Concerto de uma nota só: uma análise das interações em comentários nos vídeos do canal de André Rieu no YouTube

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CONCERTO DE UMA NOTA SÓ: uma análise das interações em comentários nos vídeos do canal de André Rieu no YouTube1 Fernando Gonzalez2 Resumo: Este artigo busca analisar as interações em comentários nos vídeos do canal do violinista e regente holandês André Rieu noYouTube, assim como compreender a dinâmica estabelecida entre os usuários que acessam esse conteúdo e entre esses usuários e os responsáveis pelo canal. O estudo se dá à luz da Teoria Ator-Rede, de Bruno Latour, das considerações sobre redes sociais digitais e interações mediadas por computador, de Raquel Recuero e Alex Primo, e reflexões sobre cibercultura, de Erick Felinto, Francisco Rüdiger e Lúcia Santaella. A metodologia utilizada compreende a análise dos dez vídeos com maior número de visualizações entre os publicados no período compreendido entre maio de 2015 e abril de 2016, considerando o número total de comentários (assim como onde esses foram publicados), além do número total de curtias e descurtidas. Palavras-Chave: André Rieu. Interação. Redes sociais. Teoria Ator-Rede. YouTube.

1. Introdução A utilização comercial em larga escala da chamada Web 2.0, caracterizada pela conexão e produção coletiva, representa um fértil campo de possibilidades para a construção de conhecimento e a disponibilização de serviços com o potencial de contribuir para a integração ainda maior dos mundos físico e digital. Autores como Gabriel (2012) ponderam que, com o aumento da disponibilidade de acesso a dispositivos móveis constantemente conectados, eliminando a necessidade de fazer-se uso de um equipamento fixo para conectar-se à internet, essa barreira estaria gradativamente se dissolvendo, não sendo mais possível falar em termos de online e off-line, mas sim de one line, uma situação na qual as características destes processos estariam intermeadas uma na outra. Portanto, não somos mais ON ou OFF line – somos ON e OFF ao mesmo tempo, simbioticamente, formando um ser maior que o nosso corpo/cérebro biológico, nos expandindo para todo tipo de dispositivo e abrangendo outras mentes e corpos. Somos cíbridos3, e vai se tornar cada vez mais difícil sermos Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Cultura Digital do X Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Cultura, realizado pelo PPG em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba, em parceria com o PPGCom da ECA/USP, na Universidade de Sorocaba – Uniso – Sorocaba, SP, nos dias 26 e 27 de setembro de 2016. 2 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero, e-mail: [email protected] 3 Cíbridos – híbridos de material e ciberespaço – são entidades que não poderiam existir sem reconciliar a nova classe de símbolos com a materialidade que eles carregam [...] Cíbridos são mais que simplesmente 1

apenas ON ou apenas OFF line – nossa essência quer circular livremente, sem rótulos ou limitações físicas, para obter uma experiência melhor, uma vida melhor, seja ela ON ou OFF line (Gabriel, 2012, p.51).

Esse processo teria sido em grade parte potencializado também pela disseminação cada vez mais ampla do acesso à internet em banda larga à partir do ano 2000, mudando a noção de “estar conectado” para a de “ser conectado” no atual cenário de hiperconexão (SANTAELLA, 2016). A noção de “entrar na internet”, compartilhada por todos os que fizeram uso da web principalmente na década de 1990, perde sentido no contexto que vem se desenvolvendo nos últimos dezesseis anos; para muitos é praticamente inconcebível atualmente a ideia de utilizar um dispositivo off-line, e a falta de acesso à internet tornou-se rapidamente associada com alguma deficiência nos serviços de telefonia ou na configuração de um aparelho. Hiperconexão significa não apenas ligação entre pessoas, mas também entre sistemas e, com a emergente Internet das coisas, ligação entre gente, animais, coisas e lugares. Passamos rapidamente de uma web estática para uma web dinâmica, de uma web de páginas para uma web de plataformas participativas, em uma miríade de ambientes de conversação (Santaella, 2016, p.34)

O aumento de possibilidades de compartilhamento e difusão de conteúdo, que é uma das principais características da atual geração de serviços online (PRIMO, 2007), passa a gerar impacto considerável e reunir um maior número de atores quando somada a outro elemento definidor desse paradigma, a ampliação dos espaços de interação entre os participantes. “A Web 2.0 tem repercussões sociais importantes, que potencializam processos de trabalho coletivo, de troca afetiva, de produção e circulação de informações, de construção social de conhecimento apoiada pela informática” (Primo, 2007, p.2). O foco, nesse momento, é direcionado para o usuário final, que ganha mais espaço e protagonismo, goza da possibilidade de avaliar produtos e processos (que podem ser então adaptados para melhor atender a necessidades específicas) e passa não só a ditar suas preferências como a efetivamente contribuir para a produção de conteúdo que entende como desejado pela comunidade do ciberespaço (SANTAELLA, 2016; CAMPOS 2016). De fato, é a conectividade que caracteriza a Web 2.0 cujas tecnologias básicas são o groupware, as Wikis, os Weblogs, os portais de comunidades, o leilão eletrônico, a instant messaging e, certamente, as redes sociais, que são as meninas dos olhos da Web 2.0 (Santaella, 2016, p.41).

É na efetivação dessa nova dinâmica de relacionamento que se desenvolvem importantes fenômenos da cultura digital, incluindo a enciclopédia colaborativa Wikipedia, o trabalho descentralizado gratuito e gerador de capital social (como o uma separação completa (entre material e simbólico). Entre esses dois podemos ter componentes compartilhados (ANDERS, 2001, apud. Gabriel, 2012, p.51).

identificado nas comunidades que traduzem e disponibilizam para download legendas de filmes e episódios de séries de televisão produzidas no exterior), e a reinterpretação e ressignificação de produtos culturais, como nas “batalhas de Photoshop” ou nas diversas versões da sequência do filme A Queda: As Últimas Horas de Hitler, na qual o ditador faz um discurso inflamado sobre os mais variados tópicos, desde a décima terceira edição do reality show Big Brother Brasil até a derrota do Brasil para a Alemanha na Copa do Mundo de 2014. As comunicações em escala molecular e global, permitidas pela mídia digital interativa, estabelecem uma sinergia cooperativa entre as competências, recursos, projetos e ideias de todos os que, mais ou menos, se integram às redes. Com isso, ativa-se uma inteligência que procede mediante a agregação e colagem de contribuições pontuais, para gerar conhecimentos, práticas e situações passíveis de apropriação terminal por todos os sujeitos integrantes do universo telemático (Rüdiger, 2011, p.52).

Os efeitos da tecnologia, no entanto, dependem em grande parte do uso que fazemos dela. A disponibilidade de novas ferramentas e processos por si só não garante a adoção de novos modos de consumo e produção de conteúdo por todos os usuários das redes. Enquanto atores interessados em tais inovações podem engajar-se em sua utilização antes mesmo dessas receberem larga divulgação e caírem no chamado mainstream (este seria o público considerado pelo meio tecnológico como early adopters), uma considerável parcela de usuários pode permanecer fazendo uso primariamente marginal de todas as possibilidades oferecidas pela tecnologia, se esta for a dinâmica que satisfaz suas necessidades de consumo e atende às suas expectativas – lembramos que a adoção de uma nova tecnologia leva necessariamente à adaptação a algo novo, seja uma nova dinâmica de interação, um novo modo de uso ou mesmo uma nova linguagem, e existem parcelas da população concretamente desinteressadas em (ou impossibilitadas de) empreender no esforço que seria necessário para tal mudança. Este artigo é o resultado de uma pesquisa realizada no mês de maio de 2016, com o objetivo de analisar as interações entre os atores participantes do canal oficial do violinista e regente holandês André Rieu no YouTube, rede social digital destinada ao compartilhamento de vídeos, e entender qual a dinâmica estabelecida, tanto entre os usuários que acessam o conteúdo disponibilizado, quanto entre os internautas e os responsáveis pelo canal. O canal possui 413.250 assinantes, usuários que seguem seu conteúdo e acompanham (e podem ser notificados sobre) as atualizações e novo conteúdo quando este for disponibilizado, e um total de 278 vídeos, com atualizações frequentes. Nos últimos meses, a média de atualizações equivale a cerca de um novo vídeo a cada seis

dias, apesar da queda considerável de atividade notada entre os meses de maio e junho de 2015, quando a frequência esteve mais próxima de um a três vídeos a cada trinta dias. A maior parte dos vídeos publicados constitui trechos de apresentações ao vivo, disponíveis em DVDs lançados comercialmente (fato que é sempre claramente indicado na descrição dos vídeos). O canal, no entanto, também disponibiliza vídeos produzidos por Rieu para ocasiões especiais, como o dia dos namorados (comemorado no hemisfério norte em 14 de fevereiro, no dia de São Valentim), lançamentos de CDs e DVDs do próprio Rieu e anúncios de turnês; ocasionalmente o canal produz vídeos de bastidores, mostrando detalhes do dia a dia da produção dos shows e das gravações de alguns dos vídeos e entrevistas com membros da equipe.

2. O produto André Rieu Atuando no mercado fonográfico desde o início da década de 1980, o violinista e maestro holandês André Rieu vem ao longo dos anos acumulando resultados incompatíveis com o campo em que aparenta se inserir, o da música clássica. Em termos mercadológicos, suas turnês com a Johann Strauss Orchestra realizadas entre os anos de 2009 e 2013 integram o Top 25 da revista norte-americana Billboard, que traz as 25 maiores turnês mundiais de cada ano quanto à receita bruta. As temporadas de Rieu encontram-se entre as posições de número 6 (em 2009) e 20 (em 2013), com receitas brutas entre US$ 95,8 milhões e US$39,9 milhões. No ano de 2013, o público total de Rieu atingiu a marca de 484.599 pessoas, próximo de nomes como Lady Gaga, que mobilizou 544.333 pessoas, e Paul McCartney, com sua plateia total de 565.705 pessoas. Enquanto ator no contexto das mídias digitais, André Rieu goza de popularidade superlativamente maior do que artistas reconhecidos, tanto pelo público quanto pela crítica especializada (e por seus pares), como expoentes no campo da música clássica: enquanto dois grandes nomes do campo (que também se mantêm ativos e produzem conteúdo focado em redes sociais digitais) como o pianista e regente Daniel Barenboim e a Orquestra Filarmônica de Berlim são seguidos no Facebook por 279.052 e 812.356 pessoas, respectivamente, Rieu conta com mais de 1.789.099 curtidas na sua página. No YouTube, seu canal também supera com grande folga os números de outros atores: Rieu conta com 413.350 assinantes, frente aos 133.131 inscritos no canal da Orquestra Filarmônica de Berlim e as 18.836 pessoas que seguem o conteúdo disponibilizado pela Orquestra Filarmônica de Nova Iorque.

Rieu foi introduzido no estudo da música em 1954, aos cinco anos de idade, quando iniciou o estudo do violino encorajado por seu pai, que na época atuava como regente titular da Orquestra Municipal de Masstricht, finalizando sua formação estudantil nos conservatórios de Liège, Masstricht e Bruxelas, onde ser formou em 1977. No ano seguinte, funda sua primeira orquestra, a Maastrichts Salon Orkest, que lança cinco álbuns ao longo da década de 1980 (Rendez-Vous, La Belle Epoque, Serenata, Eine Kleine Salonmusik e Hieringe Biete), todos baseados em uma dinâmica de repertório que viria a ser adotada por André Rieu com considerável sucesso ao longo de sua duradoura carreira: combinar trechos isolados de óperas populares com peças líricas e ligeiras de compositores pouco conhecidos do grande público, músicas tradicionais e folclóricas e peças melódicas populares, muitas com arranjos do próprio Rieu. Lançado em 1989, o álbum Hieringe Biete vai além e combina conhecidas árias de óperas e outras canções em pot-pourris com nomes como Bel Canto Suite e Souvenirs de Paris, para que o público acompanhe cantando e batendo palmas. Hieringe Biete seria também o primeiro álbum lançado pela produtora de André Rieu, fundada por ele e sua esposa Marjorie em 1987. No mês de maio de 2012, Rieu desembarca pela primeira vez no Brasil para uma série de shows, resultado de 16 anos de negociações – o motivo, conforme publicado à época, seria a complexidade da produção, que envolveria 180 pessoas e 20 contêineres de instrumentos, equipamentos de luz e som e figurinos. A turnê, originalmente planejada para durar três dias, precisa ser expandida; por conta da enorme procura, Rieu realiza ao todo 24 shows no Brasil. O interesse do público, no entanto, não se esgota, e em setembro do mesmo ano o violinista retorna para mais uma série de 12 apresentações, com ingressos chegando a R$ 400 – o que não impede que 30 dos 36 shows tenham sido realizados com lotação máxima e ingressos esgotados. Rieu voltaria mais uma vez ao Brasil, para uma nova série de nove shows em outubro de 2014, desta vez com ingressos que variavam entre R$ 160 e R$ 800 (valor que equivaleria a um concerto por mês ao longo de toda a temporada da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, considerada atualmente pela crítica a melhor orquestra do país e uma das melhores da América Latina). Sua chegada, em 2012, torna-se motivo de debates e trocas acaloradas entre público e crítica especializada, motivados em grande parte pelo texto do compositor Leonardo Martinelli publicado no começo de maio na revista Concerto, atualmente o único veículo impresso brasileiro de publicação periódica dedicado à cobertura da música clássica. Na crítica, Martinelli refere-se a Rieu como um “falsificador” e descreve sua

apresentação como resultado de uma fórmula que viria sendo aperfeiçoada pelo violinista desde os anos 1990.

3. Redes sociais e o social nas redes A análise dos resultados obtidos se dá à luz da Teoria Ator-Rede, que compreende o social como aquilo que surge a partir das associações entre os atores envolvidos no processo, e não sua matéria-prima (LEMOS, 2013). Atores e redes, no entanto, não são simplesmente dois elementos de uma dualidade objetiva; um ente que participa do processo comunicacional pode ser considerado tanto um quanto outro, uma vez que redes são formadas por atores e suas associações, enquanto atores são em si redes relacionais que realocam ações sociais (LATOUR, 2011). A rede é assim o que se forma nas mediações. Ela é mobilidade das associações e se faz e se desfaz a todo momento. Ela não é, portanto, a grade, a malha ou o tecido por onde passam coisas, mas justamente o que se forma da relação entre esses objetos. Sendo assim, a rede não é infraestrutura e está sempre se fazendo e se desfazendo, sendo móvel, rizomática, sempre aberta (Lemos, 2012, p.35).

Também fazem parte dessas redes, no contexto da Teoria Ator-Rede, os integrantes não-humanos, isto é, os sistemas eletrônicos, que não só medeiam como também exercem influência na comunicação (PRIMO, 2012), seja influenciando o conteúdo do discurso por conta de restrições técnicas (como limite de número de caracteres, que obriga o usuário a passar uma mensagem de forma mais concisa), seja através das restrições de privacidade no compartilhamento do conteúdo. Neste caso, o canal de André Rieu no YouTube ingressa no processo comunicacional, uma vez que são os vídeos publicados nesta página da rede social digital que motivam as ações dos seguidores, e que são nas páginas destes vídeos que a interação dá-se de fato. Assumindo-se os princípios da Teoria Ator-Rede, um meio digital precisa ser interpretado como um “mediador” ao fazer diferença nas associações. Uma conversa entre dois colegas de trabalho através do e-mail seria diferente se fosse mantida via Twitter. Também não seria a mesma se ocorresse através de comentários em um blog de acesso público. Como se pode observar, a mídia nestes casos não é um mero condutor de dados (Primo, 2012, p.633).

A participação do YouTube no processo, no entanto, se dá como um dos atores envolvidos na dinâmica comunicacional, e não como a rede social na qual o procedimento se desenrola. Apesar da noção popularmente difundida de que endereços como o YouTube ou Facebook seriam em si redes sociais, observa-se mais uma vez que as redes são o oceano formado pelas interações entre todos os atores que participam dos processos de conexão e interação, sendo estes sites, além de atores em si, suportes para essas dinâmicas (RECUERO, 2009). Lembramos que para que uma página possa ser

considerada um site de rede social digital ela deve atender a três demandas específicas: permitir a construção de um perfil, uma representação do usuário no ambiente virtual, através de uma página pessoal; disponibilizar as páginas dos usuários de forma que elas possam ser acessadas pelos outros usuários da rede social digital; oferecer a possibilidade de interação entre os membros da rede social digital através de comentários (RECUERO, 2009). A identificação destas características na análise do YouTube faz com quem possamos considerá-lo um site de rede social digital. “A grande diferença entre sites de redes sociais e outras formas de comunicação mediada pelo computador é o modo como permitem a visibilidade e a articulação das redes sociais, a manutenção dos laços sociais estabelecidos no espaço off-line” (Recuero, 2009, p.102). A participação nessas redes através da criação de perfis pessoais, aos quais são associadas as preferências e gostos de cada ator, acaba por potencializar o surgimento de bolhas identitárias, constituídas pelo contato entre os pontos de referência à identidade digital dos atores que formam as redes (SANTAELLA, 2016). Essa dinâmica é reforçada pelo uso pessoal que cada ator faz das redes, interagindo com os outros agentes que deseja e consumindo o conteúdo que considera interessante – o que vem sendo potencializado pela utilização do chamado filtro bolha, resultado da atuação de algoritmos que, baseado no histórico de comportamento do usuário, desequilibram a neutralidade da dinâmica de organização de conteúdo, de forma que priorizem o aparecimento de informações que estejam de acordo com as informações já consumidas. Ao criar um perfil nas redes sociais, as pessoas passam a responder e a atuar como se esse perfil fosse uma extensão sua, uma presença extra daquilo que constitui sua identidade. Esses perfis passam a ser como estandartes que representam as pessoas que os mantêm (Santaella, 2016, p.43).

4. Metodologia Foram selecionados para esta análise os dez vídeos com maior número de visualizações entre os publicados no período compreendido entre os meses de maio de 2015 e abril de 2016; neste grupo, no entanto, não foram incluídos dois vídeos específicos publicados no período da análise (André Rieu – Gabriel’s Oboe4 e André Rieu – Mio Angelo – Making of the videoclip5), uma vez que constituem um videoclipe de divulgação e um minidocumentário, respectivamente, não contribuindo para o objetivo geral do

4 5

Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=5Y0A8WoCqYg Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=oVOKV02WRzA

projeto do qual a pesquisa faz parte (a saber: compreender os recursos empregados em torno do violinista e regente holandês André Rieu no processo de construção de sua imagem midiática). A análise considerou o número total de comentários publicados até a data da pesquisa em cada um dos vídeos selecionados, assim como onde estes comentários foram publicados (se na lista geral do vídeo ou em resposta a algum outro comentário já realizado por outro usuário), além do número total de curtidas e descurtidas, que funciona como ferramenta de avaliação do vídeo para os internautas. Todos os números referentes ao total de visualizações, comentários e avaliações positivas e negativas são referentes a 16 de maio de 2016, data em que os dados foram compilados para a realização da pesquisa. Os valores podem ter mudado desde então.

5. Resultados e interações A análise dos comentários publicados nos vídeos selecionados para a pesquisa permitiu identificar tendências dominantes nos processos de interação entre os participantes do canal. Reunimos os dados observados nos dez vídeos analisados, levando em conta os indicadores de processos de interação, tanto entre os usuários e o canal (como o ato de postar um comentário diretamente no campo principal do vídeo ou de curtir/descurtir o conteúdo publicado) quanto entre os próprios usuários (como o ato de postar um comentário em resposta ao comentário de outro usuário). Definimos, para este estudo, como interações simples os momentos nos quais um comentário publicado na lista de comentários gerais de um vídeo foi respondido por somente uma pessoa, uma ou mais vezes, sem a participação do autor do comentário original ou de outros integrantes do site; já as interações múltiplas, por sua vez, foram definidas como os momentos em que um comentário recebe respostas de dois ou mais usuários (também entram nesta categoria as interações entre o autor do comentário original e outro usuário do site). TABELA 1 Indicadores de interação

6

Vídeo

Visualizações

André Rieu Bésame Mucho6

3.270.974

Avaliações Positivas 16.678

Avaliações Negativas 419

Comentários 713

Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=gNCxzbW9mtY

Interações Simples 12

Interações Múltiplas 9

André Rieu – Granada7 André Rieu Intermezzo Sinfonico8 André Rieu & Amira - O Mio Babbino Caro9 André Rieu Figaro Cavatina10 André Rieu Ode to Joy (All men shall be brothers)11 André Rieu - O Sole Mio12 André Rieu – Azzurro13 André Rieu Funiculi Funicula14 André Rieu – Kalinka15

1.055.902

4.826

163

235

8

8

759.995

2.133

47

119

3

2

585.141

5.492

76

255

5

5

260.017

2.393

43

147

6

7

237.724

2.029

41

133

3

4

209.962

1.497

29

63

0

0

188.587

1.377

24

57

1

0

106.404

1.318

14

57

0

0

102.401

1.526

23

90

2

3

Considerando que o número total de assinantes do canal na data da realização da pesquisa chegava a 413.250 pessoas, que dentre os dez vídeos selecionados (lembrando que estes foram os com o maior número de visualizações nos últimos doze meses, período no qual foram publicados ao todo 63 vídeos) somente quatro foram assistidos mais do que 500 mil vezes e que é impossível determinar quantas destas visualizações vieram de usuários que não estão inscritos no canal de Rieu, pode-se depreender que uma quantidade considerável de usuários do site de rede social que seguem o canal de fato não consome a maior parte do conteúdo disponibilizado. Para estes usuários, o canal de André Rieu no YouTube desempenharia o papel de uma rede social de filiação, ou associativa, uma rede formada por laços estáticos e conexões surgidas de mecanismos de associação (RECUERO, 2009), que neste caso incluem o ato de efetivamente assinar o canal. No entanto, apesar de estáticas, estas

Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=PvTOmNSmbdw Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Ne-LmoKPdiY 9 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=s9PQ7qPkluM 10 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=aJIpVj_YkNo 11 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=E9dLGDCdg3g 12 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=F1CZgBMQKkE 13 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=9OGGj8tGH8I 14 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=VnAdbp8peTg 15 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=VuF9N0VFcfk 7 8

relações possuem impacto efetivo no estado da rede social, uma vez que modificam o número total de assinantes de um canal, dado utilizado tanto por usuários como pelo próprio YouTube como medida de popularidade. A existência do canal como parte de uma rede associativa, no entanto, não implicaria automaticamente na inexistência de relacionamento entre seus atores, já que seria possível considerar que “essas redes permitiriam a inferência de laços sociais, uma vez que, quanto maior o número de contextos divididos pelos indivíduos, maior a possibilidade de que eles tenham algum tipo de relação social” (Recuero, 2009, p.98). O surgimento de um contexto de sociabilidade a partir de laços simplesmente associativos constitui um fenômeno típico dos sites de redes sociais (RECUERO, 2012), considerando que é nesses ambientes digitais onde atores podem se conhecer quando reunidos virtualmente em torno de interesses específicos. Esta dinâmica pôde ser observada por aqueles que participaram da primeira rede social digital utilizada em larga escala no Brasil, o Orkut. A organização do site em comunidades constituídas em torno de temas específicos, dentro das quais era possível interagir através de tópicos em um fórum de discussão, potencializava a possibilidade de entrar em contato com desconhecidos engajados na mesma pauta, não importando qual fosse, e com o quais, em um primeiro momento, somente se compartilhavam laços de associação. À interação generalizada na comunidade poder-se-ia seguir interações direcionadas, troca de recados individuais (os chamados scraps) e a eventual adição à lista de amigos. É nos site de rede social que esses laços passam a ser, efetivamente, “sociais” no sentido de não apenas indicar um grupo e indivíduos com um pertencimento comum mas conexões efetivas que interferem na rede social e sofrem interferência dela (Recuero, 2012, p.131).

Apesar destas potencialidades teóricas, o que é efetivamente possível observar nas interações entre os atores no canal de Rieu, no entanto, é uma dinâmica constituída majoritária e primariamente por laços formados por interações reativas, ou seja, interações limitadas a reações do tipo estímulo-resposta (PRIMO, 2003), considerando o relacionamento estabelecido entre os usuários da rede social digital e o canal oficial de André Rieu, uma vez que mais de 90% dos comentários postados nos vídeos analisados são em resposta direta ao canal e ignoram os comentários postados pelos outros usuários - muitas vezes até mesmo oferecendo as mesmas informações já divulgadas anteriormente, o que evidencia um total desinteresse pelas interações que já vinham se desenvolvendo na página. Os comentários observados demonstram a admiração dos atores por André Rieu e seu trabalho, se resumindo, em maioria esmagadora, a elogios,

julgamentos críticos positivos, depoimentos pessoais breves sobre o papel que a música de Rieu desempenha em suas vidas, questionamentos quanto à autoria ou nome da peça executada e agradecimentos pessoais ao próprio Rieu. A maneira como se configuram as interações entre os participantes do canal nos permite concluir que a maior parte dos atores envolvidos nos processos de interação se utiliza de uma lógica de Web 1.0 dentro de uma plataforma da Web 2.0, deixando de lado as possibilidades potencializadas de interação ampliada oferecidas por este paradigma tecnológico e priorizando puramente o acesso a informação. Os responsáveis pelo canal reforçam essa dinâmica, uma vez que atuam somente na divulgação do conteúdo, sem interagir com os outros usuários do site ou oferecer alguma informação adicional na caixa de comentários além daquela compartilhada no campo de descrição do vídeo publicado. Quanto ao relacionamento entre os visitantes, é possível observar uma quantidade reduzida de interações estabelecida através de respostas a comentários postados anteriormente e que constituem aquilo que Primo (2003) denomina como interações mútuas, ou seja, interações caracterizadas por “relações interdependentes e processos de negociação, em que cada integrante participa da construção inventiva e cooperada da relação, afetando-se mutuamente” (Primo, 2003, p. 62). Essas interações se alternam entre busca e oferecimento de informações adicionais sobre a peça executada, comentários sobre as interpretações e, no caso do vídeo mais assistido do grupo analisado, uma admoestação conjunta iniciada há seis meses aos 199 usuários do site que descurtiram o vídeo. Esta última conversação possui cerca de vinte e quatro respostas ao longo de cinco meses que, conforme crescia o número de avaliações negativas do vídeo, ganhava mais e mais manifestações de surpresa com a possibilidade de uma opinião discordante. A sequência de comentários, em certos momentos, ganha inclusive tons de julgamento e preconceito cultural e homofobia, quando especula-se que os responsáveis pelas descurtidas seriam admiradores do gênero Reggaeton16 e de música eletrônica, tratados pelos protagonistas da discussão como gêneros musicais menores (com destaque especial para o comentário que associaria o gênero com homossexualidade, tratada como motivo de chacota com o trocadilho “reGaytonero”). Este exemplo de conversação vai ao encontro de comentários tecidos por Recuero (2009), quando nos lembra que “o conflito pode fortalecer estruturas de um sistema, aumentando a união através de uma polarização, quando em conflito com outros sistemas” (Recuero, 2009, p.85). O gênero é uma mistura de reggae com música latina dançante, surgido no Panamá e popularizado em Porto Rico e no Caribe entre as décadas de 1970 e 1980. 16

No entanto, é possível observar que grande parte das interações estabelecidas nos comentários do vídeo que seriam, pela classificação oferecida por Primo (2003), consideradas como mútuas, se dá de maneira unilateral, com um comentário sendo respondido, uma ou mais vezes, por somente uma pessoa (o que chamamos aqui de interações simples). Ressaltamos a definição de interação mútua oferecida por Primo (2003) e a prioridade dada pelo autor para o aspecto dialógico deste processo, ao afirmar que ao interagirem, um [integrante] modifica o outro. Cada comportamento na interação é construído em virtude das as (sic) ações anteriores. A construção do relacionamento, no entanto, não pode jamais ser prevista. Por consequinte (sic), a relação construída entre eles também influencia o comportamento de ambos. Dessa forma justifica-se a escolha do termo “mútua”, visando salientar o enlace dos interagentes e o impacto que cada comportamento oferece ao interagente, ao outro e à relação (Primo, 2003, p.62).

Aqui torna-se possível, portanto, questionar a aplicabilidade do conceito para estas interações estabelecidas em sites de redes sociais digitais nas quais a ação se dá de forma monológica, em resposta a uma ação previamente realizada por um ator, mas abarcando uma dinâmica relacional mais ampla e engajada do que aquelas consideradas pelo autor como interações reativas. Essa análise vai de encontro à interpretação oferecida por Recuero (2009), que acredita que a partir da tipologia criada por Primo, poder-se-ia imaginar que a interação social mediada por computador será sempre uma interação mútua, dialógica. Na maioria das vezes, efetivamente, a interação reativa dá-se apenas entre o agente e o sistema que media (sic) a relação comunicativa (Recuero, 2009, p.33).

O que se observa é a necessidade de uma nova conceptualização, para incluir no rol das interações mediadas por computador aquelas nas quais o papel dos integrantes que participam da construção da relação é desempenhado, se não de forma independente, de forma desvinculada, não sendo possível concluir se os atores de fato afetaram-se mutuamente. Propomos para análise a ideia de interação direcionada, aquela interação que parte de um dos participantes do processo comunicativo em resposta a uma ação previamente desempenhada por outro ator, sem que haja resposta ou reciprocidade desse (ou mesmo participação de terceiros), e que inclua um engajamento maior do que a simples curtida/descurtida unidimensional. A relação aqui, portanto, não seria equilibrada nem igualitária, assemelhando-se àquilo que Recuero (2009) descreve como laços assimétricos, a saber, “quando os laços que conectam dois indivíduos possuem forças diferentes nos dois sentidos” (Recuero, 2009, p.42). No entanto, envolveria um nível de comprometimento com o ato comunicativo mais intenso do que aquele de estímulo e resposta, observado na interação reativa, que não acrescenta nenhum conteúdo

propriamente dito para a relação. A interação direcionada seria, portanto, dotada do mesmo conteúdo identificado nos atos individuais dos envolvidos na interação mutua, mas viria para classificar uma conjuntura na qual este engajamento não é mútuo, não havendo modificação em ambos os interagentes.

6. Considerações finais Este artigo buscou descrever algumas das características dos processos de interação entre os atores envolvidos com o canal no site de rede social digital YouTube do violinista André Rieu e entender como se dão estas interações, com base na Teoria Ator-Rede de Bruno Latour e nos estudos sobre relacionamentos mediados por computador de Alex Primo e Raquel Recuero. O resultado da pesquisa mostrou que as interações entre os usuários se dá em sua maioria de forma superficial, seguindo a lógica da Web 1.0 e não se utilizando das possibilidades de interação expandida oferecidas pelo site que se constrói com base nas tecnologias da Web 2.0. Aliado às outras caraterísticas observadas, estes resultados evidenciam, neste contexto, uma postura de observação acrítica do conteúdo, constituída somente do ato de assistir aos vídeos disponibilizados, sem trazer estes produtos culturais para outras dinâmicas sociais no relacionamento online. A lógica de participação dos usuários da rede social digital aparenta obedecer a uma noção de pertencimento, com os usuários inscritos no canal e respondendo àquilo que é publicado pela equipe de divulgação, ignorando a interação dos outros internautas. Grande parte dos inscritos, por sua vez, não se engaja em nenhuma interação, somente consumindo o conteúdo disponibilizado. Observou-se também, que grande parte das interações que de fato se estabelecem entre os atores, não se enquadra em nenhuma das duas categorias previamente estudadas, sendo necessário um novo conceito, baseado nos já descritos, para abarcar esta dinâmica.

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