Configurações identitárias na obra de Estércio Marquez Cunha: o “sotaque” de um compositor goiano

July 11, 2017 | Autor: Felipe Vinhal | Categoria: Música, Historia Cultural, Musicología histórica, Musicologia
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Anais do Congresso de Pesquisa, Ensino e Extensão- CONPEEX (2012)

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Configurações identitárias na obra de Estércio Marquez Cunha: o “sotaque” de um compositor goiano

Felipe Eugênio Vinhal Universidade Federal de Goiás – [email protected] Orientadora: Magda de Miranda Clímaco Universidade Federal de Goiás- [email protected]

Palavras-chaves: Configurações identitárias; Compositor goiano; Estércio M. Cunha; Interação cultural Essa pesquisa teve como objeto de estudo um conjunto de obras selecionadas do repertório do músico e compositor goiano Estércio Marquez Cunha, abordadas tanto na sua capacidade de evidenciar representações sociais implicadas com configurações identitárias (CHARTIER,1990; HALL, 2006), quanto processos de interação cultural (CANCLINI, 2003). Um trabalho interdisciplinar, portanto, envolvendo a área da música em diálogo com disciplinas afins. O contato inicial com o compositor se deu no início de meus estudos musicais, quando, em meio a teorizações e reflexões acerca da música na sua relação com a cultura, com a sociedade e com a história, me depararei com algumas obras de Estércio Marquez Cunha compostas em estilo contemporâneo, plenas de dissonâncias e efeitos timbrísticos diversos. Numa primeira instância, essas obras pareciam estabelecer um diálogo estreito apenas com a cultura européia e com a cultura americana de meados do século XX em diante, distantes de realidade musical brasileira do período, mais especificamente, distantes da realidade musical goiana. Nascido em Goiatuba/GO, esse compositor, cuja obra abrange desde solos até diversas formações de câmara e orquestra, cresceu na cidade de Goiânia. Segundo Andrade (2000), sua trajetória musical evidencia que fez o curso de graduação em Música (composição) na cidade do Rio de Janeiro, no Conservatório Brasileiro de Música, e a PósGraduação (mestrado e doutorado) em Oklahoma nos Estados Unidos. Durante o período de sua formação interagiu com outras culturas, portanto, o que leva a crer que sua linguagem composicional tenha se transformado na medida em que esteve sujeita a novos processos identitários (HALL, 2006), implicados, por sua vez, com processos de hibridação cultural.

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Canclini (2003, p. XIX) observa que entende por hibridação “processos sócio-culturais nos quais estruturas e obras que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”. Essas circunstâncias, juntas, começaram a apontar para essa investigação, me levaram a buscar uma base teórica que permitisse abordar o objeto de estudo que começava a se delinear, buscar os processos identitários relacionados a uma produção artística que não trazia, de forma direta, a marca da cultura originária do compositor. Foi nesse contexto de busca teórica, portanto, que surgiu o conceito de representações sociais, percebido como um campo forjador de processos identitários.

Para Chartier (1990, p. 23) a noção de

representação remete a práticas que visam fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição; por fim, as formas institucionalizadas e objetivas graças às quais uns “representantes” (instâncias coletivas ou pessoas singulares) marcam de forma visível e perpetuada a existência do grupo, da classe ou da comunidade

Essa base teórica, por outro lado, remeteu também aos processos identitários como definidos por Hall (2000, p. 111-112), quando lembra que as identidades são as posições que o sujeito é obrigado a assumir, embora sabendo, sempre, que elas são representações, que a representação é sempre construída ao longo de uma “falta”, ao longo de uma divisão, a partir do lugar do Outro e que, assim, elas não podem, nunca, ser ajustadas – idênticas - aos processos de sujeitos que nelas são investidos.

Esse autor, tendo em vista as crises identitárias pós-modernas, que interagem com a diversidade acentuada resultante das grandes transformações nos meios de comunicação e transporte, conforme mencionadas também por Harvey (1992), observa que os indivíduos não são mais percebidos possuindo um eixo identitário estável e único. Sua identidade vem se fragmentando, passa agora a ter não uma, mas várias identidades, por vezes contraditórias e não resolvidas, em constante deslocamento. Segundo Hall (2006, p. 12), “as identidades estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático”. Nesse sentido, a obra de Estércio Marquez Cunha percebida como representação de elementos de um imaginário coletivo, não perde a sua condição de evidenciar configurações identitárias diversas.

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Esses conceitos foram utilizados também em consonância com a noção de gênero do discurso (BAKHTIN, 2003), esse último, implicado com a polifonia de vozes que permite observar o entrecruzar de diferentes dimensões culturais e temporais (diferentes enunciados, representações sociais, portanto), na base de uma matriz cultural que interage com uma situação imediata de relações (nesse caso uma obra musical, um “gênero” relacionado ao campo de produção musical, inerente a um determinado tempo e contexto). Mediante essa fundamentação teórica, portanto, pôde ser pressuposto que apesar da transversalidade cultural da poética musical (Stravinsky, 1996) de Estércio Cunha, da diversidade que possivelmente incorpora, essa linguagem musical não deixou de dialogar com resíduos da cultura goiana. Percebida também como gêneros discursivos, plenos de uma polifonia de vozes na sua base, as obras analisadas e interpretadas, relacionadas ao repertório de Estércio Marquez Cunha, foram percebidas na sua condição de evidenciar um “conteúdo temático”, objetivado numa “forma composicional”, capaz de revelar peculiaridades estilísticas, “características de estilo contextual” (da matriz cultural, do gênero) e “características de estilo individuais” (resultantes de cada situação concreta e imediata de relações, ou seja, de cada encontro cultural com o qual esse gênero, nesse caso uma obra musical, interagiu). Foi toda essa circunstância, portanto, relacionada às primeiras constatações e fundamentações teóricas encontradas a partir da observação da obra de Estércio Marquez Cunha, que levou às seguintes questões: Que processos identitários estariam relacionados à obra desse compositor goiano? Esses processos podem ser evidenciados sob a ótica do representacional? Revelam processos de hibridação cultural? Como se apresentam, em sua obra, os elementos residuais relacionados ao cenário cultural goiano? Que marcas e influências aparecem nessa obra, resultantes dos encontros culturais que efetivou? Com o intuito de responder essas questões, esse trabalho tem como objetivo investigar os processos identitários implicados com a obra do compositor Estércio Marquez Cunha, tendo em vista circunstâncias envolvidas com o representacional ligado à sua condição goiana e a processos de interação cultural. Parte da pressuposição de que as obras desse compositor são capazes de evidenciar o cruzamento de diferentes representações sociais implicadas com a memória goiana e com a diversidade com a qual esse músico goiano interagiu e, nesse contexto, de se constituírem também em um texto social, em uma das partes integrantes da articulação simbólica que institui a trama cultural com a qual interagem (GEERTZ, 1990), de constituírem processos identitários, portanto.

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Por outro lado, essa investigação se justifica tanto por divulgar a obra de um compositor goiano, ainda não suficientemente reconhecido no cenário brasileiro, quanto por contribuir para a efetivação e divulgação das tendências mais atuais dos estudos musicológicos, ao chamar atenção para a importância do papel do músico e da música na sociedade, para a relação intrincada que a música estabelece com a sociedade quando percebida como estrutura simbólica, capaz de significar em relação a essa sociedade, de evidenciar representações sociais. Estércio Marquez Cunha e a música em Goiás Um dos primeiros passos rumo às respostas para as questões formuladas foi levantar a história da música na cidade de Goiânia, seguida de uma narrativa de caráter biográfico do compositor Estércio Marquez Cunha, relacionada com essa história. Isso com o intuito de chegar a elementos que pudessem dar base à compreensão e análise de processos identitários ligados às obras e à trajetória musical desse compositor, enfim, às representações que os sinalizam. Segundo Mendonça (1981) e Pina Filho (2002), partindo dos herdeiros do patrimônio cultural das sociedades ligadas, sobretudo, à cidade de Goiás – antiga capital do estado que tem o mesmo nome – e das outras cidades históricas que interagiram com o seu desenvolvimento, como Pirenópolis, por exemplo, a música em Goiânia se desenvolveu desde a sua fundação, na década de 1930. Instituições, associações e escolas ligadas à arte foram criadas e encerradas ao longo das décadas que se seguiram. Pequenos grupos orquestrais, bandas, corais, uma importante escola de piano e de canto, segundo Borges (1998), acompanharam as idas e vindas dos diferentes momentos da música goianiense, que teve um marco importante na criação do Conservatório Goiano de Música, responsável pela formação de músicos e pela organização de importantes festivais. Essa Escola de Música, que teve como alguns de seus fundadores a pianista Belkiss Spencière Carneiro de Mendonça e o maestro belga Jean Douliez, dentre outros, se juntou a outras quatro instituições de diferentes áreas, para que a Universidade Federal de Goiás se tornasse uma realidade. Esse cenário musical e instituição dedicada ao ensino da música, o Conservatório Goiano de Música, hoje Escola de Música e Artes Cênicas da UFG, aqui descritos de forma muito breve, foram palco e cenário de grande parte da trajetória profissional do compositor Estércio Marquez Cunha. Nessa instituição goiana esse músico cumpriu um dos seus momentos iniciais de formação musical, foi professor nos cursos de graduação, quando voltou do Rio de Janeiro e, depois, na pós-graduação, quando retornou do Mestrado e Doutorado

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realizados nos Estados Unidos. Segundo Andrade (2000, p. 26), “Estércio vai para o Rio de Janeiro com o desejo de tornar-se um pianista famoso”. No entanto, na Escola Nacional de Música, concomitantemente aos seus esforços com relação ao piano, interessou-se pelo estudo de harmonia, e, aos poucos, foi se tornando compositor. Terminados os cursos de piano e de composição em 1967, retornou à Goiânia e, concursado, assumiu a cadeira de Harmonia Superior, Contraponto e Fuga, na Universidade Federal de Goiás, onde lecionou até 1995, quando se aposentou. Foi professor também na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), além de ter ministrado cursos e palestras em eventos musicais pelo país. Em 1970 teve um encontro em Brasília com o compositor uruguaio Conrado Silva, que, possivelmente, interferiu na sua formação musical. Tornou-se seu aluno no Curso de Especialização em Música Contemporânea. Em 1978 partiu para os Estados Unidos, buscando realizar o Mestrado e Doutorado em Artes Musicais (Composição), na Oklahoma City University. Ali foi aluno de Ray Luke, Carveth Osterhaus e Michael Hennagin (seu orientador) que, assim como Conrado Silva, exerceram influência na sua formação. Importante dizer que o compositor foi homenageado no 36º Festival Nacional de Música da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás que aconteceu em 2011, alguns anos depois de ter se aposentado. Este Festival, reconhecido como um dos mais antigos festivais de música do país, tem atraído anualmente músicos de renome nacional e internacional e, nos últimos anos, tem homenageado compositores brasileiros reconhecidos nacionalmente. Enfim, foi essa trajetória musical que forjou as condições que possibilitaram a Estércio Marquez Cunha criar o seu repertório de composições, do qual foram selecionadas algumas obras para análise, tendo em vista os objetivos traçados. As obras analisadas Outro passo rumo à solução dos questionamentos levantados nessa investigação foi a seleção estratégica de três obras para serem analisadas e interpretadas, tendo em vista três diferentes períodos de interação cultural do compositor e a estrutura musical sempre na sua relação com o cenário sócio-histórico e cultural em questão. São elas: Sonata para Violino e Piano N. 01 de 1967 (graduação no Rio de Janeiro); Music for Band N. 01 de 1981 (pós-graduação nos EUA); e Coral N. 02 de 2010 (aposentado da EMAC/UFG em Goiânia). A Sonata para Violino e Piano N. 01 foi selecionada na expectativa de que pudesse evidenciar os processos composicionais de Estércio M. Cunha antes que deixasse o Brasil. Esta peça utiliza o piano, um instrumento intimamente ligado ao desenvolvimento musical goiano, à história da Escola de Música e Artes Cênicas da UFG e foi trabalhada

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visando uma “construção” do nacional. Por sua vez, a Music for Band N. 01, como sugere o título em inglês, foi composta nos Estados Unidos e representa uma nova etapa na trajetória do compositor, já marcando outros encontros culturais em diálogo com o seu “sotaque” goiano. Por fim, o Coral N. 02, composto em 2010, após sua aposentadoria na EMAC/UFG, representa um novo estágio estilístico e filosófico do compositor experimentado que já interagiu com diferentes culturas. Passo agora a alguns comentários sobre a abordagem metodológica utilizada nessa investigação, seguidos do enfoque de alguns elementos resultantes da análise da organização sonora das obras selecionadas, considerados dados importantes para a abordagem do objeto em questão. Analisados e interpretados, esses dados foram entrecruzados entre si e com outros dados colhidos tanto na análise e interpretação da performance (observada através da fruição de recitais, da audição e apreciação de Cds e DVDs), quanto através do estudo do cenário sócio histórico e cultural e da trajetória musical e profissional de Estércio Cunha. Ferrara (1984) se constituiu em fundamentação importante ao fornecer ferramentas de análise e de interpretação para essa abordagem das obras selecionadas. Essas ferramentas remetem a alguns elementos de um enfoque fenomenológico, ao indicar o uso constante de uma “audição aberta” que colocou o pesquisador - um ser histórico desvestido dessa condição e de sua erudição - frente à obra a ser analisada e interpretada, que se apresentou a ele em suas características e peculiaridades. Essa “audição aberta”, depois de efetivada várias vezes, se alternou com outros elementos de análise, realizados em três níveis, que também se concretizaram de forma intrincada, ou seja, não aconteceram, necessariamente, numa ordem pré-estabelecida. São eles: Análise sintática (análise da organização sonora); análise semântica (percepção de elementos estruturais que funcionaram como significantes); análise ontológica (resultantes da busca de elementos dos cenários biográficos e culturais que remetem aos significados). Outra ferramenta de análise, que se cruza com a anterior, levou à utilização de alguns elementos da análise do discurso, que tiveram fundamentação em dois autores: a noção de gênero discursivo de Bakhtin (2003), já citada, e reflexões de Orlandi (2002), baseada nesse autor. O primeiro autor, quando permite a fundamentação para que se busque, nas obras analisadas, características de estilo de índole contextual e características de estilo de ordem individual; a autora, quando lembra que esses gêneros discursivos têm condições de revelar o homem falando com outros homens através das suas obras, e, nessa circunstância, de evidenciar a sua capacidade de entrecruzar “o já dito” (o interdiscurso), com “o que está sendo dito agora” desse modo e através dessa forma (o intradiscurso).

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Assim, cada obra analisada de Estércio Marquez Cunha foi considerada aqui como estrutura simbólica, como um texto social que surgiu a partir de uma situação concreta e imediata de relações do autor ao interagir com determinado cenário cultural. Apresenta a sua especificidade como objeto sonoro, essencialmente temporal, com um código próprio capaz de despertar sensibilidades, o que não impossibilita a percepção de outro ângulo, a percepção de um produto cultural e histórico portador de uma estrutura simbólica, de significantes e significados residuais e atuais ligados a essa situação concreta e imediata de relações. Significantes e significados que permitem observar representações sociais, processos identitários resultantes da interação de elementos oriundos de vários cenários culturais, inclusive, aquele de origem do compositor. Tendo em vista essas abordagens metodológicas, passo agora aos elementos colhidos a partir da análise de cada obra selecionada. “Sonata para violino e piano n. 01” A primeira obra analisada foi composta em 1967, apresentada como exigência curricular no curso de Composição e Regência que Estércio Marquez Cunha concluía no Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro (ANDRADE, 2000). Esta peça representa um recorte temporal, um momento dentre as configurações identitárias do compositor que terminava o curso de composição, havia saído de Goiás a pouco tempo e estabelecia seus primeiros diálogos com outros cenários culturais. Numa primeira instância, pôde ser atribuída a razão da escolha da instrumentação, nesse período, ao fato de ser o piano o instrumento de formação musical do compositor. Porém, indo-se além, o que pode ter influenciado a escolha desse instrumento foi o fato do piano se constituir em parte da herança musical goiana (ou herdade, nas palavras do compositor em textos de músicas e poesias), já que uma importante escola pianística, da qual fez parte, se desenvolveu e caracterizou forte esse cenário musical, sobretudo, através do trabalho da reconhecida pianista Belkiss S. C. de Mendonça, conforme revelado por Borges (1999) e Pina Filho (2002). O violino, depois do piano, foi outro instrumento muito cultivado nos primórdios do antigo Conservatório de Música goiano. Esta Sonata para piano e violino n. 01 foi composta nos moldes clássicos do gênero Sonata, o que evidencia o cultivo de características estilísticas contextuais, ou seja, de características do gênero sonata, uma matriz cultural do campo de produção musical ocidental. Está na tonalidade de dó maior, tem passagens modulantes e é constituída de três movimentos que apresentam temas a serem desenvolvidos. Por outro lado, a inserção de “notas de tensão”, muita utilização de acordes dissonantes, que demonstram o início do

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interesse no investimento numa escrita musical contemporânea, como pode ser observado adiante nos Recortes 1 e 2, já apontam para algumas características de estilo individual. O primeiro movimento, em forma sonata, possui uma introdução na tonalidade principal que vai dos compassos 1 ao 3. O tema A, de caráter lírico e melodioso é apresentado pelo violino dos compassos 4 ao 7, numa possível referência às modinhas, muito executadas nos “saraus” das casas goianas no início do século XX, conforme mencionado por Mendonça (1981) e ilustrado pela musicóloga Maria Augusta C. S. Rodrigues (1982) no seu livro A modinha em Vila Boa de Goiás. A introdução e o Tema A estão exemplificados no Recorte 1.

Recorte 1 - Sonata para piano e violino n.01 de Estércio Marquez Cunha. Introdução e Tema A do primeiro movimento. Compassos 1 a 8

Já o tema B, mais movido e apresentando elementos rítmicos contramétricos que remetem à fusão no Brasil do sistema rítmico contramétrico africano com o sistema rítmico cométrico europeu (Sandroni, 2001) e a um caráter nacionalista que vigorava na época em que a obra foi composta (Neves, 2008), é apresentado do compasso 18 ao 28, em sol maior e reexposto do compasso 60 ao 69, na tonalidade original. O início do tema B pode ser conferido no Recorte 2.

Recorte 2 - Sonata para piano e violino n.01 de Estércio Marquez Cunha. Início do Tema B do primeiro movimento. Compassos 18 ao 21.

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O segundo movimento apresenta um caráter lírico e estrutura ABA. O terceiro movimento, um rondó estruturado em ABACADAEA, é mais movido, e seu material motívico trabalha uma espécie de mescla dos movimentos precedentes. Apresenta mais uma vez a utilização do ritmo do baião como uma das suas características de estilo individual, conforme pode ser observado no baixo do Recorte 3. A parte A desse movimento, cujo início é exemplificado também nesse Recorte, é exposta nos compassos do 1 ao 9, aparecendo novamente do compasso 19 ao 26, do 51 ao 58, do 68 ao 75, do 100 ao 107, e do 117 ao 125.

Recorte 3 - Sonata para piano e violino n.01 de Estércio Marquez Cunha. Início do Tema A do terceiro movimento. Compassos 1 ao 5

A parte B, apresentando ainda o ritmo do baião, vai do compasso 10 ao 18, a parte C, do 27 ao 50, a parte D, do 59 ao 67, a parte E, do 76 ao 99, e uma retomada à parte B acontece do compasso 108 ao 116. Neste primeiro momento de sua carreira, Estércio Marquez Cunha revelou preocupação com um caráter nacionalista a partir da utilização de temas populares e de uma rítmica considerada brasileira, como era a tendência no cenário musical da época (Neves, 2008). Por outro lado, já evidenciou alguns recursos composicionais que o acompanhariam na maturidade, como numerosos momentos de silêncio, pouca utilização de dinâmicas de grande porte, sua preferência por música camerística e por instrumentação reduzida, além da sinalização do interesse no investimento na música contemporânea. O diálogo com o Rio de Janeiro, nesse período, forneceu o subsídio técnico inicial e contribuiu para a sua identificação com a carreira de compositor, ainda incomum em Goiás. A composição da sonata revela a atualização de um gênero clássico, portanto, com suas características estilísticas contextuais, conforme já descrito, que interagiram com características de estilo individuais, como a utilização da rítmica contramétrica e do ritmo do baião, com o esboço do investimento na escrita contemporânea, além de elementos que remeteram à memória do compositor goiano.

Se Bakhtin (2003) e Orlandi (2001) forem

lembrados, a memória, “o já dito”, entrecruzou-se nessa obra com “o que está sendo dito agora”, desse modo e através dessa forma. Trazendo algo já característico de gênero e algo novo, revelando configurações identitárias, se observados os processos simbólicos implicados

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com o atual e o residual, já mostra o compositor em início de carreira lidando com sua herança goiana e com os novos diálogos estabelecidos neste primeiro cenário cultural com o qual interagiu: a vida acadêmica musical do Rio de Janeiro. “Music for band n. 01” Esta obra foi composta em 1981, já marcando outro momento na trajetória musical do compositor goiano. Neste ano, como o próprio título da obra dá a pressupor, Estércio Cunha estava no final dos estudos que realizou nos Estados Unidos da América. Acrescentou à sua bagagem musical experiências novas, outras descobertas sonoras e desenvolvimentos dos elementos estilísticos contemporâneos que entrara em contato, sobretudo, desde o seu encontro em Brasília com o compositor uruguaio Conrado Silva. Nos EUA mergulhara no universo da música-teatro, que revelaria mais tarde ser um de seus gêneros favoritos. Por outro lado, de acordo com a análise do cenário histórico goiano, a instrumentação da peça tem suas raízes na história de grande investimento nas bandas em Goiás. O rastro desse passado histórico pode ser encontrado no cultivo significativo dessa formação e prática instrumental tanto na capital goiana quanto em grande parte das cidades do interior do estado de Goiás, na sua presença em escolas, corporações militares, em festividades cívicas, públicas, dentre outras instituições e ocasiões. As atividades das tradicionais e centenárias bandas Euterpe e Phoenix da histórica cidade de Pirenópolis, segundo Mendonça (1981), são exemplos. Sob esta perspectiva, pode ser dito que Estércio Cunha, em meio à trajetória de encontros que estabelecia, estabelecia diálogos com o seu “sotaque” goiano numa terra tão distante. Nessa obra, revelando características de estilo individuais, se valeu da escrita atonal, de uma organização sonora que parece beirar ao experimentalismo, caracterizada por uma busca incessante de sonoridades avessas ao tradicional, à funcionalidade do sistema tonal. Nesse contexto, valeu-se não só da sucessão de dissonâncias sem pudor resolutivo, mas também da elaboração de massas sonoras caóticas, como a que se desenvolve nas vozes superiores dos compassos 16 ao 19 e que pode ser observada no Recorte 4.

Recorte 4 – Music for band n. 01 de Estércio Marquez Cunha. Compassos 16 ao 19 - quatro primeiros instrumentos

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Mesmo sendo escrita para uma formação musical maior, esta peça dificilmente escapa das dinâmicas brandas, sendo os fortes momentos únicos ou súbitos, como no acorde ff que aparece no compasso 11. A peça tem como característica caminhar com sonoridades suaves, crescendo pacientemente e muitas vezes sem atingir dinâmicas como aquelas do compasso supracitado. Neste desenvolvimento, é utilizado um recurso de grande apreço do compositor, reclamado em diversas outras composições, que são as entradas das vozes mascaradas por outras vozes em desenvolvimento. Pequenos motivos melódicos, de estrutura semelhante, surgem esporadicamente por toda a obra, no trompete, aparecem nos compassos 25 e 26 e, no xilofone, nos compassos 76 e 77. Diversos momentos de silêncio completo também podem ser encontrados, construídos sobre longas pausas. Esses momentos tornaramse uma forte característica composicional de Estércio Cunha, revelada explicitamente através do texto poético de algumas de suas peças para canto. As

características

dessa

obra

resumem

um

estilo

composicional

em

amadurecimento, com traços que foram mantidos nas obras atuais do compositor. O silêncio, junto a um clima de contemplação e intimismo, interrompido por fagulhas e por sons que se aglomeram, parece evocar a atmosfera do cerrado. O investimento nessa atmosfera foi lembrado e reconhecido por ele na entrevista que concedeu a Carvalho (2012), inclusive, relacionada também a elementos e sensações da vida rural goiana. Tendo em vista essa observação, a obra emana momentos de uma serenidade que ora aponta a paisagem sonora da própria natureza, ora evidencia que essa serenidade pode ser invadida pelo caos da vida pósmoderna, pelos sons característicos da atividade humana. Coral n. 02 Dentre as obras selecionadas, Coral n. 2 se constitui em uma das obras de Estércio Marquez Cunha mais recentes. Composta em 2010, algumas décadas após a conclusão de seu doutorado, quando já estava aposentado de suas atividades no Instituto de Artes da Universidade Federal de Goiás (atual Escola de Música e Artes Cênicas da UFG), a análise dessa obra possibilitou observar, além de uma breve síntese de algumas das principais características composicionais do compositor, configurações identitárias híbridas (HALL, 2000; CANCLINI, 2003) que aqui se apresentam como características de estilo contextuais e individuais, conforme descrito por Bakhtin (2003). Estércio Cunha se valeu de uma das mais tradicionais formações musicais do Estado, o coral, muito praticado, sobretudo, no antigo Conservatório de Música da UFG, para compor essa obra de acordo com o gênero que recebeu o mesmo nome.

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O gênero musical coral floresceu em meados do período Renascentista no continente europeu, caracterizado por uma escrita musical a quatro vozes, em “estilo acordal”, o que remete agora, se Bakhtin novamente for lembrado, ao estilo contextual do gênero. Resíduos dessa formação musical e dessas características estilísticas foram evidenciados em corais executados em igrejas, corais cênicos e universitários praticados na cidade de Goiânia (PINA FILHO, 2002), com os quais Estércio Marquez conviveu em diferentes momentos de sua vida, conforme também depoimento concedido a Carvalho (2012) pelo próprio compositor. De caráter contemplativo, esta peça apresenta ainda, já como característica de estilo individual, harmonia quartal (SCHOENBERG, 2001) em alternância com acordes de sétima, o que provoca uma constante flutuação constituída por dissonâncias sem resolução. O Recorte 5, retirado do trecho inicial da peça, evidencia essa construção com acordes quartais e sétimas (4 e 7), além de exemplificar a escrita acordal a quatro vozes:

Recorte 5

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a

Em andamento lento e com dissonâncias que nunca ultrapassam o mezzoforte, essas características de estilo se mostram recorrentes na composição de Estércio Marquez Cunha, interando-se com uma escrita em estilo homofônico, em que a música caminha em blocos, o que agora configura uma característica de estilo contextual, ou seja, do gênero. A letra é de sua autoria, como geralmente acontece em suas obras, e o ritmo, evidenciando homorritmia, foi concebido com o intuito de fortalecer o texto, um dos principais elementos constitutivos desta peça. Numa antiga herdade, morada de memórias Na sombra de um Barú, tem um poço No poço da herdade silêncio e paz Um amigo pede água e oferece vida verdade

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Nas primeiras frases, “numa antiga herdade, morada de memórias, na sombra de um baru, tem um poço”, o compositor, provavelmente, se refere à terra em que passou grande parte de sua vida, desde a infância: a cidade de Goiânia/GO. A letra remete à memória da terra, ao cerrado, através da citação do baru, uma árvore característica dessa região e cenário geográfico, assim como a palavra herdade, recorrente em outras composições. Nestas primeiras frases já aparecem os elementos estruturais que marcam o estilo individual em relação ao gênero, embora apareçam também em outras composições suas: harmonia quartal, sétimas, condução suave e contemplativa e combinação vertical brilhante, com pausas em cada pontuação. Em seguida, “No poço da herdade, silêncio e paz”, a palavra “paz” é cantada através de um telúrico acorde de Ebm7/Bb. Aqui há também uma referência ao silêncio, recorrente em diversas obras do compositor, provavelmente inspirado no silêncio, paz e tranquilidade da paisagem do cerrado. A fermata colocada sobre a palavra “paz” mantém o “silêncio pacificador” por mais tempo, além das numerosas pausas e da suavidade e intimidade de toda a peça. Por fim, “um amigo pede água e oferece vida verdade”. A peça então se encerra na última sílaba da palavra “verdade” com um brilhante acorde B7 que afirma a vida e a verdade oferecidas pelo próprio filho de Deus, segundo concepção religiosa cristã, o que reforça o investimento em um tom teatral.

Esses elementos estruturais,

entrecruzados com elementos colhidos no estudo da trajetória de vida e do cenário histórico e cultural de Estércio M. Cunha, remetem não somente às possibilidades ligadas ao conhecimento da música contemporânea adquirido em outros cenários, ao “alargamento” da experiência de vida que a interação com esses cenários lhe trouxe, mas também à memória, à volta nesse momento de sua vida ao aconchego da terra, dos amigos, da lembrança das antigas práticas, inclusive, religiosas. Considerações finais Diante dos resultados obtidos com as análises das peças selecionadas, com o estudo biográfico de Estércio Marquez Cunha e do cenário histórico-cultural com o qual interagiu, amparado pelo arsenal teórico escolhido para a pesquisa, foi possível perceber pelo menos três momentos distintos na trajetória do compositor. Esses momentos configuram as transformações percebidas em sua linguagem composicional, sua identidade goiana em diálogo com a diferença nos três recortes de tempo efetivados. A Sonata para Violino e Piano Nº01 (1967), composta em caráter nacionalista (tendência da época) revela uma identidade em construção. Materializa o momento dos estudos iniciais de música de Estércio Cunha, marca seu primeiro encontro com a cultura

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musical carioca, que o influenciou a seguir a carreira de compositor. Unindo características líricas e contramétricas da tradição musical popular brasileira a um universo dissonante, não deixa de soar de forma familiar aos ouvidos goianos, como se evocasse a todo instante uma atmosfera de modinhas e cantigas de roda que também integraram esse cenário. O “sotaque” goiano junto às primeiras experiências com a dissonância começa a tomar forma, enquanto Estércio Cunha assume suas primeiras configurações como compositor brasileiro. A segunda peça, Music for Band n. 01 (1981), sem perder de vista uma goianidade latente que se apresenta desde a escolha do agrupamento instrumental, da tradição das bandas, da organização sonora que transporta à ecologia goiana, se posiciona frente aos diálogos e conflitos com a cultura norte-americana. Como compositor, em estudos de pósgraduação, Estércio Cunha evidencia alguma experiência com a música-teatro, assim como já demonstra maior habilidade técnica relacionada às tendências de vanguarda da área. A terceira peça, composta depois de aposentado, dá a perceber um sujeito polifônico, transversal, transcultural, teatral, forjado por identidades múltiplas e em movimento. O Coral Nº02 (2010), gênero que remete ao início da música ocidental, é atualizado pelo compositor em texto e em estilo composicional. As características de estilo contextuais e individuais citadas, evidenciam na sua base uma polifonia de vozes (fruto das inúmeras interações culturais) que inclui, além da memória – o “sotaque” goiano implicado com reminiscências religiosas, afetivas e telúricas – um grande investimento na técnica composicional, na gramática musical contemporânea e em efeitos teatrais, apreendidos em outros contextos culturais. Cada uma dessas peças, portanto, em sua particularidade, pode ser encarada sob a ótica do representacional, na medida em que se revela como suporte representativo do imaginário de um contexto natal em diálogo com um universo cultural diverso. As análises realizadas a partir da “audição aberta” e da análise estrutural da obra (análise sintática) em interação com os elementos colhidos no estudo da biografia de Estércio Cunha e de elementos relacionados aos cenários sócio-históricos e culturais com os quais interagiu (análises semântica e ontológica), possibilitaram a percepção de materializações desse imaginário em sua obra. Isso aconteceu, sobretudo, através do investimento em certas formações instrumentais, às vezes em melodias mais líricas lembrando o “melodismo” da modinha, a utilização de rítmica contramétrica, a valorização do silêncio, de efeitos timbrísticos e das dinâmicas de pequeno porte, que remetem, muitas vezes, à ecologia do cerrado goiano e a um caráter reflexivo do compositor. Elementos que funcionam como significantes, portanto, que

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revelam representações sociais partilhadas por um grupo social e por um criador que carregam em seu bojo o passado histórico e cultural goiano. Assim, pode ser dito que ao mesmo tempo em que Estércio Cunha gradativamente foi incorporando as tendências e técnicas vanguardistas em composição, investindo numa obra altamente elaborada, com evidente domínio técnico, se empenhando no aprendizado da Música-teatro apreendidos em outros contextos culturais, não deixou de evidenciar em suas composições, às vezes de forma mais explícita, geralmente de forma menos transparente, uma identidade regional. Sua obra evidencia uma construção identitária híbrida, portanto, marcada por encontros culturais e pelo “sotaque” goiano, apesar de numa primeira instância, não dar a perceber essa circunstância. Uma identidade híbrida, forjada a partir da circularidade cultural, de características de estilo contextuais e individuais que permitem entrever o entrecruzar do “já dito” com “o que está sendo dito” agora, desse modo e através dessa forma. Por outro lado, os resultados obtidos nesta investigação, inerentes à complexidade da abordagem do objeto pesquisado, junto ao interesse maior que despertou, levaram à elaboração de um novo projeto de pesquisa que objetiva compreender, de forma mais focada, a religiosidade presente na música-teatro deste compositor. REFERÊNCIAS ANDRADE, Martha M. de C. Poética musical como instauração do mundo pelos caminhos de Estércio Marquez Cunha. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. BORGES, Maria Helena J. A Música e o Piano na Sociedade Goiana (1805-1972). Goiânia: FUNAPE, 1998. BAKHTIN, Mikhail. Estética da comunicação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CANCLINI, Nestor. Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP, 2003 CHARTIER, Roger. A História Cultural Entre Práticas e Representações Sociais. R.J.: Bertrand, 1990. CARVALHO, Leonardo V. A obra vocal de Estércio Marquez Cunha: especificidades da música e memória no cenário musical goianiense. Goiânia: UFG, 2012. [Dissertação de Mestrado] Goiânia, Universidade Federal de Goiás (UFG), 2012 FERRARA, Lawrence. Phenomenology as a tool. In Musical Quartely, p. 355-373, 1984. V.70, 3. GEERTZ, Cliford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. ___________ Quem precisa de identidade? In SILVA, Tomás Tadeu (org.) Identidade e Diferença. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. HARVEY, David. Condição Pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1992. MENDONÇA, Belkiss S. C. A música em Goiás. Goiânia: Ed. UFG, 1981 NEVES, José Maria. Música contemporânea brasileira. Rio de Janeiro: Contracapa, 2008 ORLANDI, Eni P. Análise do Discurso princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2002. PINA FILHO, Braz W. P. Memória Musical de Goiânia. Goiânia: Kelps, 2002 RODRIGUES, Maria Augusta C. A modinha em Vila Boa de Goiás. Goiânia: Editora da UFG, 1982. SANDRONI, Carlos. Feitiço Decente. Rio de Janeiro: Zahar, 2001 SCOHENBERG, Arnold. Harmonia. São Paulo: Editora UNESP, 2001. STRAVINSKY, Igor. Poética Musical em seis lições. Rio de Janeiro: Zahar, 1996

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