Companhia de Jesus no Brasil do Século XVI

August 28, 2017 | Autor: Mário Lamparelli | Categoria: History
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MÁRIO DE CAMPOS ANDRADE LAMPARELLI

COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL DO SÉCULO XVI: SINCRETISMO E BATISMO

SÃO PAULO JUNHO DE 2012

nº USP 8030530

Imagem da capa: Gravura em metal, Philopono, 1621. Fonte: GAMBINI, Roberto - Espelho índio: a formação da alma brasileira. Rio de Janeiro, Espaço e Tempo, 2000.

INTRODUÇÃO

No presente trabalho procurou-se esclarecer alguma coisa no que diz respeito ao sincretismo e o batismo dentro de um recorte espacial e temporal, uma realidade específica que era o costeiro Brasil-Colônia1 do século XVI. Brasil das confrarias e “Casas de Meninos”, da “Santa Casa de Misericórdia” e, enfim, do catolicismo como elemento fundamental em sua formação. Fundamental pelo destaque que recebe nos planejamentos do rei de Portugal, D. João III, que tem como a reger a Companhia de Jesus “reformar os cristãos em bons costumes; converter os gentios”2. A empresa colonial coloca-se também como empresa religiosa, e a conversão dos gentios significa ampliação da cristandade num momento crítico do Catolicismo mundial e ampliação dos poderes políticos do monarca. O peso do catolicismo na formação do Brasil é imensurável, e dá margem mesmo a modelos explicativos que o colocam como “ 'cimento' que une a nação, o 'laço' que prende a todos, o local de reunião e confraternização entre as raças as mais diversas que compõem a nacionalidade […]”3. Já elucidada a importância da “conversão do gentio” para o estudo do Brasil-Colônia como um todo, realizou-se pesquisa apenas no tocante à Companhia de Jesus, apartando de exame eventuais contribuições de outras ordens religiosas. Ainda dentro desse recorte, focou-se a análise de elementos fundamentais no tocante à própria religião, que são o sincretismo e o batismo, elementos estes não necessariamente pertencendo à uma mesma esfera categórica, porém relacionados na pesquisa seguinte.

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O termo utilizado é esse porque eram variados os nomes empregados para se referir à essas terras portuguesas na América, e convencionou-se aqui Brasil-Colônia por seu emprego na obra de Eduardo Hoornaert. LEITE, 1965, p. 24. HOORNAERT, 1978, p. 14.

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E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o Evangelho a toda criatura. O que crer e for batizado, será salvo; o que porém não crer será condenado.

MARCOS 16:15-16

Já esclarecido o peso que assume a atuação dos jesuítas na América Portuguesa, parte-se aqui para a discussão que permeia todo o estudo acerca da religião em si: o sincretismo. Hoornaert coloca que o sincretismo é ele mesmo “exigência da missão. Enviando os apóstolos a judeus e pagãos, Jesus de Nazaré os obrigou a enfrentar as mais diversas culturas, a viver a mensagem nas mais diversas situações. Daí nasce o sincretismo, deste impulso missionário” 1. A evangelização, portanto, pressupõe um diálogo com o outro, por menos aberto que ele seja. No caso dos jesuítas, isso significou uma série de reflexos nos métodos utilizados na catequese e mesmo interessantes interpretações, de ambos os lados, dos fenômenos que implicam o processo de doutrinação. Ainda na discussão acerca do sincretismo, Hoornaert coloca reflexão central do campo da teologia: o discernimento de “verdadeiro” e “falso” sincretismo: O verdadeiro sincretismo leva à cristianização de uma determinada cultura, isto é, consegue transmitir a mensagem essencial da paternidade de Deus, da decorrente fraternidade entre os homens, da ressurreição dos justos em Cristo, da ação do espírito na história. O falso sincretismo leva à paganização do próprio cristianismo, faz com que o 'sal da terra' perca seu sabor, consagra a vitória da descrença em Deus Pai, do desespero e do egoísmo, muitas vezes sob as aparências da mais perfeita ortodoxia, da mais santa religião.2

Essa questão acerca do sincretismo foi fundamental na formação da Igreja no Brasil-

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HOORNAERT, 1978, p. 24. Prossegue o autor: “Não se pode de maneira nenhuma aceitar a posição dos que dizem que existe, de um lado, o cristianismo puro e 'autêntico' e, do outro lado, o paganismo oposto e irreconciliável. A realidade é bem mais complexa: existem diversas situações humanas, diversas culturas. A autenticidade do cristianismo se situa no nível destas situações e vivências, não no nível dos símbolos.” HOORNAERT, 1978, p. 138.

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Colônia, pois implicou debate sobre a formação de um clero local 3 e mesmo sobre os métodos utilizados na doutrinação do gentio. A questão também abarca o debate sobre o possível efeito da falta de universidades e livros no Brasil-Colônia: um cristianismo sem fundamentação bíblica, afastado da teologia, como coloca Hoornaert4. Tal colocação será rebatida por Serafim Leite, que enxerga nos colégios jesuítas das principais vilas do Brasil, potenciais universidades e centros de propagação do saber 5. Os colégios, em realidade, significavam ferramenta de preparação de seminaristas e de ensino (que ia desde o “ABC” até a física escolástica). As missões eram organizadas numa articulação entre os colégios e os aldeamentos6, o ensino estava sempre atrelado à doutrinação7. Artifício recorrente nesses Colégios era o da doutrinação e convívio conjunto de meninos órfãos (vindos de Portugal) e gentios. “Os órfãos aprendiam tupi, os índios português. O gelo quebrara-se” 8. Reitera-se novamente o planejamento de Nóbrega da formação de um clero local. A catequese dos nativos foi tema de grandes discussões no campo da teologia no século XVI. A visão do português sobre o ameríndio era dinâmica: o gentio oscilava entre “ingênuo” e “demônio”, por vezes era visto em pureza adâmica e por outras era animalesco e rústico. A antropofagia era vista com enorme repulsa, enquanto a nudez ora contribuía para uma visão de inocência, ora de libidinosidade9. O gentio deixa de ser o “papel em branco”, é inconstante e perverso. Mas, num olhar de Manuel da Nóbrega partilhado por grande parte dos missionários jesuítas: o gentio era “ferro frio” que só se podia trabalhar depois de “metido no fogo” 10. Entre os problemas que depararam os jesuítas no ofício da doutrinação encontravam-se 3 4 5 6 7

Preocupação essa já demonstrada no início das ações de Manuel da Nóbrega no Brasil-Colônia. HOORNAERT, 1978, p. 20. LEITE, 1965, p.40. HOORNAERT, 1984, p. 31. Leite chega a dizer: “Não se pode garantir que não existisse aldeia sem escola, porque nem sempre havia missionários para residir em todas, mas procurou-se que a escola não faltasse onde fosse possível […]”. LEITE, 1965, p. 40. 8 LEITE, 1965, p. 63. 9 VAINFAS, p.47. 10 LEITE, 1965, p. 61.

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principalmente: a antropofagia, a poligamia e a nudez 11. Afora a inconstância já notada no ensinamento dos adultos, razão pela qual focava-se a evangelização das crianças bem como o apartamento destes dos mais velhos. A resposta encontrada para muitos desses problemas estava no batismo: mais do que conferia nome cristão ao gentio, o batismo sanava muitos pecados dos índios. Nos grandes batismos públicos era notável o uso do batismo como “remédio” ao antigo modo de viver gentílico. O batismo era a salvação, “adquire um novo sentido no contexto da guerra de missão: torna-se meio de pacificação dos índios”12. Era, porém, dinâmica tal concepção, pois logo os padres percebiam a insistência dos índios nos pecados mesmo após o batismo. É visível a preocupação, por exemplo, do Pe. Manuel da Nóbrega em sua carta a D. João III explicitando o que deveria ser feito para sanar tal problema: 1) os índios que pediam o baptismo deviam ser provados primeiro, de maneira que ou haviam de ser “bons cristãos ou apartarem-se de todo da conversação dos padres”; 2) não deviam ser baptizados em multidão; 3) por isso, “os que se agora baptizam os apartamos em uma aldeia, onde estão os cristãos, e têm igreja e casa nossa onde os ensinam”. 13

O batismo era assim ferramenta privilegiada na catequese e, acima de tudo, salvação dos índios. Porém, o batismo não era de todo estranho aos índios, pelo menos aos Guarani 14, e passa a ter diversos significados para os indígenas. Muitos feiticeiros supunham que o batismo veiculava a morte15, ou mesmo tirava o gosto das carne humana se aplicado antes da execução da vítima de um ritual antropofágico, como mostra Kok 16. Existia até mesmo, por parte dos guarani, um ritual de anulação do batismo no qual o xamã, “vestindo o hábito sacerdotal, lançava água quente sobre 11 12 13 14

LEITE, 1965, p. 22. HOORNAERT, 1978, p. 48. LEITE, 1965, p. 7. O jesuíta Ruiz de Montoya nota que os guaranis tem o costume de tocar o corpo do defunto após o rito antropofágico e receber seu nome. KOK, 2001, p. 24. 15 O batismo está, em muitas instâncias, associado à morte, pois é ele que garante a salvação no post mortem, por exemplo. A interpretação dos feiticeiros se dava dessa maneira muito provavelmente porque o batismo, realizado pelos jesuítas, era preferencialmente “utilizado” antes da morte do indivíduo, para evitar que sua alma fosse perdida. 16 KOK, 2001, p. 93.

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o corpo das crianças, 'a fim de apagar a marca dos santos óleos, esfregando-lhes a língua com argila e uma concha para suprimir o gosto de sal', banhando-lhes os pés e não a cabeça como faziam os jesuítas.”17 Essa nefasta relação que faziam os indígenas do batismo com a morte não era alheia às práticas dos jesuítas, que muitas vezes preferiam batizar alguém no leito de morte porque assim a alma era salva e mesmo o índio não teria forças para reincidir nos antigos pecados. Também está tudo atrelado à uma concepção própria da morte e do post mortem indígena, na qual uma morte por doença ou natural é extremamente desonrosa . O batismo era ao mesmo tempo promessa de vida eterna e a danação.

17 KOK, 2001, p. 142.

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CONCLUSÃO O presente trabalho buscou fazer alguma relação entre o sincretismo inerente ao catolicismo missionário praticado no Brasil-Colônia do século XVI e o processo de batismo dos gentios nativos. Os diferentes significados do batismo no processo de evangelização também reiteram a ideia de Hoornaert de que o catolicismo foi elemento de “conglomeração”, mas não “confraternização”1. O sincretismo foi uma realidade desse período, num momento em que a Igreja Católica encontrava-se em crise e necessitava, mais do que nunca, de uma identidade capaz de formar unidade. O pragmatismo das missões, porém, e a necessidade de salvar as almas dos gentios fizeram mais no sentido de criar uma realidade única no Brasil, como coloca Vainfas em determinada passagem: “Os inacianos eram, porém, realistas, e o dia a dia da catequese fez-lhes ver que a missão deveria adaptar-se ao Novo Mundo, recuar taticamente diante das peculiaridades do trópico”2.

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HOORNAERT, 1978, p. 54. VAINFAS, 2010, p. 50.

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BIBLIOGRAFIA

HOORNAERT, Eduardo – Formação do catolicismo brasileiro, 1550-1800. Petrópolis, Vozes, 1978.

___________. - A Igreja no Brasil-Colônia, 1550-1580. Brasiliense, 1984.

KOK, Maria da Glória – Os vivos e os mortos na América portuguesa: da antropofagia à água do batismo. Campinas, Editora da Unicamp, 2001.

LEITE, Serafim – Suma histórica da Companhia de Jesus no Brasil: Assistência de Portugal, 15491760. Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1965.

VAINFAS, Ronaldo – Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2010.

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