Comunicar a família na gratuidade do amor

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M O M E N TO L I T Ú R G I C O

I GR EJ A & C OMUNI C AÇ ÃO

Instrumentos da evangelização

O Mensageiro de Santo Antônio

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Novembro de 2014

1889, em Juazeiro do Norte [CE]), teve início uma histeria popular de repetição dos fenômenos que assustou os padres da região. Essas revelações servem para recordar, renovar, atualizar ou integrar a revelação, mas, sobretudo, são um convite à transformação da vida, uma vez que comunicam caminhos de santidade. Nesse sentido, existe grande proximidade entre os mensageiros. Via de regra, as aparições (Maria ou os santos) apontam grandes pecados, ameaçam com grandes catástrofes e suplicam exercícios de piedade, sacrifícios e conversão para amenizar suas consequências. Essas narrativas são, por vezes, excessivas e aterrorizantes. Isso não é a pedagogia divina, pelo menos não no cristianismo. O conteúdo das mensagens não objetiva acrescentar notas ao ato de crer. Antes é um apelo à realização da esperança dos fiéis, anunciando regras de conduta, renovação de propósitos e posturas éticas. Não devem ser fixadas em fenômenos extraordinários, mas na comunicação divina que, pelo Espírito Santo, revela sue preocupação com seus fiéis. Como algumas vezes, as mensagens são hecatômbicas, a Igreja deve purificá-las e torná-las plausíveis

Pe. Antônio Sagrado Bogaz, PODP Professor de Teologia Litúrgica e Patrística (ITES – EDT) Coautor (com João H. Hansen) de Reforma litúrgica: renovação ou revolução? (Paulus)

Arquivo pessoal

ao passo que as aparições são consideradas as mesmas experiências a partir do divino. Normalmente estas devem se equivaler, embora possam haver dissenções entre elas, revelando limitações na visão e na descrição. É sempre um fenômeno espiritual de comprovação física improvável, mas com forte aporte místico. Em alguns casos, a Igreja acolhe, quando denota profundidade e serenidade nos videntes; em outras situações, aguarda o momento propício para perceber os traços de sua veracidade. Os pastores da Igreja aceitam as aparições como sinais, embora frágeis, da revelação divina através de seus fiéis. Mesmo que não pertençam ao fidei depositum (depósito de fé), algumas aparições foram reconhecidas pela autoridade da Igreja. Algumas verdades reveladas nas aparições entraram depois no “compêndio doutrinal” de nosso catecismo. No entanto, grande parte dessas visões se perdeu no tempo e não deixou nenhuma herança. Houve o perigo da banalização das aparições, as quais perderam seu sentido. Basta recordar que, alguns anos depois do fenômeno da transformação da hóstia em sangue (fato ocorrido em

Consideremos que a vidência é humana e que a experiência mística é comunicação divina, com a mediação dos seres humanos. Mas seu discernimento não é tão simples na prática e nos fenômenos, normalmente lidos em chave religiosa. Com certeza, Deus concede-nos Suas graças, as quais se revelam no cotidiano de nossas vidas e não precisam de fatores excepcionais, mas sim de acontecimentos simples e habituais. Quem não consegue a graça de acreditar a partir das experiências mais singelas, como o sorriso de uma criança, a partilha do pão com os pobres e fatos pequeninos, de forma alguma vai acreditar nos fatos com expressões fantásticas. Os critérios de autenticidade das aparições podem ser o equilíbrio mental do protagonista, sua vida anterior e pregressa, a honestidade dos envolvidos, evidência de não mercantilismo, a interação com os ensinamentos eclesiais e transformação na vida das pessoas, superando o estágio da emoção.

Comunicar a família na gratuidade do amor

jbear.net

A ceia em Emaús, 1629, Rembrandt

para nosso jeito de evangelizar, que não comporta ameaças nem terror, mas sim esperança e misericórdia. Não podemos descartar, embora seja um assunto muito delicado, elementos psicológicos ou parapsicológicos, presentes em pessoas sensitivas. Esses não são de característica espiritual, mas simplesmente formas mentais como sonhos, intuição, premonição e mesmo alucinações. São variações dos estágios mentais do espírito humano, e os líderes religiosos devem ser o eixo de equilíbrio de tais fenômenos, evitando incentivar desvios como se fossem expressões religiosas, pois acarretam desastres pastorais insuperáveis.

C

omo ainda dizer em nossos dias, ao homem ferido e desiludido, que o amor entre um homem e uma mulher é uma coisa boa? Como fazer com que os filhos experimentem que são um dom precioso? Como aquecer o coração da sociedade ferida e provada por tantas desilusões de amor e dizer

a ela: força, recomecemos? Como dizer que a família é o primeiro e significativo ambiente no qual se experimenta a beleza da vida, a alegria do amor, a gratuidade do dom, a consolação do perdão oferecido e recebido, e onde se inicia a encontrar-se com o outro?” Essas são as perguntas lançadas pelo Pontifício

Conselho para as Comunicações Sociais da Santa Sé, ao indicar o tema do 19o Dia Mundial das Comunicações de 2015: “Comunicar a família: ambiente privilegiado do encontro na gratuidade do amor”. A mensagem, assinada pelo papa Francisco (1936-), será divulgada em 24 de janeiro, na ocasião da festa de São Francisco de O M e nn ssaaggeeiirroo ddee SSaannt too AAnnt tô ôn ni oi o Novembro ddee 22001144 Novembro

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Papa Francisco conduz o Sínodo dos Bispos no salão Paulo VI, no Vaticano, outubro de 2014, Claudio Peri/Reuters

para uma comunicação profunda e abrangente, para uma “familiaridade sinodal”, que permita que todos(as) e cada um(a) falem com franqueza e sinceridade, colocando-se também no espírito de humildade para escutar o que o(a) outro(a) tem a dizer. Assim, a família pode ser realmente “o espaço onde se aprende a conviver na diferença”, como disse o papa Francisco na Evangelii Gaudium (n. 66). Em um segundo nível, temos a família na comunicação. Não se trata apenas daquilo que a “grande mídia” diz e mostra sobre a família. Graças ao avanço tecnológico e às novas formas de relação pessoal e social que vêm se desenvolvendo, cada pessoa pode se tornar, potencialmente, uma “mídia” dentro do cenário social. Na cultura atual, com um celular nas mãos, temos o ferramentário necessário para produzir, editar e distribuir conteúdos que poderão ter um alcance de nível mundial

(e vimos isso em várias manifestações sociais recentes, em que pessoas comuns foram as grandes narradoras dos acontecimentos contemporâneos, indo muito além da ação das “grandes mídias” tradicionais). Além desses exemplos, inúmeras outras “mídias” (às vezes, pessoas comuns ou grupos locais) também apresentam uma voz muito forte para pautar a sociedade como um todo sobre temas como a família e os relacionamentos. Portanto, atualmente, a família na comunicação é uma questão muito mais complexa. Não basta promover uma “leitura crítica da mídia”, fomentando o debate sobre aquilo que os grandes canais de televisão ou a grande imprensa publicam sobre o conceito de família. Isso é simplificar o cenário contemporâneo, que é muito mais complexo. A noção de família, hoje, é construída, desconstruída e reconstruída por inúmeros sujeitos sociais em relação a outros sujeitos sociais,

conectados em redes que ultrapassam o “aqui e agora”, ganhando repercussão em todo o tecido social. Também se torna mais complicado afirmar, como faz o instrumento de trabalho do Sínodo, que os “motivos de fundo das dificuldades na aceitação do ensinamento da Igreja” envolvem, por exemplo, “as novas tecnologias difusivas e invasivas” e “a influência dos mass media” (n. 15). Assim, corre-se o risco de menosprezar as capacidades cognitivas, ativas e criativas de cada pessoa em seu contexto cultural específico, que sempre reconstrói, a partir de sua visão de mundo, aquilo que lê, escuta, vê, comunicando também essa reconstrução às demais pessoas que a cercam. Como afirma o papa Francisco, “os diferentes povos [...] são sujeitos coletivos ativos [...]. Cada povo é o criador da sua cultura e o protagonista da sua história. A cultura é algo de dinâmico,

que um povo recria constantemente, e cada geração transmite à seguinte um conjunto de atitudes relativas às diversas situações existenciais, que esta nova geração deve reelaborar face aos próprios desafios” (EG n. 122). Na cultura midiática atual, não há uma força única capaz de moldar o pensamento da sociedade sobre a família. Há um cenário de construção de sentido e de criação cultural repleto de tensões, em que inúmeros sujeitos sociais conectados “fazem algo” com o “ser família”, ampliando, aprofundando, estendendo, pulverizando qualquer noção supostamente unívoca de família, dando lugar à manifestação pública de diversas, plurais e heterogêneas “experiências familiares”, como diz o instrumento de trabalho (n. 8). Diante dessa realidade complexa, “a Igreja é chamada a ser servidora de um diálogo difícil” (EG n. 74). Por isso, é preciso reafirmar “a importância da interculturalidade no anúncio do Evangelho da família”, como diz o instrumento de trabalho do Sínodo (n. 14). Sem preconceitos nem a prioris, mas na escuta humilde dos sinais dos tempos, buscando “ouvir os batimentos deste tempo e perceber o ‘odor’ dos homens de hoje, até permanecer impregnados com as suas alegrias e esperanças, com as suas tristezas e angústias”, como disse o pontífice na vigília em preparação ao Sínodo, no dia 4 de outubro. Assim, “saberemos propor com credibilidade a boa-nova sobre a família”, concluiu o papa Francisco. Em um terceiro nível, há o grande desafio de reconhecer e promover a família comunicadora. Muitas vezes, na linguagem eclesial, a família é vista como um “objeto” da evangelização, devendo ser guiada pelo clero e pelos religiosos e religiosas. No entanto, especialmente no contexto eclesial de hoje, ela é o principal “sujeito” da evangelização. A escassez de vocações mostra que a vida sacerdotal e consagrada encontra muitas dificuldades para se confrontar com o mundo contemporâneo. Inúmeras comunidades cristãs sobrevivem ao longo dos anos sem uma presença clerical ou religiosa

consagrada. Mesmo assim, a Igreja caminha e avança pelas estradas da história justamente graças aos milhares de leigos e leigas, casais e famílias, que compõem a imensa maioria dos cristãos do mundo inteiro, fazendo a diferença em suas realidades locais com seu trabalho e sua presença, anunciando a boa-nova e construindo o Reino de Deus. Como indicou o papa na vigília de oração pelo Sínodo, “a família continua sendo escola sem par de humanidade, contributo indispensável para uma sociedade justa e solidária”. Diante de um contexto social marcado pelo individualismo e pela ganância do poder e do dinheiro, “ser família” já é um grande Evangelho a ser anunciado. O Evangelho da família é a boa-nova de que outra sociedade é possível, construída por laços de amor e de gratuidade entre esposos, entre pais e filhos, entre irmãos e irmãs. A Igreja é, sim, uma “comunidade de comunidades”, mas, acima de tudo, é uma “família de famílias”. Se existe Igreja, é porque uma vez houve uma Sagrada Família, que soube acolher amorosamente o Verbo divino em seu lar, cuidá-Lo, acompanhá-Lo, educá-Lo, formá-Lo. Se existe Igreja, é porque houve e há inúmeras outras famílias que, inspirando-se naquela Família de Nazaré, buscam construir o “sonho de Deus”, como disse o papa na missa de abertura do Sínodo, ou seja, “formar um povo santo que Lhe pertença e que produza os frutos do Reino de Deus”. Comunicar a família também é colaborar na construção desse sonho, começando pela base. NOTA O chamado Instrumentum Laboris (Documento de trabalho) está disponível no site do Vaticano: . Acesso em: nov. 2014.

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Moisés Sbardelotto Jornalista, autor do livro E o verbo se fez bit: a comunicação e a experiência religiosas na internet (Santuário)

Arquivo pessoal

Sales (1567-1622), padroeiro dos jornalistas. Na nota divulgada pelo Pontifício Conselho, afirma-se que “a Igreja hoje deve novamente aprender a dizer o quanto a família é um grande dom, bom e belo”. O desafio é encontrar “o modo para expressar que a gratuidade do amor, que se oferece aos esposos, aproxima todos os homens a Deus”. Como eixos centrais do próximo Dia Mundial das Comunicações, portanto, a Igreja coloca a família e a gratuidade do amor. Propõe-se uma concepção ampla da comunicação, não vista apenas a partir da “grande mídia”, nem como algo meramente tecnológico. A comunicação, para a Igreja, perpassa inclusive a constituição de um dos marcos da humanidade em toda a sua história, a “célula básica da sociedade”. Nesse contexto, a relação entre comunicação e família pode ser desdobrada em três aspectos: a comunicação na família; a família na comunicação; e a família comunicadora. Para constituir-se como tal, afirma a Igreja, a família depende de uma comunicação que envolva centralmente o amor e a gratuidade. A família é fruto da troca de informações entre os esposos, entre pais e filhos, entre irmãos e irmãs. Por isso, a comunicação na família é uma das preocupações da Igreja do mundo inteiro. No instrumento de trabalho para o Sínodo Extraordinário realizado em outubro1, justamente sobre “Os desafios pastorais da família no contexto da evangelização”, os bispos falaram da “dificuldade de relação e comunicação em família”, por causa do “progressivo desaparecimento da possibilidade de diálogo, de tempos e espaços de relação” (n. 60). Diante dessa dificuldade, é importante retomar uma frase dita pelo papa Francisco na primeira sessão do Sínodo, realizada no dia 6 de outubro. Ao falar da sinodalidade, ou seja, do “caminhar juntos” de toda a Igreja, o pontífice dizia que tal espírito é marcado pelo “falar com parrésia (com franqueza, clareza) e escutar com humildade”. Na relação entre esposos, entre pais e filhos e entre irmãos e irmãs, também é preciso constituir cada vez mais espaços

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