Como criar identidades com traduções, ou Quando traduzir é intervir numa teoria. \'Tradução em revista\', Rio de Janeiro, v. 2, p. 129-145, 2005.

June 29, 2017 | Autor: Daniel Silva | Categoria: Translation Studies, Pragmatics, Performativity
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TRADUÇÃO EM REVISTA

Uma publicação da área de Estudos da Tradução Departamento de Letras PUC-Rio

n. 2 Intervenções Organização Maria Paula Frota e Marcia A. P. Martins

Copyright © 2005 por Maria Paula Frota e Marcia Martins Título Original: Tradução em Revista Editor Tomaz Adour Editoração Eletrônica Luciana Figueiredo

ISSN 1808-5989

PUBLIT SOLUÇÕES EDITORIAIS Rua Miguel Lemos, 41 sala 605 Copacabana - Rio de Janeiro - RJ - CEP: 22.071-000 Telefone: (21) 2525-3936 E-mail: [email protected] Endereço Eletrônico: www.publit.com.br 2 | Tradução em Revista

Comissão Editorial Marcia A. P. Martins Maria Paula Frota Paulo Henriques Britto Conselho Editorial Cristina Carneiro Rodrigues, UNESP-S. José do Rio Preto Heloisa Gonçalves Barbosa, UFRJ João Azenha, USP Lawrence Venuti, Temple University Maria Clara Castellões de Oliveira, UFJF Maria Lúcia Vasconcellos, UFSC Rosemary Arrojo, SUNY-Binghamton

Endereço para correspondência Departamento de Letras, PUC-Rio Rua Marquês de S. Vicente, 225 22450-900 Rio de Janeiro, RJ Tels.: 55 21 3114-1444/1445/1447 Fax: 55 21 3114-1446 Contato: [email protected], [email protected], [email protected] http://www.letras.puc-rio.br/Traducao/index.htm

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Sumário Autores ..................................................................................................... 7 Resumos/Abstracts/Resumés ...................................................................... 9 Apresentação ........................................................................................... 17 Os lugares discursivos do tradutor e do adaptador e os meandros da visibilidade 19 Lauro Maia Amorim A (não) relação entre tradutores e copidesques no processo de edição de obra estrangeira ............................................................................................... 37 Flávia Carneiro Anderson A crítica de traduções .............................................................................. 69 Ivone C. Benedetti Traduttore, traditore: as traduções brasileiras dos romances-folhetins na imprensa carioca do século XIX ............................................................... 77 Pina Coco O uso de corpora para o estudo da tradução: objetivos e pressupostos ....... 87 Carmen Dayrell Memória de tradução: auxílio ou empecilho? .........................................103 Adriana Ceschin Rieche Como criar identidades com traduções, ou quando traduzir é intervir numa teoria .....................................................................................................129 Daniel do Nascimento e Silva Tradução, corpos nus e troca de roupas ...................................................147 Ben Van Wyke

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AUTORES

Lauro Maia AMORIM é bacharel em Letras com habilitação de Tradutor pela UNESP de São José do Rio Preto, São Paulo, e mestre em Lingüística Aplicada - Estudos da Tradução pela mesma instituição. Sua dissertação, em fase de publicação pela Editora da Unesp, examina as múltiplas relações entre o traduzir e o adaptar, no campo da literatura, focalizando as diferenças, aproximações e entrecruzamentos que caracterizam essas relações, tanto em obras traduzidas e adaptadas quanto nos discursos de estudiosos da tradução. Recentemente ingressou como doutorando no Programa de PhD in Translation Studies, da Universidade Estadual de Nova York (SUNY), em Binghamton, Estados Unidos. Atualmente é professor no curso de Tradutor e Intérprete da União das Faculdades dos Grandes Lagos — UNILAGO em São José do Rio Preto. [email protected] Flávia Carneiro ANDERSON é formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Concluiu os cursos de Formação de Tradutores Inglês-Português (2004) e de Especialização em Tradução Inglês-Português (2005) na PUC-Rio. É tradutora profissional de inglês e espanhol e atua principalmente nas áreas de tradução literária e tradução para dublagem. [email protected] Ivone C. BENEDETTI, tradutora desde 1987 e professora de português, latim e francês, tem doutorado em Língua e Literatura Francesa pela FFLCHUSP, com trabalho sobre Charles d’Orléans, poeta francês medieval. Traduz autores como Maquiavel, Voltaire, Montaigne e Barthes, entre muitos outros. Organizou o Dicionário de Italiano-Português Martins Fontes (S. Paulo: Martins Fontes, 2004) e do livro Conversas com tradutores (Parábola, S. Paulo, 2003). É professora de gramática contrastiva e tradução prática na FFLCH-USP, junto ao CITRAT. [email protected] Pina COCO é doutora em Letras, área de Literatura Brasileira, pela PUC-Rio, onde atua em cursos de graduação e pós-graduação. O texto publicado neste número foi extraído de sua tese de doutorado, O triunfo do bastardo: uma leitura dos romances-folhetins na imprensa carioca do século XIX (PUC-Rio, 1990), Autores | 7

inédita. Teve traduções encenadas pelo Grupo TAPA (Rio e São Paulo) e por Gilles Gwizdek. É afiliada à SBAT. [email protected] Carmen DAYRELL é doutora em Estudos da Tradução pelo Center for Translation and Intercultural Studies (CTIS) da Universidade de Manchester (Inglaterra). Tem mestrado em Lingüística Aplicada, na área de Tradução, pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É tradutora (inglês-português) há mais de 10 anos. [email protected] Adriana Ceschin RIECHE graduou-se bacharel em Letras em 1988 e, desde então, atua como tradutora técnica e intérprete de conferências, à frente da Arquitexto Ltda., estando encarregada da supervisão e execução de projetos de tradução, versão, revisão lingüística e atualização de textos técnicos e comerciais de diversas empresas. É professora de Prática de Tradução de Informática no curso de especialização em tradução da PUC-Rio. Em 2004, concluiu o mestrado em Estudos da Linguagem pela PUC-Rio. [email protected] Daniel do Nascimento e SILVA é tradutor da Fundação CPqD – Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações. Mestre em Lingüística pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, sob orientação do professor Kanavillil Rajagopalan, desenvolve pesquisas sobre a relação entre linguagem e identidade, numa abordagem pragmática, em diferentes domínios discursivos. [email protected] Ben VAN WYKE é mestre em Literatura Comparada pela Binghamton University, estado de Nova York, Estados Unidos, e administra o Translation Referral Service da mesma universidade. Publicou traduções de poesia, ficção e textos acadêmicos do espanhol e do português, e tem interesse pela filosofia contemporânea e teorias pós-coloniais, bem como pela relação dessas disciplinas com a teorização e a prática da tradução. [email protected]

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RESUMOS/ABSTRACTS/RESUMÉS

OS LUGARES DISCURSIVOS DO TRADUTOR E DO ADAPTADOR E OS MEANDROS DA VISIBILIDADE THE DISCURSIVE LOCATIONS OF TRANSLATORS AND ADAPTORS AND THE MEANDERS OF VISIBILITY Lauro Maia AMORIM O presente trabalho desenvolve uma reflexão sobre a tradução e a adaptação e os lugares discursivos de onde “falam” tradutores e adaptadores das obras Alice’s adventures in Wonderland, de Lewis Carrol, e Kim, de Rudyard Kipling, para o português brasileiro. É discutida a questão da visibilidade do tradutor e do adaptador em relação ao modo como seus trabalhos são divulgados, levandose em consideração aspectos relacionados à autoridade de quem traduz ou adapta e às expectativas que os termos “tradução” e “adaptação” podem suscitar junto aos leitores. This paper proposes a reflection on the concepts of translation and adaptation and the discursive locations from which translators and adaptors “speak”, by considering different Brazilian Portuguese versions of Lewis Carroll’s Alice’s Adventures in Wonderland and Rudyard Kipling’s Kim. The issue of the translator’s and the adaptor’s visibility is discussed in connection to the way their works are presented to the public, by taking into account both the authority associated with translators and adaptors and the expectations the terms “translation” and “adaptation” may raise among readers.

Resumos/Abstracts/Resumés | 9

A (NÃO) RELAÇÃO ENTRE TRADUTORES E COPIDESQUES NO PROCESSO DE EDIÇÃO DE OBRA ESTRANGEIRA THE (NON) RELATIONSHIP BETWEEN TRANSLATORS AND EDITORS IN THE EDITING PROCESS OF FOREIGN LITERATURE Flávia Carneiro ANDERSON Este estudo visa a analisar a relação entre tradutores e copidesques no processo editorial, a partir das mesmas bases utilizadas pelos teóricos da tradução para avaliar a relação entre autores e tradutores. Procura entender o que os tradutores e os copidesques pensam a respeito de seus papéis e o motivo das queixas por parte de tradutores quanto a copidescagens tidas como desnecessárias ou incorretas. Procura também demonstrar que as editoras poderiam realizar modificações no processo de edição que em muito contribuiriam para a harmonização da relação entre tradutores e copidesques e para a melhoria de qualidade das obras traduzidas. This study aims to analyse the relationship between translators and editors in the editing process, on the same bases used by translation theorists to evaluate the relationship between authors and translators. It aims to understand how translators and editors see their own roles and the reason for translators’ complaints about what they consider to be unnecessary or incorrect changes. It also aims to demonstrate that publishing houses could introduce changes in the editing process that would greatly contribute to the harmonization of the relationship between translators and editors and to the improved quality of translated works.

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A CRÍTICA DE TRADUÇÕES LA CRITIQUE DES TRADUCTIONS Ivone C. BENEDETTI Este texto foi lido na PUC-Rio em 5 de outubro de 2004, em uma mesaredonda que discutiu a crítica de traduções e que foi realizada por ocasião do lançamento do primeiro número do presente periódico. Nele são discutidos diversos conceitos de “crítica”: crítica do texto por traduzir, feita pelo próprio tradutor, crítica do texto traduzido feita por um terceiro, crítica como julgamento, crítica como condenação etc. Conclui-se que no Brasil não há crítica de tradução especializada, perguntando quem poderia produzi-la, se um crítico ou um tradutor. Ce texte a été lu à PUC-Rio le 5 octobre 2004, au cours d’une table-ronde sur la critique des traductions tenue à l’occasion de la sortie de la revue Tradução em Revista. On y traite des divers concepts de « critique » : la critique du texte à traduire faite par le traducteur lui-même, celle du texte traduit faite par un tiers, la critique en tant que jugement, la critique en tant que condamnation etc. On y conclut qu’au Brésil il n’y a pas de critique de traduction specialisée, et on y pose la question de savoir qui pourrait la produire : un critique ou un traducteur.

Resumos/Abstracts/Resumés | 11

TRADUTTORE, TRADITORE: AS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DOS ROMANCES-FOLHETINS NA IMPRENSA CARIOCA DO SÉCULO XIX TRADUTTORE, TRADITORE : LES TRADUCTIONS BRÉSILIENNES DES FEUILLETONS DANS LA PRESSE DE RIO DE JANEIRO AU XIXème SIÈCLE Pina COCO Se na morosa Corte portuguesa do Rio de Janeiro, no século dezenove, os títulos literários franceses tardam a chegar, é surpreendente o surgimento, quase simultâneo à publicação parisiense, dos romances populares em tradução. Dois aspectos dessa questão merecem ser analisados — por um lado, objeto e instrumental, ou seja, o que e como é traduzido; por outro, a questão da recepção: a que público se destinam as traduções, o que introduz a rediscussão da categoria “romance popular”, que, se na Europa é bastante definida, transposta para o Brasil de 1800 simplesmente inexiste. Tomando como base publicações na imprensa carioca entre 1840 e 1880, tentaremos mapear essas questões. Si dans la paresseuse Cour portugaise de Rio de Janeiro au XIXème les titres littéraires français tardent à arriver, on est surpris par le surgissement presque simultané à leur parution parisienne de romans populaires traduits. Deux aspects de cette constation méritent d´être analysés : d’un côté, l’objet et son traitement — le matériel traduit et la qualité de la traduction. D’un autre, la question de la réception : le public auquel ces traductions se destinent, introduit la rediscussion de la catégorie de « roman populaire », bien définie en Europe mais simplement inexistante, une fois transposée au Brésil de 1800. En prenant comme base d’étude les publications de la presse de Rio entre 1840 et 1880, nous essayerons de parcourir ces questions.

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O USO DE CORPORA PARA O ESTUDO DA TRADUÇÃO: OBJETIVOS E PRESSUPOSTOS USING CORPORA TO STUDY TRANSLATION: AIMS AND ASSUMPTIONS Carmen DAYRELL O principal objetivo deste artigo é discutir as propostas, objetivos e pressupostos da disciplina Estudos de Tradução com base em Corpora (ETC). Mais especificamente, este artigo visa a explicar a importância, benefícios e aplicações do uso de corpora nas esferas teórica e pedagógica da disciplina. Ele inclui ainda uma descrição dos tipos de corpora usados atualmente em pesquisas dos Estudos da Tradução, bem como alguns exemplos para ilustrar como metodologias baseadas em corpora podem ser usadas para o estudo da tradução. This paper aims to discuss the objectives, proposals, and rationale behind Corpus-based Translation Studies (CTS). More specifically, it aims to explain the relevance, benefits, and applications of corpora in the theoretical and pedagogical branches of the discipline. The paper discusses the types of corpora which are currently used in translation studies and provides some examples to illustrate how corpus-based methodologies can be used to study translation.

Resumos/Abstracts/Resumés | 13

MEMÓRIA DE TRADUÇÃO: AUXÍLIO OU EMPECILHO? TRANSLATION MEMORY: AID OR HANDICAP? Adriana Ceschin RIECHE O presente estudo analisa os principais fatores que levam a problemas de qualidade nos sistemas de memória de tradução e apresenta sugestões para melhorar o controle de qualidade, ressaltando a necessidade de manutenção e revisão das memórias para que realmente sirvam ao propósito de serem ferramentas e não empecilhos para o tradutor. Essas questões são analisadas no contexto do mercado de localização de software, segmento em que as memórias de tradução são amplamente utilizadas, à luz das abordagens contemporâneas sobre qualidade de tradução. This study analyzes the major factors leading to quality problems in translation memory systems and suggests ways to enhance quality control, emphasizing the need for updating and reviewing the translation memories so that they can actually serve as translation aids rather than handicaps. These issues are analyzed in the context of the software localization market, a segment in which translation memories are widely used, in the light of contemporary approaches to translation quality assessment.

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COMO CRIAR IDENTIDADES COM TRADUÇÕES, OU QUANDO TRADUZIR É INTERVIR NUMA TEORIA HOW TO MAKE IDENTITIES WITH TRANSLATIONS, OR WHEN TRANSLATING IS INTERVENING IN A THEORY Daniel do Nascimento e SILVA Partindo da hipótese de que, em se tratando da teoria dos atos de fala, associada ao pensamento de J. L. Austin, o trabalho de tradução de seus textos se assemelha ao trabalho de interpretação de seu pensamento e de intervenção nele, assumindo, assim, o status de atividade de reconstrução da teoria, lanço um olhar neste ensaio para as escolhas lingüístico-discursivas do tradutor brasileiro, o filósofo Danilo Marcondes, de modo a delinear, simultaneamente, a intervenção no texto e no pensamento austiniano e a reivindicação de certa identidade para Austin e sua filosofia. Starting from the hypothesis that, as regards J. L. Austin’s speech act theory, the act of translating his texts is similar to the act of interpreting and intervening in his thought, implying as well a reconstruction of the theory, I take a look at the linguistic-discursive strategies of the Brazilian translator, the philosopher Danilo Marcondes, so as to delineate, simultaneously, the intervention in Austin’s text and thought and the demand for a certain identity for Austin and his philosophy.

Resumos/Abstracts/Resumés | 15

TRADUÇÃO, CORPOS NUS E TROCA DE ROUPAS TRANSLATION, NAKED BODIES AND CHANGE OF CLOTHES Ben VAN WYKE A tradução é freqüentemente discutida e explicada através de metáforas. Uma dessas metáforas, utilizada no discurso tradutório desde Cícero até o presente, é a da vestimenta: a língua é como uma roupa que cobrisse e apresentasse o corpo do significado. A tradução, segundo essa metáfora, é compreendida como a mudança da vestimenta lingüística ou a criação de novas roupas para revestir o corpo/original. Essa metáfora da vestimenta baseia-se numa distinção radical entre o sentido e o texto em que ele supostamente seria encontrado, entre significado e significante, o que implica a impossibilidade de pensar a relação entre as entidades que a tradição denomina forma e conteúdo senão como coisas separadas e independentes uma da outra. No presente trabalho, exploro a metáfora do corpo como significado e o que ela implica para a suposta operação de troca de roupa que seria a tradução. Em seguida, examino maneiras alternativas de pensar a tradução utilizando essa metáfora tradicional. Translation is often discussed and explained by way of metaphors. One of these metaphors, employed in translation discourse from Cicero to the present, is that of dress: clothes being like a language that covers and presents a body of meaning. Translation, according to this metaphor, is understood as the changing of the language dress or the designing of new clothes in which the body/ original can be presented. This clothing metaphor depends on a very sharp distinction between meaning and the text in which it is said to be found, the signified and the signifier, which implies the impossibility of thinking of the relationship between what tradition calls form and content as anything but separate and independent from each other. In this paper I will explore the metaphor of the body as meaning and what this means for the supposed redressing that is translation. I will then explore alternative ways of thinking about translation using this traditional metaphor.

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APRESENTAÇÃO

É com muito prazer que lançamos este segundo número de Tradução em Revista, para o qual colaboraram oito autores, todos eles de algum modo relacionados à nossa área de Tradução na PUC do Rio – alunas da especialização e do mestrado; companheiros em congressos realizados aqui e no exterior; colegas desta e de outras instituições que participaram de algumas iniciativas nossas. O tema deste número é Intervenções: diferentes formas de se intervir em um texto durante o processo de sua tradução. Nestes tempos em que pelo menos entre nós, estudiosos da área, já não mais impera a crença em suposta neutralidade da operação tradutória, cabe sempre investigarmos por que motivos, de que maneiras e através de que agentes podem se dar essas inevitáveis (mas não quaisquer) intervenções. Cada um dos trabalhos aborda o tema sob um ângulo específico. Lauro Amorim, a partir da análise comparativa de diferentes traduções, adaptações e traduções-adaptações dos romances Kim e Alice’s adventures in Wonderland, apresenta o quadro de “confusão” que há, entre editoras e tradutores brasileiros, relativamente àqueles conceitos: ao contrário do que esperaríamos, os textos vendidos como traduções por vezes revelam um grau consideravelmente maior de intervenção no original do que aqueles que são anunciados como adaptações. Flávia Anderson reflete sobre as reações dos tradutores face às intervenções que os copidesques operam em seus textos – será que exigimos destes uma neutralidade que afirmamos impossível no nosso caso? Ivone Benedetti, ao sugerir uma crítica de traduções de melhor qualidade, traz conceitos de Umberto Eco que propõem um limite entre o que seria uma “interpretação semântica” e uma “interpretação crítica”, isto é, um limite justamente entre a ausência e a presença de intervenção por parte do intérprete. Pina Coco nos traz uma série de curiosidades a respeito da imprensa carioca no século dezenove, entre elas as drásticas intervenções feitas por tradutores de romances-folhetins para que fosse preservada a pureza das “amáveis leitoras”. O texto de Carmen Dayrell, que faz uma apresentação dos estudos de tradução com Apresentação | 17

base em corpora, também vincula-se ao tema da intervenção, ainda que de forma menos óbvia – afinal, toda e qualquer metodologia de pesquisa necessariamente intervém na constituição do objeto enfocado. Já no trabalho de Adriana Rieche, os agentes das intervenções tradutórias são os programas de memória de tradução, os quais, como enfatiza a autora, requerem manutenção e revisão para que possam de fato intervir positivamente, sem risco de se tornarem empecilhos para o tradutor. Daniel Silva, por sua vez, aborda o tema da intervenção no âmbito da tradução de textos teóricos, em particular da tradução brasileira de How to do things with words de John L. Austin, procurando demonstrar como ela participa de “um movimento de (re)construção da teoria dos atos de fala”. Ben Van Wyke desconstrói a metáfora do corpo e da roupa, usada no discurso que prega a possibilidade de se traduzir sem intervir, ou seja, que crê na idéia de que traduzir consiste em desnudar o significado-corpo de um texto tirando as suas roupas-palavras originais e trocando-as por um novo traje lingüístico. Feita essa breve apresentação, só nos resta agradecer aos autores e convidar os leitores a desfrutarem de suas reflexões.

Maria Paula Frota e Marcia A. P. Martins Rio de Janeiro, novembro de 2005

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OS LUGARES DISCURSIVOS DO TRADUTOR E DO ADAPTADOR E OS MEANDROS DA VISIBILIDADE1 Lauro Maia Amorim

Introdução O presente trabalho discute a relação entre tradução e adaptação refletindo sobre as diferenças, aproximações e entrecruzamentos entre os dois conceitos no campo da tradução literária. O trabalho busca criar um espaço de reflexão no qual os conceitos de “tradução” e de “adaptação” sejam pensados como frutos tanto da relação entre as diferenças culturais e lingüísticas como também de práticas discursivas que constituem as fronteiras entre os dois conceitos. A reflexão que aqui se propõe baseia-se, em parte, na proposta de Toury (1995), segundo a qual o conceito de tradução não representa uma identidade fixa, na medida em que depende de fatores diversos, tais como as diferenças culturais e históricas que possibilitam a formação de diferentes expectativas acerca de como uma tradução pode ser produzida para atender diferentes objetivos. Uma vez que o conceito de tradução constitui-se de uma rede complexa de relações, ele será caracterizado por múltiplas identidades, dependentes das “forças que governam as decisões a serem tomadas em uma determinada época” (Gentzler, 1993: 128). A tradução não poderia ser, assim, facilmente reduzida a um conceito apenas, mas poderia ser concebida como uma textualidade marcada por uma certa “mobilidade” cujas margens são estabelecidas na relação entre práticas discursivas heterogêneas, que incluem as recepções do texto original e os lugares discursivos atribuídos ao tradutor e ao adaptador em determinados espaços institucionais. Como ressalta Hermans (1997), a tradução é uma prática concebida em um universo institucional marcado pelo entrecruzamento de normas e discursos que podem ser conflituosos, possibilitando ou não a legitimação de certas possibilidades tradutórias, pois as normas não são independentes [...] das relações sociais no interior das comunidades, quer essas relações sejam materiais (econômicas, legais ou financeiras), quer sejam o que Pierre Bourdieu chama de “simbólicas”, isto Os lugares discursivos do tradutor e do adaptador... | 19

é, relações vinculadas ao status, à legitimidade e a quem a confere. É evidente que em sociedades complexas e diferenciadas, coexiste uma multiplicidade de diferentes normas que coincidem, mas que, também, com freqüência, entram em conflito. O trabalho do tradutor inevitavelmente enreda-se na diversidade dessas tramas, [na medida em que] o tradutor se inscreve na rede das relações sociais e discursivas existentes. (Hermans, 1997: 10)2

Para o desenvolvimento da reflexão proposta serão comentadas algumas das traduções e adaptações das obras Alice’s adventures in Wonderland, de Lewis Carroll, e Kim, de Rudyard Kipling, para a língua portuguesa do Brasil. A análise proposta não defende a busca, seja para a “tradução” ou para a “adaptação”, de uma identidade unívoca fundamentada em limites absolutos, supostamente objetivos ou universais, que não levam em consideração o contexto de formulação daqueles conceitos. Nesta pesquisa, partimos do pressuposto de que as fronteiras entre os dois conceitos não são intrínsecas — o que não significa dizer que não haja fronteiras. Defender a inexistência de limites seria um gesto tão ingênuo quanto reafirmar a possibilidade de se fixarem limites anteriores a qualquer contextualização. É desejável que a reflexão sobre as fronteiras entre o traduzir e o adaptar possa levar em consideração os meandros discursivos que atuam sobre as condições que levam uma obra a ser classificada como adaptação ou como tradução. Essas condições são variáveis, implicando algum tipo de mobilidade na constituição dessas fronteiras. Algumas das questões que este trabalho pretende discutir são, a saber: 1) em que medida o “autor/escritor” por trás do tradutor/adaptador pode ser um elemento que, em virtude de uma certa autoridade, torna possível a legitimação de determinadas opções interpretativas?; 2) o termo “adaptação”, visível na capa de uma obra, poderia ser considerado um meio mais “ético” de se veicularem certas interpretações ou transformações textuais?; 3) a identificação de uma obra como “tradução”, “adaptação” ou “tradução e adaptação” depende apenas de elementos textuais ou abrange também uma dimensão discursiva que se inscreve no modo como essa obra é classificada/percebida? Essas questões são pontos de partida para uma reflexão sobre as fronteiras que participam da (in)visibilidade do tradutor e do lugar discursivo do “adaptador”, no qual se indicia, com freqüência, o desejo pela vinculação de uma dimensão “autoral” (ou “co-autoral”) à textualidade da escritura adaptada.

Tradução e adaptação: histórias recontadas A adaptação de obras clássicas da literatura nacional e mundial é um tema que desperta polêmica, dividindo opiniões. Não poderia ser diferente, já 20 | Tradução em Revista

que a noção de adaptação não se reduz a um sentido consensual: ela pode ser associada tanto à noção de “enriquecimento” quanto de “empobrecimento”. Por um lado, argumenta-se que ela empobreceria as literaturas clássicas em virtude de um processo de atualização e de simplificação que visaria atender a públicos específicos, como o infanto-juvenil. Por outro, ela tornaria possível o enriquecimento da formação educativa desses públicos, introduzindo obras de difícil acesso, cuja linguagem seria complexa ou temporalmente distante da realidade com a qual tais leitores estariam habituados. Em ambos os casos, a adaptação seria um conceito amplo que abarca as mais diversas formas de linguagem, como história em quadrinhos, adaptações cinematográficas e televisivas, desenhos animados, audio-books, e os trabalhos conhecidos como “histórias recontadas” ou “adaptações” literárias em forma narrativa (um dos objetos desta pesquisa). Neste contexto, os adaptadores cumprem um papel particularmente diverso do tradutor. Institucionalmente, concebe-se que o adaptador não é apenas um profissional que “atualiza” a linguagem de uma obra, mas que também assumiria, parcialmente, o lugar discursivo reservado ao “autor”. Em outros termos, com freqüência pressupõe-se que a narrativa, em uma adaptação, seja “compartilhada” entre o autor original e o adaptador-“autor”, que a “reconta” conferindo um “toque” especial à narrativa. Não é mera coincidência o fato de que muitos adaptadores já são autores/escritores renomados. Quem adquire uma adaptação pode esperar que o adaptador seja “fiel” à “história”, sem deixar, porém, de se fazer “presente” na sua própria composição – presença que conta uma história, como a figura de um adulto que se faz presente, com todo o seu modo particular, nas histórias contadas à criança . Essa situação delega responsabilidades ao adaptador, tornando seu trabalho consideravelmente complexo, apesar de ser considerado uma forma de simplificação3 . Não é à toa que estudiosos alertam para a necessidade de se avaliar e valorizar a qualidade das adaptações, pois “a cada adaptação bem realizada de um clássico (nas várias linguagens) é grande o número de leitores que se dirige aos textos originais” (Ceccantini, 1997: 7, grifo meu). No entanto, levanta-se uma questão: o original, ao qual se refere Ceccantini, seria a “tradução” ou o texto original em língua estrangeira? É pouco provável que a maioria daqueles leitores que foram introduzidos aos clássicos por meio das adaptações tenham contato com a leitura dos textos estrangeiros posteriormente. Esse contato posterior se dará, muito provavelmente, por meio de trabalhos publicados como “traduções” – os “originais” de que fala Ceccantini. Quanto a isso, é importante ressaltar que muitos trabalhos publicados como traduções, como por exemplo as da série “Eu Leio”, da Os lugares discursivos do tradutor e do adaptador... | 21

editora Ática, mesmo sendo considerados “integrais”, promovem um direcionamento editorial e interpretativo dos textos originais, tendo em vista fatores relacionados ao público adolescente. No entanto, o termo “tradução” se inscreve numa rede discursiva que institucionalmente regula o papel do tradutor como aquele que apenas “espelharia” o que lê (sem considerar fatores da ordem da recepção) fazendo-se “ausente”, ao contrário do adaptador, que, se fazendo “presente”, “contaria” uma narrativa clássica, como um bom contador de histórias que leva em consideração o perfil dos seus ouvintes/leitores. A oposição entre “espelhar” e “recontar”, “ausência” do tradutor e “presença” do adaptador mostram-se, no entanto, inadequadas quando nos deparamos com as traduções e adaptações analisadas aqui. O tradutor torna seu texto tão acessível quanto o faz o adaptador. Isso não quer dizer que as transformações operadas possam ser aceitas indiferentemente como traduções ou adaptações: há espaços institucionais, dimensões discursivas, princípios de coerência que possibilitam ou autorizam, por um lado, certas interpretações sob o rótulo de tradução, sem deixar de direcioná-las a um determinado público, como se a obra em “si mesma” já fosse delineada para aqueles leitores; por outro lado, certas interpretações podem ser autorizadas sob o conceito de “adaptação” na medida em que, mesmo com alterações consideráveis, a transformação empreendida seja garantida por profissionais experientes em manter a “verdade” mítica das obras que adapta por meio da fluidez de sua suposta sensibilidade “autoral”. Este trabalho, no entanto, focaliza certas particularidades da relação entre a figura autoral e as versões4 aqui analisadas. A experiência pregressa de autores/ escritores renomados, algo comum a muitos adaptadores, é o que caracteriza particularmente o trabalho do escritor Monteiro Lobato, tradutor de Kim, e o trabalho de Ana Maria Machado, tradutora de Alice no País das Maravilhas. Ambos os tradutores são escritores de renome, com uma história intimamente ligada à literatura infanto-juvenil no Brasil. Seus “nomes” conferem às traduções que produziram uma determinada força discursiva que, aliada à política editorial, indicia a mobilidade das fronteiras entre o traduzir e o adaptar, assim como a legitimação de certas opções interpretativas sob o rótulo “tradução”, quando em outras circunstâncias poderiam ser consideradas ou rotuladas de “adaptação”.

As versões de Kim, de Rudyard Kipling A escolha da obra Kim de Rudyard Kipling para a pesquisa justificou-se na medida em que a análise de duas de suas reescrituras para a língua portuguesa revela a complexa relação entre os problemas suscitados pelo colonialismo e a própria dimensão discursiva que permeia os conceitos de tradução e de 22 | Tradução em Revista

adaptação. Na tradução de Kim por Monteiro Lobato (originalmente publicada pela Companhia Editora Nacional em 1945) e na sua adaptação por Eliana Sabino (Editora Scipione, 1993) emergem conflitos a partir dos discursos em que essas reescrituras se inscrevem, enquanto promotoras de um determinado modo de se ler o Oriente, a partir dos olhos do Ocidente. A adaptação de Sabino condensa o romance, de aproximadamente 300 páginas, para em torno de 120, omitindo tanto passagens da própria narrativa quanto poemas que introduzem cada capítulo no texto-fonte. Além disso, todos os capítulos são mantidos, com a inserção de ilustrações não presentes na edição original em inglês. De modo geral, as reedições das traduções de Lobato, sem ilustrações, mantêm-se entre 240 e 300 páginas, embora também omita os poemas introdutórios e assimile o quarto capítulo do original ao terceiro, de forma que a tradução passa a ter 14 capítulos em vez de 15, como no original. Essa assimilação apenas altera o número de capítulos, unindo a passagem final do terceiro capítulo e o princípio do quarto. Kim foi originalmente publicado em 1901. A primeira tradução da obra no Brasil é de 1934, realizada por Antonio Batista Pereira e editada pela Editora Companhia Nacional. Lobato realizou a segunda tradução da obra, publicada em 1945 e apresentada como “3a. edição” pela mesma editora, não utilizada nas análises deste trabalho. Após essa data, houve reimpressões da tradução de Lobato, sendo o exemplar de 1956 e outro, sem data, os que tomei como duas das três referências para a realização das comparações entre texto original e texto traduzido desta pesquisa. O exemplar de 1956 e o sem data não apresentam número de edição. Nos últimos anos, a tradução de Lobato esteve esgotada até que, em 2002, a editora Nacional a relançou no mercado, com “a atualização lingüística de Alípio Correia de Franca Neto” (Kipling, 2002, ficha catalográfica). Apesar da “atualização lingüística” e da inserção de notas feitas por Franca Neto na publicação de 2002, na ficha catalográfica afirma-se “1. ed” (primeira edição). No entanto, na parte superior da folha de rosto encontra-se a seguinte informação: “© Companhia Editora Nacional, 1945, 2002”. A substituição de expressões idiomáticas, como “conto da carocha” por “conto da carochinha”, seria um dos poucos exemplos de atualização lingüística na narrativa feita por Franca Neto na publicação de 2002. Por outro lado, algumas passagens traduzidas presentes no exemplar sem data e no de 1956, que poderiam levantar verdadeiras polêmicas, foram relidas provavelmente como erros de tradução ou de impressão e, portanto, corrigidas, como é o caso da tradução de “beautiful impartiality” por “horrível imparcialidade” (traduzida agora, em 2002, como “louvável imparcialidade”) e a tradução de “Perhaps Os lugares discursivos do tradutor e do adaptador... | 23

they will make me a king” por “Talvez até me façam rir” (substituída por “Talvez até me façam rei”). A edição de 2002 traz, ainda, notas de rodapé que explicam o significado dos termos empregados por Lobato. O que chama mais a atenção é que a grande maioria das notas explicativas não se refere a termos da cultura indiana, mas a expressões que não são comuns à língua portuguesa brasileira, como “surrão”, “odre”, “refolho”, “marafona”, “parolagem” etc. O texto original, utilizado como referência para esta pesquisa e publicado pela editora Penguin, diferentemente da tradução de 2002, traz notas para explicar tanto eventos históricos quanto aspectos culturais locais. Diante das modificações empreendidas na tradução de 2002, interpretamos essa publicação como, no mínimo, uma quarta edição, ainda que a editora a considere como primeira edição na ficha catalográfica.5 Kim é um clássico da literatura inglesa e o romance mais destacado de Rudyard Kipling, autor geralmente lembrado por suas posições imperialistas pró-britânicas. A questão do imperialismo em Kipling só é focalizada na introdução à adaptação de Sabino, enquanto a orelha da tradução de Lobato, de 1956, realizada quando a Índia acabava de se “desvincular” do domínio britânico, ressalta apenas a grandeza literária da narrativa de Kipling. A adaptação da editora Scipione apresenta uma breve introdução, não assinada, contextualizando historicamente o autor e sua obra. Nessa introdução, desenvolve-se uma argumentação que é particularmente reveladora, não somente de uma certa concepção do que representaria a obra do autor, já indiciando problemas relativos a questões coloniais, mas também de um determinado discurso que se posiciona opositivamente, ainda que de forma indireta, em relação a outras interpretações ou reescrituras da obra de Kipling em português: Apesar do patriotismo de Kipling, que o impediu, talvez, de considerar criticamente a política colonialista, as primeiras traduções de Kim para a língua portuguesa reforçaram o ideário da superioridade dos brancos ao acrescentar no texto supostos aspectos negativos dos nativos, onde seu autor não o fez. Esta edição procura levar ao público leitor a Índia que Kipling conheceu e registrou, através de Kim, esse fruto do contato entre as culturas ocidental e oriental. (Kipling, 1993: 4, “introdução”)

A tradução de Kim por Antonio Pereira Batista, em 1934, e a realizada por Lobato, em 1945, estão entre as primeiras traduções do romance de Kipling no Brasil. Estaria a tradução de Lobato inclusa entre aquelas “primeiras traduções” de Kim criticadas, na introdução não assinada à adaptação de Sabino, por reforçarem “o ideário da superioridade dos brancos” (Kipling,1993: 4, “introdução”)? 24 | Tradução em Revista

Não poderemos discutir essa questão no espaço deste trabalho, mas certamente a tradução de Lobato, apesar de se aproximar do que se chamaria de uma tradução “integral”, apresenta opções tradutórias muito mais polêmicas do que o processo de condensação efetuado na adaptação de Eliana Sabino. É interessante observar que a tradução de Lobato reeditada pela Companhia Editora Nacional em 2002 mantém integralmente os trechos que observaremos a seguir. A passagem abaixo focaliza o narrador retratando a senhora de Kulu, uma das personagens que o garoto Kim e o Lama encontram caminhando juntos pelas estradas da Índia:

Kipling So all about India, in the most remote places, as in the most public, you find some knot of grizzled servitors in nominal charge of an old lady who is more or less curtained and hid away in a bullock-cart. Such men are staid and discreet, and when a European or a high-caste native is near will net their charge with most elaborate precautions; but in the ordinary haphazard chances of pilgrimage the precautions are not taken. The old lady is, after all, intensily human, and lives to look upon life. (Kipling, 1989: 113)

Tradução de Monteiro Lobato É comum por toda a Índia o encontro de carros de boi fechados de cortinas, guardados por numerosos servos e com uma exigente velha dentro. Esses servos mostram-se prudentes e discretos. Quando se aproxima um europeu ou um indiano de casta alta, dissimulam habilmente a presença da velha ama no carro. Mas durante as romarias, a extrema aglomeração inutiliza tais cuidados — e as velhas são vistas. A curiosidade feminina faz que elas mesmas se deixem ver. (Kipling, 2002: 59)

Adaptação de Eliana Sabino Assim, não era raro encontrar por toda parte da Índia, um punhado de empregados velhos escoltando uma senhora mais ou menos oculta numa carroça puxada por bois. Diante de um europeu ou de um nativo de casta elevada, a senhora e seus empregados observam o protocolo mais estrito, porém durante a maior parte da viagem essas precauções eram esquecidas. (Kipling, 1993: 34)

Observando o texto de Kipling, em inglês, naquelas circunstâncias em que não havia europeus ou nativos de casta alta por perto, a velha senhora de Kulu não se escondia permanentemente. Segundo o narrador, por ser “intensamente humana”, ela estima a vida. Estimar a vida seria vivê-la sem seguir à Os lugares discursivos do tradutor e do adaptador... | 25

risca certas convenções sociais que, para aquele momento, não faziam sentido algum. Ser “intensamente humana” seria voltar-se para a própria contemplação da vida, sem importar-se com certas regras de comportamento. O trecho “the old lady is, after all, intensely human, and lives to look upon life” é traduzido por Lobato como “A curiosidade feminina faz que elas mesmas se deixem ver”. Se, no texto original, a velha senhora é caracterizada como sendo “intensamente humana”, na tradução ela caracteriza-se por traços que são apresentados como características de toda mulher. Teria Lobato interpretado “intensely human” ou “lives to look upon life” como “ações” que se traduziriam em “curiosidade feminina”? Se levarmos em consideração que a velha senhora encontrava-se curiosa para conhecer o Lama — já que este e Kim seguiam de perto sua escolta pela estrada — talvez a opção de Lobato seja aceitável; porém, há, também, a possibilidade de se ler aí a própria configuração da noção de estereótipo, pois em que sentido a “curiosidade feminina” seria substancialmente distinta da “curiosidade masculina”? Na adaptação de Sabino não há nenhuma referência a essa passagem, focalizando-se apenas o abandono do “protocolo mais estrito” quando não se fazem presentes um europeu ou um nativo de casta elevada. Sabino não apresenta, nesse trecho, qualquer característica psicológica da senhora de Kulu, ao passo que Lobato descreve-a como “exigente” — atributo que não é descrito no original, mas que poderia ser interpretado com base nos gestos da senhora. Tendo realizado uma condensação, Sabino pode ter considerado esse trecho como “secundário”, já que, mais à frente, o próprio Kim descreve a senhora de modo semelhante ao narrador. Essa descrição é mantida pela adaptadora. Como se pode notar, apesar de ter sido publicada como uma tradução, a versão de Kim (em princípio, integral) realizada por Lobato é muito mais polêmica em algumas de suas passagens do que a transformação estrutural promovida na adaptação de Eliana Sabino. Ao ter seu trabalho publicado como “adaptação”, as mudanças estruturais empreendidas parecem adquirir uma certa aceitabilidade: o termo “adaptação” presente na capa do livro implicitamente indicaria ao leitor, mesmo antes de lê-lo, que a obra em questão teria sido submetida a um processo de transformação. A presença do termo “adaptação”, já na capa, parece sugerir também “transparência” por parte da editora, já que não estaria oferecendo ao leitor o que geralmente se espera de uma tradução. No entanto, o discurso da introdução não assinada à adaptação de Sabino não abandona a noção de fidelidade, reafirmando a posição crítica (da editora e da adaptadora) a outras traduções que teriam deturpado aspectos fundamentais da narrativa de Kipling. 26 | Tradução em Revista

Diante desta e de outras análises desenvolvidas, pode-se afirmar que as opções de Lobato revelam um gesto tão ousado quanto conservador em relação ao texto-fonte. A leitura de Lobato sugere uma certa ousadia, na medida em que opta por uma tradução que supera as próprias afirmações do narrador e mesmo das personagens, intensificando, no caso, uma certa postura machista. Por outro lado, essa leitura é tão conservadora quanto ousada, já que “adapta” as supostas fronteiras do Oriente aos conceitos e aos limites do conhecimento e da percepção do homem ocidental colonizador – em pleno acordo com aquele Kipling considerado, com freqüência, um defensor convicto da missão civilizatória do homem branco colonizador, europeu e britânico. É importante considerar, no entanto, que a ousadia que caracteriza certas passagens de sua tradução foi autorizada por meio da publicação recente, atualizada e revisada pela editora Nacional. A figura do escritor Lobato, cujo nome é apresentado na capa da tradução, confere à mesma uma sustentação discursiva que, mesmo em face das passagens mais polêmicas da tradução, conduz o leitor à “certeza” de estar lendo uma obra traduzida pela pena de um escritor consagrado, cujas particularidades estilísticas poderiam, quem sabe, ter direcionado os caminhos da tradução que ele ou ela pretende ler. A tradutora Eliana Sabino, por sua vez, encaminha sua adaptação no sentido de apresentar um Kipling sem conflitos, como se estivesse oferecendo ao leitor a Índia que Kipling realmente teria conhecido, sem contradições. Esse gesto afigura-se como uma intervenção incisiva na escrita de Kipling, ao omitir ou abrandar passagens que sugerem o preconceito colonialista. Mas a intervenção desse gesto é posta em “suspensão” pelo discurso da editora, na medida em que a noção de adaptação serve, nesse caso, a um propósito educacional (cf. MILTON, 2002: 113). Essa espécie de “suspensão” é a face conservadora do discurso que sustenta o texto de introdução à adaptação. Uma vez publicada com o termo “adaptação” já na capa, cria-se, para o trabalho de Sabino, um espaço discursivo que possibilita tanto a transformação do textofonte, em nome de certas propostas educacionais implícitas, como uma justificativa que legitima suas opções, oferecendo ao leitor uma perspectiva que (supostamente) opõe-se às transformações efetuadas em outras traduções.

As versões de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll As versões de Alice’s adventures in Wonderland trazem à tona a problemática dos limites entre traduzir e adaptar de modo muito mais intenso do que nas versões de Kim. A obra é tradicionalmente considerada “intraduzível”, devido aos trocadilhos e referências culturais e intertextuais do texto-fonte. A Os lugares discursivos do tradutor e do adaptador... | 27

noção de adaptação, no contexto dessa obra, teria, pelo menos, dois significados. Por um lado, uma vez que a obra é tida como “intraduzível”, adaptá-la significaria realizar uma condensação e/ou simplificação da mesma, “contornando”, como afirma Uchoa Leite (1980: 06), os problemas de linguagem e tornando a história acessível a determinados públicos, como o infantil – nesse caso, o termo “adaptação” seria, com freqüência, tomado como sinônimo de condensação. Por outro lado, a adaptação seria o que justamente tornaria “traduzível” o texto original, “recriando”, para utilizar o termo comum no discurso dos tradutores e poetas Augusto e Haroldo de Campos, situações e trocadilhos que re-estabeleceriam efeitos de sentido numa relação de reciprocidade com o texto-fonte. O público leitor é outro fator que torna ainda mais complexa a relação entre traduzir e adaptar e a obra de Carroll, sendo um elemento fundamental para compreender a forma como os tradutores ou adaptadores concebem a obra original. Na tradução de Uchoa Leite (Editora Summus, 1980), por exemplo, argumenta-se que a obra em questão não se confunde com literatura infantil, sendo efetivamente um objeto de leitura para leitores “adultos”. Essa leitura de Carroll vai ter uma influência decisiva em sua tradução de 1980 (não analisada aqui), já que até hoje ela permanece como uma referência nos meios acadêmicos. Por outro lado, na visão da tradutora Ana Maria Machado (Editora Ática, 1997), Carroll é, ao contrário, o “fundador da literatura infantil de verdade” (Machado, 1997: 08), e sua tradução caminharia no sentido de recuperar essa condição. No entanto, sua tradução tem como alvo o leitor juvenil. Apesar de fazer parte de uma série voltada para pré-adolescentes, entre 11 e 12 anos, a adaptação de Sevcenko (Editora Scipione, 1995)6 não promove a condensação da obra original, recurso por meio do qual se efetivam omissões consideráveis em relação ao texto de partida — o que nos leva a considerar que a noção de condensação é apenas um traço, dentre outros possíveis, que poderia ser utilizado para caracterizar as adaptações. Neste trabalho focalizaremos especificamente a tradução da escritora Ana Maria Machado e a adaptação de Nicolau Sevcenko. A tradutora tem o nome presente na capa do livro (tal como Lobato, em sua tradução de Kim publicada em 2002, incluindo também as edições anteriores), ao lado da afirmação “texto integral”. No catálogo da editora, direcionado aos professores do ensino médio e fundamental, a única tradução da série “Eu leio” em que se destaca o nome do tradutor é justamente a que é realizada pela autora, renomada escritora de literatura infanto-juvenil. O catálogo apresenta a série afirmando que 28 | Tradução em Revista

as traduções são de alta qualidade, com uma linguagem bastante cuidada e acessível ao jovem. Um ponto importante: o texto é sempre integral, ao contrário das condensações e adaptações que se encontram nas livrarias e que costumam descaracterizar a obra dos grandes escritores (Juvenis, 1997)

A editora, assim como a tradutora em seu posfácio, assume um discurso efetivamente crítico em relação às adaptações. No entanto, o termo “adaptação” não pressupõe um significado consensual, pois tanto a editora quanto a tradutora parecem se referir ao termo em seu sentido de “condensação”, em que o objetivo do adaptador seria direcionado para a história ou tema geral da narrativa e não para aspectos formais ou estilísticos da obra original. Apesar de assumir uma posição crítica perante as adaptações como forma de condensação, a tradutora faz uso de estratégias que muito provavelmente seriam consideradas “adaptações” num sentido diferente. Suas opções e a própria linha editorial promovem um direcionamento interpretativo que explora os entremeios da relação entre tradução e adaptação. As ilustrações realizadas para a tradução de Machado são inspiradas nas xilogravuras usadas nos cordéis. Essas ilustrações se relacionam com a concepção global do texto, na medida em que a tradução como um todo privilegia uma leitura que faz uso de canções e poemas conhecidos da cultura brasileira, além de outras passagens que envolvem certas expressões lingüísticas populares. A contracapa da tradução já insinua essas transformações: “nesta edição, as originais soluções encontradas pela tradutora Ana Maria Machado e as ilustrações de Jô de Oliveira, inspiradas na xilogravura usada nos cordéis, dão um sabor bem brasileiro a Alice no País das Maravilhas” (Carroll, 1997: contracapa, grifos meus). Considero as opções de Machado tão “ousadas” quanto as empreendidas por Nicolau Sevcenko em sua “adaptação” (ou talvez mais “polêmicas”, embora num sentido diferente do que ocorre na tradução de Kim feita por Lobato). Essa “ousadia” se deve à forma como a tradutora propõe a leitura das canções e paródias da obra de Carroll, utilizando canções folclóricas e poemas brasileiros que são “parodiados” pela personagem Alice, o que não é proposto na “adaptação” de Sevcenko. No trecho a seguir, ao ser convidada a cantar uma canção para seus companheiros, a Tartaruga Falsa e o Grifo, Alice acaba trocando as palavras e cantando uma “nova” canção em virtude do seu esquecimento. Como se pode observar, Nicolau Sevcenko não propõe grandes modificações em sua adaptação. Pelo contrário, poderíamos dizer que o adaptador segue “de perto” o original, possibilitando uma versão tão “próxima” quanto possível da estrutura da canção. Já Ana Maria Machado, em sua tradução, “transgride” não somente a “estrutura” do original, mas toda e qualquer referência cultural que a canção-fonte poderia, eventualmente, evocar: Os lugares discursivos do tradutor e do adaptador... | 29

Carroll (Carroll, 1987:73)

Adaptação de Sevcenko (Carroll, 1995:102)

Tradução de Ana Maria Machado (Carroll, 1997: 107)

‘’Tis the voice of the sluggard’ “Eis a opinião do preguiçoso”

“Minha terra tem palmeiras”7

’Tis the voice of the Lobster; I heard him declare,

“Minha perna tem pauleiras Onda espanta o sal do mar. Azar vir aqui com cheia Não coceira acumular”

Eis a opinião da lagosta, aqui declarada: – “Ai! vocês me assaram demais, “You have baked me too fiquei tostada! brown, I must sugar my hair.” O pato exibe a sobrancelha, ela, o As a duck with its eyelids, so he nariz; with his nose Ajeita o cinto e os botões, e sai tão Trims his belt and his buttons, feliz. and turns out his toes. N’areia seca, saltita qual cotovia, When the sands are all dry, he E o tubarão, com desprezo, ela is gay as a lark, calunia. And will talk in contemptuous Mas quando ele volta com a maré tones of the Shark: montante... But, when the tide rises and Ah! Sua voz soa tímida e sharks are around, tremulante. His voice has a timid and tremulous sound.’

Os recursos empregados por Ana Maria Machado — os quais não se restringem aos utilizados nesses exemplos — não fizeram com que a obra fosse publicada como uma adaptação, não somente porque a própria editora, na série em questão, assume um discurso “crítico” em relação às adaptações/ condensações, mas também porque está em jogo, no discurso da tradutora e da editora, um certo conceito de tradução articulado indiretamente à figura “autoral” da escritora/tradutora Ana Maria Machado — o que pode ser um elemento de legitimação das opções realizadas (algo semelhante ao que ocorre com a tradução de Kim feita por Lobato). Vale lembrar que, no catálogo da editora Ática, Ana Maria Machado é a única tradutora cujo nome é mencionado ao lado das traduções publicadas sob a série “Eu Leio”, o que sugere a importância do seu perfil como escritora aliado ao seu papel como tradutora de Carroll. As versões observadas não se apresentam como uma unidade textual que poderia ser rotulada a partir de critérios absolutos. Embora seja apresentada como tradução, a versão de Uchoa Leite não é menos direcionada ao público acadêmico quanto é a adaptação de Sevcenko ao público infanto-juvenil. Por outro lado, a adaptação de Sevcenko mantém-se tão “próxima” quanto possível dos poemas e das canções — se comparada à tradução de Machado. Isso, entretanto, não deve nos levar a crer que a tradução de Machado é apenas produto de “manipulação” – seria uma saída muito redutora: a editora e a tradutora fazem uso de um aparato argumentativo que se alia à celebridade da 30 | Tradução em Revista

escritora/tradutora no sentido de caracterizar sua tradução tão “fiel” à obra de Carroll, por meio de soluções “ousadas”. Soluções essas que certamente dividem opiniões quanto ao trabalho da tradutora, que tanto pode receber elogios pela sua inegável criatividade e seu engenho lingüístico, quanto ser alvo de críticas à “adaptação” cultural que sua tradução promove.

O tradutor e o adaptador: os lugares da visibilidade A complexidade das relações entre tradução e adaptação, focalizadas a partir das versões analisadas, guarda uma relação íntima com práticas discursivas, pois nem o adaptador nem o tradutor estão livres da rede institucional que abarca a confluência entre políticas editoriais, da recepção crítica do autor do texto-fonte na cultura de chegada, do papel tradicionalmente reservado aos tradutores e adaptadores, da autoridade de quem traduz ou adapta, e dos conceitos de tradução e de adaptação vigentes — ambos sujeitos a possíveis transformações no espaço de uma determinada aceitabilidade. Essa transformação é sinalizada pelo modo como se constrói o universo imaginário em torno das interpretações e estratégias empreendidas pelos tradutores e a sua legitimação em relação às possibilidades de leitura (e de tradução/adaptação) que a obra original tornaria possível. O trabalho de Ana Maria Machado, por exemplo, é classificado como “tradução e adaptação” na edição comentada por Martin Gardner de Alice’s adventures in Wonderland, traduzido por Maria Luiza Borges e publicado em 2002 pela editora Jorge Zahar – uma nova versão que vem “disputar” com a tradução de Uchoa Leite o lugar de obra de referência junto à comunidade acadêmica. Do ponto de vista do discurso que informa a tradução da edição comentada, apresentada como a “versão definitiva” de Alice’s adventures in Wonderland, não parece ser legítima a versão de Ana Maria Machado como uma possibilidade de tradução. Foi preciso classificá-la como “tradução e adaptação”, o que certamente provoca efeitos diversos do que pretenderia Ana Maria Machado e sua editora, já que se posicionam de forma crítica em relação às adaptações. Por outro lado, a inserção de elementos referenciais da cultura brasileira na tradução de Ana Maria Machado não representa, no espaço discursivo no qual se inscreve, uma transformação desmedida: as estratégias seriam supostamente legítimas, como tradução, até mesmo porque muitos poderiam considerá-las como meios eficazes de “reproduzir” efeitos de sentido característicos à intertextualidade da obra de Carroll. As análises da tradução de Lobato e da adaptação de Sabino levam-nos a refletir sobre as limitações da lógica binária que tradicionalmente sustenta as relações entre tradução e adaptação. Não há uma relação intrínseca entre uma Os lugares discursivos do tradutor e do adaptador... | 31

posição conservadora e uma tradução que se aproxima do que se chama comumente de “versão integral”, como no caso da tradução de Lobato; tampouco há uma relação necessária entre “ousadia” e a realização de transformações “consideráveis” em relação ao texto-fonte, como no caso da adaptação de Sabino. Em ambas as reescrituras, os extremos da dicotomia entrecruzamse, trazendo à tona a constituição discursiva de suas fronteiras. A publicação dos trabalhos de Sevcenko e de Eliana Sabino como “adaptação” parece tornar suas opções menos polêmicas, uma vez que, geralmente, o termo “adaptação” pressupõe a ocorrência de modificações para atender a um determinado público. No entanto, no caso de Sevcenko, há uma dimensão “tradutória” reconhecida em seu trabalho, referido apenas como “tradução”, por exemplo, em Borba (1997) e na apresentação dos dados biográficos de Sevcenko em um artigo seu publicado no livro Pós-modernidade, organizado por Oliveira (1995: 44)8 . O termo “adaptação”, nesse contexto, legitima as opções do profissional tornando possível uma maior vinculação entre a suposta figura autoral do adaptador à escrita da adaptação, criando um espaço desejável para a apresentação dos dados biográficos do adaptador. Há, assim, uma face “tradutória” do trabalho de Sevcenko que, ao que parece, deve permanecer parcialmente silenciada para que a “voz do contador” possa insurgir na sua visibilidade. Tanto Ana Maria Machado quanto Monteiro Lobato, seja em virtude do valor discursivo que seus nomes evocam, seja em razão da leitura particular que imprimem em seus textos, produziram uma escrita que se mostra tão polêmica e ousada quanto as adaptações aqui discutidas. Todas as versões analisadas neste trabalho, porém, trazem à tona a problemática da visibilidade do tradutor e do adaptador. Os adaptadores (Nicolau Sevcenko e Eliana Sabino) e tradutores (Monteiro Lobato e Ana Maria Machado) se fazem visíveis no sentido de que seus trabalhos materializam determinadas leituras, marcadas pela trama de valores, normas e relações de sentido que ora se aproximam, ora se diferenciam quanto aos pressupostos que subjazem às práticas dos tradutores e dos adaptadores estudados. Essa visibilidade, porém, como se pôde observar, não se efetiva da mesma forma: há particularidades que conferem valores distintos a cada uma das versões estudadas, e os lugares que ocupam na trama das relações sociais e discursivas da leitura não podem ser reduzidos segundo uma regra econômica e universal. Em razão disso, é necessário afirmar que o estudo das relações entre tradução e adaptação com base nas versões aqui analisadas não deve ser “aplicado” a qualquer tradução ou adaptação literária. Em última análise, cada tradução e adaptação literárias apresentam características próprias e suscitam relações que, apenas superficialmente, poderiam ser, talvez, generalizadas. 32 | Tradução em Revista

Estudar os meandros que recortam o contato entre a tradução e a adaptação, revelando as superfícies irregulares desse contato, é, talvez, uma possibilidade de se refletir sobre os lugares que o tradutor e o adaptador podem ocupar, sem recorrer ao relativismo conceitual que defenderia a indiferença desses lugares e, tampouco, ao positivismo teórico que reivindicaria a rigidez (ilusória) de limites conceituais universais. ___________________________________________ 1

Este artigo é uma versão parcialmente modificada do trabalho apresentado no III Congresso IberoAmericano de Tradução e Interpretação na cidade de São Paulo, em maio de 2004, na mesa-redonda “Os limites da tradução”, da qual também participaram Cristina Rodrigues, Maria Paula Frota e Carolina A. de Carvalho. 2 A tradução desta citação foi realizada por mim. 3 No trecho de uma resenha publicada no jornal Estado de São Paulo, “Um clássico para jovens leitores” (21/9/2002), testemunha-se o longo período que consumiu a “tradução e adaptação” de Don Quixote de Cervantes pelo renomado poeta Ferreira Gullar: “A animação tomou conta de Gullar, que durante seis meses se debruçou sobre o texto original de Miguel de Cervantes para fazer a sua adaptação: ‘O livro guarda as características de uma época distante, com um vocabulário próprio, cheio de descrições, com muitas notas, que o tornam complicado para o jovem leitor’.” 4 Faço uso do termo “versão” como um conceito genérico que engloba tanto livros publicados como traduções quanto aqueles publicados como adaptações. 5 Nossa interpretação é amparada no conceito de edição empregado pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (NBR 6023 – Ago/2002). Segundo a ABNT, “edição” corresponde a “todos os exemplares produzidos a partir de um original ou matriz. Pertencem à mesma edição de uma obra todas as suas impressões, reimpressões, tiragens, etc., produzidas diretamente ou por outros métodos, sem modificações, independentemente do período decorrido desde a primeira publicação” (p.2, grifo nosso). Como a tradução de Kim publicada em 2002 apresenta modificações em relação às demais traduções analisadas (uma sem data e outra de 1956), seria justificável, de acordo com a ABNT, sua classificação como uma nova edição (4a edição, no caso). No entanto, em entrevista por e-mail ([email protected]), Tânia Andrade, Assistente de Curadoria da Companhia Editora Nacional, informou-me que as revisões e atualizações presentes na publicação de 2002 atendem especialmente a um projeto do Fundo do Desenvolvimento da Educação. Segundo Andrade, o livro não é uma “reedição”, porque ainda corresponderia à (3a edição) de 1945, apenas revisada e atualizada com a data de 2002. Pode-se concluir que a editora não considera tais revisões e atualizações como modificações que justificariam a classificação do livro como uma quarta edição, o que parece contrariar o conceito de edição empregado pela ABNT. Com o objetivo de simplificar a eventual consulta bibliográfica pelo leitor deste artigo, considerarei apenas, nas referências bibliográficas, as informações editorais contidas nos livros efetivamente publicados, independentemente das normas da ABNT. 6 Apesar de ter impresso na capa o termo “adaptação”, o trabalho de Sevcenko apresenta, na folha de rosto, a expressão “tradução e adaptação”, o que vem sugerir a complexa distribuição das fronteiras que delimitariam os dois conceitos em seu trabalho. 7 Eis o poema original “Canção do Exílio”, do poeta brasileiro Gonçalves Dias, no qual se baseia a “adaptação”/“tradução” de Ana Maria Machado: “Minha terra tem palmeiras/Onde canta o sabiá./ As aves, que aqui gorjeiam/Não gorjeiam como lá.” (Gonçalves Dias, Obras Poéticas, I, p.21). 8 Esses exemplos sugerem a existência de discursos, concepções de tradução e de adaptação, de leitura e mesmo de escrita que “extrapolam” o espaço de uma capa ou mesmo de um livro.

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MACHADO, Ana Maria (1997) Um passeio inesquecível. L. Carroll, Alice no País das Maravilhas. Trad. de Ana Maria Machado, 7-9. São Paulo: Ática. MILTON, John (2002) O Clube do Livro e a tradução. Bauru: EDUSC OLIVEIRA, Roberto C. de Oliveira et al. (1995) (orgs.) Pós-modernidade. Campinas: Editora da Unicamp. TOURY, Gideon (1995) Descriptive translation studies and beyond. Amsterdam/ Philadelphia: John Benjamins. UCHOA LEITE, Sebastião (1980) “O que a tartaruga disse a Lewis Carroll.” Em Lewis Carroll, Aventuras de Alice no País das Maravilhas e Através do espelho e o que Alice encontrou lá. Trad. de Sebastião Uchoa Leite, 6-36. 3a ed. São Paulo: Summus Editorial.

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A (NÃO) RELAÇÃO ENTRE TRADUTORES E COPIDESQUES NO PROCESSO DE EDIÇÃO DE OBRA ESTRANGEIRA1 Flávia Carneiro Anderson

I. Introdução O revisor tem de ser neutro pela natureza de seu trabalho. Se ele não conseguir manter neutralidade desde o início, não pode ser revisor. Eu, como tradutora, cobro respeito pela minha escolha de tradução. (Regina Motta, tradutora)

A complexa relação autor-tradutor vem sendo exaustivamente discutida pelos teóricos da tradução. Questionam-se, por um lado, as noções de autoria e de originalidade e, por outro, as de fidelidade e neutralidade tradutórias; discutem-se as questões da (in)visibilidade do tradutor e dos direitos autorais, além de inúmeros outros aspectos. Como resultado, pode-se dizer que, no que tange às questões mais básicas, a relação autor-tradutor é algo resolvido entre os estudiosos que acreditam que a tradução envolve transformação. Sob essa ótica, o autor não é visto como dono absoluto do texto e o tradutor, por sua vez, não é tido como um mero copista, já que a tradução é concebida como uma reescrita. Entretanto, outras relações fundamentais no processo de edição do livro vêm sendo praticamente ignoradas pelos teóricos. Essas relações envolvem não só autores e tradutores, como também editores, copidesques, revisores técnicos, revisores e preparadores, todos com possibilidade de exercer grande influência no trabalho do tradutor. Como se sabe, o processo de edição de uma obra estrangeira traduzida tem início quando os editores escolhem os livros a serem publicados através do contato com agências e feiras literárias; em certas ocasiões, muito raras, aceitam a sugestão de leitores, autores sem agentes ou tradutores, desde que ela siga a linha adotada pela editora. Uma vez adquiridos os direitos autorais da obra, o editor ou o coordenador responsável por ela escolherá o tradutor com base em uma série de fatores: sua familiaridade com o assunto, qualificação, experiência, disponibilidade, remuneração etc. Nessa fase inicial de produção o editor pode exigir que o tradutor adapte a obra a um determinado propósito de sua publicação na cultura-alvo. Na etapa seguinte, o copidesque, profissioA (não) relação entre tradutores e copidesques... | 37

nal que costuma ter bastante autonomia para alterar e adequar o que julgar necessário, faz um cotejo do texto traduzido com o texto na língua-fonte. Após esse trabalho, são feitas em geral mais duas revisões, as quais se concentram em erros de ortografia, sinais de pontuação e conferência de diagramação — nesses casos, sem o cotejo com o texto-fonte. Os revisores costumam ter menos autonomia do que os copidesques para intervir no texto (ver Linz, 2004: 156). Dependendo da obra, pode ser realizada também uma revisão técnica. O processo editorial envolve, portanto, toda uma seqüência de trabalhos no texto em que cada um vai retrabalhando o texto anterior. Mas ainda falta ao tradutor a consciência de que sua tradução só é sua até o dia em que a entregou à editora. A edição de qualquer obra é um trabalho de equipe que se inicia antes da compra dos direitos de tradução e se prolonga por vários meses. O texto final representa o trabalho dos vários profissionais, dos mais diversos níveis de cultura e entendimento, que irão cotejar, compor e revisar a tradução sem que o seu autor volte a ser consultado. Para o tradutor profissional de ficção tal padrão só muda quando se trata de uma obra de ficção de grande projeção internacional, como um Harry Potter, por exemplo. (Wyler, 2003:196)

Como veremos no decorrer deste trabalho, os tradutores aos quais é dado o direito de examinar as revisões feitas em seu texto são verdadeiras exceções. Sejam consideradas positivas ou negativas, as interferências ocorridas no processo de edição do livro estrangeiro — sem o aval não só dos tradutores, como dos demais atores envolvidos — são práticas comuns no mundo editorial brasileiro, e como tal precisam ser levadas em conta. No que diz respeito ao tradutor, elas nem sempre são consideradas adequadas: “[Em] quase todas as revisões que meus trabalhos sofreram, houve a correção de uns três erros, e inclusão de mais doze, alguns realmente absurdos, que eu nunca teria feito” (Borten, tradutor).2 Da forma como o processo de edição de obra estrangeira traduzida é conduzido no Brasil, pode-se afirmar que a maior parte dos tradutores não sabe o quanto foi modificado o seu texto até vê-lo publicado. O presente trabalho, a ser aprofundado no futuro, visa justamente a colocar em primeiro plano uma das relações do processo editorial: a que ocorre entre tradutor e copidesque. Nossa proposta, pelo menos a princípio, é examinála a partir das mesmas bases adotadas pelos teóricos da tradução para avaliar a relação autor-tradutor. Escolhemos a figura do copidesque porque, além do editor, é o profissional envolvido no processo editorial que mais parece ter chances de interferir nas escolhas do tradutor, pois julgará a tradução através 38 | Tradução em Revista

de seu confronto com o texto-fonte: “Havia uma tradução que parecia lá aos editores perfeita, eu fui checar palavra por palavra com o original, cortei muita coisa, fiz uma revisão, um copy desk violento nessas traduções” (Barroso, 1995: 36). Dada a escassez de trabalhos sobre essa relação e a variação terminológica das profissões envolvidas no processo editorial, para os fins deste estudo vamos adotar as seguintes definições: a. Copidesque – Aquele que se encarrega de fazer o cotejo da tradução com o original a fim de verificar eventuais erros de interpretação, redação, saltos etc. Ele busca também manter a consistência e o estilo, além de adequar o texto a glossários e linhas editoriais. (Cabe acrescentar que o termo copidesque também pode designar o processo de revisão realizado por esse profissional, mas nesse caso optamos por utilizar a forma menos comum copidescagem.) b. Revisor – Aquele que faz a avaliação somente da tradução, sem cotejo, sobretudo para verificar se o tradutor conseguiu adequá-la satisfatoriamente à língua-meta e para corrigir eventuais deslizes gramaticais. c. Revisor técnico – Aquele que, na condição de especialista em áreas específicas do saber, avalia a pertinência e adequação dos termos e conceitos técnicos. d. Preparador – Aquele que lida apenas com os elementos gráficos do texto. Em algumas editoras, no entanto, esse termo é utilizado como sinônimo de copidesque. Essa confusão de nomenclatura fica muito clara nos depoimentos de tradutores e copidesques usados como base para o presente trabalho. Por esse motivo, à exceção das epígrafes, optamos por uniformizá-los adotando apenas os termos “copidesque” e “copidescagem”, que aparecerão entre colchetes nas citações.

II. Metodologia Uma vez escolhidos os profissionais que iríamos entrevistar, elaboramos dois questionários, um a ser enviado a tradutores e o outro, a copidesques, com o objetivo de averiguar o que cada um deles pensa não só a respeito do processo no qual eles próprios estão inseridos, como também da atividade do outro. Os questionários enviados são os seguintes: Tradutores: 1. Há quanto tempo você exerce a profissão de tradutor? 2. Em sua opinião, qual seria o papel ideal do copidesque/revisor? O que de fato ocorre está muito distante desse ideal? A (não) relação entre tradutores e copidesques... | 39

3. Você acredita que o tradutor cobra do copidesque/revisor uma neutralidade impossível? A seu ver há uma luta pelo poder entre o tradutor e o copidesque/revisor? 4. Uma vez terminada a copidescagem/revisão de um trabalho seu, a editora lhe permite opinar a respeito da mesma? Quem escolhe a versão final, você ou o copidesque/revisor? Há quanto tempo isso ocorre? 5. Em sua opinião, a quem caberia a palavra final no tocante a textos traduzidos, ao tradutor ou ao copidesque/revisor? 6. Já teve algum desentendimento com editores no que tange à copidescagem/ revisão de suas traduções? Em caso afirmativo, o que aconteceu? 7. Por favor, assinale a situação com a qual se identifica: ( ) Nunca tive problemas com revisores ( ) Já tive problemas com revisores, mas atualmente não tenho mais ( ) Tive problemas com revisores em todas as traduções que realizei até o momento ( ) Tive problemas com revisores em 75% das traduções que realizei até o momento ( ) Tive problemas com revisores em 50% das traduções que realizei até o momento ( ) Tive problemas com revisores em 25% das traduções que realizei até o momento ( ) Tive problemas com revisores em 5% das traduções que realizei até o momento Copidesques: 1. Há quanto tempo você exerce a profissão de copidesque/revisor? 2. Em sua opinião, qual seria o papel ideal do copidesque/revisor? O que de fato ocorre está muito distante desse ideal? 3. Você acredita que o tradutor cobra do copidesque/revisor uma neutralidade impossível? A seu ver há uma luta pelo poder entre o copidesque/revisor e o tradutor? 4. O seu trabalho de copidescagem/revisão é o último passo antes da publicação do livro? Caso não seja, costuma ter a oportunidade de opinar a respeito de possíveis modificações feitas em sua revisão? Considera que essas modificações podem ser realizadas sem o seu consentimento? 5. Na editora para a qual você trabalha o texto traduzido costuma ser reenviado ao tradutor após passar pela copidescagem/revisão/revisão técnica? 6. O tradutor tem o direito de opinar a respeito da copidescagem/revisão? A quem você acha que deve caber a palavra final no tocante a textos traduzidos, ao tradutor ou ao copidesque/revisor? 7. Já teve algum desentendimento com editores em função de um trabalho de copidescagem/revisão? Em caso afirmativo, o que aconteceu? 40 | Tradução em Revista

8. Por favor, assinale a situação com a qual se identifica. Se já teve problemas com tradutores, poderia dar exemplos? ( ) Nunca tive problemas com tradutores ( ) Já tive problemas com tradutores, mas atualmente não tenho mais ( ) Tive problemas com tradutores em todas as copidescagens que realizei até o momento ( ) Tive problemas com tradutores em 75% das copidescagens que realizei até o momento ( ) Tive problemas com tradutores em 50% das copidescagens que realizei até o momento ( ) Tive problemas com tradutores em 25% das copidescagens que realizei até o momento ( ) Tive problemas com tradutores em 5% das copidescagens que realizei até o momento Essas perguntas foram enviadas por e-mail a 19 tradutores, dos quais 16 responderam, e a 17 copidesques, dos quais 13 responderam. Foram elaboradas tabelas nas quais agrupamos as diferentes respostas a cada pergunta. Ao final deste trabalho [ver Anexo] encontra-se a relação de todos os participantes da pesquisa. Julgamos importante ressaltar que 80% dos tradutores entrevistados trabalham há mais de dez anos nessa profissão, sendo que 43% traduzem há mais de vinte anos. Sessenta por cento dos copidesques entrevistados exercem essa atividade há mais de dez anos, sendo que 23% fazem copidescagem há mais de vinte anos. Fica claro que tanto os tradutores como os copidesques entrevistados têm ampla experiência no mercado. Julgamos ainda ser importante situar o universo desses entrevistados em meio aos demais universos com os quais lidaremos aqui. Em primeiro lugar, temos o universo dos estudiosos da tradução, e aqui nos referimos em especial aos que se identificam com o pensamento pós-moderno e que não vêem a tradução como uma simples reprodução de um texto estrangeiro na línguameta. Em segundo lugar, temos o universo do senso comum — aí incluídos o público em geral e a maior parte dos editores e tradutores sem formação teórica —, que crê na possibilidade da tradução como um texto absolutamente fiel ao original. Por fim, temos o universo dos tradutores literários que entrevistamos. Muito embora nem todos se situem no universo dos estudiosos da tradução, pode-se dizer que a maioria deles tem algum contato com o pensamento pósmoderno, o que os distancia das visões mais simplórias do senso comum. Cabe também esclarecer que ao afirmarmos que vamos nos concentrar na relação tradutor-copidesque não entendemos que a palavra relação implica A (não) relação entre tradutores e copidesques... | 41

um encontro físico entre esses dois profissionais, tal como pareceu a alguns dos entrevistados. Temos consciência de que as editoras que promovem encontros entre tradutores e copidesques são exceções; entretanto, isso não significa que o vínculo imposto pelo processo de edição do livro não exista. Ao contrário do que tipicamente ocorre na relação tradutor-autor, tradutores e copidesques podem acompanhar as modificações feitas no texto traduzido, já que conhecem o seu idioma. Muito embora se possam citar autores que acompanham(ram) as traduções de suas obras — como é o caso do escritor alemão Günter Grass, para quem o encontro regular com tradutores é não só uma garantia de qualidade para veiculação de suas obras, como também uma forma de relê-las de forma intensa (ver Mello, 2004), e do poliglota Guimarães Rosa, que se correspondeu com vários tradutores, em especial com Edoardo Bizzarri, que verteu para o italiano Corpo de baile — a grande maioria não chega a esse ponto, em função da própria barreira criada pelos idiomas estrangeiros. Como essa barreira não ocorre entre tradutores e copidesques, não é raro encontrar publicados depoimentos de tradutores revoltados com alterações que consideraram indevidas. Parece-nos então pertinente questionar se o tradutor, apesar de inevitavelmente operar uma intervenção no texto que traduz, não exige do copidesque, contraditoriamente, uma neutralidade impossível. É o que procuraremos avaliar neste trabalho.

III. Fundamentação teórica III.1. A (in)existência da verdade absoluta Se, como queria Protágoras, as coisas não têm “medida” ou essência própria, se são aquilo que nos parecem ser, variando de acordo com as circunstâncias, então o que será isso a que chamamos a verdade? Sob esse ponto de vista, a verdade só pode resultar “de nossas opiniões sobre as coisas e do consenso que se forma em torno disso”, sendo, portanto, “múltipla, relativa e mutável”. (Helena Martins, “Três caminhos na filosofia da linguagem”)

De acordo com Martins (2004), muitas das formas através das quais pensamos a linguagem correspondem à herança que nos foi deixada pelos gregos. O pensar filosófico nasceu como alternativa ao discurso mítico para a explicação das coisas. Desde muito cedo houve, nessa nova busca pela “verdade”, uma polarização entre os sofistas, por um lado, e os filósofos ditos socráticos, Sócrates, Platão e Aristóteles, por outro. Como os sofistas consideram que as coisas não possuem essência própria, a verdade é encarada como algo relativo; por outro lado, como os socráticos acreditam que as coisas têm uma essência permanente, então há nelas uma verdade única. 42 | Tradução em Revista

Segundo Platão, a variação e a mutabilidade das coisas, tão enfatizadas pelos sofistas, seriam características do mundo das aparências; sob a superfície mutável e inconstante do real haveria um real de coisas invisíveis, perfeitas e eternas. E a linguagem, para escapar à variabilidade do real assim como é percebido pelos sentidos, só pode representar as formas essenciais (ver Martins, op. cit.). Portanto, de acordo com essa perspectiva universalista, as traduções podem ser absolutamente fiéis aos originais porque as línguas têm, apesar de sua aparente variabilidade, a mesma estrutura conceitual, um recorte semântico universal. Assim sendo, cabe ao tradutor buscar na língua-meta os correspondentes exatos para as palavras da língua-fonte. Se a sua tradução não é considerada boa, ou fiel, é porque ele não soube encontrar esses equivalentes perfeitos. O teórico Georges Mounin critica essa postura, ressaltando que, de acordo com ela, as dificuldades da tradução dependiam de fatos acidentais: ou o tradutor deixava de captar toda a substância do conteúdo de uma expressão da língua-fonte, transmitindo-a, conseqüentemente, de maneira incompleta; ou o tradutor conhecia de maneira insuficiente os recursos das formas do conteúdo e das formas de expressão na língua-alvo e as utilizava inexatamente. Em ambos os casos, a falha da tradução constituía uma falha do tradutor. (Mounin, [1963]1975: 49)

Os relativistas, a exemplo dos sofistas, rompem com essa visão, afirmando que os povos recortam e organizam a realidade de formas diferentes e que as línguas são, na verdade, sistemas de organização do mundo. Os significados já não são vistos como “coisas”, reais ou mentais, pois correspondem somente aos usos culturalmente determinados que se fazem das palavras. A linguagem é entendida, sob esse ponto de vista, como uma práxis circunstanciada pela cultura, pela história e pelas idiossincrasias de cada ocasião (ver Martins, op. cit., p. 470). Como conseqüência desse modo de ver as línguas e os significados, a tradução passa a ser considerada impossível, uma vez que nas diferentes línguas o recorte da realidade não é igual: “Não podemos traduzir porque nunca falamos exatamente da mesma coisa, mesmo quando falamos de um mesmo objeto, em duas línguas diferentes” (Mounin, op. cit., p. 58). O tradutor, por sua vez, passa a ser visto como um traidor porque nunca conseguirá reproduzir exatamente o que o autor disse; daí o famoso adágio italiano: traduttore traditore. “Esta tese [o relativismo lingüístico] implica literalmente [...] a negação de qualquer possibilidade de tradução” (ibid, p. 55). Veja-se que por trás dessa crença na intraduzibilidade decorrente da tese relativista subjaz aquele mesmo A (não) relação entre tradutores e copidesques... | 43

ideal de tradução como reprodução absolutamente fiel do original (ver Frota, 2000: 29-30). Os estudiosos da tradução identificados com o pós-estruturalismo propõem então uma ruptura tanto com a concepção dos textos como receptáculos de conteúdos invariáveis em todas as línguas — caso da postura universalista — quanto com a de conteúdos que, embora variáveis entre as línguas, seriam homogêneos no interior de cada uma delas — caso da postura relativista. Sob essa nova perspectiva o tradutor faz uma leitura, interpreta o texto e produz significados, sempre sob a influência de seu contexto social e de traços subjetivos. A fidelidade do tradutor não está mais relacionada ao texto “original”, ao “Autor”, mas à sua interpretação do mesmo, que por sua vez dependerá daquilo que ele é, sente e pensa (ver Arrojo, [1986]2002: 44). Rompe-se, dessa forma, com as idéias da tradução seja como cópia ou como traição, pois, se não cabe ao tradutor reproduzir o texto de partida — o que de fato não é possível —, tampouco se deve, a partir disso, considerar inviabilizada a tarefa tradutória. Trata-se de reconcebê-la como necessariamente uma transformação. Como se pode situar a relação tradutor-copidesque à luz dessas teorias? Na já tão complexa relação autor-tradutor, o que ocorre quando entra em cena esse terceiro indivíduo? Ora, se as diferentes posturas que inspiram os tradutores irão influir nos modos como realizam suas práticas, estejam eles conscientes ou não dessa influência, o mesmo acontece com os copidesques. Obviamente, um copidesque que se alinha com a visão universalista de que a “tradução deve apresentar uma transcrição completa das idéias do trabalho original” (Tytler apud Frota, 2000: 28) será muito menos condescendente com as escolhas do tradutor e enxergará muito mais erros, ou infidelidades. Já que não crê na relatividade interpretativa, qualquer opção diferente da sua será tida como incorreta. Para um copidesque que se afina com a postura relativista, diferentemente do que ocorre com aquele de tendência universalista, a cada língua corresponde uma visão de mundo específica. No entanto, o problema nesse caso se repete, porque para esse copidesque as línguas e culturas são enxergadas cada qual como um bloco homogêneo, ainda que com recortes de mundo diferentes entre si. Como no interior de cada língua um determinado significante vem atrelado a um determinado significado, esse copidesque considerará que para cada palavra haverá sempre a mesma interpretação. É nesse sentido que o copidesque relativista, tal como o universalista, verá como equivocada uma interpretação diferente da sua (sobre essa reflexão ver Frota, 2000: 35-36). Já um copidesque que se identifica com uma visão pós-estruturalista, por sua vez, na medida em que problematiza a leitura do original, consciente 44 | Tradução em Revista

de que ao traduzir o tradutor transforma ou reconstrói o texto-fonte e de que as interpretações podem variar de um leitor para outro, tomará suas próprias interpretações como apenas alternativas possíveis às interpretações do tradutor e não verá motivo para alterar essas últimas. Ele só recorrerá a isso quando julgar que determinada interpretação do tradutor é de fato errada, ou seja, está fora de uma eventual gama de leituras diferentes, porém aceitáveis e justificáveis. No entanto, dadas as escolhas subjetivas características da tradução, fica difícil, mesmo nesse caso, haver um consenso em relação às alternativas mais adequadas: É praticamente impossível para o tradutor despir-se de toda a sua experiência passada e conhecimento acumulado ao fazer uma tradução. Como conseqüência, ao executarmos um trabalho de tradução, aplicamos a esse trabalho o nosso próprio eu, a nossa ideologia, as nossas crenças e convicções. Assim, o que pode ser certo na minha visão pode ser totalmente incongruente na opinião de um outro colega. (França, 2003: 108)

Assim sendo, como julgar os momentos em que a intervenção do copidesque no texto traduzido é excessiva? A quem cabe esse julgamento? Isso nos remete a outros aspectos relevantes na relação tradutor-copidesque, que dizem respeito não só à forma como concebem o processo de tradução e revisão, como também a sua visão de “erro” e “acerto”. É o que veremos a seguir. III.2. As teorias sobre leitura Na segunda tradução revisada pelo único editor/copidesque com quem tive contato[...] constatei que ele trocara os nomes de lugares geográficos [...] e as datas históricas [...], e escolhido termos que escapavam totalmente ao sentido do que estava escrito no original e à minha tradução, que estava correta. (Renée Levié, tradutora)

Tradutores e copidesques são, antes de mais nada, leitores, e como tal assumirão diferentes posturas, conscientes ou não, diante de seus textos. Um modelo bastante predominante entre os anos 1930 e 1960, mas ainda muito popular hoje em dia — se não entre os teóricos, no senso comum — é o que encara a leitura como uma decodificação, um resgate das intenções e dos significados do autor. Sob essa ótica, o papel do leitor é tido como passivo, pois caberia a ele apenas extrair os significados que já estão dados no texto. É com A (não) relação entre tradutores e copidesques... | 45

base nesse modelo que se tecem comentários do tipo: “Aprecie-se ainda esta traição deslavada ao pensamento do autor” ou “Trata-se de uma tradução absolutamente infiel” (Moura, [1944]2003: 194, 208). Ou seja, de acordo com essa visão de original e autoria, a interferência do tradutor, por mais bem intencionada e apropriada que seja, será sempre o ato de um intruso mal visto, condenado à missão impossível de repetir os significados de outro sem tocá-los e sem marcá-los com seu próprio desejo autoral. Assim, defende-se a produção dos “originais” como atividade essencialmente criativa e, uma vez criado, qualquer texto deverá ser (e significar) apenas aquilo que seu Autor, seu amo e senhor, desejar. (Arrojo, 2003: 3)

Já em torno dos anos 1960/70 predominaram os modelos psicolingüísticos, que passaram a considerar a leitura como uma atividade puramente cognitiva. O papel do leitor recebe destaque, uma vez que esses modelos consideram que é na mente do leitor que são construídos os significados. No entanto, apesar de esses modelos ressaltarem as estratégias de leitura do leitor, pouca importância dão ao contexto no qual ele se insere. Isso só veio a acontecer no final dos anos 1970, com o surgimento dos modelos interativos que começaram a ver a leitura como uma atividade ao mesmo tempo cognitiva e social. Um dos maiores expoentes dessa linha teórica é Stanley Fish, para quem as interpretações do leitor dependem das estratégias e convenções de leitura da comunidade interpretativa à qual pertence. Dessa forma, “os significados não são propriedades nem de textos fixos e estáveis nem de leitores livres e independentes, mas de comunidades interpretativas” (Fish, 1993: 156). Nesse mesmo período, Roland Barthes declara a morte do Autor, que deixa de ser considerado fonte criativa única de sua obra, uma vez que sofre influência do seu contexto e dos inúmeros textos que leu. Considerando-se que o autor nutre-se de outros autores no processo de criação, estamos diante da inexistência do autor enquanto criador de algo original e da impossibilidade da originalidade. A tradução é colocada, a meu ver, em posição semelhante à da autoria já que o autor, ao produzir uma obra, descreverá sua tradução de outras tantas obras que já leu. (Antunes, 2004: 105)

Mas isso traz a lume paradoxos: se o autor está morto enquanto criador, por que o tradutor reivindicaria o prestígio da autoria? Segundo Frota, Barthes 46 | Tradução em Revista

propôs uma redefinição de autoria que ajudou a desmistificar a excessiva sacralização dessa escrita; mas exterminar a autoria por inteiro e reivindicar para o tradutor, contraditoriamente, os atributos de um autor é um contra-senso. Proponho questionarmos se não estará havendo, na esfera das teorias de tradução desenvolvidas a partir dos anos oitenta, um esgarçamento dos limites conceituais da tradução, a qual passou a ser identificada por muitos como uma reescrita manipuladora. Com esse relaxamento dos seus limites, a tradução parece estar sendo conceitualmente assimilada a outras formas de escrita, como a adaptação ou a própria escrita autoral, e assim perdendo as suas especificidades, incorporando formas de produção textual que fogem ao seu campo próprio. (Frota, 2004c: 1)

Não restam dúvidas de que essas novas formas de encarar o ato de leitura contribuíram para destacar o papel ativo do tradutor. De acordo com Fish, para que uma interpretação seja considerada adequada, ela precisa ser aceita pela comunidade interpretativa em que é formulada: se uma tradução é aceita por leitores de determinada comunidade, isso significa que ela está correta. Desconstroem-se as idéias de que o desejo e os significados do autor precisam ser protegidos a qualquer custo, e de que o tradutor deve ter uma escrita neutra. “É inevitável a interferência de elementos tais como crenças e valores no processo de compreensão, já que as convenções discursivas utilizadas refletem esses valores e crenças, isto é, são determinadas socialmente” (De Paula, Ilg, 2004: 47). Isso nos levaria a concluir que, da mesma forma, o papel do copidesque tampouco pode ser passivo, uma vez que sua leitura sofrerá influência não só do contexto no qual ele se insere, como também de toda uma dimensão de subjetividade que vai além das intervenções de natureza estritamente sócioculturais (ver Frota, 2000: 18). Na próxima seção, falaremos brevemente sobre essa dimensão. Não há como evitar, portanto, que o copidesque eventualmente faça uma leitura diferente da do tradutor e que realize alterações no texto vertido com base nessa interpretação divergente. A rigor isso inviabiliza a exigência por parte de tradutores de copidescagens neutras: “O [copidesque] demonstrou e documentou a própria insensibilidade literária e bazófia nas intervenções, deturpando o pensamento do autor” (Barni, tradutora). Se há hoje entre os tradutores um movimento crescente que rejeita a idéia da sua auto-anulação, como podem eles exigir que os copidesques se anulem? É óbvio que o copidesque, influenciado por seus próprios valores, contexto, leituras etc. interpretará o texto e fará as alterações que julgar necessárias. Muitas vezes procurará também, tal como o tradutor, adequá-lo à linha A (não) relação entre tradutores e copidesques... | 47

da editora. Quando se trata de erros incontestáveis, conseqüência de saltos, ortografia incorreta etc., não há o que discutir. Ocorre que em tradução, dadas as infinitas opções por uma forma em detrimento de outra, muitas vezes não há um critério objetivo que realmente garanta que uma é certa e a outra é errada (ver Britto, 2003: 97). III.3. O “certo” e o “errado” na tradução Quem poderia supor que Deus se traduz por Diabo? Pois a praga francesa nom de Dieu [...] verte-se otimamente para o nosso idioma, menos eufemístico, por “com os diabos”. (Paulo Rónai, Escola de Tradutores)

Não resta dúvida de que a revisão de textos traduzidos por uma terceira pessoa é imprescindível. Esse processo é essencial para a eliminação de alterações, omissões e acréscimos indevidamente cometidos pelos tradutores. Vários tradutores que participaram de nossa pesquisa mostraram-se inclusive gratos por correções que os salvaram de situações desagradáveis. Os erros de tradução não são incomuns e, segundo Freud, podem ser inclusive motivados por intervenção de desejos inconscientes. Esse tipo de erro, denominado “lapso de língua”, não é causado por desatenção, mas pela imposição de um pensamento ou desejo inconsciente (ver Frota, 2004b: 6). O seguinte exemplo, dado por Freud, deixa claro o que ocorre quando se dá esse lapso: ao passar uma receita, um médico escreveu Ethyl (“álcool etílico”) em lugar de Ethel, nome da paciente em questão, a qual “costumava beber mais do que lhe convinha” (Apud Frota, 2004b: 8). Seja qual for o motivo da ocorrência de erros no texto traduzido, fica a critério do copidesque analisá-los e corrigi-los. Parece-nos que as retificações de copidesques questionadas por tradutores são justamente aquelas que não envolvem o que propriamente se deve considerar um erro. O teórico Anthony Pym faz a distinção entre o erro binário, que ele chama de mistake, e o erro não-binário, que ele denomina de error. O erro binário envolve uma escolha clara entre uma possibilidade correta e outra errada; não há espaço para nuanças ou gradações. O erro não-binário é justamente o oposto: não há uma separação clara entre o certo e o errado. O exemplo de Pym é claro: traduzir five million por “cinco mil” é erro binário; já the bush pode ser traduzido como “o monte” e inúmeras alternativas também (Pym apud Frota, 2004b: 2). Frota chama a atenção para o fato de que Pym, ao entender todas as nuanças fora do pólo binário como errors, acaba desconsiderando as variações subjetivas nos 48 | Tradução em Revista

julgamentos relativos a tal escolha. Ela propõe que, além das noções dicotômicas de certo e errado, atribuíveis àquelas escolhas que na avaliação de um grupo não dão margem a questionamento ou discussão, se passe a trabalhar também com uma terceira noção, intermediária e não-binária, onde se situariam as diferentes preferências subjetivas. No processo tradutório, o tradutor está constantemente escolhendo palavras, frases e efeitos em detrimento de outros. É em função dessas preferências subjetivas que nunca se pode afirmar, excetuando situações onde ocorram erros tidos consensualmente em determinada comunidade como binários, que determinada escolha é a única correta. O processo de copidescagem é um momento delicado justamente porque pode ser realizado com base apenas em uma lógica dicotômica do certo e errado; se isso ocorre, o copidesque pode considerar “erradas” as opções do tradutor simplesmente por diferirem das suas. Por esse motivo, um copidesque que se alinhe com a postura universalista pode considerar incorreta a tradução de “He [the father] kissed his daughter on the mouth” por “Ele deu um forte abraço na filha” (ver Santana, 2002). Já um copidesque que se afine com a visão pós-estruturalista da linguagem pode considerar que o tradutor procurou aproximar a tradução do contexto da línguameta, uma vez que no Brasil os pais não costumam beijar as filhas na boca. É justamente quando atua no âmbito dessas preferências subjetivas, e não no âmbito dos erros binários, que o processo de copidescagem parece suscitar maior controvérsia. São inúmeros os exemplos de intervenções consideradas inadequadas pelos tradutores entrevistados neste trabalho: a) “O [copidesque] não resiste e muda trechos e termos, achando que ‘fica melhor assim’” (Quental, tradutora). b) O [copidesque] havia feito dezenas de substituições tolas (a troca do seis pelo meia-dúzia), acrescentado erros que não existiam” (Grillo, tradutor). c) “Já tive problemas, quando o [copidesque] quis mostrar trabalho e mudou coisas desnecessárias. Por exemplo: mudou ‘via’ por ‘por meio de’ num texto com espaço limitado” (Motta, tradutora). d) “Nem todas as minhas traduções são revistas, pelo menos do meu conhecimento. As que eu recebo o retorno do [copidesque], o normal é ter três erros corrigidos, doze erros acrescentados, e uma série de alterações inócuas, questão de estilo” (Borten, tradutor). Há inclusive depoimentos bem-humorados sobre a interferência do copidesque: A (não) relação entre tradutores e copidesques... | 49

Tive um desentendimento certa vez com uma [copidesque] que cismava em corrigir umas bobagens nas traduções que eu fazia em uma editora. Daí um dia fui olhar a revista médica recém-chegada da impressão e estava lá, logo no começo do artigo, o tal “Via de regra”. Gente, eu odeio “Via de regra”. [...] Nunca, nunquinha, nem sob tortura eu começo um parágrafo com “Via de regra”. Daí a moça ficou chateada quando eu pedi e-d-u-c-a-d-a-m-e-n-t-e que ela não fizesse mais essa alteração nos meus textos. Pronto! Quase todos os meses ela cismava de tacar o tal “VDR” nos meus textos. Havia um certo prazer naquilo, eu podia sentir de longe. [...] Tudo bem: passei a trocar o nome da revisora. Chamei-a de Varélia (aka Valéria) durante muito tempo. Sei lá, gostei...Varélia era muito mais legal. (Nascimento, tradutora)

Como à maioria dos tradutores entrevistados não é dada a oportunidade de opinar sobre as revisões feitas em suas traduções, eles se sentem revoltados ou frustrados com as modificações que consideram inadequadas ou desnecessárias: daí as constantes queixas, encontradas não só nos depoimentos dos tradutores entrevistados para este trabalho, como também em publicações de naturezas diversas (ver, por exemplo, Benedetti & Sobral, 2003 e site tradport). Vários tradutores chegam ao ponto de evitar ler suas obras publicadas ou de usar pseudônimos para evitar aborrecimentos.

IV. O papel ideal do copidesque Já vi horrores incríveis serem praticados pela revisão, sem nenhum respeito pelo trabalho realizado pelo colega. (Erik Borten, tradutor) Nunca tive problemas com nenhum tradutor; porém, muitas traduções malfeitas já me deram bastante trabalho, talvez 50% delas, no mínimo. (Teresa da Rocha, copidesque)

Em linhas gerais, de acordo com os tradutores entrevistados, o copidesque deveria “corrigir erros gramaticais e possíveis ‘cochilos’ do tradutor, [além de] verificar adequação de registro e vocabulário utilizados”, “zelar pela qualidade do texto e respeitar a escolha do tradutor”, padronizar o texto “conforme a linha daquela editora específica” e apontar e propor “soluções outras para trechos que considere ‘complicados’ em diversos sentidos”. Quarenta e quatro por cento dos tradutores, no entanto, disseram que o copidesque acaba extrapolando suas “funções”, tornando-se um “censor gramatical”, “deturpando o trabalho do tradutor”, fazendo “substituições tolas”, “mudando trechos e termos, achando que ‘fica melhor assim’”, “traduzindo de novo”, “editando”, “arrogando-se funções que não lhe [cabem]”, “intervindo mais do que o neces50 | Tradução em Revista

sário”. Tal como sugerimos na introdução do presente trabalho, apesar de muitos tradutores virem lutando para desconstruir a idéia vigente no senso comum de que são meros copistas, ressaltando a inevitabilidade de sua intervenção no texto-fonte, parecem recusar-se a aceitar que o copidesque, por sua vez, intervenha no texto traduzido. Mesmo que quisesse, seria possível para o copidesque anular sua própria interpretação do texto, além de todo o contexto no qual se insere, a fim de ir sempre ao encontro das decisões e desejos do tradutor? Se a situação está longe do ideal, isso se deve [...] a uma falta de iniciativa, por parte dos tradutores, no sentido de aceitarem a revisão como uma leitura responsável e indispensável e de discutirem as alterações a serem feitas sem a vaidade que marca a atitude ingênua daquele que acredita que o texto é só seu. (Azenha, tradutor)

Em todas as esferas nas quais vários profissionais trabalham juntos e se lida com escolhas subjetivas há possibilidade de tensão. A dubladora e tradutora Dilma Machado se ressentiu recentemente com um diretor que para a frase I’m not proud to do this preferiu mudar o que ela havia escrito, “Não sinto orgulho de fazer isso”, para a tradução incorreta “Não tenho vergonha de fazer isso”. Nesse caso, não só essa, mas todas as inúmeras modificações feitas pelo diretor no momento da dublagem é que vão valer, a despeito da opinião da tradutora. No campo da interpretação de um modo geral, é óbvio que as opiniões vão divergir. Um outro exemplo disso é o pedido de demissão de um famoso diretor de uma novela, feito há pouco tempo. Em um artigo no jornal O Globo (Kogut, 2005: 16), a autora, Glória Peres, explicou: “recentemente passamos a ter idéias diferentes sobre a condução da trama e seus personagens, criando um descompasso”. Na sinopse da novela a heroína, Sol, é descrita como “corajosa, vital, alegre e [alguém que] não chora”. Na interpretação do diretor, no entanto, Sol se mostra triste e chora com freqüência. A autora simplesmente não admitiu uma interpretação diferente da sua para a personagem que criou. Interpretações diferentes sobre a forma de conduzir determinados personagens de romances podem ocorrer também entre tradutores e copidesques. Ao traduzir uma obra literária de época, a tradutora Sonia Moreira foi convidada a opinar sobre um “alerta” feito pela copidesque: nesse alerta, ela dizia que estava na dúvida se o vocabulário que eu havia empregado nas falas de um determinado personagem não seria “moderno” demais para a época em que o conto fora escrito. (Ela fez o alerta, mas não chegou a mexer nas tais “falas modernas” do personagem; ou seja, não cheA (não) relação entre tradutores e copidesques... | 51

gou a dar outras soluções. O personagem era um americano bastante caricato e tinha um modo de falar aparentemente “exótico”, em comparação com o dos outros personagens [europeus] do conto). (Moreira, tradutora)

Uma alternativa possível para aliviar as tensões geradas pela inevitável interferência do copidesque no texto traduzido seria levar a cabo o que 44% dos tradutores sugeriram: que houvesse algum tipo de interação entre tradutores e copidesques. Em outras palavras, que o tradutor tivesse a chance de opinar sobre as modificações feitas em seu texto. Apesar de alguns tradutores terem mencionado que muitas editoras evitam fazer isso alegando que tal procedimento atrasaria a publicação da obra, isso não tem impedido que a copidescagem da tradução seja enviada a alguns tradutores experientes e àqueles que exigem que isso seja feito. A tradutora Roberta Barni sugere que “quando a editora percebe que o tradutor é seguro do que faz, sabe trabalhar e exige rever o trabalho, ela mesma orienta o [copidesque] para ‘não interferir demais no texto’, a não ser que seja necessário ou que se tenha uma idéia brilhante a propor”. Caberia então aos tradutores impor suas condições e exigir rever o trabalho? Uma mudança no processo de edição de obra estrangeira que permitisse um “diálogo” entre tradutor e copidesque certamente iria ao encontro do que solicitam os tradutores. Resta saber se as editoras estariam dispostas a modificar o costume já arraigado de alterar o texto traduzido sem a autorização do tradutor. Pode-se confirmar a existência de relações de poder e o tratamento diferenciado mencionado indiretamente por Barni através do depoimento do copidesque, tradutor e editor André Telles, para quem o “cuidado com os possíveis melindres do autor” brasileiro é maior do que com os do tradutor. No decorrer da produção editorial, o cuidado tomado com o que Telles denomina de “melindres” não só parece variar de tradutor para tradutor — já que a alguns é dado o direito de rever a copidescagem de suas traduções; copidescagem essa que inclusive pode ter sido feita, a pedido do editor, com o objetivo de interferir menos — como também parece ser diferenciado no caso de tradutores e autores. Segundo Telles, os “livros brasileiros sempre voltam ao autor para sua aprovação”. Os copidesques, por sua vez, no que diz respeito a seus papéis, disseram que devem: realizar “correções ortográficas e sintáticas [e indicar] discrepâncias internas e despadronizações”; “manter a consistência e estilo [...] e observar o respeito aos glossários”; “indicar a necessidade de ‘ajustes’ na tradução [e] aprimorar a redação do texto”; “apontar problemas (desvios da norma culta, 52 | Tradução em Revista

quando o texto não os comporta; gralhas; saltos; redação truncada, entre outros) e propor soluções”; “dar um parecer sobre as escolhas do tradutor e corrigir erros”; “lapidar o texto”. Mas enquanto 44% dos tradutores criticaram a atuação do copidesque, apenas 23% dos copidesques criticaram a atuação do tradutor. Nesse caso, os copidesques alegaram que os tradutores tendem a se afastar da língua-meta e que muitas vezes eles são obrigados a refazer o trabalho, em virtude de traduções de má qualidade. Curiosamente, apenas uma copidesque, que por sinal é também tradutora, mencionou que deveria haver integração entre o trabalho do tradutor e o do copidesque. Com esse resultado, vê-se novamente a diferença de opinião entre tradutores e copidesques no que tange aos tais “ajustes” ou “lapidagens” na tradução; no âmbito das escolhas subjetivas, muitos “ajustes” considerados adequados pelos copidesques são tidos como interferências indesejáveis pelos tradutores.

V. A cobrança de neutralidade e a luta pelo poder O preparador simplesmente delirou, achou que sabia mais da línguafonte do que eu, achou que sabia escrever melhor do que o autor, enfim, um desastre, interveio pesadamente no texto e até introduziu erros. (Roberta Barni, tradutora) Há tradutores de níveis muito diferentes. Alguns são muito bons, e com esses se aprende muito; outros nem tanto, às vezes nos obrigando a praticamente refazer o trabalho de tradução. (Sofia Silva, copidesque)

Quando indagados se consideravam que os tradutores cobravam dos copidesques uma neutralidade impossível, dois pontos muito citados pelos entrevistados foram, por um lado, que haveria por parte dos copidesques a necessidade de “mostrar serviço” e, por outro, que é o tradutor quem leva a culpa na mídia quando há erros na obra publicada. No que tange ao primeiro ponto levantado — a necessidade de “mostrar serviço” —, para 12% dos tradutores entrevistados não só os tradutores, como os demais participantes da produção de obra estrangeira sentem necessidade de “aparecer”: “Não vejo luta pelo poder, mas eventualmente tradutores e [copidesques] mal formados e mal remunerados, sequiosos de mostrar serviço e provar a sua própria importância, às vezes aos seus próprios olhos” (Aguiar, tradutor). Para outros 12%, o copidesque quer mostrar serviço porque “a impressão que se tem, sem marcas no texto, é a de que ele não trabalhou. [...] É uma luta pela visibilidade, na qual é fácil incorrer; mas isso acontece [...] por falta do editor” (Barni, tradutora). A (não) relação entre tradutores e copidesques... | 53

Com relação ao segundo ponto levantado — o tradutor é quem leva a culpa na mídia —, 31% dos entrevistados disseram que, apesar de o costume vigente no processo editorial de obra estrangeira no Brasil ser o da não interação entre tradutores e copidesques, e o das modificações feitas à revelia do tradutor, quem figura publicamente como responsável pelo texto-meta é o tradutor: Já tive a experiência de ver uma página de tradução minha praticamente desfigurada por um [copidesque]. Não se trata de uma luta pelo poder, porque o tradutor vende os direitos para a editora, e a partir desse momento a editora pode fazer o que quiser do texto. Só acho que se é para mudar completamente o texto do tradutor fica meio engraçado colocar o nome do tradutor na folha de rosto. (Falck, tradutora)

E isso nos remete ao terceiro ponto levantado pelos tradutores. Tal como já foi sugerido na seção IV deste trabalho, os entrevistados ressaltaram a necessidade de haver “contato estreito” e “interação” entre tradutores e copidesques. Vários tradutores afirmaram que muitas vezes a escolha do copidesque pode ser melhor, não havendo, portanto, “nenhum empecilho [...] em aceitar o termo sugerido pelo [copidesque], desde que dentro de um diálogo e uma troca de idéias e, principalmente, um sólido embasamento gramatical, terminológico e cultural que justifique ou não o termo apresentado pelo [copidesque]” (Levié, tradutora). Quando o tradutor sabe que quaisquer modificações no texto-meta passarão pelo seu próprio crivo, parece diminuir ou cessar a cobrança de neutralidade: “eu não cobro neutralidade do [copidesque]; apenas peço que todas as decisões dele passem por mim antes de o livro ir para a gráfica” (Britto, tradutor). Para que esse diálogo ocorra, o tradutor não teria que cobrar dos copidesques “mas sim dos editores, eles sim responsáveis finais por eventuais aberrações produzidas pela interação tradução/[copidescagem]” (Aguiar, tradutor). Para alguns entrevistados, a luta pelo poder, ou pela visibilidade, ocorre justamente quando “não há clareza nos papéis a serem desempenhados. [Portanto] o coordenador do projeto e/ou editor e/ou intermediador devem procurar estabelecer uma relação de interação entre o tradutor e o [copidesque]” (Motta, tradutora). O diálogo entre tradutores e copidesques é produtivo porque o tradutor pode ter uma idéia dos pontos a melhorar, dos termos corretos a usar, o que permite que haja um aprendizado constante (Nascimento, tradutora). Em contraste com o que foi dito pelos tradutores, a necessidade de “aparecer” só foi mencionada por um copidesque, para quem “há tradutores que gostam de chamar atenção para o seu texto, muitas vezes tentando ‘melhorar’ 54 | Tradução em Revista

o original” (Telles, copidesque, tradutor e editor). Da mesma forma, só uma copidesque trouxe à tona o fato de o tradutor assinar a tradução: “Na maior parte das vezes nem chego a ter contato com os tradutores dos livros que reviso. Mas, pessoalmente, acredito que um tradutor competente é quem deve dar a palavra final sobre a tradução. É ele quem a assina” (Silva, copidesque). Por sinal, 41% dos copidesques afirmaram não ter tido contato direto com tradutores e apenas a copidesque que também é tradutora levantou a questão da falta de diálogo: “o problema é que muitas vezes não há qualquer diálogo. Depois de entregar seu trabalho, o tradutor só volta a ver o texto depois de publicado. O que é grave e não devia ser dessa forma” (Senna, copidesque e tradutora). O editor citado como responsável por um processo que não é o ideal também foi mencionado por Senna: “não acho que o problema seja entre [copidesque] e tradutor, mas entre editor e tradutor. O [copidesque] pode apontar problemas, mas normalmente é o editor quem decide mexer ou não em um texto”.

VI. A avaliação da copidescagem e a escolha da versão final São raras, raríssimas, as editoras que sequer propõem apresentar aos tradutores as revisões feitas. Ocorre, mas é raro, e já vi dar briga. Contudo, quando proponho ou me propõem obras que considero importantes, eu exijo a palavra final. Se quiserem revisar trinta vezes, que o façam, mas o editor terá de devolver para eu aprovar no final. O visto bom é meu, que assino. (Renato Aguiar, tradutor)

Quando escolhemos o tema deste trabalho, supúnhamos que apenas aos tradutores iniciantes não era dada a oportunidade de opinar sobre a copidescagem feita em suas traduções; ou seja, em virtude de sua pouca experiência, as editoras evitariam reenviar-lhes a tradução copidescada. Essa hipótese foi descartada, uma vez que 80% dos tradutores entrevistados já exercem a profissão há mais de dez anos e, no entanto, 60% tampouco recebem de volta o texto copidescado. Esse número foi confirmado pelos copidesques entrevistados, dos quais 60% afirmaram que nas editoras para as quais trabalham o texto traduzido não costuma ser reenviado ao tradutor. Insatisfeitos com essa situação, alguns tradutores afirmam ter deixado de trabalhar para as editoras que não lhes permitem rever a copidescagem: “Há algumas [editoras ...] para as quais não mais trabalho por causa da ‘ditadura gramaticalesca’” (Sobral, tradutor); “Há umas duas editoras com as quais não consegui [rever a copidescagem ...]; nesses casos, deixei de trabalhar para elas” (Barni, tradutora). Outros A (não) relação entre tradutores e copidesques... | 55

tradutores afirmaram que para evitar aborrecimentos não lêem o texto-meta publicado, ou recorrem ao uso de pseudônimo: Quando tive problema com a [editora3 ...], consegui [...] que ela me encaminhasse o livro depois de revisado, para eu dar uma última olhada. Cheguei a fazer isso com um livro e foi um sofrimento ver meu texto completamente alterado. Decidi optar pelo uso de um pseudônimo nessa editora especificamente, e eles aceitaram. (Grillo, tradutor)

Apesar das inúmeras queixas por parte dos tradutores no que tange à copidescagem, revê-la implica um trabalho adicional, muitas vezes não-remunerado, que deve ser levado em conta: “Já me ocorreu reivindicar essa releitura, que me foi concedida mas de que contudo me arrependi, porque (1) o trabalho adicional que isto representou não acrescentou nem um tostão à remuneração a que eu já fizera direito” (Flaksman, tradutor). Como essa tarefa pode ser monumental no caso de livros extensos, ela poderia explicar, talvez, a aparente inexistência de uma pressão maior por parte dos tradutores para realizá-la. Para o tradutor Sérgio Flaksman, a falta da compensação financeira para esse trabalho extra seria “um dos mecanismos viciados a alimentar a perpetuação de profundas deformações nesta área. E mais ainda quando o trabalho ainda se sujeita, ao fim e ao cabo de toda esta releitura, a mais um número indeterminado de ‘revisões’”. Situações similares ocorreram com a tradutora Roberta Barni. Em uma delas, o editor “foi obrigado a admitir que eu estava certa. Resultado: pagou-me, e bem, para que eu arrumasse de volta o texto”. Na outra, entretanto, o editor [...] reconheceu que a [copidescagem] estava desastrosa, e disse que simplesmente não chamaria mais aquele [copidesque], mas não foi além disso, e deixou a bomba na minha mão. Por uma questão de delicadeza para com o autor que até tinha me indicado, tornei a arrumar tudo, mas muito a contragosto, um trabalhão danado, sem receber para isso! (Barni, tradutora)

Já vimos que, no que concerne à copidescagem, as editoras parecem dar um tratamento diferenciado a tradutores e autores. Será que isso ocorre porque o custo e o tempo de edição da obra nacional, sem a participação de tradutores e copidesques, é muito menor? Ou será que a não-revisão da copidescagem por parte dos tradutores é simplesmente uma praxe que pode ser alterada, faltando para tanto que os tradutores se mobilizem? De acordo com a editora Daniele Cajueiro, 4 a Nova Fronteira, por exemplo, costuma enviar a copidescagem ao tradutor. Já segundo a editora Silvia Leitão,5 a Record não 56 | Tradução em Revista

tem essa prática. Na editora para a qual trabalha André Telles, isso tampouco costuma ser feito: Na maior parte dos casos o texto não volta ao tradutor (seria arranjar sarna para se coçar...). Além disso, como os tradutores são mais ou menos fixos e trabalham há anos para a editora, devem ficar “resignados” ou “gratos”. Um comentário de um editor conhecido: “Não se pode contratar um tradutor porque se viu o nome dele numa boa tradução. A gente contrata ele, e depois vê que o trabalho todo tinha sido do copy e da editora”. (Telles, editor, tradutor, copidesque)

Faltaria ao tradutor essa “resignação” ou “gratidão”? A “resignação” de assinar uma tradução com alterações de copidescagem que podem comprometer, ou não, o seu trabalho, uma vez que o processo editorial é, na verdade, uma linha de produção? “Um termo que me custou muita pesquisa foi substituído pelo revisor por um falso cognato que tornava toda a passagem absurda. Briguei muito com a editora, e a partir daí eles passaram a ficar mais cuidadosos com os meus textos” (Britto, tradutor). A “gratidão” por participar de uma linha de produção na qual tanto podem atuar profissionais competentes como incompetentes, que, se por um lado podem melhorar muito o texto-meta, por outro, podem piorá-lo? Ou estaria faltando ao tradutor a consciência de que todos que trabalham na produção editorial precisam ter noção de que um texto não é um filho. E, mesmo se for, o filho não é só seu. Essa idéia do “esse texto é meu e ninguém mete o bedelho” pode ter sentido em alguns contextos específicos, como trabalhos literários ou acadêmicos. Mas, na maior parte da produção textual de hoje (manuais, relatórios, livros didáticos, livros de referência etc.), o que temos é um trabalho em equipe, no qual as disputas pelo poder não fazem sentido. (Guimarães, copidesque)

No que diz respeito aos copidesques, 75% afirmaram não ter acesso às modificações feitas posteriormente em seu próprio trabalho de copidescagem; ou seja, disseram não saber se suas modificações foram incorporadas ou não ao texto-meta. Trinta por cento deles disseram que gostariam de ter a chance de opinar sobre essas modificações, mas que entendiam que isso não ocorria em função do processo editorial: “É claro que eu gostaria de ser consultada sobre as modificações feitas após meu trabalho, mas, por ter trabalhado como coordenador editorial, sei que isso é bem complicado e muitas vezes inviável” (Canetti, copidesque); “É incômodo pensar que seu trabalho talvez seja tratado de forma pouco ética, mas não posso ocupar um espaço que não é meu — eu não dou a A (não) relação entre tradutores e copidesques... | 57

palavra final na publicação, preciso confiar nos meus colegas” (Rodrigues, copidesque); “É sempre bom mostrar ao revisor [as modificações que foram feitas posteriormente ao seu trabalho]” (Bellinelo, copidesque); “Já me aconteceu de ver um livro publicado e ver que muitas das minhas emendas não foram incorporadas. Imaginei que foram imposições do tradutor. Às vezes, não posso deixar de lamentar, mas sei que são essas as regras do jogo” (Silva, copidesque). Já outros copidesques, tal qual Thelma Guimarães, acham que não cabem ao copidesque as decisões finais: “Penso no cliente e se para ele for melhor alterar o que já alterei, por que não? Como disse, penso em um trabalho complementar, em equipe” (Santos, copidesque); “Depois que o [copidesque] entrega o trabalho, cabe à editora decidir acatar ou não as emendas sugeridas, uma vez que é dela a responsabilidade pela publicação do livro” (Rocha, copidesque); “o trabalho de [copidescagem] não é autoral, por isso não vejo motivo de o editor ter de dar satisfação do que vai manter ou não das marcações do [copidesque]” (Senna, copidesque e tradutora). Sendo a intenção de todo processo de revisão de obra estrangeira traduzida chegar a um produto final de qualidade, estaria faltando ao tradutor essa visão de trabalho em grupo, de um processo que envolve indivíduos e etapas diferentes? Seria a melhor opção do tradutor “aceitar as regras do jogo”, “confiar em seus colegas” e acatar as escolhas dos copidesques e editores? Ou seria a tradução, de fato, algo “pessoal e intransferível”? Nunca deixei de pensar que uma vez feita por mim a tradução, está ela pronta. Não se trata de pretensão. Estou apenas querendo dizer que uma nova tradução do mesmo texto é, digamos assim, uma outra obra. Algo como uma coisa pessoal e intransferível. (Gonçalves, 2003: 112)

Quando questionados a respeito de a quem deveria caber a palavra final no tocante a textos traduzidos, 50% dos tradutores afirmaram que ela caberia ao tradutor. Na opinião de 6% dos tradutores participantes, caberia ao editor dar a palavra final; para outros 6% a versão final, no caso de textos técnicos, deveria ficar a cargo do revisor técnico. Já para 30% dos participantes, deveria haver um trabalho conjunto: Colocada como está, a pergunta induz, a meu ver, à retroalimentação de um processo compartimentado. A rigor — e se quisermos ser coerentes com as contribuições dos Estudos da Tradução dos últimos vinte anos — a última palavra não é a última e não deve ser dada a um só. Só que para fazer isso valer no meio não acadêmico, o tradutor precisa se valer de argumentos 58 | Tradução em Revista

não acadêmicos. Assim, é preciso convencer o outro de que o trabalho conjunto reduz os riscos do insucesso, o que pode significar garantia de retorno de investimento. (Azenha, tradutor)

Sob o ponto de vista do tradutor João Azenha, os tradutores não devem exigir a palavra final sobre seus trabalhos, mas sem dúvida alguma terão de requerer o retorno do texto copidescado para que possam debater as mudanças das quais discordam; de outra forma, seria impossível a efetivação do que ele chama de “trabalho conjunto”. Já para a tradutora Renée Levié, “a tradução é de propriedade(criação) do/a tradutor/a, e nenhuma modificação deveria ser feita sem a sua aprovação prévia”. Da mesma forma pensam a tradutora Roberta Barni, para quem o tradutor deve ter a última palavra porque é ele “quem assina a tradução” e a tradutora e copidesque Janaína Senna, para quem o trabalho do tradutor é “um trabalho autoral. O tradutor é o responsável, digamos assim, por aquela obra, e não o [copidesque].” A opinião dos copidesques parece se alinhar com a de Azenha. Apesar de 54% dos copidesques terem afirmado que o tradutor deveria ter o direito de opinar sobre a copidescagem, apenas 20% consideraram que a palavra final deveria ser do tradutor. Para a maioria, 46%, a palavra final cabe ao editor: “o cliente é quem tem o poder de decidir o que ele acha que venderá, o que ele considera que agrada seu público e o preciosismo, por vezes, é um ideal que aprendemos em sala de aula mas que na prática, em algumas situações, não se aplica” (Santos, copidesque).

VII. Desentendimentos entre tradutores, copidesques e editores O editor, exigindo um texto elegante, “bem escrito”, de fácil leitura, impôs modificações que o tradutor, fiel ao estilo estranho, áspero, de seu autor, recusou-se a aceitar. Seguiram-se acusações, aborrecimentos, humilhações (para o tradutor, é claro, porque no par tradutor-editor o primeiro sempre é o mais fraco). (Pierre Blanchaud, apud Kundera, 1996)

Quando perguntados se já teriam tido algum tipo de problema com editores, seja no que tange à copidescagem ou a outros aspectos, 62% dos tradutores disseram que sim, o que demonstra o alto grau de insatisfação dos tradutores com o processo editorial. Alguns se queixaram de divergências no que tange à remuneração; a maioria, no entanto, citou, mais uma vez, alterações na etapa de copidescagem do texto traduzido que consideraram inadequadas: “dois livros de épocas totalmente distintas ficaram iguaizinhos, o que A (não) relação entre tradutores e copidesques... | 59

a meu ver é um erro” (Sobral, tradutor); “já saiu tradução minha com erro cometido pelo [copidesque], mas aí o assunto foi resolvido entre a supervisão e o [copidesque]” (Nascimento, tradutora); “eu só protestei dizendo que tinham mexido muito na [copidescagem...], mas a tradução já estava publicada e o que fazer? Aliás, se eu assino um contrato de cessão de direitos, estou alienando minha obra, portanto a editora pode fazer o que quiser do texto. Se eu não assinar o contrato, ela não me dá trabalho” (Falck, tradutora). Tal como ressaltou a tradutora Celina Falck, ao entregar uma obra traduzida à editora, o tradutor é de fato obrigado a assinar um contrato de cessão de direitos autorais de tradução que inclui até seus herdeiros e sucessores. Por intermédio dele, o tradutor “cede e transfere à [editora], em caráter definitivo, a totalidade de seus direitos autorais relativos à tradução, podendo esta explorar comercialmente, alterar, utilizar ou não, publicar, ceder e/ou licenciar a terceiros, no todo ou em parte, conforme sua necessidade ou interesse”.6 A inclusão da palavra alterar nesse contrato não deixa dúvidas sobre a forma como a editora encara a tradução: uma etapa no processo de edição de obra estrangeira a ser modificada livremente pelo editor. “Não leio a tradução publicada para não precisar discutila apenas por discutir. Uma editora somente refaria um livro que traduzi se eu entrasse na Justiça” (Wyler, tradutora). Se por um lado a editora responde pelo produto final, por outro o tradutor assina a tradução — e, tal como ressaltam os tradutores, as críticas costumam ser feitas a eles e não às editoras. Quando questionados a respeito de desavenças com copidesques, 87% dos tradutores afirmaram já ter tido algum tipo de problema com esse profissional. Uma tradutora chegou a afirmar ter tido problemas em 75% das copidescagens feitas em suas traduções. Outros 25% dos tradutores entrevistados afirmaram que tiveram, mas já não têm mais dificuldades com copidesques. Essas dificuldades terminaram ou porque os tradutores passaram a receber a tradução ou porque simplesmente deixaram de ler o texto publicado: “em 90% das vezes, para evitar dissabores, não quero nem saber o que foi feito dos originais que entreguei” (Aguiar, tradutor); “as editoras não enviam as revisões” (Levié, tradutora) e “é muito difícil eu chegar a abrir um livro com minhas traduções, o que certamente deve me poupar muitos dissabores” (Flaksman, tradutor). Já 60% dos copidesques afirmaram nunca ter se desentendido com editores. Para 25% dos que disseram já ter tido algum desentendimento, isso ocorreu em função de “expectativas diferentes em relação ao trabalho, como por exemplo, qualidade versus prazo” (Canetti, copidesque) e “deficiência na comunicação entre as partes. Já aconteceu de o editor desejar um trabalho com pouca intervenção, e eu ter interferido demais, ou vice-versa” (Guimarães, copidesque). Além disso, foram mencionados 60 | Tradução em Revista

prazos mal estipulados (aliás, cada vez menores); editoras que não fazem uma boa articulação entre seus prestadores de serviço e, depois, atribuem as falhas só a estes; tradutores que não se responsabilizam pela qualidade de seu texto [...], e aí o copi que se vire para transformar aquilo em português; ou copis negligentes, que deixam o trabalho pesado para o revisor. (Rodrigues, copidesque)

Esses três exemplos evidenciam a necessidade de um bom canal de comunicação entre os profissionais envolvidos no processo editorial. A copidesque Thelma Guimarães cita o que considera ser uma boa iniciativa para o aperfeiçoamento da comunicação entre as partes, tomada por uma grande editora de São Paulo: “Uma pessoa do RH da própria editora telefona para o prestador de serviços externo e pede que ele avalie o desempenho do funcionário interno com quem tem contato. São discutidos pontos como fluidez da comunicação, a transparência quanto a prazos e remuneração, dentre outros”. Ao contrário dos tradutores, 76% dos copidesques afirmaram nunca ter tido problemas com tradutores. Tal como mencionamos no início do trabalho, pela maneira como a pergunta foi formulada muitos copidesques tiveram a impressão errônea de que nos referíamos a um “encontro físico”: “como não costuma haver contato entre o tradutor e [o copidesque], seria difícil haver um confronto. Já tive uma experiência que foi exatamente o contrário, o tradutor ficou muito agradecido porque saltos e erros da tradução dele foram descobertos e corrigidos” (Silva, copidesque). Algumas queixas de copidesques foram dirigidas a outros profissionais envolvidos no processo editorial, o que demonstra que nem sempre há harmonia nesse processo, mesmo quando não se está falando da relação tradutorcopidesque. Isabel Rodrigues, citada acima, referiu-se a “copis negligentes, que deixam o trabalho pesado para o revisor” e André Telles chamou atenção para um outro tipo de relação, “[essa], terrível, do copidesque com a figura do revisor técnico [...], que, às vezes, invocando autoridade técnica, impõe[m] e consolida[m] traduções infelizes”.

VIII. Conclusões Tenho sempre procurado dialogar com os revisores e o resultado disso tem sido duplamente satisfatório: no que me diz respeito, ele me garante o conforto de uma responsabilidade compartilhada; no que respeita ao livro em si, ele instaura uma instância de discussão que permite conciliar e, eventualmente, harmonizar, interesses editoriais com interpretações não coincidentes com tais interesses. (João Azenha, tradutor) A (não) relação entre tradutores e copidesques... | 61

Seria o texto final do processo de edição de obra estrangeira um “produto de criação coletiva” e a tradução “um trabalho a ser continuado e modificado em etapas subseqüentes” (ver Linz, 2004: 27)? Caberia ao tradutor parar de se queixar da copidescagem e assumir seu lugar como apenas “um dos colaboradores na edição de um livro” (ibid)? Ou caberia ao tradutor deixar de lado o conformismo e lutar contra as atuais políticas das editoras a fim de defender sua escrita tradutora e exigir o direito à revisão da copidescagem? Pelo que vimos, no tocante à copidescagem de seus textos, a expectativa da maior parte dos tradutores é a de que o copidesque só intervenha quando há ocorrência de erros binários. Quando o copidesque intervém em outras circunstâncias, a tendência do tradutor é achar que ele quer “mostrar serviço”. Segundo o Eurologos, site que oferece serviços de tradução, entre tradutores e copidesques haveria um “implacável ciúme do rival”; por esse motivo, “o [copidesque] do cliente [...] não deve se deixar levar por uma inútil competição estilística ou um confronto de personalidades”, devendo “resistir ao impulso natural de querer reescrever o texto, sabendo que nada é mais subjetivo que o julgamento de uma linha bem traduzida” (grifos nossos). A tendência dos tradutores, de fato, é encarar a copidescagem como uma etapa secundária relativamente à tradução. E, ao colocá-la em uma posição secundária, os tradutores passam a se ver como donos absolutos do texto. Os tradutores que se afinam com a visão mais recente dos estudos da tradução, a pós-estruturalista, caem em contradição justamente por exigirem da copidescagem uma postura neutra e, ao mesmo tempo, ressaltarem a inevitabilidade de sua própria intervenção na obra que traduzem. Ao nosso ver, caberia aos tradutores a conscientização de que, se na relação autor-tradutor não há como o tradutor se auto-anular, tampouco na relação tradutor-copidesque há como o copidesque se auto-anular — isso seria, tal como vimos, virtualmente impossível. Ao exigir essa neutralidade do copidesque, o tradutor — como na visão universalista da relação tradutor-autor contra a qual as teorias pós-estruturalistas tanto vêm se opondo — passa a assumir a posição de “Autor” com letra maiúscula, colocando-se em posição superior à do copidesque ao não tomá-lo como um profissional que, influenciado por sua própria visão de mundo e cultura, fará escolhas diferentes das suas. O cerne do problema não está nas idiossincrasias do copidesque, mas na impossibilidade de o tradutor questionar as modificações que a seu ver são incorretas. A nossa defesa dessa postura diferente a ser adotada pelo tradutor no tocante ao copidesque não significa, entretanto, que consideramos infundadas as constantes queixas dos tradutores no que tange à copidescagem. Muito pelo 62 | Tradução em Revista

contrário; como vimos, embora os tradutores tenham ressaltado a relevância da copidescagem, o número de intervenções consideradas prescindíveis e inadequadas foi muito superior ao número de intervenções consideradas adequadas e até mesmo imprescindíveis. Mesmo que essas queixas possam ter se baseado na exigência de neutralidade do copidesque, são inúmeros os exemplos de intervenções de fato incorretas. E é justamente por sabermos que os textos podem receber interpretações distintas que defendemos a idéia de o texto voltar para o tradutor, já que é ele o responsável pelas interpretações feitas, inclusive porque é ele quem assina a tradução. Assim sendo, tal como sugerido por vários tradutores, parece-nos que o ideal seria que, uma vez concluída a copidescagem ou revisão, o texto sempre retornasse ao tradutor. Sou daqueles que acreditam que revisor e tradutor devem compor uma dupla que se complementa e não um par de tradutores que competem. Tanto na revisão lingüística, aquela que trata do estilo na língua-alvo, quanto na revisão técnica da tradução técnica [...] o uso pelo revisor do recurso dos “comentários” oferecido pelo Word possibilita um “diálogo” interativo entre revisor e tradutor, em benefício do produto final. (Haroldo Netto, 2003: 141)

Todos os relatos de experiências nas quais houve esse retorno foram tão positivos que as queixas contra copidesques, se não cessaram, diminuíram acentuadamente. Supomos que, mesmo sem receber uma remuneração adicional, os tradutores certamente estariam dispostos a rever a copidescagem a fim de evitar alterações que considerem incorretas ou mesmo de serem convencidos do contrário. Supomos também que o copidesque, se instituída a prática de retorno do texto copidescado ao tradutor, passaria a interferir menos. Se algumas editoras já adotaram a prática de enviar a copidescagem do texto-meta aos tradutores, apesar dos prazos apertados para publicação de obra estrangeira, as demais podem seguir o exemplo. Não obstante, além de mencionar os prazos apertados, outra prática comum das editoras é recorrer à seguinte justificativa: “modificações sem consulta ao tradutor só são feitas quando se tem muita certeza do que será alterado e acredita-se que o tradutor concordaria” (Costa apud Linz, 2004: 22). É difícil acreditar que alguém possa saber exatamente com quais alterações ele estaria de acordo. Tal como vimos, uma alteração, por menor que seja, pode eliminar um termo que custou ao tradutor horas, dias ou até semanas de pesquisa. Além do mais, os próprios copidesques e revisores estão sujeitos a cometer, ou a deixar passar, erros. Portanto parece-nos justo que o texto volte ao tradutor após a copidescagem, ou a revisão final. O resultado de um trabalho conjunto A (não) relação entre tradutores e copidesques... | 63

será, sem dúvida alguma, um texto de melhor qualidade. Além disso, essa troca de idéias contribui para o aperfeiçoamento profissional do copidesque e do tradutor: em uma das editoras trabalhei in-house durante dois anos. Fazia as traduções lá e as médicas revisavam lá mesmo, então nosso contato era direto e diário. Era muito interessante porque a revisão era comentada comigo posteriormente, então eu podia ter uma idéia de pontos a melhorar, termos corretos a usar, etc. Acho que esta seria a situação ideal de trabalho de tradutores e revisores — contato estreito, diálogo, aprendizado constante.” (Nascimento, tradutora)

Na condição de clientes e gerentes do processo editorial, os editores decidem como ele será conduzido e, portanto, exercem um papel fundamental não só na relação entre autores-tradutores, como também na relação entre tradutores-copidesques. Se os tradutores quiserem mudar a atual política das editoras, terão de convencer os editores de que, no final, serão eles os grandes beneficiados ao permitirem o retorno da copidescagem ao tradutor, pois sem dúvida alguma estarão não só harmonizando relações de trabalho potencialmente problemáticas, como colocando no mercado um produto de qualidade superior.

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Este artigo foi concebido originalmente como monografia de conclusão do Curso de Especialização em Tradução da PUC-Rio (2005), sob a orientação da professora Maria Paula Frota. 2 Quando citarmos o fragmento de uma resposta ao questionário que enviamos a tradutores e copidesques, apresentaremos ao final o sobrenome do entrevistado e sua profissão. Se o fragmento citado for muito pequeno não daremos o nome do autor, para que a leitura seja mais fluida. 3 Apesar de o tradutor ter mencionado o nome da editora, pareceu-nos melhor não mencioná-la, já que ele afirma ter de recorrer ao uso de pseudônimo a fim de trabalhar para ela. 4 CAJUEIRO, Daniele. Depoimento no Painel de Mercado oferecido aos alunos da Especialização em Tradução da PUC-Rio, em outubro de 2004. 5 LEITÃO, Silvia. Depoimento no Painel de Mercado oferecido aos alunos da Especialização em Tradução da PUC-Rio, em outubro de 2004. 6 Trecho de “Instrumento particular de cessão de direitos autorais de tradução” da Editora Bertrand Brasil Ltda.

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ANEXO Relação de tradutores e copidesques que responderam ao questionário em março e abril de 2005:

TRADUTORES AGUIAR, Renato AZENHA, João BARNI, Roberta BORTEN, Erik BRITTO, Paulo Henriques FALCK, Celina FLAKSMAN, Sérgio GRILLO, Marcio LEVIÉ, Renné MOREIRA, Sonia MOTTA, Regina NASCIMENTO, Maria Inês QUENTAL, Raffaella ROSAS, Marta SOBRAL, Adail WYLER, Lia

COPIDESQUES BELLINELLO, Sergio CANETTI, Gypsi GUIMARÃES, Thelma KOURY, Lucia GERHARDT, Michele MELLO, Hugo ROCHA, Teresa da ROGRIGUES, Isabel SANTOS, Fátima SENNA, Janaína SILVA, Sofia Souza TELLES, André VILLELA, Maria Angela

A (não) relação entre tradutores e copidesques... | 67

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A CRÍTICA DE TRADUÇÕES1 Ivone C. Benedetti

Lendo Umberto Eco, recentemente — trata-se de Limites da interpretação —, deparei com um exemplo que ele dá para tentar estabelecer critérios de legitimidade das interpretações de textos (na tentativa de evitar aquilo por ele denominado “neoplasia interpretativa”), e o exemplo me pareceu cabível também para a tradução. Não é nada incomum o paralelo interpretação/tradução, portanto, não fui muito original. Mas nesse trecho Eco cita um verso de Wordsworth, que está no poema intitulado “The Daffodils”: A poet could not but be gay. Depois de citá-lo, Eco diz o seguinte: “um leitor sensível e responsável não é obrigado a especular sobre o que se passou na cabeça de Wordsworth ao escrevê-lo, mas tem o dever de levar em conta o sistema léxico da época de Wordsworth. No tempo dele, gay não tinha nenhuma conotação sexual, e reconhecer esse ponto significa interagir com um cabedal cultural e social”. As palavras de Eco têm em mira aquilo que ele chama de interpretação crítica, em contraposição àquilo que ele chama de interpretação semântica. Ou seja: a interpretação semântica (ou semiósica) “é resultado do processo pelo qual o destinatário, diante da manifestação linear do texto, preenche-a de significado. A interpretação crítica (ou semiótica) é aquela por meio da qual se procura explicar por quais razões estruturais pode o texto produzir aquelas (ou outras, alternativas) interpretações semânticas”. E Eco conclui dizendo que todo texto pode ser interpretado semântica ou criticamente, mas apenas poucos textos prevêem conscientemente ambos os tipos de leitor-modelo. Ora, e o que tem Wordsworth a ver com tudo isso e o que tudo isso tem a ver com crítica da tradução? Tento agora estabelecer os nexos. À primeira vista, a impressão que se tem é que o tradutor permaneceria, que lhe bastaria permanecer, ou que teria de permanecer, no nível da manifestação linear do texto, e que pouco lhe importariam eventuais interpretações críticas. Diante de estudos de teoria da tradução que contemplam a atividade interpretativa do texto em sua aplicação à tradução, não é incomum ouvir de A crítica de traduções | 69

tradutores até experimentados a pergunta perplexa: “mas o que tem o tradutor a ver com interpretação?”. A pergunta não é de todo impertinente, mas a perplexidade não chega a justificar-se. Voltando ao verso de Wordsworth, eu diria que temos aí um típico exemplo de coincidência entre necessidade de interpretação semântica e necessidade de interpretação crítica. Seria descabido aventar a hipótese de que algum tradutor experiente viesse a interpretar a palavra gay na sua acepção mais usual e conhecida hoje em dia no Brasil? Confesso que, como tradutora, gostaria imensamente de responder: “Sim, é descabido”. Pois bem, cedo então à minha vontade e parto do princípio de que nenhum tradutor entenderia a palavra gay na sua conotação sexual corrente hoje em dia no Brasil. Concluo que, guiado pelo conhecimento de que tal verso foi escrito por alguém que viveu entre os séculos XVIII e XIX, momento da língua inglesa em que a palavra gay tinha n-1 conotações, em que (-1) significa a conotação atual, o tradutor traduzirá corretamente essa palavra. Traduzir corretamente significará, portanto, atribuir-lhe a acepção (ou uma das acepções) que ela tinha naquele momento histórico. Ora, nessa operação, o tradutor terá feito (provavelmente em questão de segundos) um cotejo de todos os seus conhecimentos enciclopédicos para concluir qual seria a acepção mais adequada. A falta desses conhecimentos enciclopédicos redundaria naquilo que se costuma chamar de tradução “errada” — e, evidentemente, aqui estou pressupondo esse engano apenas como argumento ab absurdo. Em suma, estamos tipicamente diante de um caso no qual, sem interpretação crítica, não se chega à correta interpretação semântica. Muitos dos meus colegas aqui presentes argumentariam, talvez, que esse tipo de coincidência não ocorre sempre. É verdade, mas a minha impressão é de que esses casos são muito mais freqüentes do que se supõe. Eu diria que o tradutor faz muito mais análises críticas do que imagina, porque na maioria das vezes não se dá conta de que as fez. É nesses momentos que ele põe em ação o seu cabedal de conhecimentos. A crítica de que estou falando é aquilo que o dicionário Houaiss define como “atividade de examinar e avaliar minuciosamente tanto uma produção artística ou científica quanto um costume, um comportamento; análise, apreciação, exame, julgamento, juízo”. Há outras definições, mas fico com essa. Ora, é no momento em que deixa de fazer essa crítica, ou no momento em que faz uma crítica equivocada, que o tradutor se expõe ao risco de errar. E, quando erra, expõe-se à crítica, ou, quem sabe, a críticas. E agora estou falando de outra acepção de palavra, que, segundo ainda o dicionário Houaiss, é “ação ou 70 | Tradução em Revista

efeito de depreciar, censurar; opinião desfavorável; censura, depreciação, condenação”. Conforme se pode constatar da quase totalidade das respostas à 10ª pergunta feita aos tradutores no livro Conversas com Tradutores que, em parceria com Adail Sobral, organizei para publicação pela Editora Parábola,2 é desse tipo de crítica que os tradutores se consideram alvo, e não de outro, definido também pelo Houaiss como “arte e habilidade de julgar a obra de um autor”. Para resumir, direi que o tradutor exerce (ou deveria exercer) a crítica como “exame, análise”; os críticos de tradução deveriam exercê-la como “arte de julgar uma obra”, mas, segundo os próprios tradutores, eles a exercem como “condenação”. E qual seria o tipo de crítica de que os tradutores se considerariam merecedores? Em outras palavras, no que consistiria a crítica como “arte” de julgar a tradução? E — pergunta complementar — quem seria competente para fazê-la? Diria que, como conseqüência lógica do que venho expondo, uma crítica de tradução só poderia ser uma crítica da crítica. Se a atividade tradutora sempre pressupõe uma crítica — prévia ou simultânea, consciente ou inconsciente —, mas a pressupõe como condição sine qua non (tanto que sua ausência sempre deixa marcas detectáveis), a crítica da tradução consistiria no esforço de detectar os pressupostos de que o tradutor partiu para traduzir X por Y, e não por Z. Portanto, a crítica da tradução seria, num primeiro momento, a detecção da crítica feita pelo tradutor. O segundo momento seria, mais precisamente, a crítica dessa crítica. Ora, assim como existem métodos críticos em literatura, existem métodos críticos em tradução. E aqui falo da crítica empreendida pelo tradutor. As táticas adotadas diante de um texto (sobretudo o literário, mas ouso dizer que qualquer tipo de texto reivindica algum tipo de tática de abordagem), essas táticas — dizia eu — costumam ser mais ou menos constantes em cada tradutor, sofrendo graus maiores ou menores de variação, de acordo com a tipologia textual, com o autor etc. Explico-me. Os tradutores, assim como os autores, têm seu estilo. Diante do mesmo tipo de texto é fácil identificar estilos – escolha de palavras, mas principalmente, de expressões e de estruturas sintáticas. Num quadro ideal, a mudança de tipo de texto ou de autor, com a conseqüente mudança de estilo do original, determinaria uma mudança correspondente no estilo do tradutor. Quando isso ocorre, pode-se dizer que o tradutor realizou uma crítica prévia que lhe permitiu identificar uma mudança, e a ela se ajustar. Pois bem, diante disso, pode-se dizer que na atividade tradutora se encontram dois componentes cuja íntima conjunção é responsável pelo seu A crítica de traduções | 71

caráter até certo ponto paradoxal: ao mesmo tempo que deixa transparecer o seu estilo (“o estilo é o homem”, ou “le style est l’homme même”, já dizia Buffon, sem imaginar talvez que sua frase se tornaria tão famosa), o tradutor deve ser capaz de mudar de estilo junto com seu texto. Essa tensão entre o estilo próprio e o alheio constitui o cerne da atividade, o seu nó górdio, muito mais — arrisco dizer — do que a tensão entre língua de chegada e língua de partida. Uma verdadeira crítica da tradução, portanto, precisaria detectar os elementos dessa tensão e trazê-los à tona. A adequação ou inadequação das táticas empregadas para resolver as tensões de estilo, aliadas a uma análise de tipologia textual mínima, são coisas que poderiam constituir um bom tema para uma crítica da tradução que ultrapassasse o nível elementar da busca do erro ou do acerto lexical, o nível elementar da crítica como condenação. Atividade complexa, sem dúvida. E aí chegamos à nossa segunda pergunta: quem seria capaz de exercê-la? Corro o risco de beirar a tautologia, mas vamos lá: “alguém que entenda de tradução”. Alguém que conheça as duas línguas! Mas não só: alguém que conheça caminhos e atalhos que levam de uma à outra. Mas não só: alguém que conheça a obra original, seu autor. Mas não só... alguém que conheça estilística... E assim por diante. Não é fácil. O que teríamos? Um crítico tradutor? Um tradutor crítico? É preciso então ser tradutor para exercer essa crítica? Não acredito. Mas é preciso conhecer tradução tanto quanto o tradutor ou mais que ele. Um crítico de tradução que não conheça todas as implicações da atividade fará, provavelmente, uma das seguintes coisas: ou se aventura num terreno desconhecido, com o risco de tropeçar, ou se limita a pescar erros. Às vezes tenho a impressão de que, por medo de arriscar-se na aventura e levar um tombo, os jornalistas omitem comentários sobre a tradução quando nela não encontram defeitos óbvios, e fazem de conta que estão analisando a obra original. É a clássica situação que os tradutores costumam comentar com as seguintes palavras: “se não falou mal é porque está bom”. Quando os erros são óbvios, ninguém se omite. Questão de má-fé? Não. Questão de carência. Carência de profissionais especializados nesse campo. Mas como esperar especialização na crítica de tradução se em nosso país se considera dispensável que alguém se especialize na própria tradução? Retomando a pergunta que fiz há pouco: é preciso ser tradutor para exercer essa crítica? Respondi: “não acredito”. Acrescento: acho até difícil. O tradutor profissional não se sente à vontade para exercer esse tipo de crítica que, de qualquer modo, poderá incidir na necessidade de apontar eventuais erros. Em geral, o tradutor profissional se limita a comentar a obra do colega 72 | Tradução em Revista

quando ela merece elogios. Mas esse não seria um verdadeiro trabalho de crítica. De crítica esmiuçadora. De crítica da crítica, como dizia no início. Ora, existe um outro aspecto. A crítica da crítica, mencionada acima, poderá trazer à tona uma crítica implícita do tradutor, uma sua interpretação que não se enquadre exatamente nas concepções que o autor da crítica da tradução tem da crítica do texto. Que fazer então? Todos sabemos que há “linhas”, “tendências”, “posicionamentos”. Que comportamento adotar quando se acha que uma tradução “correta” não é necessariamente a “melhor” tradução? Como se eximir da espinafração? E aí entramos no terreno da ética, se é que alguma vez não estivemos nele. E por falar em ética, retomo uma de minhas frases acima: muitas vezes os jornalistas fazem de conta que estão analisando a obra original, quando na verdade estão analisando uma tradução. Contradição? Não, de jeito nenhum! Cegueira? Também não, pois, afinal, o tradutor não é invisível? Segundo a lógica vigente, o tradutor é e deve ser sempre invisível, a menos que a sua grande visibilidade na cena cultural do país impossibilite deixar de enxergá-lo. E aí, é infalível o elogio. Por outro lado, não é incomum a confusão entre visibilidade textual (conceito técnico) e visibilidade social (coisa do senso comum). Quem tiver, para uma crítica de tradução, os pré-requisitos que expus acima, nunca deixará de enxergar o tradutor nas entrelinhas do autor, sempre saberá que o tradutor é textualmente visível, ainda que ele mesmo se acredite e se queira escondido. Quem não tiver esses pré-requisitos só detectará a visibilidade social, não sairá do senso comum e só terá coragem de elogiar figurões, mesmo porque criticálos (em todos os sentidos) é incômodo, espinhoso, pode expor à pena do cilício (com “c” mesmo). Mas começa a chegar a hora de terminar. E estamos apenas começando. Pela primeira vez presencio um evento como este, em que os tradutores, sempre expostos à crítica, se propõem analisar essa mesma crítica. Escolhi para terminar um trecho que me caiu nas mãos esta semana, por feliz acaso. Tratase da resenha que Luís Antônio Giron fez, para a revista Época, da tradução de Os Demônios de Dostoievski, de autoria de Paulo Bezerra. Dizendo que esse texto recebeu a primeira tradução diretamente do russo, 133 anos depois de sua criação, Giron escreve as seguintes palavras lapidares: “O ESTILO DO TRADUTOR pode soar deselegante aos ouvidos cevados no racionalismo das traduções a partir do francês [...]”. E termina: “o tom brutalista de Bezerra calhou à história, borbulhante de zombarias”. Eis aí um progresso. Detecta-se um “estilo do tradutor”. Dá-se a ele um qualificativo: “brutalista”. Isso é recoA crítica de traduções | 73

nhecer que o autor do texto português é Paulo Bezerra, que ele fez uma análise do estilo de Dostoievski, que considerou o texto “brutalista”, que a ele procurou adaptar-se e que o fez com felicidade. Sem dúvida, um progresso que não deve estar dissociado da “borbulhante” atividade observada nos últimos tempos em torno da tradução, num momento em que estão sendo revistos conceitos fundamentais da atividade, tais como autoria, crítica e invisibilidade. Isso ainda vai dar samba.

___________________________________________ 1 Este texto foi lido na PUC-Rio em 5 de outubro de 2004, em uma mesa-redonda sobre a crítica de traduções realizada por ocasião do lançamento do periódico Tradução em Revista. 2 Pergunta: “Como você analisa o papel da imprensa no trabalho de crítica da tradução? Aliás, é possível haver crítica de tradução? Por quem ela seria feita?”

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Referências bibliográficas BENEDETTI, Ivone Castilho & SOBRAL, Adail (2003) Conversas com tradutores. São Paulo: Parábola. ECO, Umberto (2000) Os limites da interpretação. Trad. de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva.

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TRADUTTORE, TRADITORE: AS TRADUÇÕES BRASILEIRAS DOS ROMANCES-FOLHETINS NA IMPRENSA CARIOCA DO SÉCULO XIX1 Pina Coco

Na Corte do Rio de Janeiro do século dezenove, cintilante na imaginação provinciana, altamente modesta para padrões europeus, morosos paquetes se encarregam de trazer as novidades literárias estrangeiras, sobretudo as européias e, mais particularmente, as francesas. Uma vista d’olhos na lista da Livraria Garnier, em 1845, conduz-nos de surpresa em surpresa. A primeira, os títulos clássicos: Numa Pompílio, Viagens de Gulliver, Elogio de Marco Aurélio, Don Quixote, Os Luzíadas, La Rochefoucauld, Fenelon, Paulo e Virgínia — além de uma expurgada versão que preserva cultura e pudor, O Bouffon das meninas. Se considerarmos que, a essa data, Stendhal já publicou O vermelho e o negro, Balzac já encetou a Comédia humana e Hugo é um poeta consagrado, teremos uma idéia da magra província e das dificuldades de comunicação e circulação com que se deparam os leitores cariocas. Mas a lista, publicada n’O Mercantil, ainda nos dá outros títulos: Filho de minha mulher (três vol.), Dote de Suzaninha (dois vol.), Palácio d’Alberto (dois vol.), Aventuras de Pedrilho (dois vol.), Raymundo d’Aguiar (dois vol.), O solitário (dois vol.), A nobre veneziana, Bandoleiro dos Apeninos e outros mais, hoje completamente desconhecidos para nós, todos sem indicação de autor. Que livros são esses? De onde vieram, para onde foram? Quem foram seus leitores? De cerca de 60 mil habitantes, quando da chegada de D. João VI, em 1808, o Rio de Janeiro passa, na metade do século, a cerca de 200 mil, para atingir, em 1880, 400 mil — crescimento considerável de uma sociedade ainda basicamente rural e escravocrata, nação a se formar, já imersa na perene contradição de ter que estar a par e passo com o mundo ocidental civilizado sem possuir, no entanto, substrato histórico nem desenvolvimento: contradição do próprio continente, preguiçosas províncias a imitar Paris... A imprensa, marca essencial da modernidade, inaugura-se, como se sabe, com a vinda da Corte portuguesa, quebrando sua prudente proibição durante o governo colonial. A 10 de setembro de 1808, quatro meses após a criação da Imprensa Régia, sai o primeiro número da Gazeta do Rio de Janeiro, que será Traduttore, traditore: as traduções brasileiras... | 77

publicada às terças, quintas e sábados, uma vez submetida à censura monárquica. Em 1827 nasce o Jornal do Comércio, o mais lido, com 400 assinaturas. Esse número nos dá uma certa idéia da população leitora, certamente reduzida, e basicamente a mesma que tem acesso aos livros. Em 1832, sob a regência de Feijó, surgem os primeiros jornais ilustrados, com caricaturas políticas: O Martelo e A Cegarrega. Data de 1839 O Correio das Modas, jornal feminino ilustrado com gravuras de moda parisienses. Jornais são fundados e desaparecem; poucos resistem a mais de 10 anos, ou mesmo 5; por vezes, sua duração restringe-se a meses. Na base, já o problema financeiro, atrelado à honestidade de redatores e assinantes: A desconfiança que existe em todos os homens sensatos contra estas publicações é fundada na falta de cumprimento de palavra de seus redatores, que julgam que de pequenos jornais poderão retirar seus subsídios. A falta também inqualificável de senhores que aceitam de bom grado a assinatura, porém se recusam a pagar, é a causa da desaparição repentina de jornais literários. (Editorial do Archivo Literário, no 1, 08/08/1863)

Em novembro do mesmo ano, o Archivo suspende “mais de 100 assinaturas” por falta de pagamento, que passa a ter cobrança adiantada, prudente prática já adotada por outros. A desconfiança reina: “Qualquer um é redator/ assinante e dinheiro/ eis aí todo o valor/ s’uns usam lunetas,/ outros tem pernas cambetas” (Archivo Literário, no 11, nov. 1863). Gondim da Fonseca lista, em sua Bibliografia do jornalismo carioca, 1295 títulos de jornais e revistas — cifra que reflete a extrema mobilidade de títulos. Na verdade, ao consultar os Anais da Biblioteca Nacional tem-se a impressão de que qualquer grupo de mais de três pessoas, unidas em torno de um partido, de uma idéia ou de um ideal tem, como primeiro reflexo, fundar um jornal. Vendido por assinatura — quinzenal, anual, semanal ou trimestral — ainda que mais barato que o livro, o jornal será consumido por uma elite. Na falta de dados, pode-se imaginar uma pequena ampliação do número de leitores, bem como a inclusão de novos segmentos — o público feminino, as crianças e os analfabetos — graças a uma novidade francesa, rapidamente assimilada entre nós: o folhetim. Explicando: desde que, em 1836, Emile Girardin teve a brilhante idéia de lançar um jornal diário — La Presse — onde o rodapé, antes ocupado pelo folhetim-variedades, passa a exibir um romance seriado, o sucesso fez com que, dez anos depois, praticamente todos os jornais parisienses seguissem a receita, que, por sua vez, rapidamente chega ao Brasil. 78 | Tradução em Revista

As mulheres têm a palavra final na escolha do jornal a assinar, e suas razões são claras: “As damas tomam por tarifa de mérito jornalístico os folhetins e as notícias diversas... As raparigas decoram os romances... logo, para essas, um bom periódico é o que tem anúncios, folhetins e notícias diversas” (A Semana, 1856). Leituras coletivas em serões reúnem a família e os agregados no mesmo fascínio, a ouvir aventuras e desventuras de inocentes vítimas às voltas com empedernidos vilões, como bem aponta José de Alencar, recordando sua infância. Por fim, se o século não popularizou o jornal diário e de venda avulsa, transeuntes tomam carona nos jornais afixados à porta das tipografias: “No entanto há muita gente que vem aqui ler de graça A Semana. Ora, eu aprecio muito o interesse que esses senhores mostram pelo meu jornal; mas, palavra de honra, apreciaria muito mais se fossem todos assinantes” ( Legenda de caricatura em A Semana Ilustrada, no 5). O jornal brasileiro do século dezenove distancia-se muito do modelo atual, basicamente noticioso. Raros são os jornais cariocas que não contêm ficção, poemas, curiosidades científicas. A comunicação com o exterior é difícil e as notícias circulam com mais eficiência no boca-a-boca da cidade. O próprio conceito de notícia restringe-se, o mais das vezes, aos miúdos faits divers que sacodem a modorra provinciana: escravos fugidos, pequenos anúncios, crônicas teatrais perpassadas por intrigas de bastidores envolvendo, invariavelmente, as divas italianas e francesas de passagem, reclamos das condições de higiene da cidade...Vez por outra, uma atrasada novidade do “mundo lá fora”. O que realmente movimenta nossos periódicos é a política, apaixonada, polêmica, com intensa participação de redatores e leitores. No entanto, todos coincidem, no espaço cedido à literatura: traduções, romances nacionais, contos, sonetos, provérbios e aforismos. Nesse sentido, todas as publicações se confundem e nos confundem: nada mais enigmático para um leitor do início deste milênio que situar o conteúdo de um jornal ou revista do século dezenove, a partir da leitura de títulos fornecida pelos Anais da Biblioteca Nacional. Beija-flor, A Marmota na Corte, Iris, O Simplício remetem a códigos político-sociais que se perderam. Os subtítulos pouco auxílio trazem, e seu ecletismo nos deixa perplexos — ao acaso, tomemos o Iris, que se anuncia como “periódico de religião, belas-artes, ciências, letras, história, poesia, romances, notícias e variedades.” Explicitamente ou não, 90% dentre os jornais dizem-se “literários”, dando razão aos que nele vêem o sucedâneo e concorrente do livro. Mas, de que livro? Que literatura é essa, tão a gosto do público, que nenhum periódico se arrisca a dispensar? Traduttore, traditore: as traduções brasileiras... | 79

Apesar da produção nacional publicada em forma de folhetim, por capítulos — desde Memórias de um sargento de milícias — e passando por textos de maior ou menor extensão, nitidamente escritos para o jornal, com improvável publicação posterior em brochura, há um índice elevado e constante de traduções de folhetins, em sua maioria, franceses. Chegam às páginas dos periódicos com surpreendente rapidez: Os três mosqueteiros aparece no mesmo ano de seu lançamento; apenas dois anos separam a tradução de Os mistérios de Paris de sua publicação original. A ficção não seriada traduzida vem, o mais das vezes, representada por contos ou fragmentos de textos maiores: muito século XVIII; os primeiros românticos franceses (Lamartine, Chateaubriand); românticos alemães, sobretudo no gênero fantástico (Hoffmann: Novo Correio das Modas, 1852); o romance russo (Gogol, Puchkin: Museu Pitoresco, Histórico e Literário, 1848); parcos ingleses, exceção feita ao folhetim de sir Francis Trolopp, Os mistérios de Londres, n’O Mercantil,1845, com os títulos dos capítulos no original inglês. Quem traduz? Nem sempre é possível saber, pois em geral vem apenas a indicação “traduzido do francês”; por vezes, iniciais assinalam uma possível autoria. Delso Renault, em seu O Rio antigo nos anúncios de jornal (1969), mapeia a forte influência francesa na Corte, desde a queda de Napoleão, em 1815, que para cá impele republicanos e bonapartistas fugidos da Restauração que se inicia na França: muitos, premidos por questões políticas; outros, em busca de aventura e fortuna. É um traço constante a associação que os professores de línguas fazem com outras atividades: com o ensino de música, de canto, da dança, ou a tradução de quaisquer papéis escritos nas ditas três línguas de umas e outras.

Tratava-se, no caso, de um professor das línguas “inglesa, francesa e espanhola” que, na rua Mãe dos Homens (atual rua da Alfândega), se entrega à tarefa de tradução. A propósito, “o tradutor jurado da praça e intérprete da nação é nomeado pelo Regente, e o ofício não vence ordenado: o funcionário recebe das partes 1$200 por meia folha de tradução feita”. Não encontramos nenhuma referência quanto ao pagamento da tradução literária. É de se supor que os maiores jornais, mais sólidos financeiramente, contratassem seus tradutores, mantendo assim seus leitores a par das novidades parisienses: O Mercantil e o Jornal do Comércio, por exemplo, publicam Sue e Dumas em folhetim, anunciando a venda dos volumes, uma vez terminada a publicação. A venda também podia ser por etapas, à medida da publicação semanal, como é proposto para A guerra das mulheres, de Dumas: 80 | Tradução em Revista

As bem conhecidas obras deste autor poupam-nos quaisquer elogios que quiséssemos fazer desse interessante romance, uma de suas melhores produções, e cuja tradução principia a ser dada à luz em folhetos semanais de 56 páginas cada um, nítida impressão em bom papel. Três desses folhetos formarão um volume, e a obra consta de quatro. Vendem-se em casa dos senhores A. de F. Guimarães, rua do Sabão, no 26; Agra e Cia. rua da Quitanda, no 70; Teixeira e Cia., rua dos Ourives, no 21 e Paula Brito, praça da Constituição, no 64; 400 rs. cada folheto. (14/03/1846 )

Note-se o emprego do termo “folheto” para designar cada parte publicada, que por sua vez compreende vários capítulos. Não é outra a função tipográfica do rodapé, senão a de permitir a formação caseira do livro, costurando-se as partes: biblioteca dos pobres... Aos afortunados, oferece-se a edição encadernada, mas sempre após a publicação seriada, o que assegura o ineditismo do texto no jornal. Traduções são oferecidas: o mesmo O Mercantil, a propósito de Martim, o enjeitado ou Memórias de um criado grave, de Eugène Sue, informa que “Luís G.S. de Bivar deu começo à tradução deste interessante romance, e obriga-se a concluíla. Quem quiser entrar em transação a respeito, dirija-se...” (31/ 04/1847) Prudentes, os tradutores parecem produzir na medida em que têm publicação (e pagamento) assegurados. Assim, o Archivo Literário explica a seus leitores que a tradução caminhará semanalmente com o folhetim (20/09/1863). Se é difícil manter um jornal, o que dirá pagar regularmente traduções que arriscavam a se estender por meses a fio... O que sem dúvida explica a péssima qualidade de algumas, bem como bruscas interrupções de publicação, sem aviso prévio. Por vezes, uma satisfação é dada aos ansiosos leitores: “Um incidente que não podemos remediar prontamente inutilizou os originais do segundo volume...” Ou não: interrompe-se a publicação de A dama das camélias, de Dumas Filho, n’O Jornal das Senhoras de 17 de julho de 1853, logo substituída por A confissão de um suicida, com o subtítulo “romance” e sem maiores indicações. Apesar dos percalços, traduções são estimuladas: O Correio das Modas, em seu número 26, promete El verdugo, “traduzido de H. de Balzac”, com a seguinte nota: Temos a satisfação de apresentar às nossas leitoras um lindo romance, traduzido do francês por uma senhora. É com gáudio que convidamos as suas contemporâneas à imitação de seu proceder, enriquecendo as páginas do obediente jornalzinho com uma produção que necessariamente há de agradar. Traduttore, traditore: as traduções brasileiras... | 81

Traduttore, traditore... parece ser um consenso geral destinarem-se os romances às “amáveis leitoras”, as mesmas cujos olhos negros percorrem, palpitantes, os contos de Machado de Assis; para preservar-lhes a pureza, tudo é autorizado: Encetamos hoje a publicação do romance do sr. Dumas Filho, intitulado “A dama das camélias”. Por vezes trepidamos em dar publicidade a este romance na língua vernácula, porque, sendo obra escrita dissolutamente, nos pareceu que sua versão transgrediria os preceitos que nos temos imposto na escolha dos artigos que saem a lume neste jornal, mas, tendo a pessoa que nos ofereceu a presente versão feito habilmente alguns cortes e supressões nele, nos resolvemos a admiti-lo assim nas colunas do Jornal das Senhoras. Concluindo, agradecemos ao tradutor incógnito o valioso presente que nos fez, e recomendamos a todos a leitura desta história verdadeira e contemporânea cuja versão, se não é servil, se não traduz palavra por palavra, dificilmente encontrará no original uma idéia, um pensamento, que no português não tenha a frase equivalente. (Jornal das Senhoras, 03/07/1853)

Terão os “cortes e supressões” sido tímidos em demasia, o que explicaria a súbita interrupção acima aludida? Quanto às razões do anonimato do tradutor, bem como o real significado do “presente” ao jornal, só podemos avançar especulações. Ressalve-se ser O Jornal das Senhoras um dos mais sérios e bem cuidados — o que não é regra — com um corpo editorial todo feminino e dotado de surpreendente coragem de opiniões, o que transparece na observação sobre a diferença que opõe uma “tradução servil”, ao pé da letra, à que preserva a fidelidade ao espírito do original. O mais provável a justificar “cortes e supressões”, assim como a interrupção sem explicações, terá sido a reação puritana do público leitor (suspeitamos, masculino, que já acusara, em carta, as redatoras de “não serem mulheres”, pois “escrevem como homens”...) Nem sempre a censura é moral: a tradução, sem hesitar, corrige o original, como o de A filha do general, “tradução do inglês por M. de C.”, no Correio das Modas, n.24, 1839: “Lemos esta novela em uma famosa revista, e por ser muito bonita a traduzimos; todavia cortamos alguns pormenores desnecessários.” Mas há tradutores que resistem à tentação do corte, seja ele moral ou literário: é o caso de M. E. C. Menezes, que traduz, para o mesmo Correio das Modas, Um semblante rosado e um semblante enrugado, de Anaïs Segalas, em 1839: “O seguinte romance poderia ser mais breve: porém pena fora cortá-lo, porque a magia de seu estilo é admirável. Grande moralidade de 82 | Tradução em Revista

seu conteúdo se depreende, e as nossas amáveis leitoras se admirarão da perversidade de uma inveja.” Com o sucesso assegurado dos grandes folhetins franceses, O Mercantil não hesita em traduzir uma verdadeira “reportagem” sobre Eugène Sue, já um paratexto, como hoje os das revistas especializadas em telenovelas, com dados biográficos, gostos pessoais, descrição de sua casa e ambiente de trabalho (n.12, 12/01/1846): “Julgamos que não desagradará a nossos leitores o seguinte artigo, extraído do Courier de l’Europe, por contar-se nele alguns pormenores sobre a vida do ilustre autor de O judeu errante.” A sofreguidão pelo “último Dumas” pode atingir níveis inesperados, a ponto de surgir uma continuação apócrifa de um de seus maiores sucessos, com vendagem garantida. A história é saborosa e merece ser citada. O Jornal do Comércio publicara O conde de Monte-Cristo, de Dumas e anuncia, a seguir, sua continuação, A mão do defunto. Um brasileiro de passagem por Paris resolve mostrar ao romancista como é popular no Brasil. O resultado foi uma carta, que o Jornal do Comércio, com fair play (ou muito provavelmente, obrigado pelos editores do autor) publica na íntegra, original e tradução: Monsieur, J’apprends qu’on publie à Rio, c’est à dire dans une des villes de l’Amérique du Sud où je tines le plus à être connu, à cause de la bienveillance que m’ont toujours temoigné les lecteurs que j’ai dans cette belle et poétique ville, un roman que l’on fait passer pour être de moi et que l’on annonce comme la suite de Monte-Christo. Je n’ai jamais fait et, quoique bien souvent sollicité de le faire, je ne ferai probablement jamais le suite de ce livre, etc... ( in Gondim da Fonseca, op. cit.)

Tamanho é o sucesso de autores e personagens dos romances-folhetins entre nós, que cronistas escandalizados constatam toda uma cidade hipnotizada, a girar em torno de um dos mais famosos personagens criados e a esquecer a língua pátria, transformados em parisienses: Rocambole! Rocambole! Rocambole! Tal é a palavra por toda a parte, e, pela maneira que nos persegue, já vai cheirando à “amolação”. Nos botequins, pelas ruas, nos hotéis, tudo é “Rocambole”. Daqui a dois dias haveremos de ver um “dandy” entrar em um “restaurant”, sentar-se, segundo as leis da etiqueta, em uma cadeira em frente de uma mesa, torcer o bigode e pedir ao “garçon” “filet” com “petit pois au Rocambole”, “mouton au Rocambole”, “du veau sauce tomate au Traduttore, traditore: as traduções brasileiras... | 83

Rocambole” e pedir enfim em francês todos os pratos a Rocambole! Banhos, pomadas, sabonetes, charutos, tudo há de ter o rótulo da moda. Decididamente, o senhor Ponson du Terrail vai à posteridade! O “Jardim de Flora”, compreendendo a época, quis aguçar a curiosidade do nosso público, levando à cena as aventuras do tal senhor da moda. “Rocambole” instalou-se em seus cartazes em letras garrafais, e parece, a julgar pela estréia, que não sairá de lá tão cedo! Mas, o que o tal jardim tem aguçado mais, não é por certo a curiosidade do público que o freqüenta: é a curiosidade das filhas de família que lêem todos os dias o folhetim do “Jornal do Comércio”, cada qual mais doida para chegar ao fim da história. E a curiosidade de uma mulher é como uma mariposa ao redor da luz: não descansa enquanto não se satisfaz. Rocambole, portanto, já vai se tornando em todos os sentidos o terror dos pais de família. (Bazar Volante, no 22, 17/ 02/ 1867).

Paris ainda é o centro cultural da Europa, lançador das modas, e o chique definitivo é parisiense. O jornal, veículo do momento, permite à distante província viver o burburinho francês, e em 1867 suspiram por Rocambole, unificadas, moçoilas parisienses e cariocas... Embora desconheça a origem do doce que leva seu nome, arrisco-me a aventar que date dessa voga, até por ser um pão-de-ló enrolado, com recheio doce, como são enroladas as aventuras do personagem e recheadas de lances “rocambolescos”. Os jornais cariocas do século XIX, no acervo da Biblioteca Nacional, ainda foram pouco explorados, considerando a riqueza que contêm: haveria muito a dizer sobre traduções, e uma pesquisa voltada exclusivamente para o tema — o que não foi meu intento — certamente traria à tona bem mais que minhas poucas observações.

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Texto apresentado no painel “A Literatura traduzida no Brasil do século XIX”, que integrou as atividades do VII Encontro Nacional de Tradutores e I Encontro Internacional de Tradutores, realizado na USP em setembro de 1998.

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Referências bibliográficas FONSECA, Gondim (1941) Biografia do jornalismo carioca. Rio de Janeiro: Quaresma Editora. RENAULT, Delso (1969) O Rio antigo nos anúncios de jornais. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora.

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O USO DE CORPORA PARA O ESTUDO DA TRADUÇÃO: OBJETIVOS E PRESSUPOSTOS Carmen Dayrell

1 – Introdução Um corpus é geralmente definido como uma coleção de textos selecionados e agrupados de acordo com critérios claramente definidos e especificados (Atkins et al., 1992; Baker, 1995; Eagles, 1996; Kenny, 2001:22). Tais critérios são estabelecidos de acordo com os objetivos e finalidades para os quais o corpus é compilado. Na lingüística moderna, é natural considerar que esses textos estejam em formato eletrônico, podendo ser analisados de maneiras diversas, automática ou semi-automaticamente (Baker, 1995; Kenny, 2001:22). Baker (1995) esclarece ainda que um corpus pode conter tanto linguagem escrita quanto falada, além de oferecer a possibilidade de inclusão de textos das mais diversas fontes, como por exemplo, de autores ou tópicos diferentes. Corpora representam, portanto, a disponibilidade de um grande volume de dados empíricos, e a incorporação de ferramentas computacionais para análise desses textos revolucionou o estudo da linguagem. Assim sendo, a Lingüística de Corpus, ramo da Lingüística que utiliza corpora para o estudo da linguagem, abriu novas perspectivas e a possibilidade de explorar e investigar, em grande escala, regularidades e padrões inerentes à linguagem. Esta é, no entanto, uma área extremamente vasta, e uma discussão detalhada sobre o assunto vai além dos objetivos deste artigo. Focalizamos aqui a utilização de ferramentas e metodologias da Lingüística de Corpus especificamente para o estudo da tradução. O principal objetivo é, portanto, discutir a importância, benefícios e aplicações teóricas e pedagógicas do uso de corpora nos Estudos de Tradução, bem como tratar questões importantes referentes à compilação de corpora e à exploração deste valioso potencial disponível para os pesquisadores e teóricos da tradução. Mais especificamente, este artigo visa a abordar os objetivos e propostas da incipiente sub-disciplina Estudos de Tradução com base em Corpora.

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2 – O nascimento da disciplina A incorporação de ferramentas e metodologias da Lingüística de Corpus para o estudo da tradução iniciou-se nas áreas da disciplina que utilizam recursos computacionais, tais como a terminologia e a tradução automática. Como explica Baker (1995), o uso de corpora teve um impacto favorável no campo da terminologia, onde termos deixaram de ser extraídos de listas pré-estabelecidas e passaram a ser obtidos a partir de textos autênticos. No campo da tradução automática, Baker (1995) destaca o uso de dados empíricos como ponto-chave para o aprimoramento dos sistemas de tradução; corpora computadorizados são atualmente usados por lingüistas na elaboração e/ou reformulação de regras lingüísticas e também pelos sistemas de tradução como uma fonte de conhecimento direta. As metodologias com base em corpora também encontraram terreno fértil no ramo pedagógico da disciplina Estudos da Tradução, como ferramenta poderosa para auxiliar no treinamento de tradutores e na prática tradutória. Como destaca Olohan (2004:176), além de extremamente úteis na extração de terminologia, corpora eletrônicos podem ser usados para identificar estratégias e soluções adotadas por tradutores profissionais, assim como para avaliar a estrutura textual e discursiva, e ainda para examinar as convenções relacionadas ao tipo de texto ou gênero. Ademais, corpora podem também ser usados para investigar o estilo do autor, ou seja, identificar os artifícios literários e características lexicais, gramaticais e estilísticas que sejam recorrentes e mereçam ser tratados como uma estratégia deliberada por parte do autor (ibidem, p.180). No entanto, um impacto ainda mais significativo da utilização de corpora computadorizados nos Estudos da Tradução deu-se a partir da sugestão original e inovadora da teórica Mona Baker (1993, 1995 e 1996) de utilização das metodologias e ferramentas da Lingüística de Corpus para investigar o fenômeno da tradução como um evento comunicativo per se, “moldado pelos seus próprios objetivos, pressões e contexto de produção” (Baker, 1996:175, tradução minha). Com a Lingüística de Corpus, Baker (1993) explica, pesquisadores e teóricos de tradução teriam em mãos os recursos necessários para explorar e pesquisar a natureza e as características específicas dos textos traduzidos, permitindo assim a redefinição dos principais objetivos, anseios e âmbito de abrangência dos estudos tradutórios. A influência do uso de corpora nos Estudos da Tradução como uma área acadêmica de pesquisa é bem ilustrada na afirmação de Baker (1993:235): 88 | Tradução em Revista

Grandes corpora oferecem aos teóricos de tradução uma oportunidade única para observar seu objeto de estudo e explorar o que o faz diferente de outros objetos de estudo, tais como a linguagem em geral ou mesmo qualquer outra forma de interação cultural. Eles possibilitam explorar também, em uma escala muito maior do que já foi possível até então, os princípios que governam o comportamento tradutório e as limitações sob os quais ele opera. Aí sim estão os objetivos de qualquer investigação teórica: definir e explicar o seu objeto de estudo. (Tradução minha).

Para Baker (1993 e 1996), essa nova abordagem reflete o desenvolvimento de paradigmas nos Estudos da Tradução que prepararam o terreno e contribuíram para uma mudança fundamental no principal foco da disciplina, dos textos-fonte para os textos traduzidos, dando uma atenção especial ao sistema e à cultura de chegada. Estas novas abordagens começaram a questionar a supremacia do texto de origem sobre o texto de chegada, além de reavaliarem a noção de equivalência até então vigente, segundo a qual “traduções deveriam procurar ser o mais equivalente possível aos originais, equivalência esta sendo entendida basicamente em termos de categorias semânticas ou formais” (Baker, 1993:235-6, tradução minha). Nesse sentido, é importante ressaltar a contribuição significativa dos Estudos Descritivos da Tradução (DTS), em particular os trabalhos de Gideon Toury (1995), ao sugerirem a mudança de uma perspectiva prescritiva para uma orientação descritiva. Como explica Kenny (2001:49), o principal objetivo dos Estudos Descritivos da Tradução é descrever as “traduções como elas realmente ocorrem, e buscar explicar as características observadas nas traduções em relação aos contextos literários, culturais e históricos nos quais elas são produzidas” (tradução minha), contrastando assim com abordagens anteriores cuja principal preocupação era determinar o que uma tradução ideal deveria procurar alcançar. Dentro desta nova perspectiva, o foco de atenção passa a ser direcionado para a cultura de chegada, reservando-se uma ênfase especial aos dados empíricos. Assim sendo, a Lingüística de Corpus e os Estudos da Tradução, considerando-se a perspectiva dos DTS, compartilham interesses comuns. Como explica Olohan (2004:16), ambas disciplinas adotam uma orientação descritiva em relação ao seu objeto de estudo. Ambas insistem na autenticidade dos dados, valorizando a linguagem realmente utilizada ao invés da intuição. Ambas se concentram em regularidades como normas de comportamento, apoiandose no pressuposto de que ao identificar o típico, freqüente e regular, podemos também investigar o atípico e não-usual. Ambas disciplinas visam descrever a linguagem com base em análises quantitativas e qualitativas dos dados. O uso de corpora para o estudo da tradução... | 89

No entanto, a Lingüística de Corpus e os Estudos da Tradução também revelam diferenças fundamentais. A primeira e principal diferença refere-se ao foco de interesse de cada uma destas disciplinas. A Lingüística de Corpus está interessada no estudo da linguagem em geral e na descrição de suas características. Os teóricos de tradução, por outro lado, estão interessados em tradução, tanto como processo como produto. O objetivo central dos Estudos da Tradução é portanto entender e explicar o processo tradutório e explorar a natureza dos textos traduzidos. Divergências também aparecem em relação à forma como os textos traduzidos são percebidos por cada disciplina. Tradicionalmente, a Lingüística de Corpus sempre mostrou uma tendência a menosprezar a linguagem traduzida, considerando-a desviante, distorcida e não representativa da linguagem. Conseqüentemente, os textos traduzidos são geralmente excluídos dos corpora de referência. A posição de Teubert (1996:247) ilustra bem esta visão negativa atribuída aos textos traduzidos: Traduções, por melhores e quase perfeitas que sejam (mas raramente são), irão sempre dar uma imagem distorcida da língua que elas representam. Os lingüistas nunca devem confiar em traduções para descrever uma língua. É exatamente por esta razão que traduções não são incluídas nos corpora de referência. Ao invés de representar a língua nos quais elas são escritas, as traduções são um espelho da suas respectivas línguas de partida. (Tradução minha).

Uma visão totalmente distinta é compartilhada por teóricos da tradução (dentre outros, Even-Zohar, 1990 [1978]; Toury, 1995; Baker, 1993, 1996, 2000 e 2004). Embora reconheçam que a linguagem traduzida seja realmente diferente da linguagem não-traduzida, argumentam e enfatizam que existem diversas razões e justificativas para tais diferenças. As traduções são produzidas em um contexto diferente, sob pressões diferentes, com limitações diferentes, além de refletirem influências e motivações diferentes. A afirmação de Baker (1996:177) reflete mais claramente o pensamento deste grupo: Dado que toda linguagem é padronizada e que essa padronização é influenciada pela finalidade para a qual a linguagem é usada e pelo contexto no qual ela é usada, a padronização dos textos traduzidos tem que ser obrigatoriamente diferente daquela dos textos produzidos originalmente em uma língua; a natureza e as pressões do processo tradutório certamente deixam traços na linguagem produzida por tradutores. A tradução é uma atividade lingüística realizada em um contexto único, distinto de uma produção textual normal, inclusive de textos produzidos por estudantes de uma língua estrangeira. (Tradução minha). 90 | Tradução em Revista

Portanto, na perspectiva dos Estudos da Tradução, a tradução é um evento comunicativo genuíno e as características específicas e próprias dos textos traduzidos merecem ser analisadas, exploradas e explicadas. Estas são, portanto, as principais aspirações e objetivos da incipiente subdisciplina Estudos de Tradução baseados em Corpora.

3 – Tipos de corpora para o estudo da tradução Como mencionado anteriormente, corpora são compilados com base em critérios específicos, estabelecidos de acordo com os objetivos e finalidades de cada projeto. No caso dos corpora desenvolvidos para o estudo da tradução, os critérios propostos pela Lingüística de Corpus necessitam ser ajustados para que possam atender às necessidades dos teóricos de tradução e permitir a investigação de características específicas dos textos traduzidos. Por exemplo, uma atenção especial deverá ser dada ao critério referente às línguas envolvidas e ao contexto de produção, particularmente em relação às características dos tradutores, tais como se são profissionais ou aprendizes, se traduzem para a língua materna ou a partir dela, etc. (Baker, 1995). Esta seção apresenta os tipos de corpora usados nos Estudos da Tradução, enfatizando os benefícios e aplicações destes para os ramos teórico e pedagógico da disciplina. Vale ressaltar que a terminologia empregada para se referir aos tipos de corpora usados para o estudo da tradução ainda não se encontra totalmente estabelecida; conseqüentemente, diferentes termos têm sido empregados por diferentes projetos de pesquisa. Adotamos aqui a terminologia utilizada por proeminentes teóricos da área de tradução (Baker, 1995; Kenny, 2001; Olohan, 2004). Três tipos de corpora são discutidos, a saber: (1) corpora multilíngües, (2) corpora paralelos, e (3) corpora comparáveis. 3.1 - Corpora multilíngües Um corpus multilíngüe é composto por duas ou mais coleções de textos produzidos originalmente em suas respectivas línguas, ou seja, dois ou mais corpora monolíngües de línguas diferentes, compilados de acordo com os mesmos critérios e especificações (Baker, 1995). Como exemplo, Baker (ib.) cita o Projeto de Lexicografia Multilíngüe do Conselho Europeu, cujo objetivo era identificar regularidades no contexto textual de itens lexicais equivalentes em corpora de sete línguas européias: inglês, alemão, sueco, italiano, espanhol, húngaro e servo-croata. Para o inglês, por exemplo, foi utilizado o corpus Cobuild Bank of English, desenvolvido pela Universidade de Birmingham (Inglaterra). Já para o sueco, o projeto utilizou um corpus de sueco contemporâneo com 20 milhões de palavras, compilado pela Universidade de Gotemburgo (Suécia). O uso de corpora para o estudo da tradução... | 91

Um exemplo da utilização de um corpus multilíngüe com aplicações diretamente relacionadas à área de tradução são os estudos contrastivos de Berber-Sardinha (1999 e 2000) sobre padronização lexical no português e no inglês. Apoiando-se nos trabalhos de Stubbs (1995a, 1995b e 1996) sobre perfil e prosódia semânticos1 no inglês, Berber-Sardinha (1999 e 2000) examina esses mesmos aspectos para itens correspondentes do português brasileiro, desenvolvendo uma abordagem contrastiva para descrever perfis e prosódia semânticos do inglês e português. Os resultados mostram semelhanças e diferenças importantes entre padrões lexicais do inglês e do português, revelando inconsistências nos atuais dicionários bilíngües. Os dados são extraídos de dois grandes corpora de referência do inglês e português, o BNC (British National Corpus) e o Banco de Português respectivamente. O BNC é um corpus de inglês contemporâneo em linguagens escrita e falada, contendo aproximadamente 100 milhões de palavras2 . O Banco de Português, compilado pela PUC/ São Paulo, é considerado o maior corpus de português brasileiro no momento, com aproximadamente 233 milhões de palavras3 , também incluindo tanto a linguagem escrita quanto a falada (Berber-Sardinha, 2004). Além de sua contribuição valiosa para a lingüística contrastiva, especialmente no que se refere à lexicografia bilíngüe, os corpora multilíngües oferecem ainda outras aplicações e benefícios para á área de tradução. No campo da tradução automática, por exemplo, este tipo de corpus pode ser usado como fonte de conhecimento, contribuindo para um melhor desempenho dos sistemas computadorizados de tradução. Os corpora multilíngües servem também como um recurso valioso para o ensino e treinamento de tradutores, por permitirem o acesso a características e padrões lingüísticos em seu contexto natural e disponibilizarem evidências empíricas de itens e estruturas equivalentes em idiomas diferentes (Baker, 1995). Como explica Lindquist (1999), este tipo de corpus permite ao tradutor identificar o uso real de um determinado item lexical ou colocação da língua de chegada em um contexto específico. Neste sentido, os corpora multilíngües, particularmente aqueles compostos por textos técnicos e especializados, oferecem benefícios práticos para o ensino da tradução, já que podem ser usados como uma ferramenta valiosa para ajudar tradutores aprendizes a se familiarizar com padrões recorrentes da língua de chegada e para a extração de terminologia (Kenny, 1998). Embora reconheça a importância dos corpora multilíngües no campo pedagógico dos Estudos da Tradução, Baker (1995) questiona a utilidade deste tipo de corpus para a elucidação de questões teóricas da disciplina. Para Baker (1995:233), o pressuposto básico de que “existe uma forma natural de expres92 | Tradução em Revista

sar qualquer coisa em qualquer língua, e de que tudo que precisamos é encontrar a forma natural de expressar isso na língua A e língua B” (tradução minha), não deixa espaço para que os textos traduzidos sejam tratados como uma atividade lingüística independente e distinta, diferente daquela dos textos produzidos originalmente na mesma língua. Assim sendo, os corpora multilíngües não oferecem a possibilidade de investigação da natureza dos textos traduzidos ou do processo tradutório. A proposta de Baker (1993, 1995 e 1996) é, portanto, de uma mudança efetiva do foco dos estudos teóricos de tradução, direcionando-o para o sistema e cultura de chegada e dando ênfase aos textos traduzidos. É neste sentido que os corpora paralelos e comparáveis desempenham um papel fundamental para o desenvolvimento da disciplina de Estudos da Tradução. 3.2 - Corpora paralelos Baker (1995:232) propõe o termo corpus paralelo para se referir a dois conjuntos de textos: um conjunto de textos em uma determinada língua de origem e um outro conjunto composto por versões traduzidas destes mesmos textos para um outro idioma. Os corpora paralelos são geralmente bilíngües, mas podem também ser multilíngües; ou seja, incluir traduções de um mesmo texto-fonte para diversos idiomas (Kenny, 2001:62; Olohan, 2004:25). Um bom exemplo deste tipo de corpus é o projeto COMPARA4 , que é composto por um conjunto de textos originalmente escritos em inglês e de suas respectivas traduções para o português, e por um outro conjunto de textos originalmente escritos em português e suas respectivas traduções para o inglês (Frankenberg-Garcia e Santos, 2002 e 2003). O COMPARA é portanto um corpus paralelo bidirecional, ou seja, o português é incluído tanto como língua de origem quanto como língua de chegada. Segundo Frankenberg-Garcia e Santos (ib.), o corpus inclui diversas variantes da língua portuguesa (européia, brasileira, asiática e africana) e também traduções de um mesmo texto-fonte para diferentes variantes do português e do inglês. Além disso, não foram impostas restrições quanto à data de publicação, ou seja, o corpus possibilita a inclusão de traduções de um mesmo texto-fonte publicadas em épocas diferentes. Em 2004, o COMPARA continha textos do gênero de ficção apenas, compreendendo um total de 2 milhões de palavras. Um dos principais objetivos de um corpus paralelo é possibilitar a identificação de um determinado padrão ou unidade nas línguas de partida e de chegada simultaneamente. Técnicas de alinhamento são utilizadas para que seja possível estabelecer ligações entre os textos de origem e de chegada. Os O uso de corpora para o estudo da tradução... | 93

corpora paralelos servem como uma ferramenta preciosa para avaliar o comportamento traducional de um determinado par de idiomas, além de serem extremamente úteis na investigação do relacionamento entre padrões lexicais e sintáticos nas línguas de origem e de chegada, e de ocorrências isoladas de “tradutorês” (Kenny 1998). Como os corpora multilíngües, os corpora paralelos também desempenham uma função importante no treinamento de tradutores, no desenvolvimento de sistemas de tradução automática e na lexicografia bilíngüe (Baker, 1995; Kenny, 1998). No entanto, para Baker (1995), a mais valiosa contribuição dos corpora paralelos para a disciplina Estudos da Tradução é possibilitar a mudança de uma perspectiva prescritiva para uma perspectiva descritiva. Como explica Baker (ib.), os corpora paralelos fornecem evidências empíricas de estratégias e alternativas adotadas por tradutores para solucionar dificuldades e obstáculos encontrados na prática tradutória. Tais evidências, além de servirem como um valioso recurso pedagógico para o treinamento de tradutores, podem ser também extremamente úteis na “investigação de normas tradutórias em contextos históricos e sócio-culturais específicos” (Baker, 1995:231, tradução minha). Um bom exemplo de como um corpus paralelo pode ser usado na investigação da influência do processo tradutório no processamento e produção da linguagem é o estudo de Dorothy Kenny (2001) sobre criatividade lexical em tradução. Tendo como principal objetivo abordar o processo de “normalização”5 lexical em tradução, o estudo examina a tradução de itens lexicais criativos do alemão para o inglês, visando determinar se estes itens foram substituídos por formas mais convencionais na língua de chegada. Para Kenny (2001:3132), itens lexicais criativos são entendidos como palavras ou colocações nãousuais e atípicas, que revelem criatividade no uso da linguagem. Os dados são extraídos de um corpus paralelo bilíngüe, contendo textos experimentais originalmente produzidos em alemão e suas respectivas traduções para o inglês, totalizando aproximadamente um milhão de palavras em cada sub-corpus. O ponto de partida é o texto de origem em alemão, e o primeiro passo é selecionar itens ou colocações de acordo com os seguintes critérios: (1) ocorrer apenas uma vez no corpus; (2) para os itens ou colocações recorrentes, ter sido usado por apenas um determinado autor (Kenny, 2001:128-129). A convencionalidade, ou não, dos itens ou padrões selecionados é avaliada de acordo com a freqüência dos mesmos em um corpus de referência do alemão (Corpus Mannheimer) e com a intuição de falantes nativos de alemão. Uma vez considerados criativos, examinaram-se as respectivas traduções desses itens lexicais para o inglês, com o objetivo de avaliar se estes são “normalizados”, isto 94 | Tradução em Revista

é, se o tradutor traduz um item lexical (ou colocação) criativo do texto de origem por um item lexical (ou colocação) igualmente criativo da língua de chegada (p.142-188). A criatividade dos itens traduzidos para o inglês é avaliada com base em um corpus de referência do inglês (BNC). Kenny (2001:187) observa que itens lexicais criativos que ocorreram apenas uma vez no subcorpus de textos em alemão tendem a ser normalizados em suas respectivas traduções para o inglês. Por outro lado, itens que apesar de recorrentes são peculiares a um determinado autor não mostraram uma tendência a ser traduzidos por uma forma mais convencional da língua de chegada. A tendência à normalização tampouco é evidente na tradução das colocações (p.207-208). No entanto, Kenny adverte, no caso dos itens recorrentes mas peculiares a um determinado autor, todos os exemplos analisados foram traduzidos por um único tradutor (p.187). No caso das colocações, o estudo examina apenas aquelas de um único item lexical (Auge, em alemão, e sua tradução correspondente em inglês, eye), sendo que a análise de outros itens talvez possa gerar resultados diferentes (p.207-208). Kenny (2001:210) conclui com a ressalva de que, apesar das evidências empíricas de normalização lexical, o estudo também mostra que a normalização não é uma prática automática na tradução de itens lexicais criativos do texto de origem. Na realidade, os dados revelam a engenhosidade e criatividade de diversos tradutores.

3.3 - Corpora comparáveis O terceiro tipo de corpus proposto por Baker (1995:234) para o estudo da tradução é o comparável, que é um corpus monolíngüe composto por dois sub-corpora: um sub-corpus de textos traduzidos para uma determinada língua, a partir de uma ou mais línguas-fonte, e um outro de textos não-traduzidos, ou seja, textos originalmente produzidos na língua em questão. Portanto, na concepção de Baker (ib.), o sub-corpus traduzido consiste em textos produzidos por tradutores, e o não-traduzido é composto por textos nessa mesma língua, mas não produzidos via tradução. Baker (1995:234) complementa que esses dois sub-corpora “devem cobrir um domínio, variedade de linguagem e período de tempo semelhantes, e ter tamanhos comparáveis” (tradução minha). Em outras palavras, para que seja possível compará-los, é essencial que esses dois sub-corpora tenham sido compilados de acordo com os mesmos critérios e especificações, e sejam de tamanho semelhante. A grande maioria dos estudos de tradução que têm por objetivo comparar textos traduzidos e não traduzidos de uma mesma língua baseia-se no inglês O uso de corpora para o estudo da tradução... | 95

(dentre outros, Laviosa-Braithwaite, 1996; Olohan, 2002 e 2003; Mutesayire, 2005). Neste caso, a comparação é geralmente feita entre o Corpus de Inglês Traduzido (TEC - Translational English Corpus)6 e um sub-corpus do BNC (British National Corpus). O TEC foi elaborado e compilado pelo Centre for Translation and Intercultural Studies (CTIS) da Universidade de Manchester e consiste em uma coleção de textos traduzidos para o inglês a partir de diversas línguas fonte. Em 2004, o TEC continha aproximadamente 8 milhões de palavras, incluindo traduções das seguintes línguas-fonte: francês, italiano, espanhol (europeu, sul-americano e centro-americano), português (europeu e brasileiro), alemão, polonês, galês, húngaro, turco, sérvio, sueco, japonês, russo, norueguês, finlandês, árabe, tâmil, tailandês, hebraico e chinês (Olohan, 2004:60; Mutesayire, 2005). O corpus é dividido em 4 seções: ficção, biografia, revistas de bordo e artigos de jornais, sendo ficção o gênero predominante, com 80% dos textos. O TEC inclui traduções publicadas a partir de 1983; todos os tradutores são falantes nativos de inglês ou têm o inglês como língua de uso habitual; todos os textos foram incluídos na íntegra (Olohan, ib.; Mutesayire ib.). Corpora comparáveis estão também disponíveis para o finlandês e para o sueco. O Corpus de Finlandês Traduzido (CFT), desenvolvido pela Escola Savonlinna de Estudos da Tradução (Joensuu, Finlândia), é uma coleção de textos contemporâneos em finlandês traduzido e não-traduzido. O CFT contém aproximadamente 9,6 milhões de palavras: 5,8 milhões de palavras em finlandês traduzido e os restantes 3,8 milhões de palavras em finlandês nãotraduzido (Olohan, 2004:60-61). No corpus traduzido estão incluídas traduções para o finlandês de textos-fonte em inglês, russo, alemão, francês, espanhol, holandês, norueguês, sueco, húngaro e estoniano. Todos os textos foram publicados entre 1995 e 2000 e, em termos de gênero, o CFT é dividido em quatro seções: ficção, prosa acadêmica, ciência popular e literatura infantil (Olohan, ib.). Já o corpus comparável de sueco, compilado pela Universidade de Gotemburgo (Suécia), é composto por 75 romances publicados em sueco no ano de 1976, sendo dividido em duas seções: um sub-corpus de textos escritos originalmente em sueco e o outro sub-corpus de textos traduzidos para o sueco, a grande maioria traduções do inglês (Kenny, 2001:59). Um outro exemplo a ser citado é o Corpus Comparável de Português Brasileiro (CCPB), que é composto por textos em português brasileiro traduzido e não-traduzido. Inicialmente elaborado e compilado como parte de uma pesquisa de doutorado (Dayrell, 2005), o CCPB é um projeto a ser expandido com o objetivo de propiciar o desenvolvimento de outros estudos baseados em 96 | Tradução em Revista

corpora de português brasileiro. O CCPB contém apenas textos literários publicados no Brasil a partir de 1980, sendo que foi dada prioridade às obras publicadas a partir de 1990. Todos os livros incluídos no corpus foram considerados best-sellers no Brasil durante o período analisado, conforme as listas de best-sellers publicadas pela revista Veja entre 1991 e 2001. Ademais, considerou-se apenas a literatura adulta, ou seja, o corpus não inclui textos classificados como literatura infantil ou infanto-juvenil. Em termos de gênero, o CCPB contém textos de ficção e auto-ajuda. A opção por esses dois gêneros deve-se ao fato de que estes são os gêneros mais populares no Brasil no período analisado (Veja 1996, 2001a e 2001b) e, portanto, os que mais têm probabilidade de oferecer um número razoável de textos traduzidos e não traduzidos. Assim sendo, o CCPB é composto por quatro sub-corpora: ficção traduzida, ficção não-traduzida, auto-ajuda traduzida e auto-ajuda não-traduzida. O corpus contém um total aproximado de 2 milhões de palavras; cada um dos 4 subcorpora contém aproximadamente meio milhão de palavras. Todos os textos foram incluídos na íntegra e tentou-se, na medida do possível, diversificar a seleção de textos em termos de autores, tradutores e editoras. Para a seleção de textos traduzidos, além dos critérios mencionados acima, considerou-se também a língua de origem da tradução, tendo sido selecionadas apenas traduções a partir de textos escritos originalmente em inglês. Traduções indiretas – ou seja, aquelas feitas via outra tradução e não a partir do texto fonte original – não foram incluídas. Todos os tradutores são falantes nativos do português brasileiro, e foi dada prioridade para as traduções cujos textos de origem também tenham sido publicados a partir de 1980. Uma diferença importante entre os corpora paralelos e os comparáveis é que esses últimos não são usados para comparar línguas de partida e de chegada e, portanto, não têm por objetivo identificar normas tradutórias, estratégias adotadas por tradutores nem exemplos de “tradutorês”. Como esclarece Baker (1995:235), a principal contribuição de um corpus comparável é permitir a investigação de características “que sejam restritas aos textos traduzidos ou que ocorram com uma freqüência consideravelmente mais alta ou mais baixa nos textos traduzidos” (tradução minha) que nos textos não traduzidos. Um corpus comparável robusto, composto por uma diversificada gama de autores e tradutores, assim como traduções de diversas línguas fonte, possibilita a identificação de características que são específicas dos textos traduzidos, independentemente da influência da língua de origem ou das preferências estilísticas de tradutores individuais. Como afirma Baker (1996:178), ao compararem textos traduzidos e não-traduziO uso de corpora para o estudo da tradução... | 97

dos de uma mesma língua, os pesquisadores de tradução podem finalmente “identificar tipos de comportamento lingüístico que são específicos dos textos traduzidos, padrões de comportamento lingüístico que, em outras palavras, são gerados pelo processo de mediação durante a tradução” (tradução minha). Para ilustrar como os corpora comparáveis podem ser usados na investigação das características dos textos traduzidos, vale citar o trabalho pioneiro de Laviosa-Braithwaite (1996), cujo objetivo é investigar o processo de “simplificação”7 em tradução. Os textos traduzidos e não-traduzidos são analisados sob três aspectos: variedade lexical, carga de informação e tamanho de sentenças (Laviosa, 2002:59-64). Os dados são extraídos de um corpus comparável do inglês, consistindo de uma coleção de textos traduzidos para o inglês (TEC) e um outro sub-corpus de textos em inglês não-traduzido (extraído do BNC). Cada um destes sub-corpora contém aproximadamente um milhão de palavras e inclui dois gêneros: textos literários (ficção e biografia) e textos jornalísticos (Laviosa, ibidem). A variedade lexical é analisada sob três perspectivas: proporção entre palavras de alta e baixa freqüência, proporção de headwords (nesse caso, as primeiras 108 palavras mais freqüentes no corpus) e quantidade de lemas. Os resultados mostram que proporção entre palavras de alta freqüência e as palavras de baixa freqüência é mais alta no sub-corpus traduzido que no sub-corpus não-traduzido; a proporção de headwords é maior no sub-corpus traduzido, ou seja, o nível de repetição de palavras mais freqüentemente usadas é mais elevado no sub-corpus traduzido; e a lista de headwords do sub-corpus traduzido contém um número menor de lemas. Estes resultados são interpretados como indicadores de uma tendência dos textos traduzidos a apresentar menos variedade lexical que os textos não traduzidos. A carga de informação é examinada em termos de densidade lexical, ou seja, a proporção entre itens lexicais e itens gramaticais. Os resultados mostram uma tendência de a densidade lexical ser mais baixa nos textos traduzidos que nos textos não traduzidos. Em relação ao tamanho das sentenças, a média é menor para os textos traduzidos do que para os textos não traduzidos apenas no gênero jornalístico. Nesse estudo, LaviosaBraithwaite (1996) observa dados que apontam para uma tendência dos textos traduzidos a apresentar uma linguagem mais simplificada que os textos não traduzidos. No entanto, Laviosa (2002:63) adverte, dois fatores talvez possam ter influenciado nos resultados: a análise é baseada em um corpus de tamanho limitado e a grande maioria dos textos traduzidos consiste em traduções de textos fonte em línguas românicas. 98 | Tradução em Revista

4 – Considerações finais Neste artigo, discutimos os principais objetivos e pressupostos da disciplina Estudos de Tradução com base em Corpora (ETC), dando ênfase às aplicações teóricas e pedagógicas do uso de corpora para o estudo da tradução. As aplicações são ilimitadas e valiosas; porém, em comparação com outras áreas de pesquisa da linguagem, muito ainda está por ser feito. Esperamos, portanto, que num futuro próximo possamos usufruir do grande potencial dessa nova área de pesquisa.

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Perfil semântico refere-se “ao teor da colocação, coligação ou prosódia semântica, definido a partir de generalizações a respeito do conteúdo semântico dos itens envolvidos no padrão” (Berber Sardinha, 1999). Prosódia semântica refere-se à conotação – positiva, negativa ou neutra – resultante da associação de itens lexicais. Por exemplo, o verbo ‘causar’ tende a se associar a itens com uma conotação negativa (problemas, danos, morte, mortes, prejuízos, etc.) (ibidem). 2 Mais informações sobre o BNC estão disponíveis no site: http://info.ox.ac.uk/bnc (acessado em julho/2005). 3 Mais informações sobre o Banco de Português estão disponíveis no site: http://lael.pucsp.br/corpora/ bp/conc/index.html (acessado em julho/2005). 4 COMPARA é parte de um projeto para o processamento computacional do português, coordenado pelo Centro de Recursos Português (Linguateca). Mais informações sobre o COMPARA estão disponíveis no site: http://www.linguateca.pt/COMPARA/ (acessado em julho/2005). 5 O termo normalização foi proposto por Baker (1996:176) para indicar uma “tendência [de tradutores] a ajustar-se aos padrões e práticas que são comuns na língua de chegada, chegando até mesmo a exagerá-los” (tradução minha). 6 Mais informações sobre o TEC estão disponíveis no site: http://www.llc.manchester.ac.uk/Research/ Centres/CentreforTranslationandInterculturalStudies/ (acessado em julho/2005). 7 O termo simplificação foi proposto por Baker (1996:176) para indicar “a idéia de que tradutores inconscientemente simplificam a linguagem, mensagem ou ambas” (tradução minha).

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MEMÓRIA DE TRADUÇÃO: AUXÍLIO OU EMPECILHO?1 Adriana Ceschin Rieche

1. Introdução Nos últimos anos, várias ferramentas de auxílio à tradução foram desenvolvidas e divulgadas como vantajosas. Essas ferramentas são resultado de uma nova visão de cooperação entre computadores e tradutores humanos, em oposição à idéia da substituição do tradutor por sistemas de tradução automática, muito popular nas décadas de 1950 e 1960. Diante do papel cada vez mais importante desempenhado pelas ferramentas de auxílio à tradução no trabalho de tradutores profissionais, a discussão das conseqüências de sua utilização assume especial interesse. O presente estudo concentra-se em apenas uma dessas ferramentas: os sistemas de memória de tradução, que surgiram prometendo ganhos de produtividade, maior consistência e economia, uma vez que são bancos de dados que armazenam traduções para reaproveitamento posterior com base em graus de equivalência propostos pelos sistemas, como será explicado mais adiante. Meu objetivo foi analisar os principais fatores que levam a problemas de qualidade nestes sistemas e apresentar sugestões para melhorar o controle de qualidade realizado, ressaltando a necessidade de manutenção2 e revisão das memórias para que realmente sirvam ao propósito de serem ferramentas e não empecilhos para o tradutor. A proposta do trabalho não é apresentar uma tipologia de erros, mas sugerir critérios para orientar os processos de revisão e manutenção dos sistemas que talvez possam vir a ser incorporados por empresas e tradutores autônomos como mais um recurso para controlar a qualidade das memórias. A questão central que norteou o estudo é que a qualidade das memórias utilizadas em determinado projeto de tradução é fundamental para a qualidade do texto final traduzido. O interesse pelo tema surgiu com o uso de dois destes sistemas de memória de tradução no meu trabalho como tradutora profissional (Trados Translator’s Workbench e Wordfast) e a percepção de que, ao lado das vantagens anunciadas pelos fabricantes, esses programas também trazem alguns problemas Memória de tradução: auxílio ou empecilho? | 103

durante o processo tradutório. Em minha experiência de 15 anos como tradutora, primeiro como autônoma e depois como sócia de firma de tradução, trabalho principalmente com textos técnicos e comerciais de grandes empresas internacionais, que a cada dia exigem maior proficiência de seus tradutores em termos de qualidade, preço e prazo de entrega. É positiva a utilização de uma ferramenta que realmente auxilie no trabalho de tradução – aumentando a qualidade final por meio de maior consistência terminológica e permitindo ao tradutor não só cobrar preços mais competitivos devido ao reaproveitamento de traduções anteriores como atender aos prazos cada vez mais exíguos dos projetos por causa do aumento de produtividade. Os fabricantes anunciam seus produtos como a solução ideal para a tradução de grandes volumes de texto, e o tradutor muitas vezes fica perdido diante das possibilidades oferecidas por ferramentas desse tipo. É inegável que o advento dos sistemas de memória de tradução realmente trouxe inúmeras vantagens quando comparado ao que existia antes: a cada nova versão ou a cada nova atualização de um produto era necessário traduzir desde o início todo o material. Algumas vantagens da utilização dos sistemas de memória de tradução propostas pelos fabricantes e desenvolvedores dos programas são: maior consistência (tradução igual de trechos repetidos); maior produtividade (devido ao aumento de velocidade); maior controle e padronização de terminologia; criação de banco de dados paralelo revisado; maior economia de custos. A idéia por trás disso é que se a tradução estiver correta uma vez, ela poderá ser reutilizada em vários textos. No entanto, o inverso também é verdadeiro: se um erro passar despercebido, ele será propagado. Esta é uma questão relevante, uma vez que em nome de maior velocidade e consistência, muitas vezes a qualidade acaba sofrendo. Um único erro presente na memória, feito por um único tradutor, pode ter repercussão em vários outros arquivos sendo processados por outros tradutores. Ao discutir essa questão, é preciso considerar duas perspectivas: quando o tradutor desenvolve sua própria memória e quando o tradutor recebe uma memória criada por vários outros tradutores. No primeiro caso, o controle da qualidade fica realmente mais fácil, uma vez que o próprio tradutor é quem faz a revisão e atualização do conteúdo da memória. Evidentemente, isso não significa necessariamente que a memória estará livre de erros; simplesmente o controle é mais fácil. Já quando a memória é desenvolvida por vários tradutores, o controle se torna mais difícil. Acaba havendo uma certa resistência por parte de alguns profissionais em aceitar as “traduções ruins” feitas por outros 104 | Tradução em Revista

tradutores em nome da consistência com versões anteriores de produtos. Muitos chegam a reescrever inteiramente as sugestões propostas pela memória, aumentando o tempo necessário para a conclusão da tarefa e não tirando proveito justamente do propósito específico para o qual o sistema foi desenvolvido. Nesse contexto, a revisão e a manutenção da memória exigem especial atenção. São esses, em última instância, os recursos que garantem que a memória cumpra sua função. Cada tradutor tem sua própria maneira de fazer a revisão e/ou a manutenção, sem qualquer sistematização. Em muitos casos, inclusive, esse processo simplesmente não existe. Além disso, cada empresa de tradução tem seu próprio processo para garantir a qualidade de seus trabalhos, utilizando formulários de controle específicos, e os fabricantes das ferramentas também sugerem formas de fazer a manutenção do sistema, por meio de comandos ou janelas especiais. No entanto, esses métodos parecem não ser suficientes para garantir a qualidade das memórias, uma vez que o problema persiste. Embora possa parecer óbvio falar em qualidade, este não é um conceito simples. A questão da qualidade é muito discutida em vários meios e sob diferentes enfoques, e permeia nossas atividades diárias. Fabricantes, clientes, fornecedores, usuários, independentemente do setor ou área de atuação, todos querem produtos (ou serviços) de qualidade. Todos procuram valer-se da tecnologia como forma de assegurar a qualidade. Isso se reflete nos padrões de certificação da qualidade desenvolvidos internacionalmente para atender à demanda por produtos e serviços adequados. No entanto, é preciso sempre perguntar: qualidade para quem e sob que perspectiva? Considerando que o julgamento acerca da qualidade de um produto implica um processo de avaliação do mesmo sob determinados critérios, esse conceito é aqui analisado à luz de teorias contemporâneas sobre avaliação de traduções em geral, tentando investigar que contribuições elas podem trazer para a avaliação da qualidade dos sistemas de memória de tradução. Essas teorias se desenvolveram sobretudo no meio acadêmico como forma de avaliar o desempenho de alunos e aprendizes de tradução por meio de medidas idealmente objetivas, que podem ser aplicadas ao cenário profissional. Considerando que os sistemas de memória de tradução foram desenvolvidos sobretudo para atender às demandas por ganhos de produtividade e consistência terminológica do mercado de localização de software, em função da necessidade de atualização constante e reaproveitamento de versões anteriores de produtos de software em geral, é este o segmento que mais utiliza essas ferramentas e é nesse contexto que foi efetuada a análise de dados a ser apresentada posteriormente neste trabalho. Memória de tradução: auxílio ou empecilho? | 105

Em linhas gerais, a localização consiste na tradução e adaptação de um software ou de um produto da Web (aqui entendido como um site ou serviço que pode ser utilizado diretamente via Internet) para o local em que serão utilizados. Isso inclui o aplicativo de software propriamente dito, com seus códigos de programação, textos de ajuda e imagens, por exemplo, e toda a documentação relacionada, como manuais de usuário ou guias de introdução. Até o advento da Internet e da World Wide Web, um projeto típico de localização compreendia a tradução e a engenharia completa do aplicativo de software, seus arquivos de ajuda, um conjunto de manuais impressos, e cartões de referência e registro incluídos na caixa do produto. Muitos projetos de localização ainda seguem esse modelo. Entretanto, com as novas tecnologias de publicação e distribuição baseadas na Web, hoje a localização também inclui a tradução e a adaptação de sites inteiros. As memórias de tradução selecionadas para análise neste trabalho são provenientes de projetos de localização de software e não de sites da Web. A escolha foi feita unicamente com base na disponibilidade do material e não por uma característica específica que diferencie um tipo de texto do outro. Acredito que tanto a metodologia quanto os critérios usados para análise podem ser perfeitamente aplicados às memórias criadas a partir da localização de sites da Web. Foram selecionados exemplos de diferentes memórias, tanto aquelas de minha própria autoria, desenvolvidas ou utilizadas durante meu trabalho como tradutora ou revisora em projetos de localização, quanto as criadas por terceiros e gentilmente cedidas por clientes. O objetivo é mostrar que os problemas são os mesmos, independentemente do tipo de texto ou do tamanho da memória, e propor formas de solucioná-los. É importante ressaltar que o presente estudo não se propõe a comparar os diferentes sistemas existentes hoje no mercado, nem indicar o melhor, principalmente porque essas tecnologias evoluem muito rapidamente e cada tradutor tem suas próprias preferências pessoais, que se refletem nas escolhas das ferramentas. Além disso, muitas vezes a ferramenta a ser usada é determinada pelo cliente, o que obriga os tradutores a conhecerem várias delas. Outro aspecto a ser considerado é que os pontos de vista aqui assumidos são os de uma tradutora autônoma que se deparou com o problema e não as de uma empresa de localização ou mesmo de um fabricante de ferramentas de memória, os quais certamente teriam abordagens diferentes para o mesmo problema. Discutir memória de tradução sempre traz à tona questões polêmicas ainda sem solução, que tendem a se complicar à medida que o sistema de memória se populariza e passa a ser usado por um maior número de tradutores 106 | Tradução em Revista

e em variados tipos de texto. Será que as vantagens propostas são de fato vantagens? É possível confiar inteiramente na sugestão apresentada pelo sistema de memória? Até que ponto a prática de pagamento proporcional ao grau de equivalência proposto pela memória é justa? E quando a equivalência de 100% não é 100%? Como fazer com que a ferramenta seja de fato útil? E como fica a questão ética nos casos em que a memória fornecida pelo cliente está abaixo do padrão de qualidade satisfatório e prejudica o resultado final do trabalho? Em que medida o tradutor deve realizar tarefas pelas quais não está sendo pago? Para tentar responder a essas perguntas e também servir de base para traçar um perfil de utilização dessas ferramentas por parte dos tradutores brasileiros, um questionário foi elaborado e enviado a tradutores autônomos e funcionários de empresas de tradução, bem como a empresas de localização. O questionário incluiu, entre outras, perguntas com a finalidade de verificar se eram utilizados sistemas de memória de tradução – em caso afirmativo, atendendo a que função, para que tipo de texto, em que setor; se foi exigência do cliente; como é feita a manutenção e a revisão; em caso negativo, por que não, e se havia intenção de vir a utilizar um sistema de memória no futuro. Tendo enfrentado dificuldades para fazer a revisão e a manutenção das minhas próprias memórias, pude comprovar, a partir dos resultados do questionário, que essas dificuldades também são sentidas por diversos tradutores. É fácil introduzir (e propagar) erros nestes sistemas. Os resultados dos questionários mostram que não há um consenso ou um padrão que funcione como referência para a revisão ou manutenção das memórias. Muitos tradutores expressaram opiniões semelhantes nesse sentido. Este é um campo novo e há muito ainda por fazer. Existem poucas pesquisas sobre memória de tradução, e as que existem são principalmente de cunho comparativo, como análises de custo-benefício, e tratam de questões ligadas à interface do usuário. No entanto, alguns estudos de especialistas da indústria serviram de base para as reflexões aqui propostas e abordam, entre outros temas, os seguintes: a questão da autoria ou a quem pertence a memória (ao cliente final, à agência de tradução ou ao tradutor?); a prática, por parte de alguns clientes, de tarifas diferenciadas, dependendo do grau de equivalência apresentado na memória em relação ao projeto atual; e as possíveis desvantagens da utilização destes sistemas – indução ao erro, limitações impostas pela segmentação, falta de visão do texto final, necessidade de aprender nova ferramenta e possíveis problemas de formatação. Memória de tradução: auxílio ou empecilho? | 107

Apesar da variedade de perspectivas, todos os estudos estão preocupados com o melhor aproveitamento desses sistemas de memória, de modo a fazerem jus às vantagens anunciadas e esperadas pelos usuários. Nesse sentido, apresentam sugestões para quem está pensando em usar essas ferramentas. A questão da qualidade é ressaltada em todos, principalmente porque melhorar a qualidade da tradução é um dos argumentos fortes defendidos pelos fabricantes dos sistemas. Esses estudos, entretanto, apenas indicam possíveis problemas, sem maior aprofundamento. Nenhum deles discute as conseqüências da utilização de uma memória de má qualidade ou com manutenção ruim, nem propõe soluções que possam ser integradas ao processo de trabalho. Hoje, essa questão assume especial importância em vista do tamanho dos projetos e do número de tradutores envolvidos. A percepção de que esse volume tende a aumentar com o tempo faz com que o problema assuma ainda maior relevância. Nesse contexto, a proposta deste trabalho é fazer uma apresentação bastante abrangente dos usos deste tipo de ferramenta no mercado de localização, chamando a atenção para os problemas de qualidade que já existem. O maior reflexo disso são as respostas ao questionário distribuído. Acredito que a sistematização desses problemas será uma contribuição para futuros estudos que possam ser realizados neste campo. Como já indicado, foram selecionados segmentos de memórias de tradução de diferentes áreas para mostrar que o tipo de problema é o mesmo e que os erros serão propagados, se não forem identificados e eliminados. A análise foi qualitativa, uma vez que não foi minha intenção, como já observei, quantificar ou categorizar os tipos de problemas, mas tão somente chamar a atenção para a sua existência, propondo formas de solucionar os problemas detectados. Somente por meio de um processo sistemático de revisão e manutenção das memórias é possível identificar e eliminar os problemas, fazendo com que de fato os sistemas de memória de tradução sirvam ao propósito de serem ferramentas de auxílio, e não um empecilho, ao trabalho do tradutor.

2. O surgimento dos sistemas de memória O tamanho e a complexidade crescentes dos projetos de localização impulsionaram o desenvolvimento e a consolidação da indústria correspondente que movimenta milhões de dólares todos os anos. Nessa indústria, os prazos são extremamente importantes e os volumes de trabalho, muito grandes, envolvem vários tradutores em projetos multilíngües. Os produtos têm ciclos de vida muito curtos e são constantemente atualizados, com o surgimento de novas versões praticamente todos os anos, baseadas nas versões 108 | Tradução em Revista

anteriores. Para lidar com a crescente complexidade desses projetos, tanto em termos de volume de palavras quanto de componentes envolvidos, foram desenvolvidas ferramentas de auxílio à tradução que se tornaram essenciais para a realização do trabalho. Os clientes já exigem o uso de uma ou de outra ferramenta específica, e cada vez mais os tradutores precisam estar cientes dessa realidade. Consideram-se ferramentas de auxílio à tradução qualquer programa de computador ou sistema de referência on-line que auxilie os tradutores nas suas tarefas, fornecendo um ambiente propício à realização de traduções com alta qualidade, eficiência e rapidez. Dicionários, glossários on-line e bancos de dados terminológicos são exemplos de algumas ferramentas desse tipo, que podem variar no grau de automação. Outros exemplos são ferramentas específicas para localização, desenvolvidas para facilitar a tradução da interface de usuário dos softwares. Algumas dessas ferramentas são proprietárias, ou seja, desenvolvidas pelos próprios clientes para serem usadas na localização de seus produtos, como o LocStudio da Microsoft, o IIDS da Intel ou o Domino Global Workbench da Lotus, e não estão disponíveis comercialmente. Os sistemas de memória de tradução, desenvolvidos em meados da década de 1990 para atender à exigência de maior produtividade da indústria de software, destacam-se entre as ferramentas de auxílio à tradução. Tais sistemas foram especificamente projetados para reciclar traduções anteriores, eliminando o trabalho repetitivo e automatizando as pesquisas terminológicas. Sua principal característica consiste em armazenar em um banco de dados especial as frases ou partes de frases traduzidas, para reutilização local ou uso compartilhado em rede. A memória de tradução (a ser explicada em detalhes na próxima seção) funciona fazendo a correspondência entre os termos e as frases anteriormente traduzidos e armazenados no banco de dados com os do texto original que está sendo traduzido. Se achar o termo ou a frase entre os dados já armazenados em seu banco de dados, o sistema propõe a tradução encontrada no texto de destino, deixando a critério do tradutor utilizá-la ou não. Em termos lingüísticos e de formatação, essa correspondência pode ser idêntica (100%) ou aproximada (fuzzy match, de 1-99%). A seguir está um exemplo ilustrativo, para indicar como o tradutor deve proceder na revisão da sugestão proposta pela memória: Ability to listen and understand in order to receive and respond to requests from translators and clients. Capacidade de ouvir e compreender para receber e responder pedidos de informação de visitantes e usuários. Memória de tradução: auxílio ou empecilho? | 109

O número indica que a frase em português foi sugerida pelo sistema como tradução da frase original com 72% de grau de equivalência. Cabe ao tradutor revisar a sugestão, tratando a expressão “de informação de visitantes e usuários” como se estivesse errada e substituindo pela tradução correta (“de tradutores e clientes”), conforme a frase original. Assim, a tradução a ser armazenada na memória é: “Capacidade de ouvir e compreender para receber e responder pedidos de tradutores e clientes”, agora com equivalência de 100%. As vantagens do reaproveitamento de traduções anteriores na indústria de software são óbvias e constantemente enfatizadas pelos fabricantes das ferramentas de memória, em função do grande volume de texto – alguns projetos chegam à ordem de 5 milhões de palavras ou mais – e da freqüência das atualizações neste setor, com novas versões sendo lançadas todos os anos. Alguns exemplos de elementos que podem ser reaproveitados no processo de localização de arquivos de ajuda incluem: versões anteriores da ajuda on-line; versões localizadas de outros arquivos de ajuda on-line do mesmo fabricante; versões localizadas de outros tipos de documentação do mesmo fabricante, como, por exemplo, documentação impressa; e terminologia dos glossários de interface do usuário do software. 2.1. A memória de tradução explicada Os sistemas de memória de tradução baseiam-se na segmentação do texto de origem. Um segmento é um elemento de texto considerado pelo aplicativo como a unidade a ser traduzida, delimitado por marcas de pontuação específicas como ponto final, dois-pontos, marcas de parágrafo etc. Toda vez que um segmento é traduzido, ele é automaticamente armazenado na memória de tradução. Assim, a memória passa a ser um banco de dados de pares de segmentos de texto de origem e destino, chamados de unidades de tradução (TUs - Translation Units). O objetivo da segmentação é criar unidades de tradução que permitam correspondências úteis entre os textos de origem e destino, oferecendo o maior índice de reaproveitamento possível. Não existe limite de tamanho definido para uma unidade de tradução: pode ser uma sigla ou abreviatura, uma palavra, ou um parágrafo inteiro. Dependendo do tipo e do estilo de texto, os segmentos podem ser mais longos ou mais curtos e, em geral, os sistemas permitem que o tradutor defina as regras de segmentação mais apropriadas a cada texto. Além dos segmentos de origem e destino, os sistemas de memória de tradução armazenam informações específicas, denominadas atributos, que incluem 110 | Tradução em Revista

a data de criação, o nome do usuário ou criador, o cliente, o número do projeto e o principal domínio ou campo do conhecimento de que trata a tradução. Este recurso é bastante útil, principalmente para fins de manutenção do banco de dados, uma vez que permite a aplicação de filtros, como data de criação ou projeto específico. A memória pode ser construída durante a fase de tradução propriamente dita, ou seja, no momento em que o tradutor estiver usando o sistema de memória para traduzir o arquivo, bem como antes ou após a tradução. Assim que determinado segmento é traduzido, a unidade de tradução é armazenada na memória e estará disponível no banco de dados. Se o mesmo segmento aparecer novamente, a tradução anterior será sugerida automaticamente para o tradutor. Este tem a opção de aceitar a sugestão ou modificá-la (ou seja, editála), caso o contexto exija. O sistema pode propor correspondências perfeitas (100%) ou aproximadas (1-99%). Um bom sistema de memória de tradução sempre realçará as diferenças com códigos de cores e percentagens. No caso do exemplo visto na seção anterior, “from translators and clients” apareceria realçado para indicar que este trecho é diferente do que está armazenado na memória (“Ability to listen and understand in order to receive and respond to requests for information from visitors and users.”). Além disso, é possível criar uma memória de tradução a partir de textos traduzidos anteriormente sem o uso de uma ferramenta de memória de tradução. Este processo é chamado de alinhamento. Consiste na comparação automática entre os arquivos eletrônicos de origem e destino, fazendo a correspondência entre as frases, criando as respectivas unidades de tradução. Evidentemente, o tempo necessário para alinhar os documentos depende inteiramente da estrutura dos textos – quanto maior a semelhança, mais fácil será o processo, uma vez que, para cada segmento de origem, o sistema precisa ter um segmento de destino. Embora o processo seja automático, exige revisão manual em função dos possíveis problemas resultantes das diferenças entre original e tradução. Outra possibilidade de utilização é, antes do início do trabalho, aplicar uma memória já existente a um ou mais arquivos para tradução em lote, isto é, sem a interferência do tradutor. Este processo é chamado de pré-tradução. Nessa modalidade, o sistema substituirá automaticamente as correspondências encontradas no banco de dados, conforme o grau de equivalência definido pelo usuário (100%, 50-99% ou 0-49%), e o tradutor trabalhará nos segmentos novos para os quais o sistema não encontrou correspondência alguma e revisará todos os segmentos com correspondência inferior a 100%. Memória de tradução: auxílio ou empecilho? | 111

Um recurso encontrado em todos os sistemas de memória é o de estatística e análise, que permite ao usuário contar o número de palavras e segmentos em um ou mais documentos e determinar o número de repetições dentro do próprio documento ou entre os documentos. O sistema também indica os diferentes graus de equivalência entre os segmentos, como já mencionado. Este recurso é precioso, uma vez que permite ao usuário identificar se a ferramenta de memória de tradução será ou não útil na realização do trabalho, em função da quantidade de repetições, e ajuda a fazer uma estimativa do tempo necessário para sua conclusão. Justamente por isso, ele é amplamente utilizado nas fases de planejamento anteriores ao início da tradução, para programar o número de tradutores que farão parte do processo. Atualmente, as agências de tradução também utilizam o resultado dessas análises para definir os gastos com os tradutores, uma vez que o preço por palavra é estabelecido em uma relação inversamente proporcional ao grau de correspondência. Por exemplo, a empresa pode optar por não pagar pelas palavras identificadas como 100% equivalentes e pagar o preço integral para o que for 0%. De 0 a 100%, há uma escala de descontos sobre o preço de palavra. As conseqüências desse sistema de pagamento podem ser ruins, uma vez que o tradutor não examinará as coincidências de 100%, que, muitas vezes, podem conter erros, como veremos mais adiante. A capacidade de gerenciamento de terminologia está integrada na maioria dos sistemas de memória de tradução. Consiste basicamente em glossários que são criados ou importados durante a tradução e permite o reconhecimento automático de termos para incorporação no texto traduzido. Alguns sistemas, como o Trados Translator’s Workbench, permitem o uso separado de seu aplicativo de gerenciamento terminológico, o Multiterm, para o desenvolvimento de bancos de dados multilíngües que contêm não só os termos de origem e destino, mas também categorias gramaticais, definições e contexto. O Wordfast também inclui ferramentas para criação de glossários, mas como trabalha com formatos abertos de arquivos (Unicode e texto sem formatação), seus glossários e memórias de tradução não precisam de ferramentas exclusivas para serem consultados ou modificados. No Trados Translator’s Workbench e no Wordfast existe um recurso precioso para o trabalho do tradutor – o Concordance. Esse recurso permite que o tradutor procure na memória de tradução qualquer texto selecionado do segmento de origem. O Translator’s Workbench apresenta o número de frases da memória que contenham texto semelhante ou idêntico ao do texto da busca. Por exemplo, se o tradutor quiser saber qual foi a tradução dada para deter112 | Tradução em Revista

minada expressão ou termo técnico em um projeto específico, basta marcar a expressão ou o termo desejado e selecionar o comando “Concordance”, que apresentará em uma janela à parte todas as frases do original armazenadas na memória de tradução que contenham a expressão ou o termo em questão e suas respectivas traduções. Além disso, o termo selecionado para busca é realçado em amarelo para fácil identificação. Este é um recurso fundamental para manter a consistência terminológica durante o trabalho e também muito importante para a revisão e a manutenção do sistema de memória. Ao terminar a tradução, alguns programas exportam os arquivos traduzidos para o formato do texto original. O Trados Translator’s Workbench e o Wordfast, por meio do comando “Clean Up”, removem o formato de texto oculto criado pelos programas durante o processamento da ferramenta, e só a tradução permanece. Como podem ocorrer problemas também nessa etapa, é importante ler o texto traduzido sem as marcações dos programas de modo a identificar possíveis falhas na segmentação ou problemas de formato. No caso do exemplo da seção anterior, a frase em inglês estaria em formato de texto oculto, ou seja, texto sublinhado com tracejado fino; após o procedimento de limpeza, apenas o texto em português permaneceria.

3. Avaliação de traduções: contribuição dos modelos funcionalistas O enfoque funcionalista no campo dos estudos tradutórios parece ser o que melhor dá conta da localização, sobretudo por incorporar em seu modelo o solicitante da tradução e suas orientações; por relativizar o conceito de equivalência, sem abandoná-lo completamente; e por estar mais em sintonia com as questões práticas do que os outros modelos analisados. Por ter sido desenvolvida no meio acadêmico, a abordagem funcionalista sempre teve como foco avaliar o desempenho de alunos e aprendizes de tradução. Autoras como Katharina Reiss, Juliane House e Christiane Nord desenvolveram modelos funcionalistas para avaliação de traduções, estabelecendo uma tipologia de traduções com base na relação existente entre texto de origem e tradução. Cada modelo tem características e nomenclatura próprias, com classificações e subclassificações, na tentativa de dar conta de todas as possíveis combinações dessa relação. Reiss (ver Nord, 1997) correlaciona tipos de texto com método e objetivo da tradução; House (2001) utiliza os conceitos de tradução manifesta (overt translation) e tradução velada (covert translation) para descrever duas estratégias de tradução possíveis; e Nord (1997) distingue dois tipos básicos de processos de tradução: documentário (documentary translation) e instrumental (instrumental translation). Outros estudiosos como Memória de tradução: auxílio ou empecilho? | 113

Hans G. Hönig e Paul Kussmaul (ver Nord, 1997) aplicam a abordagem funcionalista ao ensino da tradução e demonstram como as estratégias funcionalistas podem levar a soluções adequadas aos problemas tradutórios. Outros, ainda, utilizam o modelo funcionalista para a avaliação de traduções literárias, como Margret Ammann, ou de textos com propósitos específicos, como Jacqueline D’Hulst (em ambos os casos, ver Nord, 1997). Apesar das diferentes perspectivas, esses modelos parecem ser bastante interessantes para definir a estratégia de tradução mais adequada, dependendo do tipo de texto em questão. Uma característica comum a todos os modelos é que eles, além de considerarem os aspectos lingüísticos mais abrangentes (estruturais, textuais ou discursivos), têm uma visão mais pragmática – ou seja, valorizam os aspectos culturais ou pragmáticos da tradução que independem da língua – e enfatizam a natureza específica da competência tradutória, em contraste com a proficiência lingüística. Foge ao escopo do presente estudo fazer uma descrição e análise detalhadas dos diferentes modelos de avaliação de tradução de cunho funcionalista. Da mesma forma, não é minha intenção tentar aplicar nenhum desses modelos diretamente à tradução no contexto da localização, porque não raro, pela própria natureza dos projetos, um só texto de origem serve como modelo a ser utilizado para geração de uma série de outros textos assemelhados, como manuais, páginas da Web e material publicitário, e o tradutor trabalha a partir de fragmentos desse conteúdo que não são ordenados por critérios de coerência textual, muitas vezes sem saber onde a tradução será efetivamente publicada. Assim, a determinação ou a classificação das funções dos textos de origem e de destino não teriam muita utilidade nesse tipo de prática. Além disso, a utilização de ferramentas de tradução, como os sistemas de memória, por exemplo, é outro fator que dificulta a aplicação direta dos modelos funcionalistas de avaliação nestes textos, uma vez que o tradutor, quando utiliza um programa desse tipo, não tem a visão do texto todo, pois trabalha com segmentos, nem dispõe de autonomia para mudar a estrutura geral do texto ou a seqüência de frases em determinado parágrafo. No entanto, a meu ver, o mérito das abordagens funcionalistas para a avaliação de traduções é relativizar a noção de erro, que é definido em termos do objetivo do processo ou produto da tradução. Assim, determinada expressão pode não ser inadequada em si mesma, mas se tornar inadequada com relação à função de comunicação que deve atingir, levando em conta o solicitante da tradução, o contexto da sua produção e as especificidades de cada trabalho. Essa perspectiva mais abrangente parece ser adequada para aplicação na análise 114 | Tradução em Revista

da qualidade das memórias de tradução, uma vez que é difícil estabelecer padrões de qualidade a priori e com validade irrestrita, sem levar em conta o projeto no qual a memória foi desenvolvida, as especificações do cliente/ solicitante da tradução e a terminologia adequada. Suzanne Lauscher, da Universidade de Innsbruck, na Áustria, em “Translation quality assessment”, artigo que investiga os motivos pelos quais as abordagens teóricas à avaliação de traduções são difíceis de aplicar na prática, coloca em perspectiva a própria tarefa de avaliar. Dependendo do contexto de sua realização, a avaliação terá propósitos diferentes: examinar a qualificação de um tradutor para determinada tarefa; verificar se o tradutor cumpriu os requisitos de qualidade definidos pelo cliente; informar os alunos sobre seu progresso; informar o público sobre a qualidade da tradução de uma nova obra de ficção etc. Também depende do tipo de público a que se dirige – tradutores profissionais, público-alvo do texto de destino, clientes ou estudantes de tradução (Lauscher, 2000:163). Nos cursos de formação de tradutores, a avaliação de um texto traduzido leva em conta aspectos relacionados tanto à leitura/interpretação do textofonte (TF) quanto à redação do texto na língua-meta (LM) e tem o objetivo claro de medir o desempenho dos alunos. Tradicionalmente, é possível identificar dois tipos de problema nos textos traduzidos: - “erros primários” (ou graves): de natureza binária, ou seja, acerca dos quais não há a menor dúvida, decorrem, geralmente, da falta de domínio da língua-fonte ou da língua-meta; - “erros secundários” (ou impropriedades): escolhas pouco plausíveis ou inadequadas, seja do ponto de vista lingüístico ou contextual. Essas categorias amplas permitem ao avaliador direcionar o processo de avaliação, definindo um número máximo de erros primários ou secundários considerados aceitáveis para aquele texto, e determinar se a tradução atende ou não aos critérios estabelecidos. Alinhado ao enfoque funcionalista, Brian Mossop, tradutor e professor da York University School of Translation, em Toronto, no Canadá, em Revising and editing for translators (2001), obra sobre revisão e edição de textos voltada para tradutores, contrapõe o processo de avaliação de traduções – que ocorre após a entrega do trabalho ao cliente com a finalidade de verificar se determinado texto atende aos padrões de qualidade exigidos, não constituindo parte do processo de produção da tradução – ao processo de revisão ou controle da qualidade – termos utilizados pelo autor como sinônimos e representando tarefas realizadas antes da entrega da tradução ao cliente final com o objetivo Memória de tradução: auxílio ou empecilho? | 115

explícito de eliminar os erros encontrados. Além disso, Mossop aborda questões importantes para a avaliação do trabalho feito por tradutores profissionais: a quantificação dos erros, sua categorização em erros primários e secundários, o peso relativo de cada tipo de erro e da própria avaliação e a importância do cliente no processo (Mossop, 2001:150-154). No caso específico das memórias de tradução, a tarefa de avaliação tem como objetivo verificar se determinada memória está livre de erros, possibilitando sua reutilização em futuros projetos de localização. Contudo, para garantir que a memória possa ser reutilizada, não basta a identificação dos erros, nem mesmo sua classificação em categorias (primários ou secundários, por exemplo); é preciso haver um processo de revisão capaz de eliminá-los dos arquivos, independentemente do tipo de erro, de sua gravidade, ou do que os causou. 3.1. Controle de qualidade das traduções na localização A indústria da localização desenvolveu ao longo dos anos processos e procedimentos para o controle da qualidade dos produtos localizados. As grandes empresas de localização possuem essas normas implementadas, cada qual à sua maneira. Parece haver consenso quanto aos aspectos que devem ser levados em conta para que uma tradução seja considerada de qualidade satisfatória: terminologia padronizada, estilo claro e formato sem erros. Entretanto, é difícil estabelecer um padrão que possa ser aplicado em termos gerais, uma vez que cada cliente tem necessidades específicas. Nos projetos de localização, é fundamental incorporar etapas de verificação da qualidade em suas diferentes fases, a fim de garantir que o produto localizado não tenha problemas de tradução ou funcionalidade. O momento para essa verificação vai ser definido no início do projeto entre o cliente final e a empresa de localização, e entre a empresa de localização e seus respectivos fornecedores, ou seja, empresas menores ou tradutores autônomos. O gerenciamento da qualidade envolve a criação de um plano que determina todas as atividades necessárias para garantir que os objetivos e os padrões de qualidade definidos para o produto sejam alcançados. É preciso salientar o fato de que o processo de verificação da qualidade dos produtos localizados, na verdade, é parte do processo geral de garantia da qualidade do software original, tendo, portanto, procedimentos muito semelhantes. O aspecto a ser ressaltado neste estudo é o da fase de verificação lingüística, que inclui não só questões relativas ao uso correto da língua, em termos de sintaxe, pontuação, ortografia etc., mas também questões de estilo e padronização terminológica conforme as especificações do cliente. Quanto menores forem os problemas nessa fase, melhor será o resultado final. 116 | Tradução em Revista

Para alcançar níveis de qualidade consistentes, é preciso contar com uma série de procedimentos padronizados incorporados ao processo de produção, qualquer que seja ele. Especificamente com relação a projetos de localização, muitos fornecedores incorporaram os processos de gestão da qualidade da ISO (International Organization for Standardization ou Organização Internacional para a Normalização) para garantir a qualidade de todos os seus serviços e atividades, incluindo tradução e engenharia. Outros utilizam as normas ISO apenas como referência para algumas partes do processo e definiram medidas internas de qualidade. Vale observar que, em todos esses casos, o que recebe a certificação é o processo, não o resultado final, processo este que engloba desde a chegada e catalogação do material para tradução até a inspeção final antes da entrega para o cliente, incluindo as fases de avaliação e manutenção posteriores. Entretanto, certamente a maneira como a empresa gerencia esses processos afeta o produto final. Em localização, a avaliação da tradução é feita com o objetivo de identificar erros por meio de um sistema de análise, considerado um indicador objetivo para determinar a qualidade da tradução. Erros diferentes têm um impacto diferente na qualidade geral do texto, por isso os erros são categorizados e recebem pesos distintos. A vantagem desse procedimento é que ele é um modelo padronizado e de fácil aplicação em diferentes áreas, que atribui um valor numérico e, portanto, quantificável ao processo.

4. Quando 100% não é 100% Teoricamente, se todas as verificações de qualidade estabelecidas no decorrer de um projeto de localização tiverem sido observadas, o produto final, ou seja, o texto traduzido, terá qualidade aceitável. Isso leva a supor que a memória de tradução utilizada no projeto também terá qualidade satisfatória. No entanto, nem sempre isso acontece. Embora existam formulários detalhados para controle da qualidade da tradução, não há, como vimos, um processo separado para verificação da qualidade das memórias. Para ilustrar o tipo de situação que motivou esta pesquisa, foram selecionados segmentos de um projeto do qual participei como tradutora e revisora. Esses segmentos estavam armazenados na memória de tradução enviada pelo cliente para o trabalho. Tendo recebido já muitas reclamações sobre a qualidade da memória em questão, a empresa de localização solicitou aos tradutores a revisão de todos os segmentos com grau de equivalência de 100%, ou seja, todos os segmentos supostamente considerados livres de erros. Os seguintes exemplos mostram o tipo de problema que determinada memória pode conter. Em todos os casos abaixo, o grau de equivalência apreMemória de tradução: auxílio ou empecilho? | 117

sentado pelo sistema de memória foi de 100%, indicado pelo número que separa os segmentos de origem (indicados pelo formato de texto oculto) e de destino. Os problemas foram categorizados apenas para fins de sua apresentação, sem qualquer tentativa de hierarquização por grau de gravidade, e estão indicados entre aspas a seguir. Exemplo 1. Problemas de tradução de terminologia Para abrir Serviços e sites do Active Directory, clique em Iniciar, aponte para “Programas”, para Ferramentas administrativas e, em seguida, clique em Serviços e sites do Active Directory. (comp_remove) Neste caso, “All Programs” foi traduzido indevidamente por “Programas”. Trata-se de uma opção de software que o usuário deve selecionar. Isso significa que o termo tem muita visibilidade e deve ser traduzido de forma padronizada em todas as ocorrências como “Todos os programas”, conforme especificado no glossário fornecido pelo cliente para a realização do projeto.

Exemplo 2. Problemas de tradução de linguagem comum (a) Os clientes dependentes “terão mais suporte” nas versões futuras do Enfileiramento de mensagens. (b) Os servidores aplicáveis são servidores de enfileiramento de mensagens “sem roteamento ativado”, que são também chamados de servidores de roteamento. (c) “Não é sensato” fornecer 4 GB a 10 GB na partição ou mais espaço para instalações grandes. (d) Para obter mais informações sobre este “driver”, visite o site do fabricante em [endereço do site]. Os endereços da Web podem mudar, portanto talvez você não consiga se conectar a este site. 118 | Tradução em Revista

Os casos acima são iguais: as traduções mudam completamente o sentido do original. Se tivessem sido classificados pelo processo de controle da qualidade de produtos localizados, esses erros estariam na categoria major, isto é, graves, porque comprometem a integridade dos dados. Outro aspecto importante é que os erros de tradução indicados acima só podem ser detectados através do cotejo com o original, pois não causam estranhamento ao leitor devido a aspectos lógicos. Exemplo 3. Uso da língua a) Uso de tempos verbais É possível criar, excluir e alterar as propriedades de filas públicas em computadores remotos utilizando o snap-in Usuários e computadores do Active Directory somente “se você possuir” permissões administrativas de domínio “e esteja” conectado usando uma conta de usuário de domínio. b) Concordância e pontuação O NLB permite especificar que “todas as conexões” do mesmo endereço IP de cliente “seja identificado” por determinado servidor “(a não ser, é claro, que esse servidor falhe”. “Os arquivos” da seção de atualização dinâmica do site do Windows Update na Web “foi” cuidadosamente “testados e selecionados”. c) Ortografia Todas as “seções” de enfileiramento de mensagens, sessões de leitura remota e filas abertas por clientes dependentes são contadas. d) Digitação e pontuação Você pode atender uma chamada “dirigira” a outro telefone, Os exemplos (a), (b), (c) e (d) acima, embora apresentem erros sérios no que concerne ao uso da língua, não têm conseqüências negativas para o usuário do software ou do produto em questão no que diz respeito ao funcionamento do programa. No entanto, certamente causarão má impressão no leitor ou usuário. Independentemente da categoria ou do tipo de erro, esses problemas precisam ser eliminados. Memória de tradução: auxílio ou empecilho? | 119

Em todos os exemplos apresentados acima, a tradução incorreta foi armazenada na memória possivelmente por uma falha de revisão por parte do tradutor, e só foi possível identificar os problemas porque houve uma fase posterior de revisão das equivalências de 100% por solicitação do cliente. No entanto, esse procedimento não é comum. Infelizmente, muitos clientes não estão dispostos a pagar pela revisão ou releitura de segmentos já traduzidos com grau de equivalência de 100%. O processo de revisão mencionado acima corrigiu os erros identificados, mas não foi realizado no recurso de manutenção do programa de memória, o que significa que apenas essas frases foram corrigidas. Se o revisor tivesse acesso ao recurso de manutenção da memória, poderia ter verificado se “All Programs”, por exemplo, estava traduzido indevidamente como “Programas” em outras ocorrências e corrigido o problema, se fosse o caso. No entanto, durante a realização do projeto, o tradutor e o revisor não têm acesso ao recurso de manutenção da memória; a revisão é feita apenas nos segmentos que são apresentados pelo programa e não nos que estão armazenados no banco de dados. Isso significa que, se essa memória for utilizada em outro projeto semelhante do mesmo cliente, existe o risco de haver segmentos com os mesmos erros, exigindo nova revisão. É claro que a frase que foi corrigida fica armazenada também e existem boas chances dessa frase ser reutilizada em função da data (a tradução com a data mais recente, em geral, é a que aparece como sugestão). No entanto, se o usuário resolver utilizar o recurso “Concordance” para verificar como determinado termo foi traduzido em outras ocorrências, poderá ficar confuso, diante de traduções diferentes ou indevidas. Uma das maneiras possíveis de evitar que a memória apresente erros é fazer toda e qualquer alteração sugerida pelo processo de controle da qualidade nos respectivos arquivos sempre utilizando o sistema de memória para garantir que a alteração fique definitivamente armazenada. Devido ao tempo escasso, muitas alterações são feitas fora do programa de memória, e as correções sugeridas pelo cliente na revisão final não são armazenadas nos arquivos de memória. Isso necessariamente acarreta problemas, uma vez que o produto final ficará diferente da memória e, no momento de uma nova versão ou atualização, é o arquivo de memória que será utilizado para reaproveitamento. Por isso, existe sempre a recomendação de que a revisão seja feita diretamente no programa de memória de tradução (Esselink, 2000:367). Além disso, a revisão deve ser feita por pessoal devidamente qualificado para a tarefa em questão. Acredito que a incorporação ao processo de localização de uma fase específica dedicada à revisão e manutenção das memórias contribui para dimi120 | Tradução em Revista

nuir estes problemas. Isso permite que a memória fique pronta para reutilização posterior e cumpra assim seu objetivo de servir como ferramenta ao tradutor, em vez de ser um empecilho ou elemento propagador de erros. Qualquer procedimento de revisão global desse tipo requer tempo e uma equipe dedicada; uma equipe que já conheça o produto, as especificações do projeto, a terminologia adotada pelo cliente e o público-alvo a quem o produto de destina, entre outros fatores considerados essenciais para avaliação da qualidade da memória. Para que haja um meio abrangente de garantir a qualidade dos arquivos de memória, é preciso contar com um método sistemático a fim de verificar se a ferramenta está realmente servindo ao propósito original. Embora a tecnologia forneça formas muito eficazes de verificar-se rapidamente a adequação de determinada tradução em relação ao que consta nos glossários, por meio, por exemplo, do uso dos recursos de localização de palavras-chave, por exemplo, a revisão precisa ser feita por pessoal qualificado e consciente desse tipo de problema. À luz das propostas funcionalistas de avaliação e tomando como base o que já existe no mercado de localização para controle da qualidade, alguns princípios norteadores podem ser usados para revisão das memórias de tradução. Nessa fase, não é importante a categorização dos erros. No entanto, é preciso determinar uma seqüência para os procedimentos a serem seguidos, e isso necessariamente implica a definição de algumas categorias. Nesse sentido, os seguintes princípios gerais podem ser usados para verificação da qualidade das memórias, servindo como um modelo para orientar a análise: I. Terminologia - identificar palavras-chave ou termos técnicos específicos do cliente e respectivas traduções (incluindo nomes de produtos, jargão da área etc.) com base no glossário, guia de estilo ou material de referência fornecidos pelo cliente; - identificar termos usados em inglês e verificar se foram mantidos ou não, dependendo da orientação do cliente; - verificar se existem correspondentes em português para siglas e acrônimos em inglês e verificar seu uso padronizado. II. Tradução - verificar se há trechos não traduzidos; - verificar se ocorreram omissões ou acréscimos de informação desnecessários ou inadequados; Memória de tradução: auxílio ou empecilho? | 121

- verificar se existem erros de tradução que, ao resultar em um texto completamente diferente do original, ou mesmo em um texto ambíguo, incompreensível ou difícil de entender, podem induzir o usuário ou leitor a erro na utilização do programa ou produto em questão. III. Uso da língua - verificar se as regras gramaticais foram seguidas: concordância, regência, pontuação, ortografia e digitação, padrões e convenções, estilo etc. Acredito que a inclusão de uma fase de revisão e manutenção das memórias possa contribuir para a redução de muitos desses problemas. Esse processo de revisão deve ser orientado por princípios gerais como os listados acima, mas sempre a partir de especificações do cliente para cada projeto, levando em conta o contexto no qual as memórias de tradução foram desenvolvidas. É importante ressaltar que este processo não se confunde com a categorização de erros com a finalidade de servir como amostra do trabalho do fornecedor ou tradutor, como normalmente ocorre durante nas fases de controle de qualidade dos projetos de localização. Trata-se, sim, de garantir que determinada memória estará em condições de ser reutilizada com o menor número de problemas possível. Esses princípios gerais, no que diz respeito à adequação terminológica, tradução e uso da língua, orientaram o procedimento de análise de dados realizado para esta pesquisa.

5. Conclusão Como vimos, se, por um lado, são inegáveis os avanços trazidos pelo uso dos sistemas de memória de tradução ao processo de localização – reduzindo custos dos projetos, otimizando o controle das versões de softwares, trazendo ganhos de produtividade pela automatização de processos repetitivos –, por outro, existem riscos associados à sua utilização que também devem ser discutidos, sobretudo levando em conta o objetivo com o qual os sistemas de memória foram desenvolvidos, qual seja, o reaproveitamento de traduções anteriores. Ora, para que uma tradução seja reaproveitada é condição sine qua non que atenda a certos padrões de qualidade. Como este estudo pretendeu mostrar, para que os sistemas de memória de tradução realmente sirvam ao propósito de ser ferramentas de auxílio à tradução, é preciso haver um controle sistemático das memórias, por meio de procedimentos regulares de revisão e manutenção. Caso contrário, as memórias, que possivelmente contêm erros variados, acabam se 122 | Tradução em Revista

constituindo em fonte propagadora de erros. De nada adianta ter um banco de dados enorme se este se mostra repleto de problemas de tradução, erros de gramática ou terminologia inadequada. Durante o desenvolvimento da pesquisa, tive oportunidade de entrar em contato com vários tradutores autônomos, gerentes de projeto e de qualidade em diferentes empresas de localização que compartilhavam a mesma experiência: existe um problema de qualidade nas memórias de tradução que persiste, apesar dos modelos de controle de qualidade desenvolvidos pelas empresas. A análise de dados apresentou casos representativos desses erros para ilustrar os tipos de dificuldades enfrentadas. Assim, ao final deste estudo, algumas conclusões de aplicação geral podem ser tiradas: - existe a necessidade de haver um processo sistemático e exclusivo para a revisão e a manutenção da memória de tradução; - a revisão deve ser norteada por princípios gerais, com o objetivo de eliminar os erros encontrados, sem exigência de classificação desses erros em tipologias específicas; - esse processo deve ser realizado por usuários experientes com domínio dos recursos oferecidos pela ferramenta em que a memória foi desenvolvida, com conhecimento sobre o projeto e com acesso às especificações do cliente e material de referência. Para alcançar esses objetivos, acredito que a melhor solução seria incorporar a revisão e a manutenção das memórias de tradução ao processo de localização, como etapa final do projeto no qual ela foi empregada, deixando-a pronta para reutilização posterior. Assim, uma proposta para minimizar os problemas de qualidade nas memórias de tradução é criar uma equipe especializada que assuma tal responsabilidade. Com base em princípios gerais que podem nortear o processo de análise (adequação terminológica, problemas de tradução e uso da língua), deve-se proceder a um controle rígido por meio da revisão da memória para identificar os erros antes que eles se instalem e passem a ser propagados pelos tradutores que participem de projetos de localização. Evidentemente, cada projeto é diferente e assim deve ser administrado. Se o processo de revisão e manutenção for periódico, não será necessário fazer a revisão completa todas as vezes e haverá sempre a garantia de que a memória está em condições adequadas para reutilização. Assim que determinada memória fosse considerada livre de erros, poderia ser criado um filtro, por exemplo, para fazer a revisão somente a partir de determinada data. Idealmente, esse procedimento deveria estar preMemória de tradução: auxílio ou empecilho? | 123

sente em todos os projetos, independentemente do tamanho. Uma solução dessa natureza implica decisões gerenciais e financeiras que cabe às empresas implementar ou não. A equipe responsável pela revisão e manutenção das memórias pode ser a mesma encarregada do controle da qualidade durante o projeto, uma vez que conhece as especificações do cliente, o material de referência e o público-alvo do produto sendo traduzido, além de estar integrada aos processos de trabalho da empresa de localização. A empresa de localização, por sua vez, poderá oferecer esse serviço a seus clientes, como mais uma etapa de controle da qualidade dos projetos. Além disso, os tradutores autônomos que participarem de novos projetos também terão certeza de que estarão recebendo uma memória que já foi submetida a uma revisão e que, portanto, é confiável enquanto fonte de referência. Quando a memória é desenvolvida pelo próprio tradutor, o processo é diferente, porque não envolve outras instâncias. Para o tradutor autônomo que desenvolve suas próprias memórias de tradução, é muito mais fácil mantêlas atualizadas, uma vez que ele tem o controle sobre o trabalho e pode atuar de forma independente, fazendo a revisão ou a manutenção conforme julgar necessário. Cabe ao tradutor usuário do sistema de memória incorporar à sua rotina de trabalho estes processos. Pode-se traçar um paralelo com a rotina de criação de cópias de segurança, ou backups, e o uso de programas antivírus. Assim que o tradutor incorporar o procedimento à sua rotina de trabalho, fazer a revisão e a manutenção das suas memórias passará a ser um processo natural. 5.1 Possíveis desdobramentos desta pesquisa Como mencionado, este é um campo novo e há muito ainda por fazer. Os poucos estudos existentes sobre memória de tradução são de cunho comparativo e tratam principalmente de questões ligadas à interface do usuário. Nesse contexto, existe uma gama de possibilidades a serem exploradas, inclusive relativas aos aspectos técnicos envolvidos na criação dos sistemas de memória, que não está contemplada aqui. O presente estudo também não contempla o uso integrado de sistemas de tradução automática e de memória de tradução, mas essa é uma linha que pode ser seguida, uma vez que um número crescente de ferramentas de memória de tradução oferece suporte à tradução automática. O Trados Translator’s Workbench, por exemplo, é inteiramente compatível com os sistemas LOGOS e Systran. O Wordfast oferece suporte a todos os programas que criam menus no Word, já que está inteiramente integrado ao MS Word. 124 | Tradução em Revista

Outra linha para futuras investigações pode ser averiguar o que os outros sistemas de memória de tradução disponíveis no mercado oferecem em termos de recursos de revisão e manutenção e verificar se são melhores e mais eficientes do que os existentes no Trados Translator’s Workbench ou Wordfast. Outra possibilidade é usar outros pares de idiomas para análise de dados e verificar se os mesmos problemas de qualidade existem. Acredito que os mesmos princípios adotados neste estudo para o par inglês-português possam ser empregados com sucesso em outros pares de idiomas, reforçando a necessidade de revisão e manutenção das memórias, independentemente dos idiomas de origem e destino. Também pode ser interessante investigar o grau de eficiência oferecido pelo uso de sistemas de gerenciamento de terminologia integrados aos sistemas de memória de tradução e sua contribuição para a geração de glossários multilíngües especializados. Uma discussão interessante que não foi aprofundada neste estudo, mas que surgiu nas respostas ao questionário elaborado para subsidiá-lo, diz respeito ao problema trazido pelo achatamento dos preços por palavra, com base nos graus de equivalência apresentados pelos programas de memória de tradução. Este é um problema sério que merece atenção, já que pode ter conseqüências negativas para a indústria da localização. Há uma consciência cada vez maior por parte de tradutores mais experientes de que esse setor exige profissionais especializados com domínio de diferentes ferramentas. O tradutor sabe que precisa acompanhar de perto as tendências do mercado e investir constantemente para manter seu equipamento atualizado (tamanho do disco rígido, memória RAM, programas compatíveis, sem contar os próprios programas de memória que estão sempre atualizando suas versões), e rejeita a idéia de receber menos por palavra depois de tanto investimento. Em uma perspectiva mais abrangente, esta pesquisa também pode ser relevante no ensino da tradução, notadamente nos cursos de formação ou especialização de tradutores voltados para o uso de ferramentas de tradução. Os aprendizes de hoje serão os profissionais do futuro e, como tal, precisam conhecer os recursos que estão disponíveis para aprimorar seu trabalho e os riscos que oferecem. 5.2 Perspectivas para o futuro Os avanços da tecnologia apontam para caminhos cada vez mais abrangentes, com os sistemas de memória de tradução desempenhando funções de gerenciamento do fluxo de traduções, com compartilhamento de recursos Memória de tradução: auxílio ou empecilho? | 125

pela Internet. Essa perspectiva assume uma dimensão ainda maior quando consideramos a possibilidade do uso dos padrões abertos, que permitem a troca das memórias entre fornecedores e sua utilização em qualquer plataforma, independentemente do desenvolvedor. Os fabricantes e especialistas da indústria afirmam que o compartilhamento de memórias de tradução via Internet constituirá a nova grande melhoria em termos de economia de custos para o fluxo do trabalho de localização desde o surgimento da ferramenta de memória. Entretanto, é preciso considerar cuidadosamente a proeminência dada à tecnologia na indústria da localização e em muitas outras áreas. O futuro promete um uso cada vez mais intenso da tecnologia como forma de diferenciação no mercado. No entanto, é fundamental ressaltar que o tipo de tecnologia a ser utilizada vai depender do tipo de projeto, da natureza do texto e do públicoalvo pretendido. O uso de tecnologia inadequada provavelmente levará a resultados indesejados. É importante lembrar que nenhuma ferramenta, por melhor e mais avançada que seja, pode prescindir da intervenção humana. Ganhos de produtividade, eficiência e redução de custos podem ser alcançados, mas não há solução milagrosa. É importante lembrar que a tecnologia pode nos ajudar a aumentar a produtividade e a velocidade dos processos, mas também pode multiplicar o caos, a falta de gerenciamento e planejamento. A mais recente ferramenta de tradução pode acabar se tornando um estorvo em vez de um banco de dados útil nas mãos de um tradutor pouco familiarizado com o programa ou que não tem condições de utilizá-lo com eficiência. Sem um processo sistemático de controle da qualidade e padrões de desempenho específicos, nem mesmo a mais avançada tecnologia poderá garantir resultados satisfatórios. Na verdade, o problema surge quando há um excesso de confiança na tecnologia e uma ênfase excessiva é colocada no processamento automático, em detrimento do tradutor. Esse problema também foi indicado por alguns tradutores que responderam ao questionário elaborado para fins desta pesquisa. Muitas vezes, por falta de tempo, ou até por orientação do cliente, o tradutor utiliza os recursos automáticos dos programas de memória para acelerar o trabalho e acaba inserindo e propagando erros, em vez de minimizá-los. Além disso, é preciso sempre ter em mente um horizonte de longo prazo. Como todo investimento, esses sistemas requerem planejamento e manutenção. Não basta usar a tecnologia. É preciso saber implementá-la, integrando-a aos processos de trabalho existentes. A tecnologia é uma criação humana. Precisamos saber usá-la para evitar que fiquemos subordinados a ela. 126 | Tradução em Revista

___________________________________________ 1 Artigo elaborado a partir da pesquisa realizada para a Dissertação de Mestrado defendida em 2004, sob orientação da Profa. Dra. Marcia do A. P. Martins, no Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC-Rio. 2 “Manutenção” é o recurso dos sistemas de memória de tradução que permite adicionar, excluir e modificar o conteúdo das memórias.

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Referências bibliográficas ESSELINK, Bert (2000) A practical guide to localization. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins. HOUSE, Juliane (2001) “Translation quality assessment: linguistic description versus social evaluation”. Meta, XLVI, 2. Disponível em http:// www.erudit.org/revue/meta/2001/v46/n2/index.html. Acesso em 25 de janeiro de 2004. LAUSCHER, Suzanne (2000) “Translation quality assessment”. Em Carol Maier (org.). Evaluation and translation. The translator studies in intercultural communication (Special issue),149-168. Manchester: St. Jerome Publishing. MOSSOP, Brian (2001) Revising and editing for translators. Manchester: St. Jerome Publishing. NORD, Christiane (1997) Translating as a purposeful activity. Manchester: St. Jerome Publishing.

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COMO CRIAR IDENTIDADES COM TRADUÇÕES, OU QUANDO TRADUZIR É INTERVIR NUMA TEORIA1 Daniel do Nascimento e Silva

É o que chamei o contrato de tradução: himeneu ou contrato de casamento com a promessa de inventar um filho cuja semente dará lugar à história e ao crescimento. [...] Benjamin o diz, na tradução o original cresce, ele acredita principalmente que ele não se reproduz — e eu acrescentarei como um filho, o dele sem dúvida, mas com a força de falar sozinho que faz de um filho algo mais que um produto sujeitado à lei da reprodução. Jacques Derrida, Torres de Babel

Introdução Desde que o conceito de “ato de fala” foi proposto pelo filósofo John Langshaw Austin, na década de 19602 , têm-se delineado diversos gestos de interpretação desse conceito, não apenas no interior da filosofia da linguagem, mas também em outras disciplinas, como a lingüística, os estudos culturais, a antropologia, os estudos feministas, a psicanálise, entre outras. Se, por um lado, pode-se perceber que a proposta austiniana de tratar a linguagem como uma “forma de ação” e não de mera “representação da realidade” vem apresentando contribuições cruciais para essas disciplinas, por outro lado, não se pode perder de vista que essa efervescência teórica não se deu sem a interpretação, a intervenção mesma, de vários teóricos. Autores como John Searle, Émile Benveniste, Judith Butler e Shoshana Felman, entre tantos outros, produziram, a partir de e sobre o trabalho de Austin, diferentes interpretações para o conceito de ato de fala. Assim, podemos nos referir hoje em dia a uma “leitura oficial” da teoria dos atos de fala (Searle, 1969), a uma teoria da performatividade (Butler, 1997) ou a uma leitura psicanalítica de Austin (Felman, 1980). Mas autores que trabalham no texto do filósofo da Escola de Oxford, isto é, os tradutores de seus trabalhos para diferentes línguas, também participam da interpretação do trabalho de Austin e, portanto, da construção da teoria dos atos de fala. Como criar identidades com traduções... | 129

Nesse sentido, é possível aventar a hipótese de que, em se tratando do desenvolvimento da heterogênea tradição intelectual vinculada ao pensamento de John L. Austin, os verbos interpretar/intervir/traduzir (Austin) se tornam sinônimos, assim como os sintagmas “partindo de Austin”, “sobre Austin” e “em Austin”. Situada nesse movimento de (re)construção da teoria dos atos de fala, a tradução para o português de How to do things withs with words (doravante, HT), realizada pelo filósofo brasileiro Danilo Marcondes, parece ser mais um gesto de interpretação e intervenção no pensamento de Austin, tendo em vista a reivindicação de certa identidade para o filósofo inglês e para sua teoria. O presente artigo volta-se, então, para a tradução brasileira dessa obra, de modo a indagar nela, simultaneamente, o trabalho de interpretação da filosofia austiniana empreendido por Danilo Marcondes e o trabalho de intervenção do tradutor nesse pensamento. Pretendo demonstrar ainda que investigar essa tradução, numa abordagem performativa da linguagem, pode revelar questões importantes sobre a construção discursiva da identidade, contribuindo, assim, para a compreensão da relação mesma entre linguagem e identidade, tema que vem ocupando lugar central na agenda das ciências humanas (cf. Rajagopalan, 1998, 2002; Mey, 1998; Pinto, 2002; Moita Lopes, 2002; Hall, 2002; Giddens, 2002).

Austin e seus intérpretes Em HT, Austin empreende um esforço nietzschiano (cf. Felman, 1980) de desmistificar a ilusão de que os fenômenos lingüísticos podem ser investigados, em sua totalidade, segundo critérios de verdadeiro e falso. De acordo com Austin, existem enunciados que não podem ser analisados a partir de uma semântica vericondicional. Trata-se dos enunciados performativos, como “eu aceito (esta mulher como minha legítima esposa)”, “aposto que choverá amanhã”, que, diferentemente dos enunciados constativos, não descrevem uma situação no mundo real, de modo verdadeiro ou falso; ao contrário, eles são a realização de uma ação, que pode ser feliz ou infeliz, bem ou mal sucedida. Numa investigação interessada, sobretudo, em indicar “os sentidos em que dizer algo é fazer algo” (Austin, 1990:103), Austin chega a propor, em HT, uma Teoria Geral dos Atos de Fala3 . Lemos na tradução: A doutrina da distinção performativo/constativo está para a doutrina dos atos locucionários e ilocucionários dentro do ato de fala total assim como a teoria especial está para a teoria geral. E a necessidade da teoria geral surge simplesmente porque a “declaração” tradicional é uma abstração, um ideal, e assim o é também sua tradicional verdade ou falsidade. Mas sobre este ponto só posso dar alguns rápidos clarões de luz. (p. 121, ênfase no original) 130 | Tradução em Revista

Os “rápidos clarões de luz” que Austin menciona são, na verdade, algumas conclusões esboçadas pelo autor no que diz respeito à sua teoria “em constante transformação” (cf. Derrida, 1991). Elas remetem, em linhas gerais, às seguintes idéias: os constativos não são senão performativos mascarados, i.e., agem, designam atos ilocucionários; é a situação concreta e convencional em que os interlocutores se engajam que interessa a tal teoria; verdade e falsidade são categorias epistêmicas; a dicotomia fato e valor, assim como várias outras, precisa ser contestada; e a distinção entre atos locucionários e ilocucionários, precariamente assentada numa noção de significado como equivalente a “sentido e referência”, necessita ser aprimorada (Austin, 1990:121-122). A morte prematura de Austin, no entanto, impediu que o aprofundamento da teoria dos atos de fala, tal como indiciado pelas palavras acima, fosse levado a cabo pelo próprio autor. Embora o excerto do texto de Austin evidencie tal desejo, essa questão é controversa. Como salienta Rajagopalan (2000), muitos comentadores de sua obra defendem que ele não “propôs uma teoria bem delineada do ato de fala, [...] nem mesmo estava interessado em propor uma teoria, ou, dado seu ceticismo, ele provavelmente nunca teria desenvolvido uma teoria sozinho” (p. 355). Poder-se-ia qualificar o seguinte comentário de Urmson como epítome de tais críticas à filosofia de Austin: “É impossível fazer uma abordagem sistemática da filosofia de Austin, pois ele não tinha nenhuma” (apud Rajagopalan, 2000:355). Mas, independentemente da hipótese de Austin, caso não tivesse falecido prematuramente, ter procedido a um refinamento teórico do conceito de ato de fala, o fato é que o conceito, tal como se nos apresenta hoje em muitos textos de filosofia e lingüística, foi de fato re-elaborado. E o autor mais célebre desse refinamento é John Searle, a quem se tem atribuído o papel de sucessor intelectual de Austin. Há, nos termos de Rajagopalan (2000), duas teses distintas no que diz respeito à sucessão de Searle. A tese 1 consiste na idéia de que Searle era aquele que estava justamente “no lugar certo e na hora certa” (p. 355-356), ou seja, de que Searle apenas deu continuidade às idéias que Austin vinha desenvolvendo, de modo que os dois representam, segundo essa tese, “uma única e contínua tradição” (p. 353). A tese 2 indica que, embora tomando como ponto de partida os insights de Austin no que diz respeito ao ato de fala, Searle desenvolveu uma teoria independente de muitos dos princípios postulados por Austin, promovendo desdobramentos teóricos que provavelmente não seriam aprovados pelo seu mestre. Trata-se, segundo essa tese, de uma nova teoria e não uma continuidade. Como criar identidades com traduções... | 131

A intervenção de Searle foi, na verdade, muito bem recebida pela filosofia. Austin — em função de seu pouco interesse de oferecer um pensamento sistemático ou totalizante para o ato de fala e ainda do estilo não convencional de desenvolver sua filosofia, aproximando seus textos muito mais de uma narrativa do que de um tratado — comportava-se, tendo em vista posturas filosóficas tradicionais, como um rebelde. Searle veio, nesse sentido, para “domar” tais idéias rebeldes e adequá-las ao que a tradição filosófica esperava. De fato, a teoria que Searle desenvolve, cujos pilares situam-se na lógica e na filosofia analítica, é partidária de um universalismo e aposta na primazia da proposição (em outras palavras, do constativo), o que é diametralmente oposto à proposta austiniana. Searle inclusive evoca a autoridade de alguém que estudou pessoalmente com Austin para fundamentar a sua intervenção na teoria dos atos de fala. No excerto a seguir, Searle lança mão desse contato pessoal como um dos recursos para sustentar sua argumentação em torno da necessidade de introduzir no ato ilocucionário um núcleo duro, a saber, a proposição: Austin uma vez me disse que ele havia pensado em uma distinção que poderia ser feita nesses termos – mas não fica claro se ele tinha a intenção de que a distinção locucionário-ilocucionário a abarcasse. (Searle, 1973:155, ênfase e tradução minhas)

A autoridade de porta-voz oficial também pode ser percebida em sua célebre contenda com Jacques Derrida: Antes de iniciar uma discussão sobre a acusação de Derrida eu deveria esclarecer que não endosso os detalhes da teoria dos atos de fala de Austin. Eu a tenho criticado alhures e não irei repetir essas críticas aqui. O problema consiste muito mais no fato de que o Austin de Derrida é irreconhecível; ele não tem nada a ver com o original (Searle, apud Rajagopalan, 2000: 381, ênfase e tradução minhas).

Obviamente, o “original” a que Searle se refere é o Austin que passou pelo seu próprio crivo e não o “Austin de Derrida”. Trata-se, portanto, de uma intervenção teórica que procura adequar as idéias de Austin à constatividade que por tanto tempo marcou a história das idéias. Em outras palavras, na medida em que aproxima o ato de fala das leis universais da lógica e, implicitamente, da idéia tão cara à lógica clássica e a várias vertentes da lingüística e da filosofia de que a função primordial da linguagem é representar (ou seja, constatar), Searle marca, ao mesmo tempo, sua interferência na teoria dos atos 132 | Tradução em Revista

de fala e o seu distanciamento da visão eminentemente performativa da linguagem, a qual, segundo vários leitores, caracteriza o pensamento de Austin (cf. Ottoni, 1998; Felman, 1980; Rajagopalan, 2000). Contrapondo-se às críticas que vêem como um problema o fato de a filosofia de Austin não ser sistemática (em outras palavras, de não ser ela uma abordagem rigorosa), situa-se a abordagem psicanalítica de Felman (1980) do texto austiniano. Para a autora, Austin desenvolve suas reflexões tal qual um Don Juan: ele está a todo momento prometendo uma teoria e exercitando, em seu texto, o potencial mesmo de sua teoria, a saber, de que a linguagem é o domínio por excelência da ação sobre o outro e sobre o mundo. Como defende Felman, a promessa de amor donjuanesca pressupõe uma quebra em duplo sentido: ao mesmo tempo em que seu discurso amoroso leva as mulheres seduzidas por ele a romperem relacionamentos anteriores, pressupõe que a promessa de amor não seja cumprida. E a relação entre a promessa donjuanesca e a promessa austiniana, nos termos de Felman, não é fortuita. A promessa tematiza a própria questão do humano: Felman mobiliza, para tanto, a reflexão de Nietzsche sobre o animal prometedor. Se em Aristóteles a ontologia do humano remete ao fato de o homem ser um animal político, o que evidencia uma definição de homem tendo em vista a especificidade de seus atos, em Nietzsche o passo vai mais além: é o homem um animal prometedor. Trata-se de uma posição que encara o humano não apenas a partir de seus atos, mas de seus atos de linguagem (não é a promessa um ato de fala por excelência?). A leitura de Felman revela então que tanto a teoria de Austin quanto os gestos de sua escrita informam a relação mesma entre sujeito, linguagem e realidade. Sua leitura recupera o potencial dialógico e constitutivo da linguagem: “Se a linguagem do performativo se refere a si mesma, produz a si mesma como sua própria referência, esse efeito de linguagem é no entanto uma ação, uma ação que excede a linguagem e modifica o real” (Felman, 1980:108; tradução minha). No que podemos qualificar como uma postura interventora, Felman parte da noção de que, na teoria de Austin, o ato de fala não é imune à falha, ao tropeço e ao abuso, para chegar à conclusão de que a capacidade para a falha (em outras palavras, a quebra da promessa) é constitutiva do performativo. O ato de fala, enquanto produto e produtor do corpo falante, é, nos termos da autora, escandaloso, principalmente porque vai de encontro a uma tradição metafísica que separa mente e corpo, linguagem e ação, constativo e performativo. Nos textos da filósofa americana Judith Butler (p. ex. Butler, 1997 e 2003), podemos verificar um movimento de interpretação e reformulação da teoria dos atos de fala que tem apresentado implicações cruciais para o estudo Como criar identidades com traduções... | 133

do sujeito, do gênero e da política. A performatividade, nos termos de Butler, é o que permite e obriga o sujeito a se constituir enquanto tal. Investindo na idéia de que o ato de fala é também um ato corporal e de que seu funcionamento se dá numa cadeia de iterabilidade e citacionalidade4 , Butler defende que o sujeito reivindica sua identidade (ou que ela é reivindicada para ele) por meio de atos de fala que iteravelmente tematizam a sua própria existência. Nos termos da autora, os enunciados “nasceu uma menina” ou “ele é um maricas”, pronunciados pelo médico ou pelo colega de classe, respectivamente, não apenas constatam um estado de coisas no mundo; para muito além disso, trata-se da construção performativa de uma feminilidade [girling] e de uma homossexualidade. A questão a interessar Butler, ao longo de seus textos, especialmente Excitable speech (1997), diz respeito à compreensão do processo por meio do qual o ato de fala constitui o sujeito e de como esse sujeito, a partir de então, iteravelmente, isto é, outra vez [iter] e para o outro [itera], passa a repetir as condições discursivas que permitem a sua viabilidade enquanto sujeito. E de como esse sujeito, em sua ação lingüística, passa a, performativamente, constituir e reivindicar a identidade de outrem. Performatividade ganha então o estatuto de processo de constituição do eu — processo, nos termos de Butler, vulnerável à falha, ao tropeço, ao abuso, à violência e à abjeção. Como afirmei anteriormente, essas diferentes interpretações do pensamento austiniano consistem, também, em intervenções no seu pensamento. O ato de fala que lemos em Searle, Felman e Butler é, portanto, um conceito reformulado, em função, sobretudo, dos interesses e filiações teóricas desses autores. No que se segue, tento demonstrar que a tradução empreendida por Danilo Marcondes pode ser situada nesse mesmo movimento de intervenção. O esforço que empreendi anteriormente em mobilizar a teoria desses autores não consiste tão-somente em desvelar a retórica da intervenção em Austin, mas se transforma em parâmetro para a própria análise da tradução. Vale salientar que se trata de uma leitura indiciária (cf. Ginzburg, 1989) de HT e de sua tradução para o português. Segundo o historiador italiano Carlo Ginzburg, o paradigma indiciário é um modelo epistemológico que emergiu nas ciências humanas no final do século XIX e que busca, nos pormenores mais negligenciáveis, nos dados marginais, nos indícios, nas pistas, evidências de fenômenos de grande alcance. Ginzburg parte do exame dos métodos investigativos de Morelli, Freud e Sherlock Holmes, que se centravam, respectivamente, na atenção ao pormenor do signo pictórico, ao sintoma e ao indício do crime, para propor um paradigma de “rigor flexível” e que se atém ao singular, no sentido de que “as pistas talvez infinitesimais permitem captar uma realidade mais profunda, de outra forma inatingível” (Ginzburg, 1989:150). 134 | Tradução em Revista

A tradução brasileira como intervenção Danilo Marcondes, o tradutor brasileiro, é um filósofo que conhece a fundo a teoria dos atos de fala. Sua tese de doutorado versou sobre o tema, e é significativo notar que o livro em que sua tese se transformou indica, já em seu subtítulo, que o autor procede a uma reavaliação da teoria dos atos de fala. Eis o título: Language and action: a reassessment of speech act theory. Em outro texto, o autor afirma textualmente sua postura de interventor: Parece-nos que a Teoria dos Atos de Fala, sendo assim repensada e complementada por essas noções que discutimos brevemente, é capaz de, ao investigar os problemas filosóficos na linguagem ordinária, dirigir sua análise para o caráter ideológico da linguagem, constituindo-se assim como método crítico. (Marcondes, 1992: 30, ênfase acrescida).

Mas a sua intervenção não se restringe aos textos que escreveu sobre Austin, mas também, e é nesta hipótese que este trabalho investe, no que ele escreve em Austin. Em outras palavras, a tradução para o português de HT não foi, por assim dizer, “apenas” uma tradução, mas um gesto de intervenção no pensamento de Austin. É válido esclarecer que não se trata aqui de reivindicar a fidelidade ao texto original que Danilo Marcondes não conseguiu alcançar em sua versão para o português. Sendo a tradução uma atividade assentada em nossa capacidade humana, demasiado humana de conhecer, ela é, inevitavelmente, gerada a partir da “interpretação, da perspectiva, do sócio-cultural e do subjetivo” (Arrojo, 1990:50). Propor uma investigação que denuncie tão-somente os momentos em que Danilo Marcondes trai Austin não seria senão investir na possibilidade de uma leitura realmente objetiva, de uma interpretação logocêntrica e racional, de uma tradução supra-humana, enfim. Não se desvincularia também da crença de que existe uma essência no texto original, sendo a tarefa do tradutor, seja quem for ele ou ela, capturar essa essência e transportá-la para outra língua. Ao contrário, interessa-me problematizar essa tradução diante das circunstâncias em que foi produzida, tendo em vista, particularmente, o fato de que se tratava não do transporte estável das palavras de Austin para o português, mas sim de uma tradução (realizada por um filósofo) de idéias e estilo que, segundo a prática da filosofia, precisam ser filtrados e mesmo domesticados. A não convencionalidade do texto de Austin e o distanciamento, em termos de estilo, daquilo que se espera de um tratado filosófico podem ser percebidos já quando deparamos com o seu título, How to do things with words. Como criar identidades com traduções... | 135

Como bem lembra Felman (1980), o título remete a best-sellers tais como How to win friends and influence people e How to stop worrying and start living, de Dale Carnegie. Ao mesmo tempo em que propõe uma densa reflexão em torno da ação pela/na linguagem, Austin anuncia seu humor já no título. E é precisamente aqui, no título, que encontramos o primeiro indício da promessa de uma teoria em Austin. Queres saber como fazer coisas com palavras? Eis um manual, uma proposta, uma promessa, enfim. O título em português, Quando dizer é fazer. Palavras e ação, segue a tradução francesa, feita por Gilles Lane (1970), Quand dire, c’est faire5 . Essa escolha revela uma atitude por parte dos tradutores de não apenas tornar o título mais sério, retirando-lhe o caráter escancarado de manual presente no original, mas também insinua, conforme apontou Rajagopalan (1990), uma subordinação do fazer ao dizer, o que demonstra uma afinidade com a teoria proposta por Searle, cujo princípio de exprimibilidade “segundo o qual tudo o que é passível de se pensar é passível também de se dizer [...] subordina o feito ao dito enquanto concretização do dizível” (Rajagopalan, 1990:247). As doze conferências que compõem HT, apenas numeradas na edição original, recebem na tradução brasileira, além dos números, subtítulos que sintetizam o tema de cada conferência e certamente orientam o leitor. O tradutor acrescentou também notas de rodapé, marcadas com asterisco, com o intuito de comentar a tradução e o significado de alguns termos, remeter a outros textos, etc. A versão brasileira contém ainda uma apresentação à filosofia de Austin elaborada pelo próprio tradutor-filósofo. Essa apresentação faz também menção a dificuldades que o tradutor encontrou no texto austiniano, tendo em vista principalmente o seu caráter “coloquial, idiomático e fluente” (já que havia sido escrito com vistas à apresentação oral) e por se tratar de obra “original e polêmica” (Marcondes, 1990:14), repleta de termos técnicos e neologismos6 . O texto austiniano realmente combina a erudição e o melhor do humor inglês com um “estilo faceto e descontraído” (Rajagopalan, 1992:291). Considerando-se o que comumente se espera de um tratado filosófico, é de se estranhar, à primeira vista, um texto filosófico que contenha humor e coloquialismo. Afinal, o território da metáfora, da piada, da ironia, enfim, da linguagem figurada é, por excelência, a literatura e a poesia — o que remonta à afirmação de Platão de que a república ideal não era lugar para poetas. Mas o texto austiniano vai de encontro a essa tradição: Austin, como defende Felman (1980), exercita em sua escrita o potencial mesmo de sua teoria, de modo a agir (i.e., seduzir) com as palavras: 136 | Tradução em Revista

1 Of course, this is bound to be a little boring and dry to listen and to digest7 ; not nearly so much so as to think and write. Moreover I leave to my readers the real fun of applying it to philosophy. (p. 164). EXCERTO

É claro que tudo isso é um tanto cansativo e árido para se ouvir e assimilar; mas não tanto quanto o foi conceber e redigir a teoria. Mas seu verdadeiro interesse começa quando passamos a aplicá-la à filosofia. (p. 132). 2 (I) How widespread is infelicity? Well, it seems clear in the first place that, although it has excited us (or failed to excite us) in connexion with certain acts […], infelicity is an ill to which all acts are heir […]. (p. 18). EXCERTO

(1) Qual o alcance da infelicidade? Em primeiro lugar, embora isto possa nos ter estimulado (ou deixado de estimular) em relação a certos atos [...] a infelicidade é um mal herdado por todos os atos [...] (p. 34) 3 I do not think that these uncertainties matter in theory, though it is pleasant to investigate them and in practice convenient to be ready […] with a terminology to cope with them. (p. 24). EXCERTO

Estas questões, em meu entender, não têm importância teórica, embora seja de interesse investigá-las e, na prática, é conveniente estar familiarizado [...] com a terminologia apta a lidar com elas. (p. 37). Pelos excertos acima, podemos perceber que Austin revela o prazer (às vezes, a falta dele) na teoria que propõe. Note-se que as expressões grifadas nos excertos do texto de partida são usos metafóricos que remetem ao prazer do riso (real fun), da comida (digest) e até do sexo (excited). O tradutor, em geral, recorre a usos literais (verdadeiro interesse, estimulado) ou de usos metafóricos “mais amenos” (assimilar). Danilo Marcondes, ao fazer essas escolhas, parece compartilhar da crença, consagrada durante muito tempo na filosofia, de que a metáfora é um recurso acessório e mesmo um embuste ou um abuso. De acordo com essa visão, seu uso deve ser evitado nos textos que se pretendem à Como criar identidades com traduções... | 137

verdade, como o científico e o filosófico. Autores como Lakoff & Johnson (1980) e Lima (1999), contrapondo-se a essa visão, demonstram que a metáfora é na verdade um recurso ubíquo que tem sua motivação em nossa experiência com o corpo e com o mundo e, portanto, expressa a maneira como compreendemos as coisas. E Austin investe no uso da metáfora. Para desconstruir fetiches e crenças tradicionais, ele inclusive brinca com o diabo e com o paraíso. Danilo Marcondes, por seu turno, seguindo o modelo que se espera de um tratado filosófico, imprime um ar de seriedade na tradução: 4 I distinguish five very general classes: but I am far from equally happy about all of them. They are, however, quite enough to play Old Harry8 with two fetishes which I admit to an inclination to play Old Harry with, viz. (I) the true/false fetish, (2) the value/fact fetish. (p. 151) EXCERTO

Distingo cinco classes gerais de verbos, mas não estou totalmente satisfeito com elas. Entretanto, abrem a nossos olhos um campo mais rico do que se nos movêssemos unicamente com os dois fetiches: 1) verdadeiro/falso; 2) fato/valor. (p. 123) 5 […] ‘I name this ship the Mr. Stalin’ […] but the trouble is, I was not the person chosen to name it (…). We can all agree (1) that the ship was not thereby named; (2) that it is an infernal shame (p. 23). EXCERTO

[…] “Batizo este navio com o nome de ‘Senhor Stalin’” [...] A dificuldade, porém, está no fato de não ter sido eu a pessoa escolhida para batizá-lo [...]. Todos concordamos que: (1) o navio não foi batizado por este ato; (2) foi um terrível vexame. (p. 37) EXCERTO 6 We were to consider, you will remember, some case and senses (only some, Heaven help us!) in which to say something is to do something […] (p. 12)

Como devem estar lembrados, íamos considerar alguns (apenas alguns, felizmente!) casos e sentidos em que dizer algo é fazer algo [...] (p. 29) 138 | Tradução em Revista

No original, Austin utiliza-se de muitos recursos dialógicos (como o uso freqüente do pronome you e do modo imperativo, que aproximam o texto do leitor) e do pronome de primeira pessoa, que marca a sua presença no texto. A estratégia de Marcondes foi, muitas vezes, de tornar o texto impessoal, embora, é preciso deixar claro, a tradução conserve muito de tais recursos dialógicos e do uso da primeira pessoa, como pode ser percebido no excerto 6 acima. Vejamos, a seguir, momentos em que o tradutor torna o texto impessoal. 7 […] Misapplications […] ‘I appoint you’, said when you have already been appointed, or when someone else has been appointed, or when I am not entitled to appoint, or when you are a horse: ‘I do’, said when you are in the prohibited degrees of relationship, or before a ship’s captain not at sea (…) (p. 34) EXCERTO

[…] más aplicações. […] “Eu o nomeio”, dito quando a pessoa já foi nomeada, ou quando foi nomeada por outra pessoa, ou quando eu não tenho o poder de nomeá-la, ou quando o nomeado é um cavalo. “Sim”, quando se tem um grau de parentesco com a noiva que impede o casamento, ou diante de um capitão de navio que não está no mar […] (p. 44) 8 (i) We have the case of procedures which ‘no longer exist’ […] (ii) We have even the case of procedures which someone is initiating. […] (p. 30) EXCERTO

(I) Há o caso de procedimentos que “não mais existem” […] (II) Há também o caso de procedimentos recentemente inaugurados […] (p. 41). EXCERTO

9

[…] MISFIRES […] ABUSES (do not stress the normal connotations of these names!) (p. 16) […] desacertos […] abusos… (obviamente, não se devem enfatizar as conotações usuais destes termos) (p. 32) A tradução do excerto 7 indica a domesticação de um dialogismo que parece ultrapassar os limites. Afinal, aventar a hipótese de que o ato de nomear será Como criar identidades com traduções... | 139

infeliz se o leitor for um cavalo é, de fato, brincar pesado. A idéia de “limites” da tradução do humor de Austin é desenvolvida textualmente pelo próprio tradutor. […] procurei sempre, na medida do possível, conservar os traços característicos do estilo coloquial de Austin, adaptando para o português, quando isto se impunha, seus exemplos e as expressões idiomáticas utilizadas. (Marcondes, 1990, p. 14, ênfases acrescidas)

O excerto em questão parece ser um caso em que Marcondes considerou que não era adequado “conservar os traços característicos do estilo de Austin”. Em outras palavras, foi necessário impor o “filtro” do filósofo, daquele que enxerga com clareza e sabe quais são os limites do humor no texto filosófico. Muitas vezes, no entanto, a necessidade se impôs e Marcondes conservou nas piadas de Austin os santos que batizam pingüins, os casamentos com macacos, a avaliação da beleza das palavras, embora o ritmo geral tenha sido, com freqüência, de “colocar panos quentes”. Podemos afirmar que se trata da construção, na tradução, de um ethos9 sério, moderado, prototípico dos filósofos tradicionais, ao contrário do ethos descontraído e faceto que muitos autores apontaram no texto original. Há vários indícios de que o humor e o uso de neologismos (dentre outros recursos) no texto de Austin não são fortuitos. Subjazem a eles importantes questões para a sua teoria. Segundo Felman (1980) trata-se do exercício, em sua escrita, do próprio potencial performativo da linguagem. O humor de Austin, para Rajagopalan (1992), deve ser encarado e entendido seriamente. Diz o autor que “compreender a empresa filosófica de Austin acarreta a tomada de determinada atitude a respeito de seu humor e de suas piadas, inclusive as bobas” (p. 297). Quanto aos neologismos, lembra Lane (1970) que, por exemplo, o termo inglês “constative” “não apenas não existe em inglês, como também não contém nem mesmo a raiz existente em qualquer outra expressão inglesa”. Lane afirma que Austin, com a criação de “termos insólitos”, queria evitar reter em expressões muito familiares as significações pré-concebidas que ele acreditava ser de sua obrigação combater. Evidentemente, o ethos mais sério da versão brasileira, a preferência por recursos menos dialógicos e pessoais, entre outros gestos de escrita, também tem sua razão de ser; subjazem a ele questões interessantes para entender a participação de Danilo Marcondes nesse empreendimento chamado “interpretação de Austin” e a própria questão da tradução enquanto problema filo140 | Tradução em Revista

sófico. Nesse sentido, algumas perguntas poderiam ser delineadas: o que significam os gestos de escrita de Danilo Marcondes? Como entender essa tradução no contexto de sua teorização em filosofia da linguagem e no horizonte maior de outras interpretações da teoria dos atos de fala? Seriam as identidades de Austin e de sua filosofia, tais como se concebem hoje, independentes do trabalho de tradução e interpretação de seu pensamento?

Palavras finais A domesticação do humor e do estilo de Austin, além das outras estratégias de que o tradutor brasileiro lança mão, como a adaptação do título, a criação de subtítulos, entre outras, marcam a intervenção de Danilo Marcondes, filósofo e tradutor, no texto e no fazer filosófico de Austin. Tal intervenção se dá em consonância com o funcionamento mesmo da tradução enquanto atividade de leitura e interpretação, portanto um trabalho ideológico, como indica Arrojo (1990). Mas não só isso. A questão da tradução de Austin nos leva também à questão da construção discursiva da identidade. Não se pode afirmar que exista uma essência no texto de Austin e que a tarefa do tradutor, seja quem for ele ou ela, seja capturar essa essência e transportá-la para outra língua. Não se trata, em outras palavras, de reclamar a fidelidade de Danilo Marcondes ao texto “original” de Austin, porque o “‘original’ não existe como um objeto estável, guardião implacável das intenções originais de seu autor” (Arrojo, 1993:16). O que está em jogo nessa tradução é o trabalho de interpretação das idéias de Austin, tendo em vista que esse trabalho se deu, para além do conhecimento das línguas e da teoria, numa matriz de poder, no caso, a filosofia, que autoriza certos dizeres e não outros, certas maneiras de dizer e não outras, certos gêneros e não outros. Ou seja, o que está em jogo é a reivindicação de certa identidade para uma filosofia e para um autor, na linguagem, ou melhor, na tradução. A tradução de Danilo Marcondes, nesse sentido, funciona como a narrativa (ou melhor, o tratado) em que a identidade do Austin do Quando dizer é fazer se sustenta. Aventar a articulação da questão da identidade com a da tradução, numa abordagem performativa da linguagem, coloca em relevo o papel eminentemente ético das traduções e das próprias teorias. Afinal, se pensamos que as traduções e as teorias, assim como as identidades, não são dados e sim construtos, estamos tratando, em última instância, de escolhas — e é no território das escolhas que se situa a ética. Sobre a questão da construção de identidades na tradução, Venuti afirma o seguinte: Como criar identidades com traduções... | 141

Se a tradução tem efeitos sociais de tão grande alcance, se ao formar identidades culturais ela contribui para a reprodução e para a mudança social, parece importante avaliar esses efeitos, questionar se eles são bons ou ruins, ou, em outras palavras, se as identidades resultantes são éticas (Venuti, 1998:195).

Na cadeia iterável do ato de fala (isto é, para o outro e de novo), recursivamente (e eticamente), (re)interpretamos a nós mesmos e ao mundo e forjamos a nossa identidade. Na cadeia iterável da tradução, Danilo Marcondes reivindicou a identidade de Austin que, dado o seu compromisso com a filosofia, lhe era conveniente, e é nessa iterabilidade que se situam as possibilidades para outras traduções e para a reivindicação de outras identidades.

___________________________________________ 1 Este trabalho foi apresentado no III Encontro Internacional de Tradutores da Associação Brasileira de Pesquisadores em Tradução (ABRAPT), em Fortaleza, CE, setembro de 2004. Sou especialmente grato a Maria Paula Frota e Paulo Henriques Britto pela leitura primorosa a que submeteram este trabalho e pelas valiosas críticas e sugestões. No entanto, as eventuais falhas que permanecerem aqui são de minha inteira responsabilidade. 2 Embora o filósofo da Escola de Oxford tenha desenvolvido suas reflexões sobre o ato de fala durante as décadas de 1940 e 1950, faço menção à década de 1960 em virtude da publicação póstuma de How to do things with words (1962). 3 A proposta de classificação dos atos de fala em termos de atos locucionários, atos ilocucionários e atos perlocucionários, a partir da conferência VII, surge como resposta à demanda por tal teoria (cf. Felman, 1980). O ato locucionário corresponde a uma noção de significado, conforme sua definição em lógica como sentido e referência; o ato ilocucionário corresponde à força do enunciado, isto é, à ação que é realizada ao se dizer algo (p. ex. informar, ordenar, prometer), considerando a situação concreta de interação; o ato perlocucionário corresponde aos efeitos produzidos por um enunciado no interlocutor, trata-se da ação realizada porque dizemos algo (p. ex. persuadir, convencer, surpreender). 4 De acordo com Derrida (1991), o conceito de “iterabilidade” (do latim ‘iter’, de novo, e do sânscrito ‘itera’, para o outro) consiste na idéia de que o ato de fala “repete” as condições discursivas de um outro lugar, de sua pretensa “origem”, para a alteridade. Mas não se entenda essa repetição como uma manutenção estável ou fixa do significante. A repetição inscrita na iterabilidade é, na verdade, uma re-petição. Nela se delineia o território do outro, que, no ato mesmo de re-pedir, na sua repetitio, instaura a novidade, justamente porque “não há incompatibilidade entre a repetição e a novidade do que difere” (Derrida, 2004:331). Nos termos de Butler (1997), o performativo funciona exatamente nesta cadeia iterável, de modo a estabelecer uma “citacionalidade”: o performativo cita, ecoa ações anteriores e “acumula a força da autoridade pela repetição ou citação de uma série anterior e autoritária de práticas” (p. 51; tradução minha). 5 O título da versão para o espanhol, realizada por Genaro R. Carrió e Eduardo A. Rabossi, mantém o humor do original: Cómo hacer cosas com palabras.

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Gilles Lane (1970), em sua introdução à tradução para o francês do HT, também tece comentários sobre o estilo e o vocabulário de que Austin lança mão. Segundo o tradutor, trata-se de um texto ao mesmo tempo desenvolto e sério. Relembra ao leitor que Austin não o havia redigido com vistas à publicação, mas sim à sua apresentação em forma de conferências “que ele queria aliás eximir de toda pretensão (oratória ou temática), se é que não da verdade” (p. 132) [ênfase no original; tradução minha]. Quanto ao vocabulário do texto, Lane afirma que este pode “surpreender, distrair e até mesmo chocar” (id.ibid.). 7 Nesses excertos os itálicos são de Austin/Marcondes e os negritos são meus. 8 Old Harry significa “diabo”, “satã”. 9 Cf. Maingueneau, 1998. Defende o autor que a noção de ethos — originalmente desenvolvida por Aristóteles, para quem todo orador transmitia, por seus gestos e entoações, uma imagem de si — remete à corporalidade e ao caráter do enunciador implicadas em todo discurso. O leitor ou ouvinte, espontaneamente, atribui uma representação, nesses termos, do enunciador em função de seu modo de dizer. “Atribuímos a ele”, diz Maingueneau, “um caráter, um conjunto de traços psicológicos (jovial, sério, simpático...) e uma corporalidade (um conjunto de traços físicos e indumentários). ‘Caráter’ e ‘corporalidade’ são inseparáveis, apóiam-se em estereótipos valorizados ou desvalorizados na coletividade, em que se produz a enunciação.” (Maingueneau, 1998:60; grifos do autor).

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TRADUÇÃO, CORPOS NUS E TROCA DE ROUPAS1 Ben Van Wyke

O discurso sobre tradução se encontra saturado de metáforas que são usadas na tentativa de se explicar o que é e como funciona o processo tradutório e, portanto, também para tentar nos orientar sobre a melhor forma de realizar traduções. É particularmente interessante o emprego freqüente de metáforas para descrever a atividade dos tradutores quando consideramos, por exemplo, que tanto “metáfora” como “tradução” estão diretamente associadas à mesma raiz grega (meta: além de; pherein: carregar, transportar), o que as coloca em terreno comum, permitindo-nos, talvez, tentar compreender como as metáforas geralmente funcionam através de um exame dos mecanismos da tradução. O alvo deste trabalho, contudo, é uma metáfora que tem sido utilizada por muitos que têm teorizado a tradução: a metáfora da roupa, que imagina o significado textual como um corpo vestido com palavras. Uma determinada língua se torna, assim, a vestimenta que envolve o corpo essencial que protege. De acordo com essa visão, traduzir implica desvestir o significado numa língua e trocar as roupas originais por um novo traje lingüístico. Os significados estrangeiros devem usar as roupas próprias do país para o qual se transferem se quiserem ser compreendidos. Dessa forma, aquilo que se apresenta originalmente em roupas típicas dos esquimós poderá ser traduzido para um sari indiano, um samurai pode se transplantar para um conquistador espanhol, e até mesmo um vaqueiro texano pode assumir as roupas de um político. As metáforas em geral são usadas para nos auxiliar a compreender um objeto ou conceito através da comparação implícita desses com outro objeto ou conceito. Criam-se, assim, pontos de semelhança, e algumas características definidoras do último passam a ser atribuídas também ao primeiro. No caso da tradução, esses novos pontos de vista fornecem um tipo de compreensão que, por sua vez, freqüentemente se transfere à própria prática através da prescrição de estratégias que se baseiam nas perspectivas abertas por determinadas metáforas. Por exemplo, ao aceitarem que a linguagem e a tradução são comparáveis a mercadorias transportadas em trens de carga, ou a roupas arrumadas em Tradução, corpos nus e troca de roupas | 147

malas, como propõe Eugene Nida, os tradutores tendem a abordar os textos como se fossem trabalhadores braçais que tentam carregar e distribuir a carga do significado a ser transportada em diferentes vagões lingüísticos (ver, por exemplo, Nida, 1975:190). Contanto que cada unidade de significado seja embarcada no novo vagão e contanto que chegue ao seu destino, não importa exatamente onde tenha sido colocada. Voltando à nossa metáfora da vestimenta textual, poderíamos perguntar como auxiliaria os tradutores a compreender sua tarefa. Considerando-se a concepção que empresta aos mecanismos da tradução, essa metáfora auxiliaria os tradutores a realizar seu trabalho de forma mais adequada? Se a resposta for afirmativa, qual seria, então, a meta daqueles que utilizam essa metáfora como base para descrever sua tarefa? Qual seria seu conceito do que é uma boa tradução? Seria aquela que melhor revela o significado do texto? Ou aquela que é mais agradável esteticamente? Ou, ainda, aquela que cai melhor no corpo do significado? Ou aquela que melhor protege esse corpo das mudanças e das agressões externas? Ou, talvez, aquela que de forma mais fiel revela o corpo nu que cobre? Para examinarmos essa metáfora que cobre de roupas o significado, pode ser útil lembrar alguns exemplos de sua utilização na história do discurso sobre tradução. Em torno de 45 ou 44 a.C., ao discutir sua tradução de um texto de filosofia grega, Cícero escreve (e o lemos em inglês por intermédio de Harris Rackham [e, em português, desta tradutora]) que está “bem consciente” de que sua tradução, “ao tentar apresentar, numa vestimenta latina, questões que os filósofos de reconhecida capacidade e profundo conhecimento já abordaram em grego, com certeza sofrerá críticas de diferentes procedências” (Robinson, 1997:10). O corpo, neste caso, é constituído das questões filosóficas que, segundo Cícero, deveriam também ser apresentadas em roupagem latina. Cícero deve, portanto, desvestir essas questões que se encontram totalmente envoltas com a língua grega e cobrir a nudez resultante para que possamos, de alguma forma, vê-la, ou, quem sabe, deve desenhar novas roupas que poderiam se ajustar sobre as gregas para que pudéssemos, talvez, entrever seu caráter essencialmente grego. Qualquer que tenha sido sua estratégia para conseguir chegar ao significado nu, ou qualquer que tenha sido sua abordagem especial para criar a roupagem que pudesse vestir o significado original, seu uso da metáfora apresenta uma separação clara entre as questões filosóficas de um lado e, de outro, os trajes textuais que, neste caso, representam o grego e o latim. Cícero expressa seu temor de que muitos criticarão seu trabalho porque crêem que a língua latina jamais poderia retratar por completo o significado nu que se encontrava perfeitamente vestido em trajes gregos e, ao mesmo tem148 | Tradução em Revista

po, que as questões filosóficas abordadas jamais poderiam ser adequadamente apresentadas em latim porque a roupagem representada por essa língua não poderia mostrar a verdade de forma tão apropriada quanto em sua vestimenta original. Os críticos que Cícero imagina parecem crer que nenhuma língua, a não ser a original, estaria apta a revelar totalmente a verdade das questões filosóficas abordadas. Se é a língua grega que apresenta essas questões de forma mais adequada, a tradução apenas pode ser um processo que tenta copiar, tão fielmente quanto possível, a relação original estabelecida entre o corpo e sua roupa. Como, obviamente, não consegue copiá-la com total exatidão, a nostalgia em relação a essa combinação supostamente perfeita entre corpo e cobertura aumenta quanto mais nos afastamos da língua do original. Escrevendo no ano 395, São Jerônimo declara, através da tradução de Paul Carroll em 1997 [e, em português, através desta tradutora]: “Sempre tentei traduzir a substância, nunca as palavras literais,” e prossegue recomendando um trecho do prefácio à tradução latina que Evágrio realizou da biografia de Santo Antônio do Egito, originalmente escrita em grego por Atanásio: “Uma tradução literal de uma língua para outra esconde, como um casaco, o sentido original, da mesma forma que um excesso de vegetação rasteira sufoca as colheitas” (Robinson, 1997:26). Se a má tradução é aquela que esconde o sentido original, podemos inferir que as traduções que São Jerônimo apreciaria seriam as não literais, ou seja, aquelas que pudessem exibir o original, ao invés de ocultá-lo em roupagem estrangeira. Assim, as palavras-vestimentas que os tradutores desenham e confeccionam não deveriam ser como um pesado abrigo de inverno que não permite entrever o que há por baixo e, sim, talvez, como um traje de ginástica que deixa poucas dúvidas em relação às formas do corpo que cobre. A metáfora da roupa também ocorre num ensaio intitulado “O tradutor ideal como a estrela da manhã”, escrito por Johann Gottfried Herder em torno de 1766-67, em que critica os franceses porque, para eles, por exemplo, como Douglas Robinson traduz [e esta tradutora retraduz], “Homero deve entrar na França como um prisioneiro, vestido à moda francesa, para que não ofenda os olhos dos que o recebem” (Robinson, 1997: 208). Fiel ao estereótipo tradicional que geralmente separa os franceses e os alemães em questões relacionadas à tradução, Herder ataca a exigência de que Homero seja um escravo da moda francesa. Compara esses ditadores da moda aos “pobres alemães” que, “por não contarem com um público, um país nativo, uma tirania do gosto nacional – apenas querem ver [Homero] como ele é” (ibid.). “Vê-lo como ele é” significaria, talvez, permitir que Homero mantivesse o máximo possível as suas roupas Tradução, corpos nus e troca de roupas | 149

gregas para que os alemães, quando o vissem, pudessem reconhecê-lo como um estrangeiro e, assim, sentir que estão abertos à diferença cultural associada ao significado que vem de fora. Os alemães permitiriam que Homero usasse o tipo de vestimenta alemã que Herder e outros que pensavam como ele haviam imaginado, ou seja, uma roupa que fosse desenhada com o objetivo de parecer uma versão alemã dos trajes nativos que Homero originalmente usara. Herder não esclarece o que seria esse Homero que se tornara um escravo da moda francesa. Seria esse Homero o indivíduo, ou o conjunto de indivíduos que escreveram em grego sob esse nome? Seria o texto original grego o verdadeiro Homero? Ou seria Homero alguma “essência” que imaginamos sob as roupas da língua grega, ou seja, aquilo que até hoje atrai leitores e produz estudos sobre ele – o Homero verdadeiro e desnudo que cremos ser mais fielmente retratado em roupagem grega antiga? Essa metáfora da roupa implica uma equação de dois elementos. De um lado está o “sentido original”, que também pode ser chamado de “significado verdadeiro”. Do outro, temos a roupagem textual, que deveria ser tão facilmente separável do significado como as roupas o são do corpo que envolvem. Theo Hermans escreve sobre outras metáforas que se assemelham a essa e mostra como elas também se baseiam em oposições entre o conteúdo e o invólucro, o perceptível e o imperceptível, concluindo que essas dicotomias implicam “a possibilidade da tradução ao separarem a ‘forma’ do ‘significado’ e ao priorizarem o segundo” (Hermans, 1985:120). Nessas oposições, o significado, concebido como conteúdo e como essência, é o elemento predominante, o alicerce da língua que o acomoda. E é esse conteúdo, ou essa essência, que deve ser mantido e protegido o máximo possível. A metáfora da linguagem como roupa, como outras metáforas textuais, reflete uma tendência do discurso sobre tradução que associa o trabalho dos tradutores a representações marcadas por questões de gênero e sexo. Assim, como se supõe que o tradutor deve encontrar formas de despir o texto até expor o significado que se esconde por baixo do invólucro da língua original, com freqüência se discute a tradução com termos como violação, sedução, reprodução, fetichismo e infidelidade.2 Contudo, se levássemos essa metáfora realmente a sério e tentássemos aplicá-la literalmente, como poderíamos imaginar o tradutor desvestindo o significado de um texto? O tradutor deveria arranhar a página para entrever o significado que se esconde por baixo? Tomar essa metáfora literalmente seria, sem dúvida, inadequado se considerarmos que, quando lidamos com a relação entre o corpo e a roupa, as pessoas em geral conseguem tirar suas roupas e descobrir sua nudez enquanto que, por baixo 150 | Tradução em Revista

das palavras-roupas de um texto, não encontramos um significado-corpo que pudéssemos separar clara e literalmente da roupagem que o protege. Debaixo dessas palavras poderíamos encontrar, apenas, uma página em branco que, embora fosse a meta de Mallarmé, em geral não nos satisfaz enquanto explicação do que um texto possa significar. Alguns poderiam defender a propriedade dessa metáfora e, com razão, considerar ridículo o comentário acima. Argumentariam que o significado não se encontra debaixo das palavras e que seria simplesmente expresso através delas. Diriam que o significado é deduzido ao seguirmos as convenções gramaticais ou lingüísticas que foram estabelecidas para nos mostrar o que certas roupas querem dizer sobre o corpo que carregam. Alguns ramos da lingüística, por exemplo, tentam nos fornecer o que consideram as melhores ferramentas para encontrarmos significados, que nos permitiriam avaliar o corpo que não pode ser visto sem suas roupas, ou diretrizes que prometem nos mostrar como seria esse corpo se, obviamente, fosse possível vê-lo. Talvez pudéssemos dizer que o acesso ao significado envolveria mais a imaginação do que alguma forma de dedução. A partir dessa perspectiva, que implica a possibilidade de se imaginar corretamente o significado que se esconde sob a roupagem do texto, pode-se dizer que uma boa tradução seria como uma malha de tecido elástico usada em atividades esportivas, um traje especialmente desenhado para manter o seu conteúdo adequadamente acondicionado, oferecendo suporte e proteção para certas partes do significado, além de claramente realçar todas as formas e músculos do corpo que cobre. Contudo, quando tratamos do significado, não sabemos realmente qual é a aparência desse corpo, ou até mesmo se há um corpo debaixo das vestes que conhecemos. Ao invés de pensarem o texto como uma forma de malha elástica, o que implicaria que o corpo em questão é um objeto sólido e de contornos claros, outros podem propor que pensemos a roupagem textual como o lençol branco que cobre um fantasma. A partir do lençol podemos imaginar o fantasma sob ele com base em todas as imagens que colecionamos em nossas mentes a partir de velhas lendas, filmes ou até mesmo relatos de testemunhas mas, sem o lençol, o fantasma nos escapa. Aqueles que pensassem em propor essa metáfora do fantasma como uma versão mais apropriada daquela que utiliza o corpo e a roupa poderiam argumentar que o que quer que pensemos sobre a natureza dos fantasmas, e qualquer coisa que dissermos sobre um possível fantasma invisível escondendo-se debaixo do lençol, se basearia numa interpretação do lençol visível que, por sua vez, se basearia em toda a história do que tenhamos aprendido sobre a natureza dos fantasmas. A tradução poderia ser vista, nesses Tradução, corpos nus e troca de roupas | 151

termos, como uma forma de recolocar o lençol visível sobre o fantasma invisível. Nessa metáfora, estabelece-se uma distinção clara entre o fantasma e o lençol da mesma forma que, na anterior, se separa o corpo da roupa. Além disso, como o significado parece sempre nos escapar, um fantasma típico pode ser difícil de ser aprisionado. Mas, depois de nos assombrar, o lençol pode ser removido, dobrado e guardado enquanto que o fantasma retorna para onde quer que os fantasmas se refugiem quando não estão flutuando sob os lençóis, sem se importar com a cobertura que possibilitava sua visibilidade. Quanto ao significado, sabemos que não flutua e depende sempre, e é inseparável, das palavras – escritas ou faladas – em que se inscreve. Essa reflexão parece sugerir que a metáfora do corpo e da roupa envolve dois lados que não são exatamente compatíveis. De um lado, na relação entre roupa e corpo, há dois objetos tangíveis; do outro, na relação entre palavra e significado, apenas a palavra é tangível. Apesar disso, essa metáfora talvez ainda possa nos ajudar a compreender a tradução se examinarmos mais de perto a relação entre roupa e corpo. Quando nos concentramos nesse lado da metáfora, a primeira coisa que percebemos é que, para chegarmos a alguma conclusão, em primeiro lugar teremos que superar o viés a favor do corpo que essa metáfora implica ao sugerir que nossos corpos de alguma forma representam nossa verdadeira essência e que nossas roupas ao mesmo tempo cobrem e exibem essa essência que seria nosso significado original. Nossas roupas seriam, portanto, consideradas um reflexo do nosso “eu” que cobrem. Os estilos de moda que acabamos escolhendo seriam, em termos platônicos, a roupa-mimese com a qual cobrimos nosso corpo-eidos.3 Entretanto, quando tiramos as roupas daquilo que, de acordo com a metáfora, seria nosso significado verdadeiro, somos confrontados com o texto do corpo, o que pode nos levar não apenas a cultivar nossos corpos, mas também a buscar outras formas de mostrar aos outros quem realmente somos. Com freqüência, tentamos mostrar ao mundo esse verdadeiro “eu” que imaginamos estar em algum lugar escondido sob todos os adereços e recursos textuais que usamos. Sabemos, contudo, que esses adereços e recursos são produtos do nosso “eu”, seus reflexos miméticos e, não, nosso “eu” propriamente dito. Em busca de nosso eidos, removemos camada após camada à procura do que seria nossa essência. Assim, quanto ao nosso corpo, embora num primeiro momento possamos considerar que seja nossa verdadeira essência sob as roupas, logo percebemos que é apenas outro texto e, na tentativa de encontrá-la em camadas mais profundas daquilo que nos constitui, podemos também considerar que nosso significado essencial estaria em nosso sangue, em nosso coração, ou em nosso cérebro. Quando essas metáfo152 | Tradução em Revista

ras não nos convencem, tentamos localizar aquilo que nos definiria num lugar além do físico, como nossa alma ou nosso inconsciente. Como não podemos segurar em nossas mãos aquilo que seria nosso significado essencial, nem mostrá-lo aos outros, e como não podemos nunca ir além de mais superfícies textuais, recorremos a essas metáforas textuais que nos fornecem modos de expressão que, como sabemos, não refletem em sua totalidade aquilo que realmente somos, mas não conseguimos imaginar nenhuma outra forma de expressão. Precisamos acreditar que o que fazemos, ou que os recursos que utilizamos para nos expressar realmente dizem, até certo ponto, algo sobre esse “eu” que teima em nos escapar. Como não podemos oferecer aos outros nosso “sentido original”, nos vestimos com textos que serão, na melhor das hipóteses, interpretados de forma satisfatória – ou seja, de forma a refletir pelo menos parte do que realmente somos. Se as roupas que escolhemos realmente influenciam a forma pela qual pensamos em nós mesmos quando desnudos, talvez seja possível que nossas roupas sejam, pelo menos às vezes, uma melhor forma de mostrar nosso “eu”. Mas estaríamos conscientes dessa relação que estabelecemos entre corpo e roupa? Será que nos lembramos de nossas roupas, máscaras e fantasias quando estamos nus? Quando estamos nus, ainda pensamos em nós mesmos de acordo com os significados que atribuímos às nossas roupas? Talvez a nudez seja tão desconfortável para muitos de nós precisamente porque temos que lidar com a ausência dos textos que estamos acostumados a usar como anúncios publicitários que carregamos, com declarações do tipo “este(a) sou eu”, “este é o meu verdadeiro eu”, com o objetivo de dizer ao mundo o que somos. E quando nos despimos desses textos habituais, é fácil esquecer que nossa nudez é, também, nada além de outro texto, e freqüentemente agimos como se os textos que vestimos fossem, na verdade, o que realmente somos, pelo menos aos olhos de nossos leitores. Será que escolhemos um estilo de moda e depois simplesmente o seguimos? Em que medida nos identificamos com os trajes que escolhemos (que não precisam se limitar às roupas literais, envolvendo também as atividades que realizamos) e seguimos o que sabemos que eles supostamente significam? No fundo, entretanto, sabemos que tudo isso não refletiria, na íntegra, o que realmente somos – ou refletiria? Na verdade, o que parece acontecer é que levamos os outros e, talvez, nós mesmos, a acreditar (e a desconfiar de) que somos aqueles que realmente consideramos ser. Essa idéia de separar claramente o que alguns chamam de essência de sua apresentação externa é ilustrada de forma exemplar por um trecho do poema “Tabacaria”, de Álvaro de Campos: Tradução, corpos nus e troca de roupas | 153

Fiz de mim o que não soube, E o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, Estava pegada à cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido. Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e dormi no vestiário Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo E vou escrever esta história para provar que sou sublime. (Pessoa, 1974:365)

Nesse trecho, a noção de identidade se encontra de tal forma envolvida com sua roupagem que não pode ser separada de sua expressão. Como aprendemos com o eu lírico de Álvaro de Campos, mesmo se retirarmos nossas roupas-texto, há um corpo-texto sob elas que também nos serve de máscara. E por trás dela, há outra máscara e, depois, outra e, ainda, outra, e nunca atingimos essa essência que constantemente cremos estar em algum lugar dentro de nós. Portanto, segundo essa concepção, nossa identidade real, ou nosso verdadeiro “eu”, não poderia existir completamente fora de suas expressões físicas (textuais). A impossibilidade que o eu lírico de Álvaro de Campos encontra ao tentar descobrir uma identidade que esteja livre do “eu” que a roupagem implica é a mesma impossibilidade de se descobrir um significado que seja completamente separável da linguagem em que aparece vestido. A concepção tradicional da tradução e seu mecanismo, que pode ser exemplificada através da metáfora das roupas, se baseia no princípio segundo o qual, embora impossível, toda tradução deve ter como meta ser uma cópia perfeita. Assim, os tradutores deveriam descobrir os significados que se encontram sob as palavras e, em seguida, tentar copiar, na língua-alvo, o que crêem ter encontrado. Já que a cópia que preparam não poderá nunca conter a totalidade do significado original pois, para poder copiá-lo em outra língua, é necessário mudar as roupas em que vem envolvido, os tradutores tendem a pensar o resultado de seu trabalho como uma cópia inferior. Quando compreendem sua tarefa sob essa luz, tentam produzir cópias que apresentem os significados que mais se assemelham ao original, ao mesmo tempo em que sabem que haverá perdas pois, como vimos, julga-se que um indivíduo grego, por exemplo, poderá retratar 154 | Tradução em Revista

da melhor maneira seu significado original quando vestido com roupagem grega. Avalia-se, assim, o grau de semelhança entre o corpo imaginado sob o original grego e aquele que se imagina sob a tradução. Não é de surpreender, portanto, que a tradução seja geralmente associada a termos negativos como traição e infidelidade. Contudo, se repensarmos a metáfora da roupagem com o auxílio da problematização da relação entre invólucro e identidade mencionada acima, é possível compreendermos a tradução de uma forma diferente. A concepção tradicional dessa metáfora se baseia na idéia de uma essência pura, de um eidos escondido que se apresentaria numa série de representações (como, por exemplo, o corpo ou as roupas). Nossa aparência seria uma cópia, embora imperfeita, dessa essência. Em termos platônicos, há boas cópias e más cópias, boa e má mimese, sendo que as boas cópias são as que nos proporcionam uma compreensão correta dessa essência e as más as que nos levam a uma essência falsa. Um exemplo fácil poderia ser a declaração freqüente de que alguém não é realmente o que parece ser: “Ele se veste como um perdedor, mas é, na verdade, um cara inteligente”. Ou: “Ela parece tímida mas, quando você a conhece melhor, percebe que, na realidade, ela é...” Todas as roupas têm a pretensão de nos representar. Se seguirmos o modelo platônico, temos que distinguir entre as roupas que corretamente nos remetem à nossa essência verdadeira e imutável e aquelas que nos apontam para uma falsa. Entretanto, como poderíamos começar a distinguir entre essas cópias e representações corretas e incorretas se a experiência nos mostra que não conseguimos chegar à essência, apenas a mais cópias e representações? Privilegia-se, geralmente, a idéia da cópia, da boa mimese, em detrimento do simulacro, como observa Gilles Deleuze em “Simulacro e filosofia antiga”. As cópias, de acordo com o modelo platônico, supostamente se assemelham à essência porque a contêm (ainda que não as contenham completamente), enquanto que os simulacros são “construídos a partir de uma dissimilitude”, o que implica “uma perversão, um desvio essenciais” (2003: 262). Essa noção de que o simulacro se baseia numa dissimilitude pode ser compreendida, também, à luz do problema de identidade encontrado pelo eu lírico que veste o dominó em “Tabacaria”. Nomeia-se a essência a partir da superfície física do texto e sempre haverá espaço para outras interpretações que estabelecem essências diferentes, e até mesmo contraditórias, para um mesmo texto pois há dissimilitude e diferença naquilo que deveria ser o cerne do texto. Segundo Deleuze, as noções de cópia e simulacro apresentam formas muito diferentes de encarar o mundo: Tradução, corpos nus e troca de roupas | 155

Trata-se de duas leituras do mundo, na medida em que uma nos convida a pensar a diferença a partir de uma similitude ou de uma identidade preliminar, enquanto a outra nos convida ao contrário a pensar a similitude e mesmo a identidade como o produto de uma disparidade de fundo. A primeira define exatamente o mundo das cópias ou das representações; coloca o mundo como ícone. A segunda, contra a primeira, define o mundo dos simulacros. Ela coloca o próprio mundo como fantasma. (Deleuze, 2003:267).

Se os alicerces sobre os quais construímos nossas leituras são um fantasma que eternamente evita a possibilidade de uma designação imutável, então não podemos definir a tradução em termos de cópia porque o que supostamente copia não é estável. Sob o próprio original há um fantasma que não conta com uma essência definitiva. Se não fosse assim, nunca haveria discussão alguma em relação aos significados dos textos. O texto, na verdade, serve como uma provocação para se criar significado, embora, ao mesmo tempo, o esconda com a multiplicidade. Se considerarmos que não nos é possível chegar a um significado estável e definitivo a partir do qual poderíamos produzir cópias, teremos que concluir que as cópias são, de certa forma, apenas simulacros ou máscaras que, em determinadas ocasiões, foram chamadas de rostos, como ilustra o fragmento de Álvaro de Campos citado acima. Como não conseguimos chegar a uma essência que nos permitiria distinguir clara e objetivamente a cópia do simulacro, ou o mesmo do semelhante, podemos dizer que a distinção tradicionalmente estabelecida entre a cópia, como repetição do mesmo, e o semelhante, em que o mesmo é marcado pela diferença, é uma simulação. Para Deleuze, a simulação pode ser compreendida no sentido de “signo”, saído de um processo de sinalização; e [...] no sentido de “costume” [ou fantasia,] ou antes de máscara, exprimindo um processo de disfarce em que, atrás de cada máscara, aparece outra ainda ... A simulação assim compreendida não é separável do eterno retorno; pois é no eterno retorno que se decidem a reversão dos ícones ou a subversão do mundo representativo. (Deleuze, 2003:268-269)

Já que há sempre uma outra máscara por trás de toda máscara ad infinitum, não pode haver nenhum centro estável sobre o qual possamos calcar uma cópia realmente fiel. Todo centro é postulado por uma interpretação do texto físico, e é a partir de sua superfície que criamos uma profundidade que imaginamos sob o texto. O simulacro, por sua vez, é produzido a partir da noção de um centro descentrado e mutante. Se a tradução é pensada como um 156 | Tradução em Revista

simulacro, cada nova tradução se torna um novo alicerce e estabelece um novo centro e não mais ocupa seu lugar típico de cópia inferior, o que obrigaria o tradutor a reconhecer seu papel de criador de significados. Da mesma forma que o alicerce desestabilizado não implica a ausência de alicerces, o reconhecimento do papel criativo do tradutor não implica a perda do elo que se convencionou estabelecer entre original e tradução, pois os tradutores, como os autores e todos os usuários da linguagem, estarão também presos ao jogo da significação enquanto simulação e ao eterno retorno determinado a organizar o caos e a impor o mesmo e o semelhante. Nessa posição, e como todos os que escrevem e utilizam a linguagem, os tradutores também estarão fadados a criar novos alicerces que serão, por sua vez, também recriados e desestabilizados. Uma ilustração apropriada desse alicerce desestabilizado a partir do qual podemos redefinir a relação entre original e tradução pode ser encontrada na história das traduções da Bíblia. A recepção da tradução latina, realizada por São Jerônimo, da Septuaginta, a versão grega do Velho Testamento, por exemplo, foi pautada por controvérsia, pois impossibilitava certas interpretações que faziam parte da teologia estabelecida, produto de seiscentos anos de pensamento e estudos teológicos4 . Quer tenha sido adequada ou não, essa tradução se tornou a versão oficial da palavra divina e contava com o apoio do Sacro Império Romano desde as Filipinas até as Américas e em toda a Europa. Embora a tradução de São Jerônimo tivesse como base sua compatibilidade e concordância com as interpretações estabelecidas da Septuaginta (Venuti, 1998:79), acabou criando um novo alicerce para a autoridade do pensamento teológico que, por sua vez, foi desestabilizado pela versão alemã realizada por Martinho Lutero e também pela versão para o inglês realizada pelo Rei Jaime I. Até certo ponto, todas essas traduções recriaram a palavra de Deus a partir de suas próprias perspectivas e estabeleceram um cerne para a exegese e o pensamento teológicos sobre o qual se basearam, e ainda se baseiam, inúmeras iniciativas e justificativas para decisões e ações.5 Isso não quer dizer que o texto bíblico não possa ser tomado como um tipo de alicerce. O que isso pode significar é que essa multiplicidade potencial de significados encontrada no cerne do que conhecemos como sendo a expressão da palavra divina deveria convidar os leitores a problematizar os julgamentos absolutos que em geral fazem com base nesse texto. A ausência de um centro estável que pudesse ser encontrado nas profundezas de um texto e as inúmeras máscaras sobrepostas que encontramos no seu lugar antes de acrescentarmos ainda outra são, para muitos, fonte de decepção. Essa decepção é alimentada também pela idéia de que ao postularmos uma instabilidade, ao invés de uma essência, como base para qualquer Tradução, corpos nus e troca de roupas | 157

significado ou texto e, conseqüentemente, ao oferecermos aos tradutores um original sem essência original, estaríamos instaurando o caos, já que eles poderiam, então, escrever o que quer que lhes viesse à cabeça na tradução do texto alheio, entregando-se, sem controle, ao seu desejo de ser autores. Conseqüentemente, os leitores de traduções não teriam nenhum terreno comum sobre o qual pudessem discutir com outros o que lêem. O que poderia garantir que alguém que lê a Bíblia em grego e alguém que a lê em inglês estariam lendo a mesma coisa? Estariam aqueles que lêem o original grego ou o texto hebraico mais próximos de Deus? (Isto implicaria, por exemplo, que através da história os seres humanos estariam necessariamente se distanciando cada vez mais de Deus.) Essa questão, contudo, pode ser abordada a partir de uma questão semelhante: como podemos garantir que todos aqueles que lêem e extraem conclusões da Bíblia em inglês, ou em qualquer outra língua, estejam lendo o mesmo texto? Esses leitores nunca estão lendo o “mesmo texto” e, sim, textos que são semelhantes. Como argumenta Deleuze, o simulacro não implica a ausência de semelhança: Sem dúvida, ele produz ainda um efeito de semelhança; mas é um efeito de conjunto, exterior, e produzido por meios completamente diferentes daqueles que se acham em ação no modelo. O simulacro é construído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, ele interioriza uma dissimilitude. Eis por que não podemos nem mesmo defini-lo com relação ao modelo que se impõe às cópias, modelo do Mesmo do qual deriva a semelhança das cópias. (Deleuze, 2003:263)

Se considerarmos a tradução como uma forma de simulacro, não podemos emitir julgamentos absolutos sobre a verdadeira origem de uma cópia, já que todo simulacro opera a partir de uma base constituída de diferença e autoriza a possibilidade de uma diferença original. A partir do argumento de Deleuze de que há, no simulacro, “um efeito de semelhança”, podemos reconhecer que é precisamente esse efeito que encontramos em toda a história da atividade tradutória. O reconhecimento de que a semelhança entre original e tradução é um efeito implica, para os tradutores, a possibilidade de explorar mais completamente a superfície das línguas que estão traduzindo, ao invés de se abandonarem à nostalgia e a sentimentos de fracasso quando comparam a tradução à sua origem imaginária. O fato de que não há um centro fixo e para sempre estável e de que não há uma técnica disponível que possa conduzir os tradutores até algum tipo de essência livre de qualquer ambigüidade deve levar os tradutores a repensar radicalmente a noção de ética em tradução. 158 | Tradução em Revista

Se não há uma essência pura e acessível, uma ética de tradução não pode ser compreendida simplesmente nos termos tradicionais de fidelidade ou infidelidade a um significado essencial. Se há diferença na própria origem, uma diferença que cria uma impossibilidade de se confinar um texto dentro dos limites de uma interpretação definitiva, os tradutores não poderão se esconder anonimamente por trás de estratégias que supostamente lhes forneçam algum tipo de objetividade. Não é apenas impossível que os tradutores descubram um centro essencial a partir do qual todo o significado emana, como também é inevitável que criem novos centros ao redor dos quais baseiam seus textos. E da mesma forma que a tradução reposiciona o suposto centro do original, as interpretações que se construirão a partir dela também reposicionarão o seu centro. Ainda que essa instabilidade provoque, com freqüência, o medo de que se abrirmos mão da noção de que há um centro estável, ou um corpo perfeitamente delimitável sob as roupas das palavras, o caos se apoderará de todo significado, Deleuze a vê como algo muito positivo. Como mencionado acima, o filósofo francês equaciona o simulacro ao eterno retorno e diz que o mesmo “não exprime de forma nenhuma uma ordem que se opõe ao caos e que o submete. Ao contrário, ele não é nada além do que o caos, potência de afirmar o caos” (Deleuze, 2003: 269). A afirmação do caos para os tradutores implicaria aceitar seu papel de criadores de novos centros e criticamente examinar os fatores que construíram nossa compreensão do corpo que se supõe escondido sob o texto. Ao reconhecerem e afirmarem o corpo que criaram em sua tradução e, ao mesmo tempo, ao cobrirem esse corpo para que seus leitores, por sua vez, também possam construí-lo novamente, os tradutores poderão desempenhar um papel mais incisivo na tarefa de dar voz à diferença. É precisamente nesse sentido que a tradução participa do eterno retorno que, como afirma Deleuze, “é potência para afirmar a divergência e o descentramento” (p. 270). Se a atividade da tradução realmente se assemelhasse a tirar as roupas de um corpo e trocá-las por outras, seria concebível pensar no trabalho dos tradutores como a realização de uma atividade simplesmente mecânica, que implicasse apenas a escolha de seguir, ou não, alguma técnica infalível que muitos estudiosos estão tentando estabelecer para retirar significados de dentro de suas roupas lingüísticas e confeccionar outras que o vistam perfeitamente. Contudo, quando entendemos o texto material e o significado como dependentes um do outro, a tarefa do tradutor se torna muito mais interessante. Como as roupas textuais não podem ser nunca verdadeiramente removidas, o papel do tradutor enquanto intérprete se torna muito mais importante. Quando se Tradução, corpos nus e troca de roupas | 159

conscientizam de que seu ofício de juntar fragmentos de textos para costurálos ao original que traduzem é, na verdade, também uma construção do corpo que supostamente estaria sob a roupa lingüística que necessariamente confeccionam, os tradutores podem assumir de forma mais efetiva seu papel de criadores e de agentes do conhecimento e de sua disseminação. Embora essa seja uma visão mais positiva dos tradutores do que aquela que foi tradicionalmente estabelecida, talvez seja triste para alguns aceitar a impossibilidade de se chegar à nudez total. (Traduzido do inglês por Rosemary Arrojo)

___________________________________________ 1 Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada durante a PIC (Philosophy, Interpretation, and Culture) Conference, realizada na Universidade do Estado de Nova York em Binghamton, E.U.A., em 22 de abril de 2005. 2 Para uma discussão interessante da interface entre gênero e tradução, ver, por exemplo, o ensaio “Gender and the metaphorics of translation”, de Lori Chamberlain (Venuti 2000: 314-329). 3 Podemos lembrar aqui que, em termos platônicos, eidos é a essência pura, infinita e imutável de algo, sua verdade definitiva que pertence ao mundo das formas. A mimese é uma representação desse eidos. A boa mimese é a representação que nos levaria à intuição adequada do eidos. A má mimese nos levaria a uma idéia falsa do eidos. 4 Para uma discussão detalhada dessa questão, ver Venuti 1998:78. 5 Atualmente, devido à alta proporção de trabalho missionário dominado pelos Estados Unidos, que se baseia em interpretações contemporâneas e norte-americanas da Bíblia, um processo que com freqüência inclui a transformação de línguas orais em línguas escritas para que seja possível a realização de traduções dos textos sagrados, pode-se argumentar que a base mais poderosa por trás da palavra de Deus é os Estados Unidos.

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Referências bibliográficas CHAMBERLAIN, Lori. (2000) “Gender and the metaphorics of translation”. Em L. Venuti (org.) The Translation Studies reader, 314-329. London/ New York: Routledge. CICERO, Marco Túlio (1997) “De finibus bonorum et malorum”. Trad. de H. Rackham. Em D. Robinson (org.) Western translation theory: from Herodotus to Nietzsche, 10-12. Manchester: St. Jerome Publishing. DELEUZE, Gilles (2003) Lógica do sentido. Trad. de Luiz Roberto Salinas. São Paulo: Perspectiva, 4ª ed. HERDER, Johann G. von. (1997) “The ideal translator as morning star”. Trad. de D. Robinson. Em D. Robinson (org.) Western translation theory: from Herodotus to Nietzsche, 207-8. Manchester: St. Jerome Publishing. HERMANS, Theo (1985) “Images of Translation”. Em T. Hermans (org.) The manipulation of literature: studies in literary translation. Beckenham, Kent: Croom Helm, pp.103-135. JEROME, Eusebius (1997) “Letter to Pammachius, #57”. Trad. P. Carroll. Em D. Robinson (org.) Western translation theory: from Herodotus to Nietzsche, 23-30. Manchester: St. Jerome Publishing. NIDA, Eugene (1975) Language, structure, and translation. California: Stanford UP. PESSOA, Fernando (1974) Obra poética. Rio de Janeiro: Companhia José Aguilar Editora. ROBINSON, Douglas (org.) (1997) Western translation theory: from Herodotus to Nietzsche. Manchester: St. Jerome Publishing. VENUTI, Lawrence (1998) The scandals of translation. London/New York: Routledge. VENUTI, Lawrence (org.) (2000) The Translation Studies reader. London/ NewYork: Routledge.

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