Communication and Society: contemporary media transformations / Comunicação e Sociedade: transformações midiáticas no contemporâneo.

May 26, 2017 | Autor: Diego Salcedo | Categoria: Media Studies, Media and Cultural Studies, Visual Culture
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COMUNICAÇÃO E SOCIEDADE transformações midiáticas no contemporâneo

Angela Prysthon Diego A. Salcedo Talita Rampazzo Diniz [Organizadores]

COMUNICAÇÃO E SOCIEDADE transformações midiáticas no contemporâneo

Recife, 2012

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos e videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial em qualquer sistema de processamento de dados e a inclusão de qualquer parte da obra em qualquer programa juscibernético. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. Capa: Victor Cavalcante Projeto gráfico e diagramação: Gabriel Santana Montagem e formatação: Editora Universitária/UFPE Editora associada à ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS EDITORAS UNIVERSITÁRIAS

Catalogação na fonte: Bibliotecária Joselly de Barros Gonçalves, CRB4-1748

C741

Comunicação e sociedade [recurso eletrônico] : transformações midiáticas no contemporâneo / organizadores: Angela Prysthon, Diego A. Salcedo, Talita Rampazzo Diniz. – Dados eletrônicos. – Recife : Ed. Universitária da UFPE, 2012. Modo de acesso: World Wide Web. ISBN 978-85-415-0183-5 1. Comunicação. 2. Sociedade. 3. Jornalismo. 4. Cultura. 5. Imagem. 6. Cinema. I. Prysthon, Ângela (Org.). II. Andres Salcedo, Diego, 1972(Org.). III. Diniz, Talita Rampazzo (Org.). 302.23 – CDD (23.ed.)

UFPE (BC2013-020)

SUMÁRIO Prefácio........................................................................................................... 9 Reflexões Sobre Jornalismo, Sociedade em Rede e Coparticipação da Audência................................................................... 13 Introdução.................................................................................................... 13 Para início, umas considerações sobre sociedade em rede.................... 14 Sociedade em rede e mudanças no Jornalismo....................................... 15 De receptor à fonte coprodutora de notícias........................................... 19 Um panorama brasileiro............................................................................. 21 Considerações Finais.................................................................................. 23 Referências................................................................................................... 25 Mudanças no Telejornalismo: Desafios da Pesquisa Acadêmica Propositiva na Era da TV Digital........................................................... 29 Transformações no telejornalismo: dos formatos analógicos à emergência do digital........................................................... 29 Demandas da pesquisa em comunicação para a proposição de conteúdo telejornalístico................................................... 34 Experimentos em telejornalismo para a TV digital................................ 40 Considerações Finais.................................................................................. 43 Referências................................................................................................... 45

Então, No Que Se Transformou o Jornalismo?.................................... 47 Introdução.................................................................................................... 47 Uma breve discussão sobre o jornalismo e o seu campo....................... 50 Sobre como se entende a interatividade e a participação....................... 56 Limites entre quem controla e quem informa a notícia......................... 62 Referências................................................................................................... 67 A Vez Do Queer: Aportes Epistemológicos Sobre Os Estudos De Gênero Na Atual Pesquisa Em Comunicação No Brasil.................... 69 Introdução.................................................................................................... 69 Plurais ou diferentes – como e por que categorizar?.............................. 72 Identidade e diferença na construção do gênero Queer........................ 76 Comunicação e Pesquisa: Invasões Queer............................................... 78 Referências................................................................................................... 81 Etnicidade, Miscigenação E Negritude: Diálogos, Perigos e Ambiguidades........................................................................... 83 Introdução.................................................................................................... 83 Raça, Etnicidade e Cultura......................................................................... 85 Miscigenação e democracia racial: perigos e ambiguidades.................. 88 Considerações finais................................................................................... 98 Referências................................................................................................. 101

Identidades E Identidades Nacionais: Por um Estatudo do Selo Postal........................................................................... 103 Um prólogo necessário............................................................................. 103 Das identidades nacionais: nacionalismo no selo postal..................... 113 Referências................................................................................................. 127 As Pertinências Do Afeto....................................................................... 131 Alguns pressupostos.................................................................................. 131 Problemas de método............................................................................... 140 Cena 1: contágio........................................................................................ 145 Cena 2: gesto.............................................................................................. 146 Cena 3: espectatorialidade....................................................................... 148 Referências................................................................................................. 151 Novíssimos e Fluídos. Uma Análise Acerca das Peculiaridades Estéticas do Novíssimo Cinema Brasileiro......................................... 153 O novíssimo cinema brasileiro................................................................ 154 • Coletivos cinematográficos................................................................... 154 • Peculiaridades do Modus operandi...................................................... 154 Alguns filmes............................................................................................. 156 Referências................................................................................................. 167

Os oito artigos que compõem este volume foram elaborados ao longo do primeiro semestre de 2011 na disciplina Seminário de Tese do Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM), da Universidade Federal de Pernambuco. Nosso objetivo foi apresentar as bases das pesquisas da turma de 2010, principalmente no que se refere aos aportes metodológicos, tendo em vista um público mais amplo, que pudesse se beneficiar de textos mais abrangentes sobre o estado da arte da pesquisa no PPGCOM. Ou seja, a ideia foi, para além das especificidades inerentes a cada tema de doutoramento e a cada autor, apresentar alguns problemas comuns, alguns questionamentos coletivos pertinentes às linhas de pesquisa do Programa e, sobretudo, à própria área de concentração. Agradeço aos alunos o empenho, a confiança e o entusiasmo por esse projeto e a Marco Mondaini pela acuidade de leitura ao prefaciar Comunicação e Sociedade.

Angela Prysthon Julho de 2012

PREFÁCIO Apresentar um livro que reúne artigos escritos por discentes de um Programa de Pós-Graduação em Comunicação já seria, por si só, motivo de grande satisfação, para alguém que, como eu, tem sua formação vinculada ao estudo dos processos histórico-sociais. No entanto, tal satisfação foi grandemente potencializada no momento exato em que me dei conta de que os futuros doutores responsáveis pela construção do presente volume lançaram-se no esforço de empreender um fértil diálogo entre comunicação e sociedade, diálogo este vital para quem observa na formação social o húmus de onde brotam os fenômenos comunicacionais em geral. Assim, divididos em três eixos temáticos (“Jornalismo e sociedade em rede”, “Cultura e sociedade” e “Imagem e sociedade”) os oito capítulos que compõem a presente coletânea expressam um compromisso comum de refletir sobre a comunicação de maneira tal a não deixar escapar por entre os dedos uma realidade social cada vez mais velada por estudos de natureza tecnicista-formalista. Ora, para quem, além do ofício de historiador, teve, por um lado, uma iniciação teórico-metodológica vinculada à razão dialética marxista, em particular na sua vertente gramsciana – iniciação essa que, em determinado momento, abriu-se às inovações trazidas pela genealogia do poder foucaultiana – e, por outro lado, suas opções ético-políticas enraizadas na crítica ao caráter opressor e explorador do modo de produção capitalista, ter entrado em contato com textos preocupados com a inseparável relação existente entre comunicação e sociedade, reforçou a

ideia de que algo se move num campo acadêmico que se imagina impregnado por uma espécie de inércia (a)crítica. Isso porque, ao trazer a reflexão sobre a experiência comunicacional para o universo do diálogo com o social, abre-se um espaço possível (quiçá propício!) para a emersão do espírito crítico tão necessário nesses nossos tempos de refluxo das utopias – utopias essas que tanto necessitam, para o seu desbloqueio, da força da comunicação. Dentro desse contexto de aproximação entre comunicação e sociedade, na primeira parte do livro, é o jornalismo a ser colocado no centro das discussões, por meio da reflexão acerca de três desafios principais: 1. Os desafios impostos ao jornalismo em uma sociedade em rede, caracterizada pelo avanço de novas tecnologias e pelo crescente acesso à internet (Giovana Mesquita); 2. Os desafios apresentados à pesquisa acadêmica diante das inovações tecnológicas levadas a cabo no telejornalismo, em tempos de TV digital (Lívia Cirne); 3. Os desafios introduzidos no interior do campo jornalístico junto ao desenvolvimento da interatividade e da participação (Talita Rampazzo). Na segunda parte do livro, o foco principal das análises recai sobre os fenômenos culturais: em primeiro lugar, com a discussão de natureza epistemológica travada em torno do tema gênero no campo da Comunicação, fazendo um balanço que vai desde o surgimento dos primeiros estudos de gênero nos anos 1980 até o advento da teoria Queer, no início do século XXI (Daiany Dantas); em segundo lugar, com o debate de caráter conceitual sobre etnicidade, miscigenação e negritude, e sua utilização no campo das disputas simbólicas travadas no cotidiano, responsáveis tanto pela legitimação de mitos construídos em torno da questão racial no Brasil, como pelo seu questionamento crítico (Kywza Fideles); em terceiro lugar, com o fascinante estudo realizado sobre identidade nacional a partir da visualização do selo postal, nascido no século XIX europeu, como uma manifestação mate-

rial humana que traz consigo discursos e relações de poder, identidades e diversidades em constante disputa (Diego Salcedo). Por fim, na terceira parte do livro, o cinema assume a centralidade das reflexões de duas maneiras diversas, ainda que tendo em comum a preocupação em relacionar estética e política: de um lado, por intermédio da proposta de se pensar o cinema a partir do afeto, da relação estabelecida entre o corpo e a câmera (Fábio Ramalho); de outro lado, por meio da apresentação das características que distinguem o novíssimo cinema brasileiro, um cinema independente e inovador que colabora para uma produção fluída e híbrida, um cinema feito por coletivos, que tem como principal marca a resistência frente aos valores e normas impostos pela indústria cinematográfica tradicional (Iomana Rocha). Ainda que não relacionados diretamente à questão do “direito humano à comunicação” e da “democratização dos meios de comunicação de massa”, ou ainda da “liberdade de expressão”, os artigos contidos no presente volume são capazes de criar um “caldo de cultura” favorável à sua discussão, à medida que trazem à tona inúmeras expressões da relação existente entre comunicação e sociedade, ou então, poderia dizer sem exageros, vários sinais de uma politização da comunicação. Em tempos como estes em que vivemos, marcados pela criminalização dos movimentos sociais e pela reiterada violência simbólica contra indivíduos e grupos sociais mais fragilizados – práticas que contam com a conivência e até mesmo com a colaboração dos meios de comunicação de massa –, politizar o debate acerca da comunicação representa a sinalização de crescimento de uma perspectiva teórico-metodológica suficientemente crítica para descortinar os mecanismos de produção e reprodução do binômio criminalização/violência simbólica das camadas sociais subalternizadas. Dessa maneira, o que se pretende afirmar aqui é que, ao discutir o jornalismo, a cultura e a imagem nas suas relações com a sociedade, os artigos desse livro acabam por contribuir para a

politização do debate sobre a comunicação, isto é, nos dá instigantes subsídios para a identificação das relações de poder que permeiam a comunicação dentro de uma sociedade capitalista. Se fosse apenas essa a contribuição do livro organizado com maestria pela professora Angela Prysthon, a leitura dos oito artigos que o compõem já seria indispensável. Marco Mondaini

Historiador e Professor dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação e Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco

REFLEXÕES SOBRE JORNALISMO, SOCIEDADE EM REDE E COPARTICIPAÇÃO DA AUDÊNCIA Giovana Mesquita1

Introdução Na contemporaneidade, pensar a comunicação resulta numa ação cada vez mais complexa, visto que se observam mudanças estruturais na base do processo de produção, distribuição e acesso aos conteúdos midiáticos. A relação emissor-receptor experimenta alterações a partir do momento em que as novas tecnologias abrem possibilidades de participação no processo de produção e distribuição de conteúdos. As relações, até então bastante rígidas quanto às definições dos lugares de produção e reconhecimento, passam a ser vistas sob a lógica da interação entre essas instâncias (DALMONTE, 2009). Para Dalmonte (2009), com o advento e a difusão de tecnologias da comunicação que potencializam a capacidade de ação também do receptor, seja na escolha dos conteúdos, seja na participação da definição desses conteúdos, o próprio conceito “comunicação de massa” é questionado. O antigo modelo de “um para todos”, pressupondo a ação de um emissor forte frente à massa de receptores passivos, é confrontado pela realidade da comunicação em rede, caracterizada por instrumentos de comunicação que desempenham funções pós-massivas, ou seja, que reúnem fatores como: liberação do pólo da emissão, conexão mundial, distribuição livre e produção de conteúdo. O autor salienta que ao tentarmos abordar a dinâmica social da comunicação nos depararemos com a necessidade de dominar Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Email: [email protected]. 1

uma gama de definições que, se por um lado resultam de uma nomenclatura técnica, por outro, decorrem de contextos sociais, oscilando entre usos e expectativas. Diante disso, nos propomos nesse artigo a trazer algumas reflexões e conceitos que circundam o Jornalismo, num momento de mudanças possibilitadas pelas novas tecnologias e pelo acesso à Internet. Para início, umas considerações sobre sociedade em rede Cardoso (2007) argumenta que vivemos numa sociedade fundamentalmente diferente (em alguns casos em transição para essa diferença) da que conhecemos até o início dos anos de 1970. Essa sociedade é designada por Castells (2005) sociedade em rede, aquela que é caracterizada por uma mudança na sua forma de organização social, possibilitada pelo surgimento das tecnologias de informação, num período de coincidência temporal com uma necessidade de mudanças econômica (a globalização das trocas e movimentos financeiros) e social (a procura de afirmação das liberdades e valores de escolha individual e iniciada com os movimentos estudantis do Maio de 68). Para Cardoso (2007), nessa sociedade em rede a autonomia das escolhas está diretamente ligada com a nossa capacidade de interação com a mídia (definida por ele como todos os aparelhos de mediação e acesso à comunicação e informação). Porque sendo a espécie humana caracterizada pela comunicação, é ela que assegura o tecido social que construímos e em que vivemos. Além do mais a complexidade das nossas sociedades implica a necessidade de interagir permanentemente com, e entre, zonas especialmente diferenciadas e diferentes domínios dos relacionamentos social, profissional e cultural. Cardoso (2007) afirma que nosso mundo é um mundo de comunicação mediada por tecnologias, mas continua a ser também o mundo da comunicação face a face.

E embora a Internet promova redes a partir dos projetos espontâneos que surgem na sociedade sendo a plataforma mais adequada à sua afirmação, também é verdade que o exercício da autonomia não depende apenas da Internet. Não só porque a Internet, embora interligando todos os nós do exercício do poder na sociedade em rede, é ainda uma tecnologia minoritária em termos de acesso, mas também porque as identidades na vida cotidiana necessitam existir no espaço audiovisual que a Internet não nos oferece. Ele complementa que a Internet, por si só, não pode assegurar e permitir a gestão da autonomia individual e a participação social. O sucesso do exercício da cidadania, na sociedade em rede, depende da interligação em rede entre as diversas mídias, mas também do domínio individual das habilidades necessárias para interagir com as ferramentas de mediação, seja das que nos fornecem acesso à informação, seja das que nos permitem organizar, participar e influenciar os acontecimentos e as escolhas (CARDOSO, 2007). Sociedade em rede e mudanças no Jornalismo Nas democracias modernas, o Jornalismo tornou-se o espaço público dos confrontos discursivos que interessam à cultura e aos processos sociais, na construção do presente (CHAPARRO, 2009). Em uma sociedade em rede, o Jornalismo tem pela frente uma série de desafios: lidar com a interferência cada vez mais ativa da audiência na produção de conteúdos e na agenda da mídia; com a democratização das formas de acesso ao espaço público midiático e com o tempo de escolha, que se contrapõe ao tempo real (do receptor preso ao fluxo do aqui e do agora). Quando homens e mulheres começam a deixar de ser “receptores passivos” da televisão, do rádio e dos jornais para interferirem e participarem de uma forma mais efetiva do processo de produção de conteúdos para as mídias surgem inúmeras conceituações: jornalismo participativo (HOLANDA, 2007), webjor-

nalismo participativo (PRIMO; TRÄSEL, 2006), jornalismo open source ou de código aberto (HOLANDA, 2007; BRAMBILLA, 2005), jornalismo cidadão (GILLMOR, 2004; TARGINO, 2009), jornalismo comunitário, jornalismo de serviço público, jornalismo público e jornalismo cívico (TRAQUINA; MESQUITA, 2003). Mesmo com esse disenso conceitual é relevante destacar que “desde a expansão da Internet e a consequente emergência do webjornalismo, da blogosfera (com eventuais sites jornalísticos) e do jornalismo cidadão, a mídia convencional já não mantém soberania” (TARGINO, 2009, p. 173). A autora chama a atenção para uma nova realidade do Jornalismo, onde, hoje, as pessoas não são apenas receptoras do produto notícia. Elas têm ajudado, cada vez mais, a compor os conteúdos noticiosos das empresas de comunicação tradicionais. Essas formas de comunicação e de informação colaborativas vêm tomando forma na sociedade da informação, na fase denominada jornalismo digital de terceira geração, onde os sites jornalísticos incorporam outros media, sendo designados hipermediáticos, onde a interatividade e a hipertextualidade acentuam-se com a convergência dos meios e buscam suprir as demandas dos cidadãos de forma individualizada. A interatividade ainda prevê oportunidades de participação do internauta para expressar opiniões, votar, enviar produções em vídeo ou em outros suportes, embora essa liberdade esbarre nos limites preestabelecidos individualmente pelos sites (MIELNICZUK, 2003). Essas mudanças afetam o modelo de negócios do Jornalismo, a gestão das empresas, os modos de engajamento de seus profissionais e em função das inovações tecnológicas geram alterações nos processos de produção, distribuição e disseminação das notícias. Fausto Neto (2009) afirma que o processo intenso e crescente da midiatização sobre a sociedade e suas práticas sociais afeta de modo peculiar a cultura jornalística, seu ambiente produtivo,

suas rotinas e a própria identidade dos seus atores. Um desses efeitos aparece na relação que transforma as fontes e leitores em instâncias de coprodução da notícia. Fausto Neto tenta explicar esse cenário que se configura: Os efeitos da midiatização proporcionam às instituições e indivíduos acesso e manejo de equipamentos, e também aos processos e operações midiáticas, convertendo-os em novos personagens deste sistema de “codificação da realidade” O que sugere tal hipótese? Que há um cenário de novas questões que deve ser estudado por envolver uma nova problemática tecno-simbólica a atravessar a organização social contemporânea. Tal problemática por nós compreendida pela midiatização crescente das práticas sociais, afeta a cultura jornalística, o modo de ser de sua “comunidade interpretativa”; reformula o status da noticia (FAUSTO NETO, 2009, p. 19).

Para Fausto Neto (2009), tais mutações afetam principalmente um dos aspectos centrais que dizem respeito à natureza da autonomia do trabalho jornalístico, e que se refere à natureza do seu ‘lugar de fala’. Sem perder de todo a característica de seu trabalho enunciativo - o de representar discursivamente a vida das instituições - a existência destes novos processos de intersecção, reunindo fontes/jornalista/leitor nas novas condições reformula a concepção da autonomia sobre a qual a prática jornalística edifica seu ethos. Essa autonomia a que se refere Fausto Neto (2009) não é mais só afetada por antigos constrangimentos que balizavam as relações do Jornalismo com as instituições e os atores sociais, mas pelos efeitos dos processos de midiatização sobre estas instâncias. Ele explica: Nas relações de outrora, se apresentavam outros problemas que não punham em causa a natureza desta prática e da ‘pedagogia mediadora’ de seus peritos. Desta feita,

utilizando uma terminologia luhmanniana, o sistema jornalístico é irritado, de um modo inteiramente distinto, por fontes e leitores, com os mesmos estabelecendo relações de conflito e de cooperação. Estas três instâncias, estando dispostas na ambiência midiática, segundo certos processos relacionais, se constituem em atores que compartem, ainda que em níveis diferentes, a nova “liturgia da noticiabilidade”(FAUSTO NETO, 2009, p. 28).

São novas configurações cujas disposições incidem também nos modos de contatos e de conexões que o Jornalismo passa a construir com instituições e atores sociais. Com as instituições travam-se relações de conflito, especialmente pelo fato de ser uma zona que opera largamente apropriando-se ativa e, estrategicamente, das lógicas e operações de mídias. Um dos efeitos desta apropriação é a transformação da fonte da condição de paciente em um novo coparceiro crítico e fiscalizatório, e o jornal, num receptor de um discurso que sofre, muitas vezes, os reveses de novos processos de agendamentos. Com os atores sociais, a relação é de colaboração, no sentido de transformar leitores em espécies de coprodutores de determinada operação da noticiabilidade (FAUSTO NETO, 2009). Dessa forma, de acordo com Fausto Neto (2009), o sistema jornalístico restabelece fronteiras em nome de sua lógica de autonomia, e com os leitores-colaboradores institui formas de acoplamentos com seus discursos, que são agregados à matéria-prima de suas rotinas. Mas todo esse movimento não é entendido como o fim do Jornalismo. Para Fausto Neto (2009) apesar do efeito desestruturador que a Internet poderá exercer sobre as profissões da comunicação, não parece razoável prever, a médio prazo, o desaparecimento da profissão de jornalista, mesmo que o ‘suporte de papel’ e o jornal, tal qual o conhecemos desde o século XVII venha a cair em desuso. Não é tarefa fácil predizer qual será a evolução das profissões dos media no século XXI, mas parece favorável admi-

tir que continuarão a desempenhar um papel caracterizado pela centralidade. A relevância social destes profissionais do simbólico nas sociedades contemporâneas é irrecusável. De receptor à fonte coprodutora de notícias Caprino (2008) afirma que no século XXI, a comunicação traz como inovação o próprio modo de se produzir informação. Esse cidadão, que se relaciona com os veículos enviando fotos, sugestões de pauta ou e-mails, não desempenha o papel do jornalista, entretanto não é somente uma audiência. Essa reflexão é importante, mas desconsidera que o acesso da audiência aos veículos de comunicação não tem origem na era da informação. Basta lembrar o uso dos telefones nas rádios na década de 1960 como um exemplo desse contato entre os receptores e os produtores de conteúdos midiáticos. O que, para nós, acena como mudança na sociedade informacional é o poder de amplificação propiciado pela Internet, e, sobretudo, a possibilidade, graças ao uso mais acessível das novas tecnologias de “forçar” a inclusão de demandas cidadãs no espaço público. Com o advento da WEB 2.0, qualquer pessoa munida de um aparelho celular com câmera pode iniciar um processo de interferência nas coberturas noticiosas, reforçando, complementando ou contrapondo essa cobertura e agendando um determinado tema, que muitas vezes pelo interesse que desperta nos internautas acaba sendo absorvido pelos veículos de referência do Jornalismo. Mas Vizeu e Mesquita (2011) têm como hipótese ainda em estudos, pesquisas e investigações - que esses homens e mulheres são pessoas que desempenham atividades eventuais. O jornalista nesse processo, e ainda não há nada nos novos cenários, mesmo nas chamadas redações integradas (SALAVERRIA, NEGREDO, 2008), que indique o contrário, é o responsável pela produção da notícia, pela interpretação social da realidade.

Mas é fato que se ensaia um novo processo de entrada de outras vozes, que passam a ser copartícipes da produção noticiosa. Bem diferente de outros instantes, onde o acesso à pauta jornalística era usufruído, essencialmente, pelas fontes oficiais. As demais fontes, que se encontravam na periferia da estrutura de poder (movimentos sociais e o simples cidadão de uma maneira geral), sofriam, quase sempre, uma exclusão sistemática do debate público articulado pelo Jornalismo, o que compromete a representatividade e legitimidade da representação simbólica que constrói a realidade (VIZEU, 2010). No entanto, a entrada dessas novas vozes no processo de produção noticiosa deve ser acompanhada de reflexões, como por exemplo, com relação a autoria, já que a maioria das empresas de comunicação têm contratos nos quais os colaboradores passam para elas o direito de uso da imagem sem futuras cobranças de direitos autorais. Outra clareza que o colaborador precisa ter é de que ele não é um funcionário do jornal, mas alguém que fiscaliza e denuncia eventuais deslizes das autoridades do estado e das corporações do mercado e, também, dos próprios jornais. Portanto, ele deve ter presente que os meios de comunicação estão a seu serviço e não o contrário. Mais do que isso: deve lutar pela participação efetiva na agenda dos jornais, intervindo e tendo voz. Uma vez que a preocupação da imprensa deve ser o interesse público e do público. Vizeu (2010) ressalta que é rica a constatação de que os cidadãos e os movimentos sociais, quando conseguem acesso à visibilidade jornalística, têm a capacidade de formar opinião e vontade política a ponto de tornar poder comunicativo às suas reivindicações.

Um panorama brasileiro Por volta da década de 1990, quando, no Brasil, a Internet passa a ter uma presença mais forte que começa a afetar as mídias convencionais, as empresas de comunicação partem em busca de estratégias que dêem conta de um público que tem voz e meios para propagar, mesmo que muitas vezes não tenha a credibilidade do Jornalismo. Num movimento para se aproximar dessa audiência colaborativa, os sites de notícias saíram na frente, ao dedicar espaço aos internautas. O primeiro movimento nesse sentido foi dado pelo iG, em 2000, com o “Leitor-Repórter”. Atualmente, o espaço colaborativo do portal ganhou o nome de “Minha Notícia”(http:// minhanoticia.ig.com.br) e o slogan “Aqui o que acontece perto de você ganha destaque!”. Seguindo o caminho dos portais, muitos jornais aproveitaram o espaço na Web para criar canais de colaboração, como é o caso do Zero Hora, do Estadão, de O Globo, do Jornal do Brasil, de O Dia e dos pernambucanos Diário de Pernambuco e Jornal do Commercio. Os “convites” à colaboração feitos pelos jornais são muito semelhantes aos portais estabelecendo novos “contratos de leituras” com os leitores. Um exemplo pode ser visto no texto de lançamento, no jornal O Globo, do espaço colaborativo Eu-repórter. O texto publicitário anunciava: “Você é o repórter. A diferença é que vai usar o Iphone em vez da câmera e do computador. O Eu-repórter, a ferramenta de jornalismo participativo do Globo onde você faz a notícia, foi otimizada para o Iphone.“Você pode mandar sua história em foto ou texto, de forma simples e prática. Para você participar, discutir, opinar. On line, on time, full time. Acesse o appstore e baixe gratuitamente o aplicativo Eu-Repórter. O Globo, muito além do papel de um jornal”(O GLOBO, p.12).

Antes de O Globo, o portal do Estadão colocou no ar, em 2005, o Foto Repórter, no qual, segundo o portal, o leitor “participa” podendo enviar fotos pela Web. De acordo com as regras disponíveis no Estadão, as imagens, quando de interesse jornalístico, são publicadas no próprio portal, podendo chegar às páginas dos jornais O Estado de São Paulo e A Tarde. Além disso, segundo o portal, as imagens podem ser disponibilizadas para venda, através da Agência Estado que comercializa conteúdo jornalístico, com clientes no Brasil e no Mundo. No caso do Estadão e de O Globo, os canais abertos para envio de conteúdo gerado pelo amador estão nas versões digitais, com possibilidade de ser transformado em notícias na versão impressa. Em Pernambuco, o jornal mais antigo em circulação da América Latina, o Diário de Pernambuco, pertencente ao grupo Associados, abriu espaço para essa “colaboração” do cidadão na produção de notícias, por meio do portal Pernambuco. com. Mas, diferentemente do Estadão e de O Globo, o Diário de Pernambuco reservou na versão impressa inicialmente uma página semanal para veicular conteúdos propostos pelo cidadão e, atualmente, ampliou esse espaço de colaboração para outras editorias, criando um selo Cidadão-repórter, que aparece na abertura da matéria, como pauta proposta pelo leitor. As matérias, no entanto, são produzidas pelas equipes do jornal, a partir das sugestões enviadas pelos usuários ao fórum participativo na Internet, que está no ar desde 2007. O Jornal do Commercio de Pernambuco, jornal com maior circulação no Estado, também destinou um espaço para a colaboração, tanto no site, quanto na versão impressa, designado Voz do Leitor. O espaço diário, que foi ao ar no aniversário de 92 anos do jornal, no dia cinco de abril de 2011 substituiu e ampliou a seção Cartas. “Na seção, estão não só as tradicionais cartas, mas ainda as opções de vídeos, fotos, áudios, tudo produzido pelos leitores. É o jornalismo do JC a serviço dos cidadãos”(JORNAL DO COMMERCIO, informação eletrônica).

Ao apresentar as mudanças, o diretor adjunto de redação do Jornal do Commercio, Laurindo Ferreira destaca esse novo olhar para a colaboração das audiências. “Mudamos porque o leitor mudou. Porque ele não quer ser mais mero consumidor de informação. Porque ele quer fazer junto conosco. Porque ele quer participar. Tudo isso pressionado pela revolução na internet”(JORNAL DO COMMERCIO, informação eletrônica). Todas essas iniciativas colaborativas nos jornais e nos portais suscitam algumas questões, que são importantes serem observadas. A primeira delas é que os veículos se apropriam dos conteúdos produzidos por amadores, principalmente vídeos e fotos, quando as equipes de jornalistas não conseguem presenciar eventos de crise, como desastres naturais, atentados terroristas e situações de conflitos. Outro ponto importante é que quando abre espaço para proposição de temas pelo cidadão não jornalista, os jornais ainda restringem a assuntos como transportes, serviços públicos, sem ampliar a discussão para temáticas políticas, econômicas, em que os posicionamentos possam subsidiar a formação de opinião pública ou a própria deliberação pelo sistema administrativo estatal. Por fim, como observa Deuze (2009), esse tipo de “participação” do cidadão na produção de conteúdos para a grande mídia ocorre no contexto de um esvaziamento do trabalho assalariado, e no interesse de empresas de comunicação, que estão se apropriando de voluntários não pagos, sem necessariamente investirem em treinamento e monitoração do que é produzido. Considerações Finais A sociedade em rede trouxe mudanças nas formas de organização social e consequentemente no Jornalismo. Mudanças que trazem desafios novos como o de lidar com a participação cada vez mais ativa do público na produção de conteúdos e na agenda

da mídia, com a possibilidade de democratização das formas de acesso ao espaço público midiático. E que nos obrigam a pensar sobre conceitos novos e velhos que se emaranham nessa teia informacional. São novas faces do processo de comunicação. Que por um lado levam o indivíduo, como receptor de informação, a exercer seu papel de consumidor de maneira mais participativa e crítica, e do ponto de vista da produção de informação leva à ampliação da participação dos indivíduos na era informacional. No entanto, não podemos olhar para essas faces do processo de comunicação com total ingenuidade ou com uma exagerada euforia, sem refletir sobre os interesses implícitos nessa relação entre a mídia e as audiências, que no nosso entender acenam como mecanismos de fidelização de leitores, ouvintes e telespectadores por parte das empresas de comunicação “interessadas” em incorporar esses conteúdos produzidos por amadores, mas de uma maneira bem superficial. Ou, ainda, como forma de ampliar a propaganda sob outros modos e formatos. Não é à toa que grandes veículos, como, por exemplo, a TV Globo, utilizam as mais diversas formas de contato com a audiência colaborativa, não só abrindo espaço para esse conteúdo produzido pelo amador, mas, sobretudo procurando saber qual produto noticioso anseia essa audiência. São novos cenários que se configuram, e que exigem do Jornalismo, como destaca Chaparro (2007), descobrir, tomar consciência, se preparar para exercer os novos papéis que lhe cabem, em uma sociedade movida pelas energias da informação e pelos embates discursivos de instituições e pessoas que sabem o que dizer, como dizer e quando dizer.

REFERÊNCIAS BRAMBILLA, Ana Maria. A reconfiguração do jornalismo através do modelo open source. Sessões do imaginário, Porto Alegre. n. 13, 2005. BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petropólis: Vozes, 1995. ______. Modernidade, pluralismo e crise de sentido: a orientação do homem moderno. Petrópolis: Vozes, 2004. CAPRINO, Mônica (Orga.); ROSSETTI, Regina; GOULART, Elias. Comunicação e sociedade: faces e interfaces inovadoras. In: ______. Comunicação e inovação: reflexões contemporâneas. São Paulo: Paulus, 2008. CARDOSO, Gustavo. A mídia na sociedade em rede: filtros vitrines, notícias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede – a era da informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 2005. CHAPARRO, Manuel. Pragmática do Jornalismo: buscas práticas para uma teoria da ação jornalística. São Paulo: Summus, 2007. ______. Jornalismo: linguagem e espaço público dos conflitos da atualidade. São Paulo, 2009. Inédito DALMONTE, Edson. Pensar o discurso no webjornalismo: temporalidade, paratexto e comunidades de experiência. Salvador: EDUFBA, 2009. DEUZE, Mark. The future of citzen journalism. In: ALLAN, Stuart; THORSEN, Elinar. Citizen Journalism: global perspectives. New York: Simon Cotle General, 2009.

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MUDANÇAS NO TELEJORNALISMO: DESAFIOS DA PESQUISA ACADÊMICA PROPOSITIVA NA ERA DA TV DIGITAL Lívia Cirne1

Transformações no telejornalismo: dos formatos analógicos à emergência do digital Nos últimos dez anos, as inovações tecnológicas nas emissoras têm favorecido um novo cenário na Comunicação. Podemos afirmar que a cada mudança da (e na) TV, tal qual, a incorporação de sofisticados equipamentos às redações, substituindo as aparelhagens analógicas pelas digitais, um conjunto de transformações também é constatado na concepção do telejornalismo. Há um árduo investimento das emissoras em tecnologias de ponta, tanto no que se refere aos modos de captação, como de transmissão e de apresentação. Os estúdios contam com moderna estrutura de iluminação; teleprompters; painel multi-touch2; e até holografias3, desobrigando os apresentadores a estarem presentes no local de gravação. As equipes de finalização estão trocando as ilhas de edição linear pelas de edição não linear. Os computadores, muitas vezes portáteis e que no caso dos correspondentes internacionais são operados pelos próprios jornalistas em campo, são equipados com softwares de alto grau de desempenho, possibilitando novos efeitos no telejornalismo: vinhetas Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: [email protected] 1

Tela LCD que permite o redimensionamento e comando do conteúdo em execução, por meio de leves toques. Na programação audiovisual brasileira teve sua estreia no dia 03 de agosto de 2008, no aniversário de 35 anos do Fantástico, da Rede Globo. A tela digital passou a ser usada no programa e também nas coberturas esportivas. 2

Originária do grego (holos, inteiro, e graphos, sinal), holografia é a técnica de representação de imagem em três dimensões. Trata-se de uma projeção virtual de determinada pessoa ou objeto, em um ambiente real. 3

mais rebuscadas; tratamento aperfeiçoado de imagens e som, com utilização de filtros de pós-produção; redimensionamento de vídeos; recurso chroma-key; modificação de planos, enquadramentos e/ou movimentos de câmeras; provimento de animações e fusões com elementos textuais. A geração de novos aspectos de produção de mensagens visuais, possibilitada com essa comunicação gráfica sintética, dá-se graças à incorporação de potentes computadores, com programas de tecnologia 3D, nas redações. Além disso, alguns programas de animação computadorizada imprimem técnicas de efeitos visuais que reproduzem ambientes reais em espaços virtuais (e vice-versa). As reflexões em torno das mutações tecnológicas apontam diferentes estilos de apresentações e de linguagem, o que, necessariamente, induz a criação de um novo formato de telejornalismo. De acordo com Carlos Henrique Schroder (2008, apud, TOURINHO, 2009), diretor da Central Globo de Jornalismo (CGJ), só se consegue perceber com mais nitidez que o telejornalismo está diferente quando acontecem mudanças visuais: Você modifica a linguagem, o texto, o conceito de um telejornal, mas isso só é percebido pelo telespectador quando ele vê algo feito com o formato diferenciado. Ou seja: muda-se o conteúdo, mas é preciso modificar a forma também (p. 303). (...) Há uma preocupação permanente na CGJ em renovar, criar, manter os telejornais e programas jovens. Estamos sempre buscando uma linguagem mais dinâmica, mais moderna, acima de tudo mais próxima do telespectador. De formato, a cada ano ou a cada dois, mexemos nos cenários (p. 304).

“Linguagem mais dinâmica” e “mais próxima do telespectador” são conceitos associados ao fenômeno da convergência, que ganharam força com a popularização do acesso à Internet e da informatização dos dispositivos, propiciando um rearranjo nos

produtos dos meios de comunicação de massa. Nesse processo de reconfiguração, a interatividade tem se apresentado como um dos principais atrativos nos formatos analógicos audiovisuais, como, por ora, conhecemos. Nos telejornais diários em exibição, a programação centralizada nas pautas sugeridas pela redação e a rigidez dos blocos foram repensadas, estando muito presentes a tendência à exploração de serviços interativos (em articulação com a Internet, sobretudo), com o propósito estratégico de produzir uma experiência de participação e de fidelizar a audiência. Em síntese, ao apontarmos inovações no telejornalismo, podemos referir-nos, basicamente, a três aspectos: 1) renovação visual (cenários, equipamentos, estúdios) e na linguagem (mais dinâmica e com efeitos dialógicos); 2) inserção no ambiente de convergência (distribuição multiplataforma) e 3) reestruturação das redações. Atualmente, o momento é de despertar atenção para outra grande mudança que tende a projetar novas formas de se produzir telejornal, com todos os aspectos anteriormente resumidos, potencializados pela emergência do sistema de televisão digital, um modelo broadcast baseado na transmissão e recepção em bits (0 e 1). Agregando outros serviços e outras funcionalidades, essa TV redefine as experiências de recepção, induzindo-nos a preocupações e questionamentos sobre quais e como serão configurados os conteúdos interativos e colaborativos disponibilizados pela nova tecnologia. Em especial no telejornalismo, o uso de aplicações interativas, que se utilizem do canal de retorno4 a ser implementado e que dispensem o uso de outras redes externas (telefone ou acesso a site, via computador), pode contribuir para qualidade do gênero, propiciando a oferta de mais informação Também chamado de canal de interatividade, é o meio físico pelo qual os telespectadores, a partir da própria televisão, poderão enviar informação para a emissora, seja um voto em enquete, uma foto, uma pergunta ou até mesmo um vídeo, dependendo da largura de banda utilizada pelo canal. Esse canal, no modelo brasileiro de televisão digital, ainda não foi definido pelo Governo Federal, mas pode ser conexão via Internet (cabo ou Wi-Max) ou rede operadora de telecomunicações (fixa ou móvel), por exemplo. 4

(conteúdos adicionais) e possibilidades de intervenção que contribuam para a diversificação e a pluralidade de vozes. Como base dessas mudanças, por exemplo, podemos nos inspirar no cenário europeu, onde a TV digital foi implantada há, pelo menos, uma década antes do Brasil e onde foi priorizada a interatividade. Na Europa, alguns dos modelos de telejornais se apresentam numa interface completamente diferente dos vigentes na TV analógica e dos que se apropriam das experiências de convergência, tal qual descrevemos anteriormente. Eles dispõem de aplicativos com a função de romper com a lógica massiva e determinam, quando clicados, um consumo customizado, de acordo com os interesses do telespectador, que pode alternar entre vários assuntos (tempo, esporte, entrevista, finanças, etc), sem estar submetido à linearidade de uma edição convencional. O conteúdo audiovisual divide espaço com um maior volume de textos, os quais, da mesma maneira, também podem ser acionados, conforme os temas desejados, imprimindo no televisor um formato próximo da arquitetura hipermídia que se desenha na Internet. O telespectador ainda pode indicar sua opinião a respeito de determinados assuntos, respondendo as enquetes. Todos esses comandos são mediados pelo controle remoto, pressionando as setas direcionais e/ou os botões coloridos. Esses atributos também poderão ser implementados no Sistema Brasileiro de Televisão Digital e resultam numa reorganização da informação e da maneira como faremos uso dela. Se, hoje, mesmo sem canal de retorno, os telejornais já apelam para um comportamento de recepção mais ativo, a partir das articulações com a telefonia e a Internet, com a implantação das tecnologias interativas na própria TV, essa demanda tende a se intensificar. Com um canal de retorno integrado, ele pode participar instantaneamente dos programas, o que favorece, por exemplo, a incorporação de enquetes, chats e conteúdos segmentados e adicionais. Assim como a consolidação da web permitiu que outras características e narrativas nascessem e/ou fossem adaptadas, bem

como específicos serviços hiperlinks e multimídias, a linguagem televisiva irá também sofrer alterações. Dessa forma, tanto o mercado, como, principalmente, a academia deverá pensar em conteúdo digital para o novo sistema, entendendo que “´conteúdo digital` não quer dizer programação gravada e finalizada digitalmente; significa, isto sim, conteúdo que reconheça as peculiaridades do sistema” (HOINEFF, 2003, p. 1). Propor formatos e experimentar novos tipos de conteúdos deve ser, também, uma preocupação da academia, sobretudo do campo da Comunicação, uma vez que, por enquanto, a produção de aplicativos e narrativas tem sido coordenada pelas engenharias (mercado e academia), que não possuem habilidade teórico-metodológica para gerar estratégias discursivas suficientemente interessantes para a nova plataforma, muitas vezes, reproduzindo modelos de interatividade própria dos portais da Internet, que, por consequência, não empolga e nem atrai os telespectadores. Ainda que com atraso, já que a discussão em torno do tema TV digital sempre esteve restrita, basicamente, às polarizações entre os interesses políticos e às possibilidades tecnológicas, para os pesquisadores da Comunicação interessados em televisão, abre-se uma seara repleta de desafios e possibilidade de integração com áreas convergentes, promovendo um ambiente interdisciplinar, para estudo e desenvolvimento de protótipo consistente com linguagem própria de TV, incorporando capacidades estéticas e recursos interativos modernos das novas mídias. Isso implica, de certo modo, um olhar mais reflexivo e mais propositivo das pesquisas em Comunicação, que tenham o papel de fomentar projetos experimentais aplicados, capazes de orientar diretrizes para outro modelo de fazer telejornalismo, mas que são quase que inexistentes, ainda, conforme o que se observa no breve inventário a seguir, a partir de informações coletadas em julho de 2011.

Demandas da pesquisa em comunicação para a proposição de conteúdo telejornalístico José Marques de Melo (1991; 2004) revela que, até pouco tempo, nos anos 80, os cursos de comunicação viviam uma realidade abalizada pela tecnofobia e pelo teoricismo. Só quando os órgãos de fomento ao ensino superior instituíram a urgente obrigatoriedade de implementação de equipamentos e laboratórios nos departamentos, é que foi manifestado o interesse no desenvolvimento de pesquisas experimentais e a realização de projetos que provocam os padrões convencionais de comunicação de massa, apresentando alternativas inovadoras. A partir daí, buscou-se instituir, nos cursos de comunicação, currículos que proporcionasse a formação humanística do aluno e o capacitasse tecnicamente. Mesmo assim, com o passar dos anos, observamos pouca sinergia entre a reflexão crítica dos processos comunicacionais e a prática profissional, por meio do experimentalismo. Até hoje, não se constata com muita nitidez, uma predisposição dos cursos de comunicação e nem dos programas de pós-graduação stricto sensu por este tipo de investigação aplicada. Conforme menciona Elias Machado (2004, p.11-12)., (...) a pesquisa em jornalismo tem sistematicamente voltado as costas para a pesquisa experimental aplicada. Em uma área que tem a prática profissional como centro irradiador de iniciativas, seja de pesquisa, seja de ensino, as consequências são muito graves. Os laboratórios dos cursos ou dos programas de pós-graduação, que deveriam ser centros para a pesquisa de novas linguagens, processos, metodologias, tecnologias e aplicativos, quando existentes são simples espaços de apoio para os trabalhos de pesquisadores ou professores.

No entanto, em época de desafios imputados pelas redes digitais, “cabe aos pesquisadores em jornalismo em nosso país inverter as prioridades de pesquisa para entrar em sintonia com as demandas sociais, desenvolvendo tecnologias específicas para o exercício da profissão nos mais variados suportes” (MACHADO, 2002, p. 1-2), fato que é constatado eficientemente nos programas de Ciências Exatas, com tradição em pesquisas no campo experimentado. Nesses programas, as indústrias privadas chegam a manter laços com a academia e a financiar estudos para o desenvolvimento de produtos. Nos programas de pós-graduação em Comunicação, parcerias assim não acontecem e nem a prática é incentivada, o que dificulta legitimação da área e grandes contribuições próprias do jornalismo. Essa renúncia (...) dos pesquisadores em jornalismo à pesquisa aplicada muito se deve a uma tradição de ensino que associava a formação dos futuros jornalistas à de intelectuais beletristas, especializados na arte da escrita, sem qualquer obrigação de ter que responder pela geração de novas tecnologias que viabilizassem a prática profissional a cada ciclo histórico. Uma renúncia que cobra altos custos quando do aperfeiçoamento das práticas profissionais, muito mal inventariadas nas pesquisas do campo (MACHADO, 2004, p. 9-10).

Essa tendência por privilegiar as discussões humanísticas em detrimento da formulação de um aparato prático pode ser amplamente constatada a todo momento, apesar de tanto avanço tecnológico e de um caminho desafiador para a formulação de protótipos. Quando o assunto é “TV digital”, especificamente, nota-se que poucas universidades e institutos de P&D (pesquisa e desenvolvimento) estão se mobilizando para a criação de conteúdos específicos para essa plataforma. Mesmo o processo de reconfiguração dos fluxos de produção sendo uma inquietação dos estudos de linguagem e consumo, os programas de pós-

-graduação (PPGs) em comunicação não despertaram, ainda, para o compromisso com esse tipo de investigação científica, tão pouco para o investimento na interrelação com outras áreas da academia. Sobre isto, Fechine (2011, p. 217-218) elenca algumas das tímidas propostas interdisciplinares nas universidades brasileiras que visam à proposição de novos formatos a partir da digitalização: Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), funciona o Labmídia (Laboratório de Mídia Eletrônica); na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o Núcleo de TV Digital Interativa e, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), o Instituto de Mídias Digitais, entre outros. (...) Na Universidade de São Paulo (USP), o Departamento de Rádio Cinema e Televisão também mantém diálogo com o Laboratório de Sistemas Integráveis (LSI), da Escola Politécnica de São Paulo (ROSA, 2005). Com exceção do Instituto de Mídias integradas, que se trata de um projeto interdepartamental de produção e distribuição de conteúdo digital, a maioria das pesquisas que buscam aproximações entre Comunicação e Tecnologia deve-se mais ao esforço pessoal e a projetos isolados de alguns pesquisadores do que propriamente a iniciativas institucionais de articulação entre áreas. Há ainda, atualmente, pesquisas e cursos de especialização em TV digital abrigados nos programas de pós-graduação em Comunicação da Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo do Campo (SP) e da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Bauru (SP), foi implantado o Programa de Pós-Graduação em Televisão Digital na Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação, o primeiro – e até agora único – mestrado profissionalizante dedicado especificamente a esse campo de estudos no País. A pós-graduação em Comunicação Midiática, também na Unesp de Bauru, abriga pesquisas em TV digital a partir da atuação do Grupo de Estudos Audiovisuais (GEA).

Tudo isso corrobora com a ideia de que é quase inexpressiva a preocupação em unir pesquisa sobre conteúdo à experiência prática, especialmente no que se refere à televisão digital. Numa busca publicada em 2011, registrou-se 50 grupos de pesquisas que têm estudos dirigidos a questões referentes à televisão digital. Desse total, 33 são da área das ciências exatas e, apenas, onze da Comunicação, três da Educação e um do Design (ANGELUCI, 2011). Se fizermos um recorte maior e tentarmos analisar a divulgação do conhecimento científico em torno do telejornalismo, a partir dos quinze grupos de pesquisas envolvendo estudantes e professores dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, certificados na base atual do diretório do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o cenário não é diferente. Boa parte das pesquisas é limitada às especificidades do suporte, às observações descritivas ou aos posicionamentos críticos. O quadro a seguir delineia esses grupos e suas respectivas linhas de interesse. Grupos de Pesquisa

IFES

Linhas de Concentração

Análise de telejornalismo

UFBA

Análise de produtos e linguagens da cultura midiática.

Cinema, televisão, vídeo e novas tecnologias

UFMG

Cinema brasileiro; cinema documentário e telejornalismo; cinema e vídeo; glauber rocha; novos formatos para mídias digitais (interatividade e mobilidade); políticas públicas de mídia eletrônica; som e mídia.

Comunicação e cultura visual

FCL

Fotojornalismo; imagem midiática e cultura visual; imagens videográficas.

Comunicação televisual UFSM

Mídia e estratégias comunicacionais; mídia e identidades contemporâneas; mídia e jornalismo

Estudos da comunicação e cultura

UFSM

Mídia e estratégias comunicacionais; mídia e identidades contemporâneas; mídia e jornalismo

Estudos em jornalismo contemporâneo

UNAERP

Comunicação; significação e cultura; fundamentos.

Grupo de estudos da imagem

UAM

Jornalismo impresso; linguagem audiovisual no jornalismo; linguagens comunicacionais nas mídias digitais.

Grupo de estudos da imagem

UFPR

Comunicação e imagem; estudos sobre o telejornalismo; produção audiovisual; teoria e ética do jornalismo.

Grupo de estudos da mídia

UFRB

História da mídia; jornalismo regional e comunitário; radiojornalismo; telejornalismo.

Grupo de estudos, pesquisa e extensão em comunicação e multimídia

UFAL

Comunicação & educação; discurso midiático e retórica; economia política da comunicação. Ética midiática e sociabilidade; fotografia e fotojornalismo; história da mídia; jornalismo e linguagem jornalística; multimídia; pedagogia da comunicação; rádio, tv, cinema, vídeo.

Grupo interinstitucional de pesquisa em telejornalismo

UFSC; UNIPAMPA; UNISC; UFPEL E FEEVALE

Telejornalismo e história; telejornalismo e novos formatos; telejornalismo e processos de significação; telejornalismo, educação e acessibilidade.

Jornalismo e multimídia

UFT

Estudos em jornalismo e cibercultura; jornalismo econômico.

Midiacom - signo e significação nas mídias

UNIC

Cibercultura; ciberjornalismo; jornalismo online; redes sociais.

Núcleo de pesquisa em jornalismo

UESB

Comunicação e imaginário fotojornalismo e fotodocumentarismo; história do jornalismo em portugal e brasil; jornalismo impresso; práticas em jornalismo cívico; telejornalismo e novas tecnologias.

Telejornalismo e política

UEL

Jornalismo e processos editoriais; mídias impressas, audiovisuais e interativas.

Telejornalismo, imagem UFJF e representação

Cidade e memória; jornalismo, narrativa e identidade.

Quadro 1 – Levantamento dos grupos de pesquisa que investigam o telejornalismo Fonte: CNPq

Com o mapeamento, ratificamos que a maioria dos grupos de pesquisa (GPs) que tem o telejornalismo como norte das observações científicas ou como subáreas de investigação, apoia-se no universo epistemológico, ou seja, em revisão de literatura e em abordagens teórico-metodológicas, que levam em consideração as experiências históricas do gênero, as mudanças estéticas ao longo dos anos, as formas de representação social da realidade e as comparações relativas ao formato, à imagem ou ao uso de determinados recursos entre programas de emissoras distintas ou da mesma emissora. Alguns se sustentam na reflexão dos aspectos éticos e estéticos do gênero e outros abrigam estudos que refletem uma tendência evidente de serem subordinadas à, ou serem pautadas pela, mídia, o que é comprovado pela constante busca por coleta de dados, com resultados qualitativos e quantitativos, a fim de comprovar se o telejornal X é mais (ou menos) participativo que o telejornal Y, por exemplo. O GP Cinema, Televisão, Vídeo e Novas Tecnologias, situado no Laboratório de Mídia Eletrônica (Labmídia), na Universidade

Federal de Minas Gerais, merece destaque, pois, além das análises, tem se interessado pela criação de formatos e conteúdos para as novas mídias – consequentemente, TV digital –, conforme apontado no início desta seção. No entanto, não chegou a desenvolver aplicativos para o telejornalismo, especificamente. Confirmamos, então, que esse tipo de produto tem sido fomentado, de maneira fragmentada, por alguns laboratórios da academia que não estão sediados propriamente na Comunicação, embora abarquem pesquisadores da área5. Merece destaque, portanto, o Laboratório de Aplicações de Vídeo Digital (LAViD), um dos desenvolvedores do software (middleware Ginga) que integra os conversores e televisores digitais e que executa os aplicativos de interatividade. Descreveremos adiante dois projetos. Experimentos em telejornalismo para a TV digital O Laboratório de Aplicações de Vídeo Digital (LAViD), do Departamento de Informática (DI) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), é uma referência nacional e internacional em pesquisas e desenvolvimento de tecnologia para TV Digital. Contando com a colaboração de pesquisadores (graduados, graduandos, pós-graduandos e pós-graduados), o Laboratório, coordenado pelo professor doutor Guido Lemos, desenvolveu, juntamente com a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), o middleware para o sistema nacional de TVD, responsável pela prestação de serviços interativos. Em parceria com PPGs em Comunicação, propiciou a criação de dois projetos: Delimitamo-nos apenas às pesquisas práticas nas pós-graduações em Comunicação. Lembramos, porém, que em 2007, antes mesmo da chegada da TV digital ao estado de Santa Catarina, Fernando Crocomo desenvolveu sua tese no Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção sobre a participação da comunidade na produção e envio de vídeos para exibição na TV, o Projeto Marint. Para desenvolver o trabalho, Crocomo utilizou a Internet, apenas simulando a ideia. O projeto finalizou sua tese, gerando, posteriormente, a obra “TV Digital e Produção Interativa: a comunidade recebe e manda notícias”. 5

um com o Programa de Pós-Graduação (Mestrado Profissional) em Televisão Digital: Informação e Conhecimento da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), o PPGTVD, e outro com o Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Culturas Midiáticas da Universidade Federal da Paraíba, o PPGC. O primeiro diz respeito ao JCollab - Jornalismo Científico Colaborativo para TV Digital. Trata-se de uma plataforma para suporte a um serviço de criação colaborativa de conteúdo jornalístico científico, com inclusão de modelagem e descrição semântica, visando potencializar a experiência do jornalismo com suporte à interatividade compatível com o Sistema Brasileiro de TV Digital, gerando conteúdo a ser veiculado na televisão. O JCollab, com previsão de financiamento pela Rede Nacional de Pesquisa (RNP) até março de 2012, faz uso de um portal público, que abriga comunidades (de redes sociais e de aprendizado) para a discussão de assuntos de interesse jornalístico. A plataforma abrange “cinco etapas de produção colaborativa para a construção do telejornal. Ela envolve a formação de comunidades virtuais de jornalismo que serão responsáveis cada uma pela produção de um telejornal” (ALVES, 2010, p. 134), com algumas modificações em função das propriedades da web. São elas: pauta, matéria, espelho, edição/montagem e exibição/videoteca. Já o segundo projeto6 deu-se em parceria, não só com o PPGC, mas também com a TV Cabo Branco, afiliada da Rede Globo em João Pessoa, apresentando duas potenciais propostas de produPesquisadores de áreas distintas no processo de desenvolvimento do projeto. A realização do estudo teórico aplicado contou com todo o apoio técnico do LAViD e a atuação direta de seis pesquisadores: Tatiana Tavares (coordenadora do LAViD), André Felipe Palmeira (mestrando do Programa de Pós-Graduação em Informática da Universidade Federal da Paraíba), Andrew Câmara (ilustrador e designer graduado em Arte e Mídia pela Universidade Federal de Campina Grande), Lívia Cirne (na época, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Culturas Midiáticas da Universidade Federal da Paraíba), Marcelo Fernandes (mestrando do Programa de Pós-Graduação em Informática da Universidade Federal da Paraíba) e Ricardo Mendes (na época, graduando em Informática, pela Universidade Federal da Paraíba). 6

tos: 1) conteúdo extra e participativo para quadros especiais e 2) enquetes. O primeiro produto desenvolvido para o JPB 1ª Edição (telejornal exibido ao meio dia, em João Pessoa) endereçou algumas tendências, como: o aplicativo de informações extras, que funcionou como box na matéria, possibilitando que o material descartado, em função do tempo limitado, fosse reaproveitado e reformatado para uma linguagem textual apropriada para televisão; a votação em tempo real, via controle remoto; o acesso a um “mini banco de dados”, com fotos e detalhes de pessoas desaparecidas. O intuito do piloto foi apenas o de sinalizar para as mudanças que emergirão nos próximos anos e, apesar da viabilidade técnica do projeto para experimentação, a acessibilidade da plataforma não foi testada pela população, apenas pelos profissionais da TV Cabo Branco. A segunda experiência resultou de um teste local, em tempo real, no maior bairro populacional de João Pessoa, possibilitando a participação de 250 pessoas, escolhendo entre o melhor e o pior serviço do bairro. As votações foram conduzidas ao longo do dia, sendo exibidas ao vivo nas três edições de telejornal local: Bom Dia Paraíba, JPB 1ª edição e JPB 2ª edição. A apuração final, também ao vivo, foi no último bloco do JPB 2ª edição. Ao clicar no ícone de interatividade, surgia a tela com as opções de melhores serviços do bairro. Em síntese, o experimento funcionou da seguinte forma: o usuário escolhia uma das opções, pressionando um número (1-7) no controle remoto e, em seguida, aparecia a tela com a pergunta referente ao serviço deficiente. Após os dois votos, a tela final indicava a porcentagem parcial das duas questões, com o índice vermelho atinente aos votos do pior serviço e o índice verde, ao resultado do melhor serviço, conforme figura 3. Para desistir da participação, a qualquer momento, selecionava-se a tecla vermelha do controle.

Considerações Finais Estamos prestes a inaugurar a maior mudança na história da televisão até então, com a substituição não só tecnológica dos sinais, mas, principalmente, dos modos analógicos de produção de fluxos audiovisuais para os modos digitais. As redações telejornalísticas terão que levar em consideração a potencial convergência de suportes e conteúdos permitida pelo novo sistema de TV e observar o comportamento participativo da audiência. As universidades e, mais especificamente, os programas de pós-graduação em comunicação, de igual modo, não podem estar alheios a essa transformação e, além de averiguarem os “fenômenos”, terão que se preocupar com a criação de linguagem e formatos próprios para o meio. Os investimentos em pesquisas práticas permitem que os pressupostos teóricos acumulados sejam postos à prova e que novos protótipos sejam geridos, amparados por uma reflexão teórico-metodológica, pressupondo qualificação do mercado futuro e independência de certos modos de produção do sistema de comunicação vigente. (...) Acredita-se que um produto experimental ousado e bem planejado possa render contribuições para a discussão de metodologias de pesquisa mais próximas do jornalismo (e das particularidades do campo), justamente frente aos “Dilemas da pesquisa no jornalismo contemporâneo”, como intitula Gadini, que vão da “abrangência midiática à ausência de métodos específicos de investigação”(SCHOENHER, 2011, p. 86).

Como ajuíza Fechine et al (2011, p. 206), (...) hoje, exige da pesquisa brasileira em Comunicação o deslocamento de uma perspectiva histórica mais crítica para uma postura, agora, mais propositiva. Mais do que refletirem sobre os processos acabados, é necessário que os pesquisadores em Comunicação orientem suas inves-

tigações para intervenção nos fenômenos em curso, aproveitando um momento histórico em que nem mesmo os produtores de TV mais experientes percebem claramente quais são, ou quais podem ser, os gêneros e formatos inovadores nessa televisão em transição. Por isso, neste momento, a delimitação de uma pesquisa propositiva em Comunicação parece fortemente ligada à produção de conteúdos. Abre-se, então, um novo campo de investigações cuja natureza é interdisciplinar e demanda, sobretudo, a articulação entre profissionais e pesquisadores de Comunicação e Tecnologia (Informática, sobretudo).

Por fim, essa é a hora de atrever-se. É o momento dos profissionais, das emissoras e dos pesquisadores que estão estudando e desenvolvendo as tecnologias se reunirem para elaborar propostas que viabilizem testes, encontrando um modelo inicial de interatividade telejornalística. O desafio consiste em sistematizar e elaborar protótipos que abranjam desde postulações teóricas às experimentações no jornalismo, “respeitando a historicidade das formas, relações e dos produtos midiáticos” (SCHOENHER, 2011, p. 80). Os estudos dos grupos de pesquisas devem, ainda, acompanhar as mudanças no contexto comunicacional e buscarem uma forte interconexão entre as diversas áreas de conhecimento (engenharias e ciências da computação), possibilitando diálogos multidisciplinares e a promessa de construção de um produto que respeite as características elementares do “telejornalismo” e da “televisão”.

REFERÊNCIAS CIRNE, Lívia. Interatividade e perspectivas no telejornalismo da TV digital. Dissertação de mestrado. João Pessoa: UFPB, 2010. DIZARD Jr., Wilson. A Nova Mídia. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. FECHINE, Yvana; FERRAZ, Carlos; CIRNE, Lívia; FONSÊCA, Jorge. Pesquisa em televisão digital no Brasil: uma experiência interdisciplinar. In: FILHO, João Freire; BORGES, Gabriela (Orgs). Estudos de Televisão: Diálogos Brasil-Portugal. Porto Alegre: Sulina, 2011, p. 206-239. FRANCISCATO, Carlos. Considerações metodológicas sobre a pesquisa aplicada em jornalismo. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO – SBPJOR, 6, 2008, São Paulo. Anais... São Paulo: SBPJOR, 2008, p. 1-20. GILLMOR, Dan. Nosotros, el medio. Lisboa: Presença, 2004. HOINEFF, Nelson. A nova televisão: desmassificação e o impasse das grandes redes. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996. MACHADO, Elias. Dos estudos sobre o jornalismo às teorias do jornalismo: três pressupostos para a consolidação do jornalismo como campo de conhecimento. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação: E-Compós. p. 1-15, 2004. MARQUES DE MELO, José. Comunicação e Modernidade: o ensino e a pesquisa nas escolas de comunicação. São Paulo, Loyola, 1991. ______. A pesquisa experimental nas escolas de comunicação: reduzindo a distância entre academia e mercado. São Paulo: USP, 2004. Disponível em: . Acesso em: 26 junho 2011

OLIVEIRA, Eliane Freire de. Múltiplas possibilidades: a estruturação dos projetos experimentais no ensino de Jornalismo. Tese de doutorado. São Paulo: USP, 2009. SCHOENHER, Rafael. Considerações sobre validade de produtos de TCC em Jornalismo. In: REBEJ – Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo, Ponta Grossa, v. 1, n. 8, p. 77-96, jan.-jun. 2011. TRAQUINA, Nelson. O estudo do jornalismo no século XX. São Leopoldo: Unisinos, 2001. TOURINHO, Carlos Alberto Moreira. Inovação no Telejornalismo: o que você vai ver a seguir. Vitória: Espaço Livros, 2009.

ENTÃO, NO QUE SE TRANSFORMOU O JORNALISMO? Talita Rampazzo Diniz1

Introdução A visão de que a comunicação nas últimas duas décadas está enfrentando uma série de transformações tão profundas e decisivas quanto às sofridas pela invenção da prensa de Gutemberg, na primeira metade do século XV, tem se disseminado por ambientes tão diferentes quanto colóquios das ciências exatas e das ciências humanas e em conversas de mesa de bar. Ora, o mundo passa por transformações que chegam à comunicação e batem na porta das famílias de classe média através de novos produtos a serem adquiridos. Ora, a impressão em papel e todas as velhas mídias deixarão de existir dada à força da internet e das redes sociais na sociedade. Ora, o que mudou foi a quantidade de informações e a possibilidade de acesso a conteúdos sob demanda. Diante de todos os tipos de reverberações, umas entrelaçadas às outras, desenvolvedores e usuários das tecnologias nos diferentes níveis vivem uma acelerada corrida; aqueles para criar inovações e estes para experimentar essas mesmas inovações. Tudo parece estar mudando o tempo inteiro e, numa leitura apocalíptica compartilhada por muitos, somente os que acompanharem a velocidade das mudanças terão chances de sobreviver. Somente alguns, os mais inovadores e criativos, conseguirão prosperar. Se todas as previsões ocorrerem, muitos ficarão obsoletos, seja pela falta de acesso e de conhecimento sobre as tecnologias e as novas formas de comunicação, seja pela falta de interesse em seguir as tendências. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Email: [email protected] 1

Para os profissionais da comunicação, o momento descrito pode ser resumido entre a euforia de experimentar funcionamentos para os novos trabalhos e a cautela de como adaptar os trabalhos antigos que precisam ser revistos. Aparentemente, isso não é muito diferente do que ocorre em outras áreas, afinal a tecnologia assim utilizada de forma genérica, atingiu todos os campos de atuação profissional. Um breve levantamento de como áreas tradicionais, como a medicina e as diferentes engenharias, sofreram modificações nos últimos anos certamente mostraria que as mudanças não são exclusivas da comunicação e que a necessidade de revisar condutas faz parte de qualquer tipo de atividade. Ainda assim, parece existir um temor por parte de todos os que se ocupam profissionalmente da comunicação. Uma das razões desse desconforto é que, diferentemente do que ocorre em outras profissões, os diversos atores envolvidos em atividades relacionadas à comunicação possuem o receio de desaparecer ou, em casos menos drásticos, afligem serem substituídos por outros operários caso não saibam mais operar as máquinas sob a responsabilidade deles. O problema é que nessa revisão do velho descarte dos regimes capitalistas nem sempre as máquinas são substituídas por outras. Na maioria das vezes, elas vão sendo acrescidas umas às outras. Há, portanto, a necessidade de estar sempre operando na capacidade máxima mesmo que a competência em realizar as práticas não seja tão alta assim. Estranhamente, tudo é encarado como incrível e toda nova tecnologia deve ser usada em favor da comunicação, pois assim o objetivo da área seria atingido de modo cada vez melhor, conectando pessoas e conferindo a elas a possibilidade de disseminar conteúdos. É nesse encontro entre produzir e consumir informações que se abre uma encruzilhada para os profissionais de comunicação, algo que, talvez, outras áreas do conhecimento não estejam sofrendo. A grande questão da vez é: como ser profissional ou ter uma empresa de comunicação de algo que todos sabem fazer, ou

melhor, aparentemente podem fazer? Se no século XX o modelo um para muitos estabelecia os limites entre quem produzia e quem consumia conteúdos, o início do século XXI e, juntamente com ele as possibilidades de produção e de consumo muitos para muitos, trouxe indefinições sobre a legitimidade de quem atua no campo da comunicação. O dilema é ampliado no caso do jornalismo, até mesmo nas mídias mainstream2, já que os relatos sobre os acontecimentos passam a ser feitos por qualquer pessoa, caso ela consiga cumprir às exigências tecnológicas, conforme será visto ao longo do texto, são várias as imposições para que as pessoas possam contribuir com o jornalismo. No lado daqueles que fazem do jornalismo a sua profissão, é desejado um acúmulo cada vez mais amplo de competências e funções agregadas, como se o aumento da capacidade de trabalho fosse uma forma de superar as dificuldades encontradas. Em boa parte das profissões, como um resquício da racionalidade moderna, ainda vive-se uma superespecialização. Bem diferente do que dizem estar ocorrendo no jornalismo. A cobrança, agora, é por jornalistas que possam atuar em todas as etapas de uma cobertura, geralmente sintetizada por entrevistar, redigir, editar, fotografar, filmar, postar e ainda, como está sendo cobrado nos últimos tempos, dialogar com o público. Não se deve esquecer que os conteúdos devem ser levados para as diferentes mídias, segundo as especificidades delas. Entre decretar a morte do jornalismo e acreditar que essa profissão está em crise, praticamente nenhuma voz surge para negar as transformações em andamento, nem no mercado, nem nas universidades. Ainda assim, existem diferentes perspectivas sobre quais mudanças são essas. Neste trabalho, de modo iniCom essa denominação, procura-se dar conta de produções midiáticas que foram estabelecidas antes da internet e que possuíam, antes disso, formas de funcionamento consolidadas e legitimadas socialmente. Deve-se fazer a ressalva de que essa expressão foi preferida no lugar de mídias tradicionais ou de velhas mídias, provavelmente, ainda mais confusos. O termo mídias mainstream não significa a exclusão de rearranjos no funcionamento delas, pelo contrário. 2

cial, pretende-se verificar se elas poderiam ser resumidas a partir de algo central. Por enquanto, há a impressão de que todas as modificações podem ser resumidas com a constatação de que as relações estabelecidas pelos jornalistas com o público estão sendo executadas de formas diferentes visando à interatividade e à participação. Por conseguinte, haveria a necessidade de pensar sobre essas relações e, principalmente, de avaliar como elas estão sendo refletidas no jornalismo e em que medida o campo jornalístico estaria sendo alterado. A discussão por aqui levantada nasce da inquietação sentida a cada vez que o jornalismo é desbaratado. E isso não ocorre para defender a necessidade dessa atividade existir, ainda que se concorde com os argumentos trazidos por esse viés de pensamento. A inquietação surge pelo alarde exagerado e porque parece não haver muito sentido em se concentrar na simples identificação do que mudou, sem nunca satisfazer-se com esse trabalho. Da mesma maneira, se as tais transformações existiram é porque a elas foi dada uma abertura para que pudessem existir. O maior desafio é descobrir até onde elas poderão prosseguir, pois disso dependerá o entendimento do que é o jornalismo na atualidade. Em que pontos ele mudou e em que tantos outros não há mostras de que mudará tão cedo. Uma breve discussão sobre o jornalismo e o seu campo Quando foi que o jornalismo se apresentou como tal? A noção que perdura como base a partir da qual são apontadas as mudanças empreendidas na área é uma invenção recente, ainda do século XX. Ela coincide com a consolidação dos meios massivos, com a figura do jornalista, com a organização do espaço da redação e com a definição de técnicas e de rotinas criadas para padronizar o trabalho realizado. O jornalismo, mesmo sendo executado a partir das especificidades culturais de cada país, conseguiu, nos poucos séculos de sua existência, aumentar a sua capacidade de

realização tanto em termos de velocidade na execução de tarefas quanto no que concerne ao reconhecimento social do que estava sendo realizado. Ele passou a ocupar uma posição importante para os Estados e conquistou a confiança da sociedade civil. Se em meio a isso a definição do jornalismo pode variar, Traquina (2005) prefere conceituar o “campo jornalístico” como uma prova inconteste de que existem relações internas e externas que permitem a manifestação do jornalismo de certas maneiras e coíbe outras: Para recapitular, a existência de um “campo” implica a existência de 1) um número ilimitado de “jogadores”, isto é, agentes sociais que querem mobilizar o jornalismo como recurso para as suas estratégias de comunicação; 2) um enjeu ou prêmio que os “jogadores” disputam, nomeadamente as notícias; e 3) um grupo especializado, isto é, profissionais do campo, que reivindicam possuir um monopólio de conhecimentos ou saberes especializados, nomeadamente, o que é notícia e a sua construção (TRAQUINA, 2005, p.27).

A inspiração trazida ao jornalismo, a partir de Pierre Bourdieu, demonstra a compreensão da notícia como algo intrínseco ao “campo jornalístico”, um prêmio disputado, a partir do qual todas as práticas girariam em torno. Atualizando essas ideias com o embasamento dos dois primeiros apontamentos do autor português, o jornalismo da atualidade estaria em funcionamento devido a uma movimentação do próprio campo. Se qualquer pessoa pode publicar uma notícia, como vários portais de notícias da internet dizem autorizar, a adição de novos “jogadores” poderia ser vista como uma continuidade do campo jornalístico e não como uma transformação dele, uma metamorfose ou uma mudança de forma, afinal, o acréscimo de jogadores pode ser essencial para reforçar o campo e não para negá-lo.

Algo mais problemático parece surgir quando é feita a leitura do terceiro ponto previsto por Traquina, em que o autor traz os especialistas, ou ao menos os que se consideram como tais, como elementos norteadores do funcionamento de um campo. No caso tratado, os especialistas são todos aqueles que se identificam desse modo e por alguma razão são autorizados a isso. Um aspecto a ser observado é que nas experiências de convidar as pessoas a exercerem práticas jornalísticas em conjunto com jornalistas, quase nunca surge a identificação de que os convidados sejam também jornalistas. Em geral, eles são identificados como repórteres e a eles é concedida a oportunidade de contribuir geralmente com notícias. Em alguns casos, há a possibilidade de se poder contribuir com um texto que lembraria o artigo de opinião dos veículos impressos, embora se deva discutir as semelhanças e diferenças entre as produções, tanto nos textos informativos quanto nos opinativos. No portal do Terra3, é conhecido o espaço “VC repórter”, em O Globo há o “Eu-repórter”4, o Diário de Pernambuco possui o “Cidadão Repórter”5 e a rede americana CNN o “Ireport”6. Praticamente não são encontradas experiências que convidem as pessoas a serem jornalistas. Em uma busca rápida por “eu jornalista”, “você jornalista” ou “cidadão jornalista”, nas línguas portuguesa, espanhola e inglesa, reconhece-se a experiência bem sucedida do El País com “Yo Periodista”7. Também foi encontrado o site “You the journalist”8, mas mesmo esse em seus objetivos se descreve como um grupo formado por jornalistas e amigos de 3

Disponível em: . Acesso em: 13 ago.2011.

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Disponível em: . Acesso em: 13 ago.2011.

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Disponível em: . Acesso em: 13 ago.2011.

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Disponível em: . Acesso em: 13 ago.2011.

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Disponível em: . Acesso em 13 ago.2011

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Disponível em: . Acesso em: 13 ago. 2011.

todo o mundo que procura encorajar qualquer pessoa a expressar seus pensamentos sem censura. Parece sintomático que as experiências prefiram utilizar o termo repórter no lugar de jornalista. Do mesmo modo, observa-se que, embora boa parte das contribuições deva conter imagens fotográficas ou em vídeo, são praticamente inexistentes os convites para ser fotógrafo ou cinegrafista. Em uma busca rápida, novamente pelo Google, foi encontrado em um site do Vale do Jequitinhonha o espaço “VC Fotógrafo”9. Trata-se de um projeto especial para a valorização dessa região, portanto, não pertence a um grande veículo de comunicação. Não foram encontrados espaços com variações do tipo “Eu Fotógrafo”, “VC Cinegrafista” ou “Eu Cinegrafista”. Com relação ao uso do termo cinegrafista, ele continua sendo usado em telejornais com a alcunha de cinegrafista amador, o que soa um pouco estranho quando as imagens são veiculadas por um veículo que diz receber registros de notícias capturadas pelo público. A simples inclusão do nome de quem fez a captura das imagens certamente poderia parecer mais coerente se é incentivada a participação das pessoas e se quer delas uma atuação de “repórter”. Todas as iniciativas de chamar o público para contribuir com conteúdos trazem orientações de como a participação deve ser feita, o que poderia ser enxergado como um reflexo do terceiro ponto destacado por Traquina (2005), o de que há um grupo de especialistas que possuem um conhecimento especializado. Para esse autor, ele se concentraria na notícia e em suas formas de construção. Porém, será mesmo que esse monopólio continua restrito a esse aspecto? Em uma análise rápida, a resposta tende a ser positiva, pois em todas as experiências do jornalismo cidadão, do jornalismo colaborativo e do jornalismo open source, são feitas orientações de quais e como devem ser as notícias trazidas Disponível em:< http://www.soujequi.com/vc-fotoacutegrafo.html>. Acesso em: 18 ago. 2011. 9

por leitores-repórteres10. Não é preciso dizer que as orientações partem dos jornalistas-especialistas11. Ainda assim, a resposta não é plenamente respondida se for feito o questionamento do porquê de os jornalistas-especialistas apresentarem parte de seu conhecimento e, pior, permitirem a entrada de outros agentes no campo. Para isso, é imprescindível retomar Bourdieu (2003) e verificar como ele compreende a formação de um campo. Compreender a gênese social de um campo, e apreender aquilo que faz a necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do não-motivado os actos dos produtores e as obras por eles produzidas e não, como geralmente se julga, reduzir ou destruir (BOURDIEU, 2003, p.69).

O surgimento da internet, das novas mídias e plataformas inevitavelmente ocasionou alterações no jornalismo, sendo assim, elas “tornaram necessários” atos diferenciados por parte dos produtores do jornalismo. Na medida em que as inovações tecnológicas desse campo sempre serviram para aumentar a quantidade de notícias e a velocidade de disseminação delas, a inserção de conteúdos produzidos pelos leitores-repórteres pode significar o reforço desse mesmo objetivo. Dito isso, as modificações empreendidas estariam longe de serem arbitrárias ou absurdas, Denominação da autora. Com ela, deseja-se dar conta de agentes que colaboram com conteúdos jornalísticos. Mesmo sabendo que a categoria leitores nem sempre pode ser aplicada consensualmente a todas as mídias, a utilização desse vocábulo partiu da certa recusa de se utilizar categorias como espectador, audiência, público, pois elas poderiam causar ainda mais dificuldade no entendimento daquilo que se quer argumentar. Ainda assim, leitor-repórter não parece ser plenamente satisfatório. 10

Denominação da autora. Com essa denominação, deseja-se dar conta de agentes que determinam as regras de produção e de controle dos conteúdos enviados pelos leitores-repórteres. Ao contrário da categoria leitor-repórter, essa denominação parece dar conta da argumentação desenvolvida por aqui. 11

uma vez que elas poderiam ser um, novamente se insiste nesse argumento, reforço do próprio campo jornalístico. Ainda assim, a introdução de leitores-repórteres, ao trazer um encaixe diferenciado para o campo jornalístico, provoca necessariamente uma conformação de como os jornalistas-especialistas atuam no campo. Gillmor (2004, p. 111) considera que os leitores (espectadores ou ouvintes, eles traz as três denominações ao mesmo tempo) coletivamente possuem um conhecimento maior do que os jornalistas profissionais. Haveria, portanto, a necessidade desse conhecimento ser utilizado e reconhecido como parte da evolução do jornalismo12. Para que isso possa ocorrer, as escolas de jornalismo e os jornalistas em atuação deveriam pensar como os jornalistas-especialistas incentivam a conversa entre esses e os repórteres-leitores. “No mínimo, as escolas precisam insistir para que os estudantes entendam a interatividade genuína, que é a base para a conversa com a audiência” (GILLMOR, 2004, p. 133). Dessa maneira, concorda-se com o autor norte-americano de que a maior mudança, e também o maior desafio do jornalismo no futuro, é investir na conversação, ainda que ela possa ocorrer de formas muito variadas e com sentidos igualmente diversos. Retomadas as proposições de Traquina (2005), elas parecem manter a validade, porém os mecanismos como os diferentes jogadores podem adentrar no campo jornalístico merecem ser avaliados. Partindo do ponto de que os jornalistas-especialistas controlam as regras de como os jogadores podem atuar em um campo, percebe-se como o estudo das relações entre esses atores e os repórteres-leitores seria capaz de apresentar como o campo Ao ler isso, torna-se interessante o argumento utilizado pelas organizações Globo em documento apresentado em agosto de 2011 com os princípios editoriais da empresa. “O jornalismo é aquela atividade que permite um primeiro conhecimento de todos esses fenômenos, os complexos e os simples, com um grau aceitável de fidedignidade e correção, levando-se em conta o momento e as circunstâncias em que ocorrem. É, portanto, uma forma de apreensão da realidade”. Disponível em: . Acesso em: 19 ago.2011. 12

está sendo acomodado. Para compreender o fenômeno, será utilizada a perspectiva de Michel Foucault (2008), para quem a metodologia de análise das relações entre os elementos envolvidos em uma dada situação histórica facilita a identificação das estratégias e das táticas mantidas. Longe de ignorar as possíveis experiências do passado que inseriram de alguma maneira diferentes jogadores no campo jornalístico, acredita-se que somente nos últimos anos essas ações ganharam força e, hoje, passam a ser quase uma exigência. Sobre como se entende a interatividade e a participação A identificação do que seriam as estratégias e as táticas diferenciadas que provocariam a conversação no jornalismo pode ser iniciada a partir de considerações sobre como ocorrem as relações entre os homens e as máquinas, no caso específico como ocorrem as relações entre os homens e as mídias. Isso porque, dependendo da compreensão do que se entende por conversação, ela pode exigir uma quantidade variável de condições para pode ser estabelecida. Caso a conversação seja aproximada da comunicação dialógica, baseada nos preceitos de Mikhail Bakhtin (1992), em que a alternância de vozes deve ocorrer por uma postura responsiva e ativa em uma construção onde todos os envolvidos influenciam uns aos outros por eles estarem em um contexto de interação social, ela não parece ocorrer tão facilmente. Se o viés de análise exigir a presença física dos atores envolvidos com a mínima interferência de um meio, de fato, a conversação provavelmente teria mais chances de surgir nas comunicações interpessoais; nas mídias o que chegaria mais próximo disso seriam as transmissões ao vivo. Ainda assim, todos os casos devem ser verificados antes de serem considerados uma manifestação do dialogismo, tendo o jornalismo como promotor. Ao se acreditar na possibilidade de que a conversação poderia ser orientada sem necessariamente ter a presença face a face de

todos os atores na cena enunciativa e, da mesma maneira, ao se crer que os meios tecnológicos permitem o encadeamento entre os diferentes atores, podem-se estabelecer parâmetros de análise das relações assim estabelecidas. As observações que estão sendo feitas sobre as transformações no jornalismo partem usualmente do que seria a interatividade ou de explicações de como a participação, do público, às vezes na posição de leitor-repórter, ocorre. Em geral, os pesquisadores que utilizam a interatividade se preocupam como o aparato tecnológico pode ser usado em favor da comunicação e pesquisadores que utilizam a participação se preocupam com questões relacionadas ao receptor com ênfase ao caráter psicológico, antropológico e sociológico dessas trocas. Deve-se destacar que essa observação não é uma regra geral, pois, à medida que as pesquisas estão amadurecendo os dois termos passam a ser analisados conjuntamente. Ainda assim, deve-se dizer que tanto a interatividade quanto a participação inicialmente foram conceituadas com diferentes visões. Para Cha Yun Yoo (2011), as definições de interatividade podem ser reduzidas por meio de duas tipologias, uma primeira que pensa no meio (usuário/meio) e uma segunda que pensa na interatividade humana (usuário/usuário), interpessoal. Os blogs seriam um exemplo da interatividade humana enquanto os hiperlinks seriam uma mostra da interatividade do meio. O mesmo autor considera em seu trabalho a interatividade também como um estado psicológico do indivíduo. Quando o usuário deseja o maior número de informações sobre um assunto, a quantidade de links oferecidos em um site estimulará a interatividade. Já quando o usuário está envolvido por uma causa, deseja ferramentas que o façam se sentir engajado, portanto, a interatividade nesse caso será maior se ele puder manifestar a sua opinião e observá-la repercutindo junto com outras. Oliver Quiring (2009) introduz uma terceira variável sobre como a interatividade é enxergada. Para ele, além dos atributos dos sistemas tecnológicos e das percepções dos usuários, existi-

ria a interatividade decorrente do próprio processo de comunicação. É por meio dela que os participantes poderiam travar um diálogo ou um discurso - nos dois casos os termos são utilizados como no senso comum para indicar uma comunicação em que há, pelo menos, duas direções (emissão/retorno) para veicular as informações. A sua condição de funcionamento básica seria ter uma orientação bidirecional. Deve-se alertar que diferentemente de Cha Yun Yoo, a interatividade do usuário de Quiring é baseada em características de navegação, ativação sensória, conectividade, dentre outras, que não estão estritamente vinculadas ao caráter psicológico do usuário. Na visão de Vilches (2003), a interatividade em sua plenitude ocorreria a partir de uma nova zona de relações sociais, na qual o homem poderia se aproximar da máquina e fazer uso dela a partir de suas vontades e, claro, em função do serviço disponível. O homem é quem seria o responsável por gerir as suas formas de ver, utilizando as habilidades técnicas em um uso inteligente. É, então, tendo como base esse pressuposto que o autor apresenta uma subdivisão para a interatividade, a interatividade técnica e a interatividade comunicativa, demonstrando a sua preferência pela segunda forma, visto que ela conferiria uma função realmente diferenciada para os meios de comunicação. O posicionamento assumido por esse pesquisador sobre a interatividade comunicativa poderia se aproximar da participação, pelo menos, de como ela está sendo vislumbrada na atualidade. De acordo com Domingo (2008), os profissionais que trabalham com o jornalismo tradicional, assim utilizado por ele como o que foi praticado antes da internet, possuem dificuldades de entender a interatividade e, em geral, percebem-na como um problema e não como uma oportunidade de mudança. O estudo de Miranda (2008), que incluiu entrevistas com jornalistas de redações espanholas, apontou que uma parte dos profissionais continua pensando a inserção da audiência nos mesmos moldes dos esquemas rígidos, tal como acontecia com as cartas enviadas

pelos leitores ao editor. Isso é visto pelo autor como uma tendência ao imobilismo, em que o movimento, apesar de reconhecida existência, é vislumbrado de modo inercial, de tal maneira que nada parece provocar alterações drásticas que façam esquecer as práticas exercidas no passado. “Bem poucas intervenções apontam a uma participação mais ativa e estreita como a que temos apontado ao iniciar o capítulo, em que o cidadão e o jornalista podem estabelecer relações mais intensas e contínuas, ao menos em teoria”13 (Miranda, 2008, p. 116). No jornalismo, a participação surge como uma maneira de aumentar a quantidade de assuntos e de pontos de vista pautados pela mídia e, mais que isso, de fazer com que as pessoas possam acompanhar coberturas que estejam próximas da realidade delas. Kperogi (2011) classifica cinco tipos de jornalismo existentes: jornalismo tradicional, jornalismo cívico, jornalismo interativo, jornalismo participativo e jornalismo cidadão. O jornalismo tradicional é visto como meramente reativo no sentido de possuir uma participação limitada das pessoas e com o filtro do que acontece no mundo sendo dado apenas por jornalistas. O jornalismo cívico, corrente norte-americana dos anos 1990, seria uma reação do próprio jornalismo à falta de inserção de questões relacionadas ao exercício da cidadania, que serviria como uma demonstração de que o jornalismo tradicional poderia ter as mesmas preocupações de seu público. O jornalismo interativo surgiu com as capacidades técnicas, particularmente da internet, com as quais os grupos de mídia modificaram as formas como o público tem acesso ao conteúdo, aqui a interatividade adquire peso. O jornalismo participativo inclui o público no processo de filtragem dos conteúdos e coloca-o como colaborador e criador de notícias, enquanto o jornalismo cidadão promove a experiência de fazer com que as pessoas narrem os fatos sem que eles precisem passar por filtros de uma grande empresa de comunica13

Tradução da autora a partir do original em espanhol.

ção, muitas vezes, esse tipo de jornalismo é tido como ativista. É importante ressaltar que, a despeito dos filtros, nem sempre partirem de grandes empresas de comunicação, eles continuam existindo e, para nós, eles são dados pelos jornalistas-especialistas. Como foi descrito acima, cada uma das tipologias do jornalismo estimula de forma diferente a participação das pessoas. Embora a interatividade e a participação possam significar a mesma coisa quando trabalhadas conceitualmente, a participação adquire em geral o significado de algo verdadeiramente influente na comunicação. As iniciativas de solicitar contribuições do público partem sempre do apelo à participação, como se isso fosse ser mais bem compreendido ou ainda como se isso tivesse sempre um efeito positivo sobre esse mesmo público. Quase um sinônimo de participar, compartilhar também é outro vocábulo bastante utilizado nas mídias sociais e que começa a ser usado nas demais mídias. Apesar de as cinco tipologias do jornalismo servirem para entender como as características foram se sobrepondo umas às outras, seria útil pensar nas relações que podem levar ou não à conversação. Antes de iniciar essa descrição, é preciso de imediato reconhecer que as relações mantidas nas mídias mainstream não são exatamente iguais às relações mantidas pelas novas mídias. Essa visão não recusa, contudo, a possibilidade de as mídias atuarem em conjunto. Também deve ser dito que as mídias mainstream são aquelas veiculadas às empresas de comunicação. Elas se originaram de veículos de massa e, atualmente, também podem estar em funcionamento com a combinação de outras mídias e plataformas. Entende-se por novas mídias aquelas que se originaram da digitalização e auxiliadas pela internet iniciaram novas experiências, muitas se configuram como negócio e atuam na produção de conteúdos jornalísticos. A opção de não utilizar a expressão mídia tradicional se deve porque a ideia de tradicional está ficando cada vez mais longe no passado e, em breve, essa adjetivação perderá o referencial

da comunicação de massa unidirecional. A respeito das novas mídias, concorda-se com Manovich (2002) sobre a necessidade de se entender os efeitos da computação na cultura como um todo, com o computador envolvido na produção, distribuição e exibição de conteúdos. Ainda, de acordo com ele, foi modificada a identidade da mídia, por isso, ele lista cinco princípios básicos (representação numérica, modularidade, automação, variabilidade, transcodificação) para as novas mídias. “Nem toda nova mídia obedece a esses princípios. Eles não podem ser considerados como leis absolutas, mas como tendências gerais de uma cultura de computadorização. Como isso afeta cada vez mais profundamente a cultura, essas tendências podem se manifestar mais e mais”14 (MANOVICH, 2002, p. 49). Com uma reflexão sobre as consequências que a atuação de mídias em conjunto traria na comunicação, Scolari (2008) defende a teoria das hipermediações como uma necessidade teórica, pois ela seria capaz de reunir as teorias já existentes às novas teorias que venham a surgir para compreender os fenômenos provocados pela digitalização. No modelo proposto, a teoria das hipermediações ocuparia um espaço central nos estudos da comunicação e ela seria amparada diretamente ou indiretamente por outras teorias existentes, como as teorias da comunicação de massas, os estudos culturais, a cibercultura, a economia da comunicação, a semiótica dos hipermeios e todos os eixos correlacionados. Segundo o espanhol, a teoria das hipermediações ocuparia na contemporaneidade um papel semelhante ao ocupado pelos estudos da comunicação de massa no momento. A teoria das hipermediações deveria, inclusive, vestir-se do mesmo espírito interlocutor de outras teorias. De acordo com Scolari (2008, p.286), “figuras tradicionais como a do jornalista estão sofrendo transformações que os levam a se converterem em produtores/gestores polivalentes da informação e diferentes supor14

Tradução da autora a partir do original em inglês.

tes e formatos”15. Ele mesmo complementa que para entender as hipermediações deve-se ir além do processo de produção de novas textualidades e pensar em novas dinâmicas de consumo e modalidades interpretativas. Como pode ser percebido a partir de todas as referências trazidas, não se pode negar a influência das novas mídias, plataformas e dispositivos insurgentes nos últimos anos. Sem aprofundar a discussão sobre as motivações que trouxeram a interatividade e a participação como uma nova preocupação, cada vez mais essencial, são inegáveis os esforços que estão sendo feitos para fazer a categoria leitor-repórter adentrar no campo jornalístico. Muitas vezes, isso é feito sob o argumento de que a recusa dessa tendência poderá fazer as mídias mainstream perderem espaço e exercerem uma influência cada vez menor sobre a sociedade. Desse modo, são lançadas diferentes estratégias que procuram inserir esse novo agente no jornalismo, até então com influência basicamente restrita. Limites entre quem controla e quem informa a notícia Tudo o que foi discutido até aqui serve para retomar a questão de como o jornalismo se relaciona com seus principais interlocutores, aqueles que estão interessados em receber conteúdos e, dependendo do tipo de relação estabelecida, produzi-los e enviá-los. Como a ideia de relação possui grande amplitude, será pensado como os interlocutores são incluídos no jornalismo, possivelmente o primeiro passo para que a conversação seja possível. Ou seja, o jornalismo é tomado como medida primeira para se averiguar como os agentes podem passar a atuar nele. Se esse processo decorreu de pressões externas ao campo jornalístico, motivadas pelo comportamento social, são notórios os efeitos disso dentro desse campo. O quadro 1 abaixo tenta iden15

Tradução da autora a partir do original em espanhol.

tificar como os interlocutores participam do que é produzido pelo jornalismo. Evidencia-se que são considerados conteúdos fechados todos aqueles produzidos por jornalistas-especialistas. Os leitores-repórteres são convidados e autorizados a participar nos conteúdos abertos e, dependendo, de como essa participação ocorra, ele pode interferir no campo jornalístico, entendendo-se a interferência como um movimento em que não se pode prever exatamente o que ocorrerá. Deve-se alertar que a categoria conteúdo aberto não significa, como já foi discutido, uma abertura irrestrita e descontrolada do campo jornalístico. É imprescindível destacar ainda que por jornalista-especialista não se entende somente os jornalistas diplomados, mas todos aqueles que praticam atividades jornalísticas e, principalmente, controlam as regras de funcionamento delas. Assim, iniciativas como o OhmyNews, criador do modelo revolucionário de jornalismo cidadão, e o Indymedia (Independent Media Center), cuja meta é divulgar assuntos não trazidos pela grande mídia, poderiam ser enquadrados a partir dessa denominação, pois em ambos continua existindo um conjunto de regras a serem seguidas, formuladas pelos jornalistas-especialistas.

Tipo De Conteúdo

Exemplo

Fechado informativo

Ocorre quando a referência ao interlocutor é implícita na própria apresentação do conteúdo. Aqui se incluem as práticas de boa parte dos meios de comunicação de massa e, não só esses, também os aplicativos interativos de televisão, ainda sem o canal de retorno, e os de celular.

Fechado opinativo

É aquele veiculado por uma mídia de massa ou pelo jornalismo online, em que o interlocutor pode dar a sua opinião, geralmente, a partir de comentários, sem, de fato, interferir no conteúdo. Evidentemente, podem ser estabelecidos diálogos entre os interlocutores, mas eles não são um elemento constitutivo do conteúdo jornalístico, que continua a existir independente dos comentários.

Aberto informativo

Nesse caso, o interlocutor é convidado a enviar conteúdos de caráter noticioso como se atuasse como um repórter. Ao executar essa função, o interlocutor deve firmar o contrato de que o conteúdo enviado somente será publicado caso ele seja aprovado pelos jornalistas-especialistas.

Aberto opinativo

Semelhante ao caso acima, o interlocutor pode ter a sua opinião publicada, desde que aceite os termos quem a publicará.

Quadro 1 - Relações promovidas no jornalismo com seus interlocutores a partir do conteúdo produzido a partir das orientações dos jornalistas-especialistas.

Em momentos imprevisíveis um não-jornalista-especialista poderia temporariamente suspender as normas ditadas pelo jornalista-especialista. Isso aconteceria com a quebra de segurança do sistema que recebe o conteúdo com o ataque de um hacker ou ainda pode ocorrer devido a um fato imprevisível, registrado unicamente por um não-jornalista-especialista, que pode passar a ter em casos específicos uma atuação que se aproximaria da atuação de um repórter-leitor. São os casos de imagens capturadas por cinegrafistas amadores que passam a conter a legenda de

quem as produziu, por exemplo. A dificuldade de tudo isso para o jornalismo é saber administrar quais os casos que poderão fugir das regras estabelecidas. Até agora, o que se está vendo ainda são mais convites à interatividade e à participação e o aceite cada vez mais contínuo deles. Até agora, também quem convida continua sendo os jornalistas-especialistas e os repórteres-leitores devem seguir as orientações que recebem sobre o que deve ser a notícia. Então, o que o jornalismo se transformou? Ainda não é possível responder com facilidade a pergunta acima, porém a consideração de que o campo jornalístico continua mantido pode servir de alento à reflexão de como esse próprio campo se movimenta para se manter. Apesar de as modificações poderem vir do exterior desse campo, ainda são muitos os controles internos do próprio campo. Se por um lado, parece existir uma pressão da sociedade para contribuir com conteúdos jornalísticos, visto que existem as possibilidades tecnológicas para isso e, além do mais, as noções de interatividade e de participação estão sendo incorporadas culturalmente a partir dos games e da atuação nas redes sociais, as formas de relacionamento com o jornalismo continuam sendo orientadas em sua maior parte por jornalistas-especialistas. Dessa forma, é preciso pensar as mudanças no jornalismo, e suas possíveis transformações, a partir de como o próprio jornalismo autoriza a entrada de novos elementos ou reorganiza os antigos. Por enquanto, uma das estratégias mais utilizadas é fazer com que as pessoas pensem que podem atuar como repórteres. Outra crença igualmente vendida é que a opinião delas é importante. Como táticas, são criados espaços para a interatividade e para a participação. Investe-se na conversação ou na ilusão de conversação. Longe de enxergar tudo isso como algo negativo, é importante considerar que essas estratégias e táticas pertencem ao jornalismo. As mudanças existem, mas pode ser precipitado dizer que elas foram provocadas por uma transformação, algo realmente inédito e diferente. Retoma-se, nova-

mente, a pergunta: será que as mudanças verificadas nos últimos anos são suficientes para uma transformação? Se sim, a lógica de pensar o campo jornalístico permanece a mesma? Para finalizar, talvez, possa ser feito um último questionamento: será mesmo que o prêmio do jornalismo continua sendo as notícias?

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A VEZ DO QUEER: APORTES EPISTEMOLÓGICOS SOBRE OS ESTUDOS DE GÊNERO NA ATUAL PESQUISA EM COMUNICAÇÃO NO BRASIL Daiany Ferreira Dantas 1

Introdução “Queer é um corpo estranho, que incomoda, perturba, provoca e fascina” (Guacira Lopes Louro)

É recorrente o uso de conceitos2 de gênero na pesquisa acadêmica em Comunicação no Brasil, desde os primórdios de sua institucionalização. No entanto, são parcos os trabalhos dedicados a apontar quais os cenários possíveis, orientações teóricas, vínculos e assimetrias existentes entre tais pesquisas. Em recente mapeamento bibliográfico de teses e dissertações (ESCOSTEGUY, 2008), constata-se que grande parte destes trabalhos deriva do investimento científico de núcleos de pesquisa ou da iniciativa particular de pesquisadores de referência e seu potencial em formar jovens pesquisadores a sua volta. Uma parte menor origina-se na migração de lideranças dos movimentos feministas ao território acadêmico, com o objetivo de aprofundar-se em conceitos já apropriados em seu cotidiano político e legitimar seus objetos de luta a partir de uma perspectiva teórico-metodológica. Professora Assistente da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. 1

Há diversas abordagens teóricas possíveis na interpretação do gênero, a depender da corrente teórico-epistemológica assumida pela/o pesquisador/a. Cabe indicar essa pluralidade de vertentes. 2

O viés teórico assumido nessas pesquisas é frequentemente orientado pelo currículo dos docentes-orientadores, que, por sua vez, são influenciados por núcleos de investigação e teorias ascendentes nos países onde realizaram suas pós-graduações. Deflagrando, em muitas ocasiões, que aportes teóricos estrangeiros sejam transplantados ao solo de seu país de origem, com maior ou menor sucesso na execução das análises de objetos matizados pela especificidade nacional. É necessário partir de tal contextualização para apontar a desafiadora tarefa de construção deste artigo. Trabalhos já reconhecidos e vastamente citados, como os de Buitoni (1981), Escosteguy (2008), Hollanda (1994) e Lopes (2002), atraem para si a prerrogativa de afirmarem o seu pertencimento ao campo dos estudos de gênero. Mas, admitindo-se a vasta fonte de vertentes e escolhas teóricas possíveis, não há, de forma sistematizada, uma reflexão sobre a cartografia que os conecta – e a outros tantos pesquisadores dispersos - em suas proximidades e diferenças. Escosteguy (2008, p. 9), afirma que tem sido sistematicamente descartada a tarefa de realizar estados da arte sobre os estudos de gênero na comunicação, o que dificulta uma reflexão sobre o lugar deste campo teórico-metodológico na área. Em seu livro “Pesquisa em Comunicação”, Vassalo Lopes (1990) demonstra a imaturidade de um pensamento reflexivo sobre uma metodologia e pesquisa próprias às demandas da formação na pós-graduação nacional em Comunicação. A autora afirma que são poucas as disciplinas, mesmo em cursos de pós-graduação, dedicadas a sanar esse déficit, o que culminaria com a apropriação de paradigmas de conhecimento provenientes das Ciências Sociais e com o fortalecimento da pesquisa empírica. Com os estudos de gênero acontece algo similar, já que não se reflete criticamente sobre os tipos de análise empreendidos, recortes e escolhas, tão pouco existe, no campo da comunicação, espaço oportuno para trocas e interlocuções.

A extinção, no início dos anos 2000, do NP “Comunicação e Gênero” do Intercom, um espaço propício à reflexão sobre tendências de investigação, é sintomática dessa dispersão. Bem como do enfraquecimento político da institucionalização da pesquisa sobre gênero – ao menos da forma como vinha sendo delineada até então. Pode também acenar para as reterritorializações dos estudos de gênero na pesquisa em comunicação nacional, suas reconfigurações a partir de rupturas canônicas e mudanças epistemológicas. Essa questão será retomada ao final deste artigo. O objetivo deste trabalho não será realizar um estado da arte sobre o tema, nem ser um documento conclusivo. Mas, partir de uma abordagem conceitual relevante para a compreensão da dinâmica histórica da conceituação de gênero, numa tentativa de percurso epistemológico. A segunda meta é interpretar compilações e documentos já existentes sobre a produção científica de gênero em comunicação. Desta forma, destacaremos observações relevantes sobre as possibilidades teóricas no contexto dos estudos de gênero na pesquisa em comunicação nacional, com suas tensões, embates e possibilidades de investigação diante dos desafios vigentes. Antes, porém, cabe frisar que pesquisar gênero, mulheres, feminismo, sexualidade ou teoria Queer – admitindo a variedade de escolhas a depender de um pertencimento ideológico e metodológico - requer uma disponibilidade particular da/o pesquisador/a. Que deve saber que, mesmo resguardado pelo rigor de problemas, clivagem e aplicação das teorias, nunca estará politicamente dissociado dos fenômenos que analisa, por mais isento que seja o recorte e mais distante o corpus, as relações de gênero constituem a teia social, o amálgama humano. Basta observar o que diz Messa: A pesquisa feminista não é só aquela feita por mulheres, com mulheres, para mulheres, mas uma metodologia, um modo de pesquisa desenvolvido através de uma política e

uma prática onde o político, o teórico e o epistemológico têm sido pensados juntos para entender, analisar, explicar e criticar a posição da Mulher na sociedade (MESSA, 2008, p. 39, apud, GRAY, 1997, p. 98).

Por isso, pressupõe uma constituição metodológica que leve em conta os fenômenos históricos e culturais de seu entorno e a consciência política – muitas vezes expressa numa declaração tácita de pertença - de quem executa a pesquisa. Plurais ou diferentes – como e por que categorizar? Os estudos de gênero costumam aparentar uma plataforma homogênea aos não iniciados. Há termos que se mesclam e se confundem na interpretação e leitura destes, no entanto, os usos e apropriações de conceitos delimitadores das relações desiguais entre as identidades masculina e feminina apresentam fronteiras e distinções precisas, contextualmente determinadas. Variam historicamente, em função do lugar social destes/as pesquisadores/as, de seu maior ou menor grau de interlocução com o feminismo político e movimento LGBTTT, de sua área de atuação – comunicação, história, antropologia, sociologia, teoria literária. E costumam ter fontes afins, mas divergências em função de seus respectivos objetos ou escolhas políticas. O impacto de alguns textos sobre gerações de pensadores/ as costuma delimitar essas mudanças de paradigmas, embora, claro, a adesão a certos conceitos não seja massificada, mas pontuada de discordâncias e negações. Thébaud (2004, p. 67) explica que o termo “estudos de gênero” só foi, timidamente, apropriado pela academia francesa a partir da década de 80, tendo como via de acesso o feminismo acadêmico norte-americano. Ainda que estas pesquisadoras tivessem como marco de influência a obra de uma filósofa francesa, Simone de Beauvoir, escrita em 1949: O Segundo Sexo. O rechaço

acadêmico ao que se considerava inadequado, inferior e impuro – um debate filosófico acerca da condição feminina em torno de intimidades, comportamentos sexuais e relações sociais entre os sexos – retardou a apropriação francesa e mesmo levou a que elas, ao adotarem este campo de estudos como cátedra, recorressem ao termo mulheres (História da Mulheres), ou sexo (relações de sexo), evitando afrancesar ‘gender’. Curiosamente, seria uma historiadora americana a promover uma maior aceitação sobre o termo. Ao escrever o ensaio Gênero: uma categoria útil de análise histórica, Joan Scott (1995) propõe que as relações de gênero são social e historicamente construídas, devem ser interpretadas em função de seus contextos, analisando a dinâmica estabelecida entre dominadores e dominados. Scott, dessa forma, incluiu a figura masculina no território da análise, admitindo que a percepção de qual o papel de gênero adequado a certos contextos é uma construção cultural. Certamente um dos textos feministas mais citados das últimas décadas, as ideias de Scott vão de encontro aos debates sobre diferença instalados pelos estudos culturais anglo-americanos, bem como por correntes dos movimentos sociais – como as feministas negras norte-americanas – que pontuavam as exclusões e omissões históricas dos estudos sobre as mulheres, e, na verdade, se dispunham a mensurar como tais apenas as brancas, letradas e de classe média. Entretanto, Scott recebeu críticas destas mesmas representações por não aprofundar o debate sobre as transformações relacionais no gênero, amparando-o num aparente binarismo, vinculado ao sexo biológico. Na tentativa de oferecer uma visão do gênero que desse conta da sua pluraridade e diferença, Nicholson (2000) retoma a defesa do termo mulheres. Segundo esta autora, tal binarismo selaria o destino individual em duas possibilidades essenciais: feminina ou masculina, ambas atemporais e irreversíveis. E inscrever o paradigma do gênero sobre a visão naturalista das relações entre os sexos ocasionaria a exalta-

ção da herança biológica, preservando velhas formas patriarcais: a mãe, a protetora, a intuitiva, consolidando os estereótipos que este conceito deveria necessariamente borrar. A autora chama a esta adequação “fundacionalismo biológico”: assim, o conceito de ‘gênero’ foi introduzido para suplementar o de ‘sexo’, não para substituí-lo. Mas do que isso, não só o ‘gênero’ não era visto como substituto de ‘sexo’ como também ‘sexo’ parecia essencial à elaboração do próprio conceito de ‘gênero’ [...] o sexo ainda mantinha um papel importante: o de provedor do lugar onde o ‘gênero’ seria supostamente construído (Nicholson, 2000, p. 11).

Ela ilustra esse argumento em duas metáforas: o porta-casacos e o colar de contas. Na primeira, descreve o corpo biológico como cabide no qual são jogados os artefatos culturais, já a segunda representa a tentativa unificante de canalizar em “gênero” uma categoria universal, como um colar onde as contas têm de ser necessariamente vistas de maneira uniforme, negando a diferença existente entre as mulheres e as singularidades determinadas em razão dos componentes geopolítico, de raça, etnia, geração e classe. Com um conceito em disputa e um cenário de rupturas em ascensão – a pós-modernidade – a aceitação das políticas de diferença, por parte dos estudos feministas e de gênero – sobretudo os afinados aos estudos culturais – provocou uma cisão nas cátedras acadêmicas voltadas ao estudo das desigualdades entre homens e mulheres. Feministas de tradição marxista, sobretudo as de filiação francesa, rejeitando o que elas acreditavam ser a fragmentação política e consequente enfraquecimento e perda do referencial utópico catalisador do movimento, capaz de promover as conquistas necessárias à emancipação das mulheres espalhadas pelo mundo enquanto sujeitos – bem como críticas a uma postura mais integrada com a cultura de massas – enfatizavam o uso do

termo mulheres, no intuito de afirmar as mulheres como coletividade, como uma identidade política (DELPHY, 2001). Tal compreensão de subjetividade, pautada num sujeito estável e ascendente, ruiria aos poucos, à parte dos esforços do ativismo – político e acadêmico – cuja parcela mais tradicional ainda se aferra à manutenção da perspectiva de um sujeito plural feminista, com unidade em sua diversidade, como única perspectiva plausível de construir uma agenda feminista forte no embate por políticas públicas. A negação desta tese não impede, entretanto, que as fronteiras desse nivelamento entre mulheres sejam delimitadas e refeitas no interior dos próprios movimentos, que cada vez mais tem que lidar com a derivação de novos coletivos e a reconfiguração de identidades de gênero em ascensão – é uma demanda cada vez mais recorrente a de transexuais tomarem parte na pauta política dos movimentos de mulheres, para citar um exemplo concreto. Não por força da teoria, mas por esta espelhar uma práxis feminista cada vez mais fragmentada, o termo “mulheres” vem sendo substituído compulsoriamente por gênero. É Fiona Webster (2000) que analisa esse embate, tomando o diálogo acadêmico travado por Seyla Benhabib e Judith Butler. A primeira contesta a teoria da performatividade de Butler, o status que esta confere à cultura e ao discurso no delineamento de novas subjetividades, que considera o esvaziamento do conteúdo político do sujeito num referente opaco, disperso no social, abrindo mão de um sentido de agência que residiria no reconhecimento do sujeito. Webster (2000) claramente sai em defesa do conceito de performatividade por acreditar que é justamente este que possibilita análises em que significação e ação coincidem. Para ela, o sentido de agência em Butler reside na instabilidade do sujeito: The subject, for Butler, is constituted in and by a signifier (such as “wom-an”), where “’to be constituted’ means ‘to be compelled to cite or repeat or mime’ the signifier itself”

(1993, 220). Agency is located in this very action of at once being brought into being by and repeating or miming the signifier it-self. Possibilities for “agency,” and therefore for change and transformation, lie in the very activity of repetition and identification (WEBSTER, 2000, p. 11).

Para Butler (2003), as identidades seriam “efeitos” das práticas discursivas, produtos das “ficções reguladoras”, mas que teriam suas construções fantasiosas deslocadas pela dissidência de um sujeito performativo, que reinventa seu modo de inscrever-se na sociedade subvertendo as próprias normas que o regulam. Butler, desta forma, desconstrói o gênero binário e o fundacionalismo biológico, partindo para uma ressignificação política, cujo campo material seria o corpo, capaz de reinscrever o sujeito numa repetição que chama de atitude performativa, tentativas miméticas sucessivas de alcançar um ideal de gênero que nunca irá corresponder à expectativa. E estas ficções seriam denunciadas justamente pela imagem posta do que está excluído, fora do sistema, abjeto e, portanto, não-idealizado nem esperado pelas regulações sociais. Identidade e diferença na construção do gênero Queer As ideias trangressoras e materiais – por que ancoradas em informações evidentes e físicas de diferença – de Butler, que ousou dimensionar a dialética entre os corpos que importam (2002) e aqueles relegados à exclusão, foram apropriadas pelos movimentos LGBTTT, dentro e fora da academia, e hoje são basilares do campo de estudo designado como teoria Queer3. Mas, seus aportes sobre diferença, ruptura e ressignificação, encontram ressonância nos estudos pós-coloniais.

Idealizada, em 1990, por Teresa de Laurentis, como um campo teórico crítico à exclusão da questão de gays e lésbicas como objeto dos estudos de gênero. 3

A teoria pós-colonial desloca o sujeito estável, liberal e iluminista, aquele que Hall (1997) vai chamar de protagonista da “confortadora narrativa do eu”, para as margens. Na pluralidade de discursos e leituras, há uma permeabilidade no campo cultural em que as fronteiras tornam-se, também, um campo para a circulação de idéias. O sujeito Queer, por sua vez, existe pela transgressão, pela frustração de expectativas. Seu grande apelo é saber discursar a partir das sombras, da estranheza, do outro. Se o Queer é o estranho, o diverso, o abjeto, aquele que - invalidado e não aceito - ao existir espontaneamente contraria a expectativa de uma normalidade vigiada pelos padrões e códigos sociais, como não enxergar essa possibilidade para a crítica feminista, apropriada por um conteúdo cada vez mais recorrente? Questões de raça, classe, nacionalidade e gênero cada vez tendem mais a se acumular, o que também acontece na esfera das representações. Mais do que contrariar os estereótipos, o Queer os ironiza, num processo de resistência. Não à toa, Butler foi a teórica a fazer convergir os estudos culturais e pós-estruturalistas, tendo como referência a obra de Michel Foucault. Apropriando-se das suas ideias sobre sexualidade, a exclusão de certas corporalidades e o florescimento de uma subjetividade a partir dos dispositivos de restrição e controle, insurgindo na clandestinidade dos discursos, identificou que as marcas de subjetividade estão presentes nos estigmas e dissidências das representações de mulheres. E em seu movimento de deslocamento, que se torna visível na experiência performativa do corpo. Halberstam (2011), num ensaio que compara os sujeitos possíveis do feminismo às personagens da animação Fuga das Galinhas, observa que a feminista liberal, a galinha Ginger, é a líder que quer enfrentar a revolução, morrer tentando ou morrer em protesto, já Babs é a galinha Queer, a que se pergunta qual seria a outra solução, que não significasse se anular ou morrer, acreditando que existem sempre outras opções além das mais evidentes.

E estas opções estão na recusa em assumir uma identidade política óbvia, fácil, que não signifique submissão ou sacrifício. As escolhas, invisíveis ao sistema, residiriam na própria existência do subalterno, no que ele nos diz em sua linguagem própria, até mesmo pela via do silêncio ou pela exclusão, mas compreensíveis em face de uma análise que não os avalie com superioridade. O Queer como campo de estudos de gênero surge para possibilitar investigações que se ocupem das escolhas furtivas, fora de curso. Além da sentença, desfocadas. Mas cada vez mais presentes no cenário contemporâneo. Comunicação e Pesquisa: Invasões Queer No campo da pesquisa, a ação feminista nos estudos culturais anglo-americanos, a partir da década 70, e de forma bastante acentuada nos anos 1980 e 1990, trouxe contribuições pioneiras para o estudo de gênero no universo midiático. Tratava-se de um modo particular de pensar a pesquisa, elencando os componentes humanos ao eixo metodológico. O que culminou com um maior relevo do trabalho intelectual feminista, que por vezes confundia-se com os próprios estudos culturais, num eixo de evidência capaz de constituir um novo paradigma nos estudos de gênero, sobretudo por sua relação com o universo midiático (MESSA, 2008, p. 38). Tratavam-se de investigações que passavam a considerar a relação do público com seus prazeres secretos, ignorando princípios classistas de gosto e valor. Temas como ícones pop, representações de gênero na cultura de massas, imaginário gay, sexualidades dissidentes, visibilidade racial – um destes, ou vários, sobrepostos – passaram a merecer o interesse acadêmico. A cultura de massas passa a ser percebida menos como um espaço de refúgio da angústia burguesa e domesticidade frustrada e submissa e mais como um espaço de reconfiguração de

sentidos, onde resistências poderiam ser moldadas a partir de novos processos de significação. Por meio da observação das reviravoltas de significação no plano do conteúdo midiático, podemos compreender como o abjeto se reconfigura, seja por sua exclusão, seja por seu reposicionamento. Em seu inventário sobre a recente pesquisa em comunicação e gênero no Brasil, Escosteguy (2008) avalia as principais bases de conteúdo dos temas e, a partir delas, identifica as transições. E identificou alguns ciclos de pesquisa. Uma primeira leva, de 92 a 96, privilegia a análise de conteúdo, com foco na mensagem, para isso avaliando tanto a produção cultural quanto o produto destinado ao público feminino – os dois clássicos objetos de análise dos estudos de gênero. Analisa largamente, em pesquisas sobre representações de jornais e revistas, a fixidez de personagens midiáticos de gênero, repetitivas e formais. Um único trabalho, de 1993, de Jacira Vieira de Melo, analisa o uso de vídeos por grupos de mulheres em ações feministas. De 97 a 98, eclodiram os estudos de recepção, influenciados pelo trabalho de Jesus Martín-Barbero, que tinha por objetivo avaliar a relação de grupos humanos com produtos da cultura de massas. Nessa mesma época, a não ser por um trabalho sobre a representação das mulheres nas mídias sindicais, as pesquisas voltam-se para a construção da identidade em produtos para públicos diferenciados. Surgem estudos sobre a expansão do consumo por parte da juventude, como as personagens femininas das Histórias em Quadrinhos de Herói, ou associadas à identidade nacional e um contexto específico da produção cinematográfica, como a pesquisa sobre personagens femininas na obra de Glauber Rocha. Eram olhares que apontavam clichês, estereótipos, permanências. A partir dos anos 2000, o mapeamento identifica estudos sobre sexualidade, a presença da temática gay e a questão racial, em tentativas de deslocar as análises do perfil de estereótipos

convencionais. Das formas tradicionais, colonizadas, patriarcais, estáveis e estereotipadas, a crítica volta seu interesse, cada vez mais, às formas dissidentes de representação. Em número da revista Eco-pós, editado em 2010, com dossiê sobre Gênero e Cultura das Minorias, no sumário figuravam títulos que indicavam enfoques acerca do homoerotismo, heteronormatividade, uso do véu – a mulher na cultura islâmica – e os limites e sentidos da homossexualidade em revistas de grande circulação - evidenciando mais uma vez a interseção entre as subjetividades relegadas às sombras e à estranheza. Por sua possibilidade de abranger objetos culturais diversos, dos sofisticados e eruditos aos vistos como triviais e descartáveis, por contar com um arcabouço teórico que investiga fenômenos culturais, rituais de espetacularização e consumo, por dispor de instrumentos metodológicos flexíveis, como a análise de conteúdo e os estudos de recepção – em sua proximidade com o método etnográfico – e pela diversidade de representações – ainda que ambíguas e controversas – que coexistem na cultura de massas, pela flexibilidade de produção cultural, tornando a capacidade de produzir e lançar novos discursos acessíveis a grupos minoritários, o campo da comunicação é um território para a franca expansão dos estudos Queer. A escolha pela dimensão Queer nos estudos de gênero é ainda discutível e bastante associada a representações transgressoras por excelência. No entanto, é compatível com outros objetos, cuja subalternidade tenha essa qualidade do silêncio, da abjeção ou da estranheza. Assim como a adesão cada vez mais frequente à adoção do termo gênero, em vez da adoção da categoria de representação “mulheres” – um reflexo teórico, delimitado pelos objetos disponíveis – o uso do termo Queer, que transcende, agora, a ressignificação de um adjetivo pejorativo voltado à homossexualidade, pelas conexões que possibilita, pode vir a fomentar debates cada vez mais amplos sobre a questão de gênero – suas escolhas e negações – na contemporaneidade.

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ETNICIDADE, MISCIGENAÇÃO E NEGRITUDE: DIÁLOGOS, PERIGOS E AMBIGUIDADES Kywza Joanna Fideles P. dos Santos1

Introdução Na última década, as noções de etnicidade, miscigenação e negritude têm sido bastante utilizadas nos debates inflamados acerca da questão racial no Brasil, especialmente devido à polêmica em torno do projeto de Lei de Cotas raciais, assim como ficou conhecida a PL 73/99 da deputada Nice Lobão (DEM), e do Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000, do senador Paulo Paim, PT); assim como devido à discussão de outras políticas de Ações Afirmativas, a exemplo da Lei 10.639/03, que tornou obrigatória, nos ensinos fundamental e médio, a inclusão curricular de História da África e Cultura Afro-brasileira. A ação movida pelo Partido Democratas – DEM contra o sistema de cotas, implementado em 2009, na Universidade de Brasília, é um dos exemplos em que a argumentação passa pelo aclamado princípio de igualdade, e pela questão do acirramento de conflito racial. Duas argumentações que funcionam dentro das ambiguidades de conceitos, – sobre os quais discutiremos mais adiante –, que acabaram atuando fortemente na negação do problema racial no Brasil. Vivemos em um país em que a desigualdade e o racismo são heranças socioculturais da escravidão. Se todos nós somos tratados como iguais, se o problema é econômico e não racial, então por que as cotas acirrariam um conflito racial? Para acirramento de um conflito, subentende-se que este exista previamente. Por fim, no dia 26 de abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal – STF julgou improcedente a ação Aluna doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. E-mail: [email protected]. 1

movida pela DEM, e, unanimemente, considerou constitucional a política de cotas étnico-raciais adotada pela UNB para a seleção de estudantes. A intenção aqui é salientar como, em meio a esses debates, podemos observar que, em diversas áreas de conhecimento, os conceitos de etnicidade, miscigenação, democracia racial e negritude ganharam espaço não apenas no discurso acadêmico, mas em vários setores da nossa sociedade. Alguns destes conceitos, e suas noções, a exemplo da miscigenação e da democracia racial, têm suas reatualizações arraigadas dentro do “mito fundador” (CHAUÍ, 2000) do caráter nacional, como também como o discurso de identidade nacional, ambos baseados na celebração da miscigenação e da cordialidade, que estão intrinsecamente ligados aos próprios sistemas organizados para manutenção de um status quo, em que se misturam preconceitos enraizados com os interesses particularistas e patrimoniais. São recorrentes os diversos usos e sentidos adotados nas práticas discursivas que engendram os conceitos de etnicidade, miscigenação e negritude. Usos e sentidos que aparecem de forma conjuntural, e que vão desde o arraigamento do novo racismo, o cultural (HALL, 2006), até a valorização das identidades negras, assim como a utilização da miscigenação como escamoteador de conflitos e catalizador de tensões. Desse modo, debruçaremo-nos em meio às questões teórico-conceituais e suas implicações nas variadas formas de conceber as diferenças diante do complexo contexto brasileiro no campo simbólico e concreto das representações. As temáticas da etnicidade, miscigenagão e negritude (ou poderíamos dizer noutra ordem: miscigenação, negritude e etnicidade?) têm estado presentes em muitos contextos e espaços de sociabilidade. Tais questões se tornaram verdadeiros fenômenos de classificação, bandeira ideológica e/ou discurso de assimilação, contestação e reivindicação. No Brasil, um país chamado de multicultural e pluriétnico, termos se relacionarão de maneira

paradoxal, a adoção ou defesa de conceitos como identidade étnica, interculturalidade, multicuturalidade, pluralidade cultural e transculturalidade trarão em seu escopo diálogos, afinidades e distorções teóricas com os primeiros já citados, na busca de dar conta dos diversos processos em que as identidades raciais, culturais e sociais, são acionadas de forma diferenciada no mundo moderno e contemporâneo. Raça, Etnicidade e Cultura Frederik Barth em 1969, em um texto introdutório à obra coletiva sob sua direção, funda uma linhagem do conceito de etnicidade, substituindo a concepção estática de identidade étnica por uma concepção dinâmica. Barth compreende a identidade étnica (individual ou coletiva) como sendo construída e transformada na interação de grupos através de processos de inclusão e exclusão, no qual estabelecem limites entre tais grupos, definindo assim os que os integram ou não. A etnicidade não é um conjunto intemporal, imutável de “traços culturais” (crenças, valores, símbolos, ritos, regras de conduta, língua, códigos de polidez, práticas de vestuário ou culinárias, etc.), transmitidos da mesma forma de geração para geração na história do grupo, ela provoca ações e reações entre este grupo e os outros em uma organização social que não cessa de evoluir. Essa abordagem mais sociológica que etnológica do objeto de pesquisa representado pelas relações interétnicas renovou de modo incontestável a problemática e o método, instigando o pesquisador a se questionar como, por meio das mudanças sociais, políticas e culturais de sua história os grupos étnicos conseguem manter os limites que os distinguem dos outros em uma organização social que não cessa de evoluir (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2000, p. 11).

Nesse sentido, o imaginário social e os símbolos significativos da identidade étnica fundam a crença de uma origem comum. Para os autores citados “o que diferencia, em última instância, a identidade étnica de outras formas ou identidade coletiva é o fato de ela ser orientada para o passado” (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2000, p. 13). Assim, um passado que representa uma memória coletiva, mesmo que fundado em um passado mítico pode conformar um pertencimento étnico. É preciso salientar que não há intenção aqui traçar um panorama histórico sobre o conceito de etnicidade, mas sim abarcamos uma concepção vinda da tradição ocidental que permanece em discussão no contexto hodierno e que requer algumas elucidações até chegarmos à problemática racial que engendra tal concepção. Nesta perspectiva, se pensarmos a noção de etnicidade forjada pela tradição sociológica de língua inglesa, que tende a tratar a existência de grupos étnicos como um problema no que diz respeito à entidade social, podemos destacar que, no Brasil, essa existência de grupos étnicos foi conformada de maneira diferente, e deu lugar ao ideário de miscigenação em contraposição um discurso multiétnico. De acordo com Poutignat e Streiff-Fenart (2000, p. 43), ‘o termo “etnia” não seria senão uma vã tentativa de fugir a uma forma de pensamento biologizante, que se acha de fato restabelecida nas relações cotidianas através de expressões como “problemas étnicos” ou “minorias étnicas”. Ou seja, um eufemismo que reafirma o racismo, este substituído por definição pelo termo etnia, que tem suas relações permeadas pelas novas formas de manifestações de raça, etnia e identidade, a partir das quais se criou o racismo cultural. Em países europeus tanto o termo racismo como etnia irão desembocar na ideia de nação, pois a etnia, principalmente estará associada a aspectos biológicos e culturais. Guimarães (1999), procurando compreender o “racismo no paraíso racial”, ressalta que a ideologia racial que particulariza o

Brasil tem como especificidade o fato da nacionalidade brasileira ser formada, ou imaginada, como comunidade de indivíduos dissimilares em termos étnicos, que chegavam de todas as partes do mundo, principalmente da Europa. No Brasil, a nação foi formada por um amalgama de crioulos, cuja origem étnica e racial foi “esquecida” pela nacionalidade brasileira. A nação permitiu que uma penumbra cúmplice encobrisse ancestralidades desconfortáveis’. Com a substituição da ordem escravocrata por outra ordem hierárquica, a “cor” passou a ser uma marca de origem, um código cifrado para a “raça”(GUIMARÃES, p. 47-48).

Dessa forma, no Brasil, a concepção de nação irá se apoiar no ideário da miscigenação, suplantando a concepção de etnia no sentido biológico e cultural. A miscigenação nesse sentido passa a ser entendida como fator homogeneizante, com tendências a eliminação da consciência de si e de grupo. Assim, a filiação nacional volta a caracterizar-se pela origem comum e de sangue. No caso brasileiro de uma origem compartilhada, esse discurso de filiação nacional aparece, porém, apenas na afirmação recorrente de que “somos um país mestiço”, numa perspectiva homegeneizante, todavia utilizando, paradoxalmente, conceitos balizados na diferenciação, esta reconfigurada, estrategicamente, como marca de identidade nacional. Desse modo: A passagem da concepção de raça para o de cultura elimina uma série de dificuldades colocadas anteriormente a respeito da herança atávica do mestiço. Ela permite ainda um maior distanciamento entre o biológico e o social, o que possibilita uma análise mais rica da sociedade (ORTIZ, 2006, p. 41).

Inobstante a assertiva de Ortiz, não podemos esquecer que outras dificuldades surgem à compreensão e disposição das

identidades mestiças e suas práticas culturais. Desde a criação das noções de raça e etnia, no século XIX, pode-se perceber a utilização delas ligada a termos e noções que mantêm uma conexão ou relação conceitual, a exemplo de termos como “povo”, “nação” e “raça”, em suas ambigüidades que ainda permanecem na contemporaneidade. A abrangência e descontinuidades dos conceitos de etnicidade e miscigenação remontam um problema sintomático nas sociedades multiculturais e pluriétnicas: o acesso à cidadania pelo viés da diferença. Esta é celebrada com fins ideológicos conformação e negada estrategicamente quando questionada sobre seus papeis sociais. O termo identidade étnica passou a ser bastante utilizado para definir manifestações e/ou identificações de povos racializados, no sentido de pertencimento cultural. Os usos e sentidos desse termo podem ser vistos tanto nos movimentos sociais quanto nos discursos midiáticos. Se pensarmos como a reverberação de conceitos que se articulam paradoxalmente em duas vias: a da negação e a da valorização; podemos perceber que esses usos e sentidos consubstanciam as disputas simbólicas no seio de conflitos que não se diluíram com o ideal edulcorado de miscigenação, pois a reivindicação pelo lugar de fala redefine o estigma étnico acionado como fator positivo de afirmação, luta, reivindicação e conquista. Assim, o estigma é ressignificado positivamente. Miscigenação e democracia racial: perigos e ambiguidades No complexo contexto brasileiro, é no campo simbólico das representações que há uma forte tendência a resgatar a miscigenação e o mito da democracia racial como pano de fundo para negar qualquer pertencimento étnico. Desse modo, dentro do escopo teórico epistemológico, o conceito de miscigenação serviu e serve, por vezes, para invisibilizar as diferenças sintomáticas e determinantes no processo de alijamento social. Também é possível perceber que a miscigenação tornou-se um argumento, tanto

na academia quanto fora dela, contra, por exemplo, a implementação de políticas de Ações Afirmativas para inclusão social de povos historicamente marginalizados. A questão da miscigenação no século XIX foi abordada por pensadores brasileiros inspirados em teorias ocidentais (europeus e americanos), desde o pensamento iluminista com foco nas ambivalências do caráter da miscigenação, ou seja, tanto no viés da degradação da raça quanto no sentido de branqueamento e purificação. Em meio a essa ambivalência, o conceito de mestiçagem no século XX passa a figurar um projeto político de identidade nacional. A mestiçagem, do ponto de vista populacionista, é um fenômeno universal ao qual as populações ou conjuntos de populações só escapam por períodos limitados. É concebida como uma troca ou fluxo de genes de intensidade e duração variáveis entre populações mais ou menos contrastadas biologicamente. E entende-se por população um conjunto de indivíduos que se reproduzem habitualmente entre si; um conjunto definido biologicamente e não a priori. O fenômeno da mestiçagem, analisado do ponto de vista populacionista, parece-me ter menos implicações ideológicas do que na abordagem raciologista (MUNANGA, 2008, p. 17).

Se do ponto de vista populacionista, o fenômeno da mestiçagem, para Kabenguelê Munanga, parece ter menos implicações ideológicas do que na abordagem raciologista, do ponto de vista de um projeto nacionalista de identidade parece-me um arcabouço definido e bem sucedido ideologicamente, tanto é que a discussão em torno da “identidade mestiça,” na segunda metade do século XX vem reatualizar a noção de mestiçagem, como conceito e fenômeno que fracassou enquanto projeto de branqueamento no Brasil do início do século XX. A proposta de uma identidade mestiça é vista por Munanga (2008, p. 16) como uma nova sutileza ideológica para recuperar a ideia da unidade

nacional não alcançada pelo fracasso desse branqueamento físico, e ainda vai na contramão dos movimentos negros e outras “minorias” que lutam pela construção de uma sociedade plural, de identidades múltiplas. Podemos destacar o pensamento freyreano como fundante de uma ideologia da miscigenação, esta concebida como um ideal baseado no que ele entendia por convivência marcada pela ausência de preconceito de cor nas relações e no intercurso sexual. O processo de miscigenação demarcaria o ponto de partida da “democracia racial” no Brasil que, segundo Freyre (1933), teria se dado a partir de harmonia social na estrutura escravocrata. Freyre fundamenta sua teoria com base em outros sistemas escravistas, em especial o dos Estados Unidos, que seria, segundo ele, mais cruel e devastador. Nesta perspectiva, a miscigenação pode ser entendida como vetor da democracia racial. Mas, o mito da democracia racial também contribuiu de maneira substancial para a construção e perpetuação da ideia de mestiçagem no Brasil. Freyre compreende a mestiçagem como principal símbolo da identidade nacional, assim o mulato seria o elemento de conciliação entre as raças predominantes no país, negra e branca. Mas, o mulato, como diria Oliveira e Oliveira, tornou-se e é “um obstáculo epistemológico” (MUNANGA, apud, OLIVEIRA, 2008). É o que permanece até os dias atuais como discurso maquiador das relações raciais brasileiras, pois é nesse sentido que se reatualiza esse ideário de um povo mestiço e cordial, com base no “Mito fundador” da identidade nacional: O mito fundador no sentido antropológico, no qual essa narrativa é a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade (CHAUÍ, 2000, p. 6).

A reatualização constante desses mitos acerca da formação social brasileira, principalmente no que diz respeito à miscigenação como harmonia racial, como símbolo da ausência de conflitos, tem um papel preponderante na vulgarização, particularização e invisibilização dos problemas étnico-raciais que vão engendrar as disposições e conflitos de classe e raça. Desse modo, por não ser um país dual, como afirma Chauí, a dificuldade é aplicar esse dualismo (branco/negro), como é comum em países como os Estados Unidos e África do Sul. Entretanto, a ausência desse dualismo como caráter classificatório passa a representar um aspecto importante na negação de uma sociedade com problemas raciais, que tem arraigada em sua estrutura fundadora a “cultura” da escravidão. O que acontece no Brasil é que No domínio da “democracia racial”, culpado (reprovável) é aquele que tenta apresentar o discurso racial, racista ou não, na forma do discurso sério, público e formal, tematizando as relações raciais: reconhecer a idéia de raça e promover qualquer ação anti-racista baseada nessa idéia é interpretado como racismo (SALES JR., 2006, p. 23, apud, GUIMARÃES, 1999).

Daí parte também a dificuldade de classificar racialmente e etnicamente uma população tão miscigenada, dificuldade que muitas vezes é utilizada como uma forma de desarticular as lutas políticas das populações afro-descendentes. Porém, a dificuldade de identificar e classificar a população de cor no Brasil não é um fato contemporâneo, desde os censos da época do império (1878) é possível afirmar que muitas variações das categorias de cor eram aplicadas nessa identificação, e por diversos motivos, como por exemplo, o medo de uma re-escravização da população negra, o receio de pagar imposto por causa da cor, como também a recusa da cor, pois a vê como estigma, ou por alienação imposta. A partir do século XIX, as categorias de “cor” começam

a ser omitidas em outros documentos oficiais, pois esse critério poderia causar constrangimento. No fim do século XIX e início do século XX, um país considerado símbolo da democracia racial estimula a imigração de trabalhadores europeus com fins de branquear a população. A ideologia do branqueamento foi adotada pelo governo brasileiro como é possível constatar em declarações e documentos da época2. Na primeira metade do século XX, principalmente a partir dos escritos de Gilberto Freyre (1933), há uma celebração da mestiçagem adotada politicamente como ideal de identidade nacional. Como ressalta Munanga (1998, p. 5), “O não reconhecimento ou o reconhecimento inadequado da identidade do “outro” pode causar prejuízo ou uma deformação ao aprisionar alguém num modo de ser falso e reduzido (apud, TAYLOR; CHARLES, 1998, p. 45-94). No embate mestiçagem verus racismo, Liv Sovik entende que a exclusão racial no Brasil fala em duas vozes: ‘uma no privado, sobre o valor da branquitude e outra, pronunciada em alto e bom som, sobre a noção de que cor e raça são de importância relativa já que a população é mestiça. Assim, a ideia de que ‘aqui ninguém é branco’ e da mestiçagem como valor é uma ‘ideia afetiva’ (...). A adoção do discurso da mestiçagem é uma antiga concessão, incorporada no decorrer dos anos pelo senso comum, à presença maciça de não brancos em uma sociedade que valoriza a branquitude e uma antiga e atual forma de resistência ao olhar eurocêntrico (SOVIK, 2009, p. 38-39).

É nesse sentido paradoxal que a mestiçagem brasileira opera, mesmo que dentro dela haja uma escala determinante de cor que dita os lugares e papéis sociais pelas nuances dessa cor. As formas de representação dos negros ficam restritas ao imaginário popular reforçado pelos mitos, que criam e recriam no tecido simbólico da sociedade uma barreira para que se consiga uma 2

Sobre a política de branqueamento no Brasil, ver Marco Aurélio Luz (2008).

real democracia. Também é possível apontar o paradoxo do que se converteu em democracia racial, que em sua acepção, é um termo contraditório, pois se não há uma racialização das relações sociais, então uma democracia racial sem raças deveria ser denominada apenas de democracia (SALES JR., 2006). Negritude e seus possíveis diálogos: da negação à afirmação No início do século XX, as narrativas antirracistas surgem a partir das teorias pan-africanista3 (1919): Du Bois e Marcus Garvey; e da negritude4 (1930): Aimé Césaire, Leon Damas, Leopold Sédar Senghor). Estas teorias serão fundamentais como marco das contranarrativas da modernidade, ainda que algumas dessas se concentrem no viés essencialista e mitológico, assim como as tradições teóricas sobre etnicidade e miscigenação. Porém, essas narrativas se configuraram como fontes de contestação conceituais de cunho epistemológico guiando as novas dimensões teóricas e práticas. Os ideais de Negritude e do Pan-africanismo criados no Novo Mundo foram inspirados, em sua maioria, em intelectuais africanos, em figuras políticas ou artísticas que representavam a África, principalmente a subsaariana, e a luta pela descolonização. A África nos discursos negritudinistas seria o elo, fonte de identidades comuns, não no sentido étnico, visto que sua diversidade é incomensurável, mas na questão da racialização das relações Movimento que pregava a união dos povos africanos e diaspóricos contra o racismo, em defesa dos direitos dos africanos vivendo sob dominação colonial, pela volta às origens ancestrais e reestruturação da África através de remanejamento étnico. 3

Movimento político e literário que se oporá à política de assimilação cultural, negando o modelo ocidental e condenando sua imitação, numa tentativa de volta às origens africanas, como meio de libertação da dominação racial e cultural. O conceito do que se convencionou chamar de Negritude gira em torno de duas interpretações: a mítica, que seria a volta às tradições africanas, ou seja, a descoberta do passado anterior à colonização numa tentativa de revitalizar as origens para restabelecer a realidade africana desconfigurada e “perturbada pela intervenção ocidental”; e a ideológica que propõe “um modo de ser negro, impondo uma negritude agressiva ao branco” como resposta às práticas históricas dos colonizadores. 4

sociais e da categorização de grupos, criadas a partir do contato entre a Europa, o Novo Mundo e a África (SANSONE, 2007). Se a África é o ponto comum, seu despertar através das primeiras manifestações culturais e intelectuais no Novo Mundo foi a forma encontrada de pertencer a uma história, a algum lugar, já que lhe era negado um lugar de cidadão, de filiação nacional. Buscar uma África mitológica, na maioria das vezes, era a única maneira de negar a visão eurocêntrica de que os povos negros eram “desprovidos de história” (WOLF, 1983, apud, SANSONE, 2007). Nas obras de intelectuais africanistas e nas narrativas da africanidade começam a se desenhar as primeiras contestações da historiografia oficial sobre os negros e mestiços. Num primeiro momento, o significante negro foi invisibilizado como sujeito histórico a partir de teorizações racistas. Posteriormente, o embaço das categorias teóricas de análises não davam conta da complexidade das distintas condições de raça e classe em diversos capítulos da narrativa da história ocidental. Dentro dessas premissas, é possível compreender como a lenta mudança nas concepções teóricas segue as correntezas de um rio que separa abruptamente as pedras posicionadas de forma estratégica no seio das narrativas tradicionais do século XIX e XX. O termo negritude foi criado por intelectuais negros no final da década de 1930 em Paris. O primeiro a conceituá-lo foi o martinicano Aimé Césaire, que juntamente com o senegalês Leopold Sédar Senghor e o ganês León Damas encabeçaram um movimento político e literário, o Movimento da Negritude, que se oporá à política de assimilação cultural, negando o modelo ocidental e condenando sua imitação, numa tentativa de volta às origens africanas, como meio de libertação da dominação racial e cultural. A recusa social do ser negro impulsionou a buscar uma possível solução para a situação que seria “a retomada de si, na negação do embranquecimento, na aceitação de sua herança sócio-cultural (...). A esse retorno chamamos Negritude” (MUNANGA, 1988).

Interpretada ora como formação mitológica, ora como movimento ideológico, seu conceito reúne diversas definições nas áreas cultural, biológica, psicológica, política e em outras. Esta multidisciplinaridade de interpretações está relacionada à evolução e à dinâmica da realidade colonial e do mundo negro no tempo e no espaço (MUNANGA, 1988, p. 5).

Munanga destaca que dentro das duas interpretações da negritude há uma variedade de definições. Desse modo, o autor aponta as seguintes: o caráter biológico ou racial; o conceito sócio cultural de classe; o caráter psicológico e a definição cultural (MUNANGA, p. 51-53). De acordo com o autor, o reconhecimento dessa dupla interpretação (mítica e ideológica) explica por que a negritude aparece ambígua e contraditória. O termo negritude se tornou corrente no mundo, sofrendo variações semânticas onde foi reelaborado como conceito. No Brasil, segundo Ferreira (2011), no início do século XX, na cidade de São Paulo, através das atividades associativas e literárias, houve uma tentativa de nomear o ideal de valorização do negro como negridade, anterior ao surgimento da negritude, que concorreu com o conceito de negrícia. Até 1975 a palavra negritude está ausente dos dicionários brasileiros. A partir desse ano é que o termo é inserido como corrente na língua portuguesa, na primeira edição do Dicionário Aurélio, apesar do termo negritude já vigorar nos discursos brasileiros, menos por influência dos intelectuais africanos que pelo movimento de descolonização da África e pelo movimento dos direitos civis dos negros norte-americanos (FERREIRA, 2011). É possível perceber que a noção de negritude como valorização das identidades negras entra na pauta dos movimentos negros brasileiros, da imprensa negra, assim como pode ser vista também na música popular brasileira, esta acionará o discurso identitário, passando pelo pertencimento étnico, pela celebração mestiçagem e pela reivindicação positiva de negritude, já nos lundus das décadas de 1920 e 1930.

Na análise de Ferreira (2011), a primeira definição no Dicionário Aurélio não há indicação de datas, nem etimologia; e a segunda definição dada pelo Dicionário Houaiss é de forma mais sucinta, sem mencionar movimentos ou ideologias específicas ao Brasil ou a qualquer país no exterior. Ferreira enfatiza também que a negritude brasileira, dentro da sua compreensão inicial está mais ligada à vertente senghoriana, que tem uma ênfase mais africana, diferentemente da vertente antilhana, mais particularista. Roger Bastide (1961) foi uns dos primeiros a introduzir o conceito de negritude no Brasil, a partir de seus escritos, mas é Abdias do Nascimento5 dentro do movimento negro um dos primeiros a ecoar a negritude no seu sentido conceitual e prático, já no final da década de 1940. O conceito de negritude se fará mais presente a partir nos anos de 1960, impulsionado pelo movimento dos direitos civis norte-americanos e pela descolonização da África. Mas, é preciso lembrar o protagonismo da Frente Negra Brasileira, nascida em 1930, que também já comungava com os ideais da negritude: Francisco Lucrécio, nascido em 1909, um frentenegrino do primeiro ano da entidade, demonstra que a africanidade era um escopo político tão intenso quanto as matrizes marxistas e fascistas. Seu depoimento soa elucidativo: “A Frente, na verdade, não podia ser socialista, também não era capitalista, não podia defender o capitalismo, a ideologia era a negritude, acima de tudo ser patriota. Nós achávamos que tínhamos de defender, como brasileiros, aquilo que os nossos antepassados sofreram para nos deixar” (FLORES, 2007, p. 500).

Dentro dos movimentos culturais, particularmente na música brasileira, as ramificações da negritude tomam formas idiossincráticas. As experiências de negritude já eram compartilhadas e já se faziam presentes desde o início do século XX. A reconsUm dos criadores e organizadores do jornal QUILOMBO. Vida, Problemas e Aspirações do negro. Rio de Janeiro, dez/1948 a jul/1950 (Edição fac-similar, editora 34, 2002); e do Teatro Experimental do Negro – TEM. 5

trução da África como um revival mitológico transformou-se num modo particular de condensar a problemática da questão identitária. Por exemplo, o afro-pop baiano, nas décadas de 1970 e 1980, aproxima-se bastante do conceito inicial de negritude, valorização e reivindicação dentro das vertentes mítica e ideológica. Também podemos destacar na música brasileira diálogos e ressignificações com e do conceito de negritude, como discurso de identidade nacional, pelo viés da miscigenação, a exemplo do samba e do Tropicalismo, e da Música Popular Brasileira, posteriormente institucionalizada como a sigla/gênero MPB. Vale salientar que, as expressões culturais brasileiras que acionaram de diversas formas a negritude, e seu diálogo com o “Atlântico Negro” (GILROY, 2001), já se encontram nas composições de Gilberto Gil e Jorge Ben, nas décadas de 1960 e 1970. Atualmente, o termo Negritude é bastante utilizado em diversas esferas da sociedade brasileira. O termo se reconfigurou e seus usos e sentidos passaram a compor contextos complexos de identificação. É possível observar que o entrelaçamento dos conceitos de etnicidade e miscigenação perpassam de forma contraditória a negritude brasileira. De certa maneira, as disposições dos primeiros conceitos se fizeram indispensáveis para a articulação política e ideológica da negritude, não apenas enquanto movimento militante organizado, mas como discurso corrente nas práticas culturais cotidianas, ressignificando o próprio valor simbólico da negritude como identidade.

Considerações finais As distorções dos usos e sentidos ideológicos dos conceitos de etnicidade e miscigenação em sua tradição ganham novas interpretações e contestações no âmbito das culturas diaspóricas, assim como a reconfiguração do conceito e suas noções, que no caso brasileiro não reivindicará um status de pertencimento étnico, no sentido sociológico e antropológico do termo, mas, como afirma Sansoni (2007), tecerá uma noção de negritude sem etnicidade. Também não irá negar o processo de miscigenação, mas trará uma desconstrução do conceito como ideologia de negação de problemas raciais e de celebração. Pensemos, o que tem em comum a construção, transformação e disseminação desses três conceitos trabalhados até aqui? De maneira geral, podemos afirmar que é a tentativa de compreender a diferença. Mas, a questão não repousa apenas nessa resposta genérica. Esses três termos, permeados de diversas usos e sentidos, atestam o embate teórico e as disputas que vão além do campo simbólico. Etnicidade, em seus primórdios como uma substituição a concepção racialista, que será adaptada e reformulada em diversos contextos, e que Brasil será substituída pela concepção de mestiçagem (em seus estágios correspondentes: política de branqueamento, projeto de identidade nacional homogênea e celebração), seguido pela negritude que irá questionar a mestiçagem a partir do entendimento de que esta apresenta perigos para a afirmação da diferença quando se reivindica o reconhecimento da existência de uma população negra que ainda sofre com o racismo e a discriminação. É importante salientar que parte desse racismo foi gerado pelo movimento que defendia o discurso político ligado à ideia de “raça” enquanto etnia e filiação nacional (GILROY, 2001, p. 48). No contexto das diásporas negras, esse movimento político perde sentido, mas não a função, pois ‘a demarcação de culturas “negras”’ criou os contornos de uma área cultural transnacional,

multilíngue e multi-religiosa – o Atlântico Negro’ (SANSONE, 2007, p. 28). Ainda que dentro desse escopo teórico as perspectivas separatistas entre classe e raça se fizessem presentes na modernidade, os esquematismos categóricos não dariam conta das condições distintas em que essas mesmas categorias (classe e raça) se dispunham e se entrelaçavam de maneira desigual, complexa e contraditória, onde o político, o ideológico e o cultural entravam em conflito. No que diz respeito ao arcabouço teórico sobre a miscigenação brasileira, o perigo reside no “não-dito” (SALES JR., 2006), incorporado de forma manipuladora no que diz respeito a uma construção simbólica de Brasil. Como ressalta Florestan Fernandes, “o brasileiro tem preconceito de ter preconceito”. Desse modo, podemos compreender a reformulação de conceitos que tragam para o debate a questão racial no país. Há um incômodo em discutir racismo, mais que isso, há uma dificuldade em reconhecê-lo, pois desenvolvemos nossas próprias formas de racismo dentro do “racismo à brasileira”. O silêncio, a negação, a simplificação, a exclusão do discurso do outro, tudo isso faz parte desse caldeirão miscigenado.

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IDENTIDADES E IDENTIDADES NACIONAIS: POR UM ESTATUTO DO SELO POSTAL Diego A. Salcedo1

“Selo Postal de Guerra emitido pelo Brasil, em 1865, durante a Guerra do Paraguay” (SALCEDO, 2010, p. 202)

Um prólogo necessário O que pretendo neste início, e por isso escrevo em primeira pessoa, é estabelecer algumas conexões entre a minha condição humana privada, a relação com a constante, ambivalente, intangível e ilusória realidade na qual estou inserido e esse objeto de investigação incerto, mutável e transitório, a(s) identidade(s). Nasci numa unidade política chamada de Argentina, em 1972. Aos seis meses de vida consciente meus genitores foram para outra unidade política, Estados Unidos da América. Obviamente, naquele tempo, a escolha de não acompanhá-los inexistiu. Hoje, porém, parece que esse direito à escolha, o mesmo que seria universal para todos os humanos, um ideal comum que perpassa as histórias e estórias humanas no tempo, me era desconhecido ou não foi exposto como meu. Professor vinculado ao Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de Pernambuco. Autor dos livros “A ciência nos selos postais comemorativos brasileiros: 1900-2000” e “Pernambuco nos selos postais: fragmentos verbovisuais de pernambucanidades”. Email: [email protected]. 1

Vivi nos Estados Unidos da América durante quatro anos. Não tenho muitas recordações, com certeza, tenho mais esquecimentos. Lembro, na forma de imagens mentais, o som de sirenes, as cores branca (do dia que nevava), laranja (de uma casa em chamas), vermelha (das roupas e do caminhão dos bombeiros), azul (do meu casaco). Nesse mesmo dia, contou o meu pai, eu pedi um caminhão de bombeiros de ferro que era vendido naquela época. Diz ele, meu pai, que desde então sempre me identifiquei com a neve e o fogo, com os bombeiros e as suas ferramentas laborais. Assim, essas imagens são tanto memórias constituintes dos meus primeiros anos de vida, quanto representações do “real” na minha consciência, ou seja, formaram e, ainda, formam parte da minha identidade. Passados os quatro anos, mais uma mudança ocorreu. A família voltou à Argentina, mas por pouco tempo. Em meados de 1976 viemos para o Brasil, lugar em que resido até os dias atuais, no entanto, nunca me naturalizei brasileiro. No decorrer desse tempo e dessas mudanças ganhei um irmão norte-americano e uma irmã brasileira. Assim, contextualizada a minha trajetória, algumas perguntas são oportunas: viajei por três unidades políticas, sem direito à escolha de ir ou vir, então a qual deles posso dizer que pertenço? Qual deles pode afirmar que me escolheu como sendo seu? Qual bandeira levantaria se houvesse um conflito entre essas três unidades políticas? Qual desses lugares me remete a memórias físicas e afetivas que me façam escolher um deles como sendo meu? Qual é a minha identidade nacional? Do ponto de vista jurídico e constitucional, a unidade política que pode dizer que me identifica como sendo seu é a Argentina. Sou cidadão Argentino, assim identificado tanto por meio de documentos oficiais, quanto pelos outros. Contudo, foi nos Estados Unidos da América que eu aprendi a minha primeira língua, o Inglês (não foi o Espanhol). Foi ali que eu vivi os primeiros

anos de minha educação formal. Ali vislumbrava um “Eu”. Ao mesmo tempo, aprendi a língua espanhola, no modo conversacional, em casa, pois era essa a língua original dos meus pais. Apesar de ter vivido quatro anos nos Estado Unidos da América e de ter iniciado a minha educação formal, jamais fui identificado como cidadão daquela unidade política. Ainda mais, aos quatro anos e meio de idade vim para o Brasil. Esta era, então, a situação em que eu estava: falava espanhol em casa com a minha família, estudava inglês numa escola americana, em território brasileiro, e estava aprendendo o português. Acrescentemos ao exemplo da língua outras mantas culturais: eu comia feijão e arroz (típica culinária brasileira), com batata-frita e ketchup (típico prato norte-americano), acompanhado de um pedaço de picanha argentina (preparada pela minha mãe ou pelo meu pai ao modo portenho); gostava de ouvir rock americano (anos 70 e 80), música folclórica argentina (“Cuarteto Zupay”) e estava aprendendo a tocar instrumentos de samba no Brasil (tamborim, pandeiro, ganzá etc.); em época de jogo de futebol, quando me perguntavam para quem eu torcia, a minha resposta era a seguinte: “eu não gosto de soccer, gosto de futebol americano” (mas, em casa, assistia aos jogos entre Argentina e Brasil – de fato, até hoje, não sei para quem torço). Para fechar este prólogo, eis às questões que aproximam a minha vida com o objeto de investigação, assim como o fez Bauman (2005, p. 16) ao citar um episódio pessoal que “reúne, resumidamente, a maioria dos dilemas inquietantes e das escolhas obsedantes que tendem a fazer da “identidade” um tema de graves preocupações e agitadas controvérsias”: resido permanentemente no Brasil e me identifico com essa unidade política, no entanto também me identifico com os Estados Unidos da América, de onde tenho memórias infantis (neve, bombeiros e fogo), mas ainda, sou cidadão institucional e legalmente argentino, lugar ao qual me identifico como estrangeiro.

Logo, aquilo com que me identifico não é, de fato, o mesmo pelo qual eu sou identificado. Aquilo que me faz sentir pertencente, de certo, não é o mesmo que clama o meu pertencimento. Em cada momento e movimento de minha vida, me identifico e sou diferente, pertenço e sou estrangeiro, estou aqui e alhures, estou em deslocamento e em movimento.

Selo emitido pela Argentina (1958)

Selo emitido pelos E.U.A. (2001)

Selo emitido pelo Brasil (1991)

Das identidades: apontamentos teóricos Considerando a exposição no prólogo e a proposta deste texto, o momento é oportuno para dialogar sobre o conceito de “identidade” a partir das abordagens de alguns autores que, apesar de terem distintos posicionamentos teóricos, possibilitam o agendamento de elementos comuns ao debate e fornecem a terminologia preliminar para os estudos em voga. Talvez, o principal encontro das distintas visões teóricas seja o fato de que muitos autores concordam que “identidade” é um processo que se desenvolve e se transforma com e na história humana, de acordo com as concepções de sujeito. De outra forma, a complexa e multifacetada crise de identidade pela qual as pessoas e as instituições vêm passando, não é unicamente favorecida pelos intensos e calorosos debates nos meios de comunicação (Rádio, TV e Internet) ou proveniente de estudos em áreas como Antropologia, Psicologia Social, Sociologia, Filosofia, Psicaná-

lise, Estudos Culturais, Comunicação, História etc., mas resulta do próprio processo histórico-temporal no qual está inserido o sujeito-humano, aquele que identifica, desidentifica e reidentifica, a si e aos outros. Nesse sentido, Hall (2005, p. 38) afirma que “a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não de algo inato, existente na consciência no momento do nascimento”. Assim, sob uma visão histórica, já na Grécia Antiga, Calvino (2004, p. 21, grifo nosso) reconhece o problema da identidade nas suas leituras críticas sobre Odisséia de Homero: “Por seu lado Ulisses, irreconhecível, despertando em Ítaca não reconhece sua pátria. Atenas terá de intervir para garantir-lhe que Ítaca é mesmo Ítaca. A crise de identidade é geral, na segunda metade da Odisséia”. Assim, o debate sobre a identidade emerge como indagação do discurso filosófico. Uma busca, por meio do questionamento, da definição daquilo que faz com que um objeto seja aquilo que ele é, em essência, e sua diferença a outros objetos. Assim, para os filósofos, interessou descobrir aquilo que dá a uma coisa ou pessoa a sua natureza essencial. Conforme Brugger (1987, p. 220), “esta identidade, inseparável da diferença, pode entender-se de maneira mais ou menos rigorosa: assim, por exemplo, o corpo humano, a despeito da sucessiva mudança de suas partes, é considerado como sendo o ‘mesmo corpo’ ainda depois de anos decorridos; o mesmo se diga de comunidades.” No entanto, é possível argumentar que o conceito “identidade” tem sua manifestação concebida num tipo de “pré-história, se assim pode ser denominado o estudo de Mauss (1974). Nele, o autor atribui à característica de persona (pessoa), enquanto personagem nas sociedades primitivas para, em seguida, desenvolver uma história social desse atributo no Ocidente culminando na categoria “identidade”, a mesma que, segundo Lopes (1996, p. 127) “pode ser descrita, genericamente, como a ‘consciência da

continuidade’ que os sujeitos tenham a respeito destas formas que os revestem.” Conforme o estudo teórico-histórico sobre o conceito de “identidade”, com enfoque nos debates entre a Filosofia, a Antropologia e a Psicologia, Lopes (2002, p. 19) sugere que por trás dos registros da consciência humana que produzem a caracterização da pessoa, do indivíduo ou do sujeito, encontram-se contextualizadas identidades, pensadas respectivamente pelos vínculos ético-moral, ideológico e histórico-cultural – este último, pensado na razão de um projeto social de classe. A passagem da pré-história da identidade para a sua fase histórica, onde a desestruturação da noção de pessoa fragmenta-se na e pela emergência das noções de indivíduo e sujeito, teria a ver com a secularização da sociedade promovida pela modernidade e com a consolidação da sociedade capitalista. A primeira inaugura a era dos constrangimentos, do ser psicológico; a segunda produz relações sociais antagônicas.

Por sua vez, é na modernidade que Hall (2005, p. 7) indica, a partir do século XX, uma “crise de identidade” fundada no eurocentrismo, em que “as velhas identidades estriam em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado.” Essa modernidade pode ser entendida tanto pela caracterização proposta por Giddens (1991, p. 11): “...estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência”, quanto pela sugestão de Hardt e Negri (2006, p. 88), um momento histórico em que a “humanidade descobriu seu poder no mundo e integrou essa dignidade”, tanto a uma “nova consciência de razão e potencialidade”, quanto à emergência de uma reação européia da qual resultou um longo período de “dominação interna no próprio continente Europeu, assim como, no resto do mundo”.

Para fazer essa afirmação, Hall (2005, p. 10-11), parte do pressuposto de que três concepções de sujeito podem ser sintetizadas nas sociedades ocidentais: o sujeito do Iluminismo, pensado como totalmente centrado, unificado, dotado de razão, consciência e ação. Com isso concorda Lopes (2002, p. 10) ao afirmar que o sujeito vivia “integrada na sua dualidade de corpo e alma, consciência e ação; o sujeito da Modernidade, a partir do século XIX, em que o núcleo interior do sujeito não é autônomo e auto-suficiente, mas formado na relação com outras pessoas, que realizam a mediação dos valores, sentidos e símbolos (a cultura) do mundo em que ele habita; o sujeito da Pós-modernidade, a partir da segunda metade do século XX, em que o sujeito passa a ser pensado como fragmentado, composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias e não resolvidas. É nesse último sentido que Bauman (2005, p. 57) sugere uma transformação, inerente à “modernidade tardia” de Giddens, “de uma fase sólida para a fase fluída”. E explica: “os fluídos são chamados assim porque não conseguem manter a forma por muito tempo e, a menos que sejam derramados num recipiente apertado, continuam mudando de forma sob a influência até mesmo das menores forças”. Assim como Giddens, Hall (2005, p. 9) trata a problemática da identidade situando-a no que chama de “modernidade tardia”. Ou seja, é no decorrer do século XX que “as mudanças globais que desestabilizaram os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo” motiva os debates atuais. Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais [...] mudando nossas identidades pes-

soais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados [...]a perda de um sentido de si estável (HALL, 2005, p. 9).

Essa opinião é compartilhada por Santos (2000, p. 135), para quem o “humanismo renascentista fez aflorar a questão da subjetividade, a partir de duas tensões: a) entre o individual e o coletivo; b) entre uma concepção concreta e contextual da subjetividade e uma concepção abstrata, sem tempo nem espaço definidos”. Essas duas tensões estiveram na base das teorias sociais produziram algumas encruzilhadas teóricas entre a “regulação e a emancipação sociais”, aquilo que opõe o indivíduo e o Estado e desestabiliza as referências identitárias. Ainda, segundo Santos (2000, p. 135) as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a de mulher, homem, país africano, país latino-americano ou país europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis, em última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que, de época para época, dão corpo e vida a tais identidades. Identidades são, pois, identificações em curso.

Para Bauman (2005, p. 30), o problema da identidade só se coloca na atualidade, na modernidade tardia, quando “ela perde as âncoras sociais que a faziam parecer ‘natural’, pré-determinada e inegociável, pois nesse momento a ‘identificação’ torna-se cada vez mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um ‘nós’ a que possam pedir acesso”. As transformações da modernidade tornaram a identidade e o pertencimento em categorias fluidas, líquidas, errantes.

Por isso, para Bauman a identidade é um efeito de pertencimento que tem em sua raiz o paradoxo da instabilidade, ou seja, os lugares contemporâneos são permanentemente deslocados pelas máquinas de informação e, por isso, é impossível fixar-se rigidamente em um território identitário único. Cabe ainda salientar a assertiva de Gulberg (1998, p. 136): o termo identidade se converteu em uma dessas palavras-chave que articulam o peculiar engranzamento do pensamento filosófico antropológico com discurso político. (...) Como sucede com quase todos os termos filosóficos aplicados à retórica política, o de identidade possui um confuso ar conceitual e um conteúdo pouco preciso. Duas notas que se vêem reforçadas em virtude de sua polissêmica e ubíqua presença. Não constitui, em nenhum caso, um exemplo de noção clara e distinta, como exigiria uma mente cartesiana.

É sobre um discurso de informatização que, também, Castells (2002, p. 17) propõe uma análise das identidades. “Nosso mundo, e nossa vida, vêm sendo moldados pelas tendências conflitantes da globalização e da identidade”. Assim, explica esse autor, juntamente com a revolução tecnológica, a transformação do capitalismo e a derrocada do estatismo, vivenciamos no último quarto do século o avanço de expressões poderosas de identidade coletiva que desafiam a globalização e o cosmopolitismo em função da singularidade cultural e do controle das pessoas sobre suas próprias vidas e ambiente (CASTELLS, 2002, p. 18).

A partir desses pressupostos, Castells (2002, p. 22) propôs um amplo estudo sociológico, em que o conceito de identidade está diretamente atrelado aos atores sociais e seus papéis. Sob essa visão, identidade pode ser entendida enquanto um “processo de construção de significados com base em atributos culturais,

inter-relacionados ou não, podendo, assim coexistirem múltiplas identidades”. Por fim, esse autor (2002, p. 23) também concorda com outros pensadores quando cita que “toda e qualquer identidade é construída”. Somada a concepção castelliana de “Sociedade em Rede”, Lopes (2002, p. 19) indica que a a hegemonia do processo de ocidentalização - pensado aqui em suas dimensões materiais e simbólicas - instalou uma noção de subalternidade entre as culturas e grupos incluídos no seu desenvolvimento, que se caracterizaram pela hetero-definição de irracionalismos e exotismos, como os que hoje insistimos em identificar nas manifestações emergentes de grupos os mais variados, mesmo quando travestimos tais definições por outras, mais audíveis. (...). Ocorre que a emergência de tais definições, associada com a produção de novos jogos de combinação (dinâmicas e ambigüidades) entre identidades subalternas à ocidental moderna, criaram esferas de ação que extrapolam os limites de análise de um campo especializado de saber. Essa realidade contemporânea, para além do debate entre os modernos e os pós-modernos, gerou um duplo movimento nos campos do saber científico.

Ainda segundo Lopes (2002, p. 20), essa realidade contemporânea, para além do debate entre os modernos e os pós-modernos, gerou um duplo movimento nos campos do saber científico: intra-campo as especializações se fortaleceram no exercício analítico de categorias apropriadas pelos cientistas, criando fronteiras à investigação da realidade social, mesmo quando tais investigações incidem e coincidem com o ‘lócus’ de outros campos. A categoria identidade, nesse sentido, adjetiva-se de acordo com tais apropriações, num rol muito variável: identidade étnica, identidade de gênero, identidade juvenil, identidade do idoso, identidade social urbana, iden-

tidade de classe, etc. No movimento extra-campo, porém, surge a necessidade de um “diálogo interdisciplinar” que vai numa direção oposta, mas não antagônica, ao meu ver: para dar conta de responder aos novos jogos de combinação que produzem esferas de ação emergentes, alguns cientistas rompem cuidadosamente as fronteiras entre os campos científicos e dialogam com referências teóricas elaboradas por outras ciências. Nesse segundo movimento, a categoria identidade tem seu caráter substantivo ampliado, e o campo científico do pesquisador passa a ser adjetivado ou requalificado na sua adjetivação.

É na proposta de Silva (2000) que fica evidente a necessidade de uma teoria da identidade e da diferença, tomando por base aquilo que já foi explorado anteriormente. Nesse sentido, há uma aceitação com a sugestão de que a identidade e a diferença são processos de produção social, em que existem relações de poder. Logo, essas categorias analíticas têm estreita relação com atribuições de sentido ao mundo social e com as disputas inerentes a esse mundo. Como exemplo disso é possível utilizar o caso das identidades nacionais, assunto tratado na próxima sessão. Das identidades nacionais: nacionalismo no selo postal A partir do que foi exposto anteriormente será possível estabelecer uma relação entre aquilo que se denomina de uma identidade nacional e a sua representação nos selos postais. Para isso, é prudente estabelecer uma relação entre o conceito de “nação” e “Estado-nação”. Importa observar que falamos de identidades relacionadas a pessoas, culturas e nações. Se para Herder o objeto do historiador é a nação, o espírito de uma cultura – Zeitgeist, algo que descenderia de si própria, tornar-se aquilo que já deveria ser, em outras palavras, uma certeza do por vir, para autores que refutaram o romantismo alemão, como Collingwood, Berlin e Gellner o conceito de “nação” não

é algo natural, que brota de maneira espontânea baseado numa potencialidade de sua suposta evolução. O conceito de nação seria um fenômeno recente que consolidou a Europa como uma economia forte e dominadora. Por sua vez e concordando com esse três autores, Hobsbawm (2004, p. 19) sumariza parte de seus estudos considerando a “nação”, não como uma ‘entidade social originária ou imutável”, mas àquilo que “pertence a um período particular e historicamente recente, uma entidade social”, de fato, mas “apenas quando relacionada a uma certa forma de Estado territorial moderno, o ´Estado-nação.’” Assim, para esse autores o nacionalismo dos estados europeus, com suas similitudes e dicotomias, criaram esse fenômeno denominado de “nação”. É possível afirmar que os nacionalismos espalhados pelo continente europeu foi uma ideologia criada com o objetivo de constituir e consolidar os “Estados-nação” (Estados Nacionais), havendo uma estreita relação com o desenvolvimento do sistema capitalista, principalmente, durante o século XIX. E como isso ocorreu e ainda ocorre? Por meio de um sistema dialógico de signos, que segundo Silva (2000, p. 91), pode ser categorizada em “representação externa”. Prossegue o autor: a identidade e a diferença têm que ser representadas, pois somente a partir da representação estes adquirem sentido: é também por meio da representação que a identidade e a diferença se ligam ao sistema de poder. Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar identidade.

Essa representação permite afirmar que as identidades nacionais ocorrem por meio, então, das linguagens. E se assim for considerado, então existem discursos que expressam a vontade ou o desejo de pertencimento às identidades nacionais. Sob uma visão

mais ampla, é possível afirmar que o conjunto desses discursos constitui um sistema complexo e conflituoso de representações culturais. Nesse sentido, a identidade nacional articula um conjunto de enunciados (falados, escritos e pictóricos) que expressam àquilo que uniria os membros de um grupo, ou seja, a relação entre a pessoa e o conceito de “nação” acontece por meio de materialidades textuais, e por que não, no selo postal. A experiência propiciada pelo contato com essa tipologia midiática ou texto semiótico cria as condições de possibilidades de construções e negociações identitárias, já “que a(s) identidade(s) é cada vez mais atravessada por mensagens simbólicas, especialmente aquelas midiatizadas” (COUTINHO; FELZ, 2007, p. 110). A relação que se estabeleceu entre o advento dos Estados Nacionais e a criação de um documento estatal que taxasse a comunicação postal, a princípio na Grã-Bretanha, conclamando o imaginário coletivo ao constructo de uma nação, é passível de identificação e estudo a partir da materialidade dessa mídia, propriamente dita. O surgimento do selo postal na Europa do século XIX era, também, o momento de emergência dos Estados Nacionais e de transformações radicais nas sociedades capitalistas ocidentais. Da Idade Média até o século XIX, a Europa experimentou avanços na comunicação, assim como em outras esferas sociais, jamais vividas. O sistema postal, sua regulamentação e os avanços técnico-científicos foram algumas das causas que permitiram essa experiência. Mencionar o selo postal nos remete, necessariamente, à Inglaterra do século XIX. Lugar, segundo Hobsbawm e Ranger (2002, p. 9), de “tradição inventada”. Para esses autores, a expressão tradição inventada pode ser percebida como um conjunto de práticas sociais, usualmente admitidas por um grupo de pessoas, e “formalmente institucionalizadas”. Além disso, a questão da repetição dessas práticas é essencial no estudo sobre as tradições, visto

que, ainda conforme esses autores, a repetição visa “inculcar certos valores e normas de comportamento, que implicam, uma continuidade em relação ao passado apropriado”. Em meados de 1830, a Inglaterra tinha um dos mais eficientes serviços postais já conhecidos. Grande parte disso resultou do investimento realizado numa rede infra-estrutural muito bem integrada. Combinava estradas de terra, canais de navegação fluvial, ligações marítimas costeiras e as primeiras linhas férreas. Briggs e Burke (2006, p. 134) citam que “trens e navios transportavam cartas, no século XIX, uma forma indispensável à comunicação tanto nacional quanto internacional”. Nesse sentido, comenta Hobsbawm (2005, p. 26), o sistema de carruagens postais ou diligências, instituído na segunda metade do século XVIII, expandiu-se consideravelmente entre o final das guerras napoleônicas e o surgimento da ferrovia, proporcionando não só uma relativa velocidade – o serviço postal de Paris a Strasburgo levava 36 horas em 1836 – como também regularidade.

Cabe aqui uma breve alusão ao contexto em que o desenvolvimento inglês foi gerado. Não é nosso propósito historiar esse contexto, pois nos faria desviar de nossa trajetória. No entanto, é importante observar que a Inglaterra do sistema postal infalível, também é um lugar de política imperialista, um poder devastador que dominou uma centena de territórios ultramar. Vale lembrar, que muitos desses territórios dominados estampariam as independências nos selos postais do século XX, após o período em que mais existiram revoltas coloniais. Os próprios colecionadores dos primeiros selos postais registraram esse fato. Segundo Bellido (1897, p. 81), redator de um dos primeiros periódicos sobre colecionismo de selos postais, fundado em meados de junho de 1896, “a Inglaterra é o país do mundo que maior número de colônias possui”. Durante o final

do século XIX e o início do século XX, a Grã-Bretanha foi o império que tinha o maior número de territórios ultramar dependentes ou anexados que emitiam selos postais. De volta ao contexto britânico, era norma geral que as correspondências fossem pagas pelo destinatário e não pelo remetente, como é feito hoje. Foi nesse aspecto, em particular, que um cidadão britânico, após presenciar uma cena rotineira, desenvolveria algumas idéias que transformariam o sistema postal inglês, em particular e, por conseguinte, o de muitos outros países, colônias e grupos sócio-institucionais. A referida cena, conforme contam Almeida e Vasquez (2003, p. 16) trata sobre uma jovem, empregada de estalagem, que estava à porta do estabelecimento, quando se aproximou o carteiro. Cumprindo sua tarefa, o estafeta entregou a carta à jovem, e permaneceu aguardando o dinheiro para o pagamento dos serviços. O porte médio das cartas no Reino Unido no período era de 1 shilling, considerado alto para a maioria da população. Após manusear o exterior da carta por alguns instantes, sem abri-la, a jovem simulou espanto e a devolveu imediatamente ao carteiro, alegando dificuldades financeiras. Diante da negação, o carteiro afastou-se, levando consigo a correspondência, mais uma entre tantas outras destinadas à incineração. Após assistir silenciosamente ao ocorrido, o professor não se conteve e foi ao encontro da jovem para indagar sobre o motivo da recusa: - Por que a senhorita não pagou pelo recebimento da carta? Por acaso era desconhecido o remetente? - Não, pelo contrário! Era uma correspondência do meu noivo, que está estudando em Londres. - Mas, então, qual a razão para recusá-la? - Tenho códigos previamente combinados com ele, que são marcados em forma de sinais no exterior da carta. Basta manuseá-la para entender a mensagem, sem a necessidade de abri-la, economizando o dinheiro da taxa dos Correios.

Sir Rowland Hill (1795-1879), segundo Almeida e Vasquez (2003, p. 17, tradução nossa), após o episódio, “percebeu algumas vulnerabilidades do sistema postal inglês vigente. O alto custo dos serviços e a possibilidade de os Correios realizarem o transporte das cartas sem a garantia de recebimento das taxas devidas pelos usuários”. A partir de seus estudos, foi elaborado um documento intitulado “Post Office Reform: its importance and practicability.” Nesse trabalho, além de sugerir algumas mudanças no sistema postal inglês - cobrança de tarifas em relação ao peso da correspondência; pagamento da tarifa pelo remetente; cobrança da tarifa por meio do selo postal adesivo - Sir Hill conseguiu comprovar que uma simples carta de Londres para Edinburg estava custando, aos Correios, o equivalente a 27 vezes mais do que o custo real. O quadro a seguir mostra algumas características de como era o sistema postal europeu, por volta de 1838 e quais foram as principais modificações sugeridas pelo Sir Rowland Hill. O sistema postal europeu em 1840

A "Reforma Postal" na Inglaterra

A tarifa poderia ser paga pelo remetente ou destinatário da correspondência.

Pagamento prévio da franquia conforme tarifas pré-estabelecidas.

A tarifa compreendia: as medidas, o peso, a classe e a distância a ser percorrida.

Emissão de selos postais adesivos para comprovar o pagamento das correspondências conforme todo o seu projeto e circulação.

A arrecadação era difícil e a falta de pagamento dos envios era alarmante.

Tarifas uniformes dentro do país, considerando o peso, mas sem levar em conta a distância, com o intuito de diminuir custos e tornar o serviço acessível para muitos.

O envio para regiões distantes somava as dificuldades da própria distância e os meios empregados, às cobranças relativas a cada correspondência.

Diminuição efetiva do valor das tarifas (1 penny) a cada 14 gramas de correspondência enviada.

Quadro 1 - “Reforma Postal” na Europa por volta de 1840

Em 17 de agosto de 1839, o Parlamento inglês aprovou as sugestões de Hill alegando, conforme registram Almeida e Vasquez (2003, p. 17), “que serviam ao progresso comercial e ao desenvolvimento das classes mais favorecidas”. Além disso, ele foi nomeado supervisor da Reforma Postal como funcionário do Tesouro Nacional. Segundo os mesmos autores (2003, p. 17), Hill sugeriu a utilização de “um pedaço de papel de tamanho suficiente para receber uma estampa, coberto na parte traseira com goma, que o portador poderia, aplicando um pouco de umidade, prender na parte posterior da carta”. Nascia assim, o selo postal adesivo2, um dos artefatos fundamentais às transformações que iriam revolucionar o sentido de pagar para postar.

O ‘selo postal adesivo’ foi uma ideia concebida a partir de um outro tipo de selo que cumpria as múltiplas exigências do sistema de correios vigente. Assim, Vaillé (1962, p. 17) sugere que o primeiro selo postal de “taxa única e pagamento antecipado foi criado pelo francês Jean-Jacques Renouard de Villayer (Abel Servien), por volta de 1653, denominado de Pequena Posta de Paris”. 2

Fotografia de Sir Rowland Hill Fonte: http://www.postalheritage.org.uk

Como sucede com as novidades que podem modificar uma estrutura social estabelecida, o selo postal, nos primeiros meses de uso, não foi muito bem aceito por duas razões muito óbvias para a população, como mostram Williams e Williams (1965, p. 22-23) no excerto a seguir: Já experimentaste os selos? Acho-os tremendamente absurdos e incómodos. Não me sinto tentado a transformar a boca em vidro de cola embora, na verdade, se tenha a satisfação de beijar, ou mais propriamente, de lamber o traseiro de Sua Majestade. A goma foi sem dúvida um facto que tornou muita gente relutante em utilizar os selos, tanto mais que se espalhou o rumor de que ao lambe-la uma pessoa se sujeitava a contrair o cancro na língua.

A Inglaterra, reproduzindo o perfil da cabeça da Rainha Vitória, a partir de uma medalha comemorativa gravada por William Wyon, inaugura o tipo “efígie”, com um selo postal adesivo que, oficialmente, foi chamado de Penny Postage, e que depois, já no

âmbito da prática Filatélica ou do colecionismo de documentos postais, ficou conhecido como Penny Black, posto em circulação no dia 6 de maio de 1840. As características dessa peça, como mostra a figura abaixo são o valor facial, na margem inferior, em formato verbal “ONE PENNY”, a efígie ou busto da Rainha Vitória posicionada para mostrar seu perfil esquerdo, como num camafeu, o tom negro, o termo “POSTAGE” na margem superior e as duas letras impressas nas margens inferiores, esquerda e direita, indicando a posição do selo na folha completa3.

O Penny Black da Inglaterra. 1° selo postal adesivo Fonte: http://www.filatelicamente.online.pt

Sem dúvida, o primeiro selo postal com padrões artísticos, responsável por estabelecer os padrões de seus descendentes. O cuidado extremo com os traços, a gravação da efígie beirando a perfeição e um fundo sóbrio que contrasta bem com a imagem, além de elementos verbo-visuais sutis foi fundamental para o êxito do artefato. Almeida e Vasquez (2003, p. 21) afirmam que o selo postal, em verdade, é uma adaptação tipológica de estampilhas anteriores. Vale ressaltar que o pagamento antecipado da taxa postal não era uma novidade, e são conhecidas experiências nesse sentido desde o século XVII. A legislação brasileira, Os primeiros selos postais foram impressos em folhas não picotadas e tinham que ser separados com uma tesoura ou canivete. No Brasil ocorreu da mesma maneira até 1866. 3

por exemplo, oferecia ao mandatário da carta a opção pelo pagamento antecipado do valor da taxa quando fosse seu desejo isentar o destinatário da despesa, de acordo com o estabelecido no artigo 61 do Decreto de 5 de março de 1829. Nesse caso, as cartas eram assinaladas pela palavra “franca” escrita manualmente na face principal.

Nessas ferramentas de discurso ideológico estavam impressas, em princípio, efígies de soberanos reinantes (nas monarquias) e figuras alegóricas (nas repúblicas), cifras indicadoras do valor da franquia postal a ser paga, geralmente bureladas com linhas, florões e arabescos para dificultarem a contrafação do papel-moeda corrente. Ali também, considerando as estampas que foram adotadas nos primeiros anos de uso do selo postal, tinha início o período em que o Estado teria menores custos com o seu sistema postal e, ao mesmo tempo, um maior controle sobre os discursos e os segredos, o que era, sem dúvida alguma, mais uma causa para o fortalecimento das sociedades da vigilância que, atualmente, utilizam outras formas de controle, como por exemplo, as câmeras ou celulares. Os primeiros selos postais do mundo tiveram como elementos pictóricos ou visuais, praticamente sem nenhuma exceção, a efígie, o brasão e a cifra, e como elementos verbais o termo postal, o nome da soberana ou conquistador e, ainda, o nome da moeda corrente na respectiva língua de origem do país emissor do artefato. Podemos perceber uma práxis dos Estados em constituir uma identidade nacional e ultramar (nas suas colônias), por meio dos elementos verbo-visuais.

Selos postais com efígies de soberanos

Selos postais com armas e brasões

Selos postais com motivos mitológicos

Principais características dos países emissores: 1. Monarquias unificadas, fortes e centralizadas. 2. Mostra elemento pictórico de soberano ou soberana da aristocracia tradicional européia..

Principais características dos países emissores: 1. Países sujeitos a ocupação ou em sistema de união de reinos. 2. Mostra elementos pictóricos heráldicos diversos.

Principais características dos países emissores: 1. Principalmente àqueles com uma cultural mitológica. 2. Mostra elementos pictóricos mitológicos.

Alguns países emissores: Inglaterra, Espanha, Hungria, Itália, Luxemburgo, Portugal, Áustria, Prússia, Brasil, etc.

Alguns países emissores: Áustria, Bósnia, Bremen, Bulgária, Finlândia, Modena, Prússia, Romênia, Rússia, Sicília, etc.

Alguns países emissores: França, Grécia e Itália.

Quadro 2 - Alguns elementos verbo-visuais dos primeiros selos postais

Outros elementos verbo-visuais foram utilizados a posteriori, quando, aos poucos, algumas pessoas foram tomando consciência de que o selo postal servia para algo muito mais nobre do que simplesmente representar um atestado ou um recibo de pagamento prévio de serviço. É nesse momento que surge o colecionismo do selo postal4 e a prática que viria a ser denominada Filatelia.5 Seguindo uma tradição que perdura desde então, a Inglaterra é o único emissor de selos postais que não especifica seu nome, por extenso, na face do artefato. Apenas apresenta o perfil do soberano ou da soberana. Por outro lado, o restante dos países e entidades emissoras de selos postais, inclusive as antigas e atuais colônias britânicas, devem especificar, por extenso, seus respectivos nomes seguindo as normas internacionais estabelecidas nos congressos da UPU.6 O advento do selo postal proporcionou uma racionalidade do sistema postal inglês, que, por sua vez, gerou lucros elevados. Nesse sentido, afirma Sampaio (1992, p. 18): Para se ter uma idéia de quanto o selo postal veio contribuir para o desenvolvimento da comunicação, uniApesar de não fazer parte do escopo deste trabalho é importante considerar que em paralelo ao uso do selo postal existia a utilização do carimbo. Uma área muito peculiar de estudo, que também pode compor o estudo das estampilhas, denominado Carimbologia, fundamental para o entendimento das funções administrativas de documentos. Prática ordinária dos Correios, carimbar um selo postal tinha a finalidade de indicar a origem da missiva postal, a data de envio e o cancelamento do selo postal aderido à correspondência. Além disso, buscava impedir o reaproveitamento do selo. 4

Salcedo (2008, p. 158) expõe que "existe uma discussão internacional sobre o correto uso desse termo devido a sua origem etimológica". Por questões de praticidade linguística, adotar-se-á o léxico Filatelia. Com origem de radicais gregos, Filatelia equivale, em Português, à “amigo do selo”. O uso da inicial maiúscula no termo deve-se ao fato de que defendemos que a Filatelia é uma atividade que estabelece padrões [modelos] metódicos e sistemáticos, dignos de serem denominados acadêmico-científicos. Contudo, não esquecemos, por isso, que a Filatelia tem origem na prática do colecionismo, uma atividade humana ancestral. Neste trabalho não exploraremos incisivamente a prática filatélica e todas as suas possíveis ramificações. 5

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Disponível em: .

formizando e barateando os portes e facilitando assim o intercâmbio postal, basta analisar a revolução que ocorreu com o volume da correspondência na Inglaterra, logo no seu primeiro ano de existência. Em 1839, os Correios ingleses transportaram 50 milhões de cartas; em 1840, com a emissão do primeiro selo postal e o seu uso na correspondência, as cartas transportadas aumentaram para 170 milhões.

Essa foi a principal razão, mas não única, para que nos primeiros dez anos que se seguiram à circulação dos selos postais ingleses, a maioria dos países europeus (e suas respectivas colônias) adotassem o mesmo sistema. Segundo Cusack (2005, p. 592, tradução nossa), “até 1853, outros 44 países haviam seguido o exemplo britânico e emitiram selos postais adesivos”.7 A partir das imagens mostradas até agora é possível pensar que as primeiras emissões de selos postais buscavam os motivos de seus elementos verbo-visuais não apenas na Heráldica8 como, também, nos motivos ilustrados pela Numismática9, o que gerou quase 50 anos de emissões com motivos sobre efígies de soberanos reinantes, figuras mitológicas ou até, segundo Ferreira, Texto original: "By 1853, forty-four other countries had followed the British example and were issuing stamps". 7

Segundo Ribeiro (2003, p. 141) "a primeira disciplina formal dedicada a estruturar o estudo da simbologia". As origens desses estudos remontam aos tempos em que existia uma necessidade de distinguir os participantes nos conflitos armados, especialmente os cavaleiros, assim como descrever os serviços por eles prestados, os quais eram pintados nos seus escudos. Contudo é imperativo perceber um brasão de armas não é definido pelo elemento pictórico ou visual, mas antes pelo elemento verbal ou escrito, a qual é dada numa linguagem própria, a Heráldica. 8

A Numismática é considerada, por muitos, uma ciência que estuda as moedas e as medalhas. Todavia, na atualidade, esse léxico também é utilizado para expressar a prática do colecionismo de moedas (leia-se, também, cédulas), incluindo o estudo de objetos monetiformes, ou seja, parecidos às moedas, como por exemplo: medalhas (que têm função essencialmente comemorativa), os jetons (emitidos por corporações para identificar seus membros), moedas particulares (destinadas a circular em círculos restritos, como uma fazenda ou localidade) e pesos monetários (que serviam para conferir os pesos das moedas em circulação). 9

(2003, p. 14) “conceitos abstractos antropormofizados pela convenção (a Paz, a Justiça, a República, etc). Podemos dizer que a circulação pelo mundo dessa minúscula peça de papel colaborou, em certa medida, para que os impérios e seus sistemas postais mantivessem seus regimes políticos instituídos, sintetizando o valor monárquico e a unidade nacional. Tudo isso representado, simbolicamente por meio desses novos artefatos iconográficos. Com o Brasil não foi diferente. De fato, segundo Hobsbawm (2004, p. 101) surgia um novo Estado moderno, “definido como um território dominando a totalidade de seus habitantes [...] por meio de uma administração e políticas exercidas diretamente, [...] impondo leis e arranjos administrativos instituídos por todo o território”, incluindo as colônias. Essas intervenções perduraram por todo o século XIX, ligando o governo e os indivíduos em práticas cotidianas, fomentadas, também, pelas revoluções ocorridas nos meios de transportes e de comunicação, aproximando essas rotinas. Ainda, conforme Hobsbawm (2004, p. 112), os “Estados iriam usar essa maquinaria de comunicação, crescentemente poderosa junto a seus habitantes para difundir a imagem e a herança da ‘nação’ e inculcar adesão a ela, bem como ligá-los ao país e à bandeira”. Para aquelas pessoas que olhavam os elementos verbo-visuais impressos nos selos postais, da segunda metade do século XIX, o conceito de “nação” e a ideia de “pátria” ganhavam contornos subjetivados na materialização das efígies, cifras e brasões ou escudos ali estampados. Assim, imagem mental (representação interna) de uma pessoa, conhecedora dos símbolos nacionais de sua pátria, está apoiada em um aspecto básico: a orientação simbólica oferecida pelos símbolos nacionais, que remetem a espaços conhecidos apontam para um elaboração visual/mental do conceito de “nação”, de pertencimento, como aquilo que orienta o pensamento e visão de mundo.

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AS PERTINÊNCIAS DO AFETO Fábio Ramalho1

Alguns pressupostos A proposta de pensar o cinema a partir do afeto aponta para um alargamento das questões colocadas pelo debate sobre o estatuto das imagens em seus diferentes contextos de apropriação. Pelo viés do afetivo, somos levados a ressaltar a dimensão do encontro como aspecto constitutivo das obras, um ponto a partir do qual posicionar o olhar para melhor indagá-las. Trata-se aqui, invariavelmente, de encontros entre corpos, não apenas no sentido mais estrito – o de corpos humanos, de atores ou não-atores, que interagem frente à câmera –, mas também, de maneira mais ampla, pela relação entre corpo e câmera, e entre o corpo e aquilo que ele percebe em um objeto. Sob este ponto de vista, o próprio filme é entendido como corpo de imagens que nos alcança, suscitando efeitos diversos. A ênfase neste aspecto nos permite perguntar pelas múltiplas maneiras em que os corpos afetam e são afetados quando se tocam, estabelecendo entre si pontos de contato e compondo relações2. Com isso, somos levados a pensar que variações essa rede de encontros é capaz de potencializar; como um corpo de imagens pode desencadear um engajamento ou um rechaço, como ele nos mobiliza ou nos esgota3. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Email: [email protected]. 1

Assumir este entendimento implica, é evidente, a eleição de uma perspectiva dentre muitas. No caso, parto da releitura que Gilles Deleuze (2002, 2008) faz da obra de Baruch Spinoza. Para um mapeamento das diferentes vertentes de aproximação ao conceito de afeto, ver Melissa Gregg & Gregory J. Seigworth (2010). 2

Não por acaso, o afeto tem sido mobilizado para pensar a violência no cinema. A esse respeito, ver ABEL (2008) e GORMLEY (2005). 3

Falar de afeto no cinema implica trazer para primeiro plano o fato de que o universo constituído por um filme e o confronto que travamos com suas imagens se desdobram num tempo e num espaço específicos. A espacialidade está presente pela configuração de lugares que aparecem como zonas de entrecruzamentos, e pelo fato de que os encontros acontecem em espaços circunscritos, com seus fluxos e limites próprios. Por sua vez, a temporalidade que marca tanto a relação nas imagens – pelo que é dado a ver nos filmes – quanto a relação com as imagens – pelas circunstâncias que demarcam as condições de sua apreciação – advém sobretudo do fato de que o afeto se caracteriza, mais do que por um ou outro estado corpóreo, pela passagem entre os mesmos. A presença do afeto nas discussões sobre cinema se conecta a uma movimentação mais ampla nos campos da teoria e da crítica, da pesquisa acadêmica e da produção do conhecimento, que vem questionar e redimensionar a centralidade concedida à hermenêutica – com sua ênfase na interpretação e no sentido – dentro dos campos das Artes e Humanidades. Por mais diferenças que o assim denominado campo das “materialidades da comunicação” possa manter em relação à vertente aqui privilegiada4, o panorama traçado por Hans Ulrich Gumbrecht (2010) aponta para pontos de articulação que indicam uma rede mais ampla de preocupações e interesses compartilhados. Para Gumbrecht (2010, p. 91), o que se coloca em questão é “o paradigma sujeito/ objeto como configuração conceitual da contínua divergência entre a existência humana – fundada quase exclusivamente no pensamento – e o mundo como esfera puramente material.” Contra essa dicotomia, busca-se afirmar que aquele que conhece e apreende as coisas do mundo se encontra também imerso nas Não sendo a menor delas o fato de que o caminho traçado por Gumbrecht é o de uma espécie de volta à substancialidade das coisas, ao passo que, sob uma perspectiva spinozista, as coisas e seres do mundo devem ser entendidos como modos, e não como substâncias. 4

mesmas, estando dotado de uma condição física que não precede nem é independente, mas, pelo contrário, condiciona o conhecimento. As diferentes vertentes assumidas por essa crítica apontam para a recuperação da materialidade e da aparência como elementos norteadores da apreensão dos objetos estéticos. Trata-se de uma crítica em alguns aspectos próxima àquela que já havia sido formulada por Susan Sontag (1987), em sua reivindicação da materialidade como dimensão irredutível das obras – ou, poderíamos dizer, como aquilo que constitui propriamente o domínio do estético –; dimensão que, por diversas vezes, seria muito rapidamente ultrapassada pelo impulso da interpretação. A crítica de Sontag é contundente no ataque às leituras alegorizantes ou ao esforço de domesticação das obras por meio de sua inserção em um conjunto de significações estabilizadas. Aqui, a causa maior do incômodo parece ser não apenas a atribuição de sentidos, mas a neutralização – pelo menos parcial – da polissemia, da diversidade de sentidos que, em última instância, revela a contingência de qualquer interpretação. Tal esforço aniquilaria a própria especificidade do objeto estético: a interpretação seria um tipo sofisticado de tradução; uma tentativa de dizer, a partir de outros discursos, o que a obra expressa de uma maneira muito peculiar. A despeito da relevância dessas observações, os leitores do ensaio de Sontag podem se perguntar o que vem depois do apelo a que as obras sejam “deixadas em paz”. Podem também questionar a irritação direcionada a tudo o que viria perturbar a esfera da “Grande Arte”. Nesse sentido, a perspectiva apontada por Gumbrecht conduz a uma alternativa talvez mais produtiva para pensar esta questão. Sua ênfase na “possibilidade de uma relação com o mundo fundada na presença” (GUMBRECHT, 2010, p.16) conduz à ideia da produção de presença, entendida como o modo pelo qual certas práticas – sobretudo as estéticas – operam de modo a propiciar uma sensação de tangibilidade. A atenção a essa dimensão material não anula nem se contrapõe à produção

de sentidos. Para o autor, os “efeitos de presença” e os “efeitos de sentido” configuram relações de tensão e precisariam ser pensados conjuntamente, a partir de sua própria instabilidade (GUMBRECHT, 2010, p. 137). De fato, a recusa a pensar esta cadeia de elementos – materialidade e interpretação, presença e sentido, sensações físicas e estados psicológicos – como polos irreconciliáveis guarda pontos em comum com o ataque de Baruch Spinoza à dualidade que se estabelece entre corpo e espírito, bem como às hierarquias daí resultantes. Para Spinoza, corpo e espírito não passam de dois atributos de um mesmo modo: os atributos da extensão e do pensamento. Assim, não há propriamente uma disjunção entre ambos mas, pelo contrário, um paralelismo (DELEUZE, 2002, p. 24). Podemos também encontrar pontos de continuidade a esta teoria, que data de alguns séculos, na observação de que existiria uma adjacência entre as “passagens do afeto” e os “movimentos do pensamento”, de maneira que “na prática, então, afeto e cognição não são nunca inteiramente separáveis” (GREGG; SEIGWORTH, 2010, p. 02-03). No que diz respeito particularmente ao cinema, Elena Del Río (2008) chama a atenção para o que entende como uma contínua sobreposição entre o narrativo e o afetivo nos filmes, de modo que o afeto vai atuar como força que desestabiliza e redireciona a forma narrativa. Para pensar o modo pelo qual opera esta função disruptiva do afeto, Del Río recorre à noção de corpo performativo, entendendo-o como aquele que mobiliza a potencialidade dos gestos e movimentos para desprender uma força expressiva que, justamente por não poder ser reduzida a esquemas interpretativos, abre caminho para possibilidades de ação e transformação. Tal concepção busca, portanto, não apenas ampliar os caminhos abertos pelas teorizações precedentes sobre a noção de performatividade – que, segundo a autora, mantêm-se ainda excessivamente vinculadas a um modelo representativo – como também considerar, a um só tempo, os espectadores

e o próprio filme como “corpos-vivos”. Tais corpos desprendem uma “intensidade dessubjetivada” (DEL RÍO, 2008, p. 16) que seria em grande medida inassimilável, convertendo-se portanto no excesso da imagem que corresponderia propriamente à sua carga afetiva. Daí porque Del Río continuamente faz referência à ideia do “afetivo-performativo” como imbricamento de noções que guardam entre si estreita correspondência. Com isso, poderíamos afirmar que a articulação entre cinema e afeto assinala também, em certo sentido, uma maneira diferente de responder à frequente crítica, nos estudos cinematográficos, a métodos de abordagem considerados demasiadamente discursivos. De fato, sabemos que a discussão acerca das limitações apresentadas por uma perspectiva centrada nas possibilidades interpretativas suscitadas pelas obras muitas vezes têm motivado como resposta a defesa de uma ênfase nos seus aspectos formais. Tal defesa é articulada sob a chave de uma especial atenção à técnica, aos problemas de linguagem e às questões de estilo, frequentemente defendidas como reveladoras de uma especificidade cinematográfica ou da dimensão propriamente estética dos filmes – sendo o estético entendido, assim, como esse trabalho sobre a forma que é levado a cabo a partir da elaboração dos inúmeros materiais, equipamentos e tecnologias disponíveis. A emergência do afetivo nos campos da teoria e da crítica não deixa de demarcar, então, outras facetas da experiência cinematográfica, tomando parte nesse jogo de ênfases e exclusões. Além da já mencionada atenção à expressividade dos corpos e demais elementos que integram a materialidade dos registros, poderíamos destacar outros aspectos que são reforçados por tal perspectiva. Primeiramente, temos a preocupação de não negligenciar a figura do espectador, num esforço para manter-nos atentos às diferentes maneiras pelas quais este se relacionaria com as obras. Com isso, refiro-me não apenas (e não principalmente) a estudos empíricos de recepção, mas às teorizações sobre o lugar ocupado pelo espectador e sobre as implicações resultantes do fato de que

os filmes, seus sentidos e efeitos, sempre se atualizam em cada contexto específico de apreciação. Em segundo lugar, temos a emoção como aspecto relevante para pensar o cinema, sendo considerada não como recurso hiperbólico ou mesmo como um empecilho para a análise, mas como elemento constitutivo da relação com as imagens. Tal perspectiva tem sido particularmente importante para questionar a posição conferida aos gêneros cinematográficos nos estudos de cinema. Como Linda Williams (1998) observa a respeito do melodrama, a ideia de que a emoção mobilizaria sempre uma identificação acrítica, atuando no sentido de reforçar valores morais, favoreceu a compreensão segundo a qual a capacidade que um filme teria de emocionar a plateia se encontra vinculada a uma noção monolítica dessa relação, obliterando o fato de que as emoções suscitadas podem ser contraditórias e que, além disso, não necessariamente inibem ou inviabilizam a reflexão. Esse modo de pensar a emoção traz dois efeitos negativos: o de atribuir aos gêneros um status inferior nos estudos de cinema, e o de associar a emoção exclusivamente ao melodrama, embora não haja de fato motivos para desconsiderar sua presença em outros formatos ou mesmo para além do cinema de gênero. O conceito de afeto de certo modo radicaliza esse reposicionamento da emoção na teoria, uma vez que permite estender tal relação para além dos limites de um quadro emocional marcado pelo envolvimento psicológico com enredos e personagens. Não obstante, dizer isso já implica aludir a uma conexão entre emoção e afeto que envolve proximidades e diferenças que precisariam ser melhor explicitadas, bem como sua relação com a noção mais corrente de sentimento. Para seguir os desdobramentos de tal raciocínio, torna-se necessário demarcar o que se pretende dizer com cada um destes termos, marcados por um entrelaçamento que se torna mais forte devido ao seu uso comum, cotidiano. Quais seriam, então, as diferenças entre afeto, emoção e sentimento? Para Rei Terada (2001, p. 4), os termos diferem sobretudo

em conotação e, na tentativa de preservar seus matizes ou graduações, propõe pensar os afetos como sensações fisiológicas, enquanto a emoção remeteria a uma dimensão minimamente interpretativa, psicológica, da experiência; o sentimento seria, por sua vez, o termo que conjuga estas duas dimensões. O afeto nos leva a considerar os modos de um engajamento mais corporal e sensório, remetendo a uma dimensão pré-consciente, assubjetiva e não-formada da experiência. Tais divisões, no entanto, constituem um esforço de categorização que, se contribui para estabelecer um substrato conceitual claro para a apropriação dos termos, mostra-se – talvez por isso mesmo – bastante esquemático. Fredric Jameson (2008) observa os limites da diferença entre o afeto como sensação corporal e a emoção como estado consciente ao sugerir que, em certas “representações modernas”, as emoções “serão certamente tingidas e coloridas, se posso colocar desta maneira, por um fenômeno afetivo e os novos instrumentos de registro ou técnicas de representação inventadas para capturá-las”. Não podemos deixar de pensar que Jameson se refere, aqui, ao cinema, dada a capacidade que a imagem cinematográfica tem de operar no nível das sensações e, ao mesmo tempo, articular todo um repertório culturalmente compartilhado. Assim, se o afeto se inscreve no âmbito do sensório e está marcado justamente pela transformação dos estados da matéria – como uma espécie de variação tonal, modulação ou “cromatismo” do corpo –, a experiência pela qual esta variação se inscreve na percepção pode aparecer de modo relativamente indissociável dos sentidos que a imagem desencadeia. Elena del Río se detém mais longamente nesta questão e, de modo semelhante, aponta para a possibilidade de uma interpenetração entre o emocional e o afetivo na experiência cinematográfica: (…) no matter the differentiation between emotions and affects, one should also keep in mind that in practice these two notions remain rather fluidly connected. For although

the term “emotion” is generally preferred when describing psychologically motivated expressions of affect, emotion nonetheless actualizes and concretizes the way in which a body is sometimes affected by, or affects, another body. Thus, I regard emotion and affect as connected and coterminous, involving varying degrees and distinctive modes in a continuum of affectively related concerns (DEL RÍO, 2008, p. 10).

Por fim, poderíamos argumentar, dentro deste conjunto de ênfases, que o afeto aponta também para uma concepção de estética entendida não apenas como o domínio da forma, da técnica e do estilo, mas como constituição de universos sensíveis. Se o afeto nos situa na dimensão do encontro, ele nos remete por isso mesmo a uma esfera de pertencimento, um circuito ou uma rede em que sensibilidades são compartilhadas. O mundo sensível aparece assim como medium em que nos movemos a partir dos estímulos a que respondemos, de acordo com as ações e paixões que nos mobilizam. O afeto está intimamente implicado nas formas destas conexões e em como elas possibilitam convergências e agrupamentos, como elas operam distinções e enquadramentos. De tal perspectiva resulta uma compreensão da estética necessariamente como campo de disputa: ela implica uma multiplicidade de recortes dissonantes e por vezes inconciliáveis. A garantia de visibilidade destes recortes passa pela possibilidade de fazer circular e proliferar tais sensibilidades. É por este viés que podemos também pensar uma relação entre estética e política: o trabalho da arte sobre os materiais e sobre a forma permite imaginar e tornar visíveis modos de vida, inclusive aqueles frequentemente relegados a uma zona lateral, marginal. A emergência e a afirmação de uma sensibilidade não está separada desse esforço imaginativo, assim como qualquer intervenção no mundo visivo envolve, em alguma medida, a possibilidade de aceder à capacidade de afetar aqueles que se deparam com um corpo de imagens. Tomar parte nesse jogo abre para

múltiplas possibilidades, que variam de acordo com as partes envolvidas e com o tipo de relação que se estabelece entre elas. Melissa Gregg e Gregory J. Seigworth (2010) observam que o afeto não é apenas a força que nos impulsiona ao movimento, ao engajamento, mas também aquilo que nos debilita, que nos leva à recusa e que eventualmente nos paralisa. Assim, embora seja entendido em termos de potência e de intensidade – dimensão quantitativa da existência –, o afeto envolve também impotência e debilidade. As vidas que se definem por aquilo de que são capazes são também tocadas pelo reverso negativo do afeto: decomposição das relações, diminuição da capacidade de agir e, em seu limite, a morte. E nessa passagem o poder não deixa de incidir: Spinoza faz um retrato muito, muito estranho do tirano, explicando que é alguém que antes de tudo tem necessidade da tristeza de seus súditos, porque não há terror que não tenha como base uma espécie de tristeza coletiva. O sacerdote, talvez por razões distintas, tem necessidade da tristeza do homem acerca de sua própria condição. (…) O sacerdote, segundo Spinoza, tem essencialmente necessidade de uma ação pelo remorso, de introduzir o remorso. É uma cultura da tristeza. Quaisquer sejam os fins, ele [Spinoza] não julga mais do que isso. Cultivar a tristeza. O tirano, para seu poder político, tem necessidade de cultivar a tristeza. O sacerdote, tal como o vê Spinoza, que tem a experiência do sacerdote judeu, do sacerdote protestante e do católico, também tem necessidade de cultivar a tristeza (DELEUZE, 2008, p. 91).

É preciso entender a alegria e a tristeza em sentido estrito (se não por outro motivo, ao menos porque sabemos como uma suposta alegria também pode ser mobilizada pelo poder). A alegria e a tristeza seriam as duas grandes “tonalidades afetivas” (DELEUZE, 2008, p. 232) que demarcam uma dimensão qualitativa da existência: viver bem é “organizar os bons encontros,

compor os relacionamentos vivenciados, formar as potências, experimentar” (DELEUZE, 2002, p. 124). E se, conforme dito anteriormente, o afeto envolve pertencimento, ele envolve também um não-pertencimento: Affect marks a body’s belonging to a world of encounters or; a world’s belonging to a body of encounters but also, in non-belonging, through all those far sadder (de) compositions of mutual in-compossibilities. Always there are ambiguous or “mixed” encounters that impinge and extrude for worse and for better, but (most usually) in-between (GREGG; SEIGWORTH, 2010, p. 2).

Há gestos que operam a partir desse não-pertencimento, permitindo que ele seja expressado como imagem. Não obstante, como manifestação de potência, quando voltada para um aumento na capacidade de agir, ela não é nunca uma imagem de lamento ou de capitulação. Nela não há qualquer desprezo pela vida. Consiste sempre, pelo contrário, em um gesto afirmativo capaz de converter o não-pertencimento e a falta em pontos de articulação e de convergência, em veículos para uma mobilidade crítica e para a constituição de linhas de fuga que apontam para outros modos de vida possíveis. Problemas de método A dificuldade colocada pela dimensão afetiva como constitutiva de uma relação com as imagens não se limita apenas a mais evidente, qual seja, a de que falar sobre essa experiência nos leva à situação paradoxal de formular, de maneira argumentativa, aquilo que por definição precede qualquer elaboração consciente ou que permanece adjacente ao exercício racional da interpretação. Para uma proposta de pesquisa em cinema a partir do afeto, impõe-se a tarefa de discernir, no encontro entre os realizadores que criam a imagem, entre os corpos na imagem e, ainda, entre

espectador e imagem, o que diz respeito ao afetivo e o que, por outro lado, remete a uma dimensão simbólica, interpretativa, já formada – ou, em outras palavras, o que remete ao repertório simbólico que os filmes mobilizam e que atualizamos a partir das nossas próprias relações. A dificuldade está também em que o afeto diz respeito sempre a uma passagem, uma “transição vivida” a cujas especificidades precisamos estar atentos (DELEUZE, 2008, p. 227). A imobilização analítica é um corte nessa passagem, ou seja, é a apreciação de um estado, mesmo que ínfimo, quase instantâneo. Nas palavras de Brian Massumi: When a body is in motion, it does not coincide with itself. It coincides with its own transition: its own variation. The range of variations it can be implicated in is not present in any given movement, much less in any position it passes through. In motion, a body is in a immediate, unfolding relation to its own nonpresent potential to vary (MASSUMI, 2002, p. 4).

Ainda que consideremos apenas o caso da imagem cinematográfica e suas especificidades, constataremos que a transição vivida nos escapa. Por isso, a questão que aparece aqui é a mesma colocada por Deleuze (Idem, p.228): “como falar da passagem de um estado a outro sem convertê-la em um estado?” Este seria então, em linhas gerais, o segundo grande problema epistemológico que o conceito de afeto (e o de duração) nos coloca. Há, sem dúvida, muitos outros. Talvez um movimento possível, ainda que claramente insuficiente, seja partir desta constatação, explicitar a dificuldade e torná-la parte integrante da análise, em vez de apagá-la. O afeto, afinal, com seus movimentos e sua incidência fundados na duração, constitui um elemento norteador para a reflexão sobre a experiência com as imagens. Em última instância, ele está presente inclusive na cognição e na linguagem, sendo ao mesmo tempo ineludível e irrepresentável por ambas:

The complexity of the relationship between affect and cognition that characterizes the human, and the dependence of cognition on affect and the senses, comes more clearly to the fore when we start to think about the way language – in the very process of making meaning – is implicated with rythm and movement (GIBBS, 2010, p. 198).

Talvez por estar ciente desta dificuldade, Elena del Río (2008) opta pelo termo “afecção” para se referir aos momentos e cenas específicas em que busca analisar o corpo performativo em suas potencialidades disruptivas. E é por esse mesmo motivo que eu gostaria que o afetivo fosse aqui entendido como qualificativo que pretende designar não apenas o afeto, mas o seu imbricamento com outras noções correlatas, tais como as afecções, as emoções (desde que, conforme observado anteriormente, tomadas em suas propriedades mais físicas e exteriores que psicológicas) e mesmo, num sentido mais amplo, as sensibilidades compartilhadas que expressam formas de se relacionar com o mundo visivo. No mais, se fosse necessário demarcar apenas uma grande ênfase, dentre todos os pontos anteriormente esboçados, optaria por sublinhar a convicção de que perderíamos muito se negligenciássemos a concretude de certos aspectos para os quais o conceito de afeto aponta. O pensamento de Spinoza é indissociável de uma dimensão prática que as elaborações subsequentes de Deleuze se empenham em preservar. Deleuze argumenta que Spinoza chamou de Ética a sua Ontologia porque ela não oferece modelos, não se ampara em valores morais, mas está centrada no problema de como podemos viver, como ultrapassar as impressões equívocas e formular ideias adequadas, como evitar ou contornar os encontros e situações desfavoráveis que minam nossa capacidade de agir, como garantir o máximo de liberdade para o pensamento e para a ação – entendidos não como dimensões concorrentes, mas como manifestações unívocas da vontade. Acima

de tudo, seu pensamento se funda sobre uma radicalidade: toda vida é singular e só pode ser pensada a partir da relação. O importante é conceber a vida, cada individualidade de vida, não como uma forma, ou um desenvolvimento de forma, mas como uma relação complexa entre velocidades diferenciais, entre abrandamento e aceleração de partículas. Uma composição de velocidades e de lentidões num plano de imanência. Acontece também que uma forma musical dependa de uma relação complexa entre velocidades e lentidões das partículas sonoras. Não é apenas uma questão de música, mas de maneira de viver: é pela velocidade e lentidão que a gente desliza entre as coisas, que a gente se conjuga com outra coisa: a gente nunca começa, nunca se recomeça tudo novamente, a gente desliza por entre, se introduz no meio, abraça-se ou se impõe ritmos (DELEUZE, 2002, p. 128)

Se insistimos no horizonte ético dessas questões; se acreditamos que, pela estética, somos capazes de com-partilhar sensibilidades e visões de mundos, estabelecer pontos de contato; e se, enfim, as imagens que veiculamos têm o poder de afetar aqueles que as confrontam, podemos então discernir uma forma de articular a estética e a política, e sustentar que o conceito de afeto pode nos dizer mais do mundo visivo e das imagens em circulação do que simplesmente qualificar um conjunto de procedimentos, uma forma de registro ou uma “tendência contemporânea”. Isso implica dizer, então, que não há propriamente um “cinema do afeto”, se com isso nos referimos a um estilo, a um modo de filmar ou a uma poética. Há, sim, uma instância afetiva no cinema, e essa instância habita qualquer imagem como dimensão sensível capaz de propiciar um tipo muito especial de engajamento. Assim, embora haja sem dúvida filmes que potencializem essa relação afetiva com as imagens e os repertórios da cultura, poderíamos dizer que todo filme traz consigo uma carga afetiva que, como tal, é passível de inscrever-se no corpo

daquele que a confronta. Em outras palavas, poderíamos dizer que existe uma dimensão afetiva que é inerente ao cinema, na medida em que este é composto de encontros. Vimos, afinal, que o afeto resulta disso: de encontros que possibilitam composições ou decomposições de relações, desencadeando uma variação na potência (de agir ou de padecer) em cada um dos corpos implicados. O afeto é essa variação e existe nesse espaço entre corpos que é o âmbito mesmo das relações, espaço relacional. Existe afeto no cinema porque ele é a composição complexa de múltiplos encontros. Por isso, repito que o afeto não é uma qualidade exclusiva que possa ser atribuída a certos filmes, mas uma instância de inscrição do sensível no corpo. Não é um “tipo” de imagem, mas um momento da experiência com as imagens. De fato, as imagens que muitas vezes pretendemos estarem menos sujeitas a apropriações psicológicas, conscientes, não deixam por isso de serem incessantemente inseridas e assimiladas a partir de discursos e esquemas interpretativos que são tudo, menos pré-conscientes e pré-racionais. Da mesma maneira, as obras supostamente “narrativas demais” trazem em si uma materialidade, sob a forma de sons e imagens, que não se reduzem às significações, embora estejam por elas povoadas. Gostaria, por fim, de ensaiar uma breve aproximação a três cenas de encontro, sem dúvida muito diferentes entre si, mas que colocam em questão aspectos para os quais, conforme pretendo argumentar, o conceito de afeto teria algo a nos dizer. Se a diversidade de realizadores, períodos, estilos e contextos de realização pode nos dar a sensação de uma excessiva amplitude que ameaçaria minar a especificidade do conceito, por outro lado pode sugerir de que maneira os caminhos de análise das obras podem ser traçados a partir da escolha de quais aspectos pretendemos enfatizar ou, ainda, de que maneira interrogamos os filmes e a experiência do encontro com os mesmos.

Cena 1: contágio Num dos contos de Guy de Maupassant adaptados em Le plaisir (1952), de Max Ophüls, um grupo de cortesãs suspende temporariamente suas funções e parte para uma pequena viagem ao campo, a fim de estarem presentes na primeira comunhão da sobrinha de Madame Tellier (Madeleine Renaud), dona do salão. Durante a cerimônia, Rosa (Danielle Darrieux), uma das cortesãs, começa a chorar e seu choro se dissemina, contaminando a todos os presentes. Poderíamos entender esse fato como a comoção ocasionada pelo vislumbre de uma pureza perdida, como o efeito de uma reminiscência da infância, ou mesmo como auge de um arrebatamento religioso – leitura que o plano externo do topo iluminado da igreja e a alusão a uma força misteriosa e divina que paira sobre os presentes poderia ajudar a sustentar. Não é preciso, porém, recorrer a nenhuma causalidade narrativa ou motivação mística para assimilar este evento: embora inicialmente localizável, o choro de Rosa aparece como uma manifestação sensível que não se encaixa em nenhuma concepção privada, pessoal ou interiorizada de emoção. Tem-se aqui, pelo contrário, uma emoção carregada de intensidade afetiva que se manifesta coletivamente mediante um efeito de contágio que transpassa os corpos e, sendo assim, não remete diretamente a qualquer razão – implícita ou explícita – nem pode ser atribuída propriamente a um sujeito. Disseminada, essa emoção se desdobra entre os presentes, potencializada pela gestualidade, pelos códigos do ritual, pelo conjunto de elementos – objetos, luz, música, cânticos, estátuas, ornamentos – e mesmo, talvez, pela excepcionalidade da situação. É possível dizer, então, que se trata de uma emoção que opera na superficie dos corpos, não podendo ser localizada nem personalizada, posto que se manifesta e se materializa nesse espaço entre constituído pelas circunstâncias da cerimônia. Trata-se, em suma, de um evento que constitui e coloca momentaneamente em cena uma espécie de corpo coletivo. E, embora não seja

possível – nem mesmo desejável, diria – configurar uma situação ideal ou necessária de relação espectatorial, não parece absurdo imaginar que esse contágio seria capaz de transbordar o contexto diegético, suscitando igualmente uma comoção nos espectadores. Tal prolongamento, uma vez assumido como plausível, leva-nos a demarcar outra instância de contágio – desta vez envolvendo o corpo da audiência – efetivada ou não em cada situação singular de contato com a obra. Admitindo tal hipótese, poderíamos também afirmar que a eventual emoção suscitada pela cena resulta de um envolvimento que não se funda em nenhum tipo de identificação com personagens específicos nem com o narrador, considerados separadamente. O envolvimento se estabelece com o conjunto dos elementos acionados pelo registro, pensados não de forma isolada, mas nos termos de uma co-incidência: as imagens, a música, a voz que narra, o teor daquilo que é narrado, as particularidades do ritual e até mesmo a memória afetiva que eventualmente este venha a ativar. Meu argumento aqui é, então, o de que a cena remete à dimensão coletiva, compartilhada, de uma experiência, à qual corresponderia uma intensidade dessubjetivada e uma exterioridade da emoção. Por isso mesmo, a suscetibilidade dos corpos ao efeito de contágio nos apresenta uma relação para a qual as noções de consciência, razão ou individualidade parecem inadequadas ou, no mínimo, insuficientes. Cena 2: gesto Durante a sequência final de Opening night (1977), de John Cassavetes, temos uma cena que corresponde justamente ao desfecho da peça que está sendo encenada dentro do filme. Nela, Myrtle Gordon (Gena Rowlands) e Maurice Aarons (John Cassavetes) contracenam. Myrtle está no centro de uma contradição: não desiste da peça, mas não pode aceitar os seus termos. De fato, “perder a paixão” seria uma condição para entrar no papel – con-

dição que Myrtle se recusa a cumprir. A cena é o último desdobramento de um longo trabalho de impugnação que vinha sendo levado a cabo pela atriz: Myrtle sabota os ensaios à medida que congela poses, muda falas, subverte as marcações, ri ou chora em momentos inapropriados ou efetivamente desprograma, recompõe e prolonga pequenos gestos – tais como acender um cigarro, atender um telefone –, a partir dos quais busca reconfigurar os termos da peça. Ao longo do filme, tornamo-nos de certo modo cientes de que a razão do conflito seria a dificuldade de interpretar um papel que implicaria o reconhecimento da passagem do tempo e a aquiescência da velhice como condição presente. O objetivo de Myrtle é representar “de modo que a idade não faça diferença”. Mas não seria essa, então, uma maneira de replicar e, de certo modo, desconstruir o cerne daquilo que havíamos sido levados a entender como o núcleo a partir do qual se desenrola o filme? As investidas da atriz-personagem também não desviam e reorientam a mise-en-scène, afastando o próprio filme daquela que seria a sua premissa? Se Myrtle logra alcançar o seu objetivo – encontrar uma abertura que aponte para algo mais do que a obsessiva e fechada variação sobre o tema da velhice – o que propriamente será colocado em cena a partir de então? A despeito do embate mais explícito – de fato, desconcertantemente literal – entre a mulher e a imagem fantasmática da sua juventude, o próprio sucesso de Myrtle neste embate nos leva a reconhecer: outra coisa, que não o drama da passagem do tempo, será a partir de então encenada. Desse ponto em diante, não podemos seguir com a segurança que as chaves de leitura fornecidas pelo encadeamento de ações e diálogos nos concedem. E a cena aqui destacada marca justamente esse momento em que os encadeamentos narrativos se afrouxam para dar lugar a um jogo em que a presença dos atores no palco desprende uma gestualidade que não pode mais ser subsumida em tais encadeamentos. Não há leitura alegórica nem simbologia possível para ordenar o que aparece como um jogo de falas, gestos irreverentes e chistes. Somos

confrontados com o que seria uma pura presença no centro do palco filmado, na tela. A trama gira sobre si mesma e cai. Restam as ações performativas, o riso e o cumprimento final, à primeira vista estranho e aparentemente aleatório: os atores erguem as pernas direitas, cruzam-se e tocam com os mãos os calcanhares. O que vemos é, então, o registro de um encontro entre dois corpos no processo mesmo em que inventam a maneira pela qual se tocam. O filme é o documento5 que atesta esse encontro e que só se tornou possível devido a uma abertura à possibilidade de afetar e de ser afetado até um ponto em que a expressividade que nos alcança pelas imagens, pelos corpos em cena e pela mobilização dos recursos expressivos já não é resultado de ninguém isoladamente, mas produto dessa composição de forças que se instaura para gerar novos desdobramentos. Cena 3: espectatorialidade Há um instante muito breve em Goodbye, Dragon Inn (2003) em que a funcionária do cinema abre uma das portas da sala e aparece ao lado da tela onde está sendo projetado o filme de artes marciais Dragon Inn. Dessa posição lateral, a mulher vê as imagens. Em seguida, move-se para trás da tela branca e entra em contato com uma forma invertida dessas imagens6. Seu rosto é apresentado como superfície que colhe as luzes emitidas a partir da sala de projeção. Segue-se, então, uma alternância de planos dos rostos de duas mulheres: a do filme de Tsai Ming-Liang e a do filme de King Hu. Durante alguns instantes, temos uma sobreposição quase perfeita em que o filme dentro do filme adquire supremacia; momento em que um filme cita e reporta diretamente ao outro. De fato, o que o filme de Ming-Liang nos 5

Remeto aqui à análise de Jean-Louis Comolli (2008) sobre o cinema de Cassavetes.

Desviantes seriam, então, não apenas os corpos e/ou a conduta dos personagens que circulam pelo espaço do cinema, mas as próprias circunstâncias de efetivação do dispositivo. 6

apresenta é uma dobra que elabora e replica uma forma de relação com as imagens. O filme de Ming-Liang coloca em cena uma relação espectatorial que, ademais, não é propriamente modelar – de fato, o contato entre espectador e obra é apresentado a partir de uma série de ruídos, interrupções e usos do espaço que não estão previstos pela forma tradicional do dispositivo. Tal relação não é exemplar mas, pelo contrário, está marcada pela contingência e, nesse sentido, poderíamos dizer que é irrepetível. Goodbye, Dragon Inn configura a sala de cinema como zona de convergência de múltiplas disposições e possibilidades, espaço de circulação que potencializa entrecruzamentos, mais do que território estático para a ancoragem de uma recepção passiva. Em seu limite, são situações que desvirtuam o modelo do espectador como corpo que recebe estímulos quase exclusivamente pela visão e pela audição. Nos contextos de recepção encenados pelo filme, o corpo está inteiro, presente, disponível. O que se coloca em cena é uma relação com os filmes que se instaura não apenas a partir do que eles nos concedem, mas considerando também o que a eles acrescentamos a partir de nossa própria disponibilidade. Os vínculos que se estabelecem entre a experiência e as imagens que nela tomam parte se compõem de modo que citar uma obra é recorrer ao repertório que ela conforma, remetendo à multiplicidade de suas possibilidades de apropriação. Cada contexto de recepção é singular e, no entanto, a obra dura, permitindo atualizar a sua força de modo a torná-la assim presente – em ambos os sentidos, espacial e temporal. *** Se pretendemos afirmar que os repertórios da cultura, mesmo os mais saturados de significações, estão imbuídos de uma carga afetiva e carregam – para acionar – modos de apresentação de um mundo sensível, podemos não obstante afirmar que a resposta afetiva a esses signos da cultura, embora possa estar sugerida por seus arranjos, não é, de maneira alguma, prefigurada ou

limitada por eles. A qualidade da resposta do espectador, consumidor de imagens, e o tipo de engajamento que ele vai efetuar podem ultrapassar as sensações que os signos em circulação, organizados por uma forma pré-concebida, procuram evocar. Temos, assim, a possibilidade de uma relação afetiva com esses repertórios que se dá a partir de um deslocamento ou reapropriação sensível dos mesmos; um afeto que advém da própria diferença entre o sentido consolidado e as circunstâncias de sua atualização. Cada repertório traria, assim, uma composição codificada de sensações e sentidos delas decorrentes e, ao mesmo tempo, a possibilidade de um desvio, de um engajamento a partir de outro recorte sensível. É assim que podemos falar de um deslocamento na cadeia dos afetos provenientes da relação com uma imagem: constituição de uma margem que reside nas formas de apropriação da matéria sensível que os meios expressivos veiculam. Por fim, com os exemplos anteriores fica claro que não se trata simplesmente de “não interpretar”. Quando há pouco dizia, por exemplo, que a emoção no filme mencionado de Ophüls seria potencializada pelos elementos dispostos em cena; ou quando vejo no ato que marca o desfecho da peça encenada no filme de Cassavetes o triunfo da recusa de sua protagonista ao papel que lhe foi designado, já estou de certo modo acionando uma interpretação. A questão é que, nesses casos, trata-se menos de desvendar os significados de uma situação a partir dos elementos fornecidos pela obra e mais de elaborar os sentidos possíveis de um evento, sem perder de vista que ele não se esgota em qualquer rede de significações determinada. Além disso, a materialidade de uma obra desencadeia sentidos mas não se restringe aos mesmos e é, em última instância, irredutível.

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NOVÍSSIMOS E FLUÍDOS. UMA ANÁLISE ACERCA DAS PECULIARIDADES ESTÉTICAS DO NOVÍSSIMO CINEMA BRASILEIRO Iomana Rocha de Araújo Silva1

A produção contemporânea do cinema brasileiro é bastante vasta e heterogênea. Todavia, existe uma parcela destes filmes que se destacam no cenário nacional e internacional, trazendo certa inovação estética e formal. Tais filmes costumam ser chamados atualmente de novíssimo cinema brasileiro. Entende-se por novíssimo cinema brasileiro não uma totalidade de filmes produzidos por jovens diretores da atualidade, mas antes uma parcela de filmes que são marcados por certa inventividade, desprendidos de normas ou regras comumente impostas ao fazer cinematográfico, legitimados por uma curadoria interessada na inovação formal e em posturas de criação e produção menos convencionais. Uma nova tendência de filmes cujo modus operandi e a própria linguagem se reconfiguram e se reinventam, formando o que vem se convencionando chamar de cinema pós-industrial2. A baixa resolução dos recursos de produção da imagem e do som é assumida e representa para alguns artistas uma maneira de subverter o fetiche do maintream por uma alta definição da imagem. Subversão esta que também já foi incorporada. (LIMA, IKEDA, 2011, p. 22)

Aspectos como autoria coletiva, a forte produção via coletivos de criação, as radicalizações no modus operandi, o baixíssimo Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Email: [email protected]. 1

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Conceito cunhado por César Migliorin em artigo escrito para a revista Cinética.

orçamento, a inter-relação com a arte contemporânea, refletem em um cinema independente inovador, colaborando para uma produção fluída e hibrida. O novíssimo cinema brasileiro • Coletivos cinematográficos Diante desta produção, observa-se certas recorrências, entre elas, a ligação dessa novíssima produção com coletivos de produção cinematográfica, como é o caso da Alumbramento - CE, Teia - MG, Trincheira- PE, Símio – PE, entre outras. São artistas/ diretores que se agrupam, em parte por partilharem de referências estéticas e ideológicas semelhantes, mas também por ver nesses coletivos a possibilidade de ter independência e autonomia em suas criações, realizadas de forma colaborativa e experimental. Uma grande marca destes coletivos é a resistência frente aos valores e normas impostos pela indústria cinematográfica. A união destes realizadores faz força contra imposições do cinema mainstream, que é visto como algo estanque e por vezes conservador. O modus operandi desses coletivos mostra-se como resistência às formas mais burocráticas e hierarquizadas de produção. Ao invés disso, preza-se pelo trabalho conjunto e colaborativo. A autoria por vezes se dilui entre os integrantes do coletivo, tornando-se um trabalho compartilhado, no qual os membros e seus parceiros se revezam em funções no set. • Peculiaridades do Modus operandi Tanto os coletivos como diretores isolados desse novíssimo cinema buscam se desvincular da forma (ou fórmula) reconhecidamente industrial de se fazer cinema. Trata-se de uma resistência à plastificação, homogeneização e rigidez da estética das

imagens da atualidade. Bem como, resistência a mecanização do trabalho individual. Busca-se uma quebra com regras e estruturas hierarquizadas de produção advindas do cinema industrial, marcada comumente por uma produção rígida, com roteiros inflexíveis, equipe hierarquizada, autonomia criativa exclusiva do diretor, e no qual comumente a equipe é dividida em funções especificas e hierárquicas. A quantidade dessas funções varia dependendo do tamanho, da necessidade e do orçamento de cada filme. Todas essas funções trabalham dentro de um sistema de hierarquia e de certa interdependência. E cada departamento trabalha exclusivamente no que lhe diz respeito, sem interferir diretamente nos demais. Assim, a produção pós-industrial se configura como uma resistência através da criação de novas alternativas de produção, independentes e horizontalizadas, onde todos os participantes da equipe do filme possam interferir diretamente e criativamente, não apenas em seus departamentos, mas no filme como um todo. A produção se dá de forma mais fluida, sem seguir rigidamente manuais ou regras. Buscando-se algo como uma “artesanalização” do fazer cinematográfico, uma volta ao fazer manual e ao analógico, uma maior permissibilidade da errância e da naturalidade das imagens. Com isso, observa-se uma maior flexibilidade quanto aos períodos de gravação, os prazos, as metas, bem como uma maior presença do set de “guerrilha”, muito presente nas produções brasileiras do cinema novo e cinema marginal. Este estilo de produção tem suas marcas no resultado final do filme, colaborando com a construção de elementos estéticos inerentes a esta novíssima produção.

Alguns filmes Desassossego é um projeto que parte de um bilhete de uma menina de 16 anos, encontrado em um armário abandonado em um apartamento no Rio. Inspirado por este bilhete Felipe Bragança escreveu uma carta cujo conteúdo envolve perturbações juvenis, amor, utopia, explosões e apocalipse. Esta carta, por sua vez, foi enviada a quatorze cineastas, provenientes de diversas regiões do Brasil (Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Ceará). Esses cineastas deveriam ler e responder a tal carta com fragmentos visuais. Foram realizados dez fragmentos  de filme em resposta a esta carta. Esses fragmentos foram enviados de volta aos idealizadores do projeto, para, a partir de então, serem costurados como uma carta-filme. Uma vez pronto o filme, este deverá ser enviado a duas mil e dez pessoas no Brasil e no mundo. Essas pessoas são convidadas a responder com novos fragmentos que podem vir a fazer parte de um novo filme. Diante disso, observa-se Desassossego como um projeto in progress, o filme acabado não marca o fim do processo, este pretende ainda repercutir junto aos espectadores e estes poderão manifestar suas impressões e respostas sensíveis através de imagens. Além de desassossego, existem outros filmes de autoria coletiva em meio a este cinema. Obras cinematográficas que se formam unindo fragmentos e colaborações advindas de diversos diretores, com diferentes estéticas. Os filmes se formam a partir da junção de fragmentos isolados, gerando um todo por vezes heterogêneo esteticamente, mas que possui força enquanto conjunto. Trata-se de uma tendência observada junto a este novíssimo cinema, e que reflete o sentimento colaborativo. O filme desassossego, de Felipe Bragança e Marina Meliande sintetiza esta manifestação. Pacific é um filme realizado a partir da montagem de imagens de viagens cedidas por turistas provenientes de uma classe média emergente, participantes de um cruzeiro com destino a

Fernando de Noronha. A equipe de produção do documentário participou das viagens e, ao final, abordavam os participantes e pediam aos que quisessem colaborar com o filme para que cedessem seus registros, com o devido contrato de cessão de imagem. Ao fim destas viagens, juntou-se uma grande quantidade de material bruto, gravado sem nenhuma interferência da equipe, e sem nenhum direcionamento por parte do diretor. Trata-se de imagens corriqueiras do que seriam as férias dessas pessoas: festas, aniversários infantis, brincadeiras entre casais, conversas familiares, momentos íntimos, gracejos e certa ânsia coletiva pelo “ser visto”. A partir de aproximadamente 60 horas de um heterogêneo material bruto e sem um roteiro prévio, o diretor dedicou-se a montar e fazer significar tais imagens, aberto ao acaso proporcionado por este conteúdo. No inicio de Pacific, intercalado com as primeiras imagens, aparece um letreiro no qual é explicitado as origens daquelas imagens e o processo gerador do filme. A partir daí, observa-se uma montagem de imagens de arquivos de registros subjetivos, feitos por pessoas reais, cada uma em sua individualidade, onde é possível observar a natural construção de personagens que determinam nossa relação com o mundo e com o outro. Na presença das câmeras, as pessoas-personagens se apresentam da maneira que querem, transparecendo, de certa forma, os valores culturais e estéticos que acreditam serem bons, ocorrendo assim o que seria quase uma auto ficcionalizaçao das imagens, por parte dos sujeitos representados. Pacific se enquadra na categoria de obras que evidenciam de alguma forma seu processo de criação, se relacionando assim com elementos e conceitos inerentes a arte processual. Quanto ao termo processo, é importante ressaltar que em todo e qualquer filme, assim como em toda e qualquer obra de arte, existe um processo. No caso do cinema, sua forma tradicional de produção, por si só, já é processual, levando-se em consideração

todas as suas fases (pré, produção e pós). Todavia, quando se fala aqui de obra processual, refere-se diretamente àquela ligada aos princípios da arte conceitual, onde aspectos do desenvolvimento da obra são colocados em evidência. Na arte conceitual há uma proeminência do projeto, chegando ao extremo deste não necessitar de uma concretização. O conceito inerente à obra tem prioridade em relação à aparência da obra. A arte deixa de ser primordialmente visual, passa a operar não com objetos ou formas, mas com ideias e conceitos, problematizando a própria ideia de arte e seus sistemas de legitimação. A ligação da arte conceitual com os filmes em questão se dá mais fortemente quando se observa que a fruição desses filmes se diferencia, pois se trata não de uma fruição para mero entretenimento ou deleite do produto final, pois o foco não é necessariamente o filme finalizado, mas o potencial conceitual e filosófico que ele levanta. Diante da observância de Pacific fica clara a ênfase dada pelo diretor na relação com o acaso, e a importância que o acaso tem no processo de construção do filme. Nas obras consideradas processuais, o artista constrói a partir de determinadas características que lhe surgem ao manipular sua matéria-prima. Algumas dessas características ganham maior consistência que outras, são as linhas de força da obra que ganham sustentação. No ambiente de vagueza e incerteza o artista, ao longo do processo, passa a conhecer o que quer. (SALLES, 2006, p. 142) O que diferenciaria Pacific do processo comum a qualquer outro filme é, além das peculiaridades de seu processo de gênese e de obtenção e ressignificação do material bruto, a enunciação deste processo para o espectador. Além disso, observa-se um certo descentramento do sujeito criador da obra cinematográfica. Algo inerente aos processos de criação, segundo afirma Cecília Almeida Salles: “não faz assim mais sentido localizar a criatividade no sujeito, que é, na realidade, constituído e situado. Constituído por seus engajamentos,

dificuldades, conflitos, e é situado, espacialmente, temporalmente, historicamente” (2006, p.151). Salles conclui afirmando que aspectos como consciência, engenhosidade, criatividade e outras características, que normalmente atribuímos a agentes criativos, são sempre funções de sua constituição cultural e localização histórica. (2006, p. 152). Viajo porque preciso, volto porque te amo foi realizado no decorrer de dez anos, nos quais os diretores captaram exuberantes e delicadas imagens, nos mais diversos suportes (películas de diferentes bitolas, diferentes formatos de vídeo, inclusive de baixa resolução como câmeras fotográficas), e nas mais diversas situações. Muitas delas capturadas em meio a trabalhos paralelos dos diretores. Não havia roteiro prévio, nem um direcionamento especifico na captação das imagens. A principio, tratam-se de imagens que simbolizam o imaginário e a relação pessoal que cada um dos diretores tem com o sertão. No filme, o que se nota é um quebra cabeça de imagens poéticas, com tom documental, interligadas a partir de um fio condutor que é a narração de um personagem, que não aparece em cena em nenhum momento, narrando suas impressões durante a viagem que faz pelo sertão. O espectador é assim convidado a embarcar nesta jornada, contextualizada por imagens que nos dão um panorama poético e realista do nordeste brasileiro. Viajo porque preciso, volto porque te amo é um filme hibrido, cujos limites entre documentário e ficção se encontram borrados. Tem como ponto forte a construção poética, não só imagética, mas sonora. É ao mesmo tempo uma experimentação de linguagem, e um filme homenagem ao sertão nordestino, e a tudo aquilo que foi responsável pela construção do imaginário dos diretores. Durante seu processo de desenvolvimento, essas imagens, foram montadas e remontadas. O filme passou anos como obra em construção. Mas o que se evidencia aqui são os desdobramentos originados a partir desta obra. A partir desse arquivo de imagens e da proposição inicial dos diretores - explorar poeti-

camente e sensorialmente o sertão nordestino - obras e adaptações paralelas foram surgindo. Primeiramente originou um curta metragem: Sertão de acrílico azul piscina, que fez parte do projeto Brasil 3 x 4 do Itaú Cultural3. Essas mesmas imagens foram adaptadas para uma vídeo instalação4. Posteriormente os diretores se dedicaram a montar essas imagens focando no projeto do longa metragem. Tal exemplo faz referencia as obras que são realizadas, a principio, como cinema tradicional, expostas em salas de cinema convencionais, mas que paralelamente também se desdobram em vídeo instalações, instalações, exposições, etc. Também o próprio Pacific é um exemplo desse desdobramento, tendo sido exposto na ultima bienal de São Paulo, bem como também obras de Cão Guimarães (Pela Janela do meu quarto e Rua de mão dupla) que tanto participaram do circuito de cinema como foram expostos em galerias. Assim, algumas obras desse novíssimo cinema brasileiro se inserem no contexto do cinema expandido, contexto este que abarca tanto as obras realizadas por cineastas, para cinema, mas que se inserem nas mostras de arte contemporânea, bem como artistas, que se utilizam de elementos e dispositivos cinematográficos para desenvolver suas obras. O Cinema expandido, segundo Youngblood é um cinema sinestésico5, onde as imagens formam um espaço-tempo continuum e se busca a ênfase na experiência do espectador. Ocorre nesse cinema a busca da multisensorialidade. Para tanto ocorre o Link para trecho ilustrativo do curta Sertão acrílico azul piscina http://www.youtube. com/watch?v=-ngaMEe9a1M&playnext=1&list=PL96D8B19CC8304F8B 3

Em 2004 as mesmas imagens deram origem ao misto de curta de documentário e vídeo instalação Sertão de Acrílico Azul Piscina. Os dois fizeram juntos ainda outra instalação Ah, Se Tudo Fosse Sempre Assim (2004). 4

Sinestesia é a relação de planos sensoriais diferentes: Por exemplo, o gosto com o cheiro, ou a visão com o olfato. O termo é usado para descrever uma figura de linguagem e uma série de fenômenos provocados por uma condição neurológica. 5

uso recorrente de ambientes imersivos, bem como de interatividade e fluidez das telas (1970, p. 71). Diante da absorção do cinema expandido pelos museus, Dominique Paini (2009) acredita que isso resulta em uma expansão em triplo sentido: das telas (no que diz respeito a quantidades); da proximidade tela-expectador; e da posição do visitante à de espectador. Sobre esta posição Philippe Dubois comenta que: Num plano mais estético, a emergência do ‘cinema de exposição’ se fez também sobre um fundo de variação na reflexão sobre o lugar do espectador: quando o filme deixou ‘sua’ velha sala escura para se expor nas salas dos museus de arte, os parâmetros sobre os modos de recepção supostamente ‘específicos’ dessas imagens se deslocaram, ao mesmo tempo que surgiram interrogações sobre a suposta ‘natureza’ de cada um deles. (DUBOIS, 2009, p. 87).

Defende-se aqui que neste cinema ocorre mais uma expansão: a da experiência estética cinematográfica. Dominique Païni (2009) afirma inclusive que uma nova ordem de experiência é visível, a relação que ocorre no cinema expandido, entre o espectador e a obra é totalmente diversa da do cinema convencional. Ele compara o espectador do cinema expandido à figura do flaneaur. Sobre este, Baudelaire escreve: Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residencia no numeroso, no ondulante, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais, que a linguagem não pode definir, senão toscamente (2007, p. 21).

Essa associação se mostra clara diante do fato de que o visitante destas obras não tem a obrigação da visão bloqueada, como a do espectador comum de cinema, possuindo, além disso, uma liberdade física, que possibilitaria a este uma maior aproximação com as imagens. Trata-se de um espectador móvel, dotado de visão gradual da tela e que está pronto não a se confundir com a existência ficcional de personagens ou a se confundir ilusoriamente no espaço de um cenário, mas a entrar na imagem (PAÏNI, 2009). Conclusões acerca da expansão do cinema experimental/ independente As obras resultantes desse contexto pós-industrial são propostas marcadas pela ousadia e pelo entusiasmo do fazer cinema. O cinema é visto fora de sua forma institucionalizada e rígida, não é mais preso às hierarquias e manuais, nem à regras de linguagem ou linhas estéticas, se expande em sua estética, e em sua fruição. Tratam-se de possibilidades criativas que se firmam como alternativas ao modelo de produção do audiovisual no Brasil. Uma contra resposta ao cinema mainstream e às imagens artificializadas e artificializantes dos meios de massa. “Narrativas poéticas e experimentais são construídas com amigos e familiares, temas do cotidiano, questões caseiras. O enquadramento de situações da intimidade. As memórias são resgatadas, histórias a partir de imagens e lembranças perdidas” (LIMA, IKEDA, 2011, p.22) Tais obras exploram a sensorialidade e a potencialidade das imagens em movimento. Existe certa afetividade e emoção que vem desde a etapa de produção do filme, ficando marcado na obra, e passando para o espectador: O olhar pretenciosamente impreciso é direcionado pela emoção, pela tensão afetiva, pela coreografia realizada pelo autor e pelo acontecimento fílmico. Captar com

vivencia, com a incorporação da câmera como extensão do próprio corpo. O autor presente e imagens com a potencialidade dessa presença. (LIMA, IKEDA, 2011, p. 22)

Em meio a tal produção destacam-se algumas obras que expandem a experiência cinematográfica. Como é o caso, dentre outros exemplos, dos filmes aqui expostos (Desassossego, Pacific e Viajo porque preciso, volto porque te amo). O que vai determinar para nós tal expansão é, primordialmente, o fato destes filmes irem além da narratividade e do discurso do cinema clássico. Além disso, observa-se que as obras são cada vez mais processuais (em diversos níveis), característica advinda de ressonâncias da arte contemporânea. Além disso, nestes filmes existe a elaboração de certas atmosferas, certas associações de som e imagens que, se utilizando da sala escura e da situação de imersão que o espectador se encontra, geram sensações de fruição comparadas àquelas sentidas em instalações e obras audiovisuais da arte contemporânea. Trata-se de um devir artes plásticas do cinema, como diz André Parente (2009, p. 258), ou um devir-instalação, termo que preferimos trabalhar. No que diz respeito ao ‘devir instalação’, este é identificado em algumas sequências de filmes (filmes de cinema) nas quais pode-se encontrar referências estéticas provenientes da videoarte, da instalação, da poesia e da desconstrução característica de movimentos de vanguarda, bem como, pontualmente, aspectos de outras manifestações artísticas contemporâneas como a performance e o happening. Nestas sequências, a carga sensorial, associada à estrutura imersiva típica do cinema institucionalizado (sala escura, silêncio, som envolvente etc., que provocam um distanciamento do mundo externo, um desprendimento momentâneo com a realidade), colaboram com este ‘devir instalação’. O espectador, neste

‘momento’ é levado a fruir uma experiência que se assemelha, até certo ponto, com a fruição de uma instalação. Diana Domingues (1998) coloca que, na instalação, o participante é obrigado a ver a si próprio como parte da situação criada. No caso do ‘devir instalação’, o espectador se vê diante de uma experiência, na qual suas reações e questionamentos diante das imagens constituem parte da proposição fílmica. Sobre o expectador participante, Parente diz: A obra não é mais algo fechado, preexistente à relação com o espectador, vale dizer, a obra contemporânea perdeu sua autonomia e é a relação com o espectador que produzirá a trasformação que dela se espera. Se o artista, de um lado, faz a obra em função de determinada relação dele com a vida, o espectador, de outro, terá de encontrar um lugar na relação com a obra ou esta não existirá como algo que interessa (2009b, p. 257).

Assim, esse devir instalação se mostra como um momento de experienciação, de participação criativa, onde o espectador não tem sua fruição direcionada, como na narrativa tradicional, mas ocorre a ativação de uma fruição livre, a partir de estímulos sinestésicos e multissensoriais, que levam a uma imersão de outra ordem, que não necessariamente cinematográfica. Tais filmes propõem uma outra relação com o espectador, na qual este se torna essencial para a construção das obras, que se mostram abertas as mais diversas interpretações. O espectador se mostra como elemento constitutivo da obra. Obras estas que não se configuram mais como objetos (obra acabadas), mas como fenômenos a serem vivenciados. Trata-se de “criar imagens que buscam afetar, experimentar linguagens coerentes com o conceito, alterar a percepção do olhar e exigir o envolvimento do expectador” (LIMA, IKEDA, 2011, p. 22) Segundo André Parente (2009, p.23), assistimos ao processo de transformação da teoria cinematográfica, uma teoria que pensa

a imagem não mais como um objeto, e sim como acontecimento, sistema de relações que põe em jogo diferentes instancias enunciativas, figurativas e perceptivas da imagem.

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COMUNICAÇÃO E SOCIEDADE transformações midiáticas no contemporâneo FORMATO: Epub 3 TIPOGRAFIA: Palatino, Prussian Brew Solid Montado na

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