Comentário ao Acórdão C-157/10: o Acórdão BBVA e a Livre Circulação de Capitais

July 24, 2017 | Autor: S. Monteiro Dias | Categoria: European Law, International and European Tax Law, Freedom of movement (EU Law), European Tax Law
Share Embed


Descrição do Produto

Comentário ao Acórdão C-157/10: “O Acórdão BBVA e a Livre Circulação de Capitais” DIREITO TRIBUTÁRIO EUROPEU

Susana Monteiro Dias MESTRADO EM DIREITO FISCAL

Porto | 2012

Comentário a um acórdão do TJUE, em matéria de fiscalidade direta, como requisito de aprovação ao seminário “Direito Tributário Europeu”, lecionado no âmbito do Mestrado em Direito Fiscal, na Universidade Católica Portuguesa (Centro Regional do Porto) – Escola de Direito

Título Comentário ao Acórdão C-157/10: “O Acórdão BBVA e a Livre Circulação de Capitais” Instituição Universidade Católica Portuguesa (Porto) Escola de Direito Autoria Susana Monteiro Dias Aluna n.º 354101102 Docente Doutor João Félix Pinto Nogueira Unidade Curricular Direito Tributário Europeu Carateres/Páginas 32.078 carateres; pág. 23 Times New Roman; T12; simples Local Porto Data Junho de 2012

Comentário ao Acórdão C-157/10 do TJUE

Estrutura do Comentário O presente comentário encontra-se dividido em duas partes, além de breve introdução. A Parte I – “Factos e Background Legislativo” – encontra-se dividida em dois capítulos. No Capítulo I (“Enquadramento da Situação Fáctica”) pretende-se fazer uma descrição sumária do litígio fáctico nacional, tal como foi reportado ao TJUE, sem qualquer indicação de disposições legais. No Capítulo II (“Os diferentes pontos de vista no processo principal”) expõe-se os argumentos aduzidos pelos intervenientes no processo, indicando quais as regras nacionais cuja compatibilidade com o ordenamento da União Europeia é questionado. Dada a extensão expositiva proposta, a Parte I será redigida de forma concisa sem, contudo, comprometer a sua compreensão. Da Parte II – “Da Questão Prejudicial à Decisão” – constam dois capítulos. O Capítulo I (“O mecanismo do reenvio prejudicial e a questão prejudicial”) tem por objeto uma breve exposição sobre em que consiste este mecanismo de salvaguarda, apoiando-nos para tal em jurisprudência e em doutrina. Adicionalmente é descrita também a questão colocada pelo órgão jurisdicional nacional ao TJUE. No Capítulo II (“A Decisão: Momentos do Raciocínio do Tribunal”) propomo-nos a analisar os momentos típicos do raciocínio jurisprudencial, de acordo com o “esquema mental” proposto por João Félix Nogueira, estabelecendo, em determinados momentos, uma analogia com outros casos do TJUE. Por fim, tentaremos uma síntese do nosso comentário, referindo os principais aspetos da decisão analisada.

3

O Acórdão BBVA e a Livre Circulação de Capitais

ÍNDICE

Introdução

5

Parte I – Factos e Background Legislativo Capítulo I – Enquadramento da situação fáctica Capítulo II – Os Diferentes Pontos de Vista no Processo Principal

8 8

Parte II – Da Questão Prejudicial à Decisão Capítulo I – O Mecanismo do reenvio prejudicial e a questão prejudicial Capítulo II – A Decisão: Momentos do Raciocínio do Tribunal

11 11

Conclusão I – Comentários Finais II – Breve nótula sobre o caso português

18 19

Referências bibliográficas

20

Jurisprudência Consultada

22

Abreviaturas

23

Sites relativos a fiscalidade consultados

23

Comentário ao Acórdão C-157/10 do TJUE

Palavras-Chave: efeito direto – diretiva – reenvio prejudicial – dupla tributação internacional – liberdade de circulação de capitais – discriminação – restrição

Introdução Lançou o móbil do presente comentário a recente decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (de ora em diante também designado por Tribunal de Justiça, TJUE ou Tribunal) a qual teve, no seu centro gravítico, a questão da liberdade de circulação de capitais, “pilar essencial da integração económica”. Naturalmente que num mundo globalizado colocam-se várias questões ao nível da fiscalidade, impulsionadas pela ocorrência frequente de factos tributáveis plurilocalizados. Com efeito, ao criar condições favoráveis à circulação de pessoas, bens, serviços e capitais impulsionou-se a internacionalização de empresas, passando estas a estarem presentes em mais do que uma jurisdição fiscal, “quer para fins de investimento direto ou para meras aplicações financeiras”1. Desta sorte, resulta a importância da “criação de um ambiente regulador para multinacionais” que, nas doutas palavras de SALDANHA SANCHES, apenas seria possível com “regras mais ou menos uniformes de tributação em todo o espaço europeu” e que consequentemente conduziriam a uma “inteira neutralidade fiscal que tornasse mais racionais as decisões de investimento e as escolhas de localização.” Contudo, os Estados-Membros (adiante EM), que “foram desenhando os respetivos sistemas tributários internos (…) pensados e esboçados para as relações jurídico-tributárias internas”, vêm-se agora confrontados com “situações transnacionais”, que fiscalmente traduzem-se em “factos tributáveis plurinacionais” e que conduzem a que mais do que um Estado tenha a pretensão de tributar o mesmo rendimento. Se, por um lado, por força da liberdade de circulação de capitais, o contribuinte pode livremente deslocar o seu capital disponível, sendo proibida qualquer tipo de restrição entre EM (bem como com países terceiros), por outro poderão surgir situações de dupla tributação nas relações económicas. Poder-se-ão eventualmente celebrar acordos para evitar ou eliminar a dupla tributação económica de modo a que não sejam colocados entraves à atividade económica e se potencie o investimento internacional, promovendo quer o crescimento quer o desenvolvimento económico. Todavia, se é certo que a dupla tributação económica conduz a um fenómeno tributário indesejado, ainda assim “os Estados não estão obrigados a adaptar o próprio sistema fiscal aos diferentes sistemas de tributação existentes nos EM”. Concomitantemente, os “inconvenientes que podem resultar do exercício paralelo das competências fiscais dos diferentes EM” nem sempre significa que sejam restrições proibidas pelo Tratado. Perante estas situações será imperioso chamar à colação o princípio da não discriminação comunitária e analisar se estamos perante casos de efetiva discriminação, mormente verificando se os contribuintes estão em situações semelhantes ou comparáveis. Outras situações haverá em que, pese embora o contribuinte não seja tratado de forma diferente, ainda assim se levantam obstáculos ao exercício das liberdades comunitárias. Perante estas situações, e emprestando as palavras de JOÃO FÉLIX NOGUEIRA, “os particulares podem prevalecer-se diretamente de disposições comunitárias, desde que as mesmas tenham efeito direto” e, perante casos de manifesta incompatibilidade 1

Ac. Trummer e Mayer, 16.03.1999, C-222/97 através do qual o TJUE concretizou o âmbito da noção de “movimentos de capitais” 5

O Acórdão BBVA e a Livre Circulação de Capitais

do direito interno com o ordenamento comunitário, “os juízes poderão (…) ver-se forçados” à sua desaplicação. Aos tribunais nacionais está reservado, nestes casos, o mecanismo do reenvio prejudicial, passando estes a ter a faculdade de colocar ao TJUE “uma questão relativa a essa aplicação se acreditarem que a questão é necessária ao julgamento da causa” e se pretenderem “evitar que se estabeleça em qualquer EM uma jurisprudência nacional em desacordo com as regras de direito comunitário”.

Comentário ao Acórdão C-157/10 do TJUE

PARTE I – FACTOS E BACKGROUND LEGISLATIVO

7

O Acórdão BBVA e a Livre Circulação de Capitais

CAPÍTULO I – Enquadramento da Situação Fáctica O acórdão em análise resulta de decisão proferida pelo TJUE, em final de Dezembro de 2011, relativamente ao processo C-157/10. O litígio opôs o Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, S.A.2 (adiante BBVA ou recorrente) à Administración General del Estado (doravante recorrida). Controvertida no processo principal, que corria termos num tribunal espanhol, estava a questão de saber se o BBVA teria direito a deduzir no IS3 (Impuesto sobre Sociedades) o imposto devido na Bélgica sobre os lucros obtidos nesse EM e que não havia pago devido a uma isenção. Tal situação resultou de uma decisão da Oficina Nacional de Inspección, na sequência de verificações e inspeções sobre as sociedades, considerando esta entidade que apenas seria dedutível o montante do imposto efetivamente pago. Com efeito, o BBVA recorreu desta decisão ao organismo administrativo revisor que a confirmou. Optou a recorrente por interpor sucessivos recursos até ao Tribunal Supremo. Foi nesse órgão jurisdicional que se levantou a questão da compatibilidade do direito doméstico (na sequência da celebração, entre Espanha e Bélgica, de uma convenção destinada a evitar a dupla tributação – CDT) com o direito comunitário. Por essa razão, o referido tribunal suspendeu a instância e submeteu uma questão prejudicial ao TJUE que será analisada a seu tempo.

CAPÍTULO II – Os Diferentes Pontos de Vista no Processo Principal Ao BBVA havia sido concedida uma vantagem fiscal, sob a forma de isenção, de acordo com o domestic law belga. Ainda assim, pretendia esta entidade um crédito de 10% sobre o imposto que a CDT permitia à Bélgica cobrar, mesmo não tendo o pagamento sido efetivamente exigido. Ressalve-se que o art. 11.º CDT celebrada entre ambos EM, no n.º 1, estabelece que os rendimentos devem ser tributados no estado da residência (in casu Espanha), embora possam ser tributados na Bélgica (n.º 2). Por seu lado, a autoridade tributária espanhola negou esse crédito com o fundamento de que o direito espanhol preclude essa possibilidade quando o imposto não tenha sido cobrado no país de investimento. A recorrida apoiou-se no art. 23.º, n.º 3 CDT que determina que o estado da residência (Espanha) pode conceder uma dedução sobre o imposto quando cobrado ao residente num outro EM (Bélgica), não podendo a taxa ser inferior à taxa do imposto cobrado no estado contratante. Já quanto ao direito interno espanhol, a Ley General Tributaria, no art. 57.º, n.º 1, dispõe sobre a possibilidade de deduzir ao montante de imposto outros já cobrados ou devidos, independentemente de sobre eles recair uma isenção ou bonificação, sem prejuízo do art. 24.º, n.º 4, da Ley del Impuesto sobre Sociedades que disciplina o montante de imposto que deverá ser deduzido quando os proventos do sujeito passivo estejam sujeitos a imposto e sejam auferidos ou tributados no estrangeiro. O acórdão, no âmbito do quadro jurídico, faz referência ainda ao art. 67.º TCEE. A referida norma, em vigor na altura dos factos, pretendeu suprimir as restrições aos movimentos de capitais, desde que esses fossem “necessários ao bom funcionamento do mercado comum”. Todavia, o Tribunal não reconheceu efeito direto a esta norma, perdendo assim os particulares a faculdade de a poder invocar. Entretanto foi aprovada a 2

A recorrente é a sociedade dominante do grupo consolidado, ou seja, trata-se de uma unidade formada, para efeitos fiscais, por um conjunto de sociedades. 3 O IS, em Espanha, incide sobre os seus rendimentos mundiais.

Comentário ao Acórdão C-157/10 do TJUE

Diretiva 88/361/CEE através da qual se pretendeu liberalizar a circulação de capitais entre EM, aos quais se impôs “a obrigação de suprimir todas as restrições aos movimentos de capitais”. É pacífico que a diretiva, “ferramenta de interpretação do direito interno”, exige que o direito doméstico “seja interpretado em conformidade com os princípios e critérios” nela contidos. Se é certo que o art. 6.º, n.º 2 do referido diploma autorizou Espanha a manter temporariamente restrições à liberdade fundamental em apreço (não olvidemos que o imposto é referente a 1991 e as restrições estavam autorizadas até 1992), ainda assim cada EM deve organizar o “seu sistema de tributação dos rendimentos de capitais” em observância pelo direito da União.

9

O Acórdão BBVA e a Livre Circulação de Capitais

PARTE II – DA QUESTÃO PREJUDICIAL À DECISÃO

Comentário ao Acórdão C-157/10 do TJUE

CAPÍTULO I – O mecanismo do reenvio prejudicial e a questão prejudicial4 O TJUE5pronunciou-se já sobre a importância do mecanismo de salvaguarda do reenvio prejudicial porquanto “tem como fim evitar que se estabeleça em qualquer EM uma jurisprudência nacional em desacordo com as regras do direito comunitário”. Aos particulares está reservada a faculdade de se poderem prevalecer diretamente de disposições comunitárias, quando estas tenham efeito direto, e aos juízes nacionais a de “formular um pedido de forma direta e simples”, quando entendam ser necessário ao julgamento da causa. Será imperioso mencionar que, sobre os órgãos jurisdicionais superiores, impende uma obrigação de reenvio a título prejudicial quando os casos que julguem “não sejam suscetíveis de um recurso judicial previsto no direito interno” (como no acórdão que ora se analisa), excetuando-se no caso de se aplicar a doutrina do ato claro, cujos pressupostos foram desenvolvidos no Caso Cilfit (e para o qual se remete6). Importará reter que o mecanismo em apreço é entendido pela doutrina7 como uma “peça-chave na interpretação uniforme do direito comunitário europeu e a sua utilização, por parte das instâncias jurisdicionais nacionais, potencia ao juiz nacional o papel de juiz comum do ordenamento comunitário”. Nessa medida, e uma vez que se trata de um “mecanismo de cooperação judicial”, o domestic court, no acórdão em apreço (Tribunal Supremo), colocou várias reservas acerca da compatibilidade do regime previsto na CDT com o princípio da livre circulação de capitais. Com efeito, equaciona o Tribunal se a recusa do pedido formulado pelo BBVA (de dedução do imposto de montante devido na Bélgica) mais não seria do que uma restrição à liberdade anteriormente mencionada. Assim, com a perda da vantagem legitimamente atribuída pela Administração Fiscal belga, as sociedades, com sede em Espanha, iriam ser dissuadidas a fazer investimentos na Bélgica, na medida em que acabariam por pagar, no EM da sua sede social, o IS de que eram devedoras, mas sobre o qual beneficiaram de uma isenção no país de investimento. Perante esta dúvida, o Tribunal Supremo suspendeu a instância questionando ao TJUE sobre a compatibilidade desta situação com os arts. 63.º e 65.º TFUE.

CAPÍTULO II – A Decisão: Momentos do Raciocínio do Tribunal Tivemos oportunidade de compreender a importância do mecanismo de reenvio prejudicial, previsto no art. 267.º TFUE, na medida em que “por essência se trata de um instrumento de cooperação judiciária (…) mediante o qual a jurisdição nacional e o Tribunal de Justiça, no quadro das respetivas competências, são chamados a contribuir

4

No acórdão levanta-se ainda a questão da admissibilidade do pedido de decisão prejudicial. O Governo Português ter-se-á pronunciado pela sua inadmissibilidade invocando para tanto o problema da aplicação da lei no tempo. Alegou que a interpretação dos arts. 63.º e 65.º TFUE seria irrelevante para o litígio, dado que este se reporta ao ano de 1991, quando os arts. 73.º-B e 73.º-D apenas foram inseridos no TCEE em 1992. Não obstante, o TJUE entendeu ser competente para responder à questão prejudicial formulada, julgando improcedente a exceção de inadmissibilidade invocada pelo Governo Português. Por esse facto afigura-se despiciendo fazer-lhe referência diretamente aquando a indicação da questão prejudicial porquanto não teve influência na decisão final. 5 Ac. 24.05.1997, Hoffmann Laroche e Ac. 6.10.1982, Caso Cilfit – C283/82 6 Os referidos pressupostos estão também desenvolvidos em JOÃO MOTA DE CAMPOS e JOÃO LUIZ DE MOTA CAMPOS, “Manual de Direito Europeu”, 6.ª Edição, Almedina 7 Com J. M. DE FARAMIÑAN e M.ª C. MUÑOZ 11

O Acórdão BBVA e a Livre Circulação de Capitais

direta e reciprocamente para a elaboração de uma decisão, com vista a assegurar a aplicação uniforme do Direito Comunitário no conjunto dos EM”.8 Propomo-nos agora a verificar a compatibilidade das normas internas, invocadas no acórdão sob anotação, com o ordenamento europeu, verificando para tanto quais os momentos típicos do raciocínio jurisprudencial, de acordo com o esquema proposto por JOÃO FÉLIX NOGUEIRA9. Primeiramente, o tribunal determina, na sequência do pedido de decisão prejudicial apresentado, a liberdade de circulação de capitais como a “esfera de atuação ou proteção” que pode estar “ameaçada”. É pacífico, como de resto resulta da Diretiva 88/361/CEE, que os “operadores do mercado interno da UE podem movimentar livremente os capitais de que disponham ou que obtenham no mercado financeiro, transferindo-os de EM para EM”. A contrario do que foi exposto não restam dúvidas que são proibidas quaisquer restrições aos movimentos de capitais no sentido de colocar entraves aos “promotores económicos quando estes devem encontrar para si a melhor aplicação e rentabilidade dos seus capitais disponíveis.”. Nesse sentido resulta a importância de se “eliminarem as regulamentações estatais” que, de alguma forma, impeçam a utilização eficiente do fator capital. Ao art. 63.º TFUE, o TJUE reconheceu-lhe efeito direto significando com isso que os particulares passam a ter a faculdade de invocar esta norma “quando pretendam impugnar restrições estatais aos movimentos de capitais ou decisões estatais decorrentes dessas restrições.”. Nas palavras de SOFIA OLIVEIRA PAIS “de uma liberdade sem efetividade, antes dos anos noventa, a liberdade de circulação de capitais tornou-se numa das liberdades mais amplamente concretizadas.”. No acórdão ora em análise, o TJUE centra-se exclusivamente em tentar aferir, no seguimento do pedido de decisão prejudicial apresentado pelo domestic court, se existe uma restrição à liberdade de circulação de capitais que, na prática, conduziria a que as empresas com sede social em Espanha se sentissem demovidas de investirem os seus capitais na Bélgica. Eventualmente poder-se-ia equacionar se não estaríamos também perante outras liberdades fundamentais, designadamente a liberdade de estabelecimento. É frequente, na doutrina, colocar-se “a questão da delimitação precisa do âmbito de aplicação da liberdade de circulação de capitais face a outras liberdades.”. A “delimitação clássica” é feita face à liberdade de circulação de mercadorias mas cremos, à primeira vista, que poder-se-ia equacionar, no caso em concreto, a existência de uma restrição à liberdade de estabelecimento. De resto, o TJUE já reconheceu, de forma expressa, a interseção entre estas liberdades. O critério de distinção entre a liberdade de circulação de capitais e as restantes liberdades passa por olhar “ao objeto da legislação estatal que afeta a operação em causa”, mas tendo presente no horizonte que, perante as várias liberdades em exame, há uma que se destaca comparativamente às restantes. Estas, por sua vez, tornam-se, em relação a liberdade dita “principal”, secundárias. Reconhece também JOÃO FÉLIX NOGUEIRA que “poderão surgir dificuldades de enquadramento de uma situação” em relação à liberdade de circulação de capitais, sobretudo se tivermos em conta que “o exercício da liberdade de estabelecimento pode dar-se através da aquisição e detenção de participações sociais em pessoas coletivas com sede num outro EM.”. De forma lapidar, e na esteira da

8 9

Ac. Schwarze, Proc. 16/65 – 01.12.1965 Em “Direito Fiscal Europeu, O Paradigma da Proporcionalidade”, pág. 204 e ss.

Comentário ao Acórdão C-157/10 do TJUE

jurisprudência do TJUE, lança mão do critério da “influência decisiva”10 para solucionar a questão indicando que a tónica deverá ser colocada em saber se uma determinada “participação lhe confere uma influência certa sobre as decisões dessa sociedade e lhe permite determinar as respetivas atividades”, caso em que seria excluída a aplicação da liberdade de circulação de capitais11. Transpondo, para o caso em concreto, as conclusões da AG KOKOTT, no caso Bouanich12, cremos também ser plausível a aplicação simultânea da liberdade de estabelecimento e a livre circulação de capitais. Seguindo também o entendimento de ANA PAULA DOURADO, de que “as duas podem ser aplicadas lado a lado”, achamos defensável a posição da AG quando afirma que “o investimento de capital pode auxiliar o processo de estabelecimento noutro EM”. Pela conjugação de todas as considerações, melhor explanadas supra, cremos que, perante a matéria factual dada como assente, o tribunal reconduziu-a única e exclusivamente à liberdade de circulação de capitais, analisando a compatibilidade desta em primeiro lugar, porque terá entendido que a liberdade de estabelecimento se terá tornado, no processo em causa, numa liberdade “secundária” face àquela. Saliente-se ainda, tal como no caso Baars, também no acórdão em análise, mutatis mutandis, o TJUE poderá ter entendido não ser necessário levantar a questão da compatibilidade com a liberdade de estabelecimento, não significando com isso que entenda ser irrelevante13. Em suma, pretendemos avançar com a tese de que o TJUE poderá ter entendido que a liberdade de estabelecimento se subsumiu à livre circulação de capitais (rectius se o Tribunal entendeu não se verificar uma restrição quanto à segunda naturalmente que não se coloca uma restrição quanto à primeira face aos factos expostos). Adicionalmente, em nenhum momento, a recorrente alega que lhe foram criados obstáculos, pelo país de investimento, ao “direito de exercer a sua atividade”, tornando mais difícil a “constituição, o estabelecimento e gestão de empresa14” sobretudo quando comparado com os nacionais do país de estabelecimento.

Determinada a liberdade fundamental afetada passaremos a aferir da ingerência sobre esta procurando apreciar se “a norma tributária interna traduz uma limitação, compressão, opressão ou mesmo recorte da esfera de proteção”. Seguiremos o raciocínio proposto por CATHERINE BARNARD e, nesse sentido, começaremos por fazer uma ressalva ao facto de a autora afirmar que o TJUE não se tem mostrado consistente com a sua terminologia, falando numas vezes em restrições e obstáculos e noutras em discriminação. Na verdade, independentemente da fórmula utilizada, o raciocínio do Tribunal passa “por partir do princípio que há uma violação do art. 63.º TFUE. Posteriormente considera se o direito nacional pode ser justificado à luz da jurisprudência ou, mais comummente, ao abrigo de derrogações gerais expressas e se as medidas tomadas são proporcionais.”15 (trad. nossa). Quanto à jurisprudência, 10

Cfr. ANA PAULA DOURADO, “Lições de Direito Fiscal Europeu, Tributação Direta”, refere-se à existência ou não de uma “influência certa”, pág. 106. 11 No mesmo sentido ANA PAULA DOURADO, ibidem 12 Ac. Bouanich, Proc. 265/04 – 19.01.2004 13 Ac. Baars, Proc. 251/98 – 13.04.2000 14 Nesse sentido, o Ac. Haribo Lakritzen Hans Riegel, C-436/08 e C-437/08, de 10.02.2011, em que se considerou ser aplicável unicamente a liberdade de circulação de capitais (e não a liberdade de estabelecimento) a uma determinada legislação pelo facto de as participações sociais adquiridas terem tido, como único objetivo, “a realização de uma aplicação financeira sem intenção de influenciar a gestão e controlo da empresa”. 15 CATHERINE BARNARD, "The Substantive Law of The EU, The Four Freedoms" 13

O Acórdão BBVA e a Livre Circulação de Capitais

declara ainda que esta se tem bastado com o facto de a medida nacional ser “suscetível de dissuadir ou deter” a livre circulação de capitais. No acórdão sob anotação, o TJUE indica a necessidade de, em primeiro lugar, verificar se o domestic law constitui uma restrição à livre circulação de capitais. Assim, teremos de fazer uma tentativa de compaginação da medida nacional com o direito comunitário. Com efeito, o raciocínio obriga, antes de mais, a verificar se a medida implica uma discriminação direta, por violação do art. 63.º TFUE. Naturalmente que se excetuam os casos previstos no art. 65.º TFUE, quando sejam proporcionais e estejam em causa razões de segurança jurídica. Outros casos haverá em que teremos de equacionar se a medida é suscetível de restringir a livre circulação de capitais. Em caso afirmativo estaremos também perante uma violação do art. 63.º TFUE, salvo justificada “por razões de ordem ou de segurança pública”, não dispensando, contudo, o controlo da proporcionalidade. No caso BBVA, o raciocínio do Tribunal passou por reverter a um modelo de não discriminação, embora sob o título amplo de restrição. A solução encontrada foi idêntica à do caso Kerckhaert-Morres16. Assim, “do exercício paralelo das competências fiscais dos diferentes EM” podem surgir inconvenientes, residindo o cerne da questão em saber se esse exercício será ou não discriminatório. Quando não o seja não existe qualquer restrição à liberdade de circulação. De resto, na mesma linha de orientação, também o Tribunal tinha chegado a solução análoga no caso Damseaux17. E provando também que a solução encontrada não é inédita, o TJUE já se tinha pronunciado, no caso Orange European Smallcap Fund18, sobre as desvantagens do exercício paralelo das competências fiscais de cada EM (mais uma vez tal como em Kerckhaert-Morres). Porém, introduz uma especificidade em relação a estas situações ao consagrar a possibilidade de o estado da residência poder prever uma compensação no caso de se verificar as referidas desvantagens, acrescentando que “tal faculdade deve ser exercida em conformidade com o direito comunitário”. Da resenha jurisprudencial prosseguida, verificamos que a solução do tribunal, em traços gerais, passa, como já foi mencionado anteriormente, por uma remissão para a questão da não discriminação, não podendo, contudo, deixar de se questionar se a medida (substancialmente) impede a livre circulação de capitais ou não. Assim teremos que verificar se, perante o domestic law, os lucros obtidos na Bélgica não são tratados de forma discriminatória face aos lucros obtidos em Espanha. E para tal será necessário (como de resto o TJUE já o tinha referido no caso Royal Bank of Scotland19) verificar se ambos “se encontram numa situação objetivamente comparável”, sendo que, em caso afirmativo, a discriminação pode “consistir na aplicação de regras diferentes a situações comparáveis ou na aplicação da mesma regra a situações diferentes”. Pelo exposto, conclui o Tribunal que a posição de um contribuinte, à luz do direito espanhol, “não se torna necessariamente diferente pelo simples facto de receber lucros de um devedor com sede noutro EM.” (considerando n.º 42). Optamos ainda em fazer uma breve alusão à questão das disparidades uma vez que, de uma análise perfunctória do caso, poder-se-ia equacionar a sua aplicação. Notese, no entanto, que esta não se trata de uma “verdadeira ingerência”, razão pela qual não desencadeia um juízo de incompatibilidade com o direito europeu. Nas palavras do AG GEELHOED20, trata-se de “situações que resultam inevitavelmente da coexistência dos sistemas fiscais”, provocando efeitos sobre o exercício das referidas liberdades, mas 16

C-513/04, 14.11.2006 C-128/08, 16.07.2009 18 C-194/06, 20.04.2008 19 C-311/97, 29.04.1999 20 Conclusões do AG no C-446/04, de 06.04.2006 apud JOÃO FÉLIX PINTO, “Direito Fiscal Europeu…” 17

Comentário ao Acórdão C-157/10 do TJUE

que mais não são do que “a normal consequência da manutenção da soberania tributária em termos de fiscalidade direta”. No caso BBVA, impedindo que eventuais dúvidas se levantassem sob a questão, o TJUE indica expressamente que a desvantagem alegadamente sofrida pelo recorrente não resultou numa consequência (normal) da dupla tributação dos lucros por ele auferidos (sobretudo se tivermos em conta que estes apenas foram tributados no estado da residência e as partes tinham já celebrado uma CDT) mas antes na impossibilidade de beneficiar de uma vantagem fiscal atribuída pela legislação belga.

Num terceiro momento, em que pretendemos averiguar a existência de uma causa de justificação legítima (para a ingerência à liberdade fundamental), devemos partir do pressuposto de que uma norma discriminatória ou restritiva não será bastante para podermos “concluir que a mesma é incompatível com uma das liberdades fundamentais”, até porque mesmo que tal se verifique, ainda assim, esta pode ser “considerada admissível, sempre que essa compressão ou limitação seja justificável”. Outra ideia que deveremos ter presente é que a “a lista de justificações está em aberto”21 (trad. nossa), embora com a ressalva de que “na prática o Tribunal raramente considera que as justificações são feitas sobre os factos ou, se são, então descobre que as medidas tomadas não são proporcionais”22. Como já tivemos oportunidade de referir anteriormente, as causas de justificação previstas no TFUE, no âmbito da livre circulação de capitais, encontram-se referidas no art. 65.º do diploma (“justificações dentro do catálogo”). Todavia, à data dos factos no processo principal, vigorava o art. 67.º do Tratado CEE. Posteriormente havia sido aprovada a Diretiva 88/361/CEE através da qual se pretendeu, por um lado, suprimir todas as restrições subsistentes aos movimentos de capitais entre residentes dos EM, e, por outro, através do art. 1.º, n.º 1 do aludido diploma, dar execução ao referido art. 67.º do Tratado CEE. A diretiva consagrou o princípio da proibição de restrições aos movimentos de capitais, reconhecendo-lhe o TJUE efeito direto (o que significa que os particulares passam a ter a faculdade de se poderem prevalecer diretamente desta disposição comunitária). O texto incluía uma standstill clause que autorizava determinados EM a tomarem medidas de proteção, sendo que, no caso da Espanha (art. 6.º, n.º 2), eram permitidas restrições permanentes, ainda que durante um certo tempo (até 31 de Dezembro de 1992). O litígio que opôs o BBVA à recorrida, por uma desvantagem alegadamente sofrida por aquela entidade, diz respeito ao exercício fiscal de 1991. Ora, perante o quadro factual exposto, o Tribunal soluciona a questão em dois passos. Primeiramente “há que verificar se uma legislação como a que está em causa no processo principal constitui uma restrição à livre circulação de capitais na aceção do art. 1.º, n.º 1 da Diretiva 88/361/CEE”. Verificando-se uma restrição da liberdade em causa, num segundo momento, dever-se-á verificar se os movimentos de capitais que originaram o pagamento dos lucros em causa estão ou não abrangidos pela exceção constante do art. 6.º, n.º 2 do mesmo diploma (e que remete para as listas III e IV do anexo IV da diretiva). O raciocínio do Tribunal apenas fica completo quando expressamente remete para o domestic court a função de interpretar o direito interno espanhol, designadamente quanto às modalidades de tributação dos lucros obtidos em Espanha. Quando os lucros em causa estejam sujeitos a uma das modalidades previstas na Ley del Impuesto sobre Sociedades, de seguida dever-se-á aplicar diretamente a Ley 21 22

CATHERINE BARNARD, “The Substantive Law of The Europe…” BARNARD, ibidem 15

O Acórdão BBVA e a Livre Circulação de Capitais

General Tributaria (diploma que permite, no momento da dedução do montante de imposto, deduzir integralmente outros montantes devidos ou pagos, mesmo que tenham sido objeto de isenção). O raciocínio apenas ficará completo quando o órgão jurisdicional de reenvio, “que tem competência exclusiva para interpretar o direito nacional”, averigue se o tratamento a que estão sujeitos os lucros obtidos na Bélgica é distinto do tratamento dos lucros obtidos em Espanha (no que respeita à possibilidade de deduzir um imposto devido mas não pago). Adicionalmente, no acórdão sob anotação, o Tribunal indica especificamente que entende a discriminação como consistindo “não só na aplicação de regras diferentes a situações comparáveis, mas também na aplicação da mesma regra a situações diferentes” pelo que, a contrario, concluímos que apenas poderá haver um tratamento diferenciado entre lucros obtidos em Espanha e na Bélgica quando as duas situações “não sejam objetivamente comparáveis”. Contudo, tal facto é ao órgão jurisdicional de reenvio que incumbe verificar.

Chegamos ao momento em que o Tribunal, pese embora reconheça a validade das justificações, pretende aferir se a validade da medida interna em exame é ou não “apropriada para a prossecução do fim legítimo (causa de justificação) que prossegue”. Propomo-nos a transpor para o acórdão em análise a fórmula Gebhard procurando divisar a existência de três momentos: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. O primeiro momento do raciocínio jurisprudencial, nesta concreta etapa, assenta em aferir da adequação da norma interna ingerente “para garantir a realização do objetivo interno que prossegue”. Para tanto, ao Tribunal queda verificar a “finalidade concreta” prosseguida por determinada medida, ou seja, “se a medida é efetivamente capaz de implementar o objetivo prosseguido”. Posteriormente deveremos apreciar se a norma interna será necessária para alcançar um determinado fim (e aqui poderemos entender quer como sendo necessária para atingir um dado objetivo ou, em alternativa, se constitui o meio menos lesivo de implementar um dado fim). Independentemente do modelo adotado pelo Tribunal, o critério da necessidade falece quer venha a ultrapassar o necessário quer se encontre “uma medida menos restritiva, menos gravosa ou menos atentatória da liberdade fundamental em questão”. Por último, a medida interna não se poderá revelar como uma “medida cujos efeitos negativos sobre as liberdades fundamentais e sobre a construção do mercado interno seja substancialmente superior às vantagens que a mesma introduz em relação a um específico objetivo interno”. Se pretendermos fazer um exercício de comparação, do acórdão sob anotação, quanto ao ponto referente ao controlo da proporcionalidade, para melhor compreensão da questão, com outras decisões do TJUE, pensemos no caso Ospelt23. No referido acórdão, o Tribunal pronunciou-se sobre uma exigência de autorização prévia antes de comprar terras agrícolas. O raciocínio do referido órgão jurisdicional passou por considerar a referida autorização como justificável, no sentido em que seria necessária e adequada aos objetivos prosseguidos (de garantir a preservação das terras agrícolas para aqueles que as efetivamente pretendiam usar). Embora reconhecendo a validade das justificações apresentadas, considerou que a exigência de “autorizações prévias” não seriam proporcionais (sobretudo no caso concreto em que se pretendia a compra da terra não para cultivá-la mas para arrendá-la a potenciais interessados que as quisessem cultivar). O que nos propomos a demonstrar é que, se em Ospelt, o Tribunal sentiu 23

C-452/01, de 23.09.2003

Comentário ao Acórdão C-157/10 do TJUE

necessidade de desenvolver cabalmente este último passo, tratando expressamente da questão da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, outros casos há em que a análise crítica dos elementos internos de controlo pode fazer-se da leitura da própria decisão. A tese com que pretendemos avançar é que os referidos elementos de controlo interno, no caso BBVA, podem ser retirados da própria decisão do TJUE. Pretendemos com isto afirmar que o Tribunal ao considerar que a norma interna é compatível com o direito comunitário (salvo, tratando-se de uma legislação que trate diferentemente os lucros dependendo da sua proveniência), esta é considerada “eficazmente capaz de implementar o objetivo prosseguido”, “necessária para alcançar um dado objetivo” e “proporcional” tendo em conta que se está a lidar com “interesses antagónicos”: de um lado, o interesse da comunidade e, do outro, o interesse dos EM. Acresce ainda que, não sendo os EM obrigados a adaptar os seus sistemas fiscais aos diferentes sistemas de tributação existentes nos restantes EM, nada os obriga a adaptar a sua legislação fiscal para que o contribuinte beneficie de uma vantagem fiscal. A solução final passa por saber se a legislação é ou não discriminatória, mas caberá ao domestic court, no âmbito das suas competências exclusivas, responder a essa questão.

17

O Acórdão BBVA e a Livre Circulação de Capitais

Conclusão I – Comentários Finais Chegados ao fim do nosso comentário não nos propomos a um resumo de tudo o que foi explanado anteriormente, mas antes consolidar a posição que temos vindo a firmar ao longo do mesmo. Pretendemos também destacar alguns pontos que futuramente poderão ser objeto de uma discussão aturada por parte doutrina. E, por essa razão, consideramos ser prematuro afirmar, sem reservas, que o caso BBVA se tenha tornado “num marco na jurisprudência fiscal do TJUE”. A estrutura argumentativa do Tribunal parte da afirmação de que os EM, regra geral, estão proibidos de limitar ou de dissuadir os movimentos de capitais com carácter transfronteiriço. Admite, naturalmente (aliás como já tivemos oportunidade de as enunciar), exceções a esses impedimentos, quer estas estejam previstas “dentro ou fora do catálogo” (leia-se TFUE). Adicionalmente, o TJUE entende que a única desvantagem que a recorrente sofreu foi ver-se impedida de beneficiar da vantagem fiscal atribuída pela legislação belga. Concretizando, admite ainda que não constituem restrições à livre circulação de capitais os inconvenientes que eventualmente resultem do exercício paralelo das competências fiscais dos diferentes EM, salvo quando esse exercício seja discriminatório. Com efeito, o Tribunal entende que se os EM não têm a obrigação de adaptar o seu sistema tributário aos diferentes sistemas fiscais, para evitar as situações de dupla tributação, por maioria de razão, não estão obrigados a adaptar a sua legislação para permitir que um contribuinte possa beneficiar de uma vantagem fiscal atribuída por outro EM. Cremos, na esteira do pensamento de JOÃO FÉLIX NOGUEIRA, que a única obrigação que recai sobre os EM é a de “verificar se, ao definir as suas regras internas, estas apresentam um cunho discriminatório”. A este propósito cumprirá ter presente, como ensina ALBERTO XAVIER, em respeito pelo princípio da não discriminação, “o Estado não poderá introduzir discriminações entre o tratamento fiscal das sociedades estritamente nacionais e o tratamento fiscal das sociedades estrangeiras, suas sucursais e filiais”. Cremos que o raciocínio jurisprudencial se revelou ponderado, equilibrado e, porque não, apurado ao reverter para um modelo de não discriminação puro e simples (em razão do lugar onde o capital foi investido), ainda que sobre o título amplo de restrições. Não obstante, há críticas que podem ser assacadas relativamente a determinados aspetos que deveriam ter sido mais amplamente discutidos. Tecemos vários comentários à medida que fomos escalpelando a linha de orientação do Tribunal, pelo que não os vamos desenvolver novamente. Pretendemos, no entanto, tecer uma última nota: pensamos que o TJUE se poderia ter pronunciado, justificando, pela aplicação alternativa ou cumulativa das liberdades de estabelecimento e de circulação de capitais no momento da determinação da liberdade fundamental afetada bem como um maior desenvolvimento do controlo de proporcionalidade. Já quanto à decisão propriamente dita, à semelhança de decisões anteriores do Tribunal, designadamente no acórdão Holböck24, parece-nos também que o único motivo pelo qual a liberdade de circulação de capitais não foi violada prende-se com a existência de uma standstill clause, prevista na Diretiva 88/361/CEE, que coloca o direito doméstico espanhol como não se opondo ao direito comunitário. E se essa é uma das principais críticas assacadas no caso Holböck, o TJUE, no caso BBVA, não termina o raciocínio por aqui. Tal como no caso Kerckhaert-Morres, mutatis mutandis, optou também pela reversão para o modelo de não discriminação. E se naquela decisão 24

C-157/05, 24.05.2007

Comentário ao Acórdão C-157/10 do TJUE

(Kerckhaert-Morres), o Tribunal expressamente afasta qualquer diferença de tratamento entre rendimentos provenientes de EM diferentes (já no caso BBVA o tratamento discriminatório dos lucros não foi sequer invocado), no acórdão sob anotação, o Tribunal entende que o domestic law será compatível com o direito comunitário contanto tal legislação doméstica não seja discriminatória, mas remetendo esse juízo para o órgão jurisdicional de reenvio. Por último, tratamos de um acórdão em matéria de fiscalidade direta, pelo que tal matéria é da responsabilidade dos EM, razão pela qual não existe uma harmonização baseada em diretivas (à semelhança da tributação indireta). Por esta razão, e porque a função do TJUE não é o de “construir um sistema harmonizado” mas de decidir questões que lhe sejam colocadas, em 2008, foi apresentada uma proposta para uma base consolidada de impostos diretos (CCCTB) que, emprestando as palavras de PASQUALE PISTONE, “é uma inovação no que respeita à coordenação estratégica de impostos e uma esperança na abertura da era da integração positiva ao nível da tributação direta” podendo, em termos futuros, ajudar a solucionar situações em que, tal como no acórdão BBVA, é necessário estabelecer um equilíbrio entre o direito às liberdades e à soberania fiscal dos EM.

II – Breve Nótula sobre o Caso Português Relativamente ao caso concreto da legislação fiscal portuguesa, e no caso de a recorrente ter sede ou direção efetiva em território português, dispõe o art. 51.º CIRC que devem ser “deduzidos os rendimentos, incluídos na base tributável, correspondentes a lucros distribuídos” desde que “a sociedade que distribui os lucros tenha a sede ou direção efetiva no mesmo território e esteja sujeita e não isenta de IRC” além de que “a entidade beneficiária deve deter diretamente uma participação, no capital da sociedade que distribui os lucros, não inferior a 10%”. Tratando-se de lucros distribuídos, tendo a sociedade sede ou direção efetiva em Portugal, a dedução do crédito de imposto por dupla tributação está disciplinada no art. 91.º CIRC.

19

O Acórdão BBVA e a Livre Circulação de Capitais

Referências Bibliográficas ARRIBAS, Juan José Martín y Patricia Dembour van Overbergh, "La Cuéstion Prejudicial a la Luz del Artículo 68 del Tratado de La Comunidad Europea", Revista de Derecho Comunitario Europeo, Centro de Estudios Politicos y Constitucionales, Núm. 9, Año 5, Enero - Junio, 2001 BARNARD, Catherine, "The Substantive Law of The EU - The Four Freedoms", Second Edition, Oxford (especialmente pp. 534 a 547, Free Movement of Capital and Economic and Monetary Union) BOLETÍN DE FISCALIDAD INTERNACIONAL: Actualización de legislación, jurisprudencia y doctrina administrativa, Tax, Enero 2012, disponível para download em www.kpmg.com/es BOLETÍN INFORMATIVO DE DERECHO DE LA UNION EUROPEA, Boletín n.º 6/2011 (Noviembre - Deciembre), disponível para download em www.mjusticia.gob.es CAMPOS, João Mota de e João Luiz Mota de Campos, "Manual de Direito Europeu - O sistema institucional, a ordem jurídica e o ordenamento económico da União Europeia", 6.ª Edição, Coimbra Editora, 2010 CASTILLO, Teresa Fajardo del, "Principios del Derecho Comunitario y Aplicación Judicial en España en los Años 2003 y 2004", Revista de Derecho Comunitario Europeo, Centro de Estudos Politicos y Constitucionales, Año 10, Núm. 23, Enero - Abril, 2006 DOURADO, Ana Paula, "Lições de Direito Fiscal Europeu - Tributação Direta", 2010, Coimbra Editora EUROPEAN TAX REPORT, European Professional Law Report, December 2011, disponível para download em www.iec-iab.be FRAGA, Tiago, "Controlos Fiscais e Restrição das Liberdades Fundamentais na Tributação Direta", Fiscalidade - Revista de Direito e Gestão Fiscal, Edição do Instituto Superior de Gestão (43), Julho - Setembro, 2010 MATOS, Pedro Vidal, "Reverse Discrimination and Direct Taxation in The EU", Fiscalidade - Revista de Direito e Gestão Fiscal, Edição do Instituto Superior de Gestão (44), Outubro - Dezembro de 2010 MESQUITA, Maria Margarida Cordeiro, "As Convenções sobre Dupla Tributação", Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (179), Centro de Estudos Fiscais (Direção Geral dos Impostos - Ministério das Finanças), Lisboa, 1998 NEWSFLASH - EU Direct Tax Group, NF 2011 - 031, 21.12.2011, PricewaterhouseCoopers, disponível para download em www.pwc.com NOGUEIRA, João Félix Pinto, "Direito Fiscal Europeu - O Paradigma da Proporcionalidade", 2010, Coimbra Editora

Comentário ao Acórdão C-157/10 do TJUE

PAIS, Sofia Oliveira (coord.), "Princípios Fundamentais de Direito da União Europeia - Uma Abordagem Jurisprudencial", 2.ª Edição, Almedina, 2012 PIRES, Rita Calçada, "Notas de Reflexão: Acordos para evitar a dupla tributação no direito internacional fiscal do século XXI", Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal", Ano 1, Número 2 - Verão, Junho/2008 ROCHA, Miguel Leónidas e Ricardo Jorge Almeida, "O Mecanismo de Eliminação da Dupla Tributação Internacional - Particularidades", Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, Ano 2, Número 3 - Outubro, 2009 SANCHES, J. L. Saldanha, "A Evolução Fiscal Europeia: Mitos e Realidades", Fisco, 80 - 81, 1997, disponível para download em www.saldanhasanches.pt SILVEIRA, Alessandra, "Princípios de Direito da União Europeia - Doutrina e Jurisprudência", 2.ª Edição (atualizada e ampliada), Quid Iuris, 2011 WEATHERILL, Stephen and Paul Beaumont, "EC Law - The Essencial Guide of legal working of the European Community", Penguin Books, 1995 XAVIER, Alberto, "Direito Tributário Internacional", 2.ª Edição Atualizada, com a colaboração de Clotilde Celorico Palma e Leonor Xavier, Almedina, Setembro de 2011

21

O Acórdão BBVA e a Livre Circulação de Capitais

Jurisprudência Consultada C-128/08, 16.07.2009 - Ac. Damseaux C-157/05, 24.05.2007 - Ac. Holböck C-16/65, 01.12.1965 - Ac. Schwarze C-194/06, 20.05.2008 - Ac. Orange European Smallcap Fund C-222/97, 16.03.1999 - Ac. Trummer e Mayer C-251/98, 13.04.2000 - Ac. Baars C-265/04, 19.01.2004 - Ac. Bouanich C-283/82, 6.10.1982 - Ac. Cilfit C-311/97, 29.04.1999 - Ac. Royal Bank of Scotland C-436/08 e C-437/08, 10.02.2011 - Ac. Haribo Lakritzen Hans Riegel C-452/01, 23.09.2003 - Ac. Ospelt C-513/04, 14.11.2006 - Ac. Kerckhaert e Morres C-85/76, 24.05.1997 - Ac. Hoffman Laroche

Comentário ao Acórdão C-157/10 do TJUE

Abreviaturas AG - Advogada-Geral Arts. – artigos BBVA – Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, S.A. CDT – Convenção destinada a evitar a dupla tributação E.M. – Estado-Membro IS – Impuesto sobre Sociedades N.º – número Proc. – Processo TCEE – Tratado da Comunidade Económica Europeia TFUE – Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia TJUE – Tribunal de Justiça da União Europeia UE – União Europeia

Sites relativos a fiscalidade consultados www.fiscooggi.it www.iec-iab.be www.kpmg.com/es www.mjusticia.gob.es www.pwc.es www.saldanhasanches.pt

23

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.