Comunicação digital e deliberação politica: o impacto da revolução neoliberal nos estudos em comunicação.

May 31, 2017 | Autor: Joao Carlos Correia | Categoria: Critical Theory, Social Theory, Media and Cultural Studies, Hermeneutic Phenomenology
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Comunicação digital e deliberação politica: o impacto da revolução neoliberal nos estudos em comunicação. Introdução

Este texto é uma reflexão sobre o modo como a revolução neoliberal se cruzou com a revolução tecnológica e implicou uma mudança paradigmática ao nível do processo comunicacional e cultural. Para tal, procede-se ao percurso seguinte: 1)

Uma alusão breve ao fenómeno ou conjunto de fenómenos que dão pelo nome de

neoliberalismo, a fim de precisar a sua identidade e a sua pertinência, 2)

Em segundo lugar, o modo como o mesmo, em grande parte graças aos media e aos

agentes políticos que neles intervêm, se tornou, mais do que um fenómeno, um desiderato, um objetivo, um fim a atingir. 3)

Em terceiro lugar, e como aspecto central desta conferência, procuro indagar o modo

como esse neoliberalismo se articulou com a comunicação e a cultura mediáticas na nova ecologia digital dominada pelos TICs. Verifica-se a este nível, a.

O triunfo de uma certa concepção de racionalidade instrumental nas ciências sociais e

ciências da comunicação em que a dimensão ética da luta pelo reconhecimento é em larga medida, reconfigurada, com impactos consequentes no espaço publico; b.

O predomínio de uma racionalidade utilitarista na economia: a mobilização dos agentes

comunicacionais pelo sistema produtivo com impacto na composição social dos protagonistas da produção o mediático (observe-se, a título de exemplo significativo, o aparecimento do chamado precariado). c.

relacionadas com a anterior uma significativa erosão do paradigma comunicacional

vigente e o surgimento de um novo paradigma com naturais implicações para a economia do sector e de sectores adjacentes, englobando informação, entretenimento e conhecimento. d.

uma certa mobilização, das energias criativas despertadas pelas tecnologias da

informação e da comunicação pela nova economia. e.

Esta reflexão decorre finalmente sob o pano de fundo de uma, de uma preocupação

sobre o futuro do ensino superior e da academia .

I Definição do fenómeno Em relação à definição do fenómeno: O neoliberalismo diz respeito aos princípios doutrinários fundadores devedores da Escola Austríaca, designadamente Ludwig von Mises, Friedrich von Hayek e, por descendência directa, Milton Friedman. Na programação neoliberal identificam-se duas ancoragens: a alemã que se prende à República de Weimar, ao impacto europeu da crise de 29, à ascensão do nazismo e à reconstrução do pós-guerra; e a americana, isto é um neoliberalismo que tem por alvo a política a New Deal e o surgimento dos programas sociais do pós-guerra protagonizados pelas administrações democratas, principalmente Truman, Kennedy e Lyndon Johnson. Ambas têm por adversário comum o keynesianismo, a planificação e intervencionismo (cf. Foucault, 2008: 108). No caso alemão, a RFA, entre 1930 e 1950, através da liderança política de Ludwig Erhard e, mais tarde, graças à aceitação da livre concorrência pelo SPD no congresso de Bad-Godesberg, compartilhará de um percurso distinto do intervencionismo estatal do pós-guerra, defendendo a fundação legítima do Estado sobre o exercício da liberdade económica (Foucault, 2008: 113). Inclui, nas suas genealogias, o ordoliberalismo, corrente associada à escola de Friburgo, e a nomes como Franz Bohm, Muller –Mark, futuro Secretário de Estado do Governo da RFA, Wilhelm Röpke, que à semelhança de Hayek ,encontraria na experiência trabalhista inglesa do pós – guerra a mesma intenção planificadora que conduziu ao nazismo; Walter Eucken, professor da Escola de Friburgo conselheiro próximo do Governo alemão ocidental e fundador da revista Ordo.

O neoliberalismo foi, de certo modo, uma redefinição do liberalismo económico clássico. Hayek defende claramente uma ideia de caminho abandonado que deve ser retomado. Apesar de alguma distância em relação ao princípio do laissez–faire e da admissão de cambiantes, quaisquer reservas que possam ser intuídas são sempre admitidas com relutância.

Talvez nada tenha sido mais prejudicial à causa liberal do que a obstinada insistência de alguns liberais em certas regras gerais primitivas, sobretudo o princípio do laissez-faire. Contudo, de certa maneira, essa insistência era necessária e inevitável. (…). E como se firmara uma forte convicção de que era imprescindível haver liberdade na área industrial, a tentação de apresentá-la como uma regra sem excepções foi grande demais para ser evitada. (Hayek: 2010: 4)

b) O neoliberalismo surge num difícil contexto histórico: interrupção, nos anos 70, do período de crescimento económico da pós-guerra, a celebração dos acordos de Bretton Wood em meados dos anos 70, a erosão do compromisso keinesiano desenvolvido na Europa, a implosão do bloco soviético e das alternativas de desenvolvimento ensaiadas em países mais pobres, depois das primeiras crises de dívida verificadas nos anos 80 e 90. Segundo Boaventura Sousa Santos (2005): O ponto de viragem deu-se em 1975, quando a Comissão Trilateral publicou o seu relatório sobre a crise da democracia, da autoria de Crozier, Huntington e Watanuki (1975). Segundo estes, a democracia estava, de facto, em crise. Não, porém, por haver democracia a menos, mas, pelo contrário, por haver democracia a mais. As democracias estavam em crise porque se encontravam sobrecarregadas com direitos e reivindicações porque o contracto social, em vez de excluir, era demasiado inclusivo, devido precisamente às pressões sobre ele exercidas pelos actores sociais históricos atacados pelos estudantes (os partidos operários e os sindicatos)

c) o neoliberalismo é um fenómeno complexo e pouco dado a abordagens lineares.

. Para além das derivas de sucessivas escolas, há que ter em conta o plano da coerência entre a teoria, fortemente normativa, mas apenas em pontos seleccionados, o que configura uma flexibilidade na sua aplicação, desde que os mandamentos essenciais continuem gravados em pedra. Assim, há–de reconhecer-se que a ortodoxia ideológica de Hayek e de muitos dos intelectuais defensores do paradigma monetarista, protagonizadas por Paul Volker, à frente do Federal Reserve Bank geravam tensões com a economia voodoo frequentemente inflacionista, protagonizada pela Administração de Reagan.

d) o neoliberalismo é aliado dos conservadores, mas do ponto de vista filosófico está longe de se identificar com eles. Será interessante recordar a propósito mais uma passagem de Hayek: o verdadeiro liberalismo distingue-se do conservantismo e é perigoso confundi-los. Por sua própria natureza, um movimento conservador tende a defender os privilégios já instituídos e a apoiar-se no poder governamental para protegê-los. A essência da posição liberal, pelo contrário, está na negação de todo privilégio, se este é entendido em seu sentido

próprio e original, de direitos que o estado concede e garante a alguns, e que não são acessíveis em iguais condições a outros. (Hayek, 2010: 217).

Na verdade, a natureza da relação com o conservadorismo manifesta-se ainda que, de forma contraditória, na destituição de velhas elites e na sua substituição por novas: dinheiro velho e dinheiro novo representaram, inclusive, recentemente, em Portugal, o confronto entre conservadorismo e liberalismo, tal como se verificou no Reino Unido com alas tradicionalistas do Partido Conservador na ascensão de Tatcher, a descendente de um honesto pequeno comerciante. Finalmente, a relação do neoliberalismo com a tradição liberal clássica encerra muitas contradições. É como se primeiro houvesse que assegurar uma politica fiscal estrita e fortemente penalizadora para assegurar o equilíbrio do défice e depois, no relançamento do crescimento, o Estado recuasse, através de um processo que implica a eliminação de entraves à competição colocadas pelo Direito de Trabalho (o Direito fica à porta da fábrica), a flexibilização dos contractos, a eliminação dos processos de contratação colectiva, a restrição do exercício dos direitos sindicais como elemento de perturbação da competividade. Apesar da ideia de governo frugal (Foucault, 2003: 40) há um intervencionismo estatal que faz recuar o estado na propriedade e na prestação de serviços sociais ao mesmo tempo que há um aumento da intervenção na eliminação de constrangimentos à liberdade empresarial. Uma restrita ordem jurídica do capitalismo inicial, que se resumia à propriedade ao contracto e uma sumária constituição económica são os pilares de uma concepção de Estado que, pelo facto de assentar sobretudo no exercício da função social da segurança e do imposto, é baptizado de Estado Guarda- nocturno ou, como foi também designado, EstadoPolícia. (Moreira, 1978: 13).

O neoliberalismo não se situa sob o signo do laissez-faire, mas ao contrário sob o signo de uma vigilância, de uma actividade de uma intervenção permanente. Numa palavra: a teoria neoliberal choca-se com dificuldades que resultam da contradição de pretender restabelecer a liberdade através da coacção (cf. Moreira, 1978: 110).

Sendo difícil identificar uma situação de liberdade no sentido moderno do termo na

recente ocupação do Iraque, as dimensões semânticas e pragmáticas do uso desta palavra manifestam-se em 19 de setembro de 2004, quando Paul Bremer, director da Autoridade Provisória da Coligação naquele país, promulgou quatro decretos que apontavam para os seguintes objetivos; A) plena privatização das empresas públicos; B) Atribuição de plenos direitos de propriedade para as empesas estrangeiras que tivessem adquirido ou viessem a adquirir empresas iraquianas; C) regulação estrita do mercado de trabalho e D)

um plano de reforma fiscal.

A mesma perplexidade sobre as possibilidades semânticas e pragmáticas do uso das palavas (de modo, uma vez mais, familiarmente orwelliano) é demonstrável, de forma mais acentuada, pelo facto de a primeira experiência neoliberal se ter concretizado no Chile, em 1973, através de um golpe de estado. Liberdade é autoridade para obrigar os mais renitentes a interiorizarem o espirito empresarial do homo economicus.

II

Expandindo a influência da concorrência de mercado como a nova forma de racionalidade global, os processos de neoliberalização e desregulação avançaram rapidamente por todo o Globo. A revolução neoliberal está associada à globalização. Neste sentido que se compreendem as palavras de Barata Moura, acerca da globalização:

“A globalização no registo dominante da sua dominação hodierna, corresponde a um fenómeno, e a um desiderato (…) A globalização é fenómeno, porque aparece e transparece, como unidade que suporta e articula, enquanto desenvolvimento “naturalizado” de uma lógica multisecular , toda uma pluralidade de manifestações ocorrendo em múltiplos tabuleiros), segundo conexões intrínsecas nem sempre imediatamente percetíveis; a “globalização” é desiderato, porque, do mesmo passo, pretende consolidar e expandir essa forma estruturante de organização (adaptada à emergências de novas possibilidades), firmando-a como o dispositivo único e sem alternativa, tanto no plano da actividade como na esfera das ideias (e sentimentos) que reflectem, avaliam e perspectivam ” (Barata Moura, 2008: 64)

É neste sentido que chamamos a atenção para o empobrecimento do espaço publico.

O modelo neoliberal contém uma espécie de modelo padrão que contamina a organização do pensamento. Desencadeia um processo de minimização das potencialidades críticas e hermenêuticas, de uniformização das ideias e da produção de enquadramentos mediáticos e individuais que permitem a sua disseminação na vida quotidiana, numa lógica de hegemonia intelectual, que nos interessa enquanto pesquisadores da comunicação.

Apesar dos aumentos dos níveis de lucros, do decréscimo dos défices e das taxas de inflação, nem as taxas de crescimento nem as taxas de desenvolvimento económico estão minimamente próximas de permitirem a recuperação do emprego e dos níveis de vida prévios às experiencias desenvolvidas pelos neoliberais. As politicas neoliberais não têm forma de apresentar, como não apresentam de fato, a defesa empírica do mundo que constroem. Ao contrário, eles apresentam – ou melhor, exigem uma fé religiosa na infalibilidade do mercado desregulado. Onde está a origem desta fé pouco escrutinada, deste sucesso de uma ideologia que se justifica a si própria por não ser ideologia e ser bem pelo contrário uma adesão ao princípio da realidade? Uma das causas pode residir na natureza flexível e simplificadora da teoria neoliberal. As mais bem-sucedidas ideologias têm afirmado o seu sucesso na desmistificação de outras ideologias e na sua adesão ao principio da realidade. O neoliberalismo encontrou, na análise económica, os elementos que permitiriam configurar cientificidade à sua afirmação, usando como estratégia discursiva a rejeição de todas as outras alternativas, acusando-as de serem, elas sim, ideológicas. Um pouco à semelhança do que fez o marxismo, a determinação da realidade afecta aqui o conceito de “ideologia” e este opõe-se ao conceito de realidade económica. Quando ouvimos alguns protagonistas das práticas neoliberais criticarem o idealismo dos seus opositores e acusarem-nos de fazerem opções ideológicas, a “ideologia” é tratada conceptualmente, de modo análogo ao praticado pelo marxismo, isto é, como “distorção”, isto é, o oposto da “verdade”. (cf. Ricoeur, 1986: 18). A “verdade” neste caso, em lugar de ser a luta de classes como o motor da história é a liberdade de empresa como motor do individualismo que origina a capacidade criativa do Ocidente. A distinção fundamental é a lógica da governamentalidade assinalada por Foucault: esta é imune à questão da legitimidade e centrada na definição das estratégias de veridicção, isto é, na produção dos regimes de verdade. O neoliberalismo, não se define pela legitimidade ou não legitimidade da sua acção, mas

antes em indagar dos seus efeitos: o sucesso ou fracasso vão substituir a demarcação entre a legitimidade ou não legitimidade e esta transformação vai aperfeiçoar a razão de estado. Adicionalmente, o Mercado, por seu lado, não surge mais como um lugar de jurisdição, mas como uma “coisa” que obedece e deve obedecer a impulsos naturais (Foucault, 6;14; 21; 23; 40; 44). Ora, uma “coisa” é o que é. quando uma certa proposta política assume uma certa coercibilidade e universalidade que lhe permite atribuir-se a pretensão de se furtar ao debate político. Ao assumir essa indiferença perante qualquer normatividade ou legitimidade extrínsecas á sua racionalidade e respectiva optimização, o neoliberalismo abre um percurso de negação da própria interpretação. Na sua formulação prática e na sua discursividade diária, quotidiana parece assumir, com as reservas devidas, alguma simetria com outras ideologias que consideram o económico como o factor determinante de explicação do politico, embora de forma paradoxal e complexa. Exatamente, talvez pela sua flexibilidade, simplicidade e pelo esvaziamento de formulações abstractas em obsolescência, o neoliberalismo desenvolveu, de forma bem-sucedida, uma vasta teia de metáforas, discursos, estratégias discursivas e princípios organizacionais que rivalizam pelo seu poder encantatório, no plano secular, com o marxismo. A invocação da “pieguice” dos adversários (entendendo-se como uma fraqueza moral que se traduz na incapacidade de enfrentar aquilo que é dito como sendo a “realidade”, e o contrario, uma virtude quase se expressaria numa fixação, grosso modo, estóica na realidade – ex.: “que se lixem as eleições” ); a invocação de uma casualidade simples e a acusação imputada ao adversário de ser portador de uma contrafactualidade ingénua conferem uma eficácia particularmente notável ao discurso liberal, que reforça a sua natureza desafiante e utópica. A natureza do conhecimento do real expressa pelos neoliberais reduz a ideologia à categoria da distorção, mas furta-se sempre à acusação de ser, ela própria, ideológica.

Esta insistência na quase inevitabilidade da solução neoliberal articula-se com a problemática do pessimismo, do cinismo e da sensação de impasse que parece associada ao triunfo da ordem neoliberal. De uma certa forma, os agentes sociais sentem-se vítimas de poderes abstractos. Entidades abstractas como as corporações, as redes, as organizações supranacionais e os imperativos factuais da geoestratégia parecem mais vigorosos do que qualquer genuíno sentimento participativo ou qualquer reivindicação soberana.

A democracia e o poder do voto parecem confrontar-se com a decepção: as escolhas económicas foram limitadas por tratados e organizações supranacionais que regulam a estabilidade laboral e a o peso da carga fiscal. Os partidos políticos de esquerda e de centro-esquerda têm dificuldade em descobrir novos frames e metáforas que lhe permitam reconstruir, de modo credível, um processo de intervenção na realidade. Muitas vezes, o seu discurso emerge como uma espécie de nostalgia inalcançável aprisionada entre a sua apropriação em coligações com o centro-direita que acabam por se traduzir na defesa de soluções liberais (é o caso do SPD Alemão) ou pela experimentação de fórmulas cuja consistência, capacidade apelativa e durabilidade é ainda carente de prova: Jeremy Corbyrn, Pablo Iglesias, Berni Sanders, Alexis Stipras, para nos referirmos aos merecedores de constatação de alguma consistência política. Neste caso, Portugal seguiu uma via original que influenciou, apesar de tudo, um ambiente relativamente favorável à formação de um Governo Quanto aos movimentos “radicais”, vale a pena perguntar se são de facto tão radicais já que frequentemente se exauriram pelo cansaço, deixando uma marca nos modelos de discussão pública, mas raramente nas consequências políticas da sua actividade, a não se quando assumiram jogar as regras do jogo político partidário democrático que, nalguns casos, rejeitam. A consulta das redes sociais em momentos de manifestação prova frequentemente que, muitos, quando interrogados sobre o objectivo das manifestações, dão conta uma sensação genérica de futilidade ou optam por uma radicalização inconsequente. Quando olhamos para os protestos hoje como um exercício de cidadania, no melhor dos casos, são apenas parcialmente bem-sucedidos. Produzem agendamento ou ate novos enquadramentos para os temas em debate, mas não existe uma prova empírica de que os efeitos pretendidos (quando existem) sejam alcançados.

Este efeito traduz-se na crise do espaço publico como imaginamos e conhecemos Manifestamente, os neoliberais com o seu pragmatismo, não relacionam na produção de valor com a produção de ideias, a não ser que estas (invenções, leis e patentes) tenham valor de mercado e, consequentemente, uma utilidade mercantil. Através dos mais diversos domínios - economia, política, cultura-

a governação é

assegurada através de modos que são estritamente económicos na problemática da legitimidade e, consequentemente, na atribuição de valor à pluralidade de vozes e às pretensões de validade que lhe são associadas em detrimento da insistência no primado do mercado.

Como o essencial está teleologicamente definido à partida, emerge no neoliberalismo e nas suas formas de cristalização dominantes, uma preocupação, em afastar discussões acessórias que nos desviem da questão fundamental: o aumento da competividade Justifica que se chame a atenção para a semelhança que existe entre o positivismo logico e a sua acção junto do discurso e a forma como o neoliberalismo filtra todo o enunciado, em termos de contradição, de falta de consistência e de inconsequência (Foucault, 2008: 33). Esta dimensão é particularmente importante quando uma inteira maneira de pensar sobre a organização social e política (neoliberalismo) age de acordo com base numa atitude que, para efeitos de certos objectivos cruciais, considera as vozes e a sua multiplicidade, enquanto processo de indução do debate, como algo de desinteressante e gerador de entropia. A importância da voz e do reconhecimento articula-se ao acto de apreciação e escolha de valores que implicam a referência a enquadramentos que organizam a vida humana. Tratar o direito à fala como um valor, significa discriminar os modos que assentam no respeito pelos múltiplos regimes de voz que se entretecem em sociedade e por isso opor-se a tratá-la como meio, instrumento ou palavra de ordem, isto é, uma mera reificação da linguagem. Com o neoliberalismo, emergiu um discurso particular com uma vontade de dominar o mundo contemporâneo ao nível formal, prático e imaginário. Este discurso impõe uma visão da vida social que não valoriza a multiplicidade de vozes e partilha e uma visão redutora da política que a transforma num mero regime de selecção de elites com vista à gestão eficaz do mercado.

Tem

também a ver com uma negação do dialogismo intersubjectivo que implica o sentimento de “público”. . Margaret Tatcher revelou uma arguta consciência sobre a natureza da sua família política. quando afirmou: “There is no such thing as society. There are individual men and women, and there are families” (Woman’s Own, 3 Outubro de 1987 cit. in Clark, 2005: 51)

III Finalmente, o neoliberalismo tem fundações antropológicas e filosóficas que colocam um enfase no individuo sobretudo como o agente económico Neste sentido, parece-nos relevante o modo como as Tecnologias da Informação e da Comunicação tem vindo a ser abordado, a qual não pode ser desligada de um conceito de sujeito social tal como tem estado analisado em pano de fundo. Este clima intelectual também gerou um clima cultural e comunicacional. O neoliberalismo retoma o homo economicus como empresário de si próprio (Foucault, 2008: 311). De certa forma, diríamos nós, alguém que se empreende a si

mesmo. Simultaneamente, põe o seu acento tónico no desenvolvimento tecnológico que Schumpeter chamaria de inovação. O novo e a inovação é completamente consubstancial ao espirito do capitalismo (Foucault, 2008: 319) e isto, destaca-se com muita evidência, na fase de capitalismo que estamos a atravessar. A associação das concepções ciberlibertárias no plano da política e da negação dos constrangimentos sociais surge associada à revolução neoliberal e, consequentemente, às formas de globalização financeira que lhe estão associadas.: construiu-se uma narrativa que continha como fulcro o tema da emancipação pessoal, identitária e comunitária dos constrangimentos do mundo real. Verificou-se um fascínio pela presença dramatúrgica que resulta de uma espécie de construção da identidade no momento da sua exposição.. Estas representações acrescentam uma sensação de liberdade que desde os jogos vídeo aos avatares se traduzem numa sensação simultânea de interatividade, colaboração na construção da própria história e do controlo dos acontecimentos pessoais. Esta sensação foi ainda exponenciada pela mobilidade. Depois algumas décadas de áridos discursos escolásticos sobre as injustiças da sociedade de classes, a novidade nos anos 60 consistiu em denunciar as disfuncionalidades do socialismo real, primeiro (provavelmente porque o esforço era menor) e, logo a seguir, as disfuncionalidades do Estado Social. Habermas em 1962 já tinha denunciado a invasão da sociedade pelo poder sistémico do Estado, denunciando o modo como este corroía o espaço publico procedendo a uma espécie de organização tecnocrática e funcional do capitalismo tardio. (Santos, 2005: 11). Durante os anos 80 e 90, o neoliberalismo beneficiou de uma coligação de forças que reuniu a as diferentes críticas do Estado e que se expressara, através do pós-modernismo, na rejeição da concepção moderna, positivista, racionalista e tecnocêntrica do mundo e a sua crença em grandes narrativas que ajudassem à planificação racional de regimes sociais ideais e à uniformização do conhecimento e da produção. Esta coligação abriu o caminho à erosão das narrativas em que assentava a modernidade, descobrindo espaços erráticos onde pululam pequenas narrativas e multidões que acolhem a miríade de narrativas num largo cobertor multicolor. Foi nesse espaço que Negri introduziu a sua multidão conectada (Hardt e Negri: 2004).

IV

Sob o ponto de vista económico, esta concepção traduziu-se no desejo de maximizar o alcance e a frequência das transacções comerciais no comercio global bem como a minúcia com que se realiza a mobilização mercantil da vida quotidiana a qual exige tecnologias de informação e comunicação, e a consequente emergência de um novo tipo de sociedade chamada como capitalismo informacional, sociedade informacional, entre diversas outras etiquetas.

A alucinante velocidade transacional das trocas financeiras constituiu-se como um dos elementos fundamentais da própria globalização: a informação sobre o dinheiro tornou-se tão valiosa como o próprio dinheiro. Aqueles que podem processar informação mais rápida, estão e, muito melhor posição para obter lucros. A instabilidade tornada possível pelas operações de computador produzidas a alta velocidade tornou-se finalmente endémica. De facto tornou-se institucionalizada através de um instrumento financeiro que se pode considerar a verdadeira assinatura da nova economia: o derivativo, de longe a mais exótica e elusiva entidade a surgir no mundo do dinheiro: um contrato no qual se acorda o compromisso de pagamentos futuros (cash-flows), cujo montante é calculado com base no valor assumido

por

uma variável,

tal

como

o

preço de

um

outro

activo

(e.g. uma acção ou commodity (matéria-prima), a inflação acumulada no período, a taxa de câmbio, taxa básica de juros ou qualquer outra variável dotada de significado económico. As operações contabilísticas daí resultantes tornaram-se terra incógnita para os reguladores, sendo que ninguém pode saber ao certo, qual a quantidade de dinheiro que lhes estava associado. Em 1884, a Barron’s Magazine alertava para o facto de que a exposição ao crédito podia originar um meltdown no mercado global maior do que o de 1987. (Roszack, 193s). De repente, o dinheiro necessário para investimentos de longo prazo deslocou-se para investimentos de curto prazo (Roszack, 1994: XXXIV).

Outro elemento que muitas vezes é esquecido é o significado da colaboração. Muitos viram e vêm um novo e libertador potencial na economia emergente- uma economia da dádiva que parece criar riqueza e poder longe das corporações e governos que monopolizavam a distribuição de trabalhos criativos e outros bens de informação. Porém, esta tendência tendo de ser encarada como uma possibilidade, mas não mais do que do que isso: uma tendência sujeita a lutas e contradições internas. No plano económico, é impossível ignorar que, com esta mobilização digital, as principais restrições sobre o fornecimento de obras de alto custo de produção e de difícil distribuição desapareceram. A produção ficou mais barata graças ao surgimento do software de armazenamento

e de serviços do computador e de ferramentas digitais muito mais baratas como microfones, câmaras digitais e scanners. Porém, esta é uma visão de um mundo que não pode ser olhada de forma unilateral já que uma cada vez maior parte da riqueza produzida pelos mercados é susceptível de ser canalizada para uma pequena fracção de indivíduos, através de um processo de destruição criativa que se traduz num numero cada vez menor de empregos. A imagem da destruição criativa convoca diversas pulsões, entre as quais a formulação teórica de Schumpeter, com a sua heroicização da figura do empresário, o seu potencial transformador e revolucionário, igualmente referidos por Marx e Hayek para caracterizar os processos de desenvolvimento capitalista que precederam o actual. (cf. Harvey, 1998:33).

Neste sentido, os padrões tecnológicos tornaram-se uma batalha política e económica: de um lado, a indústria das telecomunicações trabalha arduamente com legisladores, levando mais longe do que nunca os esforços de mercantilizar o que resta da internet de domínio de acesso publica, restringindo o domínio da intimidade, exigindo legislação contra o terrorismo informático e os hackers, instalando cada vez miais filtros de conteúdo, tornando-se cada vez tolerante pra os monopólios; enquanto por outro lado o netativismo crítico reclama por si o alargamento do acesso aberto. Tal como previa Theodore Rozack em 1994 os cientistas cognitivos e hakers idealistas foram substituídos por intelectuais que hoje lançam alertas constantes sobre os riscos que as redes sociais trazem à liberdade e inclusive a liberdade dentro de si mesmas. (Roszack XXVII). A própria emancipação prevista pelas redes sociais é hoje objecto de uma identificação mais rigorosa dos constrangimentos que as grandes corporações detentoras dessas redes criam à liberdade que os mais optimistas ambicionavam ver florir nelas. A internet é cada vez mais um médium destinado a transações comerciais embora dotada de um potencial criativo que pode gerar uma economia social colaborativa e baseada na dádiva. Porém, neste momento o que muitos críticos se questionam é saber quanto mais será sacrificado com vista a tornar WEB um lugar seguro para o comércio electrónico. Um grupo crescente de utilizadores questionam-se abertamente sobre o enviesamento corporativo conservador da revolução digital (Lovink, 2002). A versão haker de um capitalismo empeendedor (a do-it-yourself capitalismo) com intençoes e possibilidades antimonopolistas provou-se e está-se a provar impotente ou a demonstrar uma consistência incerta para desafiar os grandes jogadores no mercado do software, dos media e das telecomunicações (idem, 15). Um dos elementos centrais da ideologia que legitimou e reforçou esta importante transformação social tem por centro a crença de que o Estado é o principal inimigo da Net e que s as

forças do mercado podem desencadear um sistema de comunicação descentralizada acessível a toda a gente. Ainda hoje num tempo de crescente saber de experiencia feito, apesar da enorme concentração monopolista verificada nos negócios. em rede, a net continua a ser apresentada como um médium puro, com um ambiente matematicamente abstracto, intocável pela sociedade e seus interesses contraditórios, neutral em termos de classe, género ou raça, capaz de tornear problemas que surgiram no mundo real. Ainda não estão suficientemente aprofundadas as possibilidades de uma colaboração séria entre cientistas da computação e académicos das áreas das ciências sociais e das humanidades. Embora, a chamada big science mais dependente do mercado e da grande indústria reconheça (esse reconhecimento explicito foi feito recentemente num grande encontro entre televisões inglesas sobre a era da ubiquidade) a necessidade de um maior capital cultural este diálogo está longe de ser uma realidade manifesta e suficientemente explorada. Recomenda-se prudência para não sobrevalizar a criatividade e as industrias criativas no desenvolvimento da tecnologia. A comunicação peer to peer só por si não assegura a Liberdade no seio da internet. Não há garantias de que a comunicação de muitos para muitos fara necessariamente a diferenças nas batalhas politicas e culturais que vão moldar o nosso futuro. Na verdade, há indicações muito contraditórias acerca do papel que será atribuído a uma população dotada de literacia mediática para usar as oportunidades geradas pelos media. Evidentemente, defendo a existência de espaços de intervenção cultural e politica onde é possível fundamentar tensões contrahegemónicas e dotadas de maior potencial crítico. Tal potencial implica utilizadores da net disponíveis para agir, para construir alianças que permitam forçar a abertura de sistemas fechados, capacidade para reforçar padrões abertos e inovadores situados no domínio público. V

. Com o advento da comunicação mediática, em particular das redes digitais, a referência à razão letrada dá lugar a uma parte dos intelectuais, menos dependente da razão discursiva e argumentativa. O esforço intelectual sempre foi um esforço produtivo que só o romantismo furtou à sua natureza económica e social. Porém, quer marxismo quer neoliberalismo reduzem-no a duas ordens de determinação fundamental: a utilidade de classe ou o valor mercantil. Nas novas condições criadas na sociedade pós-industrial, em face das mudanças verificadas na relação entre o saber e o sistema produtivo, assistiu-se à emergência da ciência e da técnica como elementos fundamentais em que os agentes especializados ficam dependentes do processo produtivo. (Santos, 1996, p. 200). erra (2016) recorda a propósito Paul Valéry (1997) e o modo como este associava a crise do homem moderno ao “capitalismo das ideias e dos conhecimentos” e ao

“trabalhismo das ideias.” A sociedade da informação é o casamento feliz do neoliberalismo com a velocidade da transacção digital. Surge um novo nicho de trabalho em torno da ideia de criatividade. Com a erosão da Galáxia Gutenberg a distinção ideal típica entre intelectuais, artistas e, mais recentemente, com os trabalhadores especializados atenuou-se ou desapareceu mesmo (fotógrafos, cameraman, designers tornaram-se parte do universo de reflexão social e estética intelectual). Sob o ponto de vista menos pessimista, merece ser repensada em função da ultrapassagem de uma dicotomia rígida entre racionalidade expressiva, cognitiva instrumental e prático-moral. Porém, esta ultrapassagem também implica uma apropriação. Os intelectuais deixam de ser vistos como os proponentes generalistas de verdades universais. Porém, em lugar de esforços criativos que se juntam à tessitura da multidão, viram ser-lhe exigidas soluções e pontos de vista particulares pensados em função de fins pré-determinados. As ISES finalmente, foram paulatinamente sendo apropriadas por este processo de aberta privatização e mercantilização, que geram o que alguns designam como capitalismo académico. O provimento de serviços pelo Estado é em grande parte substituído por um modelo que vai além da coresponsabilização com a sociedade civil para antes se traduzir na gestão mais mercantilizada de formas de conhecimento. A ciência já não é considerada uma parte da cultura contemporânea, mas o elemento dominante da cultura. A publicação científica é autorreferencial tornando-se a causa da produção científica, já que os rankings implicam a luta implacável (adjectivo nosso) pelo financiamento (Serra, 2016: 1.) O código de legitimação passa a ser o interesse medido em factores de impacto. Os investigadores, ao invés dos proletários, não vendem a sua força de trabalho, mas antes a cedem gratuitamente, prescindindo dos direitos de autor, pagando depois o que eles ou outros como eles cederam gratuitamente para publicação. (Idem, Serra, 13). Assim para além da sua entidade empregadora, o investigador cede o produto do seu trabalho a uma entidade terceira em troca de nada. Outra das características frequentemente encontradas é aumentar a eficiência pela homogeneização da “oferta formativa” – um termo que remete já para a sua adequação à procurade modo a poder ser replicada em vários contextos. Aqui as tecnologias facilitam a aprendizagem individual e a flexibilidade exigida a um novo tipo de trabalho. Simultaneamente, descentram o ensino e a aprendizagem do lugar do professor, até por uma desconfiança, presente em muitos documentos, sobre a complacência desta classe para com o universo dos negócios e pela sua intrínseca necessidade de eficiência. No limite, esta abordagem gera um anti-intelectualismo populista facilmente acolhido por franjas de potencial mão-de–obra que aguardam ansiosamente por um posicionamento no Mercado

de trabalho. Numa crítica formulada com base em Jacques Elul, Martin Heidegger, e Jurgen Habermas, conclui-se que muitos, não todos, defensores do software livre, não sendo mais conscientes das tradições fenomenológicas do pensamento, ignoraram simplesmente o problema sobre como representar as fundações culturais do conhecimento tácito de uma pessoa, o qual é altamente contextual, através de um médium que é altamente descontextualizador no que respeita à construção do conhecimento (Roszack, 1994: XXXV). Em conformidade, o saber é substituído pelas competências e as competências geralmente mitigadas a um conjunto de técnicas sobre as quais importa acima de tudo uma pro-actividade mais do que uma interrogação sobre os próprios mecanismos apreendidos. A crise das humanidades é um problema económico e politico. Nesse sentido, a racionalidade dominante acaba por ser uma racionalidade instrumental que reproduz sob forma diferenciada, em plena era da criatividade, os mecanismos da gaiola de aço do fordismo decorrente da descrição weberiana. O único passo de resistência a esta tendência é a implementação de novas formas de combinação que mobilizem s humanidades, os grupos de utilizadores e de ativistas as novas ONGs e os artistas e os críticos no desenvolvimento da rede. A cultura das redes não pode circunscrever-se ao conteúdo. Exige uma disponibilidade para agir em práticas de natureza crítica para intervir no debate de natureza tecnológico, politica e económica em torno do futuro da Internet-

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