidade contém referências a mais de um autor ou até mesmo a múltiplos autores (GROYS, 2008). A questão da autoria, aliás, questionada por Duchamp, é claramente atualizada como questão da arte contemporânea nas ações do Filé de Peixe. Suas ações podem ser entendidas como uma prática crítica que se dá em um momento em que o questionamento de muitos artistas sobre a arte e seus sistemas coexistem com modelos seculares de valoração e legitimação presentes na academia e no mercado. Essa coexistência tensiona ambas as partes, mas esse tensionamento não implica necessariamente um rompimento entre elas, até porque ambas não prescindem uma da outra. É talvez desse atrito que surge o fluxo que alimenta e renova tanto a produção quanto a valoração e a visibilidade das coisas da arte. Talvez a grande questão trazida pelas ações do Filé de Peixe seja exatamente esta: evidenciar o estado de conexão e afetação recíproca entre esses elementos. Ao mesmo tempo, a formulação desta questão e esse modo de fazer de coletivos como o Filé são eles próprios figuras daquilo que Rancière (2009) chamou de “regime de visibilidade das artes”, um regime enunciativo que organiza práticas e discursos na arte e que os torna dizíveis e visíveis. Ou seja, práticas artísticas críticas e regras e funcionamentos do mercado de arte são correlatos desses conjuntos circunstanciados de práticas discursivas e não-discursivas interrelacionados que produzem e tensionam de determinados modos questões como autoria, autencidade, originalidade e valor de artistas e obras. Artistas e sistemas das artes relacionam-se diretamente com os regimes de visibilidade das artes, pois estes configuram as regras para produção e consumo de obras e práticas artísticas num dado momento histórico, como é caso do Filé de Peixe, por exemplo, e suas estratégias ambivalentes de resistência. Não é à toa, que seja nas pactuações coletivas de CM2 ou nas apropriações que resultam nos “encartados” do Piratão, podemos identificar um fenômeno também atual formado pela proliferação de práticas coletivas e em rede no campo das artes, sobretudo ao longo da última década, no Brasil. O fato de próprio nome Filé de Peixe englobar não um só autor, mas uma multiplicidade de artistas que optaram por um nome coletivo

ao invés da assinatura individual de cada um é uma figura da atualização das maneiras de fazer da arte e de seus regimes de visibilidade na atualidade. Considerações finais As questões levantadas pelo coletivo Filé de Peixe são relevantes na medida em que esta é a estratégia escolhida por um grupo de artistas para construir ações direcionadas para o próprio campo das artes em seu contexto atual. A partir destas questões, tanto os encartados como as mini-obras de 1cm² são os "objetos de arte" que servem também para discutir questões hoje centrais no campo da arte, como autoria, autenticidade, acesso e valor. Como práticas artísticas, as ações aqui analisadas atravessam e articulam tais questões, cujo foco é a relação entre produção, acesso e consumo na arte. Disponibilizados e colocados à venda por preços muito baixos, as ações do Piratão e do CM2 tornam possível que um público não especializado ou erudito tenha acesso à arte através de alguns de seus objetos. Através destas ações, entendemos que o ato de compartilhar e de colaborar com este público não especializado tornar-se mais central do que a preocupação em transmitir um sentido através das obras em si. É como se os objetos de arte compartilhados nestas ações não precisassem ser “interpretados”, mas sim disseminados entre o maior número possível de pessoas que estejam dispostas a adquiri-los por preços módicos. Deste modo, por um lado, podemos entender que as ações do Filé de Peixe propõem lugares de encontro entre pessoas que são construídos na forma de eventos comerciais, dentro e fora do campo da arte. Nestes eventos, como no caso do projeto Piratão, são reproduzidas certas lógicas ou estratégias de qualquer feira comum que é realizada na forma de um mercado informal, como a pechincha, a promoção e a venda em lote. De certa maneira, o coletivo produz algo tão óbvio que, ao tomarmos conhecimento da ação, não podemos deixar de fazer a pergunta: como ninguém havia pensado nisso antes? Por outro lado, há uma certa restrição presente na construção destes lugares de encontro que gira em torno da limitação existente na própria vida, no próprio cotidiano, isto é, dos limites presentes naquilo que pode ocorrer numa feira comum que acontece em qualquer esquina. Por outro lado, tais ações não se dirigem especificamente a um público leigo, e sim, à própria arte. Assim, no momento em que o Filé reproduz ou reencena estas

estratégias da feira dentro do ambiente artístico, ele gera uma declaração inédita e vigorosa dentro deste mesmo campo. O mercado da arte acaba sendo atravessado pelas regras presentes no mercado informal (Piratão) de uma forma inusitada e inesperada, mas rapidamente contra-apropria este gesto crítico, exibindo-o como obra (CM2). Essa tensão, inevitável, ocorre pela própria ambivalência que constitui a natureza desses trabalhos e de sua inserção, como prática artística, num campo mais amplo e denso de relações. Neste, ao mesmo tempo que se busca renovar a arte, inclusive com atitudes críticas, e expandir suas possibilidades, procura-se também determinar seus modos de presença, de valoração e sua experiência de fruição, desmontando e estabilizando esse tensionamento em lugares que por vezes despotencializam o que a arte tem de criação e de pensamento. Nesse sentido, talvez seja possível considerar as ambivalências das estratégias do Filé de Peixe, que criticam um sistema no qual vão se inserir e obter reconhecimento, como uma espécie de cavalo de troia na arte. Embora possa resultar na obtenção de visibilidade para o coletivo e eventualmente para os seus artistas individualmente, essa visibilidade pode também pode funcionar como uma estratégia para fazer reverberar suas críticas no interior do próprio sistema das artes. Ou pelo menos para manter o tensionamento entre o fazer arte e os sistemas da arte e torna-los espaços permanentes de negociação. E disso o Filé de Peixe entende. Afinal, como eles mesmos dizem, "no Filé, nós estamos sempre vendendo o nosso peixe”. Com espinha, por favor.

Referências Bibliográficas ALEX TOPINI. Disponível no endereço eletrônico http://alextopini.com/. Acesso em 20/07/2012. BÜRGER, Peter. Theory of the avant-garde. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2009. COLETIVO FILÉ DE PEIXE (2011). Cinco Anos. Publicação do Coletivo Filé de Peixe. Rio de Janeiro. Disponível online: http://coletivofiledepeixe.com/. Acesso em 20/07/2012. DANTO, Arthur. La transfiguración del lugar comun. Una filosofia del arte. Buenos Aires: Paidós, 2004. GONÇALVES, Fernando. Comunicação e experimentações com a linguagem na performance. Logos (Rio de Janeiro), Uerj, v. 10, n.18, p. 10-29, 2003. Disponível online: http://www.logos.uerj.br/PDFS/anteriores/logos18.pdf. Acesso em 22/11/13. GROYS, Boris. Art Power. Cambridge: The MIT Press, 2008. LABRA, Daniela. Mídia Pirata na Economia da Arte e o Coletivo Filé de Peixe. In: COLETIVO FILÉ DE PEIXE (2011). Cinco Anos. Publicação do Coletivo Filé de Peixe. Rio de Janeiro. Disponível online: http://www.academia.edu/4032585/Midia_Pirata_na_Economia_da_arte. Acesso em 22/11/13. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e Política. 2a edição. São Paulo: Ed. 34, 2009. SILVA, Renato (2011). Piratão soma. Disponivel online: http://www.grupos.com.br/group/culturasparaenses/Messages.html?action=dow nload&year=09&month=9&id=125250828771491&attach=PIRAT%C3O%20SOM A.pdf.  Acesso  em  22/11/13. TOPINI, Alex. Depoimento a turma do curso "Arte Contemporânea", ministrado pelo professor Marcelo Campos na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Rio de Janeiro, 19/06/2013.

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