Configurações Luso-Brasileiras. Fronteiras Culturais, Demarcações da História e Escalas Identitárias (1870-1910)

June 30, 2017 | Autor: Marçal Paredes | Categoria: Nationalism, National Identity, Theory of History, History of Historiography, Luso-Brazilian Studies
Share Embed


Descrição do Produto

                                                                                    !                    "              #        $                      % &                     '    ( )      #         #             "&      #    *  +  (  ,     + $

    

    

     )- ./    + )   ) #   0   )/,0    ./)+*12 3 4( /  1 ,   4"5  6776$8 4./' 4" 9*(9:';9*J1& )*:6 +) "K   F      &  ?G>J

RESUMO

Este trabalho tem por propósito o estudo de um problema específico: o das demarcações culturais que têm lugar, em finais do século XIX e inícios do século XX, entre Brasil e Portugal. Percorrem-se duas linhas de análise: a primeira procura explicar os contornos da escala cultural luso-brasileira no período em análise; a segunda busca equacionar a construção das matrizes identitárias nacionais emergentes na referida escala. Para este efeito, desenvolve-se uma pesquisa em três etapas: a) a detecção dos mecanismos de funcionamento articuladores da mencionada escala cultural luso-brasileira; b) a identificação dos fundamentos teóricos mobilizados naquele mesmo âmbito; c) o estudo das matrizes identitárias produzidas no contexto do movimento relacional pluriescalar das culturas “portuguesa” e “brasileira”. Esta incursão trabalha sobre as noções de historicidade, fundação e origem e evidencia a nuclearidade das mobilizações da história nos processos de construção identitária em Portugal e no Brasil.

APRESENTAÇÃO

Este livro é o resultado de uma pesquisa desenvolvida durante os anos 2002 e 2006 e que culminou em minha Tese de Doutorado em História, defendida em 2007, na Universidade de Coimbra, Portugal. Sua publicação após tanto tempo, naturalmente, conterá algumas ausências bibliográficas ou lacunas relativamente às produções mais contemporâneas. Mesmo assim, acreditamos que isso não prejudicará o cerne das análises, nem tampouco justificaria uma reescrita completa. Preferimos respeitar o caráter da produção acadêmica tal qual ela foi recebida pelos arguentes. Fizemos apenas algumas alterações muito superficiais nalgumas partes do texto, tentando deixá-lo mais direto. Intocável permanece a estima pelos anos vividos em Portugal e pelo muito aprendido em Coimbra, dentro e fora da Universidade. Igualmente incólume resta meu agradecimento aos amigos daqueles tempos, bem como à Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), pelo apoio financeiro e pela confiança nesta investigação. Ao Doutor Rui Cunha Martins, professor e amigo inestimável, quero deixar um agradecimento especial: este trabalho seria impossível sem orientação e sua ajuda, seja as de aprendizado acadêmico, seja as valor humano.

2

PREFÁCIO Rui Cunha Martins Universidade de Coimbra 1.

O trabalho que tenho o grato prazer de apresentar contém

méritos de vária ordem. É oportuno, é arguto, é rigoroso e é, a partir de hoje, de consulta indispensável. Um dos aspetos mais notáveis será o modo como o autor parece escutar, em cada dobra da exposição, as solicitações da problemática. Uma problemática que ele mesmo construiu (assim escapando ao terreno armadilhado do senso comum historiográfico sobre a matéria em estudo) e que tão depressa lhe parece solicitar matéria argumentativa quanto empírica. Tudo se joga então na capacidade para optar, em cada momento, pela matéria pertinente. Invariavelmente, Marçal Paredes opta de forma consistente. O trabalho fica ganho em cada um desses momentos.

2.

A segunda metade do século XIX e os inícios do século XX

correspondem, à escala luso-brasileira – também à escala ibero-americana – a um momento de particular esforço de clarificação identitária por parte das nações envolvidas. Como é usual em casos que tais, esse esforço tem expressão em fenómenos de demarcação cultural e política, no estabelecimento de diferentes escalas de referência identitária, na reavaliação de memórias nacionais e na sobreposição concorrencial entre os vários critérios avançados para os fins demarcatórios em vista. Compreende-se, neste contexto, que ao levantar-se a questão do relacionamento entre as entidades político-culturais brasileira e portuguesa, tópicos como a dívida, a herança, a fraternidade, a diferença e a originalidade impusessem um estado de permanente mobilização das 3

historicidades, ele mesmo desafiador do lugar da história nos processos de definição dos contornos nacionais. E compreende-se, de igual modo, que todo este complexo cruzamento de razões desembocasse em verdadeiras fricções demarcatórias e naquilo a que convém chamar “turbulências do limite”. É de uma descodificação desta zona de turbulência que se ocupa o autor.

3.

Da sua análise exaustiva torna-se possível isolar cinco

propostas de resolver o problema da fronteira à escala transatlântica: (i) o entendimento do Brasil como prolongamento de Portugal e, portanto, o entendimento de uma “longa” e eterna fronteira portuguesa, prolongandose na fronteira brasileira tanto quanto na africana; (ii) a recusa da leitura anterior por via de uma demarcação de sentido oposto, qual seja, a de um afastamento brasileiro da herança portuguesa; (iii) o alargamento da primeira proposta – a da continuidade, portanto –, a uma escala ibérica de referência, no âmbito da qual os povos sul-americanos são entendidos como neo-ibéricos (pressupondo, assim sendo, uma “longa” e eterna fronteira ibérica, prolongando-se na América); (iv) a recusa desta última proposta por via da contraposição de uma escala americanista de referência, ela sim passível de demarcar as culturas sul-americanas; (v) a proposição de uma demarcação brasileira pela originalidade, isto é, basicamente, pela celebração do carácter singular do mestiço. A deteção de semelhante painel é mérito que cabe por inteiro ao autor do trabalho, que teve por bem não limitar o inquérito a uma única área disciplinar de informação, preferindo inclinar a pesquisa sobre tabuleiros simultâneos – políticos, historiográficos e literários –, procedendo ao respetivo cotejo. As vantagens da sua opção estão à vista. 4. particular,

Se me é permitido, neste local, chamar a atenção, em para

alguma

daquelas 4

matrizes

interpretativas,

faço-o

relativamente à última, a da celebração da mestiçagem. Pelo seguinte motivo: tal como sucede com a noção de “fronteira interior”, de matriz fichteana, na qual o limite como que se desdobra em direção a si mesmo, também aqui, nessa proposta de sabor romeriano, o limite é mobilizado não a partir da sua clássica função delimitadora mas a partir dessa sua paradoxal propriedade que é a produção de dada centralidade. No caso do debate brasileiro da segunda metade do século XIX é como se ao elemento híbrido, feito referenciação identitária central, passem a reconhecer-se insuperáveis funções demarcatórias. Marçal Paredes percebe bem a nuclearidade deste aspeto, conferindo-lhe o devido enquadramento. 5.

O autor percebe, como resulta inequívoco da sua análise, que a

ambição de diferenciação face às raízes portuguesa, ibérica e europeia (diferenciação também almejada, a breve trecho, frente ao negro e ao índio) redunda numa aspiração de originalidade. Uma demarcação pela singularidade e pela essência, pela clara delimitação dos caracteres específicos, eis do que se trata. Uma fronteira definida a partir de dentro, dir-se-á também. A ideia pode resumir-se num objetivo: estabelecer as fronteiras da nação ali mesmo naquele ponto exato em que deixar de se sentir o eco daquilo que se entenda ser a genuinidade nacional. O híbrido, pois, é expressão de uma fronteira interior, à maneira fichteana. Ora, como sabemos, esta ou é tida por ponto de partida (o “genuíno nacional”) ou é apeadeiro (a “gradual autonomização” da forma mestiça) de uma longa marcha para o futuro. Um trajeto futuro tão ilimitado quanto se acreditava ser então o destino dos povos que, no seguimento da sua própria marcha evolutiva, se haviam voltado para si próprios na demanda do respetivo traço distintivo. Uma demanda ilimitada. E não forçosamente saudável. Que a historiografia contemporânea tenda a ser complacente com as demandas identitárias em nada altera este diagnóstico. Uma advertência que mais se justifica após a leitura do brilhante trabalho de Marçal Paredes. 5

Configurações Luso-Brasileiras: Fronteiras Culturais, Demarcações da História e Escalas Identitárias (1870-1910). INTRODUÇÃO

08

PARTE I – CONFIGURAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS

16

1. Redes discursivas

17

1.1. Circuitos políticos: referencialidade transnacional e “comunidade de sangue”

19

1.2. Divulgação científica: critérios de recepção e alegoria do “povo irmão”

40

2. Interpretações concorrenciais

58

2.1. O ponto de vista da derivação

59

2.2. O ponto de vista da convergência

73

2.3. Os cultores do distanciamento

83

3. Modalidades de relacionamento

97

3.1. A linha da dissensão, ou a instrução das polêmicas

98

3.2. A linha do consenso, ou o ambição do comemoracionismo

119

PARTE II. – FUNDAMENTOS TEÓRICOS: HISTORICIDADE E DEMARCAÇÃO

138

1. O “arco de outra nova ponte” e o “bando de ideias novas”

140

2. A frente cientificista e seus níveis de relacionamento

156

2.1. Difusão do Positivismo: perspectiva comparada

157

2.2. Ortodoxias e Heterodoxias: primeirasdemarcações

163

2.3. Os eixos ultra-ortodoxo e demoliberal

175

2.4. Derivas da heterodoxia: os “evolucionismos”

180

2.5. O eixo materialista-monista

199

3. Demarcação e Historicidade: mobilizações republicanas

203

6

PARTE III – ESCALAS IDENTITÁRIAS: A PROBLEMÁTICA DA ORIGINALIDADE

214

1. A obsessão temporal da alteridade luso-brasileira

217

2. A Herança e o Mal de origem: a lição da História (e sua inversão) 224 3. Moçárabes e Mestiços: a concorrência da forma híbridal

260

4. Riograndeses e Sertanejos: a intersecção portuguesa do regionalismo brasileiro

292

CONCLUSÃO: As Fronteiras Culturais Luso-brasileiras

302

FONTES

307

BIBLIOGRAFIA

318

7

INTRODUÇÃO

O trabalho que aqui se inicia tem por propósito o estudo de um problema específico: o das demarcações culturais que têm lugar, em finais do século XIX e inícios do século seguinte, entre Brasil e Portugal. Semelhante problema exige um inquérito em duas frentes. Uma, que dê conta do quadro relacional em que haverão de ter lugar aquelas demarcações, ou seja, dos respectivos níveis de articulação, das intersecções informativas, dos nós críticos e argumentativos, ou dos pressupostos doutrinários, em suma, que saiba explicar as características da configuração cultural luso-brasileira. Uma segunda linha de análise deverá, por seu lado, ser capaz de descodificar o debate de ideias produzido naquele contexto, identificando os alinhamentos e as faturas de índole teórica, o caráter científico ou filosófico dessas cisões, os suportes ideológicos mobilizados, o intuito político das distintas demarcações e as correspondentes escalas de incidência, isto é, que seja capaz de equacionar a construção das matrizes identitárias emergentes na configuração cultural luso-brasileira. A decisão de investir em semelhante projeto de pesquisa está condicionada por uma constatação: embora separados politicamente desde a independência do Brasil em 1822, a atmosfera de troca e divulgação cultural que se mantém para além dessa data admite a percepção de uma

referenciação comum às culturas portuguesa e brasileira. Na verdade, a existência de uma mesma comunidade cultural envolvendo brasileiros e portugueses, no final do século XIX, foi já intuída por alguns estudos, com destaque para a obra de Beatriz Berrini, que sustenta ter havido, também no Brasil, tal como em Portugal, uma Geração de 70. Fundamentada em ampla pesquisa epistolar, a autora refere “a recíproca amizade de portugueses e brasileiros, convivendo em especial no estrangeiro, que se entendiam muito bem, que estenderam os laços criados pelo mútuo conhecimento aos familiares, que dialogavam quer acerca dos negócios particulares como dos públicos, envolvendo as respectivas pátrias, partilhando inquietações, frustrações, problemas, sempre em busca de soluções dignas e honrosas. Não compunham dois grupos distintos porém formavam uma mesma plêiade em que brasileiros e portugueses se confundiam” (1). Uma mesma plêiade. Por certo que sim. Aliás, provas de um intenso relacionamento entre os intelectuais brasileiros e portugueses do período não faltam. Fornece-as a própria Beatriz Berrini: “dois endereços eram familiares a uns e outros: os brasileiros conheciam a residência parisiense de Eça, seja a da rue Charles Laffitte, 32, como a da avenue du Roule, 38, sem mencionar o consulado. Eram os portugueses inversamente assíduos às residências de Eduardo Prado em Paris, quer à moradia da rua Casimir Perier, 3, quer a da place de la Madeleine, sobretudo estavam familiarizados com o número 194, Rue de Rivoli. Nesta última, Eça e Ramalho foram por mais de uma vez hóspedes de Prado” (2). E fornece-as também Elza Miné, em trabalho sobre Jaime Batalha Reis, onde traz importantes elementos sobre esse convívio luso-brasileiro também em 1 BERRINI, Beatriz. Brasil e Portugal: a geração de 70. Breves indicações dos correspondentes brasileiros e portugueses por Paulo Franchetti e Beatriz Berrini. Prefácio de Isabel Pires de Lima. Porto: Campo das Letras, 2003, p.86. Grifos nossos. 2 Idem, ibidem, p.45

9

Londres. Conforme explica esta autora, entre Jaime Batalha Reis e o grupo de brasileiros, houve “uma natural comunhão” que fora “propiciada e facilitada pelas raízes comuns, pela língua comum” e reforçada pela “presença de amigos comuns, como é o caso de Eça de Queirós (particularmente com relação a Eduardo Prado e Domício da Gama), e ligações, também comuns, com a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro” (3). A constatação de uma dimensão de contato e de projetos em curso envolvendo os intelectuais lusos e brasileiros – em contextos muito precisos, é verdade – depreende-se sem dificuldade. As questões que diante deste quadro se colocam são as seguintes: a da dimensão reflexiva dessa mesma plêiade sobre o caráter e o significado desse próprio relacionamento; a do grau de representatividade desse grupo no contexto dos debates emergentes sobre o relacionamento entre Brasil e Portugal; a da inevitável “separação de águas” teóricas que igualmente caracterizaria aquela esfera intelectual, até pelo previsível alinhamento diferencial de cada um dos seus componentes com linhas interpretativas mais englobantes sobre a matéria luso-brasileira. Ora, é nosso entendimento que a única forma de equacionar com a devida profundidade estas questões é a de, libertando-nos da “plêiade”, alargarmos o âmbito da pesquisa, entregandonos, metodologicamente, à “escala”. Estudar a relação, mas também aquilo que nela existe de demarcação. Colocar o problema do relacionamento luso-brasileiro em termos de configuração equivale a aceitar a sua intrínseca complexidade, bem como a privilegiar uma leitura que não se limite a ser o somatório de cada uma das escalas das culturas nacionais, mas assuma como seu desafio maior o esclarecimento da relação estabelecida por cada uma dessas culturas com uma dimensão transnacional sem a qual elas próprias resultariam incompreensíveis. Explicitar, portanto, 3 MINÉ, Elza. “Prefácio” REIS, Jaime Batalha. O Descobrimento do Brasil intelectual pelos portugueses do século XX. Organização, prefácio e notas de Elza Miné. Lisboa, Dom Quixote, 1988.

10

o “funcionamento” dessa configuração luso-brasileira terá que ser o nosso primeiro patamar analítico. Dissensões, convergências, rupturas teóricas: demarcações, em suma. Eis um nível de relacionamento inscrito num âmbito configuracional. Descortinar o sentido explicativo destas modulações estéticas e as direções teórico-doutrinárias e filosófico-políticas subjacentes deverá constituir, em seguida, o objetivo de um segundo patamar de reflexão. Mas haverá, no concreto,

matéria

“luso-brasileira”

que

permita

o

seu

efetivo

enquadramento e, sobretudo, a detecção do respectivo significado? Justificar-se-á o investimento a que nos propomos? Ensaiemos, desde agora, um exercício exploratório. Situe-se o problema no ano de 1880. Em Março desse ano, no prefácio às suas Soluções Positivas da Política Brasileira, Luiz Pereira Barreto declarava ter “a convicção que as nossas condições políticas e sociais não melhorarão enquanto

não

tiverem

por

ponto

de

partida

uma

modificação

correspondente na situação de Portugal. O fio da história não se rompe. Somos filhos de Portugal: a ele estamos presos por todos os laços indissolúveis de uma lei natural. A fatalidade biológica, o determinismo sociológico dominam toda a nossa história. É em vão que procuraremos esquivar-nos à pressão do passado. Temos sido, somos e seremos portugueses” (4). No mesmo ano de 1880, entretanto, Sílvio Romero manifestava abertamente sua inconformidade com a proposta estética e identitária brasileira que propunha “ou cantar o caboclo ou seguir o português”. Frente a este quadro, disparava: “Punge refutar coisas tais. O índio não é o brasileiro, mas o português também não; a alternativa entre o

4 BARRETO, Luiz Pereira. “Soluções Positivas da Política Brasileira” [1880]. In: Obras Completas, Volume III. Organizado por Roque Spencer Maciel de Barros. São Paulo: Humanitas, 2003, p.17

11

cauin e vinho verde é antigualha – carunchosa. É preciso descortinar, entre os dois extremos, alguma coisa de melhor” (5). Por essa altura, o debate manifestava assinalável amplitude. Ainda nesse mesmo ano de 1880, Miguel Lemos, um dos líderes do positivismo brasileiro, escrevia – em Paris e a pedido de Pierre Laffitte – uma obra para celebrar o tricentenário da morte de Camões. Dizia, então, que “le successeur d’Auguste Comte a lui-même exposé au public, à la fin de la dernière leçon de son Cours de morale, les motifs exceptionnels de cette délégation. Il est utile, a-t-il dit, que la glorificcation du meilleur type portugais soit faite à Paris, et soit faite par un Brésilien : il y aura là une démonstrations éclatante de l’universalité de la nouvelle religion, qui glorifie les services des grands hommes de tous les pays, et qui parvient à éteindre, chez les descendants coloniaux des populations européennes, les haines sorties des luttes de l’independence nationale, en y substituant un sentiment profond de la continuité historique. La glorification de Camões, du type le plus caractéristique qu’ait produit Portugal, sera d’autant plus décisive qu’elle émanera d’un Brésilien”(6). Esta publicação, assim como os demais eventos celebrados no Brasil em homenagem ao tricentenário camoniano, não tiveram acolhimento uniforme. É verdade que foram recebidos em Portugal com grande satisfação, por exemplo, por Teófilo Braga. Este autor, na revista O Positivismo, em 1880, afirmava serem o Brasil e Portugal “filhos da mesma tradição histórica, [pois] falamos a mesma língua, e exercemos uma ação mútua que precisa ser conhecida e dirigida”. E dizia mais: “Foram os Positivistas brasileiros que restabeleceram estas condições naturais da reciprocidade dos dois povos, e a festa do Centenário de Camões tinha de ser lucidamente aproveitada para dar às emoções da coletividade a 5 ROMERO, Sílvio. A literatura brasileira e a crítica moderna. Rio de Janeiro: Imprensa Industrial, 1880, p.75-76 6 LEMOS, Miguel. Luiz de Camões. Paris: Siège Central du Positivisme, 1880, p.III

12

coerência de uma evidente noção racional. Ainda surgiram dissidências de particularismo de bandeira, tentando isolar a colónia portuguesa em uma manifestação exclusiva; [mas] as circulares dos positivistas brasileiros foram ouvidas, e em Paris a festa do Centenário de Camões foi sustentada no sentido profundo que continha por brasileiros que ali seguem cursos científicos. Os poderes públicos do Império, o parlamento brasileiro, o ministério e o próprio imperador compreenderam o alcance do Centenário de Camões para a confraternidade dos dois povos. A festa dos Positivistas do Rio de Janeiro, apesar do incalculável e extraordinário esplendor das outras manifestações impôs-se à admiração pelo seu alcance filosófico” (7). Entretanto, não podem as avaliações deste teor omitir as vozes discordantes que se levantaram perante as comemorações, a exemplo da do crítico literário cearense Araripe Júnior. Para ele, a festa camoniana no Brasil, “erguendo o orgulho colonial, amesquinhou o espírito nacional” (8). Outras opiniões num ou noutro sentido poderiam aqui transcrever-se. Não nos parece, neste momento, que tal seja necessário. Este brevíssimo panorama é, por si só, esclarecedor da imperiosa necessidade de tratar em âmbito configuracional o relacionamento cultural luso-brasileiro. Com atenção à propensa instabilidade dos alinhamentos e à sua não obrigatória coincidência com as escalas nacionais de referência, buscar-se-á dar importância ao cotejo dos fundamentos teóricos subjacentes a cada uma das intervenções daquele tipo e do seu grau de interferência sobre as diferentes concepções de escala transatlântica. Em igual medida, 7 BRAGA, Teófilo. “O Centenário de Camões no Brasil”. O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.6, Agosto-Setembro, 1880, p.513-514. 88 ARARIPE JR., Tristão de Alencar. Lucros e Perdas, n.º2, julho 1883. In: ARARIPE JUNIOR, Tristão de Alencar, Lucros e Perdas. In: Obra Crítica de Araripe Júnior. Volume I (1868-1887). Direcção de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958, p.323-360.

13

analisar-se-á a diversidade de critérios mobilizados na instrução dos argumentos em disputa. A história – enquanto interpretação –, mais do que qualquer outro critério, parece dotada de alguma centralidade a este nível. Dito isto, importa adiantar que este trabalho parte de uma convicção. Precisamente a que pressupõe o lugar nuclear da história no quadro dos critérios de reordenamento cultural e identitário convocados em escala luso-brasileira. Antevemos que a obsessão temporal que se percebe na discursividade portuguesa e brasileira, ainda mais quando está em causa o relacionamento entre ambos os países, é expressão do potencial da história como mecanismo de demarcação identitária. E quando pensamos nos indícios dispersos que autorizam a supor o caráter dramático com que é debatido, no âmbito luso-brasileiro, o problema da originalidade, ou seja, a disputa pela singularidade relativa a cada uma das culturas – também aí – uma vez mais, é com a historicidade com que nos deparamos. A análise do uso do critério da originalidade histórica condiciona uma série de questões: i) quem interpreta o “passado” e com que intuito? ii) com quais pressupostos doutrinários? e iii) produzindo quais consequências ao nível do

relacionamento

entre

as

escalas

“portuguesa”

e

“brasileira”

inerentemente implicadas? Numa palavra: como foi a história mobilizada? A resposta a estas questões poderá considerar-se a matéria conclusiva deste trabalho. A verificação de toda esta linha interpretativa constituirá, naturalmente, o terceiro e último patamar da investigação. Não vale a pena antecipar aqui reflexões constantes no desenvolvimento do trabalho a seguir. Estas considerações introdutórias já são suficientes para ilustrar os principais desafios que se colocam a esta investigação. Resta, porém, espaço para algumas advertências. Uma delas é o fato desta pesquisa, justamente por assumir carácter relacional e situar-se na confluência não apenas de um objeto compósito (como que repartido por, pelo menos, dois pólos de observação), estar também na confluência 14

de duas historiografias distintas. Tal fato implica, por vezes, um desequilíbrio ao nível da informação disponível e da cobertura analítica de determinados assuntos. Trata-se de um dos preços a pagar por uma investigação efetuada com teu desiderato. Ao longo do texto, assinalamos sempre que possível essa situação, procurando incorporar a dimensão historiográfica no leque de fatores passíveis de interferir na problemática. A anterior advertência é também uma chamada de atenção para o problema do ponto de vista. Aspecto de transcendente importância para um estudo com este, comprometido com as questões da escala de análise e com a necessidade de bem definir o lugar de onde se fala. Devemos esclarecer que este trabalho, embora sendo tributário de dados e de análises reportados a Portugal e ao Brasil, não é um trabalho sobre qualquer um destes países individualmente considerados. Em rigor, a sua linha de ação é a luso-brasileira: essa é a escala que constitui o seu objeto e é a ela que devem reportar-se os investimentos analíticos produzidos. É natural que, ao perseguir esse objetivo, as considerações e os dados levantados sejam transponíveis para os âmbitos de pesquisa de cada uma das culturas portuguesa e brasileira. Isso é inevitável. Contudo, estaremos, assim, ao nível de vantagens colaterais trazidas pelas nossas indagações. O nosso ponto de vista responde por uma vinculação transatlântica em suas diferentes escalas. Ou seja, seu caráter configuracional. O mesmo se diga da lógica seguida quanto às fontes e ao material bibliográfico utilizado: a mesma postura ditou uma criteriosa – mais do que exaustiva – consulta das obras disponíveis para cada um dos lados, em relação aos diversos assuntos. Optou-se por ambicionar uma cobertura tão extensa quanto possível dos trabalhos situados no horizonte transcultural luso-brasileiro.

15

I. A CONFIGURAÇÃO CULTURA LUSO-BRASILEIRA.

De acordo com os pressupostos atrás enunciados, a primeira parte deste trabalho destina-se a caracterizar as dimensões tópicas dessa configuração de ideias, realizações e intercâmbios que designamos por configuração luso-brasileira. Trata-se, de perscrutar no seio desta entidade escalar os principais níveis de articulação vigentes, principalmente onde se expressa o funcionamento de um eixo cultural compósito, a um só tempo nacional, regional e transnacional e que, assim sendo, incorpora o problema dos cruzamentos e sobreposições entre estes vários níveis (9). Nesta perspectiva, são três as dimensões cuja análise se afigura mais operativa: uma primeira, de caráter comunicacional, que trata da constituição das redes discursivas em dimensão luso-brasileira; uma outra, de caráter hermenêutico, que analisa as interpretações concorrenciais que se debatem naquele mesmo âmbito; e uma última, de cunho estético, que pretende caracterizar as modalidades de relacionamento produzidas em resultado daquelas redes e daquelas interpretações. A exploração complementar destes três aspectos permitirá o conhecimento seguro das linhas de funcionamento da configuração luso-brasileira. Uma advertência deve ser feita: as páginas que se seguem – e, em termos genéricos, toda esta primeira parte do trabalho – assume uma feição 9 Embora com diferente foco e em contexto distinto, veja-se o tratamento que Arriscado Nunes dá a este conceito em NUNES, João Arriscado. “Reportórios, configurações e fronteiras: sobre cultura, identidade e globalização”. Cadernos do CES, Oficina n°43, Janeiro de 1995.

16

algo descritiva no tocante à compilação de dados. Esta circunstância deve ser entendida como o preço a pagar pela aposta na expressividade dos exemplos concretos e das citações textuais, assim como pela necessidade de reunir, sistematicamente, uma série de materiais dispersos e a carecerem de uma atribuição de significado. É nossa convicção que esse sentido começa por ser a expressividade do dialogismo cultural luso-brasileiro – tanto na vertente da convergência, quanto na da dissonância, ambas tomadas, para além de sua especificidade, como expressões desta dinâmica. Por isso, a nossa tarefa tem de ser a elucidação desse movimento dialógico nas suas distintas modalidades. Disso trata toda a Parte I. Tornar-se-á possível, em seguida, surpreender os problemas culturais e teórico-políticos nodais forjados neste contexto, isolando-os para lhes conferir centralidade no âmbito da análise. É o que acontecerá nas Partes II e III deste trabalho.

1. Redes Discursivas.

O último quartel do século XIX e os primeiros anos do século XX denotam, no quadro do relacionamento luso-brasileiro, uma particular disponibilidade e uma especial atenção a assuntos implicando qualquer uma das margens do Atlântico, a começar pelos acontecimentos políticos registrados em ambos os países. Seja qual for a ótica considerada, a impressão que se tem é a do conhecimento mútuo que, pelo menos no âmbito intelectual, a cultura portuguesa e a cultura brasileira parecem cultivar um canal informativo eficaz e a possibilidade do estabelecimento de pontes e linhas de contato. Assim sendo, torna-se incontornável conferir alguma arrumação a essa multiplicidade de circuitos, operar distinções dentro dessa dinâmica, identificando aquilo que, décadas atrás, Michel Foucault apelidou redes 17

discursivas, isto é, núcleos de significado distintos entre si e agrupando com alguma coerência, em torno de uma ideia nevrálgica ou de uma série de princípios, distintos autores e distintas posições, conjuntural ou tendencialmente alinhados numa mesma rede interpretativa (10). No caso da presente investigação, merecem destaque dois grupos temáticos, ou dois circuitos luso-brasileiros. Um deles capta-se na atividade cronística: trata-se do conjunto de crônicas políticas e colunas de opinião reportadas a assuntos tanto portugueses como brasileiros – mas, justamente, logo tornados assuntos luso-brasileiros. Este conjunto patenteia um notável intercâmbio informativo e uma circulação permanente de ideias entre os distintos pólos de relacionamento, redundando no estabelecimento de paralelos políticos e ideológicos e de exercícios históricos comparativos a pretexto dos acontecimentos respectivos. Já o outro – ou, na terminologia adotada, a outra “rede discursiva” – situa-se ao nível da divulgação da ciência positiva no contexto luso-brasileiro, um arco teorico que, ao promover a figura da “ciência” – ou melhor, de um determinado entendimento da “ciência” – a esteio congregador dos padrões de relacionamento cultural, promove a construção de uma discursividade concatenada em torno dos positivismos. Neste ponto, deve-se chamar atenção para o seguinte: as duas diferentes redes discursivas assumem e dão significado distinto ao relacionamento luso-brasileiro. A primeira trabalha a partir das intervenções de um Oliveira Martins, de um Eduardo Prado, ou de um Eça de Queirós. A segunda convoca nomes como Júlio de Mattos, Teixeira Bastos, Carlos Koseritz, Assis Brasil, Alberto Sales, Isidro Martins Júnior, Sílvio Romero, Teófilo Braga. Vejamos cada uma delas com mais detalhe.

10

FOUCAULT, Michel. O que é um autor?Lisboa: Veja, 1992.

18

1.1 Circuitos políticos: referencialidade transnacional e “comunidade de sangue”. A crônica dos acontecimentos brasileiros, no período que vai de 1870 até ao final do século XIX, foi um assunto que mobilizou o interesse do público leitor português; mobilizou, e isso é seguro, o interesse de seus intelectuais. Na impossibilidade de dar conta de todas as expressões dessa atenção, tomaremos como posto de observação privilegiado, a atividade cronística de Joaquim Pedro de Oliveira Martins, vertida em diversos periódicos. Desde suas contribuições para a Revista Ocidental, em 1875, até às publicadas em 1890, no jornal O Tempo, ou mesmo as de 1891, no jornal Nacional, percebe-se que os assuntos brasileiros têm um papel importante no rol das suas preocupações.

1.1.1. Comecemos pelos textos publicados na Revista Ocidental, na seção “Crónicas e Revistas”, mais exatamente na coluna intitulada “Portugal e Brasil” (11). De modo sucinto, pode afirmar-se que o interesse do colunista J. P. de Oliveira Martins, que assinava “P. de Oliveira” (12), estava direcionado para cinco assuntos: a “questão religiosa”, bastante exacerbada no Brasil; a imigração portuguesa naquele país; os problemas econômicos portugueses (advindos das políticas do governo brasileiro para com o imigrante português); a situação política portuguesa; a construção e a ampliação dos caminhos de ferro em Portugal. Interessam-nos alguns destes pontos. 11

Recentemente essas crônicas de Oliveira Martins foram publicadas no volume J.P. de Oliveira Martins. Portugal e Brasil. Introdução e notas de Sérgio Campos Matos, fixação do texto de Bruno Eiras e Sérgio Campos de Matos. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2005. 12 De acordo com Sérgio Campos Matos, J.P. de Oliveira Martins teria assinado como P. de Oliveira, possivelmente, em homenagem a seu avô. Consultar as notas introdutórias inseridas em J.P. de Oliveira Martins. Portugal e Brasil. Introdução e notas de Sérgio Campos Matos, fixação do texto de Bruno Eiras e Sérgio Campos de Matos. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2005.

19

O colunista “P. de Oliveira” (Oliveira Martins), em praticamente todas as suas crónicas, menciona os acontecimentos decorrentes da chamada “questão religiosa” do Brasil (13). Semelhante temática está celeradamente fora do nosso escopo. O contexto português do respectivo debate, porém, deve merecer alguma atenção, sendo nessa perspectiva – e só nela – que nos deteremos sobre o assunto. Recorde-se, pois, que logo no primeiro número da Revista Ocidental o cronista começara por afirmar que “as questões de modus-vivendi entre o Estado e a Igreja são ainda hoje das que se impõem, com uma gravidade superior” (14). Nesse quesito, entretanto, considera que “sofre actualmente mais desse antagonismo o Brasil que nós. São conhecidos os incidentes do conflito que parecia terminado com a condenação e encarceramento dos bispos do Pará e Olinda. Esses actos com que o governo brasileiro reproduz a política do chanceler alemão, não encontram no império brasileiro, como encontram no da Europa, o apoio firme das populações protestantes ou velhocatólicas. Católico na sua totalidade o Brasil, menos depurado o sentimento religioso, menos elevado o grau de cultura intelectual, devemos temer pelo resultado da luta que a condenação dos bispos acirrou amargamente?” (15). Independentemente de razões de outra índole (que abordaremos a seu tempo), o olhar vigilante do autor sobre o caso brasileiro e a respectiva incorporação no seu núcleo argumentativo decorrem de matéria de princípio. Na realidade, considera ele que os fatos relativos à questão religiosa no Brasil não constituem meras questões de ordem conjuntural, mas sim o produto de um antagonismo de princípios. Por isso, “pouco vê quem apenas considera os acontecimentos desta ordem como filhos das 13

Recorde-se que a “Questão religiosa”, ao lado da “Questão Militar” e da “Questão da Escravidão”, é geralmente tratada pela historiografia brasileira como uma das três questões que tiveram importante papel no “ocaso do Império” de D. Pedro II, para usar uma expressão de Oliveira Vianna. Cf. VIANA, Oliveira. O Ocaso do Império. São Paulo: Editora Melhoramentos. 2ª edição, 1925. 14 Revista Ocidental, Ano I, Tomo I, fascículo de 15 de Fevereiro, 1875, p.115. 15 Idem, ibidem, p.116.

20

ambições, dos interesses, das pequenas paixões que, sem dúvida, acompanham sempre as acções humanas. Questões religiosas, como a que agita o Brasil, são inevitáveis no nosso tempo, em que as relações do Estado e da Igreja não podem assentar em bases racionais, mas somente num sistema de concessões recíprocas e de frágeis concordatas, que um momento aconselha, que o momento seguinte repele”; isto porque, sustenta, “falta-lhes a base firme da filosofia”. Trata-se, com efeito, de uma questão estrutural, pois o “sistema de instituições que se deduz dos princípios do catolicismo romano, não é compatível com o sistema de instituições que se deduz da filosofia do direito nas nações europeias” (16). Daí a necessidade de se fazerem reformas que cerceassem o poder político temporal que os bispos mantinham, reformas essas entendidas como “as melhores armas para combater as tentativas reaccionárias: não que a política deva deixar de as atacar de face quando saem a campo, nem de as minar por todos os modos à medida que se vão pronunciando em tendências ainda indefinidas. O primeiro caso é o do Brasil, o segundo é o de Portugal, onde, se não temos ainda bispos encarcerados, nem vivas e fogueiras ao divino, temos já o pequenino conflito do cabido de Bragança, tão pequenino que o deixei para o fim, com a tenção firme de apenas o mencionar”. E, como conclusão, a apontar para o caso português, remata o colunista: “Não vale a pena gastar cera com ruins defuntos” (17). A frase com que encerrou a coluna de 15 de Fevereiro de 1875 não o impediu, entretanto, de voltar ao assunto. Ter-se-á, de alguma forma, sentido obrigado a fazê-lo. É que a intervenção pública de Oliveira Martins sobre a questão religiosa motivava reações adversas. Assim, no fascículo publicado em 15 de Abril do mesmo ano, P. de Oliveira confessa-se “curioso” perante a manifestação agressiva vinda da parte do jornal Bem 16 17

Idem, ibidem, p.116-117. Idem, ibidem, p.118-119.

21

Público: revista eclesiástica e literatura. Diz ele que “o rápido incidente do cabido de Bragança, e a gravíssima questão do clero brasileiro, a que mais de uma vez me tenho referido aqui, mereceram-me da parte do Bem Público uma saraivada de grosserias, que não sei se são ultramontanas, mas que nem são delicadas nem piedosas” (18). Na verdade, a avaliar pelas transcrições do referido jornal que o próprio Oliveira Martins se encarrega de fornecer aos seus leitores, incorporando-as nas suas crônicas, os argumentos martinianos eram ali refutados palmo a palmo (19). Não apenas os relativos à questão religiosa em Portugal, mas também – o que toma particular sentido para a presente investigação – aqueles relativos à questão religiosa brasileira, a qual, ao que se percebe, era matéria conhecida também por esta outra fonte da polêmica. Tanto assim é que, em uma das suas colunas, dirá o Bem Público, em resposta a P. de Oliveira: «Escusado é dizer que, falando da questão religiosa do Brasil, a Revista se mostra boa irmãzinha nos três pontos; e que até aos jesuítas e aos bispos presos atribui a revolução matuta dos quebra quilos, – coisa que nem as folhas semioficiais do Brasil se atrevem já a sustentar, por ser demasiadamente calva»” (20). Está claro que os acontecimentos de além-mar eram seguidos de perto por ambas as partes em confronto (21). E o comentário dos assuntos 18

Revista Ocidental, Ano I, Tomo I, fascículo 5º, de 15 de Abril, 1875, p.624. Oliveira Martins aproveita para dar uma amostra ao seu leitor, transcrevendo um trecho, das páginas do Bem Público de 1875, de onde respingam ácidas críticas em eco à recente Questão Coimbrã, como se vê: “«Coimbra que está sendo o foco pestilento de Portugal, o verdadeiro poço do abismo de onde saem os vapores deletérios que o vão matando, não podia deixar de ser um dos centros mais activos da maçonaria, que ali tem o caracter pechincheiro e cobarde dos lords da batota»”. Idem, ibidem, p.624-625. 20 Idem, ibidem. Grifos no original. 19

21

Recorde-se, a este propósito e a título exemplar, a alusão de P. de

Oliveira “ao que o imperador afirma no discurso de abertura do parlamento, que o correio nos trouxe há dias, [a saber]: «A ordem pública foi perturbada em vários pontos do interior de quatro províncias do norte. 22

brasileiros propiciado por esse intercâmbio informativo constitui um palco mais da exacerbação dos debates da época, servindo de pretexto para um enfrentamento mais entre criticismo e ultramontanismo (22). Dito por outras palavras: a uma efetiva circularidade informativa entre ambos os lados do Atlântico, exemplarmente sugerida por este caso, correspondia um correlativo alinhamento de posições e princípios em escala não apenas nacional mas, justamente, transnacional. Neste âmbito, os acontecimentos de um ou de outro lado ganhavam súbita amplitude de significado a cada vez que eram convocados a alargar o referente argumentativo e, com isso, se estendia para um contexto luso-brasileiro as múltiplas linhas de fissura que ecoavam, pelo menos, desde as Conferências do Casino. Com isso, percebe-se que as partes em disputa buscavam arcos de legitimação de amplitude atlântica, percorrendo as correntes de significado construídas ao sabor dos enfrentamentos estruturais ou meramente conjunturais. Em qualquer dos casos, se mobilizava o debate em uma referencialidade transnacional. Nem obrigatória nem tendencialmente predominante, talvez. Mas, sem dúvida, passível de ser efetivada em circunstâncias determinadas e em função de razões justificadas. Estas, contudo, não se resumiam à Bandos sediciosos, em geral movidos por fanatismo religioso, e preconceitos contra a prática do sistema métrico, assaltaram as povoações, destruindo os arquivos de algumas repartições públicas e os padrões dos novos pesos e medidas»”. Idem ibidem, p.624-625. Grifos no original. 22

Vê-se que a pena de Oliveira Martins habilmente cria a imagem de um ultramontanismo necessariamente vencido pela marcha histórica. O uso político no debate desta compreensão filosófica da história é claro. Nesta toada, escreverá que “além do meu respeito, os ultramontanos têm direito a exigir de mim a compaixão que se deve a todos os vencidos. Ninguém bateu já mais no inimigo caído. Se a baba lhe escorre dos lábios nas vascas de uma agonia longa, se a dor lhe arranca impiedades e blasfémias, nem a baba nem as imprecações nos chegam a todos os que temos serena a consciência e piedoso o coração. Outro é o nosso Deus, e no vosso, como bons filhos, respeitamos um momento sublime da revelação histórica. Podeis insultar-nos, não podeis vencer-nos; e se por desgraça, no revoltear torvo dos incidentes tempestuosos da vida das nações, um acaso vos desse uma hora de poder efémero, nem as vossas forças, nem as vossas fogueiras alterariam nunca a serenidade do nosso ânimo…”. Idem, ibidem.

23

fluidez da informação, nem a matéria de princípio filosófico. Estando em causa as relações entre Portugal e Brasil, aquela referencialidade era – para alguns – matéria de sangue.

1.1.2.

É o que se deduz quando passamos à abordagem do problema da

imigração portuguesa no Brasil, perspectivado por Oliveira Martins nas linhas da citada coluna “Portugal e Brasil”. A dramaticidade que se reconhece à questão – “profunda, séria, a mais grave de todas as que se prendem com a vida íntima ligada das duas nações que falam a língua portuguesa”, conforme dirá – é bem evidente. Na coluna de 15 de Fevereiro de 1875, P. de Oliveira informava os leitores sobre “as questões do Pará [episódios de animosidade contra os portugueses, verificados igualmente em Pernambuco e Sergipe, províncias do nordeste brasileiro], questões, ao que parece, e felizmente, terminadas e em que os dois governos do Brasil e de Portugal também felizmente reconheceram que não vale a pena quizilar-se. Ao contrário, cumpre unir-se para fazer calar as declamações torpes de um papel que se diz Tribuna, quando devia chamar-se Taberna” (23). Aliás, para o colunista, “pouco vale repetir os incidentes conhecidos do conflito que obrigou o governo português a mandar às aguas do Brasil a corveta Sagres; além de conhecidos, a sua importância é a de meros e transitórios acidentes de uma questão permanente e viva: a translação dos portugueses para o Brasil, o retorno dos brasileiros para Portugal” (24). O discurso é prudente. O que está em causa – as relações lusobrasileiras, assunto referente “ao bem comum” – é demasiado sério para agir de outro modo. Considera, por isso, que inquirir sobre “até que ponto a questão puramente brasileira da reacção ultramontana contra a maçonaria 23 24

Revista Ocidental, Ano I, Tomo I, fascículo 1º, de 15 de Abril, 1875, p.111. Idem, ibidem.

24

influía na animosidade activa dos brasileiros do norte contra os portugueses, seria tornar a levantar uma questão que todos devemos esquecer para o bem comum”. Oliveira Martins estava ciente que, nas questões que envolvem nacionalidades, os ânimos podem insuflar-se e, por isso, alerta para que não se derrame o “sangue de alguns portugueses” que “avermelhou tragicamente o episódio” (25). Insiste na imagem do sangue derramado. Procura-lhe as causas: afinal, a “troca de provocações hostis entre os jornais portugueses e brasileiros apenas revela uma face puramente exterior do conflito”, pois se é verdade que a causa imediata “foi o modo porque no norte do Brasil se tem desde certo tempo entendido a liberdade do trabalho”, isso não abona o “senso

económico

dos

governos

provinciais,

ou

abona

então

demasiadamente o amor de um patriotismo irreflectido: o trabalho é cosmopolita”. Ora, assim sendo – e dado que “há anos já, o governo da província do Pará retirara o subsídio à companhia de navegação do Amazonas, pelo facto dela empregar em seu serviço principalmente portugueses” – Oliveira Martins acredita que a política da nacionalização é um grande erro. Para ele, a “nacionalização quer dizer exclusão dos portugueses do negócio de retalho, isto é daquele que mais fácil e numeroso emprego oferece aos imigrantes”– sendo a responsável pelo “drama já avermelhado de sangue” (26). Expressões como esta vão tornando explícita a motivação profunda das preocupações do autor. Frente à onda nacionalista no comércio de retalho – cujos episódios o cronista conhecia bem, comprovando, uma vez mais a circularidade informativa transatlântica (27) – declara, em tom de 25

Idem, ibidem, p.111-112. Idem, ibidem, p.112. 27 Do seguinte modo rebate aos que pregam a nacionalização do comércio, citando uma portaria do governo do Rio de Janeiro ao governador do Pará: “«Em virtude do artigo 16.º do acto adicional devia v. ex.ª ter negado a sanção à referida lei, e, se porventura a assembleia provincial a sustentasse tal qual por dois terços dos votos, suspendido a sua execução… Que, 26

25

queixa, que “abrir bem largo esses braços, eis o que o Brasil não faz”. Trata-se de um grave erro que, em seu entender, vitimiza a “própria sociedade brasileira, portuguesa de sangue, que encontraria nos novos adeptos um rejuvenescimento de seiva, e o meio de encaminhar para a fixação de uma nacionalidade e de uma raça, coisas que não conseguiu ainda atingir” (28). A cultura brasileira, para Oliveira Martins, é “portuguesa de sangue”. Eis por que motivo a incorporação portuguesa no Brasil não poderia deixar de ser benéfica, favorecendo a fixação da nação e da raça; eis por que motivo os incidentes do Pará relatados em 1875 “se prendem a um problema reciprocamente grave para as duas nações portuguesas”. Eis, enfim, o motivo pelo qual uma alteração de regime político no Brasil não poderia deixar de perturbar o autor de O Brasil e as colónias portuguesas.

1.1.3.

Poucos anos depois, na sequência da Proclamação da República no

Brasil, em 1889, Oliveira Martins seguirá intervindo criticamente através das suas crónicas nos periódicos portugueses. Nesse ano de 1889, no jornal O Tempo, um artigo chamado “A República no Brasil”, considera que “parece confirmar-se a notícia da incomparável tolice que o Brasil fez, proclamando a República, destruindo esse Império a cuja sombra e pela mão de um príncipe tão patriota como sábio, conseguira ganhar foros de nação, avigorar-se, desenvolver-se,

aconselhando o interesse público que para todos os estrangeiros residentes no império se mantenham os princípios de igualdade comercial e civil, cumpre aos presidentes provinciais, em todos os casos em que os projectos de lei provinciais contrariem tais princípios, usar dos meios que lhes faculta o acto adicional»”. Não deixa de ser interessante que, frente ao conflito entre jornais brasileiros do norte do país e os trabalhadores imigrantes portugueses na região, o cronista lembre um documento oficial da sede do Império, dizendo ainda: “oxalá que o espírito público dos brasileiros se inspirasse sempre das mesmas doutrinas que inspiram as altas regiões governativas: folgaria com isso o direito, faria bem ao nome do Brasil e melhor à sua prosperidade”. Idem, ibidem, p.112-113. 28 Idem, ibidem, p.113.

26

vencer os seus inimigos e adquirir um lugar proeminente na América do Sul” (29). Para ele, a Proclamação da República no Brasil é “mais do que um erro funesto”: trata-se de “uma ingratidão para com esse homem venerando carregado de anos e serviços que consumiu a vida a dotar o seu Império com os frutos de uma administração em que a energia se aliou sempre à prudência, a força à arte, alternando segundo as necessidades”. O autor de O Príncipe Perfeito entende que a unidade territorial brasileira foi obra do Império e, por isso, o vemos temer pela desagregação “dessa grande América portuguesa, tão grande como a Europa, tão diversa em interesses, em tradições e em temperamento nas suas várias províncias, desde os sertões do Amazonas, pelo centro agrícola de S. Paulo, até aos pampas do Rio Grande”. Avalia que a unidade nacional brasileira só era possível pela forma administrativa do Império de D. Pedro II. O federalismo republicano, vaticina, “será inevitavelmente o desmembramento [do] grande Império neo-português” (30). A sua argumentação neste sentido não hesita em se ancorar na experiência histórica. Sustenta que, ao contrário da colonização da América do Norte, que “marchou em coluna cerrada” de Oriente a Ocidente, a colonização “hispano-portuguesa” dimanou “criando núcleos dispersos, gânglios de população que só o trabalho lento dos séculos virá a aproximar e fundir”. Esses núcleos mantinham-se unificados enquanto “enfeixados pelo vínculo da monarquia”. Por isso, acredita que, abolindo-a, a República tenderá para a desagregação (31). Não pode, nestas circunstâncias, deixar de exprimir as suas reservas mais vincadas à mutação política brasileira, registrando que “ao apreciar a revolução do Brasil, aplauda-a quem quiser: 29 O Tempo, 1889. In: MARTINS, J. P. de Oliveira Política e História. Volume II (1884 – 1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957, p.241. 30 O Tempo, 1889. In: MARTINS, J. P. de Oliveira Política e História. Volume II (1884 – 1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957, p.242. 31 Idem, ibidem, p.243.

27

nós não, porque aplaudindo a proclamação ociosa de um fórmula de governo, indiferente em si e nefasta actualmente para o próprio Brasil, aplaudiremos a iminência de graves perigos para esta nossa terra que adoramos, e que foi a mãe pátria da nossa gloriosa colónia” (32). Cumpre chamar a atenção, neste ponto, para o fato de as preocupações de Oliveira Martins resultarem da percepção do risco econômico que presumia vir a abater-se sobre Portugal. Esta perspectiva não lhe é estranha. Sabe-se da sua particular sensibilidade para com o problema emigratório, questão à qual volta com insistência, na linha do que fizera já em 1875, acentuando a forte dependência econômica portuguesa da respectiva capacidade para estabilizar a comunidade migrante e o correspondente caudal de retorno financeiro (33). Mas parece inegável que suas alusões ao futuro brasileiro estão marcadas por um movimento de auto-referencialidade que reflete a própria simbologia ligada às dimensões positivas do período colonial português. Por isso dizia que “ao Brasil queremos, pois, como se ainda fosse uma parte da pátria portuguesa, e é

32

Idem, ibidem,p.244-245. Grifos nossos. Ele mesmo o manifesta: “já não é hoje segredo de ninguém que o rendimento mais importante e mais líquido da nossa depauperada economia nacional é a emigração para o Brasil. Exportamos para lá por ano trinta ou quarenta mil portugueses; recebemos de lá por ano dez ou quinze mil contos de réis. Se esta corrente de gente que sai e de dinheiro que vem, se deslocar, as consequências serão gravíssimas”. Para Oliveira Martins “o jacobinismo brasileiro escreve na sua bandeira a nacionalização do comércio de retalho, eufemismo sob que se esconde a guerra mortal de inveja ao emigrante português, que disputa aos indígenas, à força de economia e trabalho, o mercado da venda a miúdo”. O autor da Circulação Fiduciária proclama que não teme análogas modificações no regime político português, ao afirmar que “não receamos para Portugal as consequências políticas da revolução”, pois “não é do Brasil que nos virá nenhuma novidade constitucional, nem temos a aprender com as lições do seu governo, mormente quando são da natureza destas”, embora manifestasse receio pelas “consequências económicas da loucura política do Rio de Janeiro”. Oliveira Martins volta a este mesmo tema, no seu artigo “A nacionalização no Brasil”, também escrito em 1889, para o jornal O Tempo. Neste texto, dá maior ênfase ao problema, informando que o “sob o ponto de vista português, o decreto de nacionalização promulgado pelo governo provisório é manifestamente prejudicial para nós. E oxalá não seja esse o prólogo de outras medidas que porventura venham afectar as nossas relações políticas, e principalmente as económicas, com a grande nação da América do Sul”. Idem, ibidem, p.244-247. 33

28

por isso que estas palavras nos saem espontâneas e simples dos bicos da pena” (34). Daí o lamento: “o Brasil praticasse além de um acto de insensatez, uma ingratidão”. Ingratidão para com a obra do Império brasileiro, para com a união territorial, mas também – e sobretudo – para com o legado português na América. Implicitamente, percebe-se que os acontecimentos políticos brasileiros são suscetíveis de macular “a obra” lusitana na história, afetando a “moral” da coletividade em causa, bem como o padrão de relacionamento projetado para o futuro. E mesmo reconhecendo-se que “um país, chame-se como se chamar, não passa de amigo a inimigo nosso porque mudou a sua forma de governo”, e que “a nossa amizade é tão grande como o nosso parentesco”, alguma ansiedade se deverá compreender-lhe ao julgar “o passo errado que deu o Brasil, e a enormidade dos perigos em que se lançou a si – e também a nós” (35). Estava em causa, afinal, o futuro de um dado passado (36). O mesmo é dizer o futuro de uma comunidade luso-brasileira idealizada. Ou não será precisamente isso que dirá o próprio Oliveira Martins, ao dar voz a todos os que, como ele, “esperançados no crescer fecundo e harmónico de uma nação neo-portuguesa na América, em vez de se sentirem entusiasmados, [lamentam] ver assim posto em perigo o futuro da melhor obra da história portuguesa” (37)?

34

Idem, ibidem, p.245. Idem, ibidem, p.245. 36 Está em causa, neste ponto, toda a complexa relação entre memória, presentificação da memória e projecção do futuro, tal como a tem analisado Fernando Catroga e no sentido que ela recebe a partir dos estudos de Miguel Baptista Pereira, ao afirmar que “se houve passado, presente e futuro no passado, há passado, presente e futuro no presente, haverá passado presente e futuro no futuro”. Veja-se o enquadramento teórico da questão em PEREIRA, Miguel Baptista. “Filosofia e memória nos caminhos do milénio”, In: Revista Filosófica de Coimbra, vol.8, n.º16, Outubro de 1999; e veja-se, de igual modo, o desenvolvimento dado ao assunto, a partir daquela expressão, por CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001, p.32. 37 O Tempo, 1889. In: MARTINS, J. P. de Oliveira Política e História. Volume II (1884 – 1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957, p.249-250. Grifos nossos. 35

29

1.1.4.

Sem surpresa verificamos a incomodidade do autor frente à

proposta do governo provisório republicano do Brasil, que apontava para a naturalização dos imigrantes residentes em solo nacional. Obviamente, a atenção martiniana voltava-se para os portugueses, pois “cumpre-nos olhar pelos nossos”, chamando atenção “do nosso Governo para a protecção de que carecem os duzentos mil (ou mais) portugueses convidados ou coagidos a renegar a sua pátria” (38). A diferença regimental que a proclamação da República introduziu na “jovem” nação brasileira ía bastante além de um fato político e administrativo. Compreende-se, assim, que o autor da História da Civilização Ibérica tema pelo futuro do elemento “neo-português” no Brasil. E, como é sabido, se mesmo depois da Independência, ainda havia um laivo de sangue bragantino a unir as duas monarquias liberais de fala portuguesa, a República fechará esta porta de contato. Abrirá outra, alternativa: a da incorporação de imigrantes – não exclusivamente ibéricos ou mediterrâneos – para a formação do futuro do Brasil. Neste quadro, o que restaria da grande obra de Portugal na História, simbolizada muito fortemente pela grandeza brasileira? Nesta perspectiva, Oliveira Martins teme a intensa incorporação de imigrantes estrangeiros de procedências distintas (como alemães e italianos, por exemplo), a qual poderia concorrer para uma gradual perda da importância da lusitanidade na formação do brasileiro. Em contraposição à experiência norte-americana, ressalta que “a nacionalização imediata de consideráveis massas de estrangeiros não tem nos Estados Unidos gravidade, porque a grande maioria dos imigrantes pertence ao próprio fundo da raça que constitui a nação americana, e os

38

Idem, ibidem, p.250.

30

laivos de sangue estranho são assimilados e absorvidos rapidamente” (39). Diferente é o caso brasileiro, pois, “quando se observam os números da imigração de estrangeiros, sente-se o perigo do futuro”. Afinal, “já lá vai o tempo em que o elemento português preponderava de um modo quase absoluto. Nos quinze anos de 1873 a 1887 entraram no Rio de Janeiro 336 mil imigrantes, e destes eram 129 mil italianos, 121 mil portugueses, 33 mil alemães e austríacos, 17 mil espanhóis, e o resto de outras origens” (40). Diz mais: “a imitação precipitada dos processos yankees pode dar rapidamente um incremento febril ao Brasil, mas tornará essa região do mundo um caravanseralho de povos e não uma nação, como os Estados Unidos são há muito, e como o Brasil se encaminhava para ser à sombra do Império”(41). Invariavelmente, a sua pena encontrava a questão da unidade territorial brasileira. Assim sucedia mesmo depois de os acontecimentos relativos à mudança de regime terem perdido alguma novidade. Prova disto é o seu texto “A Unidade do Brasil”, de 1890, também publicado no jornal O Tempo, texto esse em que a sua análise de uma situação concreta – os problemas havidos na fronteira sul do Brasil – vinha comprovar, do seu ponto de vista, o acerto dos seus anteriores vaticínios acerca da desagregação brasileira. Para ele, “os traços [do] desmembramento da nação neo-portuguesa da América” podiam já ser vistos “na separação do Rio Grande do Sul, região de pampas, que pelos interesses, pelos costumes e pela tradição, inclinaria para o lado do Uruguai”. Informado pelas notícias trazidas pelo telégrafo, assim como pelas demais “informações fidedignas que recebemos”, percebe nesse episódio o levantar da “primeira ponta do véu escuro dos perigos que corre a integridade do Brasil” (42). 39 O Tempo, 1889. In: MARTINS, J. P. de Oliveira Política e História. Volume II (1884 – 1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957, p.248. 40 Idem, ibidem, p.249. 41 Idem, ibidem, p.248. 42 Uma destas informações noticiava o temor do governo provisório de uma sublevação do Estado do Rio Grande do Sul. Frente a este possível acontecimento, segundo as informações

31

Parece interessante notar que o autor toma o critério histórico como barómetro interpretativo das questões políticas de seu tempo. Daí que remeta à época colonial, cotejando as experiências dos modelos espanhol e português de colonização com a política internacional que envolvia duas Repúblicas latino-americanas, no final do século XIX. Daí que tivesse falado na ambição argentina pela reconquista do “antigo vice-reinado” de Buenos Aires, bem como remetesse ao “erro histórico da ocupação portuguesa nos tempos coloniais”, por não ter levado “a fronteira do Brasil até ao Rio da Prata”. Erro este “até certo ponto emendado pelo Império em 1851, quando deu a mão a Urquiza e tomou Montevideo a Oribe, criando a república independente da Banda Oriental, ou do Uruguai” (43). Bem vistas as coisas, estas questões fronteiriças surgem como prova da má opção que constituía, para o Brasil, no contexto sulamericano, o regime republicano (44). “O abandono de uma parte do solo do Brasil” – dirá – é fato “gravíssimo para a apreciação do mérito do governo que se substituiu ao Império; gravíssimo pelos sintomas que denuncia quanto à sua estabilidade no ponto de vista da integridade do Brasil; gravíssimo, finalmente, por tudo isto para quem, como nós, tem no Brasil tão sérios interesses a defender” (45). Do ponto de vista português, não duvida que “se agora andamos acesos em justa indignação contra a Inglaterra pelo ultraje que recebemos dela, divulgadas pela crônica de Oliveira Martins, “para conseguir a pacificação do Rio Grande em caso de revolta, o governo provisório lembrou-se de solicitar o auxílio e a intervenção armada da República Argentina, ou contra o Rio Grande isoladamente, ou contra esse Estado unido à República do Uruguai”. O que lhe causa frémito é o fato de que, em troca de auxílio armado, o Brasil fosse obrigado a ceder parte de seu território à República Argentina, bem como “consentir na anexação do Uruguai, desinteressando-se também o Brasil pelo Paraguai, que os argentinos poderão igualmente anexar, realizando assim a sai ambição de unificarem numa república toda a dependência do antigo vice-reinado de Buenos-Aires” Idem ibidem, p.274. 43 Idem, ibidem, p.273-274. 44 Para Oliveira Martins, durante o Império, “o Brasil, exercendo a hegemonia, libertava o Paraguai, numa campanha em que tinha por aliados os argentinos; agora, vinte anos depois, é ele o protegido que pede aos argentinos para lhe fazerem a polícia interna, abandonando as pequenas repúblicas do Prata à ambição do povo que em breves anos será absoluto senhor da América meridional”. Idem, ibidem, p.274. 45 O Tempo, 1889. In: MARTINS, J. P. de Oliveira Política e História. Volume II (1884 – 1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957, p.275.

32

não devemos esquecer que, para lá do Atlântico, no Brasil, nos achamos a braços com um problema materialmente mais sério. A questão inglesa não é, por infelicidade nossa, a única, embora seja a mais dolorosa!”(46). 1.1.5.

Acontece que a apreensão de Oliveira Martins relativa à

manutenção da integridade territorial brasileira não era opinião isolada. Nas páginas da Revista de Portugal (47), observamos aproximadamente a mesma avaliação a partir de outras autorias. Tomemos como exemplo o texto do brasileiro Eduardo Prado, intitulado “Destinos Políticos do Brasil” (48). Escrevendo de Leipzig, na Alemanha, em Setembro de 1889 – e, portanto, dois meses antes da Proclamação da República no Brasil –, vemos Eduardo Prado preocupado em defender a existência do regime monárquico. Não é casual que ele centre as discussões políticas nacionais em duas questões-chave: i) a continuidade da monarquia e ii) a continuidade da união territorial do Brasil. Diante destas questões, Prado enumerava duas tendências opostas: uma de destruição e outra de conservação. O movimento republicano congregaria, para ele, todas as forças destrutivas. O autor de A ilusão americana considera que o sentido 46

Idem, ibidem, p.276. Concordamos com Aparecida de Fátima Bueno quando considera a Revista de Portugal “um espaço importante para pensarmos nas inter-relações luso-brasileiras do período”. Importa ressaltar que acreditamos que o que a autora afirma em relação à Revista de Portugal, dirigida por Eça de Queirós, sustentamos ser a tónica da época que vai de 1870 até o final do século, englobando não apenas este periódico, mas vários outros, desde a Revista Ocidental, dirigida por Antero de Quental e Batalha Reis, passando pela Revista de Estudos Livres, bem como pela Revista Brasileira. No final das contas, trata-se de atentar que este foi o tom crítico das Gerações de 1870, portuguesa e brasileira, conforme a expressão de Beatriz Berrini, já mencionada neste trabalho. Para mais informações, consultar BUENO, Aparecida de Fátima “Relações conflituosas: o Ultimatum inglês na Revista de Portugal”. Trabalho apresentado no âmbito do VII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, em Coimbra, nos dias 16,17 e 18 de Setembro de 2004. 48 Eduardo Prado publicou um total de oito textos na Revista de Portugal. Destaca-se que, apenas no primeiro, escrito ainda antes do 15 de novembro de 1889, ele assina com seu nome. Nos restantes usará o pseudónimo “Frederico de S.”. Para uma interessante análise das interfaces luso-brasileiras no pensamento de Eduardo Prado, sugerimos a primeira parte de BERRIEL, José Carlos. Tietê, Tejo, Sena. A obra de Paulo Prado. Campinas: Papirus, 2000. 47

33

de uniformização política é o fator de agregação dos republicanos da América, de norte a sul; porém, a ênfase neste elemento “esquece que os Brasileiros, distinguindo-se dos outros americanos ingleses e espanhóis, na origem e na língua, bem podem também distinguir-se deles no modo de governo” (49). O Brasil, por conseguinte, é caso à parte: “o Brasil é na realidade um país indisciplinado. Como Portugal, ele foi formado socialmente debaixo da disciplina da Igreja e teve dois séculos do ensino dos jesuítas. A ninguém os substituiu. Os países da Europa têm a força das tradições; a Inglaterra a disciplina do puritanismo, regendo também pelo seu prestígio a grande comunidade norte-americana; a Alemanha achou na disciplina militar o correctivo da destruição de autoridades feita pelos filósofos. No Brasil nada disso existe. A escravidão tornou a ideia e o sentimento do dever social da obediência coisas humilhantes e repulsivas” (50). Mais ainda, esta especificidade faz entroncar diretamente, por via da tradição histórica, o destino brasileiro com o de Portugal, no sentido em que, afirma Prado, “só pelas grandes qualidades colonizadoras dos portugueses, pela fecundidade das suas alianças com a raça indígena que eles tiveram de subjugar à força de coragem e valentia, é que o Brasil pôde ser feito, apesar de todos os erros do governo de Portugal”. Para ele, “os descendentes dos Portugueses têm progredido desde que lhes coube a responsabilidade da direcção da nacionalidade, tal qual ela existia já em 1822, isto é, unificada pela origem, pela língua, pela religião, pela invencível força das coisas, apesar das divisões políticas do território, capitanias ou províncias, datando de três séculos” (51). À semelhança da maioria dos cronistas da época, também Prado não concebe a projeção no futuro à margem da reflexão sobre a tradição 49 PRADO, Eduardo, “Destinos Políticos do Brasil”, Revista de Portugal, volume I. Porto: Editores Lugan & Genelux, 1889, p.470. 50 PRADO, Eduardo. “Destinos Políticos do Brasil”, Revista de Portugal, volume I. Porto: Editores Lugan & Genelux, 1889, p.476-477. 51 Idem, ibidem, p.480-481.

34

histórica, e, com ela, sobre a identidade dos povos. Pelo que a intersecção de portugueses e brasileiros – responsável que era, para este monarquista convicto, pela unidade do Império, essa “unidade fundada na tradição histórica, no facto de ontem e de hoje, na língua, na religião” (52) – só poderia entender-se como a decorrência indeclinável desse aspecto. É bem na esteira deste pressuposto que vemos Eduardo Prado em busca da sua definição do brasileiro. Segundo ele, o “romance nacional e o teatro ainda não criaram o tipo, mas ele, sob os seus aspectos tropicais, isto é, mais exuberante, é um misto do Julião de Eça de Queirós e do Homais de Flaubert” (53). Noutra passagem, aduz que “o brasileiro porém tal qual ele começa a se desprender da sua formação etnográfica, tem a sensibilidade da raça africana, a paciência do índio temperando a força do Português que ele mesmo é um calmo ao lado do Espanhol” (54). Bem se compreende, neste âmbito, a sua atitude compreensiva e interessada no relativo à contribuição do imigrante. Ao reconhecer que “o elemento estrangeiro é no Brasil a civilização”, por ser o “professor nacional do trabalho”, prevê que “dos variados elementos estranhos e indígenas com que se está formando a nacionalidade do futuro, saia um povo que, em relação às instituições herdadas de seus antepassados, tenha aquele nobre sentimento de confiança, de dedicação e de lealdade para o qual, na língua política da Inglaterra, se inventou a bela palavra – loyalism” (55). Dois meses antes da proclamação da República, Eduardo Prado roga para que se “renove a monarquia”. Os acontecimentos seguintes não favorecem os seus desejos. Contudo, vemo-lo, logo a seguir o 15 de novembro de 1889, escrever um interessante artigo, impresso também no 52

Idem, ibidem, p.489. Idem, ibidem, p.474-475. Idem, ibidem, p.488. 55 Idem, ibidem, p.491. 53 54

35

periódico de seu amigo Eça de Queirós: a Revista de Portugal. Assinando sob o pseudónimo “Frederico de S.”, Prado dá à estampa ao texto intitulado “Os Acontecimentos do Brasil”, escrito em Novembro de 1889. Informado pelo que “o cabo submarino tem transmitido” da América do Sul, comenta, para seus leitores, as novidades sobre a troca de regime no Brasil. Com fina ironia, Prado transcreve trechos de telegramas, os quais, nas concisão de suas linhas, considera “singularmente humorísticos”. Eis o excerto, tal como surge publicado na Revista de Portugal:

«A tropa em estado de revolta. Reina tranquilidade. – O imperador em Petrópolis. Completa paz. – Foi preso o ministério. População calma. – Foi proclamada a república. Tudo inalterado. – O Imperador preso no seu palácio. Ordem perfeita. – Fica constituído o seguinte governo provisório: Marechal Deodoro da Fonseca, presidente sem pasta; Campos Sales, ministro da justiça; Quintino Bocaiuva, ministro dos negócios estrangeiros; Aristides Lobo, ministro do interior; Rui Barbosa, ministro da fazenda; chefe de divisão Wandelocock, ministro da marinha; Demétrio Ribeiro, ministro da agricultura, comércio e obras públicas. As províncias aderem. O Sena, o Conselho de Estado, foram abolidos. A Câmara dos Deputados foi dissolvida. Reina sossego. – O Imperador e a família imperial embarcaram para a Europa. – A Bahia não adere ao movimento. Absoluta unanimidade, etc. etc.»(56).

Face à propositada crueza da secura telegráfica, remata: “não podemos perceber como todas estas coisas possam influir nos destino do Brasil. Desejaríamos saber se o povo brasileiro só com estas mudanças se vai tornar mais civilizado, mais enérgico, mais apto para realizar a sua missão na história” (57). Sua ironia desemboca na ideia de “missão histórica”. Uma missão histórica brasileira. A pressuposição de um passado e de um futuro em mútua interpelação. Precisamente a “missão [que] ficará desde logo frustrada se a república federal importar no enfraquecimento da unidade. Muitos pensadores estrangeiros afirmaram já que o Brasil se dividirá em vários Estados independentes; e que as rivalidades regionais de hoje 56 PRADO, Eduardo (Fredeirico de S.), “Os Acontecimentos do Brasil”, Revista de Portugal, volume I. Porto: Editores Lugan & Genelux, 1889, p.771-772. 57 Idem, ibidem, p.774.

36

facilmente se transformarão em hostilidade inextinguível. A comunidade de origem, a raça, a língua, a religião idênticas, não são suficientes garantias da conservação da harmonia” (58). Os temores de Eduardo Prado pelo rompimento da unidade, feito paralelo do rompimento da missão histórica, remetem para os temores que detectamos já em Oliveira Martins. Não por acaso, é a ele que Prado cita, de modo explícito, numa clara assunção de similitude de pontos de vista quanto ao tema em causa, em passagens bem demonstrativas da rede discursiva na qual o seu discurso se inseria: “como muito bem observou há dias o Spectator, de Londres [Oliveira Martins escrevia também utilizando o pseudónimo Spectator], tratando do Brasil, não há no mundo dois povos que tenham ódio recíproco tão profundo como os Chilenos e os Peruanos, e ambos descendem de espanhóis, falam a mesma língua, têm a mesma religião”, exemplos suficientes para sustentar a previsão de que, no Brasil, a “unidade certamente desaparecerá”. Eduardo Prado chama ainda a atenção para “um artigo do Tempo atribuído ao Sr. Oliveira Martins, artigo que (êxito para a imprensa portuguesa) tão citado foi na imprensa europeia, e que tantos comentários aprovativos despertou da parte do Journal des Débats, do Temps, do Times e da Neue Freie Press, prevê a divisão do Brasil em três novos estados, a Amazónia, um estado central, e o extremo sul destinado a ser absorvido pela República Argentina, logo que esta, cessando a oposição do Brasil, possa realizar o seu velho ideal de reconstituir republicanamente o antigo vice-reinado de Buenos Aires, que compreendia o Uruguai e o Paraguai”(59). Registre-se ainda que, à semelhança de Martins, Prado concede centralidade à figura do Imperador. O cronista Frederico de S. – pseudónimo de Eduardo Prado – diz que “esse velho deixa um país onde começou a reinar aos cinco anos de idade; e tão brasileiro foi ele que a sua 58 59

Idem, ibidem, p.774-775. Idem, ibidem, p.774-775.

37

Biografia não deve ter este nome, mas sim o de História do Brasil. Caiu pelo excesso de algumas das virtudes que hão-de imortalizá-lo. O que era a inteligência nacional do Brasil há cinquenta anos? Basta dizer que era decerto inferior à de Portugal no começo do século…” (60). As opiniões de Prado encontram eco no diretor da Revista de Portugal, José Maria Eça de Queirós. À semelhança daquele seu amigo brasileiro, Eça utiliza um pseudônimo – João Gomes – para dar suas impressões sobre a deposição da monarquia brasileira. Seu texto intitula-se “Notas do Mês” e é iniciado em tom jocoso, dizendo que a “revolução do Brasil (tal como contam os telegramas passados através da censura republicana) é menos uma revolução do que uma transformação – como nas mágicas” (61). Trata-se, conforme João Gomes/Eça de Queirós, de uma revolução “feita antes do almoço”, que foi “simultaneamente grandiosa – e divertida”. E continua, ao analisar a relativa facilidade e rapidez com que a República suplantou a Monarquia, considerando que “o Imperador tinha-se a tal ponto desimperializado, que entre Monarquia e República não havia realmente senão um fio – tão gasto e tão frouxo, que, para o cortar de um golpe brusco, bastou a espada do Marechal Fonseca” (62). Tal como Eduardo Prado, seu companheiro dos convívios lusobrasileiros em Paris, Eça considera a “revolução republicana” um movimento de bacharéis – Prado já havia apontado nesse sentido no seu “Destinos Políticos do Brasil”. Estes a teriam proclamado com intuito de poderem realizar “o velho ideal jacobino, já entre nós desacreditado e um pouco obsoleto, e que no Brasil domina ainda as inteligências tropicalmente entusiásticas e crédulas” (63). Tal como Prado – e tal como Oliveira Martins – Eça estava ciente das possíveis consequências da 60

Idem, ibidem, p.775. QUEIRÓS, Eça (João Gomes). “Notas do Mês”. Revista de Portugal, volume I. Porto: Editores Lugan & Genelux, 1889, p.777. 62 Idem, ibidem, p.778. 63 Idem, ibidem, p.778. 61

38

progressiva republicanização da América. No seguimento daqueles autores, considerará que um “modelo perigoso para o Brasil estava nos Estados Unidos do Norte, cuja imensa civilização deslumbrava os brasileiros, que não reflectiam que é o caracter das raças, e não a forma dos governos, que faz ou impede as civilizações” (64). Por fim, também Eça não podia deixar de mencionar tanto as modificações que o novo regime visava para um comércio de retalho (envolvendo razoável quantidade de portugueses), bem como não podia de dar seu contributo para o debate em torno da unidade territorial brasileira. Por isso, afirma que “com o Império, segundo todas as possibilidades, acaba também o Brasil”. Numa análise semântica que remete à história, Eça afirma que “este nome de Brasil, [que] começava a ter grandeza, e para nós portugueses representava um tão glorioso esforço, passa a ser um antigo nome da velha Geografia Política”. Para ele, trata-se de uma questão de tempo, pois “o que foi o Império estará fraccionado em Repúblicas independentes, de maior ou menor importância”, na medida em que “as rivalidades que entre elas existem; a diversidade do clima, do carácter e dos interesses; e a força das ambições locais” não conseguirão manter unido o Brasil, indicador maior da obra histórica de Portugal, pois “não está forçado a conservar-se unido, pelo receio dos ataques ou represálias de uma metrópole forte, de quem acabasse de se emancipar” (65). Daí que vaticine, utilizando os demais países latino-americanos como exemplos históricos, que no que um dia foi o Brasil, “haverá Chiles ricos, e haverá certamente Nicaráguas grotescos. A América do Sul ficará toda coberta com os cacos de um grande Império” (66).

64

Idem, ibidem, p.778-779. QUEIRÓS, Eça (João Gomes). “Notas do Mês”. Revista de Portugal, volume I. Porto: Editores Lugan & Genelux, 1889, p.782. 66 Idem, ibidem, p.783. 65

39

Para além das suas manifestas diferenças contextuais, teóricas e estilísticas, que, em qualquer dos casos, não podem omitir as afinidades de princípio ou de ocasião, os textos de Oliveira Martins, Eduardo Prado e Eça de Queirós entrecruzam-se em aspectos nodais da problemática relacional envolvendo Portugal e Brasil. As correlações passíveis de serem estabelecidas induzem à constatação de uma rede discursiva que, ao encontrar expressão na complementaridade das respectivas intervenções, se demonstra atuante e operativa no seio da escala cultural luso-brasileira. É crível que, independentemente da singularidade das inspirações de cada um desses autores, eles se mobilizassem, de acordo com a expressão martiniana, “não apenas com aquela curiosidade que os fenómenos sociais provocam, mas sim como quem se sente intimamente interessado, já pela comunidade de sangue, já pelos nossos deploráveis erros” (67).

1.2. Divulgação Científica: critérios de recepção e alegoria do “povo irmão”

Em franco desalinhamento com aquela linha interventiva, desenvolvia-se outro entendimento dos sucessos políticos brasileiros conotado com uma visão não já temerosa ou censória para com a influência republicana, mas, bem ao contrário, estimulada pelas possibilidades trazidas pela República ao intercâmbio luso-brasileiro. Deste ponto de vista, Teófilo Braga, Teixeira Bastos ou ainda Júlio de Mattos, produzem, se

assim

podemos

dizer,

uma

rede

discursiva

alheia

aos

fundamentosentretanto detectados em Eça, Prado ou Oliveira Martins: é que para eles a República não afastaria simbolicamente o Brasil da tradição 67

MARTINS, J. P. de Oliveira. Política e História. Volume II (1884-1893). Lisboa: Guimarães & Cia Editores, 1957, p.284. Grifos nossos.

40

portuguesa, tão pouco acarretaria a potencial desagregação territorial brasileira. Os positivistas portugueses viam no movimento republicano brasileiro um signo que propiciaria uma reaproximação luso-brasileira. Nesse círculo de ideias, as novas bases de relacionamento político e cultural seriam dadas pela filosofia positiva. Assim já se vislumbra outro nível intercambial constituído pela divulgação científica. O funcionamento desta rede – atestada pelo progressivo acolhimento dos textos publicados no Brasil por parte das revistas de cunho científico portuguesas –, obriganos a considerar o modo como determinado entendimento da ciência participa na definição dos circuitos culturais luso-brasileiros.

2.1.1.

Comecemos

por explicitar a

referida

dinâmica

científica. Nada melhor, para esse intuito, que apreciar as condições de divulgação e recepção da obra de Sílvio Romero A Filosofia do Brasil. Este livro foi editado, em 1878, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, pelo alemão Carlos von Koseritz, figura que teve um importante papel na divulgação científica no sul do Brasil, bem como uma relativa importância na configuração cultural luso-brasileira(68). A ação de Carlos von Koseritz na divulgação das ideias científicas e evolucionistas no Rio Grande do Sul foi marcante. Suas atividades de crítica ao teologismo e à metafísica foram, entretanto, muito inspiradas no 68 De acordo com Lothar Hessel, Karl von Koseritz nasceu em Dessau, ducado de Anhaldt, Alemanha, em 03/02/1834 e faleceu em Porto Alegre, em 30/05/1900. Koseritz fez parte do Exército e da Armada de sua pátria. Fixou-se no Rio Grande do Sul em 1851. Foi soldado em Rio Grande e aprendiz de pintor, cozinheiro, carregador, operário e guarda-livros em Pelotas. Nesta última cidade, a partir de 1856, iniciou-se no magistério, dirigindo uma escola. Em 1862, dirigia outro educandário, o Ateneu Rio Grandense, na cidade de Rio Grande. Jornalista no sul da Província, foi diretor de A Sentinela do Sul, (1867) e do Jornal de Pelotas (1861), ambos de Pelotas, e diretor do Ramilhete Rio-Grandense, em 1857, em Rio Grande. Como redator, trabalhou em O Povo e O Eco do Sul, ambos de Rio Grande. A partir de 1864, foi redator, já em Porto Alegre, de A Reforma (que dirigia em 1886) e do Jornal do Comércio. Em Porto Alegre dirigiu mais, em 1886, o Combate, entre 1864 e 1881, o jornal na língua alemã Deutsche Zeitung. Aqui fundou em 1882, também em alemão, o Koseritz Deutsche Zeitung. Foi deputado à assembléia Provincial em 1882” HESSEL, Lothar Francisco. O Partenon Literário e sua obra. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1976, p.135.

41

exemplo vindo da escola do Recife, em Pernambuco, liderada por Tobias Barreto e onde Silvio Romero teve papel fundamental. Desde 1876, ao menos, por ocasião do manifesto de lançamento de seu jornal Echo do Ultramar, editado em Porto Alegre, que Koseritz propagava o nome de seus companheiros do nordeste brasileiro. Conforme vemos na nota de abertura da publicação, afirmava que “muitas vezes fomos levados a reflectir no facto de que a grande maioria dos nossos compatriotas” estão completamente “isolados do movimento literário e científico das outras nações”, mostrando-se “indiferentes pelo que neste sentido vai aparecendo entre nós, ainda que em modesta escala”. Daí surge a tentativa de “fundar um jornal semanal que a par da análise das novidades literárias se dedicasse à reprodução, por meio de elaboradas e conscienciosas traduções originais, daqueles trabalhos que modernamente têm avultado na Inglaterra, Alemanha, França, Itália, etc.”, tendo como objetivo “vulgarizar entre nós as ideias dominantes daqueles cultíssimos países”, no sentido de buscar apresentar “aos espíritos de nossos patrícios os tesouros inexauríveis das literaturas europeias”, contribuindo, assim, para a criação, no Rio Grande do Sul, de “um genuíno gosto literário em lugar da exclusiva imitação de autores franceses, que hoje impera entre nós”. Como inspiração “nesta cruzada”, declara, enfaticamente, que “alistamo-nos de todo o coração sob o pendão dos Tobias e Romeros que no Norte do Império já vão encaminhados no que agora encetamos” (69). Não surpreende, então, que Romero tenha encontrado junto a Koseritz o apoio necessário à publicação do seu livro, em 1878 (70). Esse 69

Echo do Ultramar, literatura, ciências e artes. N.º1, Ano 1, 1876, Porto Alegre, p.1. Sílvio Romero afirma que, no Rio Grande do Sul, a importante ação de Carlos von Koseritz na divulgação do monismo haeckeliano deve ser entendida pela influência sua e de Tobias Barreto, pois, segundo ele “durante vinte e dois longos anos, de 1852 a 1874, Carlos von Koseritz fez jornalismo político em o Rio Grande do Sul, tomou parte em todos os debates mais notáveis ali traados, jamais fez a propaganda por Tobias iniciada no Recife em 1870. Em 1874 é que, havendo o autor sergipano enviado a Richard Mathes, redactor então da Deutsche Zietung do Rio de Janeiro, a carta em língua alemã, cuja tradução vai neste livro, e logo após o 70

42

fato pode mesmo ser visto como a manifestação de importantes linhas de aproximação entre os movimentos intelectuais brasileiros que estavam à margem do centro irradiador, localizado no Rio de Janeiro. Afinal, Romero produz sua obra ainda residindo no Nordeste brasileiro, mas vai publicá-la no Sul, pelas mãos de um imigrante alemão. A suspeição de uma assinalável abrangência quanto à divulgação das obras científicas, que já de seguida examinamos em escala transatlântica, começa por ganhar fundamento em escala regional – intrabrasileira, digamos assim. Entretanto, em Portugal, a recepção da obra romeriana ficará a cargo da revista O Positivismo, editada no Porto. Interessa-nos, agora, seguir os passos dessa recepção. O primeiro destaque vai para o fato de esta publicação ter sido recebida, em Portugal, com todo o interesse e com apreciável concordância de perspectivas, no âmbito de um trabalho conjunto de divulgação científica e superação dos enclaves ideários do teologismo metafísico. Marca de uma configuração cultural de mobilização das ideias num movimento intelectual que entendia conjuntamente o processo de renovação cultural empreendido nos dois países. Prova disso é a resenha crítica escrita por Júlio de Mattos, em 1879, no fascículo de Junho/Julho da citada revista O Positivismo. No texto, o autor começa por assinalar que “um certo movimento filosófico se acentua actualmente no Brasil, como em Portugal”. Na apreciação de Júlio de Mattos, entre Portugal e Brasil há “uma elaboração mental, um princípio de renovamento literário, sintomas um tanto raros ainda, é certo, mas que não deixam por isso de ter importância para a previsão dos destinos espirituais destas nações”. E se é possível traçar paralelos entre elas é porque “no Brasil, como cá, os prospecto do seu jornal naquela língua, Deutscher Kämpfler, e sendo uma coisa e outra publicadas na gazeta de Mathes, Carlos von Koseritz exultou no Rio grande , transcreveu esses artigos e pôs-se ao lado de Tobias, que nessa faina nós acompanhávamos, em termos, desde 1870”. ROMERO, Sílvio. “Considerações indispensáveis” In: BARRETO, Tobias. Estudos Alemães, Obras Completas. Volume XVIII. Sergipe: [s.ed.], 1926, p. XIX.

43

homens superiores que tentam colocar-se ao nível do pensamento moderno, que procuram impulsar o espírito público no sentido da ciência e dos métodos hodiernos, constituem na hora presente o menor número; formam a pequena família dos que a ignorância geral chama revolucionários, a despeito dos meios pacíficos da sua nobre propaganda e do intuito construtivo que nunca os abandona no seu trabalho obscuro e desprotegido” (71). Certo é que, aliado à sabida influência francesa na propagação das ideias positivas – tanto no Brasil como em Portugal – houve, também, em simultâneo, um movimento de aproximação luso-brasileira. Como se diz nas páginas de O Positivismo, os portugueses têm “visto com prazer na revista de Filosofia Positiva de Littré e Wyroubouff e na Revista Ocidental de Pierre Laffitte notícias favoráveis de trabalhos científicos empreendidos no Brasil. Nós anunciamos também o aparecimento de mais um livro brasileiro, que se inspira na direcção nova das consciências. A Filosofia no Brasil de Sílvio Romero, é esse livro” (72). Sendo o mencionado livro composto de uma série de apreciações críticas sobre filósofos brasileiros (com destaque, entre outros, para Mont’Alverne), Júlio de Mattos não hesita em citar trechos da obra romeriana, aproveitando para, dessa forma, apresentar também a atmosfera cultural brasileira da época conectada com a portuguesa (73). A aproximação, portanto, efetivava-se. O que importa indagar são os elementos filosóficos que a tornavam possível. A esse respeito, convirá referir que, na obra mencionada, num excerto justamente impresso em O Positivismo, Sílvio Romero de alguma maneira os assume: sendo um 71

MATTOS, Júlio de. Secção “Variedades”. O Positivismo: revista de filosofia. Ano I, n.º5, junho-julho, 1879. In: O Positivismo: revista de filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume I (números 1 a 6), 1879, p.402. 72 Idem, ibidem, p.402. 73 Idem, ibidem, p.402-403.

44

“«sectário convicto do positivismo de Comte, não na direcção que este lhe deu nos últimos anos da sua vida, mas na ramificação capitaneada por Émile Littré, depois que travei conhecimento com o transformismo de Darwin, procuro harmonizar os dois sistemas num criticismo amplo e fecundo»”. E, no seguimento da mistura de elementos do positivismo comteano com o darwinismo, Júlio de Mattos expõe mais considerações de Romero, designadamente aquelas em que ele realça sua demarcação intelectual: “«sou sectário do positivismo e do transformismo? Sim; entendendo-os, porém, de um modo largo e não sacrificando a minha liberdade de pensar a certas imposições caprichosas que os sistemas possam porventura apresentar»”(74). Vislumbra-se, através destes pequenos excertos, um fator importante a ter presente nos relacionamentos culturais luso-brasileiros: a diversificada síntese pessoal que os intelectuais brasileiros e portugueses faziam da miríade teórica presente nas décadas finais do século XIX. Logo, é natural que Júlio de Mattos teça algumas considerações mais discordantes face à autodefinição romeriana. Segundo ele, o brasileiro “não é tão explícito como desejáramos sobre o que chama de criticismo nem sobre a maneira por que consegue a conciliação do transformismo darwínico com o Positivismo de Comte”. Contudo, acredita que “o ponto de vista do Sr. Sílvio Romero é o mesmo que já exprimimos nesta Revista, no artigo Ensaio sobre a Evolução em Biologia”, onde está manifesta a proximidade entre as hipóteses evolucionistas e as positivistas” (75). Nesta linha de comentários, Júlio de Mattos esclarece que, para ele, “o transformismo baseado inteiramente sobre dados positivos e factos averiguados” merece credibilidade positiva; pelo que, neste ponto, entre o posicionamento de Romero e o dele próprio, segundo afirma, o “acordo é 74 75

Idem, ibidem, p.403. Idem, ibidem

45

completo”. Contudo, o mesmo não acontece quanto ao termo “criticismo”, tal como utilizado pelo brasileiro. Sobre este, Mattos relaciona-o com a Filosofia Crítica, termo que “exprime um sistema muito diverso da Filosofia Positiva”. E, recorrendo a Wyrouboff, em quem estriba o seu próprio entendimento sobre a divergência teórica entre o criticismo e o positivismo, Mattos avalia que “o termo Positivismo ou Filosofia Positiva comporta em si maior extensão que aquela que lhe é dada pelo mentalidade moderna desde que os seus sectários admitem, como o Sr. Silvio Romero, a classificação hierárquica das ciências na ordem da generalidade decrescente e complexidade crescente, a lei sociológica dos três estados, os processos gerais de investigação, à posteriori e a impossibilidade radical de resolver os problemas de origem e finalidade absolutas” (76). Feitas estas considerações, termina a apresentação do livro de Romero afiançando que, mesmo se “do novo livro A Filosofia no Brasil não podemos dar aos nossos leitores uma apreciação completa, porque ele é constituído, como já dissemos, de uma série de livros brasileiros, na maior parte desconhecidos para nós”, cumpria-se, pelo menos, um dever, “e esse cumprimo-lo gostosamente, é noticiar a aparição da obra, que nos vem familiarizar com os escritores do Novo Mundo e faz-nos assistir ao desenvolvimento da ciência e da Filosofia naquelas regiões”(77). Anos mais tarde, porém, Sampaio Bruno nos dá uma imagem diversa sobre a recepção que teve a obra de Romero em Portugal. No seu Brasil Mental, Bruno revela que “quando Silvio Romero escrevera e publicara uma espécie de história da Filosofia no Brasil, em Portugal, foi, após o pasmo, um sucesso de gargalhadas. «Ora isto?!» dizia-se às mesas dos cafés, nas palestras dos jovens curiosos de espírito. «Com que então: a filosofia do Brasil? Hein? Esta nem o Diabo lembra! Se fosse a carne-seca 76 77

Idem, ibidem. Idem, ibidem, p.403-404.

46

do Brasil, ou a feijoada do Brasil… Mas, agora, a filosofia do Brasil. Valha-nos Deus!» E riam, jubilosos da sua suficiência”(78). Tanto quanto parece, a dinâmica ao nível da divulgação não era bastante para uniformizar os critérios da recepção. Seria impossível que o fosse. Mas, até certo ponto, o elemento tensional subjacente ao sarcasmo acabava por confirmar um intercâmbio de ideias que, tanto quando associava tanto quando afastava os diversos autores em presença, manifestava a tendencial abrangência da propagação das ideias positivas à escala luso-brasileira. Os exemplos que a seguir elencamos dizem isso mesmo (79).

2.1.2.

Nem precisamos sair das páginas de O Positivismo. Em secção

específica, informava seus leitores do intercâmbio de publicações realizado pelos editores da revista – Teófilo Braga e Júlio de Mattos – mencionando, da mesma forma, as revistas, livros e jornais recebidos. Assim, percebemos que, desde o número 6, fascículo de Agosto/Setembro, de 1879, se publicitava, na contracapa da revista, o recebimento da já mencionada obra de Silvio Romero, A Filosofia no Brasil, bem como da obra de Clóvis Beviláqua e José Isidro Martins Júnior, Vigílias literárias, ou da Oração fúnebre, de António Cândido da Costa (80).

78

BRUNO, Sampaio. O Brasil Mental. Esboço Crítico. Porto: Lello Editores, [1898] 1997, p.44. Esta hipótese parece ser reforçada pelas considerações de Antônio da Rocha Almeida, que menciona a divulgação de autores portugueses e brasileiros – como Oliveira Martins, Teófilo Braga, Sílvio Romero, Tobias Barreto, por exemplo – no jornal O Combate, no sentido de fortalecer a perspectiva crítica diante das ideias católicas. Antônio da Rocha Almeida informa que em “10/04/1886 aparecia, de sua propriedade O Combate, de parceria com Argemiro Galvão, a lutar contra a Igreja e a Companhia de Jesus. Na lista dos colaboradores vinham Silvio Romero, Tobias Barreto, Graciano Azambuja, Rangel Pestana, Campos Sales, Teófilo Braga, Alcides Lima, Teófilo Mesquita, Oliveira Martins”. ALMEIDA, Antônio da Rocha, “Vultos da Pátria – 260 – Carlos von Koseritz”, Jornal Correio do Povo, 15/08/1965. Tentamos pesquisar o mencionado periódico, porém, está, actualmente, fora de possibilidade de ser consultado, devido a má conservação. 80 O Positivismo: revista de filosofia. Primeiro Ano, n.º 6, Agosto/Setembro, 1879, Contracapa. In: O Positivismo: revista de filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume III (números 1 a 6), 1880, 449p. 79

47

Por sua vez, no fascículo de Outubro/Novembro de 1880, está explicitado o intercâmbio: “temos continuado a receber com regularidade os periódicos brasileiros Tribuna Liberal e Gazeta de Porto Alegre. Recebemos o Echo Académico e o Arquivo Literário. Dos livros que nos ofereceram de Portugal e Brasil adiamos a nossa apreciação por falta de espaço” (81). Comunicados como este são bastante recorrentes(82). Em 1880, no fascículo de Fevereiro/Março, Júlio de Mattos retoma o assunto sobre o acolhimento do positivismo no Brasil. No texto “A Popularização das ideias positivas no Brasil”, afirma que “vão-se tornando manifestos e cada vez mais acentuados os sintomas de renovação mental no Brasil. Na filosofia, como na literatura e na ciência, são evidentes os esforços com que naquele vasto país se tentam partir os moldes consagrados, mudar a direcção tradicional dos espíritos, combater os preconceitos teológicos e metafísicos, velhos ídolos perniciosos dia a dia eliminados diante das aspirações da consciência moderna”. Havia boas razões para acreditar no êxito da empresa. Porque, como gostava de realçar o autor, “a agitação que actualmente se manifesta o Brasil e em Portugal é indício seguro de que se há de entrar num caminho de progresso”. Pressentia ele uma gradual disponibilidade para que os “obreiros do pensamento novo se reunam na evangelização dos seus credos literários, científicos e filosóficos, [assegurando que] as aspirações de hoje serão as 81 O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.1, Outubro-Novembro, 1880. O Positivismo: revista de filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume III (números 1 a 6), 1880, 449p. 82 Como por exemplo: “Temos continuado a receber com regularidade os periódicos brasileiros Tribuna Liberal e Gazeta de Porto Alegre. Recebemos o Echo Académico e o Arquivo Literário. Dos livros que nos ofereceram de Portugal e Brasil adiamos a nossa apreciação por falta de espaço”. O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.2, Dezembro-Janeiro, 1881. Assim como: “temos continuado a receber com toda regularidade as revistas estrangeiras e nacionais que nos fascículos anteriores costumamos nomear nesta página. Recebemos mais o Pantheon, revista literária, e a Sentinela da Fronteira. A todos, os nossos agradecimentos”. O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.3, Fevereiro-Março, 1881. E ainda: “além das publicações costumadas recebemos mais, do Brasil: A Pátria Brasileira de Teixeira Mendes e Visões de Hoje, de Martins Júnior, livros que não podemos examinar agora por falta de espaço”. O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.6, Agosto-Setembro, 1881.

48

realidades de amanhã”. Afinal, acreditava no poder da associação das forças positivas em âmbito luso-brasileiro: “associar forças é centuplicálas; associem-se pois os pensadores brasileiros que assim conseguirão de um modo lento mas seguro o renovamento a que se propõem” (83). Pela sua parte, contribuía com a atenta tarefa de divulgação. Merece-lhe particular simpatia o projecto da Biblioteca Útil, editada em São Paulo “com o intuito de propagar a Filosofia Positiva no Brasil”, empreendimento que conta com a participação de intelectuais brasileiros já “vantajosamente conhecidos na Europa, como França Leite e Sílvio Romero” (84), e que desde o seu início encontra publicitação em O Positivismo (85). O sentido deste acolhimento só podia ser óbvio: se é verdade que “há no Brasil”, como diz Júlio de Mattos, “muita gente que estuda e está a par de todos os progressos intelectuais do mundo civilizado”, são todavia muito poucos os “que comunicam à sociedade o resultados da sua actividade intelectual. Reina entre nós a apatia mental, que é, como bem diz o Sr. Teófilo Braga, um das formas mais invencíveis da inércia”. É necessário, pois, “despertar deste letargo” e “levar a civilizadora luz da ciência aos que jazem imersos nas trevas da ignorância»”. Para isto, não basta ter o conhecimento das ideias que

83 MATTOS, Júlio de. “Popularização da Filosofia Positiva no Brasil”. O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.3, Fevereiro/Março, 1880, In: O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume II (números 1 a 6), 1879-1880, p.250. 84 Idem, ibidem, p.251. 85 Transcreve-se, assim: “«A falta, no Brasil, de livros destinados ao povo em que se lhe ministrem os conhecimentos científicos que pouco a pouco vão transformando o mundo, animou-nos a empreender a publicação de uma séria de volumes, em que se trata das variadas questões da actualidade»”. A Biblioteca Útil busca “«proporcionar ao povo a familiaridade com as ciências e todas as grandes ideias do século, eis o fim que tivemos em vista ao encetar esta colecção de livrinhos»” MATTOS, Júlio de. “Popularização da Filosofia Positiva no Brasil”. O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.3, Fevereiro/Março, 1880, In: O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume II (números 1 a 6), 1879-1880, p.250-251.

49

vigoram nos países, “é necessário também que as adaptemos ao nosso meio e as façamos circular em nossos espíritos»”(86). Em Março de 1880, os positivistas portugueses declaravam-se “desejosos que os simpáticos propagandistas da nova fé colham o máximo resultado na tarefa a que se propõem, [enviando-lhes] do extremo Ocidente da Europa os nossos votos de respeito”(87). Por esta altura, já a reciprocidade no reconhecimento das dívidas intelectuais transatlânticas parecia ocorrer com naturalidade. A avaliar, por exemplo, pela edição das Soluções Positivas da Política Brasileira, de Luiz Pereira Barreto, obra publicada em São Paulo com um título propositadamente idêntico ao das Soluções Positivas da Política Portuguesa, em homenagem a Teófilo Braga, deveria ser mesmo assim. Com efeito, nas palavras de Barreto, “o título que tomamos […] não é uma pretensiosa imitação: é simplesmente uma homenagem. Quisemos pagar a Teófilo Braga o imenso tributo de gratidão que lhe deve a geração que hoje surge nas letras do nosso país” (88). Uma geração grata pela recepção e divulgação dos respectivos ensaios, com certeza, mas também, em grande parte, filiada num comum entendimento da esfera relacional entre os dois países e dos argumentos que a deveriam fundar. Uma geração associada ao homenageado pela comum participação numa mesma rede discursiva.

2.1.3.

De acordo com o prefácio das Soluções Positivas da Política

Brasileira, de Luiz Pereira Barreto, que passamos agora a citar, afirma o positivista brasileiro ter a “convicção que as nossas condições políticas e 86 MATTOS, Júlio de. “Popularização da Filosofia Positiva no Brasil”. O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.3, Fevereiro/Março, 1880, In: O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume II (números 1 a 6), 1879-1880, p.251. 87 Idem, ibidem, p.251. 88 MATTOS, Júlio de. O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.4, Abril/Maio, 1881, p.284-285. Júlio de Mattos assegura, de facto, nesse volume, uma interessante recepção crítica da obra de Barreto.

50

sociais [brasileiras] não melhorarão em quanto não tiverem por ponto de partida uma modificação correspondente na situação de Portugal”. Para ele, “o fio da história não se rompe. Somos filhos de Portugal: a ele estamos presos por todos os laços indissolúveis de uma lei natural. A fatalidade biológica e o determinismo sociológico dominam toda a nossa história”. Daí que considere que “é em vão que procuremos esquivar-nos à pressão do passado. Temos sido, somos e seremos portugueses” (89). Mais ainda: “é da renovação intelectual, moral e social de Portugal que depende o progresso do Brasil”. É certo que “politicamente estamos separados. Mas, em história, o ponto de vista da política é secundário. A separação não suspendeu a lei secreta das afinidades; e a velha metrópole, hoje como outrora, conserva a sanção suprema para todos os nossos passos” (90). Pereira Barreto está completamente a par das modificações ocorridas no campo das teorias e das ideias, em Portugal, por via Geração de 1870. Para ele, “O Portugal de hoje não é o Portugal de há cinquenta anos atrás”, motivo pelo qual, “assim como herdámos todos os vícios e preconceitos dos nossos imediatos predecessores, devemos hoje, com calma e sangue frio, imitar o exemplo dos nossos irmãos d’além mar, seguindo firmemente a senda que traçam”(91). Considera, assim sendo, que “é nosso dever de patriotas confessar francamente que, do outro lado do Atlântico, nessa mesma terra que nos serviu de embriogênio berço, existe hoje uma plêiade de homens cuja estatura não encontra entre nós paralelo”, para logo citar o nome dos intelectuais portugueses que admira: Teófilo Braga, Ramalho Ortigão, Felipe Simões, Guerra Junqueiro, G. de Vasconcelos, Eça de Queirós, Antero de Quental, Gomes Leal, Consiglieri Pedroso, Oliveira Martins, Luciano Cordeiro, Júlio de Mattos, Adolfo 89 Prefácio às Soluções Positivas da Política Brasileira, 1880. BARRETO, Luiz Pereira. Obras Filosóficas. Vol. III. Organizado por Roque Spencer Maciel de Barros. São Paulo: Humanitas, 2003, p.17. 90 Idem, ibidem, p.18. 91 Idem, ibidem. Grifos nossos.

51

Coelho, Teixeira Bastos, Augusto Rocha, Bittencourt Raposo, Amaral Cirne, Guilherme de Azevedo, entre outros. Primordial lhe parece, pois, que “em nosso próprio interesse” – no interesse dos brasileiros, portanto –, estes entrem em “plena comunhão com esses espíritos elevados”. Pode entender-se o por que: embora “unidos no passado”, o certo e o esperado é que “nos uniremos cada vez mais no futuro pelos laços de uma filosofia comum”. O passado, sem dúvida, esse passado com Portugal, elemento essencial na constituição do brasileiro e na sua perspectivação. Mas, sobretudo, para Luís Pereira Barreto, é a filosofia o esteio para a união no futuro. Não estava só nessa intuição. Não é casual o agradecimento tributado, no referido prefácio da sua obra, a Carlos von Koseritz: “é com vivo estremecimento que aqui assinalo o nome de Carlos von Koseritz, o batalhador infatigável que tem posto ao serviço da pátria adoptiva trinta anos de sua vida, consagrando todas as forças do seu talento à defesa dos nossos mais altos interesses intelectuais, morais e sociais”(92). Como não é fortuito o apoio entusiástico concedido à sua obra em resenha crítica de Júlio de Mattos, que do mesmo modo que reputa de “justíssimo” o tributo ali prestado a Teófilo, precisamente um dos diretores da revista O Positivismo, assim também declara estar “apoiando sem restrições o ponto de vista elevado do Dr. Pereira Barreto”, fazendo “votos, como ele, para que a união consciente dos dois povos se realize de um modo franco na comunhão de um mesmo pensamento filosófico” (93). Para que Portugal e Brasil se voltassem a unir, era importante, vincava Mattos, “que todas as dissidências artificialmente levantadas e 92 Prefácio às Soluções Positivas da Política Brasileira, 1880. BARRETO, Luiz Pereira. Obras Filosóficas. Vol. III. Organizado por Roque Spencer Maciel de Barros. São Paulo: Humanitas, 2003, p.19. 93 MATTOS, Júlio de. O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.4, Abril/Maio, 1881. O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume II (números 1 a 6), 1879-1880, p.284-285. Grifos nossos.

52

violentamente opostas às leis históricas, terminem de uma vez; virá daí para todos nós a segurança, a firmeza de planos, a felicidade social dos que se sentem apoiados, dos que vêem secundados pela grande força da opinião todos os esforços mentais ou seja puramente críticos para a destruição de velhos erros, ou sejam orgânicos para a construção de ideais novos e de uma nova fé”. Neste projeto histórico, político e cultural, cabia à Filosofia Positiva o papel de elemento unificador. O positivismo representaria uma “síntese disciplinadora” que educaria os espíritos portugueses e brasileiros “no sentido de procurar na evolução humana o que o nosso colega tão justamente denomina «a lei secreta das afinidades» entre os povos historicamente irmãos” (94). Merece atenção este ponto. Para nossos propósitos, o que está em causa é o fato de que as relações luso-brasileiras não eram – para os positivistas – definidas pela “comunidade de sangue” tal como eram para Oliveira Martins. As relações não atrelavam-se aos papeis paternal/filial na referencialidade atribuída por Oliveira Martins. Agora tratavam-se de “povos irmãos”, fundamentalmente. Esta relação de fraternidade era gerenciada pela síntese filosófica positiva. Conforme a apreciação de Júlio de Mattos, à Filosofia Positiva cabia “a missão tão gloriosa e tão útil de promover de um modo consciente a conformidade de pensamento a unificação dos dois países que vivem das mesmas tradições e instintivamente sentem as mesmas aspirações, as mesmas necessidades sociais” (95). O mesmo ideal valia, também, para as necessidades políticas. Pelo menos em alguns aspectos no tocante ao debate entre unitarismo e federalismo. Porque, contrariamente ao que poderia parecer à primeira vista, se a questão federal atinge particular relevância para o Brasil, “não é 94 95

Idem, ibidem, p.284-285. Grifos nossos. Idem, ibidem, p.284-285.

53

menos séria nem menos importante para Portugal”. Tendo em conta quer a dimensão interna, quer o fator externo, estando naquele caso, a “centralização asfixiante da monarquia”, e, neste último, a vizinhança com a Espanha, “vasto país formado pela junção violenta de muitos estados” (96). Não surpreende, deste modo, que, relativamente à obra estampada no Rio de Janeiro, em 1881, intitulada A República Federal, de Assis Brasil, concluirá Júlio de Mattos ser o autor gaúcho “um dos talentos mais robustos e mais bem orientados da moderna geração brasileira”, o qual lhe havia enviado o volume (97). Daí que concluísse que “assim como aos brasileiros, a nós, portugueses, embora por motivos em parte diferentes, a discussão madura dos sistemas federal e unitário importa-nos duplamente: como questão interna e como questão internacional” (98). Esta evidência apenas seria incompreendida por “aqueles que, ainda hoje, mau grado todos os progressos das ciências sociais, persistem no erro lastimoso de confundir federação e unionismo”(99). Para Mattos, como para Assis Brasil, a necessária suplantação da Monarquia pela República urgia, não podendo deixar de acontecer, na medida até em que a “evolução” fá-la-ia extinguirse, em terras brasileiras como em terras portuguesas, pelo seu “natural desenvolvimento”. Tal raciocínio manifesta bem um amálgama entre as teorias naturalistas do final do século XIX e o projeto republicano de cariz positivista. Também por esta via parecia legítimo supor que através de uma conformidade de anseios e projetos positivistas – incluindo neste escopo a República Federativa – seria formada uma nova base social e cultural de 96 MATTOS, Júlio de. “A República Federal, por Assis Brasil” O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1881.. O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.4, Abril/Maio, 1881. O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume III (números 1 a 6), 1880, p.443. 97 Idem, ibidem, p.438. 98 Idem, ibidem, p.440. 99 Idem, ibidem, p.443.

54

relacionamento associativo entre Portugal e Brasil. Claro está que isto seria condicionado por um percurso ditado metodologicamente. Isto o próprio Júlio de Mattos em 1882. No texto “O Movimento Republicano no Brasil”, e à propósito do “oferecimento que o Sr. Alberto Sales, publicista brasileiro, acaba de fazer-nos do seu belo livro Política Republicana”, o autor frisa o “notável o movimento democrático” do Brasil , “notável não tanto pela energia e actividade, que aliás são grandes, como pelo carácter eminentemente positivo que o caracteriza, [ou seja:] não é uma agitação indisciplinada, um aspirar inconsciente e anárquico a reformas políticas e sociais, o que aí se observa; é, sim, uma forte opinião radicada, metodicamente posta à luz com a coragem serena e paciente, a mais poderosa de todas as coragens, emanada da ciência e alimentada por um forte patriotismo” (100).

2.1.4.

Embora seja relevante sua intervenção, Júlio de Mattos não foi o

único positivista português a fazer a recepção de texto brasileiros. Na Revista de Estudos Livres, Teixeira Bastos e Teófilo Braga noticiaram o surgimento de várias obras brasileira que buscavam a divulgação da ciência positiva. No cômputo das recepções e críticas feitas por Teixeira Bastos constam textos sobre a obra de Silvio Romero, Introdução à história da literatura brasileira, publicado no Rio de Janeiro em 1882, bem como sobre o livro A Terra e o Homem à luz da moderna ciência, publicada, em Porto Alegre, em 1884, por Carlos von Koseritz. Teófilo Braga, por sua vez, fez a recepção crítica da já aqui mencionada obra de Alberto Sales, publicada em São Paulo em 1885. Além destas recepções críticas, observase, também, nas páginas da Revista de Estudos Livres, a publicação integral 100 MATTOS, Júlio de, “O Movimento Republicano no Brasil”. O Positivismo: revista de filosofia. Quarto Ano, n.3, Maio/Junho, 1882. O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume IV (números 1 a 6), 1882, p.246.

55

de dois artigos de autores brasileiros (101). Um deles, de Isidro Martins Júnior, sobre A função histórica da economia política, e o outro, um significativo texto de Sílvio Romero sobre As Teorias da História da Literatura Brasileira. Limitemo-nos, em tom de exemplaridade, à análise que Teixeira Bastos faz da Introdução à História da Literatura Brasileira, publicada no Rio de Janeiro, em 1882, por Sílvio Romero. Conforme veremos, o seu comentário à obra romeriana remete para a mesma “província de significado” que temos vindo a caracterizar em torno dos ideários de conotação positivista. Assim, ao apresentar Romero ao leitor, Bastos não o faz por menos: “Comparam-no a Teófilo Braga e cremos que não é sem razão, porquanto o ilustre escritor brasileiro tem adquirido na sua pátria tantas inimizades quantas entre nós outrora adquiriu o distinto professor do Curso Superior de Letras” (102). Por outro lado, uma vez que, em seu entender, “as gerações novas [de Portugal e Brasil] chegaram já à compreensão de que era apaixonado e injusto esse ódio que dividiu os seus maiores e hoje começam a olhar-se como irmãos, a estimar-se pelo que realmente valem, e a auxiliar-se nos seus esforços comuns em prol da civilização”, mais margem de manobra passará a haver para, à semelhança do que faz Sílvio Romero, mobilizar o talento no sentido de (segundo a própria expressão deste último, que Bastos transcreve) “«encontrar as leis que presidiram e

101

Beatriz Berrini refere a pouca abertura que as publicações de Portugal davam aos escritores brasileiros. Na Revista de Estudos Livres, entretanto, podemos perceber uma interessante e profícua relação entre os escritores brasileiros e portugueses. Nesse caso, além das recepções críticas do que era publicado no Brasil, também vemos artigos importantes de brasileiros publicados na revista. BERRINI, Beatriz. Brasil e Portugal: a geração de 70. Breves indicações dos correspondentes brasileiros e portugueses por Paulo Franchetti e Beatriz Berrini. Prefácio de Isabel Pires de Lima. Porto: Campo das Letras, 2003. 102 BASTOS, Teixeira. Recepção crítica à Introdução à história da literatura brasileira, por Silvio Romero. Primeiro volume. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1882, 254p. In: Revista de Estudos Livres, Ano I, 1883-1884, p.234.

56

continuam a determinar a formação do génio, do espírito, do carácter do povo brasileiro»” (103). Dito isto, a apreciação do autor de Portugal não é ibérico oscila entre uma concordância de fundo e um distanciamento cirúrgico: “como se vê o Sr. Silvio Romero, adoptando os novos processos históricos, divide o seu trabalho em duas partes, a que podemos chamar, servindo-nos da tecnologia positivista, parte estática e parte dinâmica, estabelecendo primeiro os elementos constitutivos da nacionalidade e as condições da marcha da evolução intelectual. É este o verdadeiro método sociológico. O Sr. Sílvio Romero não é, porém, positivista, embora se aproxime muito do ponto de vista filosófico iniciado por Comte e seguido por Littré, por Robin, por Wyrouboff, em França, e propagado em Portugal por Teófilo Braga e no Brasil por Pereira Barreto. Com razão condena a ortodoxia laffitista, que desconhece completamente os notáveis progressos efectuados por todas as ciências depois da morte de Comte, e combate a influência exagerada do francesismo na literatura brasileira, mas infelizmente deixa-se impressionar em demasia pelo germanismo e confunde a concepção positivista com o culto da Humanidade ou o Ente Supremo. O entusiasmo pelo germanismo tanto pode ser causa de ideias erróneas, quanto o tem sido o abuso do romantismo ou do francesismo” (104). Divergência grave? Aparentemente não, desde que ficassem claros, como o eram para Teixeira Bastos, os seguintes pontos: que “a verdade não é propriedade de qualquer seita ou escola filosófica, não pertence aos sábios de qualquer nacionalidade ou raça, [até porque] a ciência é cosmopolita; aceitamo-la de onde ela nos venha”(105); e que “o positivismo, como concepção geral do universo, [só erradamente] seria considerado uma escola filosófica ou uma seita religiosa, e ainda menos um produto 103

Idem, ibidem. Grifos nossos. Idem, ibidem, p.235. 105 Idem, ibidem, p.236. 104

57

exclusivo da mentalidade francesa, [sendo antes] formado sobre as leis naturais achadas indistintamente pelos sábios de todos os países [“conclusão aceite pelo Sr. Sílvio Romero, desde que aprecie a profunda diferença que separa a filosofia positiva do positivismo cultural dos laffitistas”]” (106). Não sendo assim, não ficando claros tais pressupostos, ficaria seriamente comprometida a eficácia da rede discursiva como a que, estruturada sobre a dinâmica de um intercâmbio científico transatlântico, constituía, ela própria, a melhor comprovação de que, como rezava o credo de Teixeira Bastos, “o critério do homem de ciência deve colocar-se acima de todos os preconceitos partidários ou nacionais” (107).

2. Interpretações concorrenciais

O investimento até agora feito ao nível da escala cultural lusobrasileira permitiu descortinar umas quantas redes discursivas, produtoras de outros tantos alinhamentos políticos e científicos. As alegorias da “comunidade de sangue” e da “fraternidade entre os dois povos” podem simbolizar, cada uma a seu modo, esta percepção. O ponto anterior elucidou já este aspecto. Interessará agora aprofundar o suporte teórico mobilizado no contexto daqueles circuitos. De fato, a circulação de ideias denunciava posicionamentos distintos em relação ao intercâmbio cultural transatlântico. Isso resultava de uma dinâmica interpretativa sobre o sentido desse intercâmbio – e, sobremaneira, as teorias sobre o lugar da história na explicação das relações culturais e das construções identitárias – impunha critérios concorrenciais de abordagem. São estes que agora nos interessam. Adiante-se que, no quadro deste raciocínio, identificámos três linhas interpretativas maiores no tocante às relações luso-brasileiras: a que 106 107

Idem, ibidem, p.236. Idem, ibidem, p.236. Grifos nossos.

58

perspectiva esse relacionamento em termos de derivação; a que o faz em termos de convergência; e a que o faz em termos de distanciamento. Tendo por objetivo dar conta de cada uma delas, tomamos por emblemáticos os textos dos “prefácios” e “prospectos” das revistas com as quais temos vindo a trabalhar, bem como de outras tantas fontes oriundas do mesmo universo discursivo. Importa ter presente que o texto que forma o prefácio não possui a mesma valia dos demais artigos que, de fato, “preenchem” um periódico. O prefácio é oriundo de um posicionamento político tomado pelos diretores e principais redatores da publicação. Trata-se de um momento de inauguração de uma “identidade textual”, de demarcação de um território discursivo que será, posteriormente, ocupado pelo conjunto de textos dos articulistas. Assim, o enunciado feito sobre dos objetivos propostos, ou das relações estabelecidas, representa, para nós, indicador precioso do ponto de vista que, em cada momento, buscamos esclarecer.

2.1 O ponto de vista da derivação

A linha interpretativa a que chamamos derivativa pode ser perseguida tomando como ponto de partida o prospecto da Revista Ocidental. Dirigida por Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, a Revista Ocidental – cujo papel no tocante à circulação das ideias entre Portugal e Brasil já atrás deixamos expresso – apresenta-se, desde o seu início, como um espaço discursivo em continuação do espírito crítico que animara as célebres Conferências Democráticas do Casino, ocorridas em Lisboa ainda em 1868(108).

Vejamos então as indicações relevantes, para a nossa

108

Pelo que indicam os estudos especificamente voltados à revista, percebe-se que a edição da revista já estava sendo planejada desde inícios de 1872. Conforme informa Maria José Marinho, seu lançamento, embora programado para Setembro de 1874, só veio a concretizar-se mesmo em 15 de Fevereiro de 1875. Tudo leva a crer o seguinte: que, por motivos do agravamento da doença de Antero, a organização da revista teria ficado mais a cargo de Batalha que de Antero.

59

problemática, fornecidas por esta revista cuja publicação se dava por meio de fascículos quinzenais que, ao final de um trimestre, eram publicados em conjunto num só tomo(109).

2.1.1.

Primeiro aspecto a ter em conta: embora impressa em Lisboa, a

Revista Ocidental continha artigos tanto em idioma português quando em idioma castelhano. Este fato deve-se, conforme afirma o estudo de Maria José Marinho, a uma decisão tomada com intuito de “facilitar a difusão na América Latina” (110). Trata-se, claramente, de uma preocupação em integrar os países da América do Sul ao âmbito ibérico de circulação da Revista Ocidental. Uma preocupação a reter. É recorrente dar maior destaque à publicação, no quadro da revista, de O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós. Para nós, contudo, no intuito de focalizar as relações culturais entre Brasil e Portugal, é a seção “Crónicas-Revistas”, presente em todas os fascículos da revista, que assume particular importância. Esta secção era composta, geralmente, por quatro subgrupos: “América”, escrita por D.R. de Cala, que continha geralmente informações sobre os acontecimentos das repúblicas de língua espanhola da América Latina; “Espanha”, coluna não assinada, que continha textos a respeito dos factos concernentes a Madrid; “Europa”, assinada por J. Batalha Reis, que dava ênfase aos acontecimentos geralmente ocorridos em França (111); e a coluna “Portugal e Brasil”, Para mais informações, indicamos o estudo de MARINHO, Maria José. “A Revista Ocidental, 1875 – um projecto da Geração de 70”. In: Revista da Biblioteca Nacional, 2ª série, vol.7, n.º1, 1992. 109 O primeiro tomo corresponde a seis fascículos referentes, respectivamente às seguintes datas de publicação: 15 de Fevereiro; 28 de Fevereiro; 15 de Março; 31 de Março; 15 de Abril e 30 de Abril. O segundo tomo corresponde também a seis fascículos referentes a 15 de Maio; 31 de Maio; 15 de Junho; 30 de Junho e 15 de Julho. 110 MARINHO, Maria José. “A Revista Ocidental, 1875 – um projecto da Geração de 70” In: Revista da Biblioteca Nacional, 2ª série, vol.7, n.º1, 1992, p.57. 111 Eventualmente, nesta secção, havia também outras chamadas, tais como “Revista Agrícola”, ou introduzia-se variações, como quando Batalha Reis, em sua crônica, pôs como título “Estados Unidos-Europa” (na edição de 28 de Abril de 1875).

60

assinada por P. de Oliveira (pseudônimo de Oliveira Martins), que continha informações sobre as duas nações de língua portuguesa. Uma arrumação geográfica nada acidental e, por isso, também a reter. Uma observação do “Prospecto” da revista permitirá aclarar estas opções (112). A avaliar por esse documento, o propósito que animava a publicação era o de “instruir povos, nivelar os espíritos, dar a todos os homens a partilha da grande herança da civilização” (113), por forma a aumentar o “nível de consciência” dos leitores, objetivo que era mais importante ainda, no entendimento dos editores, no caso dos povos ibéricos. Afinal, “se espanhóis e portugueses formam de há muito duas nações distintas, tiveram todavia sempre, na organização filosófica e sentimental dos seus espíritos, na fisionomia das suas literaturas, no carácter dos seus actos, a afinidade que lhes deu a origem comum de raças e a acção, também igual para ambos os povos, do clima da península ibérica”. Embora organizados em dois Estados distintos, Portugal e Espanha representam uma e mesma “origem comum”. O problema da origem. Assim se pode resumir uma das linhas analíticas que atravessa o “Prospecto”. De fato, numa época de forte adesão ao poder dos conhecimentos científicos modernos e num contexto de importantes transformações de ordem internacional, a definição acerca do papel atribuído tanto a Portugal como a Espanha fazia-se depender de um momento anterior de autodefinição. Definição da identidade nacional – como do perfil da coletividade –, situada ao nível das origens e, portanto, obrigando à discussão sobre o passado e ao estudo da história. Um estudo que se fazia depender de uma constatação radical do atraso dos povos 112

“Prospecto da Revista Ocidental”. Anexo I ao texto de MARINHO, Maria José. “A Revista Ocidental, 1875 – um projecto da Geração de 70” In: Revista da Biblioteca Nacional, 2ª série, vol.7, n.º1, 1992, p.65-67. 113 Nos excertos do prospecto optámos por gravar tal e qual a versão impressa (saliente-se que, na transcrição do mesmo, Maria José Marinho procede zelosamente ao registo das alterações entre a versão manuscrita e a que depois foi impressa). Idem, ibidem, p.65.

61

peninsulares. Este ideário é cifrado na seguinte constatação: “Espanha e Portugal não têm, até hoje, entrado activamente na renovação filosófica, científica e artística deste século. O grande movimento actual é ao mesmo tempo alemão, francês, inglês italiano se quiserem, mas não é de modo algum espanhol ou português”. Avaliação também estendida aos povos latino-americanos, ex-colónias ibéricas, o que fazia com que, num efeito de duplicação ou de ressonância, o desfasamento dos ibéricos em relação aos saxões fosse igualmente vislumbrado à escala americana: “se olharmos para a América também compreendemos de momento que o progresso científico e industrial é aí mais representado pelas colonizações inglesas do que pelas espanhola e portuguesa” (114). Perante tão vincado entendimento de um mesmo conjunto de povos – ibéricos e neoibéricos – unidos numa mesma situação de atraso e de necessidade de modernização, compreende-se que a escala ibérica comporte a marca de uma negatividade referencial, da qual é oriunda, de igual modo, a escala neoibérica, dado que ambas se achavam comummente envolvidas pelos mesmos problemas. Afinal, “quaisquer que sejam as causas desta incontestável diferença são elas decerto comuns ao quatro povos, quase que diria às quatro raças que acabamos de falar. Iguais em caracteres essenciais da sua originalidade no meio das nações da Europa, também ao mesmo tempo se separam da corrente geral” (115). Daí que os intelectuais que subscreviam o projeto da Revista Ocidental acreditassem na necessidade de “uma unidade superior de carácter e uma atitude idêntica em face do movimento moderno” por parte de “um grupo natural de nações do ocidente da Europa [e dos] povos que foram prolongar na América, decerto modificando-o, o mesmo espírito e a

114 115

Idem, ibidem, p.65. Idem, ibidem.

62

mesma situação” (116). Culturalmente agregar-se: eis a receita para que os povos ibéricos europeus e americanos melhor consigam chegar a equipararse ao nível de modernidade visto nos demais povos europeus. Eis, então o objetivo da Revista: “provocar a reunião dos elementos da nova renascença intelectual da península e a formação das novas escolas espanhola e portuguesa”. Por isso, “deverá a REVISTA, por um lado expor os trabalhos que todos os dias adiantam a renovação dos estudos no mundo civilizado; por outro, definir, nos seus elementos precisos, os caracteres gerais da nossa individualidade e os elementos que tornam natural a autonomia intelectual da Espanha, de Portugal, da América espanhola e do Brasil, e os dos grupos ainda diversos que estes quatro povos encerram decerto” (117). Assim, ao mesmo tempo em que buscavam através da crítica moderna – esse “instrumento delicadíssimo de análise” – mostrar “toda a criação de que andamos alheados, e todos os elementos do que podemos ser no meio dela” (118). Eis o apelo dos editores ao “auxílio dos povos latinos dos dois continentes” (119).

2.1.2.

Idêntica compreensão pode ser também vislumbrada no artigo que

abre as páginas da primeira edição da Revista, um texto publicado em idioma espanhol e intitulado Los Pueblos Peninsulares Y La Civilización Moderna. O seu autor é J.P. de Oliveira Martins(120). Assinalou já Sérgio Campos Matos que este texto introdutório da Revista Ocidental, de autoria de Oliveira Martins, “deve ser entendido como peça fundamental na linha reflexiva que o levaria poucos anos depois a escrever a História da

116

Idem, ibidem, p.66. Idem, ibidem. 118 Idem, ibidem, p.66-67. 119 Idem, ibidem, p.67. 120 Lembre-se que Oliveira Martins tinha passado o período 1871-1874 a viver em Espanha. 117

63

Civilização Ibérica (1879)” (121). De igual modo é possível vislumbrar o tom das demais obras históricas do autor: a História de Portugal, o Brasil e as colónias portuguesas e o Portugal Contemporâneo. Oliveira Martins inicia o texto expondo a mensagem que estava contida no prospecto da Revista. Ressalta ele que “solamente una Revista Occidental, decimos, podrá representar ante Europa, el genio de los pueblos que habitan la península ibérica y los que, hijos suyos, fueron á acampar en la América meridional” (122). Como vimos, a instituição de um espaço de troca e circulação de ideias no âmbito dos “Povos Peninsulares” – a Revista Ocidental –, dá-se com o intuito de marcar diferença em relação à restante Europa, num movimento de diferenciação e de balizamento do estatuto ibérico por contraste com os demais povos europeus. Naturalmente: para o projeto desta revista, como para os autores que o subscrevem, Portugal compreende-se enquanto representante do gênio peninsular. Mas há mais: é que também os povos da América do Sul – excolônias – eram entendidos como “filhos” ibéricos, como representantes, na América, do mesmo “génio peninsular”. Com isto se ensaiava uma linha demarcatória do âmbito cultural luso-brasileiro, definido pela matriz ibérica. No texto de Oliveira Martins ecoa, em boa medida, a célebre conferência Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três séculos, de Antero de Quental, proferida em 27 de maio de 1871, no Casino Lisbonense (123). O que não surpreende, atendendo ao sentido seminal que parece calhar à intervenção anteriana em relação ao “espírito” 121

Conforme MARTINS, J.P. de Oliveira. Portugal e Brasil. Introdução e notas de Sérgio Campos Matos, fixação do texto de Bruno Eiras e Sérgio Campos de Matos. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2005, p.16. 122 MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In: Revista Ocidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15 de Fevereiro, 1975, p.5. 123 QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos: discurso pronunciado na noite de 27 de Maio na sala do Casino Lisbonense / por Anthero de Quental. Porto: Typ. Commercial, 1871.

64

que anima a maior parte dos textos presentes, anos depois, na Revista Ocidental. Tal como no texto de Oliveira Martins, Antero, na sua conferência de 1871, falava para um “nós, espanhóis”, referindo-se a uma plateia de portugueses, em Lisboa. A contextualização precisa destas referências transportar-nos-ia, evidentemente, para longe do nosso objetivo. Mas, independentemente disso, o que aqui não pode deixar de merecer destaque, sobre o texto de Oliveira Martins, é a inclusão dos povos sulamericanos

nesse

mesmo

rol

ibérico,

nessa

mesma

matriz.

O

relacionamento luso-brasileiro, tão claramente expresso na troca de ideias fomentada pela própria Revista Ocidental, não é senão o relacionamento entre povos ibéricos e neoibéricos na América. O âmbito luso-brasileiro seria, assim, um subconjunto. Uma derivação ibérica em solo americano. Mas, afinal, em que consiste o propalado “génio peninsular”? Responde o texto martiniano: “Él íbero desde lo alto de las peñas de Asturias, dice á la invasión árabe: «¡Detente!» y la invasión se detuvo, para no crecer mas. La marea cuyas oleadas llegaron á traspasar los Pirineos, comenzó á descender y cinco siglos de tenaces guerras consiguieron barrer de la península la asiática media luna. Qué sentimiento animada al español en esa verdadera Ilíada, continuación de Troya y de Platea, de Maratón, de Salamina y de las guerras punicas, en esa eterna pelea de Europa contra Asia?” (124). E se acaso constituir, para o leitor, motivo de estranheza a omissão, neste impressivo retrato, da influência árabe na formação dos povos peninsulares (dando por adquirido que o português, inserido que estava no conjunto, ali está contemplado) (125), encarrega-se o autor de 124

MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In Revista Ocidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15 de Fevereiro, 1875, p.6. 125 A influência ou não do moçárabe na formação étnica e/ou cultural do povo português acendeu uma interessante polêmica entre duas facções, a saber: Alexandre Herculano, Antero de Quental e Oliveira Martins, entre outros, que defendiam a inexistência de influência árabe na cultura portuguesa, e Teófilo Braga e seus seguidores que defendiam a originalidade da cultura portuguesa justamente pela importância da influência moçárabe na sua formação. Nas secções

65

esclarecer o seguinte: “cruzábanse las razas, tolerábanse los cultos, trocábanse las costumbres y el lenguaje y las ideas; mas ¿desaparecía acaso por eso el sentimiento fatal que tornaba incompatible al español y al árabe sobre el suelo de la península? No, nunca”(126). Por outro lado, semelhante leitura da realidade ibérica via-se obrigada a colocar o problema da “decadência”. Neste ponto, o texto de 1875 insinua a influência de certo naturalismo organicista (127) ao manifestar alguns aspectos nucleares que se reconhecem ao decadentismo martiniano – tipificado pela expressão consagrada na sua História de Portugal, “Os Lusíadas são um epitáfio”. Para ele, o momento cimeiro da ascensão evolutiva de Portugal encerra já, paradoxalmente, o início da decadência. Tal como na natureza, também a vida das nações é marcada pelo ciclo nascimento, crescimento, maturidade, decadência e morte. Ora, sendo certo que Oliveira Martins entende o Brasil como o prolongamento de Portugal na América, não custa prever a sua eventual aceitação perante o fato de que a mesma essência que na Europa fenece possa vir a florescer na América. Como quer que seja, de vital importância se revelava para o autor publicitar a sua reflexão acerca das características e da validade do conhecimento histórico para efeitos de interpretações deste teor. Assim, o vemos recordar que foi “la necesidad de acción” a causa principal dos descobrimentos ibéricos, na medida em que “el duro y fuerte brazo del soldado peninsular, el espíritu ardoroso del creyente, exigían combates y propagandas: combatir con los moros ó con los mares ¿qué seguintes, analisaremos mais detalhadamente a mencionada polêmica e suas influências na formação das imagens identificatórias da cultura portuguesa (em sua relação com o Brasil, especificamente). 126 MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”. In Revista Ocidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15 de Fevereiro, 1975, p.7. 127 A esse respeito consultar PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal: Filosofia. História. Engenharia Social (1865-1914). Coimbra: Editora Almedina, 2001, sobretudo o capítulo 3 “A lógica martiniana da história”, na parte 1, sobre “os traços naturalistas da filosofia da história martiniana”, pp.231-235.

66

importa? Es combatir siempre, es vivir". Por isso lhe é possível sustentar, em síntese, que “históricamente, la causa determinante de los descubrimientos está en el desarrollo dada á la física y á la geografía por un lado y por otro en las tradiciones que los viajes de los cruzados habían esparcido por toda Europa” (128). O recurso às analogias com a antiguidade vem à tona quando descreve os Descobrimentos como “una epopeya, mas grande que la de Troya, mayor que la romana”. As analogias com o passado cimentam a importância dos estudos históricos para o campo das ideias oitocentistas. Afinal, “la historia es la base de la epopeya del siglo XIX, que ninguna pluma puede, ni podrá acaso escribir”. Mediante a evocação deste ou de outros aspectos da história portuguesa, resulta inegável o peso que as “lições da história” têm para o argumento de Oliveira Martins (129). Inevitável se tornava, desse modo, articular o conhecimento da História (para ele com H maiúsculo) com as demais Ciências Sociais, tão em voga nos círculos cientistas do conhecimento: “la historia es para las ciencias sociales lo que las ciencias elementales físico-químicas son para las de la vida; instrumento de deducción”, pois, “la razón concluye, la historia analiza”(130). Como bem se aceitará, não pode inferir-se deste reconhecimento da importância do lugar da História um correlato desprezo pela validade das então recentes Ciências Sociais. Na realidade, “el procedimiento histórico deductivo que sirve para comprender los hechos y descifrar los problemas de la vida europea no puede aplicarse á países como las jóvenes naciones americanas, donde falta los anales y los 128

Idem, ibidem, p.13. Ver a esse respeito CATROGA, Fernando. “O magistério da História e a Exemplaridade do ‘Grande Homem’. A biografia em Oliveira Martins. In: PÉREZ JIMÉNEZ, A. RIBEIRO FERREIRA, J. & FIALHO, Maria do Céu (editores). O retrato literário e a biografia como estratégia de teorização política. Coimbra-Málaga, 2004, pp.243-288. 130 MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In Revista Ocidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15 de Fevereiro, 1975, p.14. 129

67

precedentes, los puntos de contacto y de comparación con las viejas naciones de Europa”. Entende-se a questão. Numa compreensão cara à matriz hegeliana de entendimento da História, Oliveira Martins acredita que, antes dos Descobrimentos, os povos “selvagens” da América estavam ainda “fora da História”(131). Assim, por serem escassos os materiais relativos ao passado das sociedades americanas, mais adequados ao seu entendimento estavam os preceitos das Ciências Sociais. Em rigor, a tarefa parecia ser a de compatibilizar, no âmbito de uma teoria do conhecimento, aquelas áreas do saber: disso dependia tanto a relação entre a História e as Ciências Sociais, como, em simbiose, a relação entre o Velho e o Novo Mundo, ou ainda – em outro modo de o dizer – entre a escala ibérica e a escala neoibérica. Porque, dado que “la suma de observaciones científicas, etnológicas, climatológicas y sociales son por ventura suficientes, si nó para trazar una historia futura, á lo menos para determinar las líneas generales que la vida de un pueblo ha de seguir, dadas las condiciones conocidas, á pesar de que el sistema de su reunión sea nuevo enteramente, [então] tal es nuestra situación ante las naciones sud-americanas, las naciones neo-peninsulares” (132).

2.1.3.

Por consequência, o autor lê as diferenças verificadas, na

América, entre os povos sul-americanos de língua espanhola e o Brasil, em termos de uma transferência dos mesmos elementos que, no contexto peninsular, distinguem Portugal da restante Espanha. Para Oliveira Martins, na história da América, a organização das diferentes repúblicas de língua castelhana em contraposição à existência de uma grande monarquia brasileira, é compreendida, de modo bastante 131 Conforme a obra de HEGEL, Georg Wilhelm. A Razão na História: introdução a uma Filosofia da História Universal. Lisboa: Edições 70, 1995. 132 MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In Revista Ocidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15 de Fevereiro, 1975, p.14-15. Grifo nosso.

68

naturalístico, quase como o germinar das diferenças entre as distintas heranças ibéricas, a castelhana e a portuguesa. A analogia é muito clara, quando ele afirma que “esta diferencia en los caracteres originarios de la colonización, llena de consecuencias importantes, produce un resultado que en lo futuro se torna por si solo en causa de la profunda diversidad de fisonomía entre los sistemas de colonias en la América del sur”. Enquanto a colonização castelhana foi feita por uma “turba de aventureros, una democracia de emigrantes, que cambia un suelo por otro, las llanuras de la Mancha por las llanuras de las Pampas”, já, por seu turno, “ el hidalgo que partía de Lisboa, llevando consigo familia, criados, trabajadores, decidido á fijarse y á tomar posesión de la vasta región que le fuera dada, no contando con volver mas á Europa, iba á asentar su ciudad en el punto mas céntrico de la región que poseía”(133). O Brasil foi povoado neste parâmetro, conforme seu relato, num quadro de enormes distâncias internas. “La imposibilidad económica de ligar entre si los centros dispersos de población y civilización, la dificultad y muchas veces la imposibilidad, de los viajes”, criou o primeiro “vicio orgánico del sistema de colonización portuguesa en el Brasil”, que é o facto de que apenas se “conocen entre si las ciudades del litoral”. Mas ainda um maior vício contaminou o sistema colonizador lusitano: o “espíritu aristocrático de los portugueses, repugnando el cruzamiento, fue causa de un hecho que hoy pesa todavía como plomo sobre el Brasil: la esclavitud”. Considera, entretanto, uma perda o não aproveitamento do índio no sistema colonizador. Isto porque “la sangre del indio aclimatado preservaría al europeo: el europeo infiltraría en el indio la exuberancia de fuerza, de arrojo, de audacia, de educación. No sucedió así y por ello fue preciso recurrir al exterminio de otra raza. Los cafres inundaron el Brasil: vinieron 133

MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In Revista Ocidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15 de Fevereiro, 1975, p.15-16.

69

brazos, mas vino con ello el pecado de que se había lavado la Europa, vino el amor á indolencia, vino la crueldad y la desmoralización, que infaliblemente producen los crímenes contra lo justo”(134). Assim, “de este concurso de elementos salió de una parte en el Brasil un fac-símile hasta cierto punto artificial, de las naciones de Europa”, pois “las instituciones y las ideas muévense y viven en las ciudades que bordean la costa á imitación del mundo antiguo”. Para além dessa aparência, “el vicio primitivo y casi orgánico de la colonización” somado à “falta de raza y á la incomunicación”, fazem do Brasil “una vasta colonia alimentada por la emigración”. Daí seu questionamento: “¿como se ha de transformar en una nación, en el sentido histórico de la palabra?” (135). E se, frente a essa questão, que “los datos actuales no permiten resolver suficientemente”, Oliveira Martins considera que o Brasil, apesar de lhe faltar ainda um caráter nacional (e mesmo reconhecendo que não lhe faltava carácter político), não fica diminuído frente aos demais países sulamericanos. Isto porque o Brasil “tiene de nuestra sangre portuguesa la facultad de asimilación, que, si desvanece los caracteres afirmativos de nacionalidad, nos hace eminentemente aptos para recibir y comunicar todas las impresiones de la corriente eléctrica de la civilización”. Assim sendo, o papel do brasileiro é o de representar as ideias europeias em solo americano, pois “su constitución, su código, sus instituciones y sus costumbres, salvo le esclavitud en vías de abolirse, hacen del imperio americano el representante de las ideas europeas en el nuevo mundo” (136). Claro estava que os maiores méritos reconhecidos ao Brasil e à sua simbologia íam mais além. Apontavam para o quadro de uma inevitável e 134

Idem, ibidem, p.16. MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In Revista Ocidental, Direcção de Antero de Quental e Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15 de Fevereiro, 1975, p.16-17. 136 Idem, ibidem, p.17. Grifos nossos. 135

70

desejável aliança política que deveria unir os países de língua espanhola e portuguesa, fossem os da Península Ibérica, fossem os da América, como representantes que eram da mesma raça (137). Tratava-se, é certo, de uma resposta à tendencial supremacia anglo-saxónica e liberal em escala mundial. Efetivamente, segundo ele, os tempos de liberalismo político, de utilitarismo econômico, de livre concorrência, “destruyeron ya las distinciones de posición relativa entre las colonias y las madres patrias”. Assim, é importante que “unas y otras, y cada cual dentro de las condiciones especiales de su economía, se encuentren libremente unidas en el desempleo de la misión que les atribuye el lugar que ocupan entre los grandes sistemas de pueblos de origen aryano” (138).O que estava em jogo, afinal, era simples: o fortalecimento político da escala ibérica de referência, ideal sustentado no reconhecimento dos vínculos naturais que, sob a alçada da História, se haviam plasmado no seio da família hispânica. É essa a perspectiva em que, anos mais tarde, em 1892, se coloca Oliveira Martins, em texto intitulado “A Liga Ibérica”, no qual insiste, uma vez mais, no tema da relação entre os países ibéricos e seus “filhos”, os países “neo-ibéricos”: “E desse império imenso, de há três séculos, que resta? Retalhos dispersos, e um enxame de nações filhas das duas nações peninsulares. Puderam os erros da política e a sorte fatal dos povos, desconjurar o que fora unido, espalhando sobre o mapa do mundo os membros dispersos da família hispânica. Mas não puderam apagar a memória da máxima empresa da História Universal, porque foi dela que o mundo ganhou o conhecimento da própria terra, na sua redondeza. Nem

137 Nesse sentido, vemo-lo contrapor a escala anglo-saxónica à ibero-americana, dizendo que “el Brasil, las repúblicas y todos nosotros, hispano-portugueses, podemos oponer al frío imperialismo sajón, la pura y positiva idea de la conveniencia que es para él la base única de las leyes. La idea principal que mantenemos, del Derecho. La historia la apreciará en mucho mas que todos los millares de millas de caminos de hierro, que todos los millones de caballos de vapor”. Idem, ibidem, p.18. 138 Idem, ibidem, p.20.

71

podem também destruir os vínculos naturais da filiação, no sangue, na língua, na fé…” (139). Assim, no texto de 1892, Oliveira Martins revela ter “a ambição, porventura quimérica” de estabelecer uma “liga de todos os povos que falam castelhano e português: a liga ibérica, ou hispânica, de todos os descendentes das nossas duas nações. Portugal com suas colónias, ainda espalhadas pela África e pela Ásia até à China; Portugal, com o Brasil que é seu filho, ocupa mais de quatro milhões de milhas quadradas de terra, sobre que vivem trinta e dois milhões de homens, falando a língua de Camões. A Espanha, com as suas colónias; a Espanha com o feixe de nações americanas, o México, o Peru, o Chile, Nicarágua, Venezuela, Honduras, a Bolívia e a Colômbia, a Argentina, a Guatemala e o Equador, Salvador, Santo-Domingo, o Uruguai e o Paraguai, ocupam nove milhões quase, de milhas quadradas sobre que vivem mais de sessenta milhões de homens, falando a língua de Calderón”(140). Vemo-lo, afirmar que seria um ato glorioso para todos estes povos, agora autônomos politicamente, “reatar a tradição, buscar energias, pisando como Anteu o solo firme da História, e inspirarem-se na política perspicaz dos monarcas, quando era o pensamento dos reis quem determinava os destinos dos povos” (141). A história é o “solo firme” a ser pisado tanto pelos povos ibéricos como pelos “neo-ibéricos”, seus “filhos”. Esta seria, para o autor da História da Civilização Ibérica, a estratégia adequada a seguir num contexto internacional marcado pela expansão dos signos culturais anglófonos e pelo perigo de que “em breve se tenha acabado de atrofiar, saxanizado, o que resta do império hispânico”. Faltava, contudo, 139 “A Liga Ibérica”, La Ilustración Española e Americana, 1892. In: MARTINS, J. P. de Oliveira Política e História. Volume II (1884 – 1893). Lisboa: Guimarães & Cia Editores, 1957, p.301. Grifos nossos. 140 “A Liga Ibérica”, La Ilustración Española e Americana, 1892. In: MARTINS, J. P. de Oliveira Política e História. Volume II (1884 – 1893). Lisboa: Guimarães & Cia Editores, 1957, p.301-302. Grifos nossos. 141 Idem, ibidem, p.302. Grifos nossos.

72

“insuflar-lhe alento para que outra vez se erga à vida activa, a espantar de novo a História com a grandeza das suas façanhas” (142). No âmbito deste exercício analítico reativo à expansão saxónica do final do século XIX, o culto dos laços transatlânticos permitiria prolongar no tempo, em outro ambiente, uma grandeza que só seria efetiva se bafejasse tanto os seus originários cultores, quanto os povos que, filialmente, deles haviam derivado.

2.2. O ponto de vista da convergência

Esta interpretação derivativa do relacionamento luso-brasileiro, contudo, não esgotava o sentido das diversas aproximações ao assunto. Diferentemente se posicionou, por exemplo, todo um viés analítico estruturado sobre a ideia de uma associação de interesses e projetos comuns

envolvendo

Brasil

e

Portugal,

países

e

culturas

cujo

relacionamento se deveria interpretar, primacialmente, de acordo com este viés crítico, sob a ótica da convergência. A fonte principal que nos servirá agora de referência será o programa geral da Revista de Estudos Livres. Publicada em doze fascículos mensais, todos depois agrupados num volume anual de publicações que, em sua maioria, tinham estreita ligação à divulgação dos princípios da ciência positiva, a revista tinha, inicialmente, dupla direção literário-científica: uma em Portugal e outra no Brasil. A direção portuguesa cabia a Teófilo Braga e Teixeira Bastos. A brasileira era formada por Américo Brasiliense, Carlos von Koseritz e Silvio Romero.

142

Idem, ibidem, p.303.

73

2.2.1.

Convirá atentar no que diz o Programa da Revista de Estudos

Livres, que abre a primeira edição anual (1883-1884) desta publicação e que foi escrito por Teófilo Braga: “Lançando à publicidade a REVISTA DE ESTUDOS LIVRES, não poderíamos expor melhor o pensamento que a motiva, nem o intuito que nos estimula senão apresentando em duas palavras o que Augusto Comte entendia por uma Revista moderna. O eminente transformador da Filosofia do século XIX, projectava uma Revista ocidental como um órgão de aplicação contínua da sua doutrina ao curso dos acontecimentos humanos, realizados ou previstos, para a apreciação sistemática do movimento intelectual e social nas cinco grandes populações avançadas, francesa, italiana, espanhola, germânica e britânica. […] A REVISTA DE ESTUDOS LIVRES visa à aplicação dos eternos princípios da liberdade intelectual, moral e política aos acontecimentos actuais, para os julgar e poder deduzir deles as condições do progresso. Todas as investigações nos interessam, com tanto que elas conduzam para um ponto de vista social. Na crise de transformação mental e política em que vão entrando as duas nacionalidades portuguesa e brasileira, filhas da mesma tradição histórica, nas quais o regime católico-monárquico subsiste pela inércia, mas sem apoio nas consciências, é imensamente necessário um órgão crítico e especulativo que agremiasse os dois povos para a inteligência da sua transição inevitável. A REVISTA DE ESTUDOS LIVRES tornar-se-á benemérita no dia em que inicie esta convergência necessária, até hoje firmada apenas pelo nexo económico e pela concorrência mercantil, formas espontâneas da síntese activa. Entre Portugal e Brasil existem as bases profundas de uma síntese afectiva, como se verificam esplendidamente nas festas do Centenário de Camões, porém as publicações intituladas luso-brasileiras, não podendo elevar-se à compreensão da síntese especulativa, ou acordo mental, caíram diante da chateza da exploração do assinante, obstando pelo descrédito à influência de um pensamento tão fecundo. A Revista de Estudos Livres procura reatar a aliança mental luso-brasileira; eis o seu fim prático resultante do actual momento histórico”(143).

No programa da revista, acima transcrito parcialmente, há, na perspectiva da nossa investigação, vários elementos importantes a reter: i) o lugar ordenador e polarizador de uma base de pensamento positivista, enquanto responsável pelas balizas doutrinárias da revista; ii) o apelo a um movimento de “convergência” luso-brasileira, condição necessária num contexto de crise e transição que enfrentam as duas nacionalidades (a portuguesa e a brasileira); iii) o reconhecimento de uma “síntese afectiva” entre essas nacionalidades, patenteada nas comemorações do Centenário de 143 Revista de Estudos Livres. Programa. Directores literário-científicos: em Portugal Doutor Teófilo Braga e Teixeira Bastos; no Brasil Doutores Américo Brasiliense, Carlos Koseritz e Sílvio Romero. 1883-1884, p.1-3. Acervo B.G.U.C. Grifos nossos.

74

Camões mas não dispensando uma “síntese especulativa”; e, por fim, iv) o propósito de “reatar a aliança mental luso-brasileira”. Como se percebe, a Revista de Estudos Livres institui uma escala discursiva luso-brasileira para a divulgação dos conhecimentos modernos da ciência positiva. Mas – pergunta-se – qual foi, no contexto brasileiro, a repercussão desta proposta de Teófilo Braga que falava em “reatar a aliança mental luso-brasileira”? É verdade que estão, ao lado de Teixeira Bastos, três brasileiros a subscrever o primeiro volume da Revista: Américo Brasiliense, Silvio Romero e Karl von Koseritz. Mas seria esse fato o garantidor de um inquestionável apoio à iniciativa?

2.2.2.

Não é o que indicam as fontes consultadas. Veja-se, por exemplo, o

tom da resposta que Araripe Júnior faz estampar em um texto publicado na revista brasileira Lucros e Perdas, logo em Julho de 1883, por conseguinte bem em cima do acontecimento. Nessa crônica, Tristão de Alencar Araripe Júnior informa os leitores brasileiros da seguinte forma: “Aparece agora em Portugal uma publicação com o título de Revista de Estudos Livres.” Em seguida, transcreve parte do programa da Revista, ressaltando um trecho que contém a proposta, escrita por Teófilo Braga, de «reatar a aliança mental luso-brasileira». Logo após, manifesta-se: “Lido e relido este período, eis-me perplexo. Nunca um filósofo arriscou um plano mais inane, nem isso que se chama espírito de observação se prestou a mais inconsistente e irrisória declinação”. Diz ainda o crítico cearense que “por honra, entretanto, ao ilustre historiador, deixo de atribuir à má parte a temerária proposta, para considerá-la somente o produto da mais completa ignorância dos elementos que constituem a nação brasileira” (144). 144 ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Lucros e Perdas, Direcção de Araripe Júnior e Sílvio Romero. Rio de Janeiro, Ano I, n.º2, julho de 1883. In: Obra Crítica de Araripe Júnior. Volume I (1868-1887). Direcção de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958, p.351.

75

A drástica negativa de Araripe Júnior tem por pano de fundo, em boa dose, as resistências teóricas em torno das noções de “processo evolutivo” no âmbito das nações e de “transmissão” no caso das relações entre ex-metrópoles e ex-colónias: “não basta saber que raças compõem um povo para determinar-lhe a fórmula”, dirá Araripe Júnior. É preciso “ver esses mesmos elementos – vivos, em ação, em movimento. Não basta conhecer a anatomia do corpo humano para dizer-se que se sabe o homem; é indispensável acompanhar experimentalmente o seu desenvolvimento fisiológico” (145). Segundo ele, “não obstante a analogia tirada das colônias inglesas e outras, – o exemplo histórico teria sido suficiente para afastá-lo dessa ideia grotesca de uma impossível refusão” (146). A proposta de “aliança mental” surge aos olhos de Araripe como uma tentativa de “refusão”. Assim sendo, o viés nacionalista do autor só podia encaminhá-lo para uma óbvia negação. Até porque, por outro lado, a forte influência do naturalismo em sua compreensão da cultura brasileira e da relação que esta deveria ter com a portuguesa solidificava a sua recusa: “Acordo mental! Mas seria necessário que nós, semente desprendida daquela árvore milenária, reproduzida e transformada, frutificando em novo solo, em regiões completamente diversas, produzindo garfos estranhíssimos, recebendo enxertos fortíssimos; que nós fôssemos agora mentir a todas as leis sociológicas, aniquilar os impulsionamentos heróicos, que tendem a afastar-nos, dia a dia, do tronco de onde saímos, reagindo contra o hausto febricitante que nos impele à assimilação das qualidades daquelas raças progressivas, possuidoras dos elementos de que mais carecemos para sair dos in pace político. Não! Mil vezes não!”(147). O afastamento entre Brasil e Portugal respeita, na compreensão do autor, a ordem das leis sociológicas, do desenvolvimento natural dos novos 145

Idem, ibidem, p.351. Idem, ibidem, p.352. 147 Idem, ibidem, p.352. Grifos nossos. 146

76

organismos, das novas sociedades. Qualquer proposta em contrário seria antinatural, sendo de nenhum proveito para o Brasil. Face aos “tempos de transformação” de que fala Teófilo Braga no programa da Revista de Estudos Livres, Araripe Júnior, ao contrário, acredita que quanto mais afastado

o

Brasil

estiver

de

Portugal,

tanto

melhor

será

seu

desenvolvimento natural. Para deixar bem clara a sua posição, Araripe, por ocasião da citada resposta, expõe, em quatro tópicos, a estrutura de seu pensamento sobre as relações entre as culturas portuguesa e brasileira, com “toda a seriedade que merece” o assunto. A citação é um pouco longa, mas justifica-se que lhe façamos um acompanhamento comentado, visto o modo esclarecedor com que denuncia a compreensão do autor sobre o relacionamento cultural entre Brasil e Portugal: i) “É natural que o Sr. Teófilo Braga e os seus colegas da Revista façam a proposta. O sentimento é profundamente cosmopolita; mas nem é português, nem vem com o verdadeiro rótulo. Neste ponto, Camilo Castelo Branco procede com mais lógica” Segundo o autor, a proposta de Braga é oriunda de um sentimento de insuficiência da pátria, sentimento que, aliás, perpassa, na compreensão de Araripe, toda sua geração. Diz ele que “quer confessem, quer não, a pátria lhes é hoje insuficiente. Esse grupo de moços, alentados por sentimentos que nada mais têm de comum com a contextura moral de sua terra, em última análise, experimentam uma revolta contra o próprio meio em que vivem; não acham uma base sólida que suporte reorganização, nem matéria plástica que se preste aos novos moldes por impor. Daí um inconvenientíssimo movimento através do Atlântico, procurando um público a quem se afeiçoem, com que possam contar, em quem influam”. Na verdade, o autor enxerga no projeto da Revista de

77

Estudos Livres uma tentativa de “recolonização psíquica”, que se trata de “um notável erro, senão uma imperdoável pretensão” (148). ii) Numa postura claramente nacionalista, afirma: “Como influência mental, a lição portuguesa é perturbadora da nossa evolução natural”. Segundo ele a cultura brasileira é “uma amálgama”. Por isso, “querer guardar puros os caracteres desta civilização, tão puros como os imaginou Comte, é ir de encontro à maior força reconhecida em sociologia, que é a resultante do imprevisto da fusão das raças e da imersão desse precipitado em regiões cujos recursos sejam pasmosos”. Crítico do positivismo, afirma que “todos sabem que nenhuma doutrina calhou tanto em Portugal como o comtismo, e há de ser aceita por todas as nações decrépitas, incapazes de se renovarem por si mesmas, sem influência da força estranha”. Nesse sentido, para o Brasil, seria negativa a influência da cultura portuguesa nos finais do século XIX, pois estaria “injetando em nosso funcionamento elementos já visivelmente contrários à sua marcha natural”. Para ele, “toda a doutrina caduca é enormemente anárquica. E é essa anarquia que, inconscientemente, o Sr. Teófilo Braga e seus colegas tentam inocular em nosso organismo”. E continua: iii) “a tradição portuguesa não nos deve interessar tanto como aos que dela vivem unicamente. Se em Garrett (Camões) e Alexandre Herculano (Eurico) tece ela um certo sainete pitoresco, isto já constitui um fato passado” (149). Ora, segundo ele, “preocupa-se com o passado quem não tem futuro. Só os velhos aprazem-se em avivar a memória dos tempos idos. Os moços revolvem as cinzas de onde sairão enquanto os elementos necessários à coordenação do presente, mas com os olhos sempre fitos no horizonte luminoso que os atrai”. Daí que considere improdutiva a 148

Idem, ibidem, p.352. ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Lucros e Perdas, Direcção de Araripe Júnior e Sílvio Romero. Rio de Janeiro, Ano I, n.º2, julho de 1883. In: Obra Crítica de Araripe Júnior. Volume I (1868-1887). Direcção de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958, p.353. 149

78

reaproximação das esferas culturais brasileiras com Portugal. Afinal, pergunta: “o que nos adiantaria compartilharmos dessa preocupação constante das antigas navegações? Mergulharmo-nos no subjectivismo atroz, que faz padecer os moços a quem me refiro? Nada”. E, com efeito, para o autor de Gregório de Matos, a comemoração do Centenário de Camões, ao contrário do que afirmara Teófilo, acabara não por aproximar as duas nações, mas, ao contrário, “erguendo o orgulho colonial, amesquinhou o espírito nacional”. iv) Acresce, por fim, que, para Araripe, “a questão econômica” é, de todas a “mais grave”. Nesse quadro, considera que se a solidariedade do português “cresce dia a dia”, o brasileiro, por sua vez, “se sente mais distanciado, menos português”. Haveria, assim, uma atmosfera de “hipócritas, brasileiros e portugueses, que vivem a abraçar-se numa fingida sinceridade que tem sua base principal na praça do comércio”. E, em boa inspiração naturalista, exara que “só há um meio de obviar o choque de duas massas que se extremam: é abater uma e obrigá-la a absorver-se na outra, subordinando-a a uma nova coordenação de moléculas”. Termina rogando que “sejam estas frases recebidas como reagente posto por mão cordata e sincera. O que convém, presentemente, é que não pensem mais em educar canários no reino para vierem cantar no império” (150). Após a exposição pormenorizada dos argumentos de Araripe Júnior, contrários à proposta de “aliança mental” luso-brasileira, cabe perguntar se houve alguma repercussão, em Portugal, desse virulento discurso surgido nas páginas da revista Lucros e Perdas. É o que logo se vê.

150 Lucros e Perdas, Direcção de Araripe Júnior e Sílvio Romero. Rio de Janeiro, Ano I, n.º2, julho de 1883. In: Obra Crítica de Araripe Júnior. Volume I (1868-1887). Direcção de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958, p.354.

79

2.2.3. A Revista de Estudos Livres também continha uma seção, chamada “Bibliografia”, de recepções críticas de obras relevantes na tarefa de divulgação dos princípios da ciência positiva. É neste espaço que Teófilo Braga responde a Araripe. Através de uma recepção crítica da publicação da revista Lucros e Perdas, o autor dos Elementos da nacionalidade portuguesa faz uma série de apreciações sobre o tom negativo das opiniões do cearense a propósito da “aliança mental” tal como esta havia sido avançada nas páginas da Revista de Estudos Livres. Convém lembrar, entretanto, que o projeto da citada revista brasileira Lucros e Perdas era assinado não apenas por Araripe Júnior, mas também por Silvio Romero, o qual, aliás, também subscrevia – como diretor “literário-científico” brasileiro – a Revista de Estudos Livres. Romero estava, portanto, em ambos os projetos editoriais. Esta circunstância explica, provavelmente, a abordagem inicial de Teófilo, na altura de referir o texto de Araripe (151): “Conhecemos os redactores desta revista literária e o tipo da sua publicação, um pouco moldada pelas Farpas do nosso eminente crítico Ramalho Ortigão”. Em seguida, faz uma apreciação bastante positiva de Silvio Romero, com quem, pouco depois, entraria em intensa polémica (152), dele dizendo tratar-se de “um professor distinto e um audacioso reorganizador da literatura brasileira, investigando as tradições populares e procurando nelas o tema para a criação de uma poesia e arte nacional” (153). Quanto a Araripe, dele diz Teófilo que “aparece como um esmerado investigador das riquezas tradicionais da província do Ceará, devendo-se-lhe curiosas indicações sobre o ciclo dos Romances de Vaqueiros com que contribuiu para a colecção dos Contos 151 Merece destaque o fato de Silvio Romero não mais aparecer, no segundo ano da Revista de Estudos Livres, como diretor “literário-científico”. 152 Na seção seguinte analisaremos os detalhes que envolveram Teófilo Braga e Silvio Romero em conhecida polêmica. 153 BRAGA, Teófilo. Secção “Bibliografia” sobre a revista Lucros e Perdas – crônica mensal dos acontecimentos, por Silvio Romero e Araripe Júnior. Rio de Janeiro, 1883, 1º fascículo, in Revista de Estudos Livres, ano I, 1883-1884, p.333-336.

80

Populares do Brasil”. E afirma, depois, em tom de lamento: “Quando pensávamos que os dois espíritos procediam de acordo mental na sua crítica, logo no primeiro número dos Lucros e Perdas rebenta a dissidência nas suas opiniões, separam-se não por incompatibilidade de humor, mas por falta de unanimidade de princípios. Involuntariamente a nossa Revista de Estudos Livres foi a causa da dissidência” (154). E prossegue assinalando que Araripe Júnior teria feito “tremendas acusações” que se podem refutar, posto que “são emoções de um inconsciente chauvinismo parodiado de velhas coisas que tiveram já o seu tempo”. De resto, a “aversão das colónias americanas contra a Inglaterra, motivada por causas históricas, tem sido por vezes parodiada no Brasil sem outro fundamento mais de que uma impressão individual que desabafa em jornais como a Tribuna (155) ou qualquer outra folha anónima” (156). O “facto positivo é que o Brasil, pela sua grandeza, precisa do concurso de todas as actividades, e que todo aquele que perturba por qualquer forma a convergência desse esforço civilizador, assoalhando antipatias de raça , quando a mestiçagem acabou com elas, e ódios históricos sem realidade nos factos, pratica um acto estéril, impotente, mas que nem por isso deixa de ser condenável” (157). Dirá, ainda, forçando a nota quanto ao caráter cientificamente estribado dos seus argumentos, que “aplicar ao Brasil esta aversão ao

154 A informação de que a Revista de Estudos Livres teria causado a “dissidência” entre Silvio Romero e Araripe merece ser melhor averiguada. De qualquer forma, há indícios para crê-la verdadeira. Conforme a nota dos organizadores da publicação das Obras críticas de Araripe Júnior, “Araripe e Sílvio se desentenderam a meio caminho, deixando o primeiro de prosseguir na parceria”. “Nota dos organizadores”. In: ARARIPE JUNIOR, Tristão de Alencar, Lucros e Perdas. In: Obra Crítica de Araripe Júnior. Volume I (1868-1887). Direcção de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958, p.529. 155 Provavelmente Teófilo se refere a Tribuna do Pará, jornal, aliás, também mencionado pelas crônicas de Oliveira Martins na Revista Ocidental, em 1875, conforme vimos. 156 BRAGA, Teófilo. Secção “Bibliografia” sobre a revista Lucros e Perdas – crônica mensal dos acontecimentos, por Silvio Romero e Araripe Júnior. Rio de Janeiro, 1883, 1º fascículo, in Revista de Estudos Livres, ano I, 1883-1884, p.334. 157 Idem, ibidem.

81

elemento português é uma leviandade. Se por ventura na população brasileira se eliminasse de um certo tempo em diante o elemento português, a população com o decurso do tempo regressava ao elemento selvagem. É isto o que se demonstra pela antropologia. De todos os povos da Europa só o português, o italiano e o espanhol é que podem adaptar-se ao clima da América meridional; o espanhol tem as suas próprias colónias que o atraem, o italiano que emigra não é sedentário, só o português é que se dirige para o Brasil como uma continuação da sua pátria” (158). Bom seria, portanto, que se reconhecesse que o imigrante português, pela sua atividade no Brasil “funda os grandes instrumentos de produção”, só trazendo para Portugal “o dinheiro com que nos afasta de um sério regime económico”, num cenário em que “no Brasil ficam montados os aparelhos que elaboram a riqueza”, indo para Portugal o dinheiro “com que o nosso organismo económico se sustenta depauperando-se”. Daí que fale da “mutualidade de interesses” que é a base de uma “concórdia espontânea entre brasileiros e colonos portugueses”, referindo, ainda, a existência de uma “harmonia de sentimentos” derivada dos “nossos antecedentes históricos, da mesma civilização de que ambos os povos são os actuais representantes, tão sublimemente expressa no Centenário de Camões, mau grado os despeitos isolados que envolveram a independência política com a unificação moral de uma mesma tradição” (159). É, assim, taxativo: “só falta realizar o acordo mental” através da formação de “uma clara compreensão histórica e social dos dois povos, e procurando as bases de unanimidade dos espíritos em uma doutrina deduzida da realidade objectiva dos factos”. A doutrina positivista teria, para Braga, a possibilidade de, sobre fatos da “realidade”, instituir uma convergência da situação histórica dos dois países, posto que eles “nada 158 159

Idem, ibidem, p.334. Idem, ibidem, p.334-335.

82

têm a esperar já da organização católica, que hoje só se impõe pela sua pela sua perturbação da esfera civil e pela dissolução da vida doméstica”; ou seja, a “filosofia positiva é a única doutrina que considera os factos da vida geral das sociedades sob o ponto de vista objectivo da invariabilidade das leis naturais, e que em vez de utopias subjectivas funda as suas observações nos antecedentes históricos” (160). A diferença de opiniões entre Teófilo e Araripe estava, em suma, ancorada numa vincada desinteligência em matéria de “leis naturais” da “evolução dos povos”. Para Araripe, lembre-se, a evolução natural do povo brasileiro passava pelo seu afastamento de Portugal. Para Teófilo, ao contrário, uma aliança luso-brasileira estaria inscrita na ordem das coisas e fortaleceria ambos os países. E, como ambos os países estavam, segundo a compreensão de Braga, em acentuado “período de transição”, importava, portanto, “acelerar a circulação de ideias” entre eles (161). Esse intercâmbio seria uma evidência a mais no sentido de uma associação de interesses e trajetos entre Portugal e Brasil. Ao mesmo tempo daria condições para o mútuo benefício que, sob um ponto de vista objetivo, deveria resultar da sua tendencial convergência.

2.3 Os cultores do distanciamento

Acesa a reação de Araripe Júnior à ideia de uma “aliança mental” fraternalmente esteada na filosofia positiva já é um bom indicador das diversas nuances que se iam colocando à convergência entre as culturas portuguesa e brasileira. Mesmo nem sempre assumindo foros de oposição declarada

ao

espírito

“associativo”,

forjavam-se

outras

linhas

interpretativas na hora de “acertar contas” com o passado colonial. Uma 160 161

Idem, ibidem, p.335. Idem, ibidem.

83

delas era a que designamos por ponto de vista do distanciamento. Seu principal expoente será, em nosso entender, Sílvio Romero. Há boas razões para isso. Primeiro, porque Romero tanto fez parte do elenco da Revista de Estudos Livres – proponente de uma “aliança mental” luso-brasileira – como integrava a redação da revista brasileira Lucros e Perdas, em cujas páginas, como vimos, Araripe Júnior negava fortemente qualquer tipo de aproximação a Portugal. Depois, porque o cariz nacionalista de seu projeto intelectual, ao conduzi-lo à busca da originalidade do tipo brasileiro, impunha – necessariamente – uma permanente revisão das relações com Portugal. Um bom posto de observação do seu pensamento é a Revista Brasileira, periódico que acolheu os primeiros textos romerianos publicados no Rio de Janeiro, em 1879. Concentramos nossa análise, exclusivamente, na chamada “fase II” dessa revista – fase em que a maior parte das matérias abordavam textos de crítica cultural, literatura, análises e recepções críticas de autores consagrados (162). É aí que se vislumbram as temáticas de âmbito lusobrasileiro.

2.3.1. A produção de Romero na Revista Brasileira tem uma especial importância, pois marca o período de sua chegada ao Rio de Janeiro. Segundo Luís da Câmara Cascudo, esse momento é fundamental na biografia intelectual do autor, pois é nele que Romero busca espaço na cena cultural carioca, procurando distinguir-se do exagerado francesismo desta (163). É nesse momento, também, que ele acentua sua atividade de 162 A Revista Brasileira foi editada em três fases distintas (1857-1861, 1879-1881, 1895-1898). Sobre a Primeira fase (1857-1861) consultar MASSARANI, Luisa. A divulgação científica no Rio de Janeiro. Algumas reflexões sobre a década de 20. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO [Dissertação de Mestrado em Ciência da Informação], 1998, 127p. 163 Assim se expressa Luís da Câmara Cascudo: “Fixando-se no Rio de Janeiro em 1879, Silvio Romero começa a publicar na Revista Brasileira os estudos A Poesia Popular no Brasil, reunidos em 1888, num tomo, Estudos sobre a Poesia Popular no Brasil, Tip. Laemmert. Esses estudos duraram um ano. Era o programa da análise do folclore brasileiro, sua literatura oral em

84

propagador das ideias da Escola de Recife. À parte dessas considerações de ordem biográfica, é de assinalar ter sido, precisamente no Rio de Janeiro, que Romero intensificou suas intervenções à escala luso-brasileira. Delas nos deteremos agora (164). O primeiro texto publicado por Sílvio na Revista Brasileira foi A Poesia Popular do Brasil (165). Aí estabelece os critérios determinantes da individualidade do brasileiro em relação aos demais povos, sendo que “nesta inquirição devem ficar fora do quadro o português nato, o negro da costa e o índio selvagem, que existem atualmente no país, porque não são brasileiros, e sim estrangeiros” – porque, se “o genuíno nacional é o descendente destas origens”, ele não se confunde com elas(166). Para Romero, o “genuíno brasileiro de hoje, como geralmente se apresenta, é em regra um resultado de cada um dos três factores principais em separado, ou de dois, ou de todos os três”. Nesta mistura, entretanto, o “factor português pesa-lhe com mais força por meio de sua civilização, sua língua, sua religião e suas leis”(167). Isso porque, segundo ele, “o negro crioulo, e o mulato ainda menos, não podia figurar como testemunho certo de que sentiram e pensaram seus ascendentes africanos, os pretos ditos da Costa”, porque, assim como o “caboclo e seus descendentes”, todos foram “mais ou menos completamente educados à portuguesa”(168). Vê-se, claramente, que o problema que começa por se lhe colocar é, forçosamente, o de definir esse português cuja contribuição para o conhecimento do plano sistemático, poesia, teatro tradicional, orações, jogos infantis, contos populares. Esses motivos foram expostos, revolvidos, apresentados com aquela vivacidade típica, num ar de desafio, porque era no tempo um pisar-de-pé na cultura oficial”. CÂMARA CASCUDO, Luís da. “Epígrafe e Nota bibliográfica”. In: ROMERO, Sílvio. Estudos sobre a Poesia Popular do Brasil. Petrópolis: Vozes, Coleção Dimensões do Brasil, 1977, p.11. 164 Contudo, vale frisar que analisaremos, em seção à parte, a publicação de uma edição especial em comemoração ao Tricentenário da morte de Camões, em 1880. 165 ROMERO, Sílvio. “A Poesia Popular no Brasil”. In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo I,1879, p.94-102 – 1ª parte. 166 Idem, ibidem, p.97. 167 Idem, ibidem, p.98. 168 Idem, ibidem, p.100.

85

genuíno

brasileiro

se

afigura,

independentemente

de

avaliações,

absolutamente incontornável. Recorrendo a uma confessa utilização cruzada de Alexandre Herculano e Teófilo Braga (169), considera que “os portugueses povoaram este país numa época para eles de profunda decadência política e social, o tempo da Inquisição e do cativeiro espanhol em que findou o período heróico de sua história e começou a grande crise do desmoronamento em que ainda hoje se debate a estimável nação”. Por consequência, quando o Brasil começou a ser colonizado, “já em Portugal definhava, desprezada, senão esquecida, a grande poesia popular. De si já bastante emaranhadas as tradições da península hispânica, ainda mais o ficaram em o novo mundo para onde foram transplantadas no tempo de sua velhice. Os selvagens aqui encontrados foram raramente civilizados e incorporados em a nova geração que ia se perpetuar na América”(170). E é fundado em semelhante pressuposto analítico que avança sobre o seu âmbito argumentativo de eleição, a construção das especificidades brasileiras. Em clara aplicação das ideias darwinistas ao estudo do folclore nacional, exprime que “nas danças, músicas e poesias populares, dão-se também as leis da seleção natural. Adaptadas ao novo meio, transformamse, produzindo novos rebentos ou novas vidas”. Como exemplo, toma o tipo regional do baiano: “é mestiço de origem, predominando nele agora o elemento africano, que, por mais que o queiramos esconder, prevalece ainda em nossas populações”. Essa formação cultural brasileira, tomada à luz do exemplo baiano, caracteriza, entretanto, uma forte distinção da cultura brasileira em relação às demais culturas latino-americanas, ex169 Sílvio indica, em nota de rodapé, as seguinte fontes: “Alex. Herculano História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal, passim Th. Braga, Manual de História da Literatura Portuguesa”. ROMERO, Sílvio. “A Poesia Popular no Brasil”. In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo I,1879, p.101. 170 ROMERO, Sílvio. “A Poesia Popular no Brasil”. In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo I,1879, p.101.

86

colônias espanholas. Assim, afirma Romero que “se nas repúblicas espanholas o cruzamento mais vasto foi do europeu com o índio, no Brasil foi do branco com o negro, predominando até agora as formas escuras nas classes baixas”. Afinal, no Brasil “se há de notar que o número de mestiços excede o de brancos puros, índios puros e negros puros, e que naqueles a impressão do preto é mais viva”. Por isso o “baiano é uma especialidade brasileira: ele e o vatapá e o caruru, também implantações africanas transformadas, são as três maiores originalidades do Brasil” (171). O critério da originalidade – isto é, o estabelecimento das especificidades produzidas em contexto unicamente nacional – é o verdadeiro interesse do crítico. Assim, compreende-se o bom conhecimento que este revela da obra de Teófilo Braga(172), crítico português também preocupado com as originalidade da cultura lusitana em relação aos demais povos ibéricos. Nesse sentido, vemos Romero citar Braga, ao reafirmar que a “modinha é uma transformação da serranilha, como já foi demonstrado por Teófilo Braga, e é para mim menos original. Adaptada a este solo, quando foge do verso e música dos modelos convencionais, adquire também um grau pronunciado de originalidade. Chega a este ponto quando ao elemento português agregam-se outros, porque o genuíno brasileiro, como já disse, o nacional por excelência não é, como alguns hão afirmado erroneamente, este ou aquele dos concorrentes, mas o resultado de todos, a forma nova produzida pelos três factores” (173). Para Romero, citando o

171

ROMERO, Sílvio. “A Poesia Popular no Brasil”. In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo I,1879 – 3ª parte, p.270. 172 Essas relações entre Romero e Teófilo foram realçadas, por exemplo, por BORGES, Paulo. Pensamento Atlântico: estudos e ensaios de pensamento luso-brasileiro. Lisboa: INCM, 2002, principalmente no capítulo “Tradição, Literatura e Nacionalidade em Teófilo Braga e Sílvio Romero”, pp.135-154, também publicado em Sílvio Romero e Teófilo Braga. Actas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 19996. Dedicar-nosemos a alguns detalhes desta aproximação teórica, estratégica e analítica dos dois intelectuais nos capítulos seguintes deste trabalho. 173 ROMERO, Sílvio. “A Poesia Popular no Brasil”. In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo I,1879 – 3ª parte, p.270.

87

Manual de História da Literatura Portuguesa, de Teófilo Braga, a originalidade da modinha brasileira é um facto dado, na medida em que “por meio delas este país, quando colónia, chegou a influir na literatura da metrópole” (174). Todas estas considerações ganham o devido alcance quando enquadradas com outro texto de Sílvio Romero, também publicado na Revista Brasileira, em 1879. Trata-se do opúsculo A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo (175). Já no início do texto, à moda de um manifesto nacionalista modernista avant la lettre, declara Romero que “o Brasil, depois de quatro séculos de contacto com a civilização moderna, parece ter chegado ao momento de olhar para trás a ver o que tem produzido de mais ou menos apreciável no terreno das ideias” (176). Afinal, segundo a compreensão do autor, “uma nação se define e individualiza quanto mais se afasta pela história, do carácter das raças que a constituíram, e imprime um cunho peculiar à sua mentalidade” (177). Percebe-se aqui, em toda a sua amplitude, o projeto romeriano. Suas declarações expressam um cunho nacionalista vincado, através de uma compreensão que entende que uma gradual diferenciação de Portugal faz parte da autodeterminação cultural brasileira. Para ele, como para muitos intelectuais brasileiros de sua época – pense-se, em Machado de 174 É importante ter presente que já em alguns trechos da A Poesia Popular do Brasil, podemos perceber as considerações que, anos depois, marcarão o bordão forte de sua História da Literatura Brasileira, que teve primeira edição em 1888. Assim, vemo-lo, por exemplo, ainda na Revista Brasileira, em 1879, analisar a “A Filosofia da História de Buckle e o atraso do povo brasileiro”, secção que estará presente no livro de 1888. Relativamente ainda às fontes utilizadas por Romero, merece ainda lembrança que na última parte de A poesia popular do Brasil, Romero faça referência ao seu trabalho de 1873, bem como ao livro de Adolfo Coelho, Contos populares portugueses. Percebem-se, aqui, mais uma vez, as interpelações múltiplas existentes na escala cultural luso-brasileira. Idem, ibidem, p.274 175 ROMERO, Silvio. “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo” In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.273292. 176 Idem, ibidem, p.273. 177 Idem, ibidem, p.274. Grifo nosso.

88

Assis, que, neste particular, parece, tanto quanto com Romero, antecipar o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade (178) –, é preciso completar a independência política com a realização da independência cultural do Brasil. Eis aqui o elo político de um projeto intelectual e cultural em torno dos processos de individualização das características que determinam a nacionalidade brasileira.

2.3.2. Nesse processo de individualização, o brasileiro “se afasta pela história”, diz Romero. Os conceitos do evolucionismo lamarckiano diziamno também. Assim, em seu trabalho de “diferenciação nacional, o brasileiro será tanto mais progressivo e autonômico, quanto mais, apropriados os germens úteis que legaram-lhe as raças que o constituíram, delas afastar-se, formando um tipo à parte, uma individualidade distinta”. Lógico parece, assim sendo, que a “nação brasileira, se tem um papel histórico a representar, só o poderá fazer quanto mais separar-se do negro africano, do selvagem tupi e do aventureiro português” (179). Romero acredita que o funcionamento das sociedades é o mesmo que se verifica na natureza. O que lhe permite afirmar que, “como no mundo físico corpos diversos e estranhos combinados produzem resultados distintos inesperados, assim na história a combinação de raças diferentes numa região vem a oferecer ao adiante o espectáculo das civilizações originais”. Mesmo que o Brasil ainda esteja em formação, mesmo que sua íntegra ainda seja um fato muito recente, acredita que “já é tempo de 178 Exemplo disso é o texto de Machado de Assis, Instinto de Nacionalidade e outros ensaios de 1878. Vale, entretanto, assinalar que podem haver critérios históricos concomitantes entre o texto de Machado de Assis, o de Sílvio Romero e o Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, publicado em 1928. Estas relações hermenêuticas, contudo, não são evidentes e, por isso, merecem maior atenção e acuidade analítica. Não obstante isto, acreditamos haver, nesta perspectiva, muitas questões ainda a serem melhor perscrutadas, seja do ponto de vista exclusivamente brasileiro, seja do ponto de vista referente às aproximações luso-brasileiras nestes movimentos finisseculares e modernistas. 179 ROMERO, Silvio. “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo” In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.274.

89

lançar-se um olhar retrospectivo sobre a sua história intelectual, para marcar os primeiros traços da individualidade embrionária deste povo recente”. À luz de uma interpretação naturalista do desenvolvimento dos povos e da história, afirma que contribuíram para o desenvolvimento do “embrião” brasileiro dois importantes agentes: “a natureza e a mescla de povos diversos”(180). Onde observar o produto desse desenvolvimento? O autor da História da Literatura Brasileira considera que a literatura é uma das manifestações da “actividade mental” dos povos, e que, por isso, “pode com proveito ser consultada como sintoma de seu progresso ou decadência”. Nessa compressão, o estudo da história da literatura surge como expediente intelectual capaz de diagnosticar a força dos “organismos” nacionais. E que diagnóstico, em concreto, ela permite? Embora nacionalista, Romero distingue-se, às vezes com virulência, da maior parte dos românticos brasileiros, geralmente ufanistas, que acreditam que “tudo vai bem” nas terras brasileiras. Romero pensa diversamente. Para ele, “o povo brasileiro vai mal, muito mal, e entre as nações cristãs só um similar encontra na desgraça: o desventurado e mesquinho Portugal” (181). É no decurso deste posicionamento que Romero se preocupa em traçar a estrutura de uma história da literatura brasileira, dando ênfase aos períodos da evolução da intelectualidade através do critério nacional, um desiderato que lhe permite acentuar os fundamentos teóricos do seu entendimento acerca do carácter das nações: o “capítulo preliminar de uma história da literatura brasileira, quando o escreverem com rigor científico, deverá ser uma inquirição do como o clima do país vai actuando sobre as populações nacionais; o segundo deverá ser uma análise escrupulosa das origens do nosso povo, descrevendo, sem preconceitos, as raças principais

180 181

Idem, ibidem, p.274. Idem, ibidem, p.275.

90

que o constituíram” (182). Atenção, portanto, à questão racial brasileira, para ele de primordial relevo e sobre a qual importa corrigir erros de avaliação. Erros como os de Teófilo Brag, alerta o sergipano: “sobre as raças deverse-á ter o cuidado de não esquecer nenhuma delas, como, ainda, não há muito, o fez o Sr. Th. Braga, que nas poucas páginas que escreveu sobre a poesia brasileira nem uma palavra disse das origens africanas, de nosso povo”(183). Segundo ele, outros equívocos cometidos por Teófilo Braga se devem evitar, como “a leviandade com que este escritor persiste em repetir, como descoberta novíssima, a desacreditada teoria da existência de uma raça turana, a que se filia, segundo o velho erro, os povos indígenas da América”(184). Isto exposto, entende-se melhor por que motivo, no âmbito da sua “inquirição” pelo “genuíno nacional”, o autor remete, primeiramente, a fatores estáticos do ponto de vista sociológico – como raça e clima – os quais, ao mobilizarem o problema da origem, não podem deixar de convergir num processo de releitura histórica. Operam sempre, assim, numa releitura do relacionamento com Portugal, dando, frequentemente, primazia da cultura brasileira sobre a cultura portuguesa. No século XIX, defende Romero, os brasileiros precedem os portugueses “na vida revolucionária e constitucional”. Segundo ele, “antes de seu insignificante movimento de 1820, nós havíamos tido os sucessos de 1817; antes de terem eles uma constituição, mais ou menos liberal, nós a tínhamos; antes de se verem livres de D. Miguel, tivemos a abdicação de D. Pedro. Em uma palavra, eles nada possuem que se possa equiparar aos 182

Idem, ibidem. Romero refere-se à obra de Teófilo Braga Parnaso Português Moderno, publicada em Lisboa, em 1877, portanto, apenas 2 anos antes de Romero escrever esse texto. 184 ROMERO, Silvio. “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo” In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.276. É importante lembrar que, no mínimo, desde 1871, Teófilo Braga defendia a existência da raça turaniana. Como exemplo, remetemos a BRAGA, Teófilo. Epopeias da Raça Moçárabe. Porto: Imprensa Portuguesa Editora, 1871. 183

91

nossos ímpetos revolucionários deste século” (185). A disputa sobre a primordialidade, neste e noutros casos, é condição prévia da visada afirmação do distanciamento. Repare-se, a título de exemplo, que, para o nacionalista Silvio Romero, o “romantismo marca, intelectualmente, o primeiro passo decisivo que fizemos para deixar de lado a cultura lusa”, pois os escritores brasileiros, “os nossos moços, de 1822 em diante, começaram a ler os escritores franceses e ingleses de preferência aos livros de Portugal”, pois “o velho reino havia feito completa bancarrota de ideias”, não passando, no século XIX, de “um ínfimo glosador dos desperdícios franceses”. Silvio Romero acredita que “se continuássemos a pensar somente pelo critério dos livros de Lisboa, teríamos chegado, como eu já disse uma vez, à completa «paralisia intelectual»”(186). Nesse quadro não espanta que Romero tenha por certo que “o velho reino perdeu definitivamente o encanto a nossos olhos” (187). E será na esteira destas afirmações que chegará a denunciar um certo tom de “exasperação” presente na maneira dos intelectuais portugueses se referirem aos brasileiros. Cita, como exemplo, os casos da publicação de As Farpas, de Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, assim como o Cancioneiro Alegre, publicado por Camilo Castelo Branco, também em 1879. Para Sílvio, ambas as publicações, embora recentes, representam “um sintoma patológico evidente da apatia intelectual do velho reino”, pois não passavam de “objurgatórias estéreis, falhas de seriedade e de sentimentos elevados”. Ao ponto de, frente às obras de Camilo, Eça e Ramalho Ortigão, todas sarcásticas em relação à figura do brasileiro, lhe 185 O autor faz, a seguir, em nota de rodapé, referência aos “sucessos de 1817, 24, 31, 35, 42, 48”, querendo com isto mobilizar momentos históricos de reafirmação nacional brasileira perante Portugal. A politização da memória, neste caso, é bem evidente. ROMERO, Silvio. “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo”. In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.280. 186 Romero remete ao seu trabalho de 1873, O romantismo no Brasil. ROMERO, Silvio. “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo” In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.280. 187 Idem, ibidem, p.281.

92

parecer que Teófilo Braga, “apesar de seus arrojamentos gratuitos, tem mais senso crítico do que o geral de seus compatriotas”(188). Significativo é o seu cotejo em relação à primazia na divulgação das “ideias novas” da segunda metade do século XIX. Para ele, “em 1862, no terreno do jornalismo, antes da Reacção de Coimbra, entre nós a escola do Recife reagiu” contra os princípios do ecletismo, vigente na época. Os brasileiros Tobias Barreto e seu discípulo Castro Alves ganhariam, assim, proeminência, quando confrontados com o grupo português liderado por Antero de Quental, na célebre “Questão Coimbrã”. De resto, essa primazia do movimento de Pernambuco dar-se-ia também em relação aos análogos movimentos de divulgação científica: “Este movimento, de carácter revolucionário, propagou-se por todo o país, acordando decidido entusiasmo na escola de São Paulo e no Rio Grande do Sul” (189). Indubitável se mostrava, para Sílvio Romero, que, no século XIX, nas artes, na música e na pintura, os brasileiros levam “incontestavelmente vantagem aos portugueses”, na medida em que em Portugal não há “nem um Carlos Gomes, nem um Pedro Américo ou Victor Meireles”. E mais, as vantagens brasileiras se dão, inclusive por que “nossa geração actual começou a estudar e a seguir as ideias de Comte e Darwin” (190). Compreende-se, assim, que, em 1879, em sua classificação da literatura brasileira, Romero filtre, quase cirurgicamante, aqueles autores que aí deveriam ser incluídos: apenas Gregório de Matos, Tomás António Gonzaga, Santa Rita Durão, Martins Pena, Alvares de Azevedo e Tobias Barreto aí teriam cabimento. Porque, como explicava, o critério era o de inserir os que representassem o princípio de “diferenciação nacional” (191).

188

Idem, ibidem, p.281. Idem, ibidem. Idem, ibidem, p.282-283. 191 Idem, ibidem, p. 284. 189 190

93

2.3.3.

Em certo sentido, a vinculação originária a Portugal à

inevitabilidade de um reconhecimento de determinado nível de participação portuguesa nas feições da brasilidade, não é recusada. Insiste-se nisso: o ponto central, que esse momento de partilha não pode ser nem sobrestimado, nem perene. Até porque, mesmo nos níveis de manifesta dívida para com a herança, ou da paridade conjuntural dezenovista de ambas as culturas – até por contraponto conjunto face ao restante mundo –, o panorama não era de molde a grandes celebrações. É assim possível surpreender Sílvio Romero a ensaiar uma comparação entre a cena cultural luso-brasileira e a da restante Europa, afirmando, a esse propósito, que “tanto o Brasil como Portugal fazem mesquinha figura quadro das nações cultas, e o movimento espiritual em ambos os países é quase insignificante”. Afinal, remata: “entre aquilo que é medíocre e quase nulo é óbvio que se não deve muito distinguir” (192). Na mesma linha, empreende uma série de comparações entre, por um lado, o exercício das modernas ideias em Portugal e no Brasil, e, por outro, a situação europeia. Atém-se, particularmente, à “evolução romântica e à crítico-positiva”, sustentando que “naquela, em Portugal, distinguiram-se muitos espíritos medianos, e os vultos de mais brilho foram: Herculano, Garrett, Castilho, Mendes Leal, Rebelo da Silva e Castelo Branco”. Em relação a tais escritores, diz que somente a “nossa ignorância, a par da ignorância portuguesa” os tem “levantado a altura de semi-deuses”, sendo que, na verdade, “não passam de figuras de terceira ou quarta ordem cotejados pelo padrão dos representative men da romântica europeia” (193). Quanto aos brasileiros, considera que “Magalhães, Gonçalves Dias, Azevedo, Alencar, Macedo e Varnhagen, que bem se podem pôr em paralelo, com os portugueses citados”, não sendo também 192 193

Idem, ibidem, p.284. Idem, ibidem, p.274.

94

“mui grandes”(194). A inferioridade portuguesa frente “ao desenvolvimento crítico” se dá também, para Romero, no contexto do final do século XIX. Sobre a geração de 70 portuguesa, questiona: “O que são os seus Bragas, Coelhos, Cordeiros, Oliveiras Martins… em face da brilhante plêiade de jovens escritores alemães, ingleses e até italianos, que ilustram a época actual?”(195). Definitivamente, na compreensão de Sílvio Romero, o “velho reino não vai bem”. Como defender então, na perspectiva brasileira, outra postura que não a do distanciamento gradual frente a Portugal? Veja-se, por exemplo, que “aos quatro corifeus portugueses por último citados, temos a opor nossos escritores recentes: Couto de Magalhães como etnólogo, Barbosa Rodrigues como naturalista, Batista Caetano como filólogo, Ladislau Neto como botânico e Araújo Ribeiro (Visconde do Rio Grande) como geólogo”. Afinal, dirá em tom de desabafo, “aqui também há livros e aqui também se estuda”, pois também no Brasil há poetas, críticos, filósofos e escritores em geral, “munidos das novas ideias, que o positivismo e o darwinismo têm espalhado pelo mundo” (196). Daí que concluir que “não há superioridade de Portugal para o Brasil [pois] “ambos os países tem o privilégio de produzir epígonos; ambos vivem ajoujados à mediocridade que os distingue” (197). Sílvio Romero ainda dirá que, no Brasil, “também contamos antiromânticos e anti-metafísicos, e sectários entusiastas do monismo científico. São eles, para não falar de alguns outros: Tobias Barreto, de Pernambuco, Guedes Cabral, da Bahia, e Pereira Barreto, de S. Paulo, a quem podem adir os jovens escritores Miguel Lemos, Teixeira Mendes, Lopes Trovão e J. do Patrocínio”. Vale chamar atenção para o fato de que o 194

Idem, ibidem,, p.285. Idem, ibidem. Idem, ibidem, p.286-287. 197 Idem, ibidem, p.287. 195 196

95

autor não opera uma demarcação dos escritores da nova geração brasileira em relação aos portugueses. Ele também os destaca do âmbito carioca, sede da corte brasileira. Aliás, bem vistas as coisas, percebemos que Silvio coloca a corte carioca a par com a lisboeta, sendo em relação a ambas que ele ressalta os feitos dos jovens brasileiros. Por isso, vemo-lo declarar que “aqueles escritores, com todo o valor que os distingue, permanecem obscuros, é que não vivem aos embates da claque fluminense, ou lisboeta, e diferente é o viver desgarrado pelas vastas províncias deste império do que estar ao aconchego amigável e animador que encontram os seus pares em Lisboa, por exemplo” (198). Esta manifestação de Sílvio Romero nos conduzirá, a seu tempo, a refletir sobre as questões relativas aos regionalismos brasileiros, questões que abordaremos na terceira parte desta investigação. Emblemática desta perspectiva é a sua recepção à obra Novos Ideais, do poeta gaúcho Múcio Teixeira. Se é visível a simpatia que lhe merece aquela publicação, nomeadamente “porque é realista, mau grado a moda, quero dizer, exprime a verdade da vida pampeana pelo seu lado inocente e sério”, evidenciando que o autor “é homem de seu tempo, e obedece às inclinações da época, [sendo] também homem de seu país e não esquece o meio em que há vivido” (199), por outro lado, não resiste a exibir uma discordância pontual, precisamente relativa ao lugar referencial da cultura portuguesa. Está em causa a opinião de Múcio Teixeira, ao considerar que “o português Guerra Junqueiro é um grande vulto que deve ser imitado”; opinião que merece, da parte de Sílvio, o seguinte reparo: “se o desejo é seguir o belo lirismo do Hugo dos bons tempos, não será então preciso atravessar o Atlântico para ouvir Junqueiro”, bastaria que o poeta prestasse atenção às “arrojadas produções de Tobias Barreto e Castro 198 199

Idem, ibidem, p.286-287. Idem, ibidem, p.291.

96

Alves” (200). Aproveita, aliás, para apontar o caminho às gerações de novos poetas e literatos brasileiros: “Deixemos Portugal em descanso e estudemos o nosso país e a culta Europa, que não será pouco” (201). Em resumo, o intuito de Sílvio Romero é reforçar a escala nacional para o estudo da literatura e da cultura brasileira, processo que implica um movimento de redefinição das relações com Portugal. Redefinição essa que ocorrerá em duas vertentes: uma, que incorpora a influência portuguesa na figura do mestiço; outra, que, pela gradual autonomização da forma mestiça da cultura brasileira, se vai gradualmente distanciando da matriz portuguesa em direção à total autonomia e originalidade nacionais.

3. Modalidades de relacionamento

Equacione-se, por fim, a última dimensão analítica prevista para esta Parte I. A necessidade da sua abordagem decorre do fato de a vigência de distintas redes discursivas e de distintos critérios interpretativos no seio de uma mesma escala cultural fomentar a existência concomitante de também distintas modalidades de relacionamento no âmbito dessa mesma escala. Porque a questão é a seguinte: se, em primeira instância, as várias tomadas de posição teóricas e hermenêuticas vão operando uma “separação das águas” e produzindo constantes demarcações entre os autores e as ideias em presença, não é menos verdade que esses alinhamentos, dotados de maior ou menor grau de enquistamento ou de permeabilidade, colocam doravante o problema estético do relacionamento entre si. O que se percebe:

200 201

neste

ponto,

“o

problema

Idem, ibidem, p.291. Idem, ibidem, p.292. Grifos nossos.

97

da

demarcação

convoca,

automaticamente, o problema da relação” (202). Por isso, uma vez efetuada a prospecção ao nível do primeiro, a pesquisa convoca o segundo. É esse, com efeito, o objetivo deste capítulo. Conscientes da dispersão de níveis e formas de relacionamento e da impossibilidade de dar conta de todos, optamos por investir nossa atenção naqueles que canonicamente são tidos por regimes extremos do relacionamento entre os atores sociais – o consenso e a dissensão –, procurando reconhecer a respectiva manifestação no contexto da escala cultural luso-brasileira do último quartel do século XIX. Optamos, assim, por averiguar a expressão tomada por duas das modalidades de relacionamento caras àqueles dois regimes: a comemoração e a polêmica. Como se verá, o peso de cada uma delas na relação cultural luso-brasileira justifica esta opção.

3.1. A linha da dissensão, ou a instrução de polêmicas.

É conhecida a tendência dos meios intelectuais, tanto portugueses como brasileiros, integrantes dos meios culturais de finais do século XIX, para a produção de polêmicas. O mecanismo é recorrente. A ativação das polêmicas procede de uma tentativa de instituição de sentido, seja em nome de uma clarificação de frastura argumntativas, seja em nome de uma radicalização de posições em torno de um núcleo de postulados. É assim possível assinalar quer situações em que a polêmica expressa a recusa de determinada pertença, quer em situações em que ela exprime a dissensão dentro de determinada zona de pertencimento. Aqui radica o inegável potencial heurístico do estudo das polêmicaas ao surpreender a arrumação interna de dada configuração cultural luso-brasileira, entre uma ou várias 202

Veja-se, a este respeito, MARTINS, Rui Cunha. O método da fronteira Almedina, 2007.

98

.Coimbra:

de suas dimensões escalares. A agitação trazida pela polêmica – com os inerentes círculos concêntricos que provoca, desarranjando e rearranjando filiações e agrupamentos instalados –, fornece a possibilidade de apreciar a configuração cultural em movimento. No caso brasileiro, basta pensar em Sílvio Romero – um polemista por excelência (203). Frente a Araripe Júnior, a propósito dos critérios de definição do tipo brasileiro, frente a José Veríssimo, discordando quanto aos critérios de arrumação da literatura brasileira, ou ainda frente a Manoel Bonfim, criticando sua colagem a Oliveira Martins (204), o sergipano protagonizou uma série de polêmicas consagradas. No caso português, os nomes de Teófilo Braga, Alexandre Herculano, Oliveira Martins, Eça de Queirós ou Pinheiro Chagas remetem para outras situações de idêntico cariz (205). Trata-se, bem entendido, em todos estes exemplos, de polêmicas emergentes à escala nacional, seja no âmbito da cultura portuguesa, seja no da brasileira. Contudo, as polêmicas não se resumiram à escala nacional. A existência de um âmbito de circulação e intercâmbio de informações na configuração cultural luso-brasileira propiciava a possibilidade da ocorrência de polêmicas luso-brasileiras propriamente ditas. E tal, de fato, foi observado no período final do século XIX. É esta dimensão que nos interessa de modo especial.

203 VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. História cultural e polêmicas literárias no Brasil 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, e MOTA, Maria Aparecida Rezende. Silvio Romero, dilemas e combates no Brasil da virada do século XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, são importantes referências nesse sentido. 204 Sílvio Romero escreveu 25 artigos no jornal Os Anais criticando a obra de Manoel Bomfim A América Latina: males de origem, publicada em 1902. Em 1906 Romero publica uma coletânea destes artigos dando à estampa A América Latina. Análise do livro de igual título do Dr. Manoel Bomfim. Porto: Chardron, 1906. 205 Consultar, por exemplo, BRAGA, Teófilo. Os críticos da História da Literatura Portuguesa: exame das afirmações dos Srs. Oliveira Martins, Antero de Quental e Pinheiro Chagas. Porto: Imprensa Portuguesa Editora, 1872 e MARTINS, J.P. de Oliveira. “A Teoria do Mosarabismo, de Teófilo Braga” (inédito). In: Biblos, n.º28, 1952, pp.139-177. Sobre as demais polêmicas portuguesas consultar As grandes polêmicas portuguesas. Lisboa: Verbo, 2 vols. 1964-1967.

99

3.1.1. Um dos aspectos essenciais da instrução de polêmicas deste teor é o fato de o cerne da questão argumentativa escamotear, muitas vezes, elementos pré-compreensivos fortemente arraigados, da ordem do preconceito e do estereótipo. Emblemática foi a verdadeira “disputa de estereótipos” que tem lugar em torno de As Farpas, de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão (206). O humor ácido com que aí é retratada a viagem do Imperador brasileiro D. Pedro II a Portugal e o consequente azedume da recepção crítica a essa publicação do lado brasileiro merecem, para efeitos da nossa pesquisa, algumas observações (207). Em Fevereiro de 1872, As Farpas focaliza a figura do Imperador D. Pedro II, realçando nele, com evidente ironia, a simplicidade e sobriedade com que este, enquanto monarca, se apresenta à corte portuguesa. Aí se diz que o real viajante “era alternadamente e contraditoriamente – Pedro de Alcântara e D. Pedro II”. Aí se chama a atenção dos leitores para o fato de o Imperador brasileiro carregar sempre à mão a bagagem: “a mala”, ironiza-se, “significa que não só deixou a realeza no Brasil, mas tomou-a sem cerimónia na Europa! A mala é a tabuleta do seu incógnito!”. Era o indício, para os redatores, de que “Sua Majestade conseguiu atravessar a Europa – disfarçado na sua mala. Por isso ela vinha vazia. Sua Majestade não a usava como bagagem – punha-a como disfarce. Sua Majestade trazia a mala – como outros trazem o nariz postiço”. E é ainda aí, nesse e noutros fascículos, que, sempre em tom corrosivo, são referidos seja os hábitos

206

Amadeu Carvalho Homem chama justamente a atenção para a coincidência do primeiro número de As Farpas com o funcionamento da Conferências Democráticas do Casino Lisbonense. HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao Realismo. Temas de Cultura Portuguesa (século XIX). Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2005, p.59. 207 Na apresentação à recolha de textos que compuseram esta polêmica entre Eça de Queirós e o D. Pedro II, João Carlos Reis chama atenção para a “popularidade e larga divulgação e indiscutível influência no Brasil, de uma publicação portuguesa, As Farpas”. Conforme Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização e introdução João Carlos Reis. Lisboa: Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.168.

100

gastronômicos do Imperador (208), seja a sua curiosidade pelo idioma hebraico (209), seja a vestimenta usada por D. Pedro II em sua ida à Universidade de Coimbra (210). Sendo certo que o acolhimento deste retrato não poderia ser – como não foi – o mais caloroso do lado brasileiro, a verdade é que ele constituiu bom pretexto para que, do lado do viés mais crítico para com os alinhamentos luso-brasileiros, se insistisse na definitiva assunção de um afastamento que, segundo era patente, a intelectualidade portuguesa afinal havia já interiorizado. A polêmica ativava o jogo demarcatório. Ao ponto de, no clima de incomodidade subsequente, qualquer iniciativa ficar sujeita à manipulação argumentativa, fenômeno evidente nas desinteligências perante a construção queirosiana de um retrato prototípico, o do brasileiro. N’As Farpas se lê que “há longos anos o Brasileiro (não o brasileiro brasílico, nascido no Brasil – mas o português que emigrou para o Brasil e voltou rico do Brasil) é entre nós o tipo de caricatura mais francamente popular. Cada nação possui assim um tipo criado para o riso público”. Em Portugal, aduz-se, é essa a função do brasileiro: um ser caricaturalmente “grosso, trigueiro com tons de chocolate, pança ricaça, joanetes nos pés, colete de grilhão de outro, chapéu sobre a nuca, guarda208 “Sua Majestade imperial passa, com justiça, por um dos homens mais sóbrios do seu vasto império. Sopa, carne cozida, legumes, água e um palito, tal é o chorume dos jantares da corte nos paços da Tijuca”. Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização e introdução João Carlos Reis. Lisboa: Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.174. 209 “Sua Majestade é um guloso no hebraico. No hebraico – rapa os pratos e lambe os dedos”. Idem, ibidem, p.174. 210 “A Universidade e seus doutores têm espalhado apreciações rancorosas, sobre a maneira como Sua Majestade o Imperador se apresentou na sala dos capelos, num dia de doutoramento e de cerimónia. Diziam que Sua Majestade, trajando jaquetão de viagem, com um chapéu desabado e um saco a tiracolo, se veio sentar nos bancos severos da antiga sala adamascada – com a mesma familiaridade com que se sentaria na almofada da diligência dos Arcos de Valdevez”. Da toilette de D. Pedro II, diziam que “ele quis-se apresentar entre sábios, na rabona de sábio! Ele não quis humilhar nenhum Sr. Doutor – pelo asseio da sua roupa branca! Antes de sair para o capelo, em lugar de molhar os dedos num frasco de água de colónia (sabe-se isso!) ensopou as mãos num tinteiro! Ele seguiu a velha tradição universitária – que o rasgão é uma glória e a tomba na bota uma respeitabilidade! E, se a Universidade tivesse lógica, devia escandalizar-se e corar – não por ele se ter abstido da gravata, mas por ousar entrar, naquele recinto clássico da porcaria, com tão poucas nódoas no fato!” Idem, ibidem, p.176-178.

101

sol verde, a vozinha adocicada, olho desconfiado, e um vício secreto”. Acresce-se ainda que “nenhuma qualidade forte ou fina se supõe no Brasileiro: não se lhe imagina inteligência, como não se imaginam negros com cabelos loiros; não se lhe concede coragem, e ele é, na tradição popular, como aquelas abóboras de Agosto que sofreram todas as soalheiras da eira: não se lhe admite distinção, e ele permanece, na persuasão pública, o eterno tosco da Rua do Ouvidor” (211). Não há grandes dúvidas de que a mordacidade do texto queirosiano está voltada para o português imigrante no Brasil, que de lá retorna trazendo consigo muito dinheiro e hábitos propícios à chalaça – pois “o pobre brasileiro” é, para Eça, “o rico torna-viagem” (212). Contudo, o fato de a caricatura se prestar a uma dupla leitura estigmatizante, pela designação de “brasileiro”, referindo-se embora a este imigrante “retornado”, poderia abranger também, maliciosamente, o natural do Brasil. Este aspecto não deixou de conduzir a leituras instaladas nesta segunda hipótese. E isto apesar de, como também ficava explícito, a caricatura em causa funcionar, inclusive, como imagem reflexa da própria cultura portuguesa e do próprio português. Para Eça de Queirós, “o Brasileiro é o Português – dilatado pelo calor”, solto e sem peias. E mais claro fica que o humor crítico do autor do Crime do Padre Amaro se volta, reflexivamente, para o português, quando, por exemplo, afirma que o lisboeta que não deixa a capital “não [vale] mais do que o minhoto que volta de Pernambuco” (213), ou quando afirma que “o Chiado sob os trópicos dá inteiramente a Rua do Ouvidor. Rirmo-nos do brasileiro é rirmo-nos de nós sem piedade. Nós somos o germe, eles são o fruto: é

211

Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização e introdução João Carlos Reis. Lisboa: Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.182. Idem, ibidem, p.182-183. 213 Idem, ibidem, p.185. 212

102

como se a espiga se risse da semente” (214). Bem vistas as coisas, o texto queirosiano é acre para com o retrato do português como não o é tanto para com o do brasileiro propriamente dito. De qualquer forma, e traduzindo as tensões decorrentes dos recortes culturais mutuos, levantam-se, a partir do Brasil, brados de setores ofendidos com a ousadia d’As Farpas. É que a caricatura (e o estigma) têm uma ponta afiada que roça as bordas da escala nacional. Logo, não surpreende que, nesse mesmo ano de 1872, publica-se, no Rio de Janeiro, o opúsculo As Farpas: protesto por um patriota. Nele se contra-argumenta à postulada investida contra o orgulho brasileiro. Critica a linguagem “que às vezes desce ao cinismo revoltante, gota a gota cheio de fel”, por onde “corre desapiedada a pena em tão predilecto estilo, e em torpe e indecente gargalhada”. Eça e Ramalho, conforme o opúsculo, não passam de “dois palhaços [que] excitam com grosso sal o riso do estúpido burguês, acérrimos diletanti do escândalo”, que ignoram que o Imperador D. Pedro II cumprira os “deveres sagrados de cortesia, e amizade, e até de próximo parentesco [ao fazer deter, em Portugal, o itinerário de sua viagem] na doce ilusão de conviver com um povo irmão”. Justificam, com isso, que, frente a As Farpas, só possa surgir “a mágoa, o desgosto e mais tarde a raiva, o ódio que seguiu pelas costas ao Imperador do Brasil, ao deixar as margens pitorescas do nunca assaz decantado Tejo” (215). Por outro lado, o exacerbamento nacionalista reforçado pela própria caricatura queirosiana do imigrante português, ao sustentar também “o filho de Portugal, que chamam em Minas emboaba, no Rio Grande marinheiro, aqui na capital e nas demais províncias, galego, pé de chumbo, etc., etc., oferece no seu todo moral e físico, variado assunto para encher 214

Idem, ibidem, p.183-184. Grifos nossos. “As Farpas Brasileiras: protesto por um patriota”. Rio de Janeiro: Livraria da Casa Imperial de E. Dupont, 1872, In: Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização e introdução João Carlos Reis. Lisboa : Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.186-189. 215

103

um volume de considerações a respeito” (216). O texto, na continuidade, afirma que desde o momento da sua chegada aos trópicos, os imigrantes mais parecem uns “maltrapilhos, descalços, ignorantes, analfabetos, todos trajando calças de grosseira tela, cobertos com um chapéu de Braga, único presente que lhe deram os pais enxotando-os do lar escasso”(217). Constróise um quadro angustiante de um “Brasil aportuguesado” em que “à importação dos vinhos, das batatas e cebolas, segue-se a dos artistas e a da imprensa!”. Publicações como As Farpas, aduz-se, “não são jornais, não são já livros de uma literatura gasta e viciada no plágio do estrangeiro, são panfletos que mordem como o cão a mão que o alimenta, é a injúria, é a calúnia, que embarca de sapatos ferrados e porrete e vem salpicar de lama a púrpura do monarca e afrontar os brios de uma nação!” (218). Ainda que convenha frisar que, não obstante a violência da resposta às Farpas, surpreendemos trechos do opúsculo a ressalvar a necessidade de diferenciar internamente o que se diz ao apontar ao “português”. Ao fim d’As Farpas Brasileiras: protesto por um patriota, o autor incógnito faz, entretanto, uma emenda: “pedimos aos raros cavalheiros portugueses que por seus título de brio e dignidade são aqui considerados e entrelaçados na família brasileira, não julguem destas linhas outra ideia além do esforço moral a que fomos provocados”. Destaca-se a proposta, então, de “joeirar o trigo”, diferenciando o “português do galego” (219).

216

Idem, ibidem, p.193. Ou, em outro trecho: “As Farpas d’além-mar dizem ter o brasileiro em si tanta porcaria que as virgens desmaiam de nojo. Sem dúvida viram-nas por um espelho. Agarrai um português e apesar da sua repugnância pela água, dai-lhe três banhos em água de colónia, enxugai-o, perfumai-o de novo uma e muitas vezes; depois de tudo lavado, a boca, e tereis xulé, xulé, sempre xulé”. Idem, ibidem, p.194;199. 218 “As Farpas Brasileiras: protesto por um patriota”. Rio de Janeiro: Livraria da Casa Imperial de E. Dupont, 1872, In: Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização e introdução João Carlos Reis. Lisboa : Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.200-201 219 “As Farpas Brasileiras: protesto por um patriota”. Rio de Janeiro: Livraria da Casa Imperial de E. Dupont, 1872, In: Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização e introdução João Carlos Reis. Lisboa: Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.202. 217

104

Não vale a pena prolongar aqui os argumentos do panfleto nem sequer a tréplica queirosiana a este mesmo respeito (220). Quer a mobilização estereotípica de efeito estigmatizante, quer a produção reativa de idêntica estigmatização de inspiração nacionalista inscrevem-se, na perspectiva do nosso inquérito, no complexo processo de reformulação e clarificação cultural e identitária no seio de uma mesma configuração cultural fortemente ancorada em critérios histórico-políticos como era a luso-brasileira. Manifestamente, as margens brasileira e portuguesa processavam, naquela conjuntura, um esforço de autonomização cultural sem o qual qualquer tipo de clarificação identitária resulta impossível, mas que comporta a ocorrência de fricções demarcatórias e de verdadeiras “turbulências do limite” (221). E se esta impressão se colhe ao nível mais imediato e mais précompreensivo da caricatura e do estereótipo, outro tanto fará o despoletar de problemáticas mais diretamente advindas de discordância teórico-

220 Em carta publicada no Jornal do Recife, em Outubro de 1875, e endereçada ao presidente da província de Pernambuco, Nordeste brasileiro, Eça de Queirós manifestava-se nos seguintes termos: “temos diante de nós um jornal de Lisboa – o Diário de Notícias que refere estranhos acontecimentos passados nessa província: diz-se – que em Pernambuco, sobretudo na cidade Goiana, as discussões travadas em torno do volume das Farpas, relativas ao império e ao imperador, têm causado conflitos irritados, mortes, «e que os portugueses estão ameaçados na sua segurança»”. Sobre este facto, responde na mesma moeda de mobilização política da história, ao pedir que a autoridade local pernambucana desse um final às ameaças e agressões sofridas pelos portugueses lá residentes, pois, de outro modo, “julgaremos que há verdade no que se diz de Pernambuco e de seus costumes – e, então, vendo que nada fez a Pernambuco civilização que há três séculos lhe mandamos, e que o Brasil recaiu na selvageria de então, julgaremos dever recomeçar pacientemente a nossa obra, e tornar a mandar Pedro Álvares Cabral, para tornar a redescobrir o Brasil”. Carta de Eça de Queiroz ao presidente da Província de Pernambuco, publicada no Jornal do Recife e na Província, nas edições de 12 e 14 de Outubro de 1875. In: Polêmicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização e introdução João Carlos Reis. Lisboa: Europress/Instituto Português do Livro, 1986, p.204-209. 221 Conforme o uso que lhe concede Rui Cunha Martins em vários de seus trabalhos, como, por exemplo, MARTINS, Rui Cunha. “A arena da história ou o labirinto do Estado? Delimitações intermunicipais e memórias concorrenciais nos inícios do século XX”. In Cadernos do Noroeste, 15 (1-2), 2001, pp.37-56, MARTINS, Rui Cunha. “A pletórica da identidade, ou a alucinação dos cânones”. Separata do livro Identidade, Identidades. Porto: ADECAP, 2002, pp,149-156 e MARTINS, Rui Cunha. “Estado, tempo e limite”. Revista de História das Ideias. Vol.26. Coimbra: Faculdade de Letras, 2005, pp.307-342.

105

políticas sobre o relacionamento luso-brasileiro. Foi este o caso da longa polêmica entre Sílvio Romero e Teófilo Braga.

3.1.2.

A polêmica que envolveu Romero e Teófilo, a qual só

aparentemente se resume às questões relativas aos direitos autorais prolongou-se por mais de 20 anos, preenchidos de ataques, réplicas e tréplicas sucessivas (222). Não obstante as altercações trocadas, é possível verificar que, do ponto de vista teórico, conforme faz notar Manuel Cândido Pimentel, “o pensamento de Teófilo Braga e o de Sílvio Romero se desenvolveram a partir de uma matriz comum” (223). De fato, ambos partem de uma postura radicalmente anti-metafísica, no âmbito da qual, é bom ressaltar, nenhum dos dois adere radicalmente ao comtismo ortodoxo, muito menos à vertente do apostolado positivista simbolizado pelos seguidores de Pierre Laffitte (224). Preconizam conjuntamente um conhecimento vincado pelo experimentalismo, elemento que os fez, cada um a seu modo, aderir parcialmente às teses do darwinismo e do evolucionismo de Herbert Spencer (225). Por outro lado, o estudo das literaturas nacionais sob o critério nacionalista (226), com especial atenção aos componentes etnológicos, representa outro elo teórico que os aproxima significativamente (227), sendo que, ambos, acabam por exercitar o que se 222

PAREDES, Marçal de Menezes. “A querela dos originais: notas sobre a polêmica entre Sílvio Romero e Teófilo Braga”. Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, Edição Especial, n.º2, 2006. 223 PIMENTEL, Manuel Cândido. “A crítica do positivismo comteano em Teófilo Braga e Sílvio Romero”. Atas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia LusoBrasileiro, 1996, pp.17-53. 224 HOMEM, Amadeu Carvalho. O Republicanismo em Portugal: o contributo de Teófilo Braga. Coimbra: Minerva, 1989. 225 CALAFATE, Pedro. “A filosofia da história em Teófilo Braga. Um confronto com Sílvio Romero”. In: Sílvio Romero e Teófilo Braga Atas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro, 1996, pp.151-163. 226 REALE, Miguel. “O Historicismo de Sílvio Romero”. In: Sílvio Romero e Teófilo Braga Atas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro, 1996, pp.14-150. 227 BORGES, Paulo A. Pensamento Atlântico, estudos e ensaios de pensamento luso-brasileiro. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2002.

106

poderá chamar uma forma historiográfica à maneira de uma sociologia descritiva (228). Sendo visível, portanto, sua comum inserção num mesmo terreno discursivo – positividade do conhecimento, postura antimetafísica, nacionalismo literário, crença no caráter probatório da etnologia – parece lícito procurar os fundamentos da divergência ao nível de razões menos óbvias, mas com certeza capazes de coexistir com este painel de referenciação teórica, quando não produzidas precisamente em seu interior. Em termos formais, o início da polêmica acontece por ocasião da publicação, em Portugal, junto do livreiro Carrilho Videira, dos Cantos Populares do Brasil, em 1883, e dos Contos Populares do Brasil, em 1885, ambos os textos com assinatura de Silvio Romero (229). Na realidade, fazia tempo que Romero dava conta quer da conclusão destas obras, quer da dificuldade encontrada no Rio de Janeiro para dá-las à estampa (230). A oportunidade de publicação surgiria, afinal, em Portugal. Teófilo Braga, cuja obra Sílvio conhecia bem (231), é então convidado a fazer um estudo 228

PEREIRA, José Esteves. “Teófilo Braga e Sílvio Romero: duas perspectivas sociológicas”. In: Sílvio Romero e Teófilo Braga Atas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro, 1996, pp.167-181. 229 Sílvio Romero teve muitas obras publicadas em Portugal ainda em vida. Merecem destaque: ROMERO, Sílvio. Contos populares do Brazil: com um estudo preliminar e notas comparativas (colligidos pelo dr. Sylvio Roméro, com estudo preliminar e notas por Theophilo Braga). Lisboa: Nova Livraria Internacional, 1885. ROMERO, Sílvio. Martins Penna: ensaio crítico com um estudo de Arthur Orlando sobre o auctor da "Hist. da litt. brazileira". Porto: Chardron, 1900. ROMERO, Sílvio. O elemento português no Brasil: conferência. Lisboa: Typographia da Companhia Nacional Editora, 1902, ROMERO, Sílvio. Pinheiro Chagas: conferência realizada no Theatro Recreio Dramático, do Rio de Janeiro, a 5 de Setembro de 1904. Lisboa: Typographia d’“A Editora”, 1904, ROMERO, Sílvio. A Patria portugueza: o território e a raça: apreciação do livro de igual título de Theophilo Braga. Lisboa: Livraria Clássica de A.M. Teixeira, 1906. ROMERO, Sílvio. A América latina: análise do livro de igual título do dr. M. Bomfim. Porto: Lello & Irmão, 1906. ROMERO, Sílvio. Provocações e debates: (contribuições para o estudo do Brazil social). Porto: Lelo & Irmõo, 1910. ROMERO, Sílvio. Quadro synthetico da evolução dos géneros na litteratura brasileira. Porto: Chardron, 1911. ROMERO, Sílvio. Estudos sociaes: o Brasil na primeira decada do seculo XX: problemas brasileiros. Lisboa: A Editora, 1911, além de ter prefaciado o livro de GUIMARÃES, Artur. Questões económicas nacionae. pref. de Sylvio Romero. Lisboa : Typographia da "A Editora", 1904. 230 Em 1879, faz a seguinte consideração: “em nossa obra, – ainda inédita, – Cantos e Contos do povo brasileiro – recolhidos da tradição, já pronta, e que é o trabalho mais completo que possuímos no género, não tem podido ser publicado por falta de um editor”. ROMERO, Silvio. “A poesia popular no Brasil”. In: Revista Brasileira, Ano I, Tomo I,1879, p.266. 231 Idem, ibidem, p.281.

107

introdutório à edição dos Contos do intelectual brasileiro (232), estudo esse intitulado (Sobre a) Novelística brasileira e que Teófilo publicara também, com o mesmo título, como parte integrante da sua obra Contos Tradicionais do Povo Português (233). É nesse estudo introdutório que, de acordo com a versão de Romero, Teófilo terá ”se apoderado” de seu critério e modificado partes de sua obra. Por isso, em tom virulento, Romero redige um protesto à atitude de Braga, publicando Uma Esperteza. Os Cantos e Contos Populares do Brasil e o Sr. Teófilo Braga. Protesto (234). Para Sílvio, Teófilo cometera os seguintes “delitos” na elaboração de referido estudo introdutório à sua obra: cortar um trecho da Advertência preliminar do livro em que ele dava conta da classificação feita; apoderarse dessa divisão etnográfica dos contos brasileiros e dá-la como produção original sua; fingir trabalho próprio, passando alguns contos tupis para a secção de contos africanos; incluir no livro os Contos tupis de Couto de Magalhães; e, por fim, escrever um prólogo “disparatado, inçado de erros trapentos, em oposição absoluta aos meus próprios Estudos sobre a poesia popular brasileira, que são o manancial onde o compilador açoriano foi beber o poucochinho que sabe sobre a literatura popular desta parte da América”. Tratar-se-ia, em suma, de um “flagrante delito de charlataneria literária” (235). Na verdade, o próprio Teófilo admitia a modificação de partes do texto de Romero. Ainda na primeira edição de Lisboa, em 1885, em nota de rodapé, esclarece: “Modificamos neste ponto o plano do colector, 232 ROMERO, Silvio. Contos populares do Brasil. Coligidos pelo Dr. Silvio Romero; com um estudo preliminar e notas comparativas por Teófilo Braga. Lisboa: Nova Livraria Internacional, 1ª edição, 1885. 233 BRAGA, Teófilo. Contos Tradicionais do Povo Português. Vol. 1. Lisboa: Dom Quixote, 1883. 234 ROMERO, Sílvio. Uma Esperteza. Os Cantos e Contos Populares do Brasil e o Sr. Teófilo Braga. Protesto. Rio de Janeiro: Tipografia da Escola, de Serafim José Alves, 1887. 235 Idem, ibidem, p.11-13.

108

completando a representação dos elementos étnicos do Brasil com o que actualmente se conhece de tradições dos indígenas” (236). O contraste entre a virulência da acusação e o que parece ser a assunção pública dessas interferências textuais, não pode deixar de sugerir que as discordâncias podiam estar localizadas em ordem mais profunda. O fato é que a polêmica estava instalada, ainda que a resposta formal de Teófilo Braga tenha demorado alguns anos. Treze anos depois da publicação, por Romero, de Uma Esperteza (1887), Teófilo, em carta colocada em apêndice à obra O Sr. Sílvio Romero e a Literatura Portuguesa, de seu discípulo Fran Paxeco (1900), faz a sua declaração acerca do ocorrido (237). De posse de algumas cartas pessoais de Carrilho Videira, Teófilo expõe as missivas que Romero tinha enviado ao livreiro: uma carta datada de Novembro de 1882, onde agradece a Carrilho Videira e Braga por “terem salvado das traças esta colecção” e outra, de 8 de Abril de 1884, onde Romero, segundo a transcrição de Teófilo, teria pedido a Braga a redação do prefácio (o que Romero negava em Uma Esperteza), bem como teria escrito que “a única colecção de mérito é a de Teófilo”(238). Para além da imputação mútua, um aspecto em aparência menor deve ser sinalizado. Trata-se da presença, no campo da polêmica, da figura do discípulo de um dos contendores. Vale a pena averiguar este ponto com mais detalhe.

236 BRAGA, Teófilo. “Sobre a Novelística Brasileira”. In: ROMERO, Silvio. Contos populares do Brasil. Lisboa: Nova Livraria Internacional, 1ª edição, 1885, p.V. 237 BRAGA, Teófilo. “Carta de Teófilo Braga a Fran Paxeco”. In: PAXECO, Fran. O Sr. Sílvio Romero e a Literatura Portuguesa. Maranhão: Editores A. P. Ramos d’ Almeida & C. Suces., 1900. 238 Informações retiradas da Carta de Teófilo Braga. In: PAXECO, Fran. O Sr. Sílvio Romero e a Literatura Portuguesa. Maranhão: Editores A. P. Ramos d’ Almeida & C. Suces., 1900, p.194-195.

109

3.1.3.

Foi Fran Paxeco – e isto diz o próprio Teófilo – quem deu notícia

sobre a obra romeriana Uma Esperteza, sendo ele também quem teria lhe enviado a mesma (239). E, de acordo com a mesma fonte, a carta-resposta a Romero foi escrita especificamente a pedido e para constar no livro de Fran Paxeco. Acresce que, nesse seu livro – o citado O Sr. Silvio Romero e a Literatura Portuguesa – , Paxeco intensifica o tom de acusações e ofensas pessoais direcionadas a Romero (240): na maioria das vezes, considerando que o brasileiro não gosta de Teófilo simplesmente por este ser português. Assevera, enfim, que o “crítico sergipano vota um ódio de morte a todos os vultos literários da velha Lusitânia; e essa ojeriza, sem razão de ser, leva-o às vezes a afirmar certas proposições absurdas e paradoxais” (241). Definitivamente Fran Paxeco entrava polêmica. Para nós, o interesse em sua figura é justo este: o de ser um indicador precioso da constituição de grupos congregados em torno de Teófilo e Romero e de manifestar, nesse alinhamento, círculos de influência que alargavam o alcance da polêmica luso-brasileira. Não no sentido em que os grupos circundantes da polêmica reproduzissem, cada um deles, a escala nacional do respectivo mestre, o quem nem sequer fora mencionado, mas no sentido em que esses alinhamentos eram alheios à lógica nacional, antes parecendo constituir-se à escala transnacional luso-brasileira. Melhor se compreenderá esta ideia, tendo por referência a dedicatória feita por Paxeco – que era cônsul português – no seu citado livro: “à memória de Adolfo Caminha”, à Teixeira Mendes, “o maior pensador que o Brasil produziu até hoje”, e à

239

A informação é confirmada, por exemplo, nas cartas de Teófilo para Paxeco de 01/07/1900 e 26/01/1901. Ver PAXECO, Fran. Cartas de Teófilo Braga (com um definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas «confissões» de Camilo). Lisboa: Portugália, 1924. 240 “Uma cabaça – eis o que é a cabeça de Sílvio! E, como tal, cremos ser efectivamente a primacial do Brasil, por ser precisamente a mais oca”, PAXECO, Fran. O Sr. Sílvio Romero e a Literatura Portuguesa. Maranhão: Editores A. P. Ramos d’ Almeida & C. Suces., 1900, p.13. 241 PAXECO, Fran. O Sr. Sílvio Romero e a Literatura Portuguesa. Maranhão: Editores A. P. Ramos d’ Almeida & C. Suces., 1900, p.89.

110

Júlio de Castilhos, “o primeiro entre os primeiros estadistas brasileiros, em todos os tempos”… (242). Logo após a publicação da carta-resposta (em apêndice à obra de Fran Paxeco), Sílvio Romero não se demora em dar-lhe uma réplica. Leva à estampa, em 1904, Passe Recibo (Réplica a Teófilo Braga) (243). Ao contrário do modelo seguido na edição de Uma Esperteza, e como que em colagem formal à carta de Teófilo, esta réplica de Sílvio Romero veio precedida de um estudo introdutório, intitulado “Duas Palavras”, assinado por Augusto Franco (244). Neste texto introdutório, Franco ataca diretamente Fran Paxeco, censurando seu “vocabulário repelente e nojento” e “próprio de lupanares”, usado para “agredir garotamente a vultos tão brilhantes das letras brasileiras”. Por isso, diz ainda, “nem Silvio Romero, nem qualquer outro tão canalhamente insultado por Fran Paxeco, lhe respondeu as chalaças, nem as responderá jamais, porque, aqui, se não dá pasto” (245). Não responderia mesmo, pelo menos diretamente. Porque se tratava de “questão particular, que debato com o Sr. Teófilo Braga”, diria Sílvio Romero. Precisando a sua postura, declara: “o meu debate é com o Sr. Teófilo Braga e só com ele” (246). Naturalmente. A disputa alinhavava facções, mas também hierarquizava fidelidades: ao nível de Sílvio Romero

242

Idem, ibidem, folha de rosto. ROMERO, Silvio. Passe Recibo (Réplica a Teófilo Braga). Publicação dirigida por Augusto Franco. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1904. 244 Augusto Franco foi crítico literário em Minas Gerais. Sob o pseudónimo “Aufra”, assinava crônicas nos jornais Correio de Minas e Jornal do Comércio, em Juiz de Fora. Ver NOBREGA, Dormevilly. Prosadores. Colectânea. Vol. 1. Juiz de Fora: Fundação Cultural Alfredo Lage, 1982, p.99-100. 245 FRANCO, Augusto. “Duas Palavras”. In. ROMERO, Silvio. Passe Recibo (Réplica a Teófilo Braga). Publicação dirigida por Augusto Franco. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1904, p.10-11. 246 ROMERO, Silvio. Passe Recibo (Réplica a Teófilo Braga). Publicação dirigida por Augusto Franco. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1904, folha de rosto, p.22. 243

111

está Teófilo Braga e, abaixo deles, na condição de discípulos e divulgadores, estão Fran Paxeco e Augusto Franco. Fran Paxeco é, junto com Teixeira Bastos, um dos principais seguidores de Teófilo Braga. A análise de seus livros é importante no sentido de melhor entender a divulgação e a recepção da obra de Teófilo no Brasil (247) Como cônsul português, editou vários textos na defesa e divulgação de seu mestre, além de informá-lo sobre a recepção e discussão de seus livros no Brasil. De suas obras, merece destaque, além de O Sr. Sílvio Romero e a Literatura Brasileira, editada no Maranhão, em 1900, seu importante livro Teófilo no Brasil, editado em Lisboa, em 1917. Fran Paxeco comportava-se praticamente como um defensor dos interesses portugueses no Brasil, organizando, nesse foro, cerimônias em homenagem a Teófilo Braga (248). Por isso, não surpreende que tenha tomado parte na polêmica através de insultos e críticas demolidoras. Em paralelo temos o referido Augusto Franco: crítico literário mineiro e admirador de Romero. Em sua coluna no Jornal do Comércio, de Juiz de Fora, entra em choque com Teófilo, em matéria publicada por ocasião das cerimónias em homenagem ao 259º aniversário da restauração da independência portuguesa (também 7º aniversário da Real Sociedade Auxiliadora Portuguesa da cidade). Neste texto, Augusto Franco, assinando pelo pseudónimo Aufra, relata que Zeferino Cândido, jornalista homenageado na cerimônia, lhe havia contado o seguinte acontecimento: “foi o caso que, tendo falecido o profundo investigador da História de Portugal [Alexandre Herculano], Th. Braga se dirigiu ao Dr. Zeferino e 247

Conforme carta de 14/11/1901, onde Braga agradece a Paxeco por este se prontificar a “cumprir a missão de Teixeira Bastos” na divulgação de sua obra. In: PAXECO, Fran. Cartas de Teófilo Braga (com um definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas «confissões» de Camilo). Lisboa: Portugália, 1924, p.48-51. 248 Como atesta carta de 12/10/1900 de Teófilo Braga, onde ele agradece Fran Paxeco pela homenagem recebida do Centro Caixeral do Maranhão, em cerimónia realizada em 28/07/1900. In: PAXECO, Fran. Cartas de Teófilo Braga (com um definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas «confissões» de Camilo). Lisboa: Portugália, 1924, p.24-28.

112

pronunciou mais ou menos estas palavras interrogativas e decisivas: – Sabe quem morreu? O Herculano, aquele adulador (!)… A resposta foi um tabefe tão bem puxado e certeiro que deitou Braga por terra»” (249). Pouco mais de três meses depois, Augusto Franco publicava em sua coluna uma carta-resposta de Teófilo Braga – carta enviada a Eugênio Silveira, diretor da União Portuguesa – na qual o autor português faz referência à coluna de Augusto Franco no Jornal do Comércio, que lera em Lisboa. Teófilo, além de negar o relatado naquele jornal de Juiz de Fora, afirma que “bordar sobre isso lendas de boémia literária a que nunca pertenci, é de uma infelicidade que raiva pela imbecilidade” (250). A polêmica, portanto, ganhava abrangência à medida em que autores de segunda linha tomavam partido, engrossando os circuitos do debate. Por outro lado, essa abrangência era ainda incrementada por outra via: a dos próprios referenciais teóricos manejados por cada um dos autores, os quais buscavam, tanto quanto possível, estribar os seus raciocínios e as suas posições na palavra de intelectuais de reconhecida compaginação com a sua parte ou de reconhecida incompatibilidade analítica com a parte contrária. Assim se explica, por exemplo, que Silvio Romero tenha dedicado a Herculano e a Antero de Quental a publicação de sua obra A Pátria Portuguesa, o território e a raça, onde critica fortemente a tese de Teófilo Braga sobre a formação da nacionalidade portuguesa (251), quando era sabido que tanto Antero como Herculano haviam também polemizado com Teófilo Braga. O alargamento da facção romeriana estendia-se ao espaço cultural português, incorporando na polêmica, desse modo, linhas de fratura já constituídas à escala lusitana. 249

Jornal do Comércio, Juiz de Fora/MG, 02/12/1899, p.1. Jornal do Comércio, Juiz de Fora/MG, 15/02/1900, p.1. 251 ROMERO, Silvio. A Pátria Portuguesa, o território e a Raça. Apreciação do livro de igual título de Teófilo Braga. Lisboa. Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1906. Teófilo Braga defendia a pertinência do critério racial na compreensão da nacionalidade portuguesa. Contra ele, polemizou Herculano e, principalmente, Oliveira Martins. 250

113

Por fim, vale evocar a facilidade com que as etapas da polêmica deslizavam para as páginas de órgãos de divulgação extrínsecos quer a Portugal quer ao Brasil. Há temos registro de ecos em revistas francesas, italianas e espanholas, conhecidas pelos opositores (252). Assim, podemos ter uma noção aproximada da extensão atingida pela querela. O que obriga a equacionar a questão do debate mais profundo e da razão teórica subjacente à polêmica. Ora, essa razão coincidia com a definição cientificamente instruída de uma escala nacional de referência e dos critérios para demarcá-la. Desembocamos, pois, no problema da originalidade, verdadeiro epicentro da disputa.

3.1.4.

A despeito da intensidade da polêmica, os pólos desavindos

pisavam terreno comum. Sua intersecção era ditada por uma mesma perspectiva cientista do estudo das histórias e culturas nacionais, pela comum importância concedida à elaboração de uma História da Literatura nacional, a qual, no âmbito do cientismo historiográfico (253), era tida por prova factual da sedimentação étnica e moral ao longo das épocas de formação da nacionalidade, tornando-se a sua âncora epistêmica. Afinidades elementares, portanto. O que não espanta. Afinal, só em função de alguma comunhão de perspectivas se compreende o projcto conjunto luso-brasileiro da Revista de Estudos Livres, que tinha como missão “reatar 252 Tanto Romero quanto Teófilo, em suas réplicas e tréplicas, mencionam informações tiradas, estritamente acerca dos textos um do outro, de fontes outras que não as brasileiras nem portuguesas. Considera Romero: “falo ao meu país e o faço provocado por uma revista espanhola de Sevilha – Boletin Folklórico Español, que não sabendo dos factos, bateu palmas às escamoteações do professor açoriano”. Menciona ainda a revista Polyblion, de Paris. Por sua vez, Teófilo afirma que “por alguns compte-rendu, publicados em revistas francesas e italianas, em 1887, é que soube da existência do livro do Sr. Sílvio Romero – Uma Esperteza”. ROMERO, Silvio. Uma Esperteza. Os Cantos e Contos Populares do Brasil e o Sr. Teófilo Braga. Protesto. Rio de Janeiro: Tipografia da Escola, de Serafim José Alves, 1887, p.13 e BRAGA, Teófilo. Carta de Teófilo Braga In: PAXECO, Fran. PAXECO, Fran. Cartas de Teófilo Braga (com um definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas «confissões» de Camilo). Lisboa: Portugália, 1924, p.191. 253 Sobre cientismo e história, consultar CATROGA, Fernando. Caminhos do fim da história. Coimbra: Quarteto, 2003.

114

a aliança mental luso-brasileira” e que é precisamente apadrinhado por Sílvio Romero e por Teófilo Braga (com Teixeira Bastos e Carlos von Koseritz). O reconhecimento da mútua pertença a um mesmo universo de referências teórico-científicas explica a posição da obra de Carlos von Koseritz polêmica entre Romero e Braga. Registre-se que Koseritz – um dinâmico divulgador das ideias evolucionistas e cientistas no Rio Grande do Sul –, surge com frequência junto de ambos os autores em conflito, quer genericamente no âmbito da cruzada antimetafísica, quer especificamente no quadro da direção da Revista de Estudos Livres. Não surpreende, pois, que o encontremos ao lado de Romero (e de Tobias Barreto) em defesa da institucionalização das peculiaridades filosóficas brasileiras – Koseritz foi o primeiro editor de Romero no Brasil –, tal como não surpreende que o encontremos em cúmplicidade com Teófilo, a quem agradece “um juízo crítico de inestimável valor, a um pequeno e pouco importante trabalho, como os modestos Bosquejos etnológicos”(254). Com base nesta movimentação de Koseritz no seio de uma escala teórica comum a ambos os polemizadores, compreende-se que sua obra Bosquejos etnológicos (255) apareça como um estudo que interessava tanto ao português açoriano como ao brasileiro sergipano. É que a coletânea de dados arqueológicos e etnológicos realizada por ele (256) tinha papel importante na definição da ação portuguesa no contato com os índios brasileiros – e assim propiciava alguns elementos para a definição das características da lusitanidade, que interessava Teófilo –, bem como tinha 254 Carta de Koseritz a Teófilo de 22/12/1884. In: Quarenta Anos de Vida Literária 1860-1900) – Cartas a Teófilo Braga, com um prólogo “Autobiografia mental de um pensador isolado”. Lisboa: Tipografia Lusitana – Editora Artur Brandão, 1902, p.210-211. Registe-se que Koseritz teve também A Terra e o Homem à luz da Ciência Moderna resenhada, por Teixeira Bastos, nas páginas da Revista de Estudos Livres. 255 Está acessível ao público parte dos Bosquejos etnológicos, no volume organizado por René Gertz. Karl von Koseritz: seleção de textos. Porto Alegre: Edipucrs (Coleção Pensadores Gaúchos), 1999. 256 A colecção foi praticamente destruída durante a exposição brasileiro-alemã, em 1881.

115

relevo para Silvio Romero, no sentido de determinar a genuinidade do tipo nacional brasileiro, nomeadamente no que diz respeito às influências indígenas. Ou seja, a avaliar pela atitude tomada por cada um deles em relação à obra de Koseritz, é possível sustentar que Romero e Teófilo se moviam de acordo com preocupações comuns e visavam um comum objeto teórico. Por mais paradoxal que pareça, será justamente esta comunhão de objetivos o que vai ditar o surgimento das altercações. Exemplo disto foi a disputa que levantada entre os dois a propósito do acesso ao material de pesquisa de Koseritz, obviamente do interesse de ambos: para Teófilo, Romero terse-ia apropriado desse acervo; para Romero, Koseritz, como seu amigo que era, cedera-lhe o material. A comunhão entre os dois é detectável no plano dos pressupostos – a necessidade de trabalhar de acordo com os postulados da ciência positiva – e no plano dos objectivos – a definição das características prototípicas das respectivas culturas nacionais. Ela cessa, contudo, no plano do investimento interpretativo. Porque era aí que, colocando-se a questão da demarcação entre as culturas brasileira e portuguesa, colocava-se também o problema da primazia, da dívida, da herança, da diferença. Numa palavra: despoletava-se questão da originalidade. E, a este nível, deslocada a problemática para a escala do relacionamento intercultural, resultava inquestionável que as opiniões de um dos autores interferiam diretamente sobre o edifício teórico do outro. Assim, a comunhão cedia lugar à concorrência. A temática da originalidade, na verdade, já estava em evidência desde o primeiro artigo de Romero na Revista Brasileira, em 1879. Neste texto, recorde-se, é dito que “uma nação se define e individualiza quanto mais se afasta pela história, do carácter das raças que a constituíram, e imprime um cunho peculiar à sua mentalidade”, e que “a nação brasileira, se tem um papel histórico a representar, só o poderá fazer quanto mais 116

separar-se do negro africano, do selvagem tupi e do aventureiro português” (257). Desde esse texto processa-se como que um amadurecimento intelectual da perspectiva nacionalista romeriana, fundado, em grande parte, nos estudos sobre a literatura nacional. É crível que o papel atribuído ao mestiço na sua ideia da nacionalidade brasileira seja concebido neste contexto. Afinal, Romero justifica que em sua busca pelo caráter do genuíno nacional, nunca conseguiu entrar em contacto com um elemento puro das etnias que formaram o povo brasileiro. Nem índios, nem negros, nem portugueses restaram incólumes ao contato. Frente ao choque de culturas que o experimento colonial português fomentou, não restou nenhuma ontologia étnica intacta. Daí o recurso à mestiçagem como a nova e original ontologia da nação brasileira. Entende-se, assim, que ele escreva, em 1883, que o transformismo é “a lei que rege a história brasileira” (258), ideia que lhe permite sustentar, de alguma maneira, a noção da mestiçagem (259). Ententende-se, assim, que na sua principal obra – História da Literatura Brasileira, editada depois do início da polémica, em 1888 –, Silvio Romero profira a sentença que já citamos e que resume seu pensamento: “todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas ideias” (260). O que se deve perguntar, agora, é em que medida seu projeto poderia estar ameaçados pela ação de Teófilo Braga. No momento em que 257 ROMERO, Silvio. “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo” In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.273274. 258 ROMERO, Sílvio. “Modernas Escolas Literárias”. In: Estudos de Literatura Contemporânea. Edição Comemorativa. Organização de Luiz António Barreto. Rio de Janeiro: Imago, 2002, p.69. 259 Para Romero, entenda-se, a mestiçagem é o resultado da acção da história no Brasil, não sendo, por isso, fruto exclusivo da determinação do território. É pelo contacto social, advindo da história colonial, que o mestiço aparece como força nacional. É nesse ponto que Romero discorda de Araripe Júnior e com ele também polemiza. A mestiçagem de Romero é resultado histórico, o tropicalismo de Araripe Júnior é determinado pela natureza. 260 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Tomo Primeiro. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. Colecção Documentos brasileiros, dirigida por Octávio Tarquínio de Sousa. 3ª Edição organizada e prefaciada por Nelson Romero, [1888] 1943, p.30-40.

117

a polêmica com Silvio se intensifica, desde há muito Teófilo andava às voltas com a questão da originalidade portuguesa no âmbito das nações da Península Ibérica. Por exemplo, em 1871, publica Epopeia da Raça Moçárabe, aonde vai defender que a nacionalidade portuguesa justifica racialmente a existência de Portugal como nação. Nesta sua diatribe, o moçárabe é apresentado, praticamente, como um “mestiço” – oriundo do contato entre raças góticas e árabes na faixa de território mais ocidental da Península Ibérica (261). Por isso, em 1908, em conferência na Academia das Ciências de Portugal, afirma ter Portugal “originalíssima personalidade” (262). Veja-se, então, a presumível angústia de Silvio Romero: se o português moçárabe também mestiço fosse, logo, o brasileiro mestiço seria apenas um herdeiro das características mais peculiares do português. Não se distanciaria de Portugal. Não fundamentaria a cultura brasileira. E, retirando ao seu mestiço brasileiro a originalidade histórica, ele perderia sua razão de ser. Comprometida ficaria a fundamentação da soberania cultural brasileira. O que nos leva à seguinte consideração: a posição na cultura nacional ocupada pelo mestiço, na ideia de cultura brasileira de Silvio Romero, é análoga à ocupada pelo moçárabe, na noção de cultura portuguesa de Teófilo Braga. O problema está em que, ao admitir-se a mistura racial como característica lusitana, tudo o que se disser sobre a mestiçagem racial brasileira terá, necessariamente, relação íntima com 261

“Aqui dá-se um curioso fenómeno etnográfico: aparecem as designações geográficas, os nomes de família, a nomeclatura tecnológica, os característicos das autoridades políticas e civis árabes; mas os símbolos poéticos do direito, as tradições épicas, as lendas orais, as superstições são puramente germânicas. Por esta ordem de criações da raça moçárabe se vê a sua constituição fisiológica. Como indomável, o semita cede aquelas qualidades exteriores e visíveis de uma civilização que deslumbra, mas não comunica os sentimentos privativos e orgânicos da raça; por outro lado o godo, como ariano e atraente, não podendo homologar a alma árabe, adopta dela aquilo que se não pode encobrir aos olhos. A designação do Moçárabe, encerra esta noção perfeitamente definida”. BRAGA, Teófilo. Epopeia da Raça Moçárabe. Imprensa Portuguesa Editora, 1871, p.25-26. 262 BRAGA, Teófilo. “Plano para a História de Portugal”. Antelóquio a PAXECO, Fran. Portugal não é Ibérico. Lisboa: Livraria Rodrigues, 1932, p.6-7.

118

Portugal. A polêmica e a virulência das acusações trocadas são, assim, filhas de uma luta pela originalidade num complexo processo de redefinição de fronteiras memoriais, aonde a assunção da escala nacional, como referência analítica, possui papel primordial. Trata-se de um processo marcado por “um significativo potencial de turbulência, na medida em que a historicidade inscrita em assuntos de limites e demarcações fomenta, por si só, a coexistência de memórias não coincidentes sobre [as modalidades de definição] desses limites” (263). Afinal, a palavra original tem duplo sentido: um, relativo à origem, que remete à ideia de início; outro, relativo à noção de inédito, que não foi copiado de nenhum modelo. Por isso a guerra simbólica pelo critério de originalidade se revela tão importante. Em última instância, a querela dos originais punha em evidência a “nação” como critério histórico, redefinindo, dessa maneira, as modalidades de relacionamento entre as culturas de Portugal e do Brasil. Por vezes, essa redefinição ocorreu ao sabor de estratégias de dissensão. Foi o que vimos. Outras vezes essa mesma redefinição promoveu estratégias de consenso. É o que passamos a abordar.

3.2 A linha do consenso, ou a ambição do comemoracionismo.

As comemorações camonianas de 1880 são exemplificativas do que Fernando Catroga chamou uma “liturgia de fundo historicista”. Como ele mesmo diz, o investimento comemorativo assenta em um “tempo acumulativo característico das concepções evolutivas da história”, onde o futuro representa o desenvolvimento “das potencialidades do passado, e o 263

MARTINS, Rui Cunha. “A Arena da história ou Labirinto do Estado? Delimitações intermunicipais e memórias concorrenciais nos inícios do século XX”. Cadernos do Noroeste. 15 (1-29), 2001, p.38.

119

paradigma dos «grandes mortos» devia funcionar como farol a sinalizar a marcha do devir”. As festas cívicas, assim, representam “autênticas lições móveis de história. Com elas, procurava-se invocar o passado e suscitar a emergência do invisível como arquétipo paradigmático, epifania que, em analogia funcional com as religiões propriamente ditas, se manifestava num espectáculo cheio de simbologia e de emotividade, criador de um clima adequado ao reforço da ligação dos indivíduos a uma totalidade que os integrasse e motivasse” (264). Pensadas, portanto, como modalidade de incorporação dos indivíduos, as comemorações convocam um problema correlato: da escala da incorporação, isto é, o da decisão sobre a totalidade produtora de sentido à qual é suposto reportar-se cada participante da festividade. E se nem sempre há acordo, é justamente em virtude do potencial de consensso que se reconhece ao espírito comemorativo e que, suscitando resistências a uns (através de polêmicas), se oferece a outros como pretexto para a reinvenção de uma unidade de pertença à escala comemorada. No nosso caso concreto, estão neste segundo caso todos aqueles que fizeram da festa camoniana um pretexto para refundar as culturas portuguesa e brasileira nos termos de uma escala cultural lusobrasileira.

3.2.1. A escolha de Camões – ao ser determinada pela associação do poeta a um período áureo da evolução histórica portuguesa e pelo reconhecimento da sua figura como expoente lusitano para o progresso da humanidade – confere à festa o caráter de “revivescência nacional”. Foi isto mesmo o que disseram-no, de forma convicta, os intelectuais contemporâneos do evento. Teófilo, por exemplo, ciente como estava de que “toda a grandeza e sumptuosidade que se desenvolver adquire uma 264 CATROGA, Fernando. “Ritualizações da história”. In: TORGAL, Luís Reis; MENDES, José Amado e CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX – XX. Volume II. Coimbra: Temas e Debates, 1998, p.223-224.

120

significação mais profunda, não só em relação ao lugar que nos compete na história da civilização, como nos acidentes que envolverem o futuro da nossa nacionalidade” (265). Júlio de Mattos, por sua vez, consciente da “alta significação política” da homenagem a Camões, saudava-o para “lavrar um protesto contra a atonia em que nos lançaram o elemento clerical e o elemento monárquico”, e para “declarar que entramos na fase consciente da política democrática” (266). No fundo, estas e outras intervenções confirmam um dos aspectos da comemoração, a saber: a mobilização de critérios políticos do presente na altura de depurar seletivamente o passado e as suas figuras emblemáticas, disponibilizando-os para sua utilização para fins celebratórios e para a construção de novas hagiografias nacionais. Disto resultam duas noções fundamentais para uma adequada compreensão das comemorações cívicas: a de “grande homem”, enquanto encarnação simbólica da história nacional; e a de “humanidade”, entendida como o grande sujeito de uma modernidade evoluente, sempre em direcção à maior perfectibilidade. Bem vistas as coisas, estes dois elementos de liturgia cívica são quase que duas faces simbólicas de uma mesma moeda temporal. Afinal, “na obra do «grande homem», é a história que se revela, pelo que a aferição da sua magnitude pertencerá à posteridade, quer dizer, ao momento futuro de que ele mesmo terá sido o primeiro dos precursores”, sendo que esta concepção da história está intimamente vinculada à apreciação de um movimento teleológico que tem na “humanidade” a sua escala referencial primeira. A tendência à perfeição da

265 BRAGA, Teófilo. “O Centenário de Camões”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.1, outubro/novembro , 1879, p.2-3. 266 MATTOS, Júlio de. “A significação filosófica e social das festas do Tricentenário de Camões”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.5, Junho/Junho, 1880, p.399.

121

humanidade é reflectida também como uma antropodiceia de dimensão épica (267). Interessa-nos

especialmente

este

“salto”

epistêmico

entre

individualidade e humanidade. É certo que sua efetivação não brigava, muito pelo contrário, com os pressupostos teóricos da comemoração. Isto explica Júlio de Mattos, em discurso pronunciado no teatro de S. João, na manhã do dia 10 de Junho de 1880, na abertura da sessão solene dos académicos do Porto: “dizer que a humanidade inteira realiza a sua marcha progressiva como se fora um homem só que subsistisse e aprendesse sempre, vale o mesmo que afirmar que as sociedades têm, como os indivíduos, uma evolução determinada, prevista em muitos casos, superior no fundo a todas as acções individuais que possam opor-se-lhe” (268). Indiscutível seria, nesse sentido, a escolha de Camões: escolha “lógica, nomeadamente após a sua mitificação romântica e a sua «democratização» feita nos inícios dos anos 70 pelos estudos de Teófilo Braga e Oliveira Martins”. O poeta simbolizava “tanto a Nação como a humanidade, ou melhor, permitia reivindicar para a Nação uma parcela na construção da marcha ascendente da humanidade, ao mesmo tempo que o seu canto das glórias e as suas denúncias das vilezas passadas não deixavam de gerar confrontações críticas em relação ao mundo de «apagada e vil tristeza» em que Portugal se tinha transformado” (269). O que toma particular destaque, para o nosso escopo, é o fato de esta perspectiva, ao permitir a assimilação entre nacionalismo e cosmopolitismo no quadro do movimento

267 CATROGA, Fernando. “Ritualizações da história” In: TORGAL, Luís Reis; MENDES, José Amado e CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX – XX. Volume II. [sem local] Temas e Debates, 1998, p.221. 268 MATTOS, Júlio de. “A significação filosófica e social das festas do Tricentenário de Camões”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.5, Junho/Junho, 1880, p.395399. 269 CATROGA, Fernando. “Ritualizações da história” In: TORGAL, Luís Reis; MENDES, José Amado e CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX – XX. Volume II. [sem local] Temas e Debates, 1998, p.226.

122

comemorativo, permitir também a simultaneidade de diferentes escalas de referência atuantes no contexto da festa cívica (270). Efetivamente, como frisa Teófilo, joga-se na homenagem a Camões o “futuro da humanidade, levando as nações da Europa a conhecerem as suas origens étnicas, e a saberem explicar o seu passado”. Por isso, defende inequivocamente que “o Centenário de Camões é também uma comemoração europeia” (271). E não apenas europeia: o significado da festividade e da própria escala comemorativa se estendia também ao Brasil. Neste país, onde uma nova geração de intelectuais brasileiros – “fortalecida”, segundo Teófilo, pela educação positiva e pelo critério sociológico – rompia com a velha “hostilidade que uma política dinástica de egoísmo assentou entre Portugueses e Brasileiros”. Isto tornava possível restabelecer as “condições naturais da reciprocidade dos dois povos”, apesar da existência de críticas e dissidências em relação aos festejos camonianos no Brasil (272). O que fazia da magnitude destes festejos – porque realizados no Brasil – era a expressão da “sociolatria” comtiana, bem como uma manifestação a mais da “religião demonstrada” pela cientificidade moderna. Porque, de acordo com este tipo de pensamento, “só a ciência com as conclusões verificáveis é que consegue estabelecer

270 Como manifesta esta declaração de Teófilo Braga: “cada povo escolhe o génio que é a síntese do seu carácter nacional, aquele que melhor exprimiu essas tendências, ou o que mais serviu essa individualidade étnica; o vulto de Cervantes simbolizará em todos os tempos a Espanha, como Voltaire representa em todas as suas manifestações o génio francês; Dante, Petrarca e Miguel Ângelo para a Itália, Shakespeare ou Newton para a Inglaterra, Luthero e Goëthe para a Alemanha, Espinosa para a Holanda, são os laços por onde estes povos, mantendo o seu individualismo nacional, se prendem ao grande conflito da história como esforços colectivos que conduziram para a noção da humanidade que se afirma”. BRAGA, Teófilo. “O Centenário de Camões”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.1, outubro/novembro, 1879, p.2. 271 Idem, ibidem, p.7. 272 Como foi o caso de um Araripe Júnior, para quem as comemorações “aviltavam o orgulho nacional”.

123

uma verdadeira unanimidade” (273). O que quer dizer, no contexto comemorativo, um verdadeiro consenso. No âmbito desta procurada abrangência, é verosímil que a festa camoniana ambicionasse algo mais do que o estabelecimento de um “novo calendário nacional” português, perspectivando instaurar, igualmente, um novo calendário transatlântico e, com ele, um novo padrão de relacionamento luso-brasileiro. Conforme passamos a expor, há indicadores nesse sentido: desde o programa dos festejos camonianos no Brasil ao dinamismo parisiense de Miguel Lemos ou à significância do discurso de Joaquim Nabuco, era sempre de um comemoracionismo luso-brasileiro que se tratava.

3.2.2.

Vejamos o caso de Miguel Lemos, intelectual brasileiro a

estudar em Paris. Segundo Teófilo Braga, “em Paris a festa do Centenário de Camões foi sustentada (...) por brasileiros que ali seguem cursos científicos”, assim garantindo um momento de “confraternidade dos dois povos”. Verdadeiramente, foi à ação de Miguel Lemos que se deve a iniciativa de “celebrar o terceiro centenário do ilustre cantor das glórias portuguesas”. É o próprio quem afirma ter ele mesmo lembrado “ao Sr. Laffitte a necessidade de se fazer alguma coisa neste sentido na Igreja Parisiense”, logo se autopropondo para dinamizar um “trabalho de apreciação sobre Camões e a nacionalidade portuguesa ” (274). Diante da autorização concedida por Pierre Laffitte, Miguel Lemos teria escrito “ao Sr. Teixeira Mendes fazendo-lhe ver a necessidade de promover essa [comemoração] entre os brasileiros, para significar assim a reconciliação 273 BRAGA, Teófilo. “O Centenário de Camões”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.1, outubro/novembro , 1879, p.1 274 Explica Lemos: “uma moléstia inopinada impediu-me de cumprir este encargo, mas o trabalho estava feito: foi primeiro publicado na Revue Occidentale e depois em volume”, intitulado Luiz de Camões, e do qual nos ocuparemos a seguir. LEMOS, Miguel. Resumo histórico do movimento positivista no Brasil. Rio de Janeiro: Sociedade Positivista, 1882, p.24.

124

definitiva da antiga colônia com a metrópole, reconciliação cujo verdadeiro carácter só podia ser fornecido pela nova doutrina, que sabe fazer suceder aos velhos ódios o vivo sentimento de continuidade histórica”. Segundo ainda Miguel Lemos, Teixeira Mendes teria de pronto aceitado a ideia, levando a cabo a empreitada com ajuda de alguns membros do jornalismo (275). Atentemos para a ideia de que as comemorações camonianas representam a mobilização de um “sentimento de continuidade histórica” (276). A continuidade histórica que Portugal e Brasil deveriam corporizar. Justifica-se, assim, o prefácio feito ao trabalho de Miguel Lemos, Luiz de Camões, onde se defende ser de suma utilidade que “la glorificcation du meilleur type portugais soit faite à Paris, et soit faite par un Brésilien : il y

275 LEMOS, Miguel. Resumo histórico do movimento positivista no Brasil. Rio de Janeiro: Sociedade Positivista, 1882, p.25. Grifo nosso. 276 Nesse sentido, vale a pena destacar mais detalhadamente a obra que Miguel Lemos escreveu em Paris, em 1880, em homenagem ao autor dos Lusíadas. Importa ressaltar que esta obra foi dedicada a Pierre Laffitte, enquanto “directeur du Positivisme, sucesseur d’Auguste Comte”, numa clara alusão à vertente mais ortodoxa do positivismo, que remete para uma adesão acrítica aos conhecimento propagados por Comte, bem como ao apostolado positivista da “religião da humanidade”. A interpretação do positivismo foi diferente se compararmos os casos de Portugal e Brasil, como será aclarado posteriormente neste trabalho. Nomeadamente Teófilo Braga, Teixeira Bastos e Júlio de Mattos, para dar alguns exemplos, aceitaram com maior ardor a primeira fase da obra comtiana, na época liderada por Émille Littré, e simbolizada pelo Curso de Filosofia Positiva, de Augusto Comte, obra marcadamente experimentalista e materialista. No caso brasileiro, Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, os principais líderes do movimento positivista nacional, acabaram por aderir com força aos preceitos da vertente mais ortodoxa do positivismo, conduzida por Pierre Laffitte e bem simbolizada pelas últimas obras de Comte, como Síntese Subjectiva ou Sistema Universal das Concepções Próprias ao Estado Normal da Humanidade, texto claramente vinculado ao testamento do criador do positivismo. De qualquer forma, é bom que se diga, parece que, no que concerne às comemorações camonianas, a mobilização tanto das noções de “grande homem” quanto da escala filosófica da “humanidade” como sujeito do progresso não parece ter tido grandes diferenças entre portugueses e brasileiros ou entre heterodoxos ou ortodoxos positivistas. A este respeito, frisamos, com Fernando Catroga, que “a diferença entre a ortodoxia comtiana e os seus heterodoxos discípulos portugueses residiu, sobretudo, em aspectos dogmático-formais, já que em todas as versões se detecta esta característica comum: o empenho na edificação de uma galeria hagiográfica de «grandes homens» posta ao serviço do reforço de um novo consenso social”. CATROGA, Fernando. “Ritualizações da história” In: TORGAL, Luís Reis; MENDES, José Amado e CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX – XX. Volume II. Coimbra: Temas e Debates, 1998, p.223-224.

125

aura lá une démonstration éclatante de l’universalité de la nouvelle religion, qui glorifie les services des grands hommes de tous les pays”(277). Na conjuntura da divulgação da filosofia positivista e do movimento republicano – que, em 1880, era concomitante em Portugal e no Brasil – é necessário, do ponto de vista positivista brasileiro, “renoncer aux vieux préjugés contre la mère patrie”. Parte-se do pressuposto que “sociologiquement partant, les Brésiliens sont Portugais : des liens d’amours et de reconnaissance doivent nous rattacher éternellement à la souche historique d’où nous provenons”. Afinal, “une nation qui ne se reconnait pas d’antécédents est exposée à se dissoudre, et les appendices américains de l’Occident ont besoin, pour échapper à ce danger, de relier leur nassainte histoire aux tradition de leurs ancêtres et d’instituer, sous l’inspiration de la vrai philosophie, le digne culte du passé nacional”(278). Ora, fica evidente que, no intuito de restabelecer a “ordem” e cimentar o “progresso”, os positivistas brasileiros, alimentados pelo ideal da fraternidade universal positiva, julgam fundamental restabelecer os vínculos com o “passado nacional”, e, assim, restabelecer a relação com Portugal. Este processo tanto melhor seria desenvolvido se houvesse um “grande homem” comum às duas nações de fala portuguesa, recordado como símbolo do desenvolvimento da marcha evolutiva da humanidade e do progresso. Camões enquadrava-se idealmente nesse pressuposto. No intuito de criação de uma memória comum luso-brasileira, Miguel

Lemos

reconhece

a

indispensabilidade

de

recorrer

aos

ensinamentos de alguns intelectuais portugueses. Nesse sentido, dirá: “j’adopte entièrement la dénomination qu’Herculano – un historien portugais dont le nom reviendra souvent dans ces pages – appliqua un jour aux produtions de l’anarchie scientifique de notre temps, à toutes ces 277 278

LEMOS, Miguel. Luiz de Camões. Paris: Siège Central du Positivisme, 1880, p.III. Idem, ibidem, p.III-IV.

126

sciences nouvelles qui s’intitulent anthropologie, ethnographie, préhistoire, science des religion, etc., etc. Il appela tout ce fatras incohérent et verbeux, un gongorisme scientifique. Le mot est heureux et mérite d’être retenu”. Ora, importa realçar que, neste caso, a referência à obra de Alexandre Herculano, e, sobretudo, às críticas ao que ele chamava de “gongorismo científico”, tinham alvo certo: a vertente encabeçada por Émile Littré que realçava um materialismo tout court. Tanto é que Miguel Lemos logo se afadiga em demonstrar possuir “la plus grande sympathie pour les écrivains qui, en Portugal ou ailleurs, battent vaillament en brèche la vielle rhétorique et les vieux préjugés”, considerando que “les positivistes ont le droit d’exiger que leur doctrine, à eux, ne soit pas confundue avec ces élucubrations, qu’elle ne saurait patronner. Ces prétendues sciences, conçue dans un sprit tout à fait contraire à la saine philosophie, ne renferment en somme que des fragments détachés de la sociologie et de la morale, et quelques documents susceptibles d’êtres joints aux acquisitions concrètes” (279). Entretanto, a dívida para com o historiador romântico Herculano não implica, da parte de Miguel Lemos, a renúncia aos ensinamentos da geração de 1870 portuguesa. Como ele mesmo salienta, se “dans la partie relative aux origines et à la formation du Portugal, j’ai suivi, en le résumant parfois, le récit d’Herculano”, não omite “la justesse partielle de certaines critiques récentes” – referindo-se à História do Romantismo em Portugal, de Teófilo Braga, editada em Lisboa, em 1880, bem como ao “mérito literário” de obras como a História de Portugal de J.P. de Oliveira Martins, editada em 1879 (280).

279

Idem, ibidem, p.VII. “En ce que concerne directemente la biographie de Camões, je tiens à déclarer que je me suivi servi surtout des derniers travaux de MM. Juromenha et Theophilo Braga, sans négliger cependant de prendre connaissance de toute la série des travaux antérieurs ; ceci m’a été facile, grâce aux richesse mises libéralement à la disposition du public par la Bibliothèque nationale”. LEMOS, Miguel. Luiz de Camões. Paris: Siège Central du Positivisme, 1880, p.VIII.

280

127

Do nosso ponto de vista, estes breves excertos são suficientes para fazer notar o seguinte: que, se no comemoracionismo português a escolha do poeta surgia como absolutamente natural – sobretudo após sua depuração, primeiro romântica e depois teofiliana e martiniana (281) –, também no escopo do comemoracionismo brasileiro as obras destes autores constituem referência incontornável na hora de sustentar o lugar tópico da lusitanidade no seio da evolução histórica a ser celebrada. Visivelmente a festa camoniana consolidava o entendimento relacional das culturas portuguesa e brasileira, sugerindo uma característica de base comum e cientificamente recuperada, representando uma fase pós-preconceituosa do relacionamento luso-brasileiro. Como se verá, a programação do evento reflete essa leitura.

3.2.3. Voltemos às festas propriamente ditas. Mais especificamente ao programa brasileiro. Temos conhecimento de eventos comemorativos em homenagem ao autor de Os Lusíadas em várias regiões do Brasil, dentre as quais Pernambuco, Bahía, São Paulo e Rio Grande do Sul. Destaca-se, porém, os festejos ocorridos no Rio de Janeiro (282). No dia 10 de Junho, no Teatro Ginásio desta cidade, as comemorações iniciaram com a execução do hino português. Em seguida, Raimundo Teixeira Mendes realiza um discurso monumental sobre a compreensão histórica de Camões entre os grandes tipos da humanidade. Para além do hino português, também foram tocados, nessa ocasião, trechos da Semiramis, da Africana, e do Guarani, 281

Assim, vemos Miguel Lemos a ecoar a tese iberista de Oliveira Martins sobre a formação de Portugal, reafirmando que “Tout en conservant des caractères communs avec la population espagnole, les Portugais par une suite de modifications politiques et sociales, arrivèrent à un état complet de différentiation nationale” e que “il faut l’accepter comme un des résultats fondamentaux de l’évolution ibérique et comme un cas anticipé de l’avenir normal où les grandes nationalités actuelles, pour obéir aux besoins d’un régime industriel et pacifique, se résourdront en un certain nombre de petites patries qui se suffiront à elles-mèmes, comme le Portugal, la Hollande, la Suisse et la Belgique”. Idem, ibidem, p.276-277. 282 JOÂO, Maria Isabel, “Percursos da Memória: centenários portugueses no século XIX”. In: Camões. Revista de Letras e Culturas Lusófonas. Nº 8, Janeiro/Março de 2000.

128

completando musicalmente a cena numa claramente menção sonora à compreensão da “cultura” pelo critério da mestiçagem, bem como referenciando que esta deu-se em consonância com o mito das três raças. A agenda detalhada e os pormenores descritivos do programa comemorativo não nos interessam de todo – apesar do entusiasmado regitro de Teófilo Braga (283). Limitemo-nos a reter, a partir das suas informações, terem sido igualmente significativas “as festas do Centenário de Camões em São Paulo”, levados à cargo pela “iniciativa de um grupo de positivistas”. Segundo ele, entretanto, uma das vertentes mais auspiciosas das comemorações terá sido a realização de uma exposição camoniana, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro que reuniu “quatrocentos e oitenta produções diversas, edições, traduções, estudos críticos e trabalhos artísticos de primeira raridade”. Uma esmagadora exibição cujo sentido não era difícil de descortinar. Conforme o discurso de abertura da exposição, a cargo do Dr. Ramiz Galvão, bibliotecário e organizador da mostra, é salientado que “a duas mil léguas de Lisboa, nesta generosa terra americana, uma geração se levanta para saudar o Centenário do Poeta, que 283

Segundo Teófilo, “o palco do teatro estava armado em templo com colunas greco-romanas, que simbolizavam as duas civilizações iniciadoras da época da Renascença a que Camões pertence. As civilizações orientais estavam representadas por duas Esfinges, bem como por mais outras duas que representavam a civilização do Egipto. O escudo de Camões dominava todo o templo, e nele sobressaíam as águias romanas, símbolo da civilização que se desdobrou nas línguas, literaturas e nacionalidades do ocidente. A continuidade humana do passado estava representada por bandeiras que ornavam o teatro; uma, alusiva aos povos pré-históricos, tinha ao centro um lar, significando a descoberta do fogo; ao lado machados de pedra e de bronze, figurando as épocas antropológicas; a outro lado, flechas, dardos, representando o nomadismo da caça e da guerra; amimais domésticos, significando a vida pastoral, e a sua cooperação na luta do homem pela existência; finalmente espigas de milho, como iniciação do período agrícola. Em outra bandeira, estavam simbolizadas as teocracias antigas pelas pirâmides egípcias; o politeísmo e a arte helénica pelo frontão de um templo grego; e a unidade política pelas guerras civilizadoras por meio das águias romanas. Os povos modernos estavam representados pelos seus pavilhões, sobressaindo os de Portugal e Brasil. A época dos descobrimentos estava representada por colunas alusivas à África, Ásia e América, cooperando para este sentimento da vida do passado as manifestações artísticas que inspiraram Mayerbeer na Africana, e o brasileiro Carlos Gomes no Guarani. O povo ama o que compreende; foi essa por isso uma das manifestações mais concorridas”. BRAGA, Teófilo. “Centenário de Camões no Brasil”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880, p.513-514.

129

não cantou só as glórias do pátrio ninho, – mas uma página brilhante da história da humanidade, que não é tesouro de um século, de um povo, de um vate, de uma língua, mas tesouro de todos os tempos e de todos os lugares” (284). Para Teófilo “tudo quanto havia para avivar a tradição da nacionalidade portuguesa ali estava disposto com grande alcance histórico e filosófico. Ninguém entrou naquele santuário que não trouxesse uma mais elevada compreensão da solidariedade humana, e novos impulsos altruístas” (285). Por seu turno, as festas organizadas pelo Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro são, para Teófilo, impossíveis de descrever “sem uma enchente de lágrimas”. Primeiro, pela mera existência do Gabinete Português de Leitura, fundado em 1837 (e dotado de novo e suntuoso edifício) tece “o poder espiritual de congregar todas as forças do Brasil, 284

É minuciosa a descrição que Teófilo Braga faz das festas realizadas no Rio de Janeiro. Eis um exemplo: “O átrio da Biblioteca e o primeiro lanço da escadaria estavam adornados por palmeiras aparecendo em frente o busto de Camões, em terracóta bronzeada, do escultor francês Augusto Taunay. A porta do centro, do segundo lanço da escada, dava entrada para a sala da Exposição maravilhosamente adornada. Na parede esquerda, forrada de colchas de seda da Índia, dentre um maciço de verdura, destacava-se o grande busto de Camões, em gesso, obra do professor da Académia de Belas Artes, Chaves Pinheiro; ao lado dois gigantes vasos da Índia cheios de flores; junto da janela estavam duas cadeiras de espaldar, tauxiadas, exemplares perfeitos do estilo antigo. Nesta mesma parede estavam expostos, os quadros de Inês de Castro implorando a clemência do rei, de Vieira Portuense, um Retracto de Camões por Moraux, uma cópia de um antigo retrato de Inês de Castro, e outro quadro de Vieira Portuense, O Desembarque dos Portugueses em Moçambique. Na parede da direita da sala, estabam expostos os quadros da Ilha dos Amores, de C. Markó, Camões e o Jaú, na Igreja de Santa Anna, por Léon Moreax, e o Naufrágio de Camões, por De Martino; a outra lado desta mesma parede estava uma cópia fotográfica do quadro de Metrass, Camões e o Jau na gruta de Macau; um Retracto de Camões, pintura de Julião Martins, e um esboço de Naufrágio. Na parede do fundo, via-se o quadro de J. de Chevrel, Bacchio implorando socorro de Naptuno contra os Portugueses, um litografia do quadro de Metrasse por Aug. Off.; reproduçã fotográfica de um Naufrágio; os Últimos momentos de Camões, litografia de Dulong; Os Galeões do Gama dobrando o Cabo da Boa Esperança, do pintor de marinhas Thomasini; e um quadro à pena, e retracto em grande de Camões a crayon pelo prof. António Alves do Vale. Em frente do busto de Camões, estavam sob uma redoma três exemplares da primeira edição dos Lusíadas de 1572; um propriedade do imperador, notável pela nota manuscrita – Luiz Vaz de Camões seu dono 576 – outro propriedade da Biblioteca, notável pela conservação e grandes margens, o último jóia do Gabinete português de Leitura. Junto destes tesouros estava também o exemplar dos Lusíadas deturpado pelos Jesuítas, de 1584, conhecido pelo nome irrisório de Edição dos Piscos, da mais extrema raridade”. BRAGA, Teófilo. “Centenário de Camões no Brasil”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880, p.513-516. 285 Idem, ibidem, p.514-516.

130

unificando em uma festa sem igual dois povos irmãos, filhos da mesma tradição, afastados pelos efeitos históricos de uma política pessoal”. Depois, porque as comemorações teriam arregimentado cerca de três mil pessoas e, sobretudo, porque o evento central da noite inaugural, o discurso do escritor e deputado brasileiro Joaquim Nabuco, foi o “meio eficaz para dar ao Centenário um dos seus caracteres de universalidade, ligando por uma mesma emoção tradicional dois povos irmãos” e expressando “a calorosa simpatia com que é revivificada a tradição portuguesa de que o Brasil tira o seu impulso histórico” (286). E o que dizia Nabuco no seu discurso? Em primeiro lugar e a título introdutório, que as festas relativas ao Tricentenário da morte do poeta configuram uma manifestação de renovação nacional(287). Em seguida, que “nesta festa uns são Brasileiros, outros Portugueses, outros estrangeiros”, mas que “temos todos porém o direito de abrigar-nos sob o manto do Poeta”, pois “se o dia de hoje é o dia de Portugal, não é melhor para ele que a sua festa nacional seja considerada entre nós uma festa de família? Se é o dia da Língua Portuguesa, não é esta também a que falam 10 milhões de Brasileiros? Se é a festa do espírito humano, não paira a glória do poeta acima das fronteiras dos Estados, ou estará o espírito humano também dividido em feudos inimigos? Não, em toda a parte a ciência prepara a unidade, enquanto a arte opera a união”(288). Decididamente, o brasileiro não é um estrangeiro nas festas camonianas, cabendo-lhe papel relevante. Nabuco investe, seguidamente, na dimensão 286

Idem, ibidem, p.516-518. Grifos nossos. NABUCO, Joaquim. Camões. Discurso pronunciado a 10 de junho de 1880, no Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Leuzinger & filhos, 1880. Merece destaque ainda a folha de rosto, onde dedica o texto “Ao Sr. J.C. Ramalho Ortigão, 1.º secretário do Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro»”. Lembre-se que apesar das críticas e da celeuma provocada pelas Farpas, Ramalho Ortigão foi agraciado com zelo na ocasião das comemorações. Notemos que o Imperador D. Pedro II, alvo das crônicas humorísticas das Farpas, que deram origem à polêmica, estava presente na cerimónia. 288 NABUCO, Joaquim. Camões. Discurso pronunciado a 10 de junho de 1880, no Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Leuzinger & filhos, 1880, p.8-9. 287

131

histórica da pretendida comunhão luso-brasileira. E questiona: “não foi o Brasil descoberto, colonizado, povoado por Portugueses? Não foi uma colónia portuguesa durante três séculos, que se manteve Portuguesa pela força das suas armas, combatendo a Holanda, até que, pela lei da desagregação dos Estados, e pela formação de uma consciência Brasileira e Americana no seu seio, assumiu naturalmente a sua independência, e coroou o seu Imperador ao próprio herdeiro da Monarquia? Depois deste facto, apesar dos preconceitos hoje extintos, não tem sido o Brasil a segunda pátria dos Portugueses? Não vivem eles connosco sempre na mais completa comunhão de bens, num entrelaçamento em família, que tornaria a separação dos interesses quase impossível?”(289). E, se é verdade que o poema de Camões canta a descoberta do caminho das Índias, Nabuco não resiste a constatar que, em 1880, “a Índia Portuguesa é uma pálida sombra do Império que Afonso de Albuquerque fundou; ao passo que o Brasil e os Lusíadas são duas maiores obras de Portugal”(290). E isto não é tudo. Pela voz de Nabuco, na hora solene da comemoração, escuta-se, inclusive, que “o emigrante português chega ao Brasil sem fortuna, mas também sem vícios, e pelo seu trabalho cria capitais; vem só, e funda uma família; seus filhos são Brasileiros; falando a mesma língua, e da nossa raça, essa imigração nem parece de estrangeiros; todos os anos, à força de privações corajosamente suportadas, ela põe de lado uma soma considerável, que não acresce tanto à riqueza de Portugal como à nossa”(291). Tudo somado, conclui o palestrante: “Não preciso dizer, como aliás o podia fazer sem deixar de ser sincero, que nesta noite sou Português; basta-me dizer que acho-me animado para com a pequena, mas robusta Nação que fundou o Brasil, e que foi tanto tempo a Mãe Pátria, de um sentimento que, se não se confunde com o patriotismo, não deixa de 289

Idem, ibidem, p.9-10. Idem, ibidem, p.10. 291 Idem, ibidem, p.11. 290

132

confundir-se entretanto com o próprio orgulho nacional”(292). Por tudo isto, a celebração camoniana então inaugurada só pode ser entendida, dirá, como “a prova de que Portugal não morreu de todo em 1580, mas somente atravessou a morte, e de que os Lusíadas não foram o túmulo nem da raça nem da língua” (293). Os Lusíadas “não é um livro que torne ninguém Português, é um livro que torna todos patriotas”, dizia (294). Após o discurso de Nabuco, dá-se início à recitação de poesias a Camões, declamando D. Amélia Vieira, Dr. Rezende Moniz, entre outros. Logo após se representa uma peça dramática em um ato, Tu, só tu, puro amor, “escrita pelo distinto poeta brasileiro Machado de Assis, expressamente para essa noite” (295). Pelo exposto, parece seguro supor que o objetivo maior do evento havia sido alcançado. Em idêntico espírito celebratório, deve-se juntar textos de outros personagens, como Reinaldo Carlos Montoro (296) Ou discursos como os de Basílio Machado(297), ambos expressamente elaborados para a data, bem 292

Idem, ibidem, p.12. Idem, ibidem, p.26. 294 Idem, ibidem, p.26-27. 295 BRAGA, Teófilo. “Centenário de Camões no Brasil”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880, p.516-518. 296 Curiosa é a publicação de Reinaldo Carlos Montoro, intitulada O Centenário de Camões no Brasil. Portugal em 1580. O Brasil em 1880. Numa clara alusão ao Brasil como o herdeiro do Portugal renascentista – simbolizado por Camões – Montoro afirma que “diante desta perspectiva que o estudo do globo abre à nossa língua, e pelos vestígios de ideias e afectos que se encontram nestas variadas ramificações da raça portuguesa, Camões cessa de ser apenas o grande poeta épico de Portugal, e torna-se o vulto maior da civilização cosmopolita”, afirmações às quais acrescenta a de que o “Brasil é o herdeiro directo de Portugal do XVI século”, devido “ao quadro da decadência do império português”. Por isso, “não devemos ocultar que teve os mesmos elementos de organização social e esteve muitos anos sob os mesmos influxos intelectuais”. MONTORO, Reinaldo Carlos. O Centenário de Camões no Brasil. Portugal em 1580. O Brasil em 1880. Estudos comparativos. Rio de Janeiro: António José Gomes Brandão Editor, 1880, p.8; 107-108. Acervo da Camoniana dos Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa 297 Particularmente nesta obra, observamos o eco das obras de Teófilo Braga e Oliveira Martins que, desde a década de 1870, tinham iniciado o movimento de culto ao poeta. Assim, em clara alusão implícita a Oliveira Martins – e nomeadamente à célebre frase martiniana que entendia que “Os Lusíadas são um epitáfio” – observamos o discurso proferido por Basílio Machado: depois de cantar loas às descobertas de portuguesas,, sobretudo ao caminho aberto ao Oriente, assinala que “toda a glória, como o sol, tem seus ciclos de obscurecimento”. Para ele, como para J.P. de Oliveira Martins, depois de 1580, “Portugal declinava”. MACHADO, Basílio. Discurso 293

133

como uma série de realizações e eventos, espalhados um pouco por todo o Brasil, que garantiam a ressonância pretendida e compunham uma significativa imagem de totalidade. Dentre estes, destacam-se a publicação de uma edição de luxo de Os Lusíadas, patrocinada pelo Gabinete Português de Leitura (298); a encomenda, por esta mesma instituição, de uma medalha comemorativa com o vulto de Camões, “destinada a perpetuar a data, que se contará como da era nova da nossa revivescência portuguesa” (299); os festejos realizados pelo Retiro Literário Português, onde “se achavam representadas vinte e três Associações, e as redacções dos primeiros jornais do Rio de Janeiro” (300); o desfile dos estudantes das Academias do Brasil (301); a regata efectuada na praia do Botafogo (302). proferido no sarau literário que, em comemoração do tricentenário de Camões, promoveu o Club Ginástico Português, de S. Paulo, a 10 de Janeiro de 1880. São Paulo: Tipografia da Constituinte, 1880, p.8. Acervo da Camoniana dos Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa. 298 Publicação editada em Lisboa, na tipografia de Castro e Irmãos. Com um prólogo assinado por Ramalho Ortigão, tratava-se de uma edição “verdadeiramente monumental”, consoante a apreciação teofiliana: “É adornada com um retracto fantasista de Camões, por Columbano Pinheiro, imitando na gravura o estilo das águas fortes do século XVI; o tipo do poeta, à falta de um retracto autêntico, é uma recomposição psicológica, tem um pouco a fisionomia de Cervantes com a expressão de Victor Hugo. O prólogo que acompanha o poema, é magistralmente escrito pelo nosso primeiro crítico Ramalho Ortigão; descreve com o seu grande poder de estilo a época da Renascença como o fundo do quadro em que coloca a individualidade de Camões, e restitui ao poeta todos os toques vivos da realidade tirados das suas cartas. As relações do poeta com a nacionalidade portuguesa são expostas de um modo comovente. O texto do poema foi aproximado quando possível da recensão de 1572. O volume termina com um estudo de Reinaldo Montoro sobre a história da benemérita associação que restabeleceu a dignidade do nome português no grande estado do Brasil. A maior parte desta opulenta edição foi destinada a brindes para todas as corporações, e homens de letras notáveis, e ela atestará em todos os tempos que houve portugueses que tiveram a consciência plena da solidariedade nacional”, BRAGA, Teófilo. “Centenário de Camões no Brasil”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880, p.516-518. 299 Idem, ibidem, p.516-518. 300 Idem, ibidem, p.519. 301 No dia 12 de Junho, informa-nos ainda Teófilo, as comemorações foram realizadas pelos estudantes das Academias do Brasil que se reuniram na rua do Teatro para uma Marche aux flambeuax. O cortejo dos estudantes brasileiros da Politécnica, deu-se da seguinte maneira: “organizou-se o préstito em duas alas; os estudantes levavam balões chineses suspensos em varas, com flâmulas e galhardetes. À frente ia a banda dos imperiais marinheiros, em seguida a bandeira da Politécnica, depois as bandeiras da humanidade e da civilização que serviram na véspera na festa dos Positivistas brasileiros; sobre um palanquim era levado o busto de Camões aos ombros de estudantes, fechando a comitiva as bandas marciais do corpo de polícia e do 10º batalhão de infantaria. Antes da partida falaram alguns académico das janelas da rua do Teatro; no longo trajecto foram saudados pelo cônsul português no Rocio, na rua do Ouvidor pelo

134

Estas iniciativas sinalizavam o investimento comemorativo carioca. Um investimento reproduzido em outras cidades brasileiras: em Recife, sob a égide do Gabinete de Leitura de Pernambuco; em S. Paulo, sob organização do Clube Ginástico Português; em Campinas, com particular mobilização da colónia portuguesa local; em Porto Alegre(303) ou, inclusive, em Uruguaiana, cidade sul-rio-grandense na fronteira com a Argentina. Se a este panorama juntarmos a cobertura dada aos festejos pela imprensa brasileira, consagrando números especiais ao centenário camoniano, bem se percebe a euforia teofiliana e a sua convicção de que “se a vitalidade portuguesa se mostrasse exausta no velho continente europeu, a ponto de deixar passar desapercebida esta grande data de 10 de Junho, como o governo queria quando disse que achava as festas ruidosas e imodestas, a honra desta nacionalidade acharia no novo mundo os legítimos herdeiros da sua tradição. Foi isto o que compreendeu o Brasil, excedendo-se em entusiasmo e sumptuosidade” (304). Gabinete português de Leitura, recebendo o estandarte desta associação para ser depositado na Biblioteca nacional. Outras saudações receberam pelo caminho, sendo aclamados e cobertos de flores, no meio de um entusiasmo indescritível. Todas as ruas por onde o préstito académico seguia, estavam iluminadas a caprichos, formando abóbadas de luz; era de um efeito fantástico, a alegria tornara-se contagiosa”. Idem, ibidem, p.519. 302 No dia 13 de Junho, ainda organizou-se uma regata na praia do Botafogo, Rio de Janeiro, que contou com audiência de para mais de cem mil pessoas, conforme a descrição de Teófilo Braga. Aos vencedores eram entregues, distribuídos pela mão do Imperador D. Pedro II, doze exemplares da edição de luxo dos Lusíadas, organizada pelo Gabinete português de Leitura, além de duas medalhas de bronze, mandadas cunhar pela mesma instituição para perpetuar a festa do Centenário e a inauguração de sua nova sede. A magnitude das comemorações do Tricentenário de Camões foi ressaltada como expressão da “concórdia dos espíritos perante um mesmo ideal”, chamando atenção, nas páginas do Positivismo a “confraternidade” lusobrasileira. Idem, ibidem, p.519-520. 303 Em Porto Alegre as festas do Centenário de Camões também foram realizadas, segundo a descrição de Teófilo Braga, com “grande esplendor, durante três dias, terminando com baile no teatro São Pedro, no fim do qual houve uma alocução e distribuição de diplomas comemorativos. Idem, ibidem, p.520. A informação é confirmada pelo jornal A Reforma, de Porto Alegre, em 10 de junho de 1880 que, à página 2 noticiava: “Centenário de Camões – Devem começar hoje no Teatro S. Pedro as festas consagradas ao Centenário de Camões, constando de um sarau literário, que começará às 9 horas da noite em ponto”. Os eventos, entretanto, foram transferidos para o dia seguinte, “em consequência do mal tempo”, conforme noticiou A Reforma, em 11 de junho de 1880, p.3. 304 BRAGA, Teófilo. “Centenário de Camões no Brasil”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880, p.520.

135

Neste contexto celebratório, a par das comemorações de ordem solene e oficial, observa-se uma série de outros textos, publicações e discursos elaborados por parte de figuras de menor visibilidade na cena cultural brasileira. Contudo, também estes alinhavam pelo mesmo diapasão comemorativo e com a mesma referencialidade discursiva. Tonham também as mesmas fontes portuguesas para a leitura brasileira sobre Os Lusíadas: Oliveira Martins e Teófilo Braga (305). Está neste caso, por exemplo, o texto O Centenário de Camões, publicado no Rio de Janeiro, nesse ano de 1880, assinado por F. de Figueiredo, autor para quem o 10 de Junho de 1880 é um dia marcado pelo “entusiasmo [que] invade o coração de toda a classe brasileira e portuguesa”, isto é, um dia em que “o brasileiro num delírio de paixão preza-se de descender de Portugal! É hoje que o Brasil orgulha-se de haver sido português” (306). E está também neste caso o autor J. de Paula Souza, para quem Camões é objeto da veneração “que lhe votamos, nós seus filhos do Brasil, que não o amamos menos que os de Portugal”, pois “Camões não é um poeta somente, é uma nacionalidade, é o representante da civilização portuguesa”. Segundo este último, foi no continente americano que a significação do poeta teve mais coloração, na medida em que “o amor refinou-se ainda no Brasil; tomou o brilho do nosso céu, a beleza de nossa terra, a força do nosso sol, a pureza de nossa

305

Outro fato interessante a ser notado é a ampla referência às obras que Oliveira Martins e Teófilo Braga produziram sobre a significação social de Camões. Sem receio de errar, podemos afirmar que estes autores portugueses foram a fonte primacial da leitura brasileira sobre os Lusíadas. O fato de terem sido estes representantes da Geração de 70 as fontes é significativo, na medida em que esta mobilização do poeta não foi realizada, por exemplo, aos moldes do romantismo português. Recorde-se que António Feliciano de Castilho também tinha produzido obras sobre o significado de Camões. Não fazia parte, entretanto, a “arquitetura teórica do romantismo, dos anseios da Geração de 70 brasileira”. Ver. CASTILHO, António Feliciano de. Camões: estudo historico-poetico liberrimamente fundado sobre um drama francez dos senhores Victor Perrot e Armand Du Mesnil. Lisboa: Typ. da Sociedade Typográphica Francoportugueza, 1863-1864. 306 FIGUEIREDO, F. de. O Centenário de Camões. Rio de Janeiro: Tipografia da Escola, Serafim José Alves Editor, 1880, p.4-7. Um dos elementos interessantes desta publicação é a oferta que a Livraria de José Alves faz na contracapa da obra: «Na mesma livraria – descrição da Gruta da Camões em Macau».

136

atmosfera”. Por isso, grifava que a Camões “devemos nós brasileiros o que temos de melhor” (307). Assim postas as coisas, não pode estranhar-se o balanço da festividade feito por Teófilo: “o Brasil é o rudimento de uma fase nova e futura da nação portuguesa; não é a Bizâncio de uma decaída Roma, mas sim virá a formar os Estados Unidos do Sul, onde o amor da velha e pequena metrópole há-de ser um vínculo moral”, posto que, pela sua acção, “unificou dois povos separados por um obcecado empirismo político”. O mesmo é dizer, em síntese, que a realização da comemoração camoniana “durante quatro dias de emoções sublimes e nunca sentidas, fez mais na obra de concórdia do que cinquenta anos de boa diplomacia” (308).

307 PAULA SOUZA, Dr. J. de. Luiz de Camões. (Homenagem de um brasileiro, ao grande representante da nacionalidade portuguesa). São Paulo: Tipografia da Constituinte, 1880, pp.11; 32-35. 308 BRAGA, Teófilo, “Centenário de Camões no Brasil”. In: O Positivismo: revista de Filosofia, segundo ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880, p. 514-516.

137

PARTE II FUNDAMENTOS TEÓRICOS: HISTORICIDADE E DEMARCAÇÃO

Nossa investigação ao nível da configuração cultural luso-brasileira no final do século XIX permitiu identificar alguns aspectos importantes: a vigência de redes discursivas materializadas por um dinâmico intercâmbio informativo entre ambos os pólos; a constituição de esquemas interpretativos sobre o sentido político desse intercâmbio e sobre o seu potencial efeito de singularização das culturas nacionais implicadas; a coexistência de modalidades de relacionamento diversas – tanto associativas quanto disruptivas – expressivas do carácter problemático da historicidade

desse

relacionamento

transatlântico;

uma

tendencial

irradiação dos debates emergentes no contexto de uma das partes envolvidas à totalidade da escala luso-brasileira; e, ainda, a propensão dos autores implicados para definirem os seus alinhamentos políticos ou científicos menos em razão de uma comum pertença nacional e mais em função dos pressupostos teóricos mobilizados em cada momento. Este último aspecto merece maior análise. Afinal, se a dialogia luso-brasileira se constrói, nas suas diversas matizes, sobre a mobilização dos debates teóricos mais marcantes à época – debates onde o relacionamento entre Portugal e Brasil é mais pretexto mais para sua 138

reatualização –, bem se compreende a necessidade de encarar as seguintes questões: qual o “repertório teórico” disponível para pensadores portugueses e brasileiros em finais do século XIX?; como, por quem e em qual momento esse quadro teórico foi mobilizado?; qual tipo de eixos teóricos essa apropriação deu lugar?; que tipo de concomitância ou de defazagem introduziram estes processos no âmbito da escala lusobrasileira? É verdade que alguns destes pontos estão foram abordados. Contudo, na primeira parte deste estudo, eles surgem como expressão dos níveis de articulação da configuração cultural luso-brasileira. Agora, uma vez constatada e demonstrada sua vigência, é altura de centrar a atenção naquilo que teoricamente a fundamentava. A equação deste nível problemático obriga a uma opção metodológica clara: o desenvolvimento da análise em perspectiva comparada. Idealmente, para cada um dos pontos a tratar procurar-se-á fornecer elementos relativos quer à cultura portuguesa, quer à cultura brasileira, por forma a instruir o mais possível a reflexão sobre essa outra dimensão, a luso-brasileira. Aspectos como o do perfil compósito da chamada “frente cientificista” brasileira e o da feição tomada pelo congênere fenêmeno português, ou o das desinteligências levantadas pelas diferentes modalidades de recepção positivista em ambos os espaços culturais, constituem indicadores preciosos sobre as motivações dos posicionamentos atinentes à relação entre Portugal e Brasil. A este respeito, uma advertência deve ser feita: tendo em conta a desigual cobertura dada pelos campos historiográficos português e brasileiro a esta temática, é inevitável que, por vezes, aquilo que, no nosso discurso, se oferece com caráter de novidade num lado, pode ser lido como revisitação de matéria conhecida por outro. Trata-se, porém, de um risco inevitável em consequência do nosso objeto. Pareceu-nos necessáris a inclusão de algumas linhas explicativas destinadas a enquadrar os debates em causa e 139

as múltiplas referências teórico-doutrinárias por ele convocadas. Dentro deste espírito, eis as tarefas a que nos propomos a seguir: avaliar a correlação entre o movimento de renovação cultural e das ideias no Brasil e em Portugal; analisar a recepção das diretrizes positivistas, quer num quer noutro lado (e também ao nível dos contextos internos, nomeadamente o brasileiro), para caracterizar as demarcações no âmbito cientista daí decorrentes; e, por fim, equacionar os termos em que se processa, na mesma escala luso-brasileira, a mobilização dos fundamentos teóricocientíficos em causa no quadro envolvente do republicanismo.

1. “O arco de outra nova ponte” e o “bando de ideias novas”.

Parece ser consensual a definição das últimas décadas do século XIX como uma época de forte dinâmica no campo das ideias. Seja a dimensão científica do fenômeno, sejam os aspectos mais propriamente culturais, sejam as questões políticas – em qualquer dos casos –, constatase, na sobreposição de vários fatores, uma tendencial propensão para a mobilização das noções de mudança e de transformação. Assim, no caso português, não restam dúvidas sobre a importância que teve o movimento de contestação que vai da célebre Questão Coimbrã, em 1866, até às Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, em 1871 (309). Para o caso brasileiro, também não haverá maiores restrições em atribuir à

309

A este respeito, são referências incontornáveis os trabalhos dos professores Amadeu Carvalho Homem e Fernando Catroga. Ressaltamos, a título exemplificativo, HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao Realismo. Temas de cultura portuguesa (século XIX). Porto: Fundação. Eng. António de Almeida, 2005 e HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para uma leitura sociológica e política da «Questão Coimbra»”. Separata da Revista Máthesis, nº4, 1995, pp.89-102, bem como CATROGA, Fernando. Sociedade e Cultura Portuguesa II, Lisboa: universidade Aberta, 1996, especialmente pp.155-162, assim como os capítulos 3 e 4 da História da História em Portugal, volume I, organizado por TORGAL, Luís Reis; MENDES, José Amado e CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX – XX. Volume II. [sem local]: Temas e Debates, 1998.

140

chamada Escola do Recife um papel importante nesta renovação filosóficocultural (310). O que, entretanto, não está suficientemente estudado é precisamente a correlação destes dois movimentos em escala lusobrasileira, tão pouco seu efeito no padrão de relacionamento cultural entre ambos os países. Em ordem a colmatar essa lacuna, começa por ser fundamental reter aqui alguns dos aspectos caracterizadores de cada um desses contextos de renovação teórica. Vejamos, inicialmente, o caso português, ainda que apenas para recordar ideias-chave. Melhor apetrechados

ficaremos

para

o

posterior

confronto

com

os

desenvolvimentos brasileiros. É pacífica a consideração da célebre Questão Coimbrã (1866) como o marco inicial do movimento de contestação das ideias estabelecidas em Portugal. Entretanto, se é verdade que a polêmica que envolveu Antero de Quental e Teófilo Braga contra o grupo que circundava António Feliciano de Castilho e Manuel Pinheiro Chagas teve seu início em função da censura de Castilho à inscrição daqueles no concurso para a docência na cadeira de Literaturas Modernas do Curso Superior de Letras (preferia Pinheiro Chagas), também correto será perceber, neste caso, a ativação de uma querela entre a estética romântica e a moderna. Neste contexto, vêm à estampa textos lapidares sobre a mudança do referente estético que podem ser simbolizados pelo opúsculo de Antero de Quental, Bom senso e bom gosto, e pelo texto de Teófilo Braga, Teocracias Literárias. Estava patente que a divergência estética entre os dois grupos desembocava numa procura

310 A obra de Paulo Paim e João Cruz Costa são referências incontornáveis neste sentido. Destacamos PAIM, Antônio. A Filosofia Brasileira. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Série Biblioteca Breve, volume 123, 1ª edição, 1991 e PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina: editora da UEL, 1997, bem como COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção Documentos Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956.

141

por novas alternativas estéticas, filosóficas e sociais (311). É sabido, contudo, que no quadro de renovação cultural já se antevia em algumas obras anteriores ao início da polémica. Basta recordar, a este propósito, o famoso trecho da poesia “A Ideia”, inserida no livro Odes Modernas (1865), onde Antero de Quental dava o tom da nova geração: Força é pois ir buscar outro caminho! Lançar o arco de outra nova ponte Por onde a alma passe – e um alto monte Aonde se abra à luz o nosso ninho (312).

Estava evidente que a busca desse “outro caminho” ia de encontro a algumas estruturas sedimentadas (313). Para os propósitos desta pesquisa, não é necessário desenvolver em pormenores cada detalhe da polémica à volta das questões do Bom Senso e Bom Gosto (314). O que importa reter é que o tom de transformação das ideias, o almejado “arco de outra nova 311 A título probatório, não deixa de ser interessante notarmos a presença configuracional brasileira nesta pugna. Conforme é mencionado por Carvalho Homem, José Feliciano de Castilho Barreto e Noronha, irmão de Antônio Feliciano de Castilho, publicou em 1865 uma carta dirigida ao Correio Mercantil do Rio de Janeiro na qual informa sobre o “labirinto de inconveniências religiosas, sociais, literárias e poéticas” (citado por HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para uma leitura sociológica e política da «Questão Coimbra»”. Separata da Revista Máthesis, nº4, 1995, p.95). Merece nota, ainda, que, à laia de menosprezo pelo seu opositor, Antero de Quental tenha dito a Castilho que “os seus poemas líricos não são metafísico, não precisam de uma excessiva atenção, de esforços de pensamento para se compreenderem – e têm a vantagem de não deixarem ver nem um só ideal. Nas suas obras todas há um falta tão completa dessas incompreensibilidades, que deve pôr muito à sua vontade os leitores que V. Ex.ª tem no Brasil”. QUENTAL, Antero de. Bom senso e bom gosto. In: FERREIRA, Alberto. Antologia de textos da questão Coimbrã. Selecção de textos e notas de Maria José Marinho. 2ª ed. Lisboa/Porto: Litexa, 1999, p.155. 312 QUENTAL, Antero de. Odes Modernas. Lisboa: Veja, 1994, p.64. 313 Como fica patente no poema “Carmen Legis…” também inserido nas Odes Modernas, de Antero: “Pois bem! Grandes, Altivos, Poderosos,/ E Cometas da Altura,/ E senhores da terra e Semideuses…/ vós sois o pó e o nada!/ (…) O espanto, que espalhais, não vos pertence…/ Não é a vossa força./ É o tremor do solo, é o presságio/ Do grande terramoto!/ (…) É a Revolução! a mão que parte/ Coroas e tiaras!/ É a Luz! a Razão! é a Justiça!/ É o olho da Verdade!”. QUENTAL, Antero de. Odes Modernas. Lisboa: Veja, 1994, pp.124-126. 314 Para maior detalhe sobre as série de polêmicas que envolveram a “Questão Coimbrã”, consultar FERREIRA, Alberto. Antologia de textos da questão Coimbrã. Selecção de textos e notas de Maria José Marinho. 2ª ed. Lisboa/Porto: Litexa, 1999.

142

ponte”, tem um alcance bem mais amplo que o de mera desavença de ocasião, traduzindo uma ambiência de ebulição de ideias e de inspirações doutrinárias de distinta índole. Afinal, como sustenta Amadeu Carvalho Homem, “parece um erro e uma cegueira encarar a Questão Coimbrã como um simples episódio literário” (315), posto que, como o próprio Antero de Quental realçava, o “espírito” daqueles tempos era manifestado pelas ideias de “Hegel, Stuart Mill, Augusto Comte, Herder, Wolff, Vico, Michelet, Proudhon, Littré, Feuerbach, Creuzer, Strauss, Taine, Renan, Buchner e Quinet, a filosofia alemã, a crítica francesa, o positivismo, o naturalismo, a história, a metafísica, as imensas criações da alma moderna, espírito mesmo da nossa civilização” (316). Ora, se este painel se oferecia à intelectualidade para intuitos diversos, não pode deixar de merecer particular destaque, do nosso ponto de vista, o profundo investimento feito sobre a matéria da historicidade a partir de apropriações cruzadas ou filtradas daquele quadro teórico. “O tempo! O tempo!” – bem o anuncia Teófilo Braga (317), um ano antes do início da polémica Questão Coimbrã, no poema Visão dos Tempos, editado em 1864: O Tempo! O Tempo! Em meio d’este oceano Revolto, escuro, lamentoso, triste Sem margem que se aviste, E nos envolve insano, 315 HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao Realismo. Temas de cultura portuguesa (século XIX). Porto: Fundação. Eng. António de Almeida, 2005, p.48. 316 QUENTAL, Antero de. Bom Senso e Bom Gosto, Carta ao Ex.mo Sr. António Feliciano de Castilho. In: FERREIRA, Alberto. Antologia de textos da questão Coimbrã. Selecção de textos e notas de Maria José Marinho. 2ª ed. Lisboa/Porto: Litexa, 1999, p.153-154. 317 Sobre o pensamento de Teófilo Braga, consultar HOMEM, Amadeu Carvalho. A Ideia Republicana em Portugal. O contributo de Teófilo Braga. Coimbra: Livraria Minerva, 1989. Sobre o pensamento de Antero de Quental, veja-se CATROGA, Fernando. Antero de Quental. História, Socialismo, Política. Lisboa: Editorial de Notícias, 2001. Para uma análise comparativa de Teófilo e Antero, ver HOMEM, Amadeu Carvalho. “Antero de Quental e Teófilo Braga. Um exercício comparativo”. Separata da Revista Insulana. Ponta Delgada, 1991, pp.127-144,

143

O movimento presente é a jangada Onde a existência vai arrebatada. […] Contemplando este imenso mar amargo Onde rugem eternas tempestades A Visão das Idades Sobre o horizonte largo Completa-se pela harmonia equórea Fundo Rumor, conceito ideal – a História (318).

A nuclearidade do tempo e da história, por conseguinte, em um contexto de transformações filosófico-sociais no qual o recurso frequente às noções de mudança (e de processo), perturbava a fixidez das estruturas sociais e estéticas estabelecidas. Confirmação, assim sendo, de que a polêmica em torno da questão do Bom Senso e Bom Gosto assumiu “um significado cumulativamente literário e político-social”, representando, “sem sombra de dúvida, uma forte machadada no modelo romântico verboso e repetitivo, artificial e conservador, apontando para a sua substituição por um outro mais social e abstractivo, mais simbólico e filosofante, com uma seiva fornecida pelo historicismo teórico do idealismo alemão, pela historiografia romântica francesa e pelas imprecações de autores socialistas ou socializantes contra os excessos individualistas da revolução industrial em curso” (319). Recordar-se-á, de igual modo, que o lugar da Questão Coimbrã como “uma espécie de antecâmara anunciadora” de tensões e de condicionamentos histórico-políticos e sócio-culturais, ganha a devida amplitude assim que o sinete das transformações emanado de Coimbra

318

BRAGA, Teófilo. Visão dos Tempos. Porto: Livraria Chardron, [1864] 1894.p.9-10. HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao Realismo. Temas de cultura portuguesa (século XIX). Porto: Fundação. Eng. António de Almeida, 2005, p.56. 319

144

desembocar no Cenáculo Lisbonense (320). Isto é, que “o processo de contestação então iniciado será incompreensível se não for articulado com os seus desenvolvimentos posteriores e particularmente com a realização, em 1871, das célebres Conferências do Casino” (321), momento tópico, por excelência, desta dinâmica. Tal como está manifesto no seu Programa, de 16 de Março de 1871, o intuito era “abrir uma tribuna, onde tenham voz as idéias e os trabalhos que caracterizam este momento do século”, e desta forma “ligar Portugal com o movimento moderno”, pois “não pode viver e desenvolver-se um povo, isolado das grandes preocupações intelectuais do seu tempo” (322). Assinavam esta proposta de renovação cultural e transformação política Adolfo Coelho, Antero de Quental, Augusto Soromenho, Augusto Fuschini, Eça de Queirós, Germano Vieira Meireles, Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Manuel de Arriaga, Salomão Sáragga e Teófilo Braga. Respira aqui a célebre Geração de 70. Ora, este mesmo ideal de modernização do país e de forte influência das “modernas ideias” – que vimos no arco de contestação que vai da Questão Coimbrã às Conferências do Casino Lisbonense – pode ser também observado no Brasil. Afinal, como ensina Antônio Paim, no Brasil, “a mocidade acadêmica e os círculos intelectuais, por todo o país, adotam o que se poderia denominar de espírito crítico. Por muitos anos não se estruturam correntes de pensamento algo delineadas. Suscitam-se ideias

320 “Advirta-se ainda que esta memorável querela galgou as próprias fronteiras nacionais e que, mesmo no Brasil, foi percepcionada como um diferendo de filosofias políticas. Assim, os prelos da Tipografia Perseverança, do Rio de Janeiro, editam em 1866 um opúsculo assinado por um tal de Arqui-Zero, presumível pseudónimo de Paulo José de Faria Brandão, no qual se exalta, em estilo grandiloquente, o raiar do sol democrático e a alvorada do radicalismo liberal” (cnf. HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para uma leitura sociológica e política da «Questão Coimbra»”. Separata da Revista Máthesis, nº4, 1995, p.100). 321 CATROGA, Fernando. Sociedade e Cultura Portuguesa II, Lisboa: universidade Aberta, 1996, p.155. 322 Conforme o “Programa das Conferências Democráticas”. In: REIS, Carlos. As Conferências do Casino. Lisboa: Alfa, 1990, p.91.

145

que se tornavam simpáticas sempre que pareciam poder nutrir o inconformismo. Assim, tomam conhecimento, indiferentemente, de Comte, Littré, Taine, Renan, Darwin, Antero de Quental” (323). No relativo ao quadro brasileiro, ninguém melhor simbolizará este momento que Sílvio Romero, escritor no qual se identifica o espírito de inconformismo e a consciência da chegada de um “bando de ideias novas” ao Brasil. Isto se percebe já por ocasião de seu doutoramento. Os acontecimentos que marcam a defesa de tese de Sílvio Romero, realizada no Recife em 12 de Março de 1875, são exemplificativos desta “nova” postura. Siga-se a exposição dos fatos, tal como a relata, na respectiva ata (escrita no dia subsequente à defesa), Francisco de Paula Baptista, então incumbido de presidir às provas (324): “Enquanto [o arguente] expunha a sua opinião e deduzia os seus argumentos, era interrompido pelo defendente [Sílvio Romero] neste e em termos semelhantes: Ouça-me, Sr. Doutor, não vá adiante. Quero que cada argumento seu seja imediatamente destruído –. Multiplicando-se essas interrupções, no correr do debate, e à medida que o terreno deste ia sendo circunscrito pela argüição do argüente, foi o mesmo obrigado a observar, ao doutorando, que, se continuasse daquele modo, ele Dr. Belfort, se calaria. Então o primeiro dos abaixo assinados (Paula Batista), como presidente do ato, chamou-o à ordem, e esta foi, felizmente, restabelecida na discussão, durante os poucos minutos que lhes restavam para argumentar. Seguiu-se, na argüição, o Sr. Dr. Coelho Rodrigues, que começou apontando uma objeção à 2ª tese de direito constitucional, à qual procurou responder o defendente. O argüente voltou à carga, dizendo que a sua objeção ficava intacta, e o doutorando procurou provar-lhe o contrário. Dito isto, o Dr. Coelho Rodrigues acrescenta: - Desde que, em uma discussão qualquer, perco a esperança de convencer ou ser convencido, mudo de assunto. Passemos à tese seguinte. A respeito desta, passou-se tudo como na primeira, mutatis mutandis. Mas, antes que passe a outra, observa o argüente, como para moderar o azedume das respostas, que obtinha: - Não tenho a presunção de vir aqui ensinar-lhe alguma coisa. Se insisto nisso, é somente porque tenho necessidade de formar meu juízo. Em seguida, passou à segunda tese de direito romano, concebida nestes termos: «O jus in re compreende também a posse». E, depois de uma discussão mais moderada que as duas precedentes, pergunta aquele doutor: – qual a ação, que garante esse direito real, no seu entender? – Isto não é argumento, responde o 323 PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina: editora da UEL, 1997, p.478. 324 Compunham a banca examinadora os doutores Francisco de Paula Baptista, Vicente Pereira do Rego, João Silveira de Souza, João Pinto Júnior, Joaquim Correia de Araújo, Antônio Coelho Rodrigues e Tavares Belford. Conforme Ata de 13 de Março de 1875, escrita por Paula Baptista, transcrita em BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume I. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.212-214.

146

doutorando – Porque? Repergunta aquele – Porque, responde este, não se pode conhecer a causa pelo efeito. – Pois admira-me, torna o primeiro, que, tendo-se mostrado o senhor tão contrário ao método metafísico, na epígrafe das suas teses (a qual repetiu, traduzindo o inglês, em que estava escrita), recuse agora um argumento a posteriori. – Nisto não há metafísica, Sr. Doutor, diz o segundo, há lógica. – A lógica, replica o argüente, não exclui a metafísica. – A metafísica, treplica o doutorando, não existe mais, Sr. Doutor; se não sabia, saiba. – Não sabia, retruca este. –Pois vá estudar e aprender para saber que a metafísica está morta. – Foi o senhor que a matou? Pergunta-lhe então o Dr. Coelho Rodrigues. – Foi o progresso, foi a civilização, responde-lhe o bacharel Sílvio Romero, que, ato contínuo, se ergue, toma os livros, que estava sobre a mesa, e diz: - Não estou para aturar esta corja de ignorantes, que não sabem nada. E retira-se, vociferando por esta sala afora, donde não pudemos mais ouvi-lo” (325).

O virar de costas de Romero assume contornos metafóricos de duas linhas de pensamento de costas voltadas e de um diálogo difícil. De um lado, homens como aqueles que assinam a referida ata e que se movimentam para levar o caso “ao conhecimento do Governo Imperial”, bem como para que se desse parte do ocorrido ao Presidente da Província e a um juiz de direito (326). Do outro, um conjunto de autores, como Romero, arautos do que ele próprio chamará “um bando de ideias novas”. Com efeito, a influência das novas ideias na cena política e cultural da época virá a ser celebrizada por Romero em discurso pronunciado aos 18 de Dezembro de 1906, na Academia Brasileira de Letras, por ocasião da recepção de Euclides da Cunha. Neste texto, Romero afirma que “o decênio que vai de 1868 a 1878 é o mais notável de quantos no século XIX constituíram a nossa labuta espiritual. Quem não viveu nesse tempo não conhece por não ter sentido 325

BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume I. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.212-213. 326 As reprimendas sofridas por Romero não cessaram aí, tal como relata Clóvis Beviláqua: “Sílvio Romero tendo entrado em concurso para cadeira de filosofia de direito do Recife, obteve o primeiro lugar, em 1875. Mas, anulado, parece que sem justa razão, esse concurso, entrou em outro, em 1876, no qual apenas lhe deram o segundo posto”. Diz ainda Beviláqua que “o que é certo é que o nosso vigoroso pensador não obteve a nomeação desejada, e teve de emigrar do Recife para o Sul do país”. BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume I. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.215. Percebemos aqui que é neste contexto que Sílvio se muda para o Rio de Janeiro, local onde publicou seus primeiros artigos na Revista Brasileira, mencionados no início desta pesquisa.

147

diretamente em si as mais fundas comoções da alma nacional. Até 1868 o catolicismo reinante não tinha sofrido nestas plagas o mais leve abalo; a filosofia espiritualista, católica e eclética a mais insignificante oposição; a autoridade das instituições monárquicas o menor ataque sério por qualquer classe do povo; a instituição servil e os direitos tradicionais do aristocratismo prático dos grandes proprietários a mais indireta opugnação; o romantismo, com seus doces, enganosos e encantadores cismares, a mais apagada desavença reatora. Tudo tinha adormecido à sombra do manto do príncipe ilustre que havia acabado com o caudilhismo nas províncias e na América do Sul e preparado a engrenagem da peça política de centralização mais coesa que já uma vez houve na história em um grande país” (327). “De repente” – continua Sílvio – “por um movimento subterrâneo, que vinha de longe, a instabilidade de todas as coisas se mostrou e o sofisma do império apareceu em toda a sua nudez”. De fato, após o término da guerra do Paraguai (1864-1870), o contexto brasileiro entra em forte clima de transformação social, acarretando um tempo onde “tudo se põe em discussão”: a abolição da escravatura, a influência dos militares e do clero no Estado, a radicalização da democracia, o movimento republicano, etc. Em suma sintetizará ele: “Um bando de ideias novas esvoaçou sobre nós de todos os pontos do horizonte: […] positivismo, evolucionismo, darwinismo, crítica religiosa, naturalismo, cientificismo na poesia e no romance, folk-lore, novos processos de crítica e de história literária, transformação da intuição do direito e da política, tudo então se agitou e o brado de alarma partiu da escola do Recife” (328).

327 ROMERO, Sílvio. “Academia Brasileira de Letras – Discurso pronunciado aos 18 de Dezembro de 1906, por ocasião da recepção do Dr. Euclides da Cunha” In: Provocações e Debates (Contribuições para o Estudo do Brasil Social). Porto: Livraria Chardron, 1910, p.359. 328 ROMERO, Sílvio. “Academia Brasileira de Letras – Discurso pronunciado aos 18 de Dezembro de 1906, por ocasião da recepção do Dr. Euclides da Cunha” In: Provocações e Debates (Contribuições para o Estudo do Brasil Social). Porto: Livraria Chardron, 1910, p.359360.

148

A Escola do Recife, inevitavelmente. De acordo com um dos seus principais conhecedores, Clóvis Beviláqua, na Escola do Recife “lia-se D’Orbigny, Notte, Gliddon, Pouchet, Quatrefages, Darwin, Huxley, Broca, Topinard, Tylor, Lyell, Hovelacque, Latourneau, Darwin, Spencer, Ardigó, Morselli, Buchner, Comte, Littré, Zaborowski, Haeckel, Teófilo Braga, etc., e essas leituras alargavam os horizontes dos estudantes e juristas, dando-lhes elementos para bem compreender o homem e a sociedade” (329). Conforme se compreenderá, a estima de cada um destes autores e o grau de conhecimento e de apreensão das suas obras não foi constante. Importa vincar que o movimento de transformação das ideias teve uma primeira fase, iniciada em 1862-1863, marcada pela influência da “poesia social” de Victor Hugo (o abolicionismo de Castro Alves é o exemplo desta fase) e pela filosofia panteísta de Quinet e prolongando-se num período “onde o hugoismo se transforma em realismo”, marcado pelos estudos folcloristas de Celso Magalhães (330). Entre 1868 a 1882, uma “segunda fase” é identificada no desenvolvimento da Escola do Recife, sendo nesta altura que se observa a inclinação de Tobias Barreto para o positivismo (331). Trata-se de um período de “intermitências”, onde “as doutrinas positivistas do ramo heterodoxo de Littré, seduzem os rapazes [e onde, por exemplo,] Spencer é menos vulgarizado” embora não desconhecido, sendo Taine, Buchner, Latourneau e Lefèvre muito citados. A partir de 1882, data do ingresso de Tobias Barreto no quadro docente, começa uma “terceira fase” nas ideias da Escola do Recife. Este é o momento de sua transição para o

329 BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume II. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.129. 330 BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume II. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.94. Registe-se que Teófilo Braga menciona em várias passagens, nomeadamente durante sua polêmica com Sílvio Romero, como expusemos atrás, a leitura destes trabalhos de Celso Magalhães. 331 Clóvis Beviláqua afirma, no entanto, que “pouco se deteve Tobias no positivismo”, pois “o chefe do positivismo e o seu grande discípulo Emílio Littré não fizeram tão forte impressão no espírito de Tobias quanto Cousin, Jouffroy, Vacherot, Guisot e Scherer”. Idem, ibidem, p.98.

149

monismo haeckeliano, de cuja influência no Brasil nos ocuparemos mais adiante. Neste momento, cabe a seguinte questão: qual o conhecimento que a nova geração brasileira tinha dos seus análogos portugueses? Ao lermos os intérpretes da época, vemos que o movimento de renovação das ideias em Portugal não passou despercebido no Brasil. A tonalidade crítica das referências ao quadro português não é homogênea, porém. Mas mesmo as diferentes leituras da realidade portuguesa expressam a atenção com que esta era seguida. De qualquer forma, o inevitável debate sobre a primazia relativa de cada uma das margens do Atlântico no movimento transformador tomava conta do assunto. Luís Pereira Barreto, por exemplo, foi um arguto leitor das mudanças ocorridas na antiga metrópole. Assim, em 1880, dizia ele que “o Portugal de hoje não é o Portugal de há cinqüenta anos atrás”. Para o autor das Soluções Positivas da Política Brasileira, “assim como herdamos todos os vícios e preconceitos dos nossos imediatos predecessores, devemos hoje, com calma e sangue frio, imitar o exemplo dos nossos irmãos d’além mar, seguindo firmemente a senda que traçam”. E se era certo que “durante muito tempo, Portugal atardou-se na trilha da evolução por não se preocupar com o movimento filosófico do norte e centro da Europa”, no Brasil, dizia ele, “temos cometido o mesmo erro, por não querermos ver o movimento que nos deixa a perder de vista na marcha geral das nações. Estamos vivendo na persuasão de que nada temos mais a aprender com Portugal”. Daí que, para Pereira Barreto, é “nosso dever de patriotas confessar francamente que, do outro lado do Atlântico, nessa mesma terra que nos serviu de embriogênio berço, existe hoje uma plêiade de homens cuja estatura não encontra entre nós paralelo. Teófilo Braga, Ramalho Ortigão, Felipe Simões, Guerra Junqueiro, G. de Vasconcelos, Eça de Queirós, Antero de Quental, Gomes Leal, Consiglieri Pedroso, Oliveira 150

Martins, Luciano Cordeiro, Júlio de Mattos, Adolfo Coelho, Horácio Ferrari, Alexandre da Conceição, Teixeira Bastos, Cândido de Pinho, Ernesto Cabrita, Augusto Rocha, Bittencourt Raposo, Amaral Cirne, Guilherme de Azevedo e tantos outros, são todos nomes que afirmaram a autonomia de uma nacionalidade em via de progresso” (332). Sílvio Romero, por sua vez, discordava do lugar proeminente concedido às ideias supostamente recolhidas a partir das transformações simbolizadas pela Questão Coimbrã e pelas Conferências do Casino Lisbonense. Para o autor da História da Literatura Brasileira, o papel de destaque na revolução das ideias no Brasil devia-se à Escola do Recife. É o que assevera ao declarar que, “em 1862, no terreno do jornalismo, antes da Reação de Coimbra, entre nós a escola do Recife reagiu contra os nossos pretensos chefes por meio de Tobias Barreto e seu discípulo Castro Alves”. Para ele, terá sido este movimento “de caráter revolucionário” o responsável pela propagação “por todo o país, acordando decidido entusiasmo na escola de São Paulo e no Rio Grande do Sul” (333). Ou seja, a incorporação das “novas ideias” – isto é, a recepção e incorporação das diferentes vertentes do positivismo e do evolucionismo – teria partido do Recife, espraiando-se, primeiramente, por São Paulo e pelo Rio Grande do Sul, e, depois, pelo restante país. Não obstante estas declarações de Romero, um autor como José Veríssimo conferirá, tal como Luiz Pereira Barreto, significativa importância às repercussões, no Brasil, das transformações ocorridas nos acontecimentos de Coimbra e nas conferências de Lisboa. Referindo-se à incorporação das “modernas ideias”, Veríssimo afirma que, antes da Escola de Recife fora “nos próprios livros franceses de Littré, de Quinet, de Taine 332

BARRETO, Luiz Pereira. Obras Filosóficas. Vol. III. Organizado por Roque Spencer Maciel de Barros. São Paulo: Humanitas, 2003, pp.18-19. ROMERO, Sílvio. “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo”, In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.281. 333

151

ou Renan, influenciados pelo pensamento alemão e também inglês, que começamos desde aquele momento a instruirmo-nos das novas ideias. Influindo também em Portugal, criara ali a cultura alemã uma plêiade de escritores pelo menos ruidosos, como Teófilo Braga, Adolfo Coelho, Joaquim de Vasconcelos, Antero de Quental, Luciano Cordeiro, amotinados contra a situação mental do reino. Além destes, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão vulgarizavam nas Farpas, com mais petulância e espírito que saber, as novas ideias. Todos estes, aqui muito mais lidos do que nunca o foi Tobias Barreto, atuaram poderosamente na nossa mentalidade. E o movimento coimbrão, como se chamou à briga literária do «Bom senso e bom gosto», pelos anos de 65, teve certamente muito maior repercussão na mentalidade literária brasileira do tempo, do que a pseudo-escola do Recife” (334). Não vale a pena entrarmos na discussão sobre qual foi o movimento que teve a primazia na transformação das ideias no final do século XIX, se a “brasileira” Escola do Recife ou as “portuguesas” Questão Coimbrã e Conferências do Casino Lisbonense. Uma abordagem genealógica da cultura em nada se aproxima de nosso viés analítico. Para já, interessa-nos sublinhar o fato indesmentível de uma clara concomitância na conjuntura da “lusa” e da “brasileira” geração de 1870, em que a atmosfera de contestação e a estética de transformação cultural manifestam não desprezíveis pontos de similitude. As motivações que concorriam para esta ambiência eram várias. É fato, porém, que para além das diferenças explícitas, a situação de ambos os países é, mutatis mutandis, parelha. Esta atmosfera configuracional pode ser bem apreciada pelo retrato que José Maria Belo fez da época: “As críticas dos monarquistas e dos republicanos portugueses aos erros e vícios do regime não diferiam muito 334

VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). Brasília: Editora da UnB, 5ª edição, [1912] 1998, p.236.

152

das que faziam os monarquistas e republicanos brasileiros. Na mesma língua, com mais açúcar na prosódia brasileira, se discute, se declama, se faz retórica, se faz poesia em S. Bento, em Lisboa, e na Cadeia Velha, no Rio de Janeiro. Tendência semelhante ao sentimentalismo, gosto idêntico da frase e das velhas fórmulas jurídicas, facilidade análoga em fugir do real e do positivo, equilibrada, no entanto, pelas reações freqüentes do senso prático, a mesma insinceridade nos compromissos e o mesmo afeto às posições políticas, que permitem o emprego público e falam à vaidade. Se as condições diversas da vida do campo imenso, semi-deserto e adstrito ao escravo no Brasil, pequeno e subdividido em Portugal, separa as sociedades rurais brasileira e portuguesa, é idêntico nos dois países o tipo de civilização urbana. As grandes cidades do Brasil imperial, como Rio, Bahia, Recife e Belém, reproduzem os hábitos e costumes, em suma, o estilo de vida de Lisboa e do Porto. A rua do Ouvidor, por exemplo, estreita, inestética e mal cuidada, espécie de galeria de exibições diárias, feira das vaidades cariocas, perdurando, aliás, pela época republicana, é como o prolongamento do Chiado de Lisboa” (335). Afirma Fernando Catroga que as ciências, “com o seu carisma de objectividade e de racionalidade, apareciam, de facto, aos olhos da «nova geração», como a prova irrefutável da verdade das propostas filosóficas e sociais que, em seu nome, eram apresentadas como a solução definitiva para a crise moral e social decorrente das contradições capitalistas [e que], em Portugal, isso significava a contestação do status quo nascido com a Regeneração e implicava a anatematização das instituições (propriedade, Igreja, Monarquia) e dos valores éticos (utilitarismo) e estéticos (ultra-

335

BELO, José Maria. História da República. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940, p.2930.

153

romantismo) que o legitimavam” (336). Ora, uma semelhante conjuntura foi também observada no Brasil. Uma linguagem contestatória aproximava as duas margens do Atlântico: modernização, laicização, republicanismo, eram propostas discutidas com recorrência; ciência e teologia, positividade e metafísica, revolução e reforma, eram dualidades de pronto recurso argumentativo; a história e o seu lugar, as opções entre o peso relativo a conferir ao presente e ao futuro e, por inerência, ao passado, eram patamares de alinhamento ou de oposição, realinhando as teses em presença. A partir destes parâmetros mais ou menos comuns, bifurcar-se-iam os caminhos. A partir deles, por sua vez, outras novas demarcações seriam feitas. Nem poderia ser de outra forma: uma das características dos intelectuais que encontramos na configuração luso-brasileira é, na verdade, a trajetória cambiante e heterodoxa de seu pensamento. A quase totalidade deles apresenta significativos influxos teóricos, alterações doutrinárias e aprofundamentos críticos, impondo, um permanente questionamento das convicções, dos projectos e dos rumos a tomar. Pense-se, em concreto, no exemplo fornecido, a este título, pela própria trajetória intelectual de dois dos líderes da geração de 1870: Antero de Quental e Tobias Barreto. Sobre Antero, limitemo-nos a recordar, de acordo com o que se encontra explicado, que “basta aprofundar a análise da [sua] obra (sobretudo os seus ensaios e a sua correspondência) para se concluir que a sua filosofia, desde os anos de Coimbra, evoluiu num diálogo permanente com o impacte das ciências e da ideologia a que deu origem: o positivismo e o cientismo"(337). Entretanto, recordar-se-á, no 336 CATROGA, Fernando e CARVALHO, Paulo Archer. Sociedade e Cultura Portuguesa II. Lisboa: Universidade Aberta, 1996, p.167. 337 A trajetória de Antero de Quental pode ser assim resumida: “o cientismo em geral, e a sua tradução positivista e naturalista, em particular, constituíram o ponto de referência polémico em função do qual Antero tentou elaborar a sua própria filosofia. Portanto, não se pode estudar a evolução do seu pensamento sem se relevar a sua atitude no que concerne à problematização

154

tocante a Tobias Barreto(338), a já aqui citada transição entre as várias fases por que passa a Escola do Recife. Mais especificamente, tenha-se em conta, na linha de Beviláqua, que foi “sob a influência de Tobias e Sílvio Romero e, depois, sob outros influxos, [que] os moços estudiosos adoptaram o positivismo do Curso, com Littré e a Révue de philosophie positive. Dele passaram ao monismo haeckeliano. Alguns inclinaram-se para Spencer, Mill, Ardigó, outros abraçaram o materialismo. Mais tarde, por irradiação da igreja positivista do Rio de Janeiro, apareceram ortodoxos, como Aníbal Falcão” (339). O panorama é esclarecedor. É como se, vencida a batalha contra o espiritualismo e a teologia, uma divisão de águas se tornasse inevitável. Se todos concordavam com o espírito do “bando de ideias novas” (de que fala Sílvio Romero), no que dizia respeito à construção das “novas pontes” (de que falava Antero), muitas alternativas estavam em aberto. Assim, se aceita a leitura de Antônio Paim sobre o movimento de contestação das ideias no Brasil quando ele diz que este movimento “corresponde a uma espécie de frente cientificista, em que todos comungam dos mesmos propósitos naturalistas, até que os positivistas se destacam do todo para constituir organização autônoma” (340). Com efeito, a ideia de que a aglomeração de inspirações doutrinárias de diversa proveniência vai a par com o potencial de dispersão e de posterior absorção de credos mais abrangentes, adequa-se bem ao que sabemos do caso brasileiro. Salvaguardadas as devidas filosófica das ciências e das ilações mundividenciais das filosofias que as invocavam. E como sabemos pela sua crítica de 1866, desde cedo procurou encontrar a raiz metafísica do conhecimento científico, condição que considerava essencial para o colocar ao serviço da verdadeira libertação humana”. CATROGA, Fernando e CARVALHO, Paulo Archer de. Sociedade e Cultura Portuguesa II. Lisboa: universidade Aberta, 1996, p.167. 338 No mesmo sentido, Clóvis Beviláqua explica que “pouco se deteve Tobias no positivismo”. BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume II. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.105. 339 BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume II. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927, p.105. 340 PAIM, Antônio. A Filosofia Brasileira. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Série Biblioteca Breve, volume 123, 1ª edição, 1991, p.97.

155

nuances, o cenário português parece ser, quanto a este aspecto, compaginável. Não porque a situação se apresente, num e noutro lado, simetricamente delineada. Pelo contrário: para além da equiparação de pontos de contestação e de renovação das ideias, será a diferente conjuntura de recepção das correntes positivistas o que ditará mudanças de percurso assinaláveis entre os movimentos português e brasileiro. Assim sendo, é precisamente essa distinta apropriação e esses distintos trajetos do positivismo em ambos os países, apesar de um quadro de debate teórico razoavelmente comum, aquilo que importa perceber e confrontar. O nosso intuito será, pois, identificar os contornos e as distinções internas destes processos. Numa palavra, o seu carácter demarcatório.

2. A “frente cientificista” e seus níveis de relacionamento.

Em 1881, podia ler-se, na Revue philosophique, o seguinte: “Qu’on en soit le partisan ou l’adversaire, il est, à chaque époque, des doctrines dont la connaissance s’impose à tous les esprits cultivés. Tel fut au XVIIº siècle le cartésianisme ; tel est au XIXº siècle le positivisme. A son égard la lutte se comprende, les dissidences s’expliquent ; l’ignorance ne se conçoit plus” (341). Pode entender-se o raciocínio subjacente: inegavelmente, a segunda metade do século XIX é marcada por uma impressionante polifonia de correntes filosóficas; dito isto, é igualmente verdade que a difusão do positivismo, em seus diferentes quadrantes e versões, virá a configurar um elemento preponderante desta ambiência cultural; tal como é igualmente certo que, para lá do seu cunho agregador, este movimento é obrigado a assistir à luta pela clarificação das alternativas, no âmbito da qual diversas posições filosóficas, políticas, estéticas e sociais tomarão 341

Revue philosophique (1881), citado por GRUBER, R.P. Le Positivisme depuis Comte jusqu’à nos jours. Paris: Lethielleux, 1893, p.1.

156

corpo. “Les dissidences s’expliquent”. Por certo que sim. No horizonte luso-brasileiro que nos ocupa, importará assim acompanhar as linhas de difusão do positivismo, por forma a explicar as dissidências por ele introduzidas na larga “frente cientificista”.

2.1. Difusão do positivismo: perspectiva comparada

As primeiras manifestações de divulgação da doutrina positivista no Brasil podem ser divididas em duas fases: uma, direta, feita pelos brasileiros que estudaram com Augusto Comte na Escola Técnica de Paris (342); outra, indireta, marcada pelos trabalhos realizados no país, que começam a ser produzidos a partir de 1850 (343). O positivismo é introduzido no Brasil vinculado às ciências físicas e matemáticas, designadamente na Escola Central e na Escola Militar do Rio de Janeiro. O peso significativo que estes temas assumem no corpo geral da doutrina

342

Conforme Ivan Linz, “durante o período em que Augusto Comte lecionou na Escola Politécnica de Pais vários estudantes brasileiros figuraram, a partir de 1832 entre os auditores livres dos seus cursos. São os seguintes, em ordem cronológica: em 1832, Henri Rose Guillon; de 1836 a 1837, José P. d’Almeida; de 1837 a 1839, Patrício d’Almeida e Silva, Agostinho Roiz Cunha, Antônio de Campos Belos e Antônio Machado Dias; (de 1838 a 1839 ainda foi aluno de Comte Agostinho Roiz da Cunha), e de 1839 a 1840, outro brasileiro – Pinho de Araújo”. LINZ, Ivan. “O Positivismo no Brasil”. Separata de Decimália. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Biblioteca Nacional, 1959, p.3. 343 João Cruz Costa menciona uma tese de doutoramento cujo tema concernia aos princípios de Estática, defendida, em Fevereiro de 1850, pelo maranhense Manuel Joaquim Pereira de Sá, apresentada na Escola Militar do Rio de Janeiro. Em abril de 1851, foi defendida outra tese em física, relativa aos princípios de Hidrostática, por Joaquim Alexandre Manso Sayão. Em 1853, Manuel Pinto Peixoto, inspirado na Geometria Analítica de Comte, apresenta um estudo sobre os princípios do cálculo diferencial. Em outubro de 1854, Augusto Dias Carneiro, também baseado em Comte, apresenta uma tese doutoral em Termologia. Em 1858, Antônio Ferrão Muniz de Aragão publicava, na Bahia, os Elementos de Matemática. “Em 1865, Francisco Brandão Júnior publicava, em Bruxelas, um opúsculo, A Escravatura no Brasil, com um apenso relativo à agricultura e colonização no Maranhão, terra do autor”. Conforme COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção Documentos Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956, pp.145-148 e LINZ, Ivan. “O Positivismo no Brasil”. Separata de Decimália. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Biblioteca Nacional, 1959, pp.3-8.

157

positivista e a sua articulação com a orientação cientificista justificam o investimento nesse aspecto. De acordo com Antônio Paim, no Brasil o cientificismo “adquire forma acabada em mãos de Benjamim Constant (1836-1891), que se torna professor da Escola [Central, depois Politécnica] em 1873” (344). No ano seguinte, 1874, veio à estampa o primeiro volume das Três Filosofias, de Luiz Pereira Barreto (1840-1923). Estas duas lideranças positivistas serão, juntamente com Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, as principais balizas da assimilação doutrinária do positivismo brasileiro. Importa considerar que todos estes nomes assinaram o ato de criação da primeira associação positivista no Brasil, em 1º de Abril de 1876. Merece destaque o fato de que esta instituição não possuía carácter militante; propunha-se, tão-só, organizar uma biblioteca composta pelas obras de Augusto Comte, além de abrir alguns cursos científicos no país. Faziam parte desta associação, “Oliveira Guimarães, professor de matemática no Colégio Pedro II; Benjamim Constant, (1836-1891), professor da Academia Militar e que se tornaria um dos chefes do movimento militar que derrubou a monarquia e proclamou a República; Álvaro de Oliveira, genro de Benjamin Constant, professor catedrático da Escola Politécnica; Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), que se tornariam os líderes do Apostolado, além de outros. A entidade receberia o apoio de positivistas que viriam a adquirir

344

Importa destacar que, para Antônio Paim, “a difusão do cientificismo no Brasil seria obra do Seminário de Olinda, organizado em 1800 por Azeredo Coutinho, e da Real Academia Militar”, instituição que “logrou manter o espírito da Reforma [pombalina] de 1772, elaborada sob a égide de suposição de que o núcleo do saber encontra-se nas ciências experimentais”. Destaca ele ainda que já na década de 1850, a Real Academia, “formava não apenas militares mas igualmente engenheiros e outros quadros técnicos”, sendo posteriormente desmembrada em dois estabelecimentos, sendo “o ensino militar, transferido para a Praia Vermelha e o ensino de matemática, ciências físicas e naturais, e engenharia, aberto tanto a militares como a civis, que ficava o Largo de São Francisco, com a denominação de Escola Central. Essa última passaria a chamar-se Escola Politécnica, em 1874”. PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina: UEL,1997, p.542-545.

158

grande nomeada, como é o caso do citado Luiz Pereira Barreto” (345). Ou seja, ainda nesta altura, tanto ortodoxos comteanos quanto littréistas estavam unidos à volta do mesmo intuito: propagar os conhecimentos científicos e divulgar os ensinamentos do positivismo. Mudemos de margem atlântica e focalizemos a situação portuguesa nesse mesmo momento. Como se deram as iniciais manifestações do positivismo em Portugal? Tal como se passou no Brasil, também em Portugal o positivismo teve suas primeiras manifestações vinculado à difusão das ciências naturais e da matemática (346), sendo a partir da década de 1870 que a doutrina positivista ganha maior relevo (347).Teófilo Braga foi seu maior divulgador. De maneira geral, o positivismo consolida-se, em Portugal, imbricado no âmbito do republicanismo, surgindo na esteira da transformação social iniciada pelos dois movimentos de contestação das ideias já mencionados (a Questão Coimbrã e as Conferências do Casino) e impondo-se como o credo mais apropriado à dinâmica política e doutrinária em causa. Assim, “de todas as correntes filosóficas presentes no horizonte intelectual português

da

época

(neo-escolástica,

kantismo,

espiritualismo,

345 PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina: UEL,1997, p.550. 346 De acordo com Fran Paxeco, “foi sob o aspecto matemático, na Politécnica do Porto, com a Mecânica Racional de Freynet, discípulo de Comte, e na Politécnica de Lisboa, com a Geometria Descritiva, adoptada por Mariano de Carvalho”. PAXECO, Fran, Cartas de Teófilo. Lisboa, Tipografia da Imprensa do Diário de Notícias, 1924, pp.26-27. 347 Dois intelectuais se destacam no início da difusão do positivismo em Portugal: Manuel Emídio Garcia e Teófilo Braga. Do primeiro, lembramos, com Fernando Catroga, que “já em 1865-1866, Manuel Emídio Garcia, professor de Coimbra, comentava e aplicava o pensamento de Comte nas suas aulas de Direito Administrativo”. Conforme CATROGA, Fernando. “Os inícios do positivismo em Portugal: seu significado político-social”. Separata da Revista de História das Ideias, vol.1, 1977, pp.315-316. Do segundo, mencionamos, em acordo com Amadeu Carvalho Homem, que “após ter triunfado sobre Manuel Pinheiro Chagas e Luciano Cordeiro no concurso que lhe deu acesso à docência no Curso Superior de Letras, realizado em 1872, Teófilo Braga veio a reger interinamente a cadeira de Filosofia Transcendental. Corria o ano de 1872-73. Fiel è orientação teórica que passara a perfilhar, Teófilo reformulou o programa dessa disciplina, imprimindo-lhe um cunho inequivocamente positivista”. HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao Realismo: temas de cultura portuguesa (século XIX). Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2005, p.95.

159

proudhonismo), nenhuma poderia responder a essa necessidade de autoreconhecimento doutrinal como o positivismo” (348). Contudo, há que ressaltar a peculiaridade do processo de difusão do positivismo em Portugal, posto que se trata de um fenômeno onde se combinará uma filosofia claramente antidemocrática e antiliberal – como era a proposta de Augusto Comte – com um movimento social onde o republicanismo expressava um cariz democrático e liberal, retomando para si a tradição do liberalismo vintista (349). Nestas circunstâncias, a alternativa tomada é clara: alicerçados pelo “espírito de positividade” da época, propagado pelos ensinamentos do Cours

de

Philosophie

Positive,

os

positivistas

portugueses

não

acompanharão a deriva religiosa do positivismo, manifesta no Systhème de Politique Positive. Daí que, em Portugal, não será levado adiante, como, ao invés, sucederá no Brasil, o incremento de uma facção ortodoxa dos ensinamentos de Comte que haviam sido cultuados por Pierre Laffitte, em França, e por Miguel Lemos e Teixeira Mendes, no Brasil. As divisões e subdivisões dar-se-ão, esmagadoramente, em Portugal, no âmbito de um littreísmo comum, na medida de uma maior ou menor incorporação dos conhecimentos propagados pela ciência da época e na medida da maior ou menor convergência em torno das estratégias a tomar para alcançar os objectivos pretendidos no seio do republicanismo. Uma prova disto pode ser encontrada na revista O Positivismo, dirigida por Teófilo Braga e Júlio de Mattos. Em 1879, no fascículo de Junho-Julho, Júlio de Mattos saudava a publicação da segunda edição do

348

CATROGA, Fernando. “A importância do positivismo na consolidação da ideologia republicana em Portugal”. In: Biblos. Vol.LIII, Coimbra, 1977, pp.289. 349 Conforme assinalam CATROGA, Fernando, “A importância do positivismo na consolidação da ideologia republicana em Portugal”. In: Biblos. Vol.LIII, Coimbra, 1977, pp.290-291, e HOMEM, Amadeu Carvalho. O positivismo em Portugal : o contributo de Teófilo Braga. Coimbra : Minerva, 1989, p.236.

160

livro Consérvation, Révolution et Positivisme, de Émile Littré (350). Nessa ocasião, salienta o fato de que esta segunda edição da obra em muito se diferenciava da primeira edição, feita em 1852, quando ainda Littré aderia sem reservas aos preceitos da obra de Augusto Comte (351). Ao longo desta recepção crítica, Júlio de Mattos cita, em diversos momentos, o prefácio desta nova edição, onde Littré expõe suas divergências e “actualiza” a obra comteana. Afinal, diz Littré – e Mattos faz questão de registrar – que “o tempo, quando se prolonga, é um juiz das teorias” (352). Bem se vê, que a adesão ao positivismo de Augusto Comte não veio desprovida de certo distanciamento crítico que buscava sua actualização consoante os conhecimentos científicos mais recentes. Estribado numa apurada compreensão das demarcações sofridas pelo positivismo, Júlio de Mattos afirma que “Augusto Comte, o poderoso criador da sociologia abstracta, sistematizando a Filosofia Positiva deu origem, como Hegel, no seio da própria escola a uma divisão dos seus discípulos. Pretendem uns a cuja frente se colocou Laffitte, que entre todas as obras de Comte existe a mais perfeita e completa harmonia, que desde as primeiras páginas do Curso até as últimas da Política Positiva tudo é conexo, tudo se liga pelos laços da mais estreita unidade” (353). Contudo, continua o heterodoxo positivista 350

LITTRÉ, Émille, Conservation, Révolution et Positivisme. Paris : Librarie Philosophique de Ladrange, 1852. 351 Lembre-se que, ainda em 1851, era o tom empírico a marca do pensamento de Comte, representado pelo Cours, recentemente publicado. Émile Littré não acompanhará Comte na viragem do Système e do Apostolado, postura acompanhada pelos positivistas portugueses. A posição de Littré diante da obra comtiana está bem expressa em seu texto “Estudo sobre os Progresso do Positivismo”, escrito em 1876, sob a forma de novo prefácio à quarta edição do Curso de Filosofia Positiva. Neste texto, escreve ele que “a obra de Comte é um ponto de partida”, deixando clara sua abertura aos “progressos da ciência natural”. LITTRÉ, Émile. “Estudo sobre os Progresso do Positivismo”, posfácio à COMTE, Augusto. Princípios de Filosofia Positiva. São Paulo : Editorial Paulista, [s.d], p.178. A edição paulista consultada contém os dois textos de Littré. 352 LITTRÉ, Émile. Conservation, Révolution, Positivisme. Deuxième édition, augmenté de remarques courantes, chez Germer Ballière, 1879, apud Júlio de Mattos, “Bibliografia”. In: O Positivismo, n.º5, junho-julho, 1979, p.393-401. 353 É assinalável que Mattos cite o ortodoxo Jorge Lagarrigue, companheiro de Miguel Lemos em Paris, a partir de um artigo publicado por aquele intelectual chileno na laffitista Révue

161

português, “pretendem outros, à frente dos quais se acha Littré, que há nas obras de Comte uma construção genial, e uma parte fantasista, efémera, o produto bastardo de uma inteligência transviada, decadente”. E, se às subdivisões internas ao positivismo não eram alheios os seus difusores portugueses, também o não eram em relação aos veículos e às revistas de divulgação de suas ideias, cuja conotação demonstravam sobejamente conhecer: afinal, como remata Mattos, “destes dois ramos, o primeiro constitui a escola chamada ortodoxa que admite e defende todas as afirmações do mestre; o segundo é a escola dissidente que, aceitando as ideias fundamentais contidas no Curso de Filosofia Positiva, recusa todas as outras. Cada um destes grupos tem actualmente os seus órgãos; o grupo de Laffitte tem a Revista Occidental, o grupo de Littré a Revista de Filosofia Positiva” (354). Se no Brasil se observou uma análoga (foi-o até determinado momento) divisão entre ortodoxos e heterodoxos, em Portugal não restam dúvidas da opção littreísta. Isto parece ficar claro quando vemos, por exemplo, a publicação, naquela mesma revista O Positivismo, em 1879, de um artigo de Teófilo Braga, intitulado “Constituição da Estética Positiva”, que havia já sido publicado na Revista de Filosofia Positiva, dirigida por Émile Littré e Wyrouboff, em 1875 (355), no qual Teófilo afirma categoricamente que “o positivismo não é uma escola individual, mas uma sistematização do estado dos espíritos, que se vai fazendo à medida que as

Occidentale (LAGARRIGUE, Jorge. Révue Occidentale, 2º ano, n.º3, p.373), onde afirmava que “não há senão um só Positivismo, o que A. Comte construiu e desenvolveu com uma admirável continuidade nas suas diversas obras, Sistema de Filosofia Positiva, Sistema de Política Positiva, Catecismo positivista e Síntese Subjetiva”. Conforme MATTOS, Júlio de. “Bibliografia”. In: O Positivismo,n.5, junho-julho, 1879, p.395. 354 MATTOS, Júlio de. “Bibliografia”. In: O Positivismo,n.5, junho-julho, 1879, p.395. 355 No entanto, os positivistas portugueses não hesitavam em revelar a divulgação da revista O Positivismo tanto nas páginas da Philosophie Positive (no tomo XXII, p.154), do grupo littreísta, como na Révue Occidentale, (em março de 1879), através das palavras do laffitista Jorge Lagarrigue. Conforme Júlio de Mattos, Secção “Variedades”, O Positivismo, Primeiro Anno, 1879, N.º6, 1879, pp.473480.

162

ciências vão dando mais largas provas às nossas convicções” (356). Posição sugestiva não só da opção littreísta, mas da abertura para demais interfaces com os conhecimentos das demais esferas científicas. Outra prova de que o positivismo, em Portugal, trilhou os caminhos de uma versão heterodoxa, de inspiração littreísta, onde foram incorporadas variadas influências filosóficas (357), pode ser coletada no depoimento de Teixeira Bastos, para quem Teófilo Braga “faz sentir a necessidade de uma comprovação geral da doutrina positiva em face das mais recentes descobertas científicas, provando que não pode ficar inalterável, como querem os Laffittistas, nem deve ser combatida pela dialéctica, como o faz Huxley” (358). No contexto brasileiro, porém, a subdivisão do grupo positivista parisiense, descrita acima por Júlio de Mattos, terá repercussões de monta no processo de difusão das ideias positivistas. Como se verá a seguir, isto ocasionará um reposicionamento de alguns importantes divulgadores da doutrina no Brasil, bem como forçará a ruptura de outros com o movimento, demarcando diferentes grupos de recepção ao positivismo.

2.2. Ortodoxias e Heterodoxias: primeiras demarcações

Se até 1876 a difusão do positivismo no Brasil não apresenta maiores rupturas em seu processo, este quadro irá se alterar logo no ano 356 BRAGA, Teófilo. “Constituição da Estética Positiva”, In: O Positivismo, primeiro anno, n.6, agosto-setembro, 1979, p.411. 357 Mencione-se, a este respeito, que, por exemplo, no texto anteriormente mencionado de Teófilo Braga, “Constituição da Estética Positiva”, o autor faz referências a Comte e Cournot, além de citações de Émile Littré, J.G. Herder, Max Müller e Stuart Mill, combinando, deste modo, o positivismo (Comte) em sua vertente heterodoxa francesa (Littré) e inglesa (Stuart Mill), agregando-lhes as interpretações germâncias anti-universalistas (Herder) que se voltam para as análises das genealogias linguísticas e raciológicas (Max Müller). A seguir, neste trabalho, dedicaremos mais atenção a esta mistura de referências teóricas. 358 Teixeira Bastos refere especificamente a obra Traços Gerais de Filosofia Positiva, publicada por Teófilo Braga em 1877. BASTOS, Teixeira. Teófilo Braga e sua obra: estudo complementar das “Modernas ideias na Literatura Portuguesa”. Porto: Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1892, p.268-269.

163

seguinte, em 1877. A transferência de Miguel Lemos e Teixeira Mendes para Paris, para completar seu curso politécnico, implicará uma divisão de águas no cientificismo brasileiro. Chegado à capital francesa, Miguel Lemos entra em contato com o grupo littreísta e logo se desilude. Na Primeira Circular Anual do Apostolado do Positivista do Brasil, de 1881, a descrição desse encontro, feita pelo próprio Miguel Lemos, não deixa qualquer dúvida: “verifiquei por mim mesmo que aquele que nós julgávamos um chefe de escola, ardente, incansável em promover a regeneração universal ensinada pelo Mestre, não passava de um erudito seco, sem nenhuma ação social, insulado no seu gabinete, ocupando os ócios da velhice adiantada em renegar tudo quanto aprendera na convivência do grande Construtor. O famigerado pretenso chefe da escola positivista era apenas um paciente investigador de vocábulos, sem entusiasmo, sem fé, absorvido pelas minúcias de uma erudição estéril” (359). Esta decepção com a pretendida esterilidade e secura do saber cientificista de Littré fez com que o futuro líder do Apostolado positivista brasileiro entrasse em contacto com o grupo de positivistas ortodoxos liderado por Pierre Laffitte, que se reunia aos domingos para ministrar cursos de “filosofia primeira” no apartamento que fora habitado por Augusto Comte, situado à rua Monsieur-le-Prince, na capital francesa. Ainda na Primeira Circular, Lemos acrescenta, em linguagem inspirada por fervor de positivista religioso: “suspeitei logo que o novo redentor podia ter tido também o seu Judas e a sua Cruz, e dei começo ao julgamento de E. Littré perante mim mesmo. Esta resolução foi tanto mais difícil para as minhas condições pessoais, quanto eu recebera de Émile Littré repetidas provas de benevolência literária. Não se tratava, porém, de 359 LEMOS, Miguel. Primeira Circular Anual do Apostolado do Positivista do Brasil (1881). Citado por COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção Documentos Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956, p.171.

164

poupar minha vaidade, mas de reparar os meus erros e as minhas injustiças” (360). Será neste contexto que Miguel Lemos empreenderá a leitura do Systhème de Politique Positive de Augusto Comte, obra que marca a inflexão do chefe do positivismo para a vertente mais ortodoxa do apostolado (361). Ora, para compreendermos a conversão de Miguel Lemos, por ocasião de sua estada em Paris, é fundamental termos presente que as duas principais correntes do pensamento positivista francês – a ortodoxa, liderada por Pierre Laffitte, e a dissidente, liderada por Émile Littré –, são oriundas de compreensões distintas da própria evolução do pensamento de Augusto Comte, representadas geralmente por duas de suas obras: o Cours de Philosophie Positive (1830-1842) e o Système de Politique Positive (1851-1854). Tal como explica Amadeu Carvalho Homem, o pensamento de Augusto Comte no seu Curso de Filosofia Positiva “situa-se no prolongamento do kantismo, pelo menos quanto à distinção entre fenómenos e númenos. Comte aceita, na esteira de Kant, que só possa ser objecto do conhecimento científico tudo o que for explicável, de forma directa e inequívoca, no plano da cognição, através da mediação dos órgãos dos sentidos” (362). Trata-se de uma perspectiva assaz empirista do ponto de vista da construção do conhecimento, bem como de um viés agnóstico no plano axiológico. Nem Deus, nem a Criação, nem nada que remeta à transcendência diz respeito ao conhecimento científico. Este, apenas pelo

360

Idem, ibidem, p.171-172. Foi também neste momento que Miguel Lemos conheceu o chileno Jorge Lagarrigue que, tal como o brasileiro, também veio da América do Sul com ares littréistas e se convertera ortodoxo e seguidor de Pierre Laffitte e da Religião da Humanidade em sua estada em Paris. Desenha-se aqui um eixo analítico estruturado sobre as conexões entre os positivistas chilenos e brasileiros. Não é causal que R.P. Gruber, em sua obra sobre a difusão do positivismo depois de Comte, se refira ao “groupe brésilien-chilien”. GRUBER, R.P. Le Positivisme depuis Comte jusqu’à nos jours. Paris : Lethielleux, 1893, pp.193-218. 362 HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao Realismo: temas de cultura portuguesa (século XIX). Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2005, p.81. 361

165

método tradicional de observação e análise de dados, pode ser fundamentado. No entanto, a partir de 1851, ano em que publica os primeiros volumes do Sistema de Política Positiva, Augusto Comte empreende uma importante inflexão no seu pensamento (363). A partir de então, seu sistema de pensamento não mais dará exclusividade à razão na construção do conhecimento e na fundamentação da moral. A emoção, o amor e o sentimento terão maior ou igual papel na organização de suas ideias. É relevante ter presente que esta inflexão não significou um retorno ao padrão metafísico teológico, tão atacado pelo positivismo em seu início. Representou um peculiar processo de laicização da metafísica, onde se percebe uma deificação da figura da Humanidade e a assunção da proposta moral do altruísmo como ação social positivista (que se contraporia ao egoísmo estéril do liberalismo). Este é o ponto onde surge a ideia de construir a Religião da Humanidade, alvitre que Miguel Lemos tomará como sua missão em seu regresso ao Brasil, após receber, das mãos do chefe do Apostolado Positivista de Paris, o grau de aspirante ao sacerdócio da humanidade, em 25 de Novembro de 1880 (364). Antes desse seu regresso, porém, em 5 de Setembro de 1879, a Sociedade Positivista do Rio de Janeiro declara filiação à direção de Pierre Laffitte. Tratava-se do 21º aniversário da morte de Comte (365). A 363 Resumidamente, dizemos com Carvalho Homem que, “profundamente marcado por um serôdio amor platónico desencadeado por uma mulher mais jovem, Clotilde de Vaux, que lhe morrerá nos braços com as hemoptises da tísica, o filósofo irá reavaliar todo o sistema. Esta reavaliação será de molde a considerar muito redutor o exclusivismo da racionalidade na estruturação geral da sua proposta”. HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao Realismo: temas de cultura portuguesa (século XIX). Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2005, p.81. Para mais informações sobre a biografia de Comte, indicamos GRUBER, R. P. Auguste Comte: fondateur du positivisme: sa vie – sa doctrine. Paris: Lethilleux, 1892. 364 Percebemos, com isto, que foi neste contexto que Miguel Lemos escreveu sua obra sobre Luiz de Camões, dedicada à Laffitte, no âmbito das comemorações camonianas, que já mencionámos, e que teve repercussão tanto no Brasil como em Portugal. 365 A este respeito, justifica-se citar um trecho significativo do discurso feito por Miguel Lemos, em Paris, diante do túmulo de Augusto Comte. Tendo Jorge Lagarrigue ao lado, em dezembro de 1879, Lemos declarava que “como filhos das duas nações que se acham reunidas, em tua

166

Sociedade era presidida por “Joaquim Ribeiro de Mendonça. Afastavam-se os dissidentes, como Pereira Barreto, mas permaneciam algumas personalidades que, ainda que sem aceitar as doutrinas de Littré, iriam porém recusar a transformação do positivismo numa seita religiosa da mais rígida ortodoxia, a exemplo de Benjamin Constant” (366). É tendo por fundo este cenário que, logo que retorna ao Rio de Janeiro, em início de 1881, Miguel Lemos assumirá a direção da Sociedade Positivista do Rio de Janeiro. Nesse momento, cria a instituição que representará a baliza mais ortodoxa do positivismo no Brasil, o Centro Positivista Brasileiro ou Igreja Positivista Brasileira, que possui como propósitos fundamentais o desenvolvimento do culto positivista, a organização do ensino doutrinário e eventuais intervenções nos negócios públicos. Detenhamo-nos agora nas duas primeiras figuras positivistas de topo que, após a inflexão ortodoxa de Miguel Lemos e Teixeira Mendes, não aderiram às propostas do Apostolado positivista: Luiz Pereira Barreto e Benjamim Constant.

teoria histórica, sob a denominação geral de Espanha, ainda te devemos gratidão especial. Quando todos, arrastados por falazes preconceitos científicos de nossa época, falavam com desprezo dessas duas nacionalidades, das quais uma se resume no engenho incomparável de Cervantes, e a outras nos feitos de seus ousados navegantes, cantados pelo imortal Camões, tu somente lhes assinalavas com justiça o papel coletivo que lhes coube na evolução do Ocidente, atribuindo-lhes sobretudo a cultura do sentimento da fraternidade e da dignidade humana. É também como americanos, e pelo mesmo motivo, que nós te devemos o ter podido reconstituir os sentimentos de continuidade histórica com as nossas mães pátrias, apesar dos ódios gerados pelas lutas da independência nacional. Mas não bastam agradecimentos: é preciso continuar a propagar a tua obras. (…) A todos nós, grandes e pequenos, que nestes tempos de ceticismo tivemos a insigne ventura de conhecer e de aceitar a religião universal, impõe-se o dever de espalhar a boa nova e de repetir, como S. Paulo aos corações dilacerados pelos conflitos suscitados entre um dogma que acaba e outro que começa: Nosso Deus desconhecido, ei-lo, nós vo-lo trazemos. Por isso, tomamos hoje à beira de teu túmulo, o compromisso solene de consagrar todo o nosso devotamento, toda a energia do nosso ser, à propagação de tua doutrina regeneradora”. LEMOS, Miguel Lemos. Primeira Circular Anual do Apostolado do Positivista do Brasil, p.29, citado por COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção Documentos Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956, p.180. 366 PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina: UEL,1997, p.552.

167

Luiz Pereira Barreto entrou em contato com o positivismo enquanto cursava medicina na Universidade de Bruxelas (367). De volta ao país, publica As três filosofias, em 1874, e estabelece-se em São Paulo, onde terá um afamado consultório médico, bem como lecionará na Escola de Direito de São Paulo, de 1875 a 1890, tomando a seu cargo a divulgação do positivismo (368). De acordo com Ivan Linz, Luiz Pereira Barreto “estava em dia com o movimento intelectual do seu tempo, dilatando os seus conhecimentos além dos marcos atingidos no dia da morte de Comte” (369). No mesmo sentido argumenta João Cruz Costa, para quem “Pereira Barreto procurava na filosofia positiva mais um método do que propriamente uma doutrina”, sendo, antes de tudo, “um espírito relativista para o qual as fórmulas têm pouca importância e em que os fatos – sempre mutáveis – tudo dominam” (370). Antônio Paim, por sua vez, chama-o de “positivista ilustrado”, ressaltando sua vertente liberal, não-religiosa, pedagógica e antiautoritária (371). Não é casual, assim, que, enquanto positivista heterodoxo, Luiz Pereira Barreto, apesar de ter assinado a ata de fundação da primeira Sociedade Positivista brasileira, em 1876, não tenha seguido esta instituição, quando de sua deriva ortodoxa para o Apostolado, sob a chefia de Miguel Lemos.

367

Luiz Pereira Barreto fora iniciado no positivismo “pela filha de um positivista de primeira hora – o prussiano von Ribbentrop”, tendo defendido, em 1865, na Faculdade de Medicina de Bruxelas, a tese positivista Teoria das Gastralgias e das Nevroses em geral. LINZ, Ivan. “O Positivismo no Brasil”. Separata de Decimália. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Biblioteca Nacional, 1959, pp.8-9. 368 Merece destaque que tenham sido seus alunos os positivistas ortodoxos e autoritários Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, ambos presidentes da Província do Rio Grande do Sul entre 1891 a 1928, bem como Alcides Maia, importante folclorista gaúcho, também influenciado por Karl von Koseritz neste âmbito. 369 LINZ, Ivan. “O Positivismo no Brasil”. Separata de Decimália. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Biblioteca Nacional, 1959, p.9. 370 COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção Documentos Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956, p.158. 371 PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina: UEL,1997, p.556.

168

Outra personagem importante na difusão do positivismo no Brasil foi Benjamim Constant Botelho de Magalhães (372). Professor da Escola Militar e matemático, sua ação no movimento das ideias no século XIX foi decisiva para os acontecimentos políticos que levaram à proclamação da República em 1889 (373). Sobre ele afirma João Cruz Costa que, embora aceitando a filosofia de Augusto Comte, “não era ortodoxo” (374). Na realidade, a trajectória positivista de Benjamim Constant teve sentido inverso à de Miguel Lemos e Teixeira Mendes. Estes, como expusemos, migraram de uma versão mais littreísta – da ciência positiva, de acento empiricista e agnóstico – para o patamar ortodoxo da Religião da Humanidade, aceitando a integralidade da doutrina comteana. Benjamim Constant, ao contrário, se na juventude tinha sido ardoroso defensor do comtismo, iria ver este fervor arrefecer com o passar do tempo (375). Em nosso entendimento, esta mudança explica-se por duas ordens de razões: uma estritamente doutrinária e outra mais conjuntural. Do ponto de vista doutrinário, lembre-se, o próprio Comte era avesso ao militarismo (376), 372 Benjamim Constant entrou em contacto com as ideias de Augusto Comte justamente no ano da morte deste (1857). Pelo intermédio de um dos discípulos do fundador do Positivismo, o bibliotecário L. A. Segond, que se achava no Rio de Janeiro nesta altura, parecem ter sido vendidos exemplares do Curso de Filosofia Positiva de Comte a alunos da Escola Militar, onde estudava Benjamim Constant. Para mais informações, consultar LINZ, Ivan. “O Positivismo no Brasil”. Separata de Decimália. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Biblioteca Nacional, 1959, p.8. 373 Para Antônio Paim, a proclamação da República teve em Benjamim Constant “sua principal figura”. Sua importância no republicanismo não escapou a R. P. Gruber, que considera que “il fut aussi le principal investigateur et l’âme de la révolution qui éclata au Brésil en novembre de 1889. Il préparait depuis longtemps par son enseignement à l’École normale et à École polytechnique de Rio de Janeiro”. PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina: UEL,1997, p.556; GRUBER, R.P. Le Positivisme depuis Comte jusqu’à nos jours. Paris : Lethielleux, 1893, p.195. 374 COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção Documentos Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956, p.241. 375 Segundo Cruz Costa, “o ardor religioso positivista de Benjamim Constant iria, porém, arrefecer mais tarde”. COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção Documentos Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956, p.148. 376 Não custa lembrar que, na sua Filosofia da História, a primeira época da história da humanidade era justamente definida pela marca da Teologia e pelo Militarismo, devendo, deste

169

aspecto que terá pesado nas opções deste Professor da Escola Militar (377). O motivo conjuntural, por assim dizer, deve-se à negativa de Benjamim Constant à proposta do diretor do Centro Positivista do Rio de Janeiro, Miguel Lemos, que propunha a obrigatoriedade da contribuição dos membros da instituição positivista para o sustento dos sacerdotes (378). Benjamim Constant desliga-se do Apostolado em Janeiro de 1882. Em face do exposto, estamos agora em condições de perceber que havia, no mínimo, três correntes do positivismo no Brasil: uma primeira, a autoritária e ultra-ortodoxa do Apostolado Positivista, onde se destacam Miguel Lemos e Teixeira Mendes; uma segunda corrente, que representa uma versão heterodoxa voltada para as ciências naturais e profundamente marcada pelos militares, tendo à sua frente Benjamim Constant; uma terceira corrente, também heterodoxa, mas com consistente atitude política democrática e liberal, sintetizada na figura de Luiz Pereira Barreto. Por ora, basta registramos este quadro, que sintetiza os primeiros passos da difusão do positivismo no Brasil. A ele voltaremos adiante. Falemos novamente do caso português. Oriundo de um curioso “eclectismo”, como afirma Catroga, ou de um “sincretismo”, na acepção de Carvalho Homem, o fato é que o positivismo português tem como referência direta Émile Littré e não Augusto Comte, exprimindo-se em um republicanismo de variada coloração que se manifestava numa atmosfera social de questionamento e

modo, e depois de uma fase de transição, ser superada pela época marcada pelo espírito positivo. Comte, Auguste. Opuscules sur la philosophie sociale. Apêndice ao IV volume de Système de Politique Positive, [1822], pp.112-113. Conforme COMTE, Augusto. Augusto Comte: sociologia. Organizador Evaristo de Moraes Filho. São Paulo: Ática, 1978, p.134. 377 “Augusto Comte entendia que as forças armadas deveriam ser transformadas em simples milícias cívicas, destinadas ao policiamento das cidades e do interior. Em vão os membros do apostolado iriam lembrar a pretensa incompatibilidade entre o positivismo e qualquer forma de militarismo. Na pregação de Benjamim Constant, a elite militar tornava-se mais que simples porta-voz da Nação”. PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina: UEL,1997, p.560-561. 378 Idem, ibidem, p.553.

170

modernização, conformando um complexo ideário ancorado numa estética marcadamente cientista. Compreende-se, nesta perspectiva, que o republicanismo

português

não

se

constituísse

em

movimento

completamente homogêneo – pois nem mesmo a comum recusa da ortodoxia positivista impediu diferenças internas ao republicanismo. Estas, por sua vez, remetiam às diferentes compreensões sobre o modo como a República seria proclamada no país: por via revolucionária, através de uma abrupta tomada de poder, ou pela via do convencimento das massas, pela evolução natural da sociedade portuguesa. Ora, estas duas estratégias divergentes respondiam às nuances dentro do próprio pensamento positivista heterodoxo e remetiam, por assim dizer, às distintas “leituras” do processo histórico. Como é sabido, de acordo com a teoria positivista de Augusto Comte, a República representava a forma de governo correspondente à última fase da evolução da humanidade, marcada pelo espírito positivo e pela cientificidade. Semelhante leitura, entretanto, não resolvia ainda, de modo cabal, a questão: restava por explicar “como” uma sociedade em transição – como era a portuguesa, conforme a leitura dos positivistas – daria o derradeiro passo rumo ao último estágio da célebre Lei dos Três Estados comteana. Esta questão, por sua vez, implicava um posicionamento quanto à ação humana frente ao “motor” da história. Viria a República “naturalmente”, ou necessitaria de uma “ajuda”, sob forma da ação revolucionária? Qual a influência da ação humana na história? As respostas desembocavam amiúde em apreciações de princípio quanto à evolução da humanidade e quanto ao papel do homem na história (379). Remetiam, 379 A importância destas questões, no âmbito do positivismo português, e não só, pode ser vislumbrada em diversos textos publicados na revista O Positivismo. Merece destaque o de Consiglieri Pedroso “O Fortuito na história”, onde o autor, adepto da posição moderada, que via uma inexorável evolução histórica rumo à República, afirma que “estes accidentes que Littré appellidou de – fortuito na história – por isso mesmo que em nada alteram a direcção definitiva do movimento social, quando originados conscientemente são tanto mais insensatos, quanto é

171

também na defesa de estratégias políticas muito diferentes: revolução ou evolução.. Não é à toa, por conseguinte, a importância concedida por Júlio de Mattos à reedição do livro de Émile Littré, em 1879, Conservação, Revolução, Positivismo. Por essa altura, com efeito, a repercussão destas questões dentro do heterodoxo positivismo requeria uma ativa mobilização teórica, paralela às movimentações desencadeadas no âmbito do movimento republicano português (380). “Axiologicamente

híbrido”,

como

refere

Catroga

(381),

o

republicanismo português dividia-se em dois conjuntos: os radicais, adeptos da “via rápida” revolucionária, e os moderados, que acreditavam que a República seria o cume de uma evolução da sociedade por intermédio de uma crescente divulgação dos conhecimentos científicos. Aliás, matizes divisórias deste teor eram à época bem evidentes. Manuel Emídio Garcia, por

exemplo,

distinguia

os

“republicanos

revolucionários”

dos

382

“republicanos evolucionistas” ( ). Por outro lado, cabe evocar a demarcação que resulta da interface com Espanha, devido ao eco da revolução espanhola em 1868. De forma resumida, pode-se considerar que, no reacender da “Questão Ibérica”, dois grupos se distinguiam transversalmente aos países da Península: os “unitaristas”, que sonhavam com a unificação dos tronos espanhol e português numa mesma coroa, e os “federalistas”, que enxergavam na revolução espanhola os indícios de um quadro em que os diversos povos da certo que são de todo o ponto inúteis”. PEDROSO, Consiglieri. “O Fortuito na história”. In: O Positivismo, Primeiro Anno, n.º1, outubro-novembro, 1879, p.18. 380 Como demonstra Teixeira Bastos, em “Conservação e Evolução”, onde afirma que “uma reforma radical é impossível em absoluto”, por considerar que é “do equilíbrio variável entre o espírito de conservação e o de revolução, que nasce esse movimento constante e progressivo, reformador e reorganisador – a evolução”. BASTOS, Teixeira Bastos. “Conservação e Evolução”, O Positivismo. Segundo Anno, n.º2, dezembro-janeiro, 1880, p.122-123. 381 CATROGA, Fernando. “A importância do positivismo na consolidação da ideologia republicana em Portugal”. In: Biblos. Vol.LIII, Coimbra, 1977, p.292. 382 Conforme Manuel Emídio Garcia, O partido Republicano, In: O Partido do Povo, n.º58, Março, I ano, pp.1. Citado por CATROGA, Fernando. “Os inícios do Positivismo em Portugal: o seu significado político-social”. Revista de História das Ideias, volume I, 1977, pp.287-384.

172

Península adeririam ao modelo republicano e federalista (383). Como exemplo desta subdivisão, basta mencionarmos o opúsculo Portugal perante a Revolução Espanhola, de Antero de Quental (384), de 1868, bem como as palavras divulgadas na revista O Positivismo, em 1879 (385), através da qual Teófilo Braga acolherá a célebre obra Las nacionalidades, de Pi y Margall, um dos ícones do republicanismo espanhol (386). Tudo isto, portanto, no contexto de um quadro comprovadamente não uniforme, cuja leitura autoriza dizer, com a chancela de Amadeu Carvalho Homem, que os republicanos portugueses estavam “divididos entre a facção moderada e unitária de José Elias Garcia, Bernardino Pinheiro e Gilberto Rola e a sensibilidade radical e federalista de Carrilho Videira, Silva Pinto e Teófilo Braga” (387). É possível detectar, porém, já em 1880, na esteira das festas comemorativas do Centenário de Camões, alguma aposta na unidade no movimento republicano (388). Devido à grande adesão às comemorações (389), a estratégia pacífica e moderada conseguiu razoável hegemonia 383 Para uma análise pormenorizada da questão ibérica no âmbito nacional português, entre outros, sugerimos CATROGA, Fernando. “Nacionalismo e ecumenismo. A questão ibérica na segunda metade do século XIX”. Cultura, História, Filosofia, vol.6, 1985, pp.419-63 e HOMEM, Amadeu Carvalho. “O tema do iberismo no republicanismo federalista português”. In: LEAL, Ernesto Castro (org.). O Federalismo Europeu. História, Política e Utopia. Lisboa: Edições Colibri, 2001, pp.81-88. 384 “Portugal perante a revolução espanhola” (1868). In: QUENTAL, Antero de Prosas sóciopolíticas. Apres. de Joel Serrão. Lisboa: INCM, 1982. 385 BRAGA, Teófilo. Secção “Bibliographia: Las Nacionalidades, por Pi y Margall. O Positivismo. Primeiro Anno, N.º4, Abril-Maio, 1879, pp.300-307. 386 É curioso que o volume divulgado em Portugal é uma tradução francesa, inserida no volume 1 da “Bibliothéque de Philosophie Contemporaine” e não a edição espanhola. PI Y MARGALL, Francisco. Las nacionalidades. 2ª ed. Madrid, 1877, 380p. 387 HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para a história do republicanismo portuense, no período anterior ao Ultimato”. In: Biblos. Vol. LXXI,1995, p.362. 388 Conforme CATROGA, Fernando. “A importância do positivismo na consolidação da ideologia republicana em Portugal”. In: Biblos. Vol.LIII, Coimbra, 1977, p.293. Importa, contudo, a isto agregar a existência de divisões entre o republicanismo do Porto e o de Lisboa. Sobre isto, consultar o estudo de HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para uma história do republicanismo portuense”. In: Biblos, Vol.LXXI, 1995, p.363. 389 Com repercussões importantes no Brasil, tal como expusemos em capítulo anterior. Neste caso, porém, importa dar relevo aos múltiplos efeitos das Comemorações Camonianas de 1880. Se no âmbito interno ao republicanismo português, as festas em homenagem a Camões

173

enquanto estratégia política de convencimento no modelo natural da chegada da República em Portugal. Tratar-se-á de uma tendencial confluência das perspectivas republicanas, que pode ser resumida, com Fernando Catroga, na ideia de que “o positivismo heterodoxo e republicano culminava, assim, na defesa de uma república demo-liberal, evolutiva, conservadora, descentralista e federalista, situada na linha do romantismo liberal” (390). Este

patamar

“conciliatório”

do

republicanismo

positivista

português (391) não foi, contudo, alcançado pelos positivistas republicanos no Brasil. E se no caso português havia um solo heterodoxo comum entre os positivistas (onde as diferenças estavam situadas nas estratégias de chegada ao poder em uma proposta democrática e liberal), no caso brasileiro, ao invés, o cenário aparenta menor horizontalidade. Importa, por isso, considerar a diversidade doutrinária do positivismo no Brasil, bem como

suas

consequentes

distinções

na

estratégia

política

do

republicanismo.

representaram a formação de um consenso em torno da estratégia política moderada, na escala luso-brasileira, significou, por outro lado, uma tentativa de construção de uma “aliança mental” luso-brasileira, conforme demonstrámos. 390 O autor realça ainda o acento étnico e histórico-cultural da doutinação teofiliana, aafirmando residir neste ponto o interface do positivismo demo-liberal de Teófilo e, de resto, do republicanismo federalista português, com a busca de uma “origem” moçárabe para Portugal, no âmbito dos diversos “povos de Espanha”, em conformidade com a compreensão de Pi y Margall. O federalismo português está relacionado com a fragmentação federalista de Espanha. CATROGA, Fernando. “A importância do positivismo na consolidação da ideologia republicana em Portugal”. In: Biblos. Vol. LIII, Coimbra, 1977, p.306. 391 Esta conciliação do republicanismo português só viria a se completar com a criação do Partido Republicano, proposta encabeçada por Manuel de Arriaga, e levada a cabo no período de 1881-1883. Conforme HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para uma história do republicanismo portuense”. In: Biblos, Vol. LXXI, 1995, p.367.

174

2.3. Os eixos ultra-ortodoxo e demoliberal

Seguindo alguns intérpretes, como, por exemplo, João Cruz Costa, podemos recordar que apesar da influência de Comte apresentar variados aspectos e matizes dentro de um mesmo fundo doutrinário comum, houve sempre “acomodação a condições e necessidades especiais de cada um dos grupos” fazendo “variar o sentido da doutrina, em função dos seus próprios temperamentos”. É neste ponto que se torna possível observar quer as repercussões “da dissidência que já se havia esboçado ainda em vida do filósofo e de que seria chefe Émile Littré”, quer o aparecimento de “novas formas de heterodoxia e, sobretudo, querelas entre os diferentes grupos”. Nesse processo de luta entre todos aqueles que se consideravam ser os “verdadeiros” representam da teoria comteana, o grupo representado por Miguel Lemos e pelo Apostolado Positivista do Brasil, tomará posição que um “significativo rigorismo ortodoxo (392). Atente-se com a devida cautela neste ponto. Este cariz de extremo rigorismo ortodoxo de Miguel Lemos, em nosso entender, é um elementochave para a compreensão das diversas facetas de influência do positivismo no Brasil. Na verdade, tomando em consideração os posicionamentos assumidos pelo Apostolado Positivista do Rio de Janeiro, podemos intuir algumas das linhas seguidas pela mobilização das ideias de Comte no país. Um exemplo disto está na série de lideranças que romperam com a ultraortodoxia de Miguel Lemos. Já mencionámos que Luiz Pereira Barreto e Benjamim Constant romperam com o Apostolado. Vejamos agora o caso – algo sui generis – da ruptura do grupo ortodoxo brasileiro com a própria ortodoxia positivista de Pierre Laffitte.

392 COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção Documentos Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956, pp.169-170.

175

Resumidamente, as causas desta ruptura são duas, ambas relacionadas com a ânsia punitiva de Miguel Lemos diante das indiscrições e indisciplinas de Ribeiro de Mendonça, antigo divulgador do positivismo no país. A primeira dizia respeito à intenção deste em candidatar-se à deputação, postura claramente censurada pela ortodoxia. A segunda questão referia-se ao facto de Ribeiro de Mendonça ter oferecido, em anúncio em jornal, uma recompensa financeira àquele que lhe recapturasse um escravo fugido, postura completamente descabida na perspectiva da ortodoxia positivista, pois, como se sabe, a doutrina era intransigentemente contrária a qualquer tipo de escravidão ou servilismo. O facto é que, no tocante a estes dois casos, Miguel Lemos teria enviado cartas ao chefe francês

do

positivismo,

demandando

que

lhe

chancelasse

suas

determinações. A resposta de Pierre Laffitte veio sob a forma de pedido para que Miguel Lemos tivesse maior prudência e capacidade de relativização (393). Ora, ao que tudo indica, estas duas qualidades não estariam propriamente bem posicionadas no repertório de ideias do chefe do Apostolado Positivista do Brasil. Tanto assim é que, depois de se ter afastado da “estéril erudição” de Émile Littré, em 1881, na Primeira Circular do Apostolado Positivista do Brasil, Miguel Lemos surge agora, em

1883,

na

Terceira

Circular,

a

denunciar

“a

disposição

fundamentalmente cética” de Laffitte, acusando-o de ser um “filho de Voltaire” (394). De modo declarado, a ortodoxia de Lemos “ultrapassava” o rigorismo laffittista. Revelam-se esclarecedoras as observações de R. P. Gruber sobre o que poderíamos designar por eixo ultraortodoxo que ligaria Brasil, Chile e 393

Conforme COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção Documentos Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956, pp.214-224. A versão de Miguel Lemos sobre estes fatos está impressa na Terceira Circular do Apostolado Positivista, de 1883, bem como no opúsculo Pour Notre Maitre e Notre Foi – Le Positivisme et le sophiste Pierre Laffitte. 394 Terceira Circular do Apostolado Positivista (1883), citado por COSTA, João Cruz. Obra citada, p.225.

176

Inglaterra e se teria construído em oposição ao “sofismo” doutrinário de Laffitte em Paris. Conforme esclarece Gruber, em conformidade com a 37ª circulaire, de 1885, as questões relativas à utopia da Virgem Maria demonstram bem a separação entre a ortodoxia laffittista e a ultra-ortodoxia de Lemos, Lagarrigue, Audiffrent e Congreve, na medida em que o chefe do catecismo parisiense via na utopia da Virgem Maria “un limite idéale”, o que muito se distanciava do entendimento que faziam Audiffrent, Lagarrigue e Lemos que “s’en tiennent strictement à la conception d’Aug. Comte, à savoir que cette utopie est simplement «le résumé syntéthique» de la réligion positive”, posturas aclaradas na Lettre à Miguel Lemos et à tous ceux que réunit autour de lui l’amour de l’Humanité, par le Dr. G. Audiffrent, de 1887. O fato é que Miguel Lemos separou-se de Laffitte chamando-o de “sofista”. Passo semelhante também deram Audiffrent, Jorge Lagarrigue e Congreve. Ou seja, chegamos ao ponto de constatar que, para além da tradicional ruptura entre ortodoxos e heterodoxos ocorrida na França, a existência de um eixo de pensamento positivista que liga os chefes do Apostolado positivista brasileiro ao chileno Jorge Lagarrigue e aos britânicos Audiffrent e Congreve. Chamaremos este grupo de ultra-ortodoxo, pois ele é oriundo, como se viu, da ruptura com a chefia da ortodoxia parisiense de Pierre Laffitte (395). Uma vez identificado este eixo ultraortodoxo – e sobretudo porque a sua identificação parece processar-se ao nível de um intercâmbio e de uma circularidade de ideias transnacionais – cabe fazer a seguinte pergunta: teriam os demais eixos positivistas estabelecido, no quadro da heterodoxia, intercâmbio de ideias e estreitamento de relações em escala supranacional, e, desta feita, à escala luso-brasileira? Diante da intensa circulação de ideias e da acurada divulgação de trabalhos científicos, cuja vitalidade e 395

GRUBER, R.P. Le Positivisme depuis Comte jusqu’à nos jours. Paris: Lethielleux, 1893, p.201-.207.

177

abrangência surpreendemos já na parte I deste trabalho, torna-se pertinente a abertura desta linha de raciocínio, até porque os dados já coligidos do lado português, ao denotarem a opção heterodoxa, levam a supor um prolongamento de posições envolvendo os eixos heterodoxos das duas margens do Atlântico. A resposta à questão colocada terá de ser afirmativa. De fato, ao longo da nossa investigação, foi possível estabelecer níveis de relacionamento entre o positivismo heterodoxo português e o segmento daqueles brasileiros que, ao romperem com a ultraortodoxia do Apostolado, propagavam a importância da ciência positiva, da pesquisa empírica e das novas conquistas da ciência. Engrossavam as fileiras da heterodoxia positivista, a confirmar aquilo que Amadeu Carvalho Homem, ao referir-se ao caso português, chamou de “sincretismo cientificista” (396). Na verdade, este “sincretismo” foi também alimentado por vários intelectuais brasileiros, incluindo-se neste grupo, naturalmente, os heterodoxos positivistas de vária coloração. Este eixo luso-brasileiro do positivismo heterodoxo e demoliberal, que terá em Teófilo Braga seu principal expoente em Portugal, e em Luiz Pereira Barreto a principal figura no Brasil (397), teve nas páginas da Revista de Estudos Livres um amplo canal de divulgação científica lusobrasileira (398). Não foi sem razão, portanto, que surpreendemos uma intensa atividade de divulgação científica na esfera cultural luso-brasileira.

396 HOMEM, Amadeu Carvalho. Do romantismo ao realismo: temas de cultura portuguesa (século XIX). Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2005, p.98. 397 A ruptura de Miguel Lemos com Laffitte e com Luiz Pereira Barreto deu origem a alguns equívocos de interpretação, como o de Mozart Pereira Soares, para quem Luiz Pereira Barreto se manteve fiel a Laffitte. Pelos argumentos já expostos e até pela proximidade dele com Teófilo Braga, é nítida sua orientação heterodoxa e, portanto, nada relacionada com a ortodoxia de Pierre Laffitte. SOARES, Mozart Pereira. O Positivismo no Brasil: 200 anos de Augusto Comte. Porto Alegre: AGE, Editora da Universidade, 1998. 398 Lembre-se que a mencionada revista tinha, no biénio 1883-1884, dupla direção: na portuguesa estavam Teófilo Braga e Teixeira Bastos; na brasileira, Américo Brasiliense, Karl von Koseritz e Sílvio Romero.

178

Em rigor, essa dinâmica intercomunicacional de feição transatlântica começa por traduzir o intercâmbio e a divulgação dos vários matizes da heterodoxia positivista, unidos pela aliança em prol do combate à metafísica clássica e às velhas instituições. Nesse âmbito, começa-se por se observar a publicação, na Revista de Estudos Livres, de textos dos dois líderes da renovação intelectual brasileira, Tobias Barreto (399) e Sílvio Romero (400), ícones maiores da Escola do Recife. E, se no segundo volume da Revista de Estudos Livres, correspondente ao biênio de 1885-1886, não observamos a mesma duplicidade luso-brasileira no corpo diretivo da revista (401), isso não significou uma diminuição do intercâmbio lusobrasileiro. Bem ao contrário, após o desenvolvimento da polêmica entre Sílvio Romero e Teófilo Braga – que foi, provavelmente, o motivo da mudança do padrão de dupla direção – percebemos um refinamento do intercâmbio no sentido da divulgação do pensamento positivista estritamente mais littreísta. Para nos darmos conta do verdadeiro alcance deste aspecto, bastará lembrar a divulgação dos trabalhos de Carlos von Koseritz (402) e Alberto Sales (403), bem como a publicação de um artigo de Isidro Martins Júnior (404), aos quais já fizemos referência.

399

BARRETO, Tobias. “Ensaio de prehistoria da litteratura classica allemã”. Revista de Estudos Livres. Volume I (1883-1884). Lisboa: Nova Livraria Internacional, editora, 1884, pp.552-561. 400 ROMERO, Sílvio. “Theorias históricas e Escolas litterarias no Brazil”. Revista de Estudos Livres. Volume I (1883-1884). Lisboa: Nova Livraria Internacional, editora, 1884, pp.201-212. 401 Como foi exposto, o segundo tomo da Revista de Estudos Livres, relativo aos anos de 18851886, marcará apenas os nomes de Teófilo Braga e Teixeira Bastos. 402 BASTOS, Teixeira. Secção Bibliographia. “A Terra e o Homem à luz da moderna ciência. Duas Conferências feitas em 1878 por Carlos von Koseritz. – Porto Alegre, 1884, 151p.”. Revista de Estudos Livres. Directores Litterário-Scientificos Doutor Teófilo Braga e Teixeira Bastos. Volume II (1885-1886), Lisboa: Nova Livraria Internacional, editora 1887, pp.96-97. 403 BRAGA, Teófilo. Secção Bibliographia. « Ensaio sobre a moderna concepção do Direito, por Alberto Salles. Sam Paulo, Typographia da Provincia, MDCCCLXXXV, 267p.”. Revista de Estudos Livres. Directores Litterário-Scientificos Doutor Teófilo Braga e Teixeira Bastos. Volume II (1885-1886), Lisboa: Nova Livraria Internacional, editora 1887, pp.419-423. 404 MARTINS JÚNIOR, Isidro. “A função histórica da Economia política”. Revista de Estudos Livres. Directores Litterário-Scientificos Doutor Teófilo Braga e Teixeira Bastos. Volume II (1885-1886), Lisboa: Nova Livraria Internacional, editora 1887, pp.462-470.

179

Ora, se esta rede discursiva vocacionada para a divulgação científica e vinculada à heterodoxia positivista, ao corporizar um ativo relacionamento entre os positivistas heterodoxos brasileiros e portugueses, ela também protagoniza um processo de distanciamento em relação àqueles com quem antes cerrara fileiras na “frente cientista”. Importará, assim, investigar em pormenor as características da heterodoxia positivista no sentido de compreender, a partir das tensões cientificamente instruídas em seu interior, os fundamentos teóricos que podem ajudar a explicar as dissensões e demarcações nela acontecidas. Ou seja, o debate acerca da heterodoxia positivista obriga a convocar outra frente que lhe é subjacente e com o qual se confunde: o debate sobre os “evolucionismos”.

2.4. Derivas da heterodoxia: os “evolucionismos”

Recuperemos o essencial sobre a dissidência littreísta. Como já se disse, Émile Littré estimava uma cisão muito forte entre a primeira e a segunda fase do pensamento de Augusto Comte, expressas pelo Cours e pelo Système. Afirmamos também que Littré seguia a orientação empírica e experimental da primeira fase comteana, negando o cariz apostólico da religião da humanidade, visão esta adotada pelos positivistas ortodoxos. Conforme ressalta Gruber, o elemento central da dissidência de Littré foi sua recusa em aceder ao que já se chamou de “dogma capital do positivismo” e que, em última instância, refere-se à compreensão cosmológica do positivismo comteano, onde é conferida especial importância à relação entre as “causas primeiras” e as “causas finais”. Para Comte, a relação entre causas primeiras e causas finais – questão reportada à criação do mundo, à essência das coisas, à constituição da substância –, não só era acessível ao conhecimento humano como já tinha sido mesmo 180

apreendida, estando expressa na Filosofia Positiva e na Religião da Humanidade (e na moral que lhe é inerente). Ao contrário de Comte, Émile Littré prega uma funda indiferença frente a estas questões de ordem mais “cosmológica”. Segundo ele, a origem e o fim da humanidade são questões “insolúveis” (405). Assim, o conhecimento verdadeiro só será acessível pela experimentação científica, sem a interferência de quaisquer tipos de a priori, sejam os de ordem teológica, sejam os de cariz metafísico (como em Kant, Hegel e no próprio Comte do Catecismo Positivista) (406). Com seu ultra-empirismo, Littré se distancia dos seguidores fiéis à totalidade da obra comteana (como Laffitte), assim como se aproxima dos demais conhecimentos feitos à luz da experimentação científica (407). E, no horizonte assim aberto, instala-se um espaço heterodoxo de amalgamento teórico cientificista.

405

LITTRÉ, Émile. “Que penser de la désuétude qui gagne les spéculation concernant l’origine et la finalité du monde et de ses êtres ?” O Positivismo, Primeiro Ano, n.º3, Fevereiro-Março, 1879, p.153. 406 Assim se pronuncia Littré, em texto publicado em Portugal em 1879: “Les écoles grecques n’ont jamais pose, en face et en distinction de leur enseignement philosophique, une philosophie dite religieuse et traitant de l’organisation de l’Olympe, du rapport des dieux avec les hommes et du culte qu’on leur offrait dans les temples au nome des cités et des particulièrs. Plus tard, sous un régime mentale tout différent, la scolastique, qui se disait servante de la théologie, n’entendait pas se mettre sur le même pied que sa maîtresse, et la laissait en un terrain à part, dont elle ne prétendait aucunement changer le caractère ni la dénomination. La situation respective ne fut pas modifiée par la métaphysique moderne, Descartes, Spinoza, Leibiniz, Kant et Hegel ; les notions révélées de l’une demeurèrent, dans leus sphère, les notions subjectives de l’autre dans la leur, et personne ne les rangea sous une même catégorie. M. Comte, le premier, eut le mérite d’apércevoir que la théologie et la métaphysique ont le caractère commun d’être une conception du monde, et qu’être une conception du monde est ce qui constitue une philosophie”. LITTRÉ, Émile. “Que penser de la désuétude qui gagne les spéculation concernant l’origine et la finalité du monde et de ses êtres ?” O Positivismo, Primeiro Ano, n.º3, Fevereiro-Março, 1879, p.156. O grifo é nosso. 407 Conforme Littré, “«ceux qui croiraient que la philosophie positive nie ou affirme quoi que ce soit là-dessus, se tromperaient : elle ne nie rien, n’affirme rien ; car nier ou affirmer ce serait déclarer que l’on a une connaissance quelconque de l’origine des êtres et de leur fin. Ce qu’il y a d’établi présentement c’est que les deux bouts des choses nous sont inacessibles, et que le milieu seul, ce que l’on appelle en style d’école le relatif, nous appartient»” LITTRÉ, Émile. Paroles de philosophie positivie, p.33, citado por GRUBER, R.P. Le Positivisme depuis Comte jusqu’à nos jours. Paris : Lethielleux, 1893, p.26-27.

181

Neste enfrentamento entre ciência e metafísica (408), as questões relativas à origem da humanidade merecem especial destaque. Em caso algum, porém, o debate em torno de tais questões se cingiu à sua inquietação emblemática – criaturas à semelhança de Deus ou obra da evolução das espécies? –, tanto porque a resposta a essa inquietação convocava para o debate uma panóplia de conceitos e teorias mais ou menos próximas ou derivadas, quanto porque os posicionamentos dos diversos autores oscilavam ao sabor das diferentes correntes interpretativas de fundo científico ou político. E mesmo dando por adquirida a interpenetração entre a vertente heterodoxa do positivismo, versão Littré, e o rol das várias teorias que giravam em torno da obra de Charles Darwin e que, geralmente – e não sem alguma dose de equívoco – são chamadas de “evolucionistas”, haverá de se convir que o fenômeno de amalgamento interno ao grande grupo “positivista” é análogo a um processo que obnubila as importantes distinções teóricas e políticas que existem nessa ampla esfera “evolucionista”. É que o comum conhecimento dos pressupostos – de Charles Darwin, Jean-Baptiste Lamarck, Ernest Haeckel ou Herbert Spencer – não correspondeu um mesmo alinhamento teórico. Ao invés disto, destravou uma série de diferenças. Ora, a correta percepção dessas distinções e dos argumentos que as sustentam é, para o nosso propósito, de vital importância. Tanto mais que esta interface teórica da heterodoxia positivista com as diferentes teorias habitualmente designadas por “evolucionismo” pode ser observado tanto para o caso brasileiro quanto para o português. Neste último, torna-se 408

Émille Littré dizia que “la philosophie positive, née de ce qu’il y a de plus pacifique parmi les hommes, c’est à dire la science, et en un temps où l’ardeur de la grande guerre contra les anciennes doctrines s’alentissait par le succès même, n’a rien d’agressif ni de révolutionnaire. C’est par le progrès de l’éducation qu’elle se créera ce sol positif populaire dont je parle. Là on ne peut lui barrer le passage; quoi qu’on fasse, il faut enseigner les sciences ; et, directement ou indirectement, les sciences enseignent la philosophie positive”. LITTRÉ, Émile. “Que penser de la désuétude qui gagne les spéculations concernant l’origine et la finalité du monde et de ses êtres ?” O Positivismo, Primeiro Ano, n.º3, Fevereiro-Março, 1879, p.158-159.

182

gradualmente explícito o recurso “não só à corrente inglesa que tinha em Stuart Mill, Spencer, Bain, Huxley, Lewes, Darwin e Wallace os seus representantes, mas também ao monismo evolucionista alemão de Büchner e Haeckel, ao positivismo italiano de Lombroso, aos escritos de autores como Letourneau e Ardigo que, sem serem fiéis aderentes de qualquer escola positivista, vinham reforçar as teses filosóficas e sócio-políticas dos heterodoxos discípulos de Comte em Portugal” (409). Entretanto, no Brasil, fica também claro que “depois de uma rápida fascinação pela filosofia comteana, o espírito dominante passou a ser o das grandes correntes filosóficas, vindas da Inglaterra e da Alemanha – com Spencer e Haeckel, principalmente. Muitos espíritos filiados, a princípio, à acepção comteana, acabaram abjurando a sua ortodoxia e passaram, deixando o mare clausum da Filosofia Positiva, a navegar no mar livre e largo do Evolucionismo, do Transformismo e do Monismo” (410). Este cenário de recomposição teórica de fundo heterodoxo não deixou de interferir nos debates sobre o relacionamento luso-brasileiro. E fê-lo ao nível das discussões em que estava em causa o lugar ocupado pelo critério da historicidade nesse relacionamento – tenha-se em conta a cumplicidade entre cientismo e historicismo naquela conjuntura –, as quais encontravam no debate “evolucionista” terreno fértil para refundar pressupostos. Dito isto, algumas indagações são levantadas acordo com nossa análise: a questão do transformismo lamarckiano e seu grau de compaginação com os credos doutrinários em presença; os contextos de utilização, com Darwin e para além dele, das noções de “descendência com modificações” e “seleção natural”; o alcance filosófico, político e social a que estariam autorizadas estas noções a partir de leituras haeckelianas ou 409

CATROGA, Fernando. “A importância do positivismo na consolidação da ideologia republicana em Portugal”. In: Biblos. Vol. LIII, Coimbra, 1977, p.296. VIANA, Oliveira. O Ocaso do Império. São Paulo: Editora Melhoramentos. 2ª edição, 1925, p.123.

410

183

spencerianas. Se eram estes os principais eixos de fundamentação teórica dos autores portugueses e brasileiros trabalhados – e tendo eles servido de suporte para o entendimento do potencial relacionamento luso-brasileiro –, temos motivos de sobra para registrar o que estava em causa em cada um desses três patamares “evolucionistas”.

2.4.1.

Comecemos pela questão do transformismo. Quais os

problemas que se levantavam na altura do seu acolhimento pelos intelectuais de ambas as margens do Atlântico? Recuemos, para isso, à “atmosfera” científico-cultural anterior à publicação de A Origem das Espécies, em 1859, por Charles Darwin: a atmosfera de Lamarck e de Cuvier (411). Recorde-se que Jean Baptiste Lamarck é o primeiro naturalista a formular, em termos científicos, uma teoria completa e coerente sobre as questões ligadas à evolução. Para o professor do Museu de História Natural de Paris, as modificações do mundo orgânico não eram advindas da vontade ou intervenção do plano divino. Quem quisesse entender estas transformações, deveria voltar-se para o estudo da natureza e desenvolver a compreensão

de

leis

que

orientam

suas

modificações

e

seu

desenvolvimento. Conforme explica Patrick Tort, Lamarck construiu sua obra sobre dois principais pilares, o primeiro apontando para uma orientação “científica”, através do trabalho de ordenação e classificação dos invertebrados, atuais ou fossilizados (412), e o segundo, partindo de uma reflexão “filosófica”, vocacionado para realçar a explicação da história da vida pela teoria transformista. Estas questões foram mencionadas, pela primeira vez, em seu Discours d’ouverture du Cours de l’an VII, em 1800, opúsculo onde Lamarck expõe de maneira didática suas ideias sobre a 411 MONTALENTI, Guiseppe. Charles Darwin. Lisboa: Edições 70, 1984, p.37-38. TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, p.2542. 412 É fundamental ter presente que a compreensão da natureza de Lamarck se aproxima da divulgada por Buffon e se distancia da propagada pelos trabalhos de Linneu. Sobre esta distinção consultar MONTALENTI, Guiseppe. Charles Darwin. Lisboa: Edições 70, 1984.

184

“transformation des spèces”: a cção “du temps et des circonstances favorables sont les deux principaux moyens que la nature emploie pour donner l’existence à toutes ses productions [preenchendo] les circonstances influentes qui ont, avec le temps, constitué la forme du corps et des parties des animaux. Avec de nouvelles formes, de nouvelles facultés ont été acquises, et peu à peu la nature est parvenue à l’état où nous la voyons actuellement”(413). Anos mais tarde, na sua principal obra, Philosophie Zoologique, de 1809, Lamarck confirmará perspectiva semelhante, dizendo que “la nature, em produisant successivement toutes les spèces d’animaux, et commençant par les plus imparfaits ou les plus simples, pour terminer son ouvrage par les plus parfaits, a compliqué graduellement leur organisation” (414). Independentemente das avaliações retrospectivas feitas sobre o transformismo lamarckiano e suas principais características – o estudo da natureza consoante uma perspectiva dinâmica; a ação do meio ambiente e do tempo como os principais fatores de explicação da evolução da natureza; a hereditariedade das características adquiridas; e a tendência para a perfeição expressa pela evolução da natureza – é conveniente assinalar, com Giuseppe Montalenti, que a sua teoria “não se limita a ser simples descrição e ordenamento dos factos”, estimulando, a partir deles, a respectiva interpretação. Esta interpretação transformista terá sido, justamente, um dos elementos que afetaram, a posteriori, a credibilidade da teoria lamarckiana, justamente onde constituiu pretexto para determinismos geográficos e raciais (415). No âmbito de um quadro explicativo que nega a

413

LAMARCK, Jean-Baptiste. Discours d’ouverture du Cours de l’an VII, 1880, p.465-466. In : TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, p.2545. 414 LAMARCK, Jean-Baptiste. Philosophie Zoologique, p.206. In : TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris: PUF, 1996, p.2554. 415 Sobre as repercussões políticas incluídas nas distinções entre Lamarck e Cuvier, Buffon e Linneu e, principalmente, sobre a deriva racista do prolongamento destas correntes teóricas (e de outras que lhe seguiram), consultar a incontornável obra de POLIAKOV, Leon. O Mito

185

compreensão da natureza como algo dado pelo desígnio divino e que valoriza, em contrapartida, “a adaptação ao ambiente de um modo científico, como uma aquisição dos organismos, como um processo activo e contínuo, fruto de trocas e relações entre organismo e ambiente” (416), seria natural que sua repercussão assumisse um tom explosivo no campo das ideias de inícios do século XIX. Acontece que as afirmações da teoria lamarckiana estavam em clara oposição à concepção tradicional da natureza e do homem fornecida pelos pressupostos criacionistas. Dentre os naturalistas antilamarckianos, destaca-se Georges Cuvier (417), considerado o fundador da anatomia comparada e detentor de grande influência no meio acadêmico francês durante toda sua vida. Em seu famoso trabalho, Discours sur les révolutions de la surface du globe et sur les changements qu’elles produisent dans ce règne animal, publicado em 1812, defende uma visão catastrofista sobre as mudanças ocorridas na terra. Segundo ele, os diferentes tipos de animais que existiram na superfície terrestre, ao longo dos anos, não tinham qualquer correlação entre si.

Extintos por uma

catástrofe – sendo o Dilúvio, narrado na Bíblia, um exemplo disto –, outros animais diferentes povoariam a superfície do globo. Para além de uma noção de temporalidade marcada pelo signo de abruptas interrupções, causadas pela ação do desígnio divino, a teoria de Cuvier pressupunha, fundamentalmente, que “les spèces ne changent pas” (418). Uma convicção vinculada à sua adesão exclusiva aos “fatos positivos” (em nome da qual, aliás, considerava que a teoria lamarckiana tinha traços “metafísicos”), expressa na ideia de que, não havendo provas claras e científicas de Ariano: ensaio sobre as fontes do racismo e do nacionalismo. Tradução Luiz João Gaio. São Paulo: Perspectiva, Edusp, 1974. 416 MONTALENTI, Guiseppe. Charles Darwin. Lisboa: Edições 70, 1984, p.39 417 Sobre a polêmica que envolveu Georges Cuvier e Geoffroy Saint-Hilaire, em 1830, em torno dos princípios do transformismo e do fixismo, consultar TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, p.1867-1883. 418 TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, p.1690.

186

mudança, então, irrefutavelmente, as espécies “não mudavam”. Com isso, reforçava, com argumentos naturalistas, o ideário criacionista, nas suas diversas certezas: o organismo humano, como o animal, não possuía qualquer característica dinâmica ou incoerência; exemplo da perfeição e criado por Deus à sua imagem e semelhança, o homem vivia em plena harmonia com a natureza; esta apresentava-se, acima de qualquer suspeita, como obra divina; e outras de sentido idêntico, no contexto de uma compreensão cosmológica onde não se pressente abertura para a historicidade(419). Tudo somado, este “fixismo” de Cuvier representa uma postura diante da origem da humanidade e da natureza radicalmente oposta à teoria de Lamarck, que, como se viu, era anti-catastrofista e transformista (420). Até à publicação da obra A Origem das Espécies, de Charles Darwin, em 1859, era o paradigma estático da história natural o modelo acolhido pela comunidade científica. Naturalmente, Augusto Comte, que, à altura da edição do trabalho de Darwin já havia publicado grande parte da sua obra, inclusive o Système de Politique Positive, obra marcante do

419 “Cuvier tinha uma concepção geral de ciência substancialmente igual à de Lineu: natureza e ciência são como dois quadros, a segunda tentando copiar a primeira. Na natureza tudo é claro, interligado, coerente e por isso as ciências devem procurar atingir o mesmo fim, o de descobrir a coerência e os laços que existem entre os fenómenos naturais”. MONTALENTI, Guiseppe. Charles Darwin. Lisboa: Edições 70, 1984, p.40. 420 Giuseppe Montalenti acerta quando aponta o carácter perturbador da teoria de Lamarck, segundo a qual “os organismos não foram criados assim, já adaptados ao ambiente no qual cada um vive, exemplo extraordinário de uma mente que tudo prevê e pré-ordena, sento antes o resultado de uma acção do ambiente que os foi transformando e adaptando às suas exigências. Não são, assim, filhos directos do Criador, nascidos para dominar a matéria bruta, mas sim filhos desta matéria, que arduamente procuram adaptar-se às instáveis condições do ambiente. De um golpe só vai o conceito do admirável desígnio pré-ordenado e da superioridade dos viventes sobre a matéria inanimada. Três séculos antes, Copérnico (1473-1543) tinha demonstrado que a Terra não é o centro do universo e a sua teoria fora depois hostilizada pelas autoridades religiosas que consideraram, e com razão, que iria subverter a ordem instituída. As teorias da evolução completam esta obra subversiva afirmando que o homem não é de facto a imagem do seu Criador, predestinado a dominar o mundo. Assim cai por terra não só uma determinada representação do mundo externo, como são abaladas as bases de uma certa estrutura social, de uma moral e costumes bem radicados no pensamento e no coração dos homens”. MONTALENTI, Guiseppe. Charles Darwin. Lisboa: Edições 70, 1984, p.42.

187

catecismo ortodoxo positivista (421), não é alheio ao maior prestígio e adesão que, por comparação com Lamarck, merecia a teoria fixista de Cuvier. Sem ser, obviamente, um naturalista, Comte assume uma perspectiva bastante próxima ao fixismo de Georges Cuvier. Na verdade, o criador do positivismo sempre foi um dualista, algo próximo das diferenciações kantianas entre “coisas” e “númenos”. E, se é verdade que ele concede importância à investigação científica – sobretudo no Cours – mais correta estará a percepção da existência de uma compreensão metafísica à moda kantiana inserida em seu sistema (422). Comte compreendia a história da humanidade enquanto uma verdadeira “marcha da civilização” rumo ao ideal de positividade, representado por sua doutrina. Quanto à natureza, Comte assumia claramente uma posição fixista, como bem aponta Pierre Arnaud, quando afirma que “Comte tranche, avec Cuvier contre Lamarck, contre l’évolutionisme et pour la fixité dês spèces” (423). Explica-se. Por um lado, e como o próprio Comte afirmava no volume IV do Cours, se o positivismo busca inspiração no “axioma do grande Leibniz: o presente está prenhe do futuro”, com isso ele justifica que a ciência tivesse por objetivo “descobrir as leis constantes que regem esta continuidade, cujo conjunto determina a marcha fundamental do desenvolvimento humano”. Por outro lado, contudo, sua “filosofia política se inclinará espontaneamente, pelo menos, no que diz respeito a todas as disposições sociais de alta importância, a representar sempre como inevitável àquilo que se manifesta de início como indispensável”. Residindo aqui a influência conservadora do “aforismo político do ilustre 421 Recorde-se, mais uma vez, que o Cours foi publicado entre 1830 e 1942 e o Système entre 1951 e 1954, sendo, portanto, anteriores, ambas as principais obras de Angusto Comte, a A Origem das Espécies, de Charles Darwin, que é de 1859. 422 Sobre a relação do pensamento de Augusto Comte com o de Kant, consultar NEGRI, Antimo. Augusto Comte e L’Umanesimo Positivistico. Roma: Armando Editor, 1971. 423 ARNAUD, Pierre. Politique d’Auguste Comte. Texte choisis et présentés par Pierre Arnaud. Pairs: Armand Colin, 1965, p.89.

188

De Maistre: «Tudo o que é necessário, existe»” (424). Ora, ao aliar a crença na razão prognóstica e na ciência, típica do iluminismo, com o conservadorismo ultramontano avesso à mudança, o positivismo de Augusto Comte – e dos ultra-ortodoxos que o seguiram piamente – representará uma filosofia política indelevelmente oposta à compreensão da mudança

como

elemento

presente na

natureza

humana.

Estará,

provavelmente, neste ponto, muito de sua indesmentível aversão a quaisquer transformações de ordem social, na medida em que apostava na eficácia da continuidade histórica e no poder de convencimento inerente ao progresso continuado da Humanidade para alçar-se à condição de esteio basilar do Ocidente – ou seja, na Ordem e no Progresso (425). Por fim, não se entenderá a postura anti-lamarckiana de Augusto Comte sem evocar a diferença entre “finalidade” e “finalismo”, que tanto influenciou o pensamento oitocentista. Lamarck, como se aludiu, acreditava que a natureza tinha por “finalidade” a perfeição e a coerência, embora não indicasse o patamar onde se iria processar esse desiderato. Augusto Comte, assim como as demais filosofias da história do século XIX, indicava claramente o patamar, o lugar, feito horizonte “finalista”, onde estaria consumada a “marcha da civilização”: a república positivista.

2.4.2. Vejamos, entretanto, a interferência da chamada “revolução darwiniana” (426) sobre este estado de coisas, na certeza de que o seu profundo impacto não deixou incólume a escala cultural luso-brasileira. 424

COMTE, Augusto. Cours de Philosophie Positive, vol.IV, p. 192 e 258-259, cf. COMTE, Augusto. Augusto Comte: sociologia. Organizador Evaristo de Moraes Filho. São Paulo: Ática, 1978, p.158. 425 Dir-se-ia que, apostando na dualidade entre Ordem e Progresso, o Cours acentuará mais o segundo factor e o Systéme privilegiará o primeiro. 426 Muitos trabalhos ressaltam a importância do “revolução darwiniana” na compreensão da historicidade da natureza, bem como suas repercussões do ponto de vista epistemológico. Indicamos, nesse sentido, o texto de John Greene “O paradigma kuhniano e a revolução darwinista na história natural”. In: Manuel Maria Carrilho (org.). História e Prática das Ciências. Lisboa: A Regra do Jogo, 1979, pp.119-150.

189

Conforme assinalam diversos analistas da obra de Charles Darwin (427), o estatuto marcante desta revolução deve-se justamente a que as suas teorias da “descendência com modificações” e da “selecção natural” – visando uma explicação não-teleológica da filiação e da criação de novas espécies (428) – demarcam-se não apenas do criacionismo bíblico, do fixismo de Cuvier, o que seria de todo evidente, mas também se afastam do transformismo de Jean-Baptiste Lamarck. Nesse sentido se pode dizer, com Ana Leonor Pereira, que “Darwin inaugurou um novo código de leitura da complexidade e da historicidade dos organismos vivos, irredutível ao mecanicismo, ainda que a descendência com modificações se processe através de um mecanismo chave: a selecção natural. Mas, a selecção natural, que preserva as variações individuais favoráveis ao processo adaptativo e elimina as variações nocivas, é um poder criador sem projecto apriorístico” (429). Importa, com efeito, chamar a atenção para o fato de que a ideia darwiniana da evolução possui características completamente asistémicas. Se para Lamarck a evolução se dá sob o signo da harmonia, da regularidade e da perfeição, para Darwin, ao contrário, a evolução da natureza é consentânea com um processo contingente, aleatório e imperfeito. Daí seu mecanismo central ser a “seleção natural”, através da noção de “luta pela vida”. Ou seja, a compreensão que Darwin faz da “evolução” das espécies não contempla o signo da “perfeição”, não revela nenhuma “finalidade”, tanto como não aponta para um patamar de chegada do trajeto evolutivo, fosse o “juízo final” dos criacionistas ou fosse o “estágio positivo” da teoria comteana.

427

Veja-se a obra de Stephen Jay Gould, O Mundo depois de Darwin. Reflexões sobre história natural. Lisboa: Editorial Presença, 1988. 428 TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, pp.716717. 429 PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal. Filosofia. História. Engenharia Social (18651914). Coimbra: Almedina, 2001, p.22.

190

Esta especificação antecipa outra, igualmente fundamental, sobre o correto entendimento do “darwinismo”, ou seja “a da sua extrema heterogeneidade”. Conforme assinalam Jean Gayon (430) e Ernst Mayr (431) é importante ter presente a impossibilidade de reduzir a um só condão suas diversas manifestações doutrinárias. Deve-se, portanto, levar em conta as múltiplas demarcações internas produzidas no contexto do “darwinismo”, o qual melhor deverá definir-se, então, nos termos de Patrick Tort, como uma “constelação de discursos onde ele constitui a referência significativa” (432). Aliás, é à luz desta dimensão heterogénea que se explica, por exemplo, que “desde os primeiros anos da década de sessenta do século XIX a teoria darwiniana [tenha sido] difundida por Thomas H. Huxley e A. Russel Wallace sob a denominação de darwinismo, [apesar de não haver,] de facto, uma identidade teorética absoluta entre as versões daqueles cientistas e, menos ainda, entre cada uma delas e a teoria darwiniana. Thomas Huxley não aceitava o princípio da selecção natural, enquanto Wallace não o aplicava à evolução da espécie humana. De qualquer modo, o princípio da descendência das espécies a partir de um antepassado comum, segundo um processo de divergência, ligava a teoria darwiniana às suas múltiplas e heterogéneas versões, designadamente de Th. Huxley, Wallace, Lyell, Hoocker, Asa Gray, Fritz Müller e E. Haeckel. Pode, então, afirmar-se que 430

GAYON, Jean. Darwin et l’après-Darwin, Paris : Éditions Kimé, 1992, p.4. Ernst Mayr considera que “cuando alguien plantea esta cuestion, la respuesta que reciba dependerá del tiempo que haya pasado desde 1859 y de la ideología de la persona a la que pregunta”. O mesmo autor identifica nove significados diferentes do termo “darwinismo”, sendo que a grande maioria deles “son o bien claramente erróneos o bien no representam el pensamiento de Darwin. Observando la situación como un historiador, estoy convencido de que no hay dos significados que han obtenido la aceptación más ampla. Después de 1859, es decir, durante la primera revolución darwiniana, el darwinismo significó para casi todo el mundo una explicación del mundo viviente mediante causas naturales”. Para Mayr, somente depois da “segunda revolução darwiniana” é que o termo “darwinismo” assumiu significado do “cambio evolutivo adaptativo bajo la influencia de la selección natural, designando la evolución variacional frente la transformacional. Estos son los dos únicos conceptos verdaderamente significativos del darwinismo, uno en vigor durante ele siglo XIX (y hasta aproximadamente 1930) y el otro en vigor durante el siglo XX”. MAYR, Ernst. Una larga controversia: Darwin y el darwinismo. Barcelona: Crítica, 1992, p.118-119. 432 TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, p.900. 431

191

a ideia de evolução por meios naturais era uma constante no credo dos darwinistas. Para além desde enunciado, entramos no terreno das divergências” (433). Para esta heterogênea referenciação darwiniana e para o caráter vincadamente heterodoxo da sua recepção, contribuíam ainda outros fatores. Dois, pelos menos, têm sido apontados com regularidade. Um deles é o que decorre de determinados aspectos ligados ao próprio âmago científico dos postulados de Darwin, a exemplo do problema da hereditariedade no contexto do mecanismo da “seleção natural” (que é tida, por norma, como uma das fragilidades da elaboração darwiniana). Um problema resultante de um inescapável desconhecimento, à época, de dados do âmbito da genética só disponibilizados após as publicações de Darwin. Especificamente quanto à ideia de “evolução”, deve-se ter presente que a ideia da aleatoriedade evolutiva, expressa na teoria da “descendência com modificações” de Darwin, está implicitamente ligada à questão da hereditariedade das espécies. Explica-se: a compreensão de que a natureza “evolui” pressupõe o encadeamento temporal e orgânico das espécies. Lamarck chegara a este ponto. Porém, para ele, esta evolução era harmónica, coerente e tinha como finalidade a perfeição. Ora, o conceito de “selecção natural” e de “luta pela vida”, de Darwin, implicam justamente uma ruptura com estes pressupostos lamarckianos. Afinal, se há luta na natureza, esta não é perfeita, assim como se essa luta ocasiona uma “selecção”, há que saber como funciona esta “passagem” evolutiva. Chegase, assim, à questão da hereditariedade. Acontece que Darwin não tinha provas contundentes para responder a este problema (434). Neste ponto é 433 PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal. Filosofia. História. Engenharia Social (18651914). Coimbra: Almedina, 2001, p.43. 434 Segundo Erns Mayr, “la tesis principal de Darwin era que el cambio evolutivo se debe a la producción de variación en una población y a la supervivencia y éxito reproductivo («selección») de algunas variantes. Pero él origen de esta variación le sumió en la perplejidad durante toda su vida. Darwin consideraba que la variación era un fenómeno intermitente, que ocurría fundamentalmente en

192

importante frisar que o problema da hereditariedade, implícito nas diferentes teorias sobre a evolução das espécies, só foi resolvido pelas experiências genéticas realizadas por Gregor Mendel em 1866 e que só em 1900 foram publicitadas pelos botânicos C. Correns e H. de Vries e E. Taschermak. O fato é que Darwin não conheceu Mendel nem tampouco as teorias genéticas. Assim, a explicação da hereditariedade permaneceu sendo uma importante lacuna na compreensão da evolução das espécies. Ora, frente a esta fragilidade da teoria darwiniana – o desconhecimento da genética – parece lógico que a comunidade científica oferecesse resistência à “seleção natural” e acabasse por recuperar a explicação lamarckiana da hereditariedade dos caracteres adquiridos. Por isso, concordamos com Ana Leonor Pereira, quando ela considera ser “perfeitamente compreensível que até às décadas de trinta e de quarenta do século XX, o darwinismo não apresente como característica fixa a selecção natural, embora esta constituísse o núcleo duro (apesar da sua vulnerabilidade) da teoria darwiniana”. De resto, continua a autora, “o próprio Darwin, sem jamais abdicar da selecção natural das variações úteis, em termos de adaptação ao meio,

teve

necessidade

de

construir

uma

teoria

provisória

da

hereditariedade”. Estas questões estariam presentes em suas obras posteriores, nomeadamente em sua The descent of man, and selection in relation to sex, publicada em 1871 (435). O segundo fator, em paralelo, refere-se à extensão do debate referenciado nos postulados “darwinistas” aos campos filosófico-social e filosófico-político, “salto” gradual para o qual não são pequenas as contribuições de pensadores como Ernest Haeckel e Herbert Spencer, a quem se reconhece particular interferência no alcance histórico, político, filosófico e social que o termo “evolucionismo” circunstancias especiales. Sin embargo, estaba bastante convencido de que en la naturaleza hay una inmensa reserva de variación que está siempre disponible como material para selección”. MAYR, Ernst. Una larga controversia: Darwin y el darwinismo. Barcelona: Crítica, 1992, p.121. 435

PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal. Filosofia. História. Engenharia Social (18651914). Coimbra: Almedina, 2001, p.45;

193

tem no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Eis aqui outro impulso demarcatório processado no interior do campo conceitual. Um impulso extensível às diferentes “frentes cientistas” da configuração cultural luso-brasileira.

2.4.3.

Sabendo-se que os heterodoxos brasileiros e portugueses de finais

de Oitocentos foram, em grande parte, leitores atentos de Ernest Haeckel, bem se compreenderá o manancial teórico que terão constituído, para esses grupos, discursos como o de 1899, proferido em Cambridge, onde aquele naturalista alemão procede a um arrazoado sobre os últimos “progressos da ciência”. Trata-se de uma intervenção a todos os títulos elucidativa. Em primeiro lugar, pela modulação suave operada no encadeamento das teorias de Lamarck e Darwin, surindo uma filosofia social com alargado alcance político: “Quarenta anos decorreram, desde que Charles Darwin publicou os primeiros trabalhos da sua imperecedoura teoria. Quarenta anos de darwinismo! Que fantásticos progressos no nosso conhecimento da natureza! E que modificações sofreram os nossos conceitos mais importantes, não só no domínio da biologia, mas também no da antropologia e no desse conjunto admirável, a que se dá o nome de «ciências do espírito»! Porque, com o verdadeiro conhecimento da origem do homem, encontrou-se, ao mesmo tempo, uma base sólida onde estribar a fisiologia e um apoio amovível da psicologia natural e da filosofia monista” (436). Esta, portanto, uma reflexão de primeira instância. Numa segunda, porém, o registro vai bem mais além – além do próprio Darwin, em rigor. Sob os auspícios de uma “proposição dedutiva”, a compreensão acerca da evolução da natureza passará também a ser utilizada como lei científica

436

HAECKEL, Ernst. A Origem do Homem. Lisboa: Editorial Gleba, 2ª edição, 1989, p.10.

194

para a explicação da sociedade. Haeckel chagara a essa posição a partir do seu próprio trajeto: “Tinha estudado, em 1866, na minha «Morfologia Geral», «a significação antropológica do desenvolvimento dos organismos». Havia insistido sobre o facto de que a lei biogenética fundamental conserva todo o seu valor para o homem. Neste, como em todos os outros organismos, existe a relação causal mais íntima, baseada na herança entre ontogenia e a filogenia, entre a história do gérmen do indivíduo e da sua série ancestral. A seguir, eu distinguia dez fases principais, na série dos vertebrados. Mas concedia especial importância à correlação lógica da antropogenia e do transformismo; se este é verdadeiro, deve ser aplicado àquela, com todas as suas consequências. «A afirmação de que o homem descende dos vertebrados inferiores é uma proposição dedutiva especial, que resulta, com necessidade absoluta, da lei indutiva geral, constituindo a teoria da descendência». Desenvolvi esta ideia, e as suas consequências, nas várias edições da minha «História da Criação» e da minha «Antropogenia». Gravei-a, de uma maneira estritamente científica, na terceira parte da minha «Filogenia Sistemática»” (437).

O salto explicativo é claro: reside nesta correlação entre ontogenia e filogenia a atitude haeckeliana, própria, até certo ponto, do “darwinismo”, e, paradoxalmente, bem distante da prudência de Darwin em estabelecer aquele tipo de correlação. Por isso, dizemos, com Becquemont, que “la pensée évolutionniste est profondément finaliste: une fois les lois connues grâce à une logique, la science sociale dicte une morale de submission à ces lois. L’évolucionnisme est une pensée normative, qui dit à la fois comment sont les choses et comment elles doivent être. Avec la fin du progrès, logique et morale tendent à devenir une même discipline”(438). De igual modo digno de nota, no discurso haeckeliano de 1899, é a confissão de uma das “afinidades electivas” do zoólogo alemão: Herbert Spencer. Segimdo o alemão, “entre os filósofos, ninguém impôs melhor a influência da nossa concepção do mundo que o grande pensador inglês Herbert Spencer, um dos raríssimos sábios contemporâneos que sabem 437

HAECKEL, Ernst. A Origem do Homem. Lisboa: Editorial Gleba, 2ª edição, 1989, p.13. BECQUEMONT, Daniel. Darwin, Darwinisme, Évolutionisme. Paris: Édition Kimé, 1992, p.115. 438

195

igualar os mais vastos conhecimentos em história natural com a especulação filosófica mais profunda”. Para ele, o famoso intelectual vitoriano “pertence àquele antigo grupo de filósofos da natureza que, antes de Darwin, havia encontrado na doutrina evolucionista a chave que deveria permitir a resolução do enigma do universo; ele figura também entre esses evolucionistas que concedem, com razão, a maior importância à herança progressiva, a esta tão discutida transmissão das qualidades adquiridas” (439). A este respeito, há duas observações a fazer. Uma, é a de que a menção elogiosa a Spencer corresponde à adesão e ao reconhecimento da pertinência da passagem de uma compreensão transformista da evolução da natureza para uma formulação filosófica que submete à lei natural toda uma compreensão do desenvolvimento homem e da vida em sociedade. De fato, desde os seus primeiros escritos até aos consagrados Progress, its law and cause, de 1857, ou First Principles, de 1862, Spencer não fará mais do que dar forma aproximadamente definitiva a pressupostos seus que vêm de uma conjuntura anterior mesmo à publicação de A Origem das Espécies. O inglês acreditava estar “fora de qualquer discussão o facto de o progresso orgânico consistir na passagem do homogéneo para o heterogéneo, mediante sucessivas diferenciações” e isto, bem entendido, quer quer se trate “das transformações da terra, do desenvolvimento da vida à sua superfície ou do desenvolvimento das instituições políticas, da indústria, do comércio, da língua, da literatura, da ciência, da arte” (440). Segundo Patrick Tort, foi a partir das reflexões sobre as conclusões das pesquisas embriológicas de Karl Ernst von Baer (1827), sobre o princípio de conservação da matéria de Lavoisier (1789) e sobre o princípio físico da persistência da força posta em evidência por Julius Robert Mayer (1842) que o inglês Herbert Spencer enuncia desde 1852 439

HAECKEL, Ernest. A Origem do Homem. Lisboa: Editorial Gleba, 2ª edição, 1989, p.44.

440

SPENCER, Herbert. Do Progresso, sua lei e sua causa. Lisboa: Editorial Inquérito, 1939, p.13-14.

196

(data na qual ele publica no The Leader um ensaio sobre a hipótese do desenvolvimento), sob uma forma ainda aproximativa, a proposição de base do que será o sistema filosófico mas espontaneamente e mais regularmente aprovado pelas classes dirigentes e empresários do Ocidente industrial e liberal: o evolucionismo (441). A outra observação diz respeito à questão da transmissão hereditária e à centralidade que se lhe reconhece no contexto “evolucionista”, ao ponto de o inevitável surgimento, no rasto das propostas e das lacunas de Darwin, de diferentes entendimentos quanto à forma e à finalidade com que se desenrolaria a “evolução natural” provocarem uma crispação e uma tendência de dissenso bem evidentes. Percebe-se, assim, o discurso de Ernest Haeckel, quando considera que “Spencer, tal como eu, combateu, desde o primeiro momento, com a maior energia, a teoria do plasma germinal de Weismann, que nega o importantíssimo factor da evolução, procurando se explicar apenas pela «força todo-poderosa da selecção». Na Inglaterra, a teoria de Weismann teve grande êxito, tendo aparecido como «neodarwinismo», opondo-se à

441 Entretanto, a referida “passagem” analítica pode ser bem vista na obra Progress, its law and cause, de 1857, onde Herbert Spencer afirma que “as investigações do Wolf, Goethe e Von Baer comprovaram que as mudanças verificadas com a transformação da semente na árvore e do óvulo no animal, consistem na passagem da estrutura homogénea para a estrutura heterogénea. No seu estado primitivo, o germe é uniformemente homogéneo, tanto em contextura como em composição química; mas não tarda a aparecer uma diferença entre as partes da substância que o forma ou, como se diz em linguagem filosófica, uma diferenciação. Cada uma destas divisões diferenciadas começa a manifestar algum contraste de partes, e estas diferenciações secundárias chegam a ser tão bem definidas como a primeira. Este processo repete-se continuamente; realiza-se, ao mesmo tempo, em todas as partes do embrião em crescimento, e, mediante intermináveis diferenciações, produz-se, finalmente, a combinação completa de tecidos e órgãos que constituem a planta ou o animal adulto”. Em 1862, vemos Spencer propor, no seu First Principles, que “l’évolution est une intégration de matière accompagnée d’une dissipation de mouvement, pendant laquelle la matière passe d’une homogénéité indéfinie, incohérente, à une hétérogénéité definie, cohérente, et pendant laquelle aussi le mouvement retenue subit une transformation analogue”. SPENCER, Herbert Première principles, 1862, p.365 da edição de 1890. In: TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, pp.1424-1425.

197

nossa

concepção

de

fenómenos

evolutivos,

caracterizada

como

442

«neolamarckismo»” ( ). Abreviando uma plataforma de discussão que nos levaria longe, convirá talvez assentar com Patrick Tort, que “la loi de évolution, et le système «deductif» qu’elle organise (l’évolucionnisme) n’ont – il importe de le souligner d’emblée – rien à voir, tant dans leur origine que dans leurs derniers aboutissements, avec Darwin. Le bénéficie à tirer aujourd’hui d’une relecture de Spencer et de l’histoire de la constituition réelle de l’évolutionnisme philosophique, serait d’abord d’instruire cette distinction nécessaire et trop longtemps ignorée ou tactiment recouverte : le transformisme de Darwin, ou théorie de la descendence modifiée par le moyen de la sélection naturelle, est un théorie bio-écologique du devenir des espèces vivantes en tant qu’elle sont soumises à la variation. L’évolutionnisme quant à lui est um système syntétique de philosophie dont l’architecte se nomme Herbert Spencer, et qui se construit, sous l’influence des théories économiques libérales de la fin du XVIII siècle (notamment celle d’Adam Smith), et au coeur d’une référence permanente aux sciences de la nature, parallèlement à l’essor de l’industrialisme victorien” (443). Cabe, então, a partir destas não-coincidências entre darwinismo e evolucionismo, retomar as linhas inconciliáveis ou as estratégias de aproximação nelas geradas, ou os círculos tensionais de cariz teórico, científico ou político nelas estribados, no âmbito heterodoxo da configuração cultural luso-brasileira. É o que veremos agora, ao indagarmos a expressão adquirida pelo eixo materialista-monista.

442

HAECKEL, Ernest. A Origem do Homem. Lisboa: Editorial Gleba, 2ª edição, 1989, p.44. TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris : PUF, 1996, pp.14241425.

443

198

2.5. O eixo materialista-monista.

Do profundo impacto destes debates no espaço cultural lusobrasileiro não há, como se sabe, a menor dúvida. A avaliar pelo caso brasileiro, a recepção destas teorias pelo campo heterodoxo viria a constituir em pretexto para um realinhamento das várias sensibilidades, de acordo com a respectiva apreciação dos contributos de Darwin e de acordo com certo entusiasmo perante o monismo haeckeliano. O que não surpreende que se observe, nesse contexto, alguma radicalização de fraturas teóricas e políticas. Veja-se, a título exemplar, o depoimento de um Sílvio Romero: “Não sou positivista; acho o contismo um sistema atrasado e compressor, que faz uma figura apoucada ao lado do evolucionismo inglês e do naturalismo alemão. Se de Comte saíram Littré e Laffitte, de Darwin destacaram-se Spencer e Haeckel, e não vacilo na escolha” (444). Poucos anos antes, mas traduzindo atmosfera idêntica, também Carlos von Koseritz, em carta endereçada a Teófilo Braga, entende assumir-se “darwinista convencido”, e, mais especificamente, “franco adepto da escola de Jena, materialista científico”. Nesta ocasião, não se furta a presumíveis desacordos de princípio decorrentes daquela opção: “Sei que v. [Teófilo] é positivista e que como tal não partilha todas as minhas opiniões, não obstante, porém, considerará o meu livrinho [apesar de que] nele nada há de original, nada que não tenha sido dito por Moleschott, Haeckel, Huxley, Buchner, Du Bois Raymond, Charles Vogt e outros” (445). Teófilo conhecia bem estes autores e as propostas interpretativas em causa. Por ocasião da morte de Charles Darwin, em 1882, em artigo estampado nas páginas de O Ocidente, escrevera um texto inequívoco a 444

ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio [1888], 1953, p.71. 445 Cartas de Carlos von Koseritz a Teófilo de Braga. Porto Alegre, 22 de Dezembro, 1884. In. BRAGA, Teófilo. Quarenta Anos de Vida Literária 1860-1900). Lisboa: Tipografia Lusitana, Editora Artur Brandão, 1902, p.210-211.

199

esse respeito. As teorias que giravam em torno da “evolução” ocupam, naturalmente, o cerne das suas reflexões, das quais ressalta a incorporação clara não apenas de uma linha interpretativa mas da “constelação de discursos” disponíveis. Assim o vemos frisar que a ação da “exerceu-se do modo mais geral e profundo na Europa por efeito das fecundas deduções que veio a suscitar na compreensão do problema da vida subordinada à forma da evolução orgânica, [sendo que a] Alemanha levou essas deduções às eminentes concepções de Haeckel na Criação dos Seres Vivos, e na Antropogenia, e de Shleiger sobre a aplicação da teoria transformista aos fenómenos da linguagem” (446). Nesse mesmo texto, o vemos explicar criteriosamente as pontes estabelecidas entre as hipóteses lamarckianas, as teorias darwinianas e os deslocamentos spencerianos: “Como nota Huxley, Lamarck não considerara a importância do fenómeno da luta pela existência, facto positivo donde Darwin tira a maior soma de deduções. […] Portanto o transformismo não é uma consequência da espécie, mas sim a modificação operada pelos movimentos materiais que procuram a sua direcção no sentido da menor resistência; uma vez achada essa direcção, o movimento resiste às variações acidentais do meio cósmico, e assim a força que fazia com que os organismos se alterassem e se adaptassem, é a mesma que por seu turno mantém a estabilidade morfológica conservada pelo impulso da hereditariedade. Darwin revolucionou todas as ciências biológicas, tirando-as da estreiteza descritiva dos coleccionadores, e dando-lhes um ponto de vista dedutivo. O seu método crítico fez um novo progresso na lógica, e a palavra evolução exprime o mais alto grau de positividade mental a ponto de para muitos espíritos se tornar a base de uma filosofia. Herbert Spencer aplicou à Moral a teoria de Darwin” (447).

Eis-nos perante um quadro de tendencia ao amálgama teórico, no qual, a partir do estatuto referencial da obra de Darwin, o positivismo heterodoxo convive, em graus de adesão diferentes, com o haeckelianismo. Razão mais do que suficiente para explicar a disputa levantada, no âmbito do relacionamento cultural luso-brasileiro, pela primazia na utilização do monismo materialista, ou, numa outra tonalidade, pela primazia revelada 446

BRAGA, Teófilo. “Carlos Darwin”. In: O Ocidente. Lisboa, 5 (123), de 21 de maio de 1882, p.118. 447 Idem, ibidem..

200

quanto à disponibilidade para acolher as “ideias alemãs”. Este último ponto dará azo a uma série de interferências Teófilo e Romero. A suposta prioridade da Escola do Recife quanto à divulgação das interpretações monistas – primazia levantada por um e recusada por outro – será, com efeito, uma das contendas em causa. Em carta endereçada a Fran Paxeco, que na altura residia em São Luiz do Maranhã, escreverá o chefe do positivismo português, em Julho de 1900, sobre “às prioridades do germanismo, atribuídas a Tobias Barreto” por Silvio Romero: “Se entendermos por tal o atrair as atenções para as características do génio germânico, seja antes do Romantismo, seja em consequência desse impulso literário, a nossa genealogia começa nos fins do século XVIII; a marquesa de Alorna, precedendo Filinto Elísio, tranduziu os cantos do Oberon, de Wieland; (…). Se, além dessa parte, considerarmos os trabalhos da erudição germânica, em 1865 publiquei eu o livro Poesia do Direito, em que estudo as manifestações das ideias jurídicas sob a forma pitoresca e emocional dos símbolos, introduzindo no método histórico os processos de Jacob Grimm; em 1867, com Os Forais, mostrei as origens germânicas dos costumes ou direito consuetudinário dos códigos foraleiros; quando sustentei esta tese, não sabia que a mesma doutrina fora proclamada, em 1860, por D. Tomaz Muñoz y Romero, o editor das Cartas Pueblas da Espanha; ainda em 1871, estampando as Epopeias da Raça Moçárabe, ampliava a pesquisa das origens germânicas às tradições poéticas do Romanceiro peninsular” (448). Teremos oportunidade de nos deter sobre o alcance, para a nossa investigação, dos trabalhos desenvolvidos por Teófilo nesta linha, muito em particular os relativos ao moçarabismo. Para já, mais significativa se revela outra linha de fratura: a que se levantava em torno da adoção das 448 BRAGA, Teófilo. Carta de 11/07/1900. Inserida em Fran Paxeco, Cartas de Teófilo (com um definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas “confissões” de Camilo). Lisboa: Portugália, 1924, p.20-34. Acervo do Real Gabinete Português de Leitura, Rio de Janeiro.

201

teorias monistas no seio do próprio campo cultural brasileiro, isto é, opondo grupos alinhados não à escala transatlântica mas à escala regional intra-brasileira. Trata-se de uma expressão clara do potencial demarcatório exercido pelos postulados materialistas sobre as redes da heterodoxia e sobre as linhas divisórias entre esta e a ortodoxia. Por

sua

vez,

em

um

texto

intitulado

“Considerações

Indispensáveis”, de 1892, Sílvio Romero manfesta o mesmo fenômeno, advogando a proeminência nacional na divulgação das “ideias alemãs” da Escola do Recife (449). Trata-se da introdução à sétima edição das Obras Completas de Tobias Barreto, opúsculo onde expõe as circunstâncias que teriam rodeado a introdução do monismo materialista. Segundo seu relato, foi pela ação de Tobias Barreto “que essa corrente havia sido aberta em nossas letras”. Por isso, prossegue, a divulgação da filosofia monista pela Escola do Recife logo foi alvo de “escritores fluminenses, homens de jornalismo da corte imperial”, que com humor e “com vistas ao ridículo, chamavam a nossa tentativa: a escola teuto-sergipana”. Nada, porém, que o impedisse a devolução da ironia, pois de pronto a ortodoxia positivista e o abusado “francesismo” da corte carioca foi, em contragolpe sarcástico, designada pelos pernambucanos de escola “galo-fluminense” (450). O fato é disputas similares vulgarizavam-se, dando espaço ao estabelecimento de círculos de influência, de competitividade e polêmica visíveis ao nível das várias escalas de relacionamento. Uma atmosfera bem identificada por Gilberto Amado, quando afirmava que, na Escola do Recife, “quase todo o rapaz do meu tempo em Pernambuco era agnóstico, darwinista, spencerista, monista”, pelo que, da mesma forma “como se 449

Veja-se, por exemplo, ROMERO, Sílvio, “A prioridade de Pernambuco no Movimento Espiritual Brasileiro”, Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, pp.486-496. 450 Silvio Romero revela ter sido o jornalista Carlos de Laet o autor da expressão “escola teutosergipana”. ROMERO, Sílvio, “Considerações Indispensáveis”. In: BARRETO, Tobias. Estudos Alemães. Volume VII das Obras Completas. [sem local]: Edição do Estado de Sergipe, 1926, p.XV.

202

ouve hoje, no Rio, perguntar: «Você é Flamengo ou Fluminense?» ouvia-se na Faculdade, no velho convento, no Recife, perguntar «Você é monista ou dualista?». Para simplificar, todo mundo era positivista, isto é, darwinista, monista, fenomenista, evolucionista, mas ninguém propriamente prosélito de Augusto Comte” (451). A descrição é expressiva. O fato é que todas essas teorias – esse variado repertório teórico –, em suas diversas nuances e distintas referências, acabaram por confluir, de um modo ou de outro, no movimento de republicanização das sociedades portuguesa e brasileira, fenômeno de máximo relevo na nossa escala de observação, onde o republicanismo se situa entre os fundamentos teóricos inspiradores dos debates sobre a relação histórica entre Portugal e Brasil.

3. Demarcação e historicidade: mobilizações republicanas

Que o republicanismo luso-brasileiro não tenha ficado alheio às discussões, reorientações e demarcações teórico-doutrinárias de finais do século XIX, para as quais, aliás, contribui, é realidade que não pode surpreender e cujos contornos se encontram hoje devidamente estudados. Afinal, aquela miríade de elementos teóricos que mobilizava diferentes concepções sobre a “origem”, a “finalidade” e o “fim” da história (natural e/ou social), mobilizava, em simultâneo, propostas eminentemente políticas, sobretudo as que discorriam sobre os objetivos a serem alcançados. Mas – sendo certo que a explicação do processo de mudança de regime político envolve todo um variado complexo de fatores – o ponto verdadeiramente fulcral, do ponto de vista da nossa pesquisa, encontra-se, sobretudo, no modo como, no âmbito daquela atividade argumentativa e daquele salto permanente entre ciência e política, os republicanos de um e 451

AMADO, Gilberto, Minha Formação no Recife. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1955, p.60-61.

203

de outro lado do Atlântico incorporavam a situação vivida pela outra parte. Eis, pois, o nosso próximo passo analítico: avaliar o traço dialógico produzido pelos republicanismos luso e brasileiro, tendo especial atenção às referência a Portugal no movimento que se consumará no 15 de Novembro brasileiro, e, de maneira análoga, à menção ao Brasil no processo que desembocará no 5 de Outubro português. Comecemos por observar estas questões a partir do processo de mudança para o regime republicano no Brasil. O primeiro aspecto a reter é o de que, num quadro de manifesta dispersão de propostas políticas e influências teóricas (452), será a abolição do trabalho escravo que verdadeiramente constituirá a causa congregadora das transformações sociais ocorridas no Brasil no último quartel dezenovista. De fato, a troca de regime, consumada no 15 de Novembro, veio a reboque da campanha abolicionista – esta sim, deflagradora de entusiasmada reverberação social. 452 Quanto às relações entre o positivismo e o republicanismo, importa considerar, com Antônio Paim, que “a Igreja Positivista voltou as costas, deliberadamente, ao movimento republicano. A proclamação da República apanhou-os de surpresa, conforme viria a proclamar o Apostolado, surpresa tanto maior diante da emergência de Benjamim Constant como sua principal figura”. Na verdade, como chama atenção Oliveira Viana, o positivismo ultra-ortodoxo do Apostolado, sob a chefia de Miguel Lemos, “não era uma doutrina de que emanassem eflúvios de sedução; dir-se-ia, ao contrário, era carregada de eletricidade negativa: não atraía, repelia. Nos seus dogmas, nos seus preceitos, nas suas regras, duras como tomentos de linho bravo, havia qualquer coisa que recordava os ásperos cílios monacais, e os seus discípulos pareciam antes severos Batistas, vestidos de pele, de cajado profético, macerados pelas rudes abstinências do deserto”. Ora, diante do extremo rigorismo dos ultra-ortodoxos positivistas do Apostolado, a mocidade que buscava alternativas à situação do país, inspirada pelo “bando de ideias novas” que lhes chegava da Europa, restava algo distante. Por isso, o que se observa é um acentuado cariz heterodoxo, dimanado pelos ares da frente cientificista. , consideração também abonada por José Maria Belo, para quem, “as influências filosóficas e literárias que lhes trabalham o verde pensamento não as levam forçosamente à idéia republicana. Para os escritores com os quais tinham iniciado o comércio do espírito pareciam secundárias as formas de governo. O essencial era o liberalismo político, talvez de mais fácil desenvolvimento no ambiente das monarquias parlamentares. Daí, o pequeno entusiasmo dos intelectuais do fim do Império, iniciados na cultura universitária, pela República. Na mocidade militar, principalmente da Escola do Rio, onde lecionava Benjamim Constant, foi a filosofia de Comte, com as suas bases matemáticas, a sua concepção primária dos fatos morais, o seu anti-misticismo, a sua forte inclinação dogmática e disciplinar, a grande influência doutrinária. Se para os racionalistas e evolucionistas das Academias civis a liberdade e a igualdade eram os supremos ideais, para os positivistas, a autoridade disciplinadora a tudo se sobrepunha”. Cf. PAIM, Antônio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina: UEL, 1997, p.556; VIANA, Oliveira. O Ocaso do Império. São Paulo: Editora Melhoramentos. 2ª edição, 1925, p.123; BELO, José Maria. História da República. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940, p.31.

204

Dito isto, reconhecer-se-á, todavia, a presença de outros fatores de não desprezível influência nesta atmosfera de transformações. Está nesse caso, a nosso ver, um tópico talvez nunca suficientemente realçado nas análises do republicanismo brasileiro: a sua forte inspiração americanista. Vale a pena equacionar esta questão com algum detalhe. O Manifesto Republicano de 1870, logo nas suas formulações iniciais, sustenta que “é legítima a aspiração que hoje se manifesta para buscar em melhor origem o fundamento dos inauferíveis direitos da Nação”. Ora, abre-se aqui uma linha de raciocínio do maior significado, na medida em que a preocupação com a origem inaugura uma série de mobilizações da história brasileira. É neste sentido que a “origem histórica da fundação do Império” brasileiro é esgrimida, enquanto fonte de resistências várias que, procurando “disfarçar a forma, mantendo [porém] a realidade do sistema que se procurava abolir” (453), evocava afinal a “persistência do despotismo colonial”, ou seja, dessa origem que urgia ultrapassar. Compreensivelmente, postas as coisas nestes termos, a propaganda para a proclamação da República tomava, também por esta via, as cores de uma campanha pela verdadeira Independência do Brasil (454). Não surpreende, assim, que o movimento republicano brasileiro afirme que a democracia real não teria sido consumada no país, por mais “liberal” que tivessem sido algumas quadras do reinado de D. Pedro II (455).

453 “Manifesto Republicano de 1870”. In: O Brasil no Pensamento Brasileiro. Introdução, organização e notas de Djacir Menezes. Rio de Janeiro: INEP, 1957, p.498-501. 454 Com José Maria Belo afirmámos que “é evidente que a Abolição marcou um grande passo na marcha final para a República; evidente também que foi decisivo o apoio dos militares. Entretanto, já eram tão fracas as raízes do Império, que qualquer incidente mais grave as exporia ao sol. No fundo, foram sempre republicanos os sentimentos brasileiros. A Monarquia era a moldura da ordem constituída, a velha tradição legalista e burocrática herdada de Portugal e que receávamos partir. No dia em que se vencesse semelhante temor, ela teria vivido…”. BELO, José Maria. História da República. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940, p.5. 455 Consultar História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II – O Brasil Monárquico. 1º Volume: O processo de emancipação. Direção de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo/Rio de Janeiro: DIFEL, 1976. Principalmente os capítulos “Herança Colonial – sua desagregação” e “A fundação de um Império Liberal”.

205

O objetivo era propagar a ideia-força de que se a democracia verdadeiramente triunfasse no Brasil “ficaria quebrada a perpetuidade da herança que o Rei de Portugal queria garantir à sua dinastia” (456). Sob o eco deste bordão demarcatório – voltado para um afastamento final relativo à herança portuguesa no Brasil – vários eventos históricos são mencionados justamente enquanto signos da sobrevivência do jugo colonial lusitano no seio do Império brasileiro (Dissolução da Assembleia Constituinte de 1823, Carta de 1824 outorgada, processo da “maioridade” de Pedro II, etc.). A analogia entre República e Independência é nítida, mas não é a única. Junto a ela sugere-se também a associação entre Centralismo e Monarquia (leia-se colonialismo lusitano), à qual só se poderia opor de forma conveniente, conforme defendia o Manifesto, a organização de uma República Federativa no Brasil: “O regime da federação baseado, portanto, na independência recíproca das Províncias, elevando-se à categorias de Estados próprios, unicamente ligados pelo vínculo da mesma nacionalidade e da solidariedade [será] o único capaz de manter a comunhão da família brasileira” (457). Não é por acaso, assim. Que não se tenha feito qualquer referência à idêntica proposta política de alguns positivistas portugueses. Compreende-se o porquê. A federalização da República, para um Teófilo Braga, por exemplo, vinha ao encontro da tradição do municipalismo medieval lusitano. No Brasil, ao contrário, a mesma proposta política chocava em linha direta com a tradição portuguesa, erigindo-se contra a manutenção das práticas lusitanas na política nacional. O que também se entende. Afinal, a evocação do nome de “Portugal” no âmbito das “transformações”

sociais

brasileiras

possuía,

genericamente,

uma

conotação precisa: o “passado” a ser superado. Este “detalhe”, que remete à mobilização da história enquanto critério demarcatório da soberania 456 “Manifesto Republicano de 1870”. In: O Brasil no Pensamento Brasileiro. Introdução, organização e notas de Djacir Menezes. Rio de Janeiro: INEP, 1957, p.501. Grifos nossos. 457 Idem ibidem, p.498-514.

206

cultural, reforçou o cunho americanista (leia-se antilusitano) no processo de fundação de um Brasil “regenerado”, através do reforço dos contornos exclusivos da “família brasileira”. Deste modo se entende que, no contexto brasileiro, o Manifesto Republicano de 1870 também comporte uma dimensão de tentativa de (re)fundação da soberania nacional, bradando em prol do sentimento americanista: “Somos da América e queremos ser americanos. A nossa forma de governo é, em sua essência e em sua prática, antinômica e hostil ao direito e aos interesses dos Estados americanos. A permanência desta forma tem de ser forçosamente, além de origem da opressão do interior, a fonte perpétua de hostilidade e de guerras com os povos que nos rodeiam” (458). Razão terá, por conseguinte, José Maria Belo, quando afirma que “o mais curioso a notar-se no Manifesto de 70 é o despertar do que hoje já podemos chamar sem ênfase, da coincidência americana. Se a derrocada de Napoleão III é um exemplo que os republicanos brasileiros não esquecem na crítica ao Império, o que mais lhes fere o sentimento é o exotismo da Monarquia na comunhão republicana da América” (459). Eisnos, em definitivo, perante um vincado sentimento de demarcação cultural através da oposição da escala americana relativamente à escala europeia. Um exercício de diferenciação que parece, na verdade, decorrer em boa medida do fato de que a republicanização brasileira significou uma vontade de extirpar do corpo nacional “o imenso revestimento do estuque europeu”, representado pela Monarquia – pelos laços de sangue que uniam o trono lusitano ao brasileiro (460). Atente-se, mais ainda, em que este postulado de “comunhão americana” traz consigo um movimento obrigatório de redefinição, quando 458

Idem, ibidem, p.517. Grifos nossos. BELO, José Maria. História da República. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940, p.2526. O grifo é meu. 460 Idem, ibidem, p.23. 459

207

não de abandono, de uma idealizada “comunhão luso-brasileira”: Uma visão para a qual concorriam opiniões como as de Oliveira Martins (461), Eduardo Prado (462) ou Eça de Queirós(463), cujos posicionamentos a este respeito já atrás abordados e que, para além das diferenças, alinhavam pelo diapasão da “comunhão de sangue” entre portugueses e brasileiros, percepção esta sedimentada na compreensão do Brasil enquanto portador da “seiva lusitana” nos trópicos. À luz do radicalismo que ressoava do Manifesto e do lugar “pela negativa” atribuído a Portugal na fundamentação republicana, bem se podem entender as reservas dos citados intelectuais, os quais, na altura do 15 de Novembro brasileiro, receavam pelo futuro das ligações luso-brasileiras. O certo é que o Brasil intentava, no processo abolicionista e republicano, distanciar-se de Portugal, assumindo autonomia cultural. Neste ponto – isto é, neste investimento de demarcação histórica –, percebe-se a migração alegórica que transitou do signo do “sangue” para a marca da “terra”, num processo por certo não desconexo das influências do materialismo monista (que realçava o critério do “meio”), através de uma autêntica “darwinização da crítica” (conforme a expressão de Sílvio Romero). Buscava-se uma conformidade com os demais povos americanos (republicanos) e, consequentemente, uma

461 Referimo-nos tanto às crônicas publicadas na Revista Occidental, em 1875, onde já aparece a expressão “comunhão de sangue”, como aos artigos expressos nos jornais O Tempo, onde estão presentes muitas críticas ao “erro” republicano cometido pela nação “neo-portuguesa” da América. 462 Recorde-se que os artigos publicados por Eduardo Prado, na Revista de Portugal, em 1889 e 1890, sob o pseudónimo de “Fredeirico de S”, deram origem a duas publicações: A ilusão americana, estampada em 1894 e Fastos da ditadura militar no Brasil, publicado em 1902, no Brasil. Estas obras foram confiscadas e censuradas pelo governo republicano brasileiro. Em 1895, entretanto, veio à estampa uma segunda edição de A ilusão americana, publicada em Paris, pela editora Armand Colin. Vale dizer ainda que A ilusão americana foi alvo de uma positiva recepção crítica, escrita por Moniz Barreto, estampada nas páginas da Revista de Portugal, de onde, aliás, saíram seus textos. Cf. BARRETO, Moniz. “Revista Literária: ‘Fastos da Dictadura militar no Brazil, por Frederico de S.’”. In: Revista de Portugal. Vol. III. Porto: Chardron, 1890. 463 Fazemos menção principalmente às opiniões manifestadas na Revista de Portugal, por ocasião da Proclamação da República no Brasil, em 1889, já analisados anteriormente.

208

inescapável superação da tradição nacional (464). Deste modo, constata-se que, em diversas frentes, o “passado a ser superado” era sinónimo da relação com Portugal (fosse o braço escravo, que lembrava a exploração lusitana, fosse a Monarquia, que significava a manutenção os “laços de sangue”). Dir-se-ia que o Brasil, para demarcar-se de seu passado, fazia de Portugal um ultra-passado. Toda esta questão da demarcação histórica implícita no movimento republicano brasileiro ganha maior clareza quando cotejada com o caso português. É que, como se sabe, também os republicanos portugueses buscavam demarcar-se do passado, ma medida exata em que buscavam reinventar, na passagem para o regime republicano, um ideal a ser alcançado. Só que, se este último, como não poderia deixar de ser em se tratando do modelo republicano, coincidia com um ideal de positividade cuja marcha da civilização tinha no caso francês seu referente, não é menos verdade que ele autorizava que, em simultâneo, a construção da ideologia

464

Por isso, desde o findar da Guerra do Paraguai, o movimento de

ideias que renovou as mentes da juventude brasileira de 1870, tinha um forte carácter nacionalista, que buscava retirar do país as peias que lembravam o passado colonial e, assim, construir os fundamentos de uma identidade nacional, política e cultural, que fosse única e original. Basta lembrar o tom nacionalista agressivo dos textos de Sílvio Romero, na Revista Brasileira, em 1879, como expusemos, ou os do crítico literário Araripe Júnior que, na revista Lucros e Perdas, em 1883, desta forma pregava aos seus: “desviemos os olhos das torpezas do Brasil, esqueçamos o passado… vivamos um pouco iludidos no futuro”. ARARIPE JR., José. Lucros e Perdas: crônica mensal dos acontecimentos. Por Sílvio Romero e Araripe Júnior. Rio de Janeiro: Livraria Contemporânea de Faro & Lino, 2ª edição, junho, 1883. 209

republicana, em Portugal, se autoproclamasse “herdeira” do liberalismo da Revolução de 1820. O que, face ao que pudemos apreciar para o caso brasileiro, se apresenta como peculiaridade lusitana: uma não renegada inspiração no passado nacional português – entendido como o parâmetro de um liberalismo corrompido pelo cartismo que lhe sucedeu –, no seio de um movimento dito renovador e modernizador. Na relação com o passado no âmbito da mudança social residirá uma diferença entre os trajetos luso e brasileiro, na medida em que, no Brasil, o “passado” (europeu) a ser superado era o oposto das ambições (americanas) de futuro, enquanto que por sua vez, em Portugal, o futuro (demo-liberal republicano) busca recuperar a “tradição” do passado (o liberalismo vintista). Os exemplos deste aspeto, principalmente quanto à mobilização do passado pelo republicanismo português, colhem-se sem dificuldade, tendo sido justamente estudados como expressão do elevado peso do vintismo no republicanismo luso. Vale a pena recuperar, para a nossa exposição, essas alusões, no sentido, fundamentalmente, de ressaltar o contraste de pressupostos com a atrás enunciada situação do republicanismo brasileiro. Veja-se, a este respeito, a interpretação de José de Arriaga, em A política conservadora e as modernas allianças dos partidos políticos portugueses, obra que, publicada em 1879, representa um ícone da mobilização republicano em torno da “herança” de 1820 e da importância da unificação das propostas republicanas: “é chegado o momento de lançarmos uma vista rápida pelo passado, a fim de o interrogar acerca das vantagens e benefícios, deixados até hoje, pela monarquia constitucional, talhada segundo os princípios da escola doutrinária, e metida nas estreitas formas da política conservadora”. A referência à ideia de “regeneração” tendo como inspiração o passado vintista fica ainda mais clara quando Arriaga afirma que “Portugal, decadente e empobrecido pelo regimen absoluto, inimigo do progresso e das reformas, fez um esforço heróico, para libertar210

se dos vícios e defeitos de uma sociedade decrépita. Proclamou em 1820, e com enthusiasmo, os princípios liberaes, a fim de iniciar com elles uma política popular e nacional, a qual soubesse tratar com disvelo e solicitude dos interesses públicos, até então despresados e esquecidos; e a fim de achar n’elles a sua completa regeneração futura” (465). Considerações como estas foram ecoadas por Manuel Emídio Garcia, que dizia ser a Revolução de 1820 um “movimento político de feição acentuadamente democrática”, representando “a expansão do comprido espírito liberal e das tradicionais aspirações republicanas do povo português, que em futuro mais ou menos próximo conseguirá reatar à memorável revolução de 1820 a corrente da sua evolução política democrática, há setenta anos cortada pela monarquia e seus sequazes” (466). Teófilo Braga, por sua vez, também reverberava este posicionamento, ao dizer, na introdução à sua História das Ideias Republicanas em Portugal, que “a história, determinando com clareza o advento evolutivo das ideias democráticas, levará os espíritos dirigentes à previsão da marcha para uma transformação política não remota; e dessa previsão resultará uma maior coordenação de trabalho e desse trabalho uma revivescência da nacionalidade” (467). Resuma-se, pois, com o abono de Amadeu Carvalho Homem, dizendo ser “indesmentível que o republicanismo apologético dará por sua a tradição democráticorevolucionária, conferindo à revolução vintista uma relevância toda especial e saudando o diploma constitucional de 1822 como a consagração legal de uma nova vivência cívica e política” (468). Por outro lado, convirá não deixar passar em claro, em matéria de relacionamento luso-brasileiro de fundo republicano, o potencial de 465

ARRIAGA. José. A política conservadora e as modernas allianças dos partidos políticos portugueses. Lisboa: Imprensa de J.G. de Sousa Neves, 1879, p.459. Grifos nossos. 466 GARCIA, Manuel Emídio. “O que foi a revolução de 1820”, A Discussão, 1º ano, nº 218, 24 de Agosto de 1884, p.1, col.3. Os grifos são nossos. 467 BRAGA, Teófilo. História das Ideias Republicanas em Portugal. Lisboa: Veja, 1983, p.15. 468 HOMEM, Amadeu Carvalho. A ideia republicana em Portugal: o contributo de Teófilo Braga. Coimbra: Minerva, 1989, p.236.

211

interferência que terá desempenhado, no espaço dos republicanos portugueses, a proclamação da República no Brasil, em 1889. Não está em causa, como é evidente, medir o grau dessa influência adentro do universo de fatores normalmente associados ao caminho para a proclamação da República em Portugal. Apenas se pretende chamar a atenção para alguns focos de permeabilidade, se assim se pode dizer, a exemplo da importância simbólica que parece poder reconhecer-se ao 15 de Novembro brasileiro na Revolução do Porto de 31 de Janeiro de 1890 – evento tido consensualmente como representante de uma maior radicalização do republicanismo português (469) –, culminando com o regicídio de 1908 e a troca de regime de 1910. Mesmo deixando de lado a proximidade situacional transatlântica revelada pela entrada em cena dos militares no movimento republicano, indicador de uma maior celeridade do movimento e elemento passível de aproximação à experiência brasileira de republicanização, o elo que estamos a sugerir pode ser observado nas páginas da Revista de Portugal, principalmente em um texto de Luiz de Magalhães intitulado “Revolta do Porto”, publicado em 1890. Nele, o autor afirma que “dois factos importantes actuaram fortemente, de há um tempo a esta parte, a favor da republicanização do paiz e do exército. Esses dois factos, quasi simultâneos, foram a questão ingleza, com todos os seus deploráveis episódios, e o exemplo da revolução brazileira” (470).

469

Esta inflexão radical do republicanismo português está presente, por exemplo, no programa do Directório de 11 de Janeiro de 1891. A partir deste momento, pode-se dizer que a clivagem entre federalista e unitaristas, bem como entre evolucionistas e radicais será superada no sentido de um consenso nacionalista. Conforme Fernando Catroga, este Directório “pretendeu conciliar, no essencial, os programas republicanos anteriores (unitarista e federalista), limitando-se a sublinhar melhor a opção nacionalista e interclassista do ideal republicano e a acentuar a finalidade que, em última instância, sobredeterminava a sua estratégica: a consumação da revolução cultural que seria necessária para completar o processo histórico iniciado com o liberalismo, mas que somente a República poderia elevar-se a um estádio maior de perfeição”. CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal: da formação ao 5 de Outubro de 1910. Coimbra: Faculdade de Letras, 1991, p.84. 470 MAGALHÃES, Luiz. “A revolta do Porto”. In: Revista de Portugal. Direcção Eça de Queiroz. Vol. III. Porto: Chardron, 1890, p.483. Grifos nossos.

212

Considera ainda que “o exemplo da revolução brazileira, d’essa rápida e fácil mutação theatral de personagens e instituições, levada a effeito d’uma manhã para uma tarde, apenas com meia dúzia de tiros de rewolver trocados entre o barão de Ladario e a escolta do general Deodoro – fez penetrar nas massas jacobinas a convicção de que tudo seria possível fazerse aqui, mais dia, menos dia, pelo mesmo processo; e conformou até certo ponto o prudente burguez com a hypothese d’uma republica implantada em idênticas condições”. E acrescenta ainda que “nesta corrente de ideias, o partido republicano foi-se aproximando do exercito, que não repeliu, de forma alguma, o seu contacto. Activou-se a propaganda, e iniciou-se por fim a conspiração” (471). Conspiração esta que, com se sabe, resultou em fracasso, tratando-se, antes, nas palavras de Luiz de Magalhães, de “uma espécie de sangrenta paródia ao 15 de novembro brazileiro” (472). Para lá da maior ou menor interferência deste sucesso nos rumos tomados pela radicalização do republicanismo português até ao 5 de Outubro de 1910, é possível descortinar, do ponto de vista que temos vindo a perseguir, que a Proclamação da República no Brasil, em 1889, perturbava (sob os aplausos de uns e o receio de outros) a manutenção e o significado da “obra portuguesa na História”, representando o perigo de desagregação “da obra lusitana” na América. E nem será preciso somar a este fato o célebre Ultimato Britânico e suas sequelas traumáticas para se tornar evidente que, em uma tal conjuntura, se tenda a proceder a uma reavaliação das memórias nacionais por parte de cada um dos lados do Atlântico. Estamos diante, portanto, de num processo de mobilização das historicidades. Uma conjuntura em que, a par das demarcações cientistas e justamente com apoio nelas, se demarcavam de igual modo as matrizes identitárias e o processo de construção histórica das culturas nacionais. 471 472

Idem, ibidem, p.484. Idem, ibidem, p.490. Grifos do original.

213

III – ESCALAS IDENTITÁRIAS: A PROBLEMÁTICA DA ORIGINALIDADE.

Convocadas tanto pela ampla frente cientista heterodoxa – onde se amalgamavam o positivismo littreísta, preceitos do darwinismo, do materialismo monista e do spencerianismo –, como pelas politizações da memória processadas no âmbito do republicanismo, a história e, de modo geral, a matéria da “temporalidade”, revelar-se-ão, mesmo quando mobilizadas a partir de diferentes pressupostos teóricos, eixo incontornável das estéticas de recomposição identitária desenvolvidas pelas culturas portuguesa e brasileira em finais de Oitocentos e na entrada da centúria seguinte. Sabendo-se que esses complexos processos de redefinição memorial confluem, nessa altura, num tendencial reforço de leituras nacionalistas por parte dos intelectuais envolvidos, percebe-se não só a importância então conferida, no espaço de debate luso-brasileiro, ao problema maior da “originalidade” – tornado, a nosso ver, a verdadeira placa giratória da questão identitária – como se percebe também o motivo da centralidade da história nesse debate. São justamente estes aspectos que nos propomos equacionar nesta III Parte. O nosso propósito encontra concretização em duas frentes de análise: através de uma delas, dá-se conta da tensão entre as noções de “herança”, nomeadamente nas derivações brasileiras oriundos do lastro lusitano na leitura de J. P. de Oliveira Martins ou na leitura deste mesmo lastro como “mal de origem” conforme o entendimento de Manoel Bonfim; noutra frente, analisa-se a questão da “originalidade” na decorrente 214

concorrência da forma híbrida como chave de leitura de estéticas vinculadas ao moçarabismo português, em Teófilo Braga, e ao projeto da mestiçagem brasileira, em Sílvio Romero. Esta segunda linha analítica comportará, ainda, uma indagação exploratória sobre o acolhimento desta disputa à escala regional interna brasileira. Em qualquer dos casos, tratam-se de indicadores das mobilizações da história e do sentido do potencial relacionamento luso-brasileiro. Independentemente do fato das obras de Oliveira Martins e Teófilo Braga, sobretudo seu caráter matricial para o entendimento de padrões culturais nacionais, terem sido já bastante explorado, pela historiografia portuguesa (473), assim como, no caso brasileiro, o papel de Sílvio Romero ter sido mais enaltecido que o de Manoel Bomfim (474) – cumpre lembrar, no entanto, que Maria Tétis Nunes,já tenha chamado atenção para o fato de serem ambos os “pioneiros” da “ideologia nacional” brasileira (475) –, é a disponibilidade destes autores para tipificarem determinados modelos de reflexão sobre a escala luso-brasileira propriamente dita, juntamente com a representatividade que se lhes reconhece enquanto expressão, cada um a seu modo, de outros tantos alinhamentos teóricos e políticos relativos ao mesmo assunto, que justifica, a nossos olhos, a sua eleição como indicadores da pesquisa (476).

Seja-nos permitido um ajuste teórico prévio. A nossa abordagem da questão assenta-se em três vias de reflexão sobre a temática identitária. A primeira é a que, estando atenta ao carácter negociado das identidades 473

Veja-se, a título de exemplo, CATROGA, Fernando e CARVALHO, Paulo Archer de. Sociedade e Cultura Portuguesa II Lisboa: Universidade Aberta, 1996; CATROGA, Fernando, TORGAL, Luis Reis e MENDES, José Amado. História da História em Portugal, volume 1 – A História através da História. Lisboa: Temas e Debates, 1998; HOMEM, Amadeu Carvalho, Do romantismo ao realismo: temas de cultura portuguesa (século XIX). Porto: Fund. Eng-º António José de Almeida, 2005; SARAIVA, António José. A Tertúlia Ocidental: estudos sobre Antero de Quental, Oliveira Martins e outros. Lisboa: Gradiva, 2ª edição, 1995; LOURENÇO, Eduardo. Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade. Lisboa: Gradiva, 1999; MAURÍCIO, Carlos. A invenção de Oliveira Martins: política, historiografia e identidade nacional no ‘Portugal Contemporâneo’ (1867-1960). Lisboa: INCM, 2005; PONTE, Carmo Salazar, Oliveira Martins. História como tragédia. Lisboa: INCM, 1998. 474 Assinale-se, a título informativo, que, recentemente, a Editora Topbooks, do Rio de Janeiro, vem reeditando a obra de Manoel Bomfim. 475 NUNES, Maria Tétis. Silvio Romero e Manuel Bomfim: pioneiros de uma ideologia nacional. Aracaju: Cadernos da UFS, n.º 4, [s.d.]. 476 Lembre-se, entretanto, que a esfera relacional de alguns destes autores “luso-brasileiros” já foi sugerida. Veja-se, por exemplo, os trabalhos de Paulo Franquetti e o extenso rol de estudos apresentado no II Congresso Tobias Barreto, dedicado às aproximações e distanciamentos entre as obras de Sílvio Romero e Teófilo Braga. Sobre estes dois autores, consultar também BORGES, Paulo E. A. O Pensamento Atlântico: estudos e ensaios de pensamento lusobrasileiro. Lisboa: INCM, 2002.

215

coletivas e à incómoda não coincidência entre as estratégias de consolidação identitária e os respectivos esforços de legitimação, distingue os conceitos de “fundação” e “fundamento”: “fundação e fundamento pertencem ambos ao registo da evidência mas o fundamento é o lugar do excesso enquanto que a fundação, ou as actividades fundadoras do espírito […] se acham associadas à procura dessa inteligibilidade primordial que nos aparece como uma exigência indeclinável” (477). Trata-se, neste ponto, de perceber o nível epistêmico da matéria de consolidação de leituras identitárias. A segunda via é a que, remetendo à centralidade das leituras da história nestes processos identitários, bem como ao potencial demarcatório das delimitações culturais a ela vinculados , adverte que “a história, convocada e manipulada com intuitos probatórios, surge, neste contexto, menos como mapa cognitivo da memória do que como arena” (478). Eisnos, neste patamar, vinculados ao apelo concorrencial e competititivo brotado quando são surpreendidas diferentes leituras da historicidade fundando padrões de relacionamento divergentes. A terceira, por fim, é a que está atenta ao lugar da história no contexto oitocentista e, assim sendo, ao modo como deve entender-se a sua mobilização pelos diferentes credos teóricos, o que recorda que “quer a razão científica, quer a razão filosóficohistórica constituíam duas expressões da mesma razão prognóstica e instrumental moderna” (479). Ora, visto que qualquer um destes patamares teóricos subentende a presença de uma estética da temporalidade nos processos identitários, justifica-se que, antes de desenvolvermos as linhas de inquérito previstas, façamos algumas considerações a esse nível em relação ao caso luso-brasileiro na conjuntura que nos ocupa.

477

GIL, Fernando. Modos de evidência. Lisboa: INCM, 1998, p.401. MARTINS Rui Cunha. “A Arena da História ou o Labirinto do Estado? Delimitações intermunicipais e memórias concorrenciais nos inícios do século XX”. Cadernos do Noroeste, 15 (1-2), 2001, pp.37-56. 479 CATROGA, Fernando. Caminhos do Fim da História. Coimbra: Quarteto, 2003, p.122. 478

216

1. A obsessão temporal da alteridade luso-brasileira.

No final do século XIX, o entendimento da história como “ciência concreta” cohabita com o seu entendimento enquanto “força abstrata”, do mesmo modo que o seu entendimento como consumação de leis universais não anula a sua leitura enquanto manifestação do espírito do povo. Em 1891, J.P. de Oliveira Martins considerava que “a arte de escrever a história está atravessando um período de transformações” (480). E estava mesmo. Em 1871, Antero de Quental, no início de Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos, propunha, frente a um irrefutável quadro de decadência (481), que tal como “o pecador humilha-se diante do seu deus, num sentido acto de contrição, e só assim é perdoado, [seja feito por] nós também, diante do espírito de verdade, o acto de contrição pelos nossos pecados históricos, porque só assim nos poderemos emendar e regenerar” (482). De toda a significância parece-nos o fato de a contrição não ser mais perante um Deus todo-poderoso – a reverência devia ser feita perante a História da Humanidade. O que se compreende. Das lições do passado surgiriam respostas para a regeneração futura. Eis o bordão comum. Vigente no interminável debate estruturado sobre os conceitos gêmeos de 480

MARTINS, J. P. de Oliveira. “Advertência”. In: Os Filhos de D. João I. Lisboa: Editora Ulisseia [1891], 1998, p.33. A noção de “decadência”, como se sabe, foi utilizada como categoria de análise históricocultural pela Geração de 70 portuguesa. Sua utilização remete ao par “progresso-decadência”, significando uma depreciação crítica fortíssima de alguns segmentos intelectuais portugueses ao compararem-se com os ícones de desenvolvimento moderno dos países da Europa ocidental e central (França, Alemanha, Inglaterra, principalmente). Este cotejar histórico-cultural filia-se num entendimento caro às filosofias da história – entendidas como a consumação do progresso e do crescente esclarecimento – aliada à tonalidade naturalista do contexto em questão – mais especificamente no tocante ao paralelo organismo-sociedade. Para as várias manifestações desta estética cultural em Portugal ver PIRES, António Machado. A ideia de decadência na Geração de 70. Lisboa: Vega, 2ª edição, 1991. Para um entendimento de sua relação com as filosofias da história do século XIX, consultar CATROGA, Fernando. Caminhos do fim da história. Coimbra: Quarteto, 2003. 482 QUENTAL, Antero de. Causas da decadência dos povos peninsulares. In: Carlos Reis. As Conferências do Casino. Lisboa: Alfa, 1990, p.95. Grifos nossos. 481

217

progresso e decadência (483), estava a convicção, partilhada tanto por Antero quando Oliveira Martins, de que o inquérito ao passado – e o “tribunal da história” – apontariam as respostas para o re-surgimento nacional projetado. Este “tribunal” (484), organizado pela Razão através do estudo do passado, será o locus privilegiado da “contrição” do autor das Odes Modernas (485), bem como estará também vinculado à “lição moral” ensinada pela história, como considerava o autor de Os Filhos de D. João I (486). É verdade que a criticidade exacerbada pelo “decadentismo” anteriano e Martiniano (487) nos remete às filosofias da história do século XIX (488), 483

Veja-se o verbete “decadência”, escrito por Joel Serrão, do Dicionário de História de Portugal. Lisboa: Iniciativas editoriais, 1963. Indicamos, também, o Dicionário da Geração de 70, direcção de Guilherme de Oliveira Martins e Ana Maria Alves, a ser editado pela Editora Presença. 484 Como diz também Koselleck : “l’histoire du monde est le tribunel du monde”. KOSELLECK, Reinhard. Le Futur Passé: contribuition a la semantique des temps historique. Paris : Éditions de EHESS, [1979] 1990, p.50. 485 Não surpreende que, por ocasião da reedição de O Crime do Padre Amaro, em 1880, Antero de Quental tenha feito o seguinte comentário sobre a História de Portugal de Oliveira Martins, lançada no ano anterior: “Já leu a História de Portugal de Oliveira Martins? É o que se chama uma revelação. Eu cá, depois de a ler, conclui que até aquele momento não fazia ideia nenhuma da história desta terra. Olhe que é gráfica e pitoresca. O homem, meu caro Queiroz, é a única coisa realmente a valer que temos aqui”. Carta de Antero de Quental a Eça de Queiroz In: QUEIRÓS, Eça de. O Crime do Padre Amaro. Cenas de uma vida devota. Edição de 1880, revista pelo autor, precedida de uma carta inédita de Antero de Quental. Lisboa, Edição Livros do Brasil, 1880. 486 A estética identitária do “Tribunal da História” condicionou, por certo, o “retrato” identitário de Portugal, explícito em sua História de Portugal. Trata-se, como já explicou Fernando Catroga, de um dos pontos de contacto entre o ideário martiniano e o anteriano, pois os autores, “apesar das diferenças […] acabaram por tecer um destino geminado pelo pessimismo e pelo fracasso”. CATROGA, Fernando, O Problema Político em Antero de Quental. Um confronto com Oliveira Martins. Coimbra: Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 1981, p.138. 487 Várias são as aproximações possíveis entre a perspectiva histórica de Antero de Quental e Oliveira Martins. A este título, permitimo-nos tão-só evocar aqui, em termos emblemáticos desse relacionamento, o fato de o título da palestra de abertura das Conferências do Casino Lisbonense, conforme já foi aqui mencionado, As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, de Antero de Quental, ser também guardado como título de um importante capítulo da significativa História da Civilização Ibérica, obra que Oliveira Martins estampa em 1879, portanto, 8 anos depois da conferência anteriana (e recorde-se, ainda, que, na mesma obra, em capítulo intitulado “As Ruínas”, Oliveira Martins fará uma longa citação justamente do célebre opúsculo de Antero de Quental). Entretanto, para a cabal elucidação das relações entre as ideias de Antero e Oliveira Martins, consultar CATROGA, Fernando. O Problema Político em Antero de Quental. Um confronto com Oliveira Martins. Coimbra: Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 1981. 488 Conforme Karl Löwith, “o termo «filosofia da história» foi inventado por Voltaire, que o aplicou pela primeira vez na sua acepção moderna, distinta da interpretação teológica da

218

representantes de sucessivas tentativas de “entificação da história da humanidade” (489) e de uma remissão permanente das ideias para os respectivos ícones abstractos, num contexto onde “les libertés deviennent la Liberté, les droits deviennent le Droit, les progrès deviennent le Progrès, et les révolutions plurielles deviennent «la Révolution»”(490). Uma batuta universalizadora do sentido da história – feita trajecto de uma humanidade ascensional e “sujeito” da modernidade –, que acabava por manifestar-se num movimento de homogeneização iluminista, ou “à la Voltaire”, como cedo se apercebeu um incomodado Herder (491). Mas, por outro lado, se nos casos de Antero (492) e Oliveira Martins a leitura da transitoriedade coletiva portuguesa foi entendida como degradação, isso ficava a dever-se à convicção de um sentido manifesto na relação entre o conhecimento do passado, seu uso no presente e sua referencialidade para efeito de um projetado futuro, sentido esse que, entendido como “lição”, constaria precisamente do magistério da história (493).

história. No Essai sur les moeurs et l’esprit des nations, de Voltaire, já não predomina o princípio da vontade de Deus e da providência divina, mas da vontade do homem e da razão humana”. LÖWITH, Karl. O Sentido da História. Lisboa: Edições 70, [1948] 1990, p.15. 489 CATROGA, Fernando. Caminhos do fim da história. Coimbra: Quarteto, 2003, p.64. 490 KOSELLECK, Reinhard. Le Futur Passé: contribuition a la semantique des temps historique. Paris : Éditions de EHESS, [1979] 1990, p.47. 491 Herder, com fina ironia, criticava “o olhar de toupeira deste século iluminadíssimo”. Em oposição à universalidade da Razão e de sua marcha histórica, Herder chamará atenção para as originalidades nacionais, as idiossincrasias da natureza enquanto a manifestação da diversidade da obra do Criador. HERDER, Johan Gottfried. Também uma filosofia da história para a humanidade. Lisboa: Antigona, [1774], 1995, p.8-10. 492 Veja-se, por exemplo, o seguinte trecho de um poema de Antero de Quental dedicado “À História”, inserido nas Odes Modernas de 1865: “Fecha os olhos… que os passos da visão / Não deixam mais vestígios do que o vento! / Tu, que vais, se te sofre o coração / Vira-te para trás… pára um momento… / Dos desejos, das vidas, nesse chão / Que resta? Que espantoso monumento? / Um punhado de cinzas – toda a glória / Do sonho humano que se chama História” QUENTAL, Antero de. Odes Modernas. Lisboa: Vega, 1994, p.27. 493 A Historia magistra vitae, ao estilo ciceroniano, é relativa ao contexto da retórica antiga, referindo-se aos modelos helênicos do tempo e da experiência. Conforme explica Koselleck, “la tâche dominante, que Cicéron confère ici à la science historique, est avant tout axée sur le domaine pratique, dans lequel l’orateur exerce son influence. Il se sert de la l’histoire, Historia, comme d’un recueil d’exemples – plena exemplorum est historia, afin d’instruire grâce à eux, et ce d’une manière certainement plus vigoreuse que Thucydide lorqu’il soulignait l’utilité de son ouvrage en le confiant aux génération futures comme leur bien inextinguible, afin de qu’elles y

219

Dada “a índole retrospectiva e universalista das filosofias da história”, sucedia, como explica Fernando Catroga, que “mesmo quando o elo entre os antecedentes e consequentes se restringia ao causalismo material e eficiente (como sucedia, em boa parte, no discurso historiográfico), todos aqueles eram transformados em meios, tendo em vista a realização de um fim. Dir-se-ia que eles punham o efeito como causa de suas causas, ilação que permite concluir que os seus intuitos de previsibiliade constituíam, em última análise, uma “espécie de previsão ao contrário” (Schlegel)”. Em síntese, prossegue o mesmo autor: “o velho preceito ciceroniano historia magistra vitae, mesmo quando se afirmava o inverso, estava a ser objectivamente revisto, pois, se ele se adequava a mentalidades imbuídas de uma visão cíclica do tempo, ou crentes no cariz a-histórico da natureza humana, tal não ocorria com a aceitação da irreversibilidade. Se nada se repete, que utilidade poderiam ter as lições do passado? Ora, a resposta não foi negativa pelas razões apontadas: a perspectiva diacrónica continuou a ser invocada, porque as estratégias de convencimento das narrativas históricas, estruturadas segundo a lógica antecedente ĺ consequente, não podiam explicar a sequência do eixo temporal a partir do efeito, que elas mesmas procuravam demonstrar” (494). Não surpreende, assim, que, podendo embora dizer-se que a memória, "dans une dimension historique, s'est montré moins comme un acquis que comme un fardeau" (495), terá sido igualmente certa, mesmo assim, a percepção de que a aprendizagem dos “erros” cometidos no passado

prissent connaissance de cas semblables aux leurs”. KOSELLECK, Reinhard. Le Futur Passé: contribuition a la semantique des temps historique. Paris : Éditions de EHESS, 1990, p.39. 494 CATROGA, Fernando. Caminhos do fim da história. Coimbra: Quarteto, 2003, p.78. 495 BARASH, Jeffrey Andrew. "Les sources de la mémoire". In: Revue de Métaphisique et de Morale, janviers-mars, 1999, n.º 1, p. 147. Evoque-se, com idêntico sentido, Paul Ricoeur, quando afirma que "a memória coletiva é o verdadeiro lugar da humilhação, da reivindicação, da culpabilidade, das celebrações, portanto, tanto da veneração como da execração". RICOEUR, Paul. "Dever de memória, dever de Justiça". In: RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção. Conversas com François Azouvi e Marc De Launay. Lisboa: Edições 70, 1997, p170.

220

comportava em si mesma a esperança na regeneração da coletividade nacional. Estas considerações ajudam a melhor entender os planos de intersecção e questionamento entre uma compreensão do tempo e da História que busca nas “cinzas” do passado as causas da decadência (portuguesa) num sentido prospectivo de sua regeneração como progresso e os critérios de compreensão do cientismo historicista, muito difundidos pelas ciências da natureza e pujantes nas nascentes Ciências Sociais. A respeito destes últimos, basta evocar, por exemplo, o modo como a poesia cientificista de um José Isidro Martins Júnior – intelectual brasileiro então conhecido em Portugal (496) – trata de frisar as diferenças existentes entre a concepção metafísica do tempo própria das filosofias da história e a compreensão alternativa dada pela visão cientista da história(497), ou, na 496

Como já expusemos na primeira parte deste trabalho, estava impresso, na contracapa da revista O Positivismo, o recebimento da obra de José Isidro Martins Júnior, Vigílias literárias (bem como a Oração fúnebre de António Cândido da Costa), a qual beneficiaria de uma recensão-crítica favorável nas páginas dessa revista e nas da Revista de Estudos Livres, onde chega mesmo a publicar um artigo (A função histórica da economia política). O Positivismo: revista de filosofia. Primeiro Ano, n.º6, Agosto/Setembro, 1879, Contracapa. In: O Positivismo: revista de filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume III (números 1 a 6), 1880, 449p. Assim se manifesta Teixeira Bastos: “Este livro é um brado de defeza a favor da poesia scientifica e philosophica, que tão impugnada tem sido pelos sectarios da arte pela arte e por todos aqueles que desconhecem a evolução esthetica, chegando a affirmar alguns a incompatibilidade da poesia com os progressos da nossa civilisação. Basta ser este o fim do auctor, um moço intelligente e o iniciador da poesia scientifica no Brazil com as suas Visões de hoje, para que o seu trabalho mereça toda a nossa sumpathia e applauso, embora discordemos d’elle n’um ou n’outro ponto secundario. O snr. Martins Junior estuda o assumpto debaixo de um ponto de vista geral sem se preoccupar com as pequeninas vaidades de nacionalidade, ao contrario do que infelizmente succede com a maioria dos seus patrícios”. BASTOS, Teixeira, Secção Bibliographia – “A poesia cientifica (Escorço de um livro futuro), por Izidoro Martins Junior. Recife, 1883, 73 pag.”, Revista de Estudos Livres. Volume I (1883-1884). 1884, pp.479-480. 497 Em 1881, Isidro Martins Júnior publica Estilhaços, As visões de hoje, obra onde propagou a “poesia científica”. Neles, deixou-nos um excelente exemplo das, de onde se sustenta a Ciência Social. Vejamos o trecho do seu poema Síntese Científica: “Mas só Comte / Pôde, estóico, escalar o alevantado monte / No píncaro do qual via-se a neve branca / Da Nova concepção do mundo reta e franca! / Deixando embaixo Kant, Simon, Burdin, Turgot, / Newton e Condorcet e Leibiniz, – voou / Ele para as alturas mágicas da glória. / Após ter arrancado ao pélago da História /A vasta concha azul da Ciência Social!”. MARTINS JÚNIOR, José Isidro. “Síntese Científica”, citado por Veríssimo, José (1857-1916). História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). Brasília: Editora da UnB, 5ª edição, [1912], 1998, p.251.

221

mesma linha, as poesias de Teófilo Braga, Visão dos Tempos, de 1864, e de Sílvio Romero, Cantos do fim do século, de 1878 (498). Em todos estes autores, o projeto de uma sistematização da vida coletiva – manifesto no conceito de sociedade – buscava tecer uma colcha de certezas legitimadas por leis universais que tiravam de cena algo muito caro ao acento de imprevisibilidade das filosofias da história – o acaso –, noção de difícil utilidade para uma compreensão sistemática da existência humana (499). Preferia-se-lhe, ao invés, uma segura máxima cientista – saber para prever e prever para saber – feita solo-comum das tentativas de cientifização da história (500). Em qualquer dos casos – e este aspecto é para nós da maior

498

Esta relação entre Isidro Martins, Teófilo e Romero, foi diagnosticada pelo seu contemporâneo José Veríssimo, não sem uma estocada crítica, bem ao gosto da época: “acompanharam-no, com efeito, outros moços tão pouco reflexivos e tão pouco poetas como ele. Apenas menos declaradamente seguiu a corrente, a que afluíam também caudais da Lenda dos Séculos, de Vítor Hugo, e da Visão dos Tempos, do Sr. Teófilo Braga, o Sr. Sílvio Romero (Cantos do fim do século, Rio de Janeiro, 1878). Pelo nome que justamente adquiriu nas nossas letras, e pela sua mesma obra poética desta errada tendência, foi talvez Sílvio Romero o mais considerável destes poetas. Sem nenhuma superioridade, mas também sem tamanha insuficiência quanto lhe assacaram, versificou noções científicas, pensamentos filosóficos, conceitos históricos, opiniões sociais com mais ardor que sucesso. Esta poesia científica de que Martins Júnior se fizera arauto (Poesia Científica, Recife, 1883), e que pouco mais cultores teve além dele e do Sr. Sílvio Romero, e nenhum certamente credor de estimação, era ainda, por muitos aspectos, um remanescente do condoreirismo”. VERÍSSIMO, José (1857-1916). História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). Brasília: Editora da UnB, 5ª edição, [1912], 1998, p.251. 499 Lembre-se que na classificação e hierarquização das ciências feita por Augusto Comte, a Sociologia ocuparia o lugar cimeiro, posto que representaria, na perspectiva positivista, um movimento de cientifização da compreensão do homem (noção de que é tão tributário o conceito de “sociedade”), substituindo, assim, as “filosofias da história” de cariz assumidamente metafísico. 500 Veja-se, sobre este saber para prover, as considerações de Fernando Catroga, no trabalho Caminhos do Fim da História, que temos vindo a citar (consultem-se, em especial, as pp.118123). Entretanto, recorde-se o que, a este respeito, diz Émile Littré: “l’histoire était un domaine où la théologie et la méthaphysique pouvaient se croire trionphantes. Elle montrait les religions, qui, révélées par une puissance surnaturelle, enseignaient aux hommes, sans contestation tolerée, ce qu’ils devaient croire de leur origine et de leur fin. A côté des religions s’élévaient les grandes écoles métaphysique, qui, elles aussi, avaient leur droit divin dans l’autonomie ou l’impersonnalité de la raison. La sociologie a changé tout les points de vue. En démontrant que l’histoire ou civilisation est une évolution qui commence par les états les plus élémentaires pour parvenir aux plus compliqués, elle a placé les religions et les métaphysiques sous la conditions commune des conception humaines, c’est à dire sous la condition commune d’être des fruits de certaines saisons sociales, sans rien qui les distingue du reste comme origine et comme destination. Les divers absolus sont venus se fondre, ainsi qu’une cire molle, en ce creuset ; et il n’est plus resté qu’un immense relatif qui embrasse tout”. LITTRÉ, Émile. “Que penser de la

222

importância –, “tanto as filosofias da história como as ciências eram suportadas pela crença comum na racionalidade do universo e na capacidade que a razão humana teria para a decifrar. Simultaneamente, ambas prometiam uma capacidade de previsão que iria aumentar o poder do homem sobre a natureza e sobre o seu próprio futuro: quer a razão científica, quer a razão filosófico-histórica constituíam duas expressões da mesma razão prognóstica e instrumental moderna” (501). Nesta acepção se explica que a centralidade do critério histórico no processo de demarcação identitária (502), encontre expressão tanto nas “filosofias da história” – que buscavam no passado as “lições da História” no sentido de orientar a construção de um futuro projectado –, quanto na aplicação das leis universais e invariáveis que emprestavam concretude e “certeza” à vida em sociedade – através dos conceitos de “raça” e “meio”, como no monismo materialista, por exemplo. É a partir de um recurso, com frequência cruzado ou sobreposto, a estes dois critérios de mobilização da história que vão sendo demarcadas as estéticas identitárias “brasileira” e “portuguesa”.

désuétude qui gagne les spéculation concernant l’origine et la finalité du monde et de ses êtres ?” O Positivismo, Primeiro Ano, n.º3, Fevereiro-Março, 1879, p.156. Grifos nossos. 501 CATROGA, Fernando. Caminhos do Fim da História. Coimbra: Quarteto, 2003, p.122. 502 Não deixa de ser curioso que a maioria das teorias sobre a formação das nacionalidades e dos nacionalismos tenha dado pequena atenção à importância da mobilização da história enquanto agente demarcador da escala cultural de referência – a nação. Parece que o motivo desta desatenção está na consideração tácita de uma evidência – a existência das coletividades enquanto nação – ao invés de surpreendê-la em seu momento de fundação simbólica, de renegociação identitária, de fundamentação histórica. Veja-se, por exemplo, GELNER, Ernst. Dos Nacionalismos. Lisboa: Teorema, 1998; HASTINGS, Adrian. SMITH, Anthony. La construcción de las nacionalidades. Madrid: Cambridge University Press, 2000; HOBSBAWN, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991; ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a expansão do nacionalismo. Lisboa: Edições 70, 2005, entre outros.

223

2. A Herança e o Mal de origem: a lição da história (e sua inversão). Coloquemos então um primeiro nível de reflexão. Justifica-o a percepção da eficácia analítica que pode resultar de um estudo comparado entre o trajeto do português Oliveira Martins e do brasileiro Manoel Bonfim, autores para os quais um estudo descuidado pode limitar-se à verificação do muito que neles há de comum, quando, ao que tudo nos indica, é muito mais ao nível das interpretações diferenciais por eles feitas a partir de matéria de certeza comum, aquilo que importa elucidar (503). Começaremos por Oliveira Martins (504), Seguiremos com a observação da obra de Bonfim e, depois, será altura de medir as direções tomadas por cada um deles a propósito do relacionamento entre as culturas brasileira e portuguesa. A “herança” (portuguesa) e “mal de origem” (brasileiro) representam caminhos opostos de resolver um impasse hermenêutico ao qual a “lição” da história a ambos conduzira.

2.1.

A visão martiniana sobre o significado do Brasil e de um âmbito

luso-brasileiro de referência pode deduzir-se da sua visão de sua História Universal, da História da Civilização Ibérica e da História de Portugal enquanto parcela desta. Contudo, um ano após ter publicado sua História de Portugal, editada em 1879, Oliveira Martins traz a público um livro onde trata especificamente deste assunto: O Brasil e as Colónias Portuguesas, de 1880. Nele, afirma o autor que, desde o início da 503 Uma primeira incursão sobre estas questões pode ser vista em PAREDES, Marçal de M. “História e Escala ou o Brasil e a identidade portuguesa: um estudo sobre J.P. de Oliveira Martins”. Ágora. Vol.11, n.1. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005, p.281-293. 504 A importância da estética identitária portuguesa construída por J.P. de Oliveira Martins pode ser facilmente observada pela constante releitura sofrida por sua obra pelas diversas gerações de intelectuais portugueses que buscavam refundar a nação. Para uma análise das leituras da obra martiniana, veja-se o interessante estudo de MAURÍCIO, Carlos. “O falso Portugal de Oliveira Martins”. Ler história, 38 (2000), pp.57-86. Ver também RAMOS, Rui. A Segunda Fundação (1890-1926). História de Portugal. Volume VI -. Direcção Geral de José Mattoso. Lisboa: Editorial Estampa, 2001, principalmente o capítulo “A Invenção de Portugal”, p.495-518.

224

colonização portuguesa do Brasil, se notam delineamentos e limites internos diferenciados na colônia brasileira: tanto que as diferenças entre Norte e Sul seriam matriciais quer para o desenvolvimento do período colonial – onde essas regiões desenvolviam, cada uma a seu modo, um modelo não coincidente de distanciamento do centro metropolitano do Império Português –, quer relativamente à Independência brasileira (505). Veja-se, desde logo, o que diz o autor: “apresentam-se-nos, na América portuguesa, como duas grandes províncias, cuja história é diversa, porque os seus caracteres naturais e adquiridos foram diferentes até a unificação selada com a independência. Já anteriormente notámos esta diversidade que se evidenciava desde os primeiros tempos coloniais entre o Norte e o Sul do Brasil”. Uma diversidade consequente, pois que essas “duas colónias então extremas […], depois vieram a ser o coração dos dois Brasis do XVII século, em Santos (S. Paulo) ao sul, e em Pernambuco, ao norte” (506). Logo se vê que, desde logo, as diferenças observadas internamento ao Brasil expunham “os sintomas da primeira época de vida da América”. Numa interpretação já focada na quadra quinhentista, essas demarcações traduziam, para Oliveira Martins, que “a região de S. Paulo apresentava os rudimentos de uma nação, ao passo que a Baía e as dependências do Norte eram uma fazenda de Portugal na América”. Ou seja, no decurso destas explicitações, vai ficando clara a equivalência das duas partes brasileiras a uma também diferente ligação a Portugal: uma, o Norte, encabeçada pela Bahia, onde os “jesuítas governavam” e onde estes justamente simbolizavam a ligação a um Portugal “decadente”; e outra, o Sul, capitaneada por São Paulo, exibindo “rudimentos de nação” no quadro de uma “colonização livre” (507). Por que motivo assim sucedia? Como explica 505

MARTINS, J. P. de Oliveira. O Brasil e as colónias portuguesas. Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 7ª edição, [1880] 1978. Idem, ibidem, p.25. 507 Idem, ibidem, p.74-75. 506

225

o autor, “esse Brasil [do Sul], porém, não era geograficamente o centro do império; o seu clima parecia condená-lo à eterna condição de colónia dependente de uma cultura exótica e da escravidão africana, ou à sorte infeliz de um Paraguai jesuíta. Não havia ainda então intensidade de vida colectiva bastante para propor com evidência o dualismo que o observador descobre sempre latente; e foi um caso fortuito que, trazendo à vida económica da colónia um elemento novo, fez surgir, não o dualismo, mas a imediata e absoluta supremacia da metade sul do Brasil central, supremacia consagrada nos meados do XVIII século pela transferência da capital da Baía para o Rio de Janeiro” (508). O aludido acaso – responsável por esta supremacia sulista – teria sido a descoberta das minas de ouro: “na riqueza do ouro encontrou a população de S. Paulo uma força predominante com que impôs a sua supremacia – como homogeneidade, como coesão, como originalidade e autonomia nacional – às províncias do Norte, cuja existência era artificial, na população toda estrangeira, quer nos brancos portugueses, quer nos negros africanos; artificial no regime do trabalho e natureza da cultura: cuja vida, enfim, era a de uma fazenda ultramarina de Portugal, amanhada e cultivada pelo génio dos estadistas, e não a de uma nação nova existindo independente e autónoma, por virtude de uma população fixada e naturalizada no solo sobre que vivia” (509). Distinção entre norte e sul e supremacia da metade sul. De alguma maneira o panorama é conhecido. Na verdade, cabe aqui frisar que esse movimento de transferência do centro político da nação brasileira do Norte para o Sul é análogo ao que aconteceu em Portugal, país que para o Oliveira Martins da História de Portugal, teve justamente na transferência da capital para Lisboa o encontro com a vocação marítima da nação. Mais importante do que representar o final das tensões geradas em torno de uma 508 509

Idem, ibidem, p.74-75. Grifos nossos. Idem, ibidem, p.76. Grifos nossos.

226

unificação com a Galiza, obsessão recorrente desde a formação do reino no século XII, como se sabe, a transferência da capital, do Norte para Lisboa, teria levado Portugal ao encontro de seu papel na História. Entretanto, conforme a compreensão martiniana, aconteceria um movimento análogo no Brasil. Também aqui, na nação “neo-portuguesa” da América, teria ocorrido a transferência da capital do Norte (ou Nordeste, ligado à metrópole) para a região Sul (Sudeste), facto que propiciou o aumento do sentimento de autonomia da nação, representando, portanto, o prenúncio da independência política do Brasil, que neste movimento encontraria, também, seu “destino” histórico. No âmbito deste jogo de similitudes, o reconhecimento, na realidade brasileira, de duas partes distintas, permitia associar cada uma delas a também distintos “portugais”. A operação histórica martiniana não era, por certo, inocente. O Portugal bragantino e o norte e nordeste brasileiro são decadentes justamente pela influência deletéria da Dinastia dos Bragança; e são, também, artificiais pelos negros e brancos portugueses reinóis. Os bandeirantes, autônomos e aventureiros, são os filhos, os “herdeiros” do espírito dos portugueses da dinastia de Avis, continuadores dos grandes navegadores. Ambos desbravadores: uns, da imensidão dos oceanos, outros, da vastidão da terra. Com alguma dose de ousadia, poderse-ia dizer que, para Oliveira Martins, o processo de independência do Brasil começa na tragédia de Alcácer-Quibir – na morte de D. Sebastião, na perda de independência e em todos os fatos posteriores que, para a geração de 1870 em geral, constituem marcos da decadência portuguesa. Com a morte da dinastia de Avis, ao iniciar-se a degeneração portuguesa, depois acentuada com a dinastia bragantina, inicia-se também o processo de separação do herdeiro da dinastia de Avis no Brasil – o Sul. Em última instância, será enquanto expressão da vitalidade da herança de Avis,

227

manifesta no bandeirante paulista (510), que, no Brasil, o Sul supera o Norte, atraindo para si – e tendo como capital o Rio de Janeiro – as rédeas do destino da nação neoportuguesa dos trópicos, em movimento análogo ao ocorrido nas terras lusitanas no momento da transferência da capital para Lisboa. Por onde quer que se olhe, impõe-se o critério da “herança”. O Norte, entendido como uma “fazenda” de Portugal, remete ao contato e à aproximação com a influência – maléfica – da dinastia dos Bragança e dos jesuítas. O Sul, pela sua independência e distância dessa mesma influência, pôde ver germinar a herança do Portugal grandioso, replicando tropicalmente seu auge evolutivo: a semente de Avis florescera na América do Sul, especificamente no sul do Brasil. Nesta leitura martiniana da(s) identidade(s) brasileira(s), a mobilização do critério da “herança” – a herança portuguesa, tal como o tempo a prolonga no Brasil – dá-se em articulação com um processo de delimitação que, trabalhando sobre o elemento histórico, se consuma na atribuição de significâncias diferenciais. Este fenômeno de historicização do limite em articulação identitária, remete-nos à constatação de duas lógicas distintas, presentes na historiografia

martiniana,

no

tangente

à

demarcação cultural:

a

511

“espacialização do tempo” e a “temporalização do espaço” ( ), ambas vislumbradas no exercício de uma mesma matriz hermenêutica da história, mas tendo consubstanciação, na identidade brasileira, sob a forma horizontal ou “espacializada”, enquanto que, na identidade portuguesa, na maneira vertical ou “temporalizada”. Uma consideração da qual se retira uma importante correspondência, do ponto de vista dos relacionamentos 510 Não está hoje ainda cabalmente escrutinada, ao nível da estratégia identitária do regionalismo paulista, a questão da mitificação do bandeirante – um aprofundamento do assunto haverá de passar por uma releitura de trabalhos como, por exemplo, os de Cassiano Ricardo (Marcha para o Oeste) e Alfredo Ellis Júnior (Raça de Gigantes). 511 MARTINS, Rui Cunha. “Estado, tempo e limite”. Revista de Historia das Ideias. Vol.26, 2005, p.308.

228

escalares e das hermenêuticas que lhe subjazem: a de que a matriz cultural que advoga pela existência de “dois Brasis”, nas margens peninsulares do Atlântico, corresponderá ao duplo “auge-decadência”, mobilizado à escala lusitana (512). Ora, deste ponto de vista, se “os Lusíadas são um epitáfio” (513), só até certo ponto o são. Afinal, o fim de ciclo é, simultaneamente, o início de outro. De acordo com a lógica martiniana que expusemos, é provável que, sendo “epitáfio” de um lado, seja um “prólogo” do outro. Do outro lado do Atlântico. Mas, mesmo aqui, só numa parte. Nessa parte do Brasil que, para o autor, representa as propriedades da “raça portuguesa” exponenciadas no “ápice” do período dos descobrimentos e logo soçobradas, mas ainda resilientes no sul brasileiro. Embora o conceito de “raça” possa não ter força como critério de definição da cultura portuguesa, é ele que assegura a relação de um determinado “tempo português” com um determinado “espaço brasileiro”. Nesse sentido, os limites das culturas portuguesa e brasileira formam uma narratividade cíclica na medida em que o epitáfio de uma é o prólogo de outra, a qual, como em um reinício, garante a ligação temporal entre as culturas portuguesa e brasileira, assegurando, na perspectiva martiniana, a perpetuação da “herança”. Todas estas considerações ganham o devido sentido quando enquadradas à luz do que sabemos sobre a compreensão martiniana da história. Só o conhecimento das matrizes teóricas subjacentes à escrita da história em Oliveira Martins nos permitirá retirar as devidas ilações do seu cotejamento com o seu duplo brasileiro, Manoel Bonfim, tarefa comparativa, para nós, da maior relevância. Antes, portanto, recuperemos o essencial sobre a construção historiográfica martiniana, privilegiando os 512 António Machado Pires considera que há uma relação de “bi-polaridade” nas noções de progresso-decadência. PIRES, António Machado. A Ideia de Decadência na Geração de 70. Lisboa: Veja, 2ª edição, 1991. 513 MARTINS, J.P. de Oliveira. História de Portugal. Vol.1. Lisboa: Europa-América, 2ª edição, [1879], 1889, p.25.

229

pontos mais diretamente susceptíveis às suas interpretações “lusobrasileiras”. O primeiro aspecto a reter é o de que o fazer historiográfico de Oliveira Martins se pode demarcar seja das “filosofias da história” tout court, seja das teorias sistemicas de caráter mais naturalizante (como nos evolucionismos de variada matiz) (514). Dito isto, importante mesmo dizer que seu afastamento stricto sensu destas duas vertentes heurísticas não apaga liminarmente a influência, paradoxalmente, de ambas as vertentes. Na verdade, bem mais do que assinalar o aparente paradoxo, deve-se registrar que J.P. de Oliveira Martins promove, heterodoxamente, a combinação de distintos elementos teóricos. Lembre-se de sua convocação do logicismo hegeliano e do raciologismo organicista, exemplo significativo da peculiaridade do seu entendimento da história. Assim o vemos, de modo recorrente, e de maneira expressa na sua Teoria da História Universal, trabalhar sobre a noção de que a história – entendida como “o dinamismo dos corpos sociais” (515) – tende a resistir às tentativas da sua cientifização. Para ele, portanto, a História está mais próxima do fortuito que do constante (e em contracorrente às diferentes formas de combinação dos naturalismos com a crença na positividade do saber. A História, para ele, não permite o estabelecimento de regras ou leis invariáveis. Em bom aprendizado hegeliano, “a personalização simbólica da sociedade traz para o foro nacional as paixões dos indivíduos, e deste facto nasce o carácter dramático da história, os sentimento de um homem

514 Como acentua o próprio Oliveira Martins, “quer o princípio orgânico de um tal sistema da história seja transcendente ou providencial, quer se funde apenas no determinismo de supostas leis naturais, o que é equivalente para o nosso caso, o sistema será sempre quimérico se julgar ser científico, pretendendo incluir todos os povos ou nações e proceder inductivamente”. Idem ibidem, p.4. Os grifos são nossos. 515 Dinamismo este que seria expresso pela “soma indeterminável dos acidentes, origem das regressões, das quedas, das paralisações de desenvolvimento, e também muitas vezes da fortuna dos estados ou nações”. MARTINS, J.P. de Oliveira. “Teoria da História Universal”. In: Política e História. Volume II (1884-1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957, p.1.

230

tornam-se paixões de um povo, e vice-versa” (516). Tal como para o filósofo alemão, também para Oliveira Martins só quando as sociedades alcançarem certo grau de organização societária

haverá história. Esta, poder-se-ia

dizer, seria mais o resultado de uma “evolução” social das coletividades do que ela mesma portadora do gene evolutivo (como o seria para os adeptos de sua cientifização). Porque, na linha do hegelianismo, a consciência de uma dramaticidade na história dita que “no crepúsculo da inconsciência selvagem, não existe drama, e, [onde] não há história [é] porque não há drama” (517). Esta convicção marca a visão martiniana do Brasil (518). Uma visão à qual a lição de Hegel empresta o entendimento do fluxo histórico como o trajeto da manifestação da razão (519), do qual se inferia que os povos extra-europeus – leia-se o Brasil – “entrariam” na História na medida em que tivessem consciência de si como coletividade e caminhassem rumo a um crescente esclarecimento da sociedade. Este fenômeno teria sido “trazido” pelo “contacto” com os europeus. Ou seja, Portugal. Recorde-se que a referida propensão simbiótica das influências de Oliveira Martins obriga a considerar suas migrações desde os postulados de cariz mais hegeliano para os de maior influência naturalista e organicista. Para ele, Portugal “formava uma Nação e um povo, sem constituir, verdadeiramente, uma nacionalidade e uma «raça»” (520). A este respeito, foi já devidamente sustentado que o autor “estava convicto de que, no 516

Idem, ibidem, p.3. Idem, ibidem. 518 Fernando Catroga chama atenção para o fato de que, para Oliveira Martins, “na linha de Hegel, a história é dramática logo no seu próprio ser – o seu aparecimento deriva do ímpeto da Força que, em busca de sua plena realização, exige a luta, a finitude e a morte”. CATROGA, Fernando. “Historia e Ciências Sociais em Oliveira Martins”. In: TORGAL, Luís dos Reis; MENDES, José Amado; CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX e XX. Volume I - A História Através da História. Coimbra: Temas e Debates, 1998, p.143 519 Em 1830 afirmava Hegel que “devemos buscar na História um fim universal, o fim último do mundo, não um fim particular do espírito subjectivo ou do ânimo; devemos apreendê-lo pela razão, que não pode transformar em interesse seu nenhum fim particular e finito, mas apenas o absoluto”. HEGEL, G.W. A Razão na História. Introdução à Filosofia da História Universal. Lisboa: Edições 70, 1995, p.32. 520 Idem, ibidem, p.164. 517

231

fundo, o drama de Portugal repousava na falta de uma identidade racial distinta da composição antropológica do resto da Península Ibérica”. É que “a teoria martiniana da história defende uma inteligibilidade de tipo político para o caso da nação portuguesa. Mas, se o factor político explica Portugal, nunca teve poder para resolver o seu drama. Os acontecimentos políticos que foram sustentando a existência histórica de Portugal têm um carácter acidental, ao contrário dos alicerces naturais que, se fossem distintos, imprimiriam o carácter de necessidade à nação portuguesa” (521). Não nos deteremos na complexidade desta problemática específica, alheia ao nosso objeto de pesquisa. Cumpre-nos, contudo, registrar a dimensão do labor martiniano que dialoga com os pressupostos organicistas e, mais especificamente, com o papel da “raça” e do “meio” na consolidação das nações. É que, chegados a este ponto, melhor se compreende aquele que será um segundo aspecto a reter, no relativo à concepção martiniana de história: a questão da associação entre indivíduo e sociedade, tanto no que isso remete para a análise “sociedade como um ser orgânico”, quanto na legitimidade daí retirada para a constituição de quadros históricos baseados nos retratos individuais. “O essencial – dirá – consiste no sistema das instituições e no sistema das ideias colectivas, que são para a sociedade como os órgãos e os sentimentos são para o indivíduo, consistindo, por outro lado, no desenho real dos costumes e dos caracteres, na pintura animada dos lugares e acessórios que formam o cenário do teatro histórico”. É que, para o autor, “estes dois aspectos são igualmente essenciais: porque a coexistência independente dos motivos colectivos e naturais e dos actos individuais é um facto incontestável na vida das sociedades” (522). 521

PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal: Filosofia. História. Engenharia Social (18651914). Coimbra: Editora Almedina, 2001, p.233. MARTINS, J.P. de Oliveira. História de Portugal. Vol.1. Publicações Europa-América, 2ª edição, [1879] 1889, p.14. 522

232

De certa maneira, esta relação entre indivíduo e sociedade, assim entendida, transparece na própria organização temática de sua “escrita da história”. Veja-se o encadeamento de sua obra historiográfica: História da Civilização Ibérica (1879), História de Portugal (1879), O Brasil e as Colónias Portuguesas (1880), Portugal Contemporâneo (1881). De modo explícito, sua construção historiográfica, ao percorrer um sentido ascendente, temático e cronológico, traduz uma compreensão da história e um entendimento da sociedade em que, como se de um trajeto individual se tratasse: cada “fase” histórica tem correspondência numa dada “forma identitária”. Ou, mais precisamente, numa dada “escala identitária”. “Na História da Civilização Ibérica – esclarece o próprio – tratámos de estudar o sistema de instituições e de ideias da sociedade peninsular, para expor a sua vida colectiva orgânica e moral. Tomámos aí a sociedade como um indivíduo, e procurámos retratá-lo física e moralmente. Agora o nosso propósito é diverso. Tratando da história particular portuguesa, somos levados a encarar principalmente o segundo dos aspectos essenciais da história geral. A sociedade portuguesa, como molécula que é do organismo social ibérico, peninsular, ou espanhol – estas três expressões têm aqui um alcance equivalente –, obedeceu, nos seus movimentos colectivos, ao sistema de causas e condições próprias da história geral da Península Hispânica” (523). Para Oliveira Martins, “metade da história portuguesa está, portanto, escrita na História da Civilização Ibérica: a metade que trata da vida da sociedade como um ser orgânico”. Falta, pois, dar conta da segunda metade: “caracterizar o que há de particular na história portuguesa; resta fazer reviver os seus homens e representar de um modo real a cena em que se agitam: tal é o programa deste livro [da sua História de Portugal]” (524). Se é possível começar por entender a existência de Portugal de um 523 524

Idem, ibidem. Idem, ibidem, p.14-15.

233

ponto de vista extra-nacional, chamando a atenção para as familiaridades do lusitano enquanto ibérico – feito na História da Civilização Ibérica – numa segunda instância – a da História de Portugal –, é forçoso caminhar para além do sentido mais “orgânico”, quer dizer, completar o “retrato”, preencher a moldura ibérica com os “caracteres dos homens”. Porque, segundo Oliveira Martins, “na esfera dos movimentos de instituições e ideias na categoria da vida social, as acções dos homens são sempre absolutamente excelentes; porque a supremacia da sociedade sobre o indivíduo consiste no facto da existência de uma consciência superior da Ideia, no organismo que se diz sociedade” (525). Encarada a ação dos reis e líderes políticos enquanto dramatização deste trajeto coletivo, será através da biografia que o autor exercitará sua compreensão de história como “lição moral”, questão nevrálgica da arquitetura do pensamento martiniano. As evidências de pedagogização da história e, sobretudo, a utilização da biografia como veículo pedagógico da história, denunciam um ambiente pautado pelo critério da Historia Magistra Vitae (526). Como o próprio Oliveira Martins revela, sua intenção em estudar o passado era, assim de tudo, pedagógica: “apresentar crua e realmente a verdade é o melhor modo de educar, se reconhecemos no homem uma fibra íntima de aspirações ideais e justas, sempre viva, embora mais ou menos obliterada. Conhecer-se a si próprio foi, desde a mais remota antiguidade, a principal condição da virtude” (527). Nesta perspectiva, o organicismo sociológico, que percebe a ação dos indivíduos como naturalmente condicionada pelo social, mesclado com os postulados energéticos de um tempoabstracto e não subsumível às leis científicas, leva 525

Idem, ibidem, p.16. CATROGA, Fernando. “O Magistério da História e a exemplaridade do ‘grande homem’. A biografia em Oliveira Martins”. In: PÉREZ JIMENES, A. RIBEIRO FERREIRA, J. FIALHO, Maria do Céu (orgs.). O retrato literário e a biografia como estratégia de teorização política. Coimbra-Málaga, 2004, p.254. 527 MARTINS, J.P. de Oliveira. História de Portugal. Vol.1. Publicações Europa-América, 2ª edição, [1879] 1889, p.16. 526

234

Oliveira Martins a focar a ação de determinados indivíduos, entendida, ao mesmo tempo, como vértice temporal entre passado e presente, e como “resultado” das camadas naturais da sociedade. Da análise destes níveis em presença, destas forças assim atuantes, advirá a construção interpretativa – “lição” do passado a ser utilizada como “prevenção” para o futuro. Em síntese e nas palavras do autor: “afirmámos que a história é uma lição moral. Nos vícios e nas virtudes, nos erros e nos acertos, na perversidade e na nobreza dos indivíduos que foram, há um exemplo excelente. Na sabedoria ou na loucura dos actos políticos e administrativos passados há um meio de prevenir e encaminhar a direcção dos actos futuros. A história é, nesse sentido, a grande mestra da vida” (528). Ora, a mobilização de uma história “mestra da vida” é também recurso central na estratégia discursiva daquele que pode ser consideradoo correspondente brasileiro de Oliveira Martins: Manoel Bonfim. Assim postas as coisas, a questão a equacionar é a seguinte: após no determos sobre a leitura martiniana do Brasil – explorando o essencial sobre a compreensão martiniana da história –, legítimo se torna perguntar se esta última teria, necessariamente, que produzir aquela. Em outras palavras, se as características do edifício teórico martiniano poderiam conduzir à atribuição de um lugar tópico à noção de herança portuguesa no entendimento do Brasil. E, neste plano, a análise da obra, do trajeto e dos suportes teóricos de Bomfim mostra-se profícua. É que, com ele, verificamos ser possível – com base num comum entendimento do papel da história em sua vertente pedagogizante de “mestra da vida” –, chegar a conclusões bem diferentes quanto à leitura do relacionamento lusobrasileiro, do sentido do Brasil para Portugal e de Portugal para o Brasil, bem como do valor da “herança”. E sito porque, muito provavelmente, a matriz teórica comum é apenas parte da dinâmica intelectual. O lugar de 528

Idem, ibidem, p.16. Grifos nossos.

235

fala de onde escreviam os intérpretes pode também ter alguma valia relativamente às questões de matriz teórica. Vejamos a situação com a demora que ela merece.

2.2.

A obra de Manoel Bomfim, estranhamente pouco estudada,

representa um forte investimento reflexivo nas relações entre Portugal e Brasil. Escrito em Paris, enquanto seu autor realizava estudos em psicologia, em 1903 (529), o livro – América Latina: males de origem –, apresenta um acento fortemente emocionado e nacionalista. Suas ideias, conforme explica o próprio, estavam em gestação desde 1897, por ocasião de um parecer que o autor escrevera, na qualidade de Director Geral de Instrução Pública do estado do Rio de Janeiro, em função de um concurso sobre o melhor trabalho acerca da História da América Latina (530). Emprestaremos carácter de exemplaridade à sua obra, na medida em que ela estabelece um matricial “gerenciamento” da história colonial brasileira (e, forçosamente, da relação com Portugal), deixando exposto o cariz referencial da dialogia cultural no âmbito fundacional de um padrão

529

Como o próprio Bomfim revela na “Advertência” a América Latina: males de origem: “Este livro deriva diretamente do amor de um brasileiro pelo Brasil, da solicitude de um americano pela América. Começou no momento indeterminado em que nasceram esses sentimentos; exprime um pouco o desejo de ver esta pátria feliz, próspera, adiantada e livre”. BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, [1905], 1993, p.34. 530 Manifesta-se o autor da seguinte forma: “aqui, onde, forasteiro, escrevo, disponho apenas de notas, reunidas durante nove anos – senão, talvez fosse outra a forma que tivera este trabalho; não variariam, porém, as ideias. Essas mesmas, agora desenvolvidas, já as apresentei, em parte, resumidamente num parecer, prefácio à excelente História da América, livro didático do Sr. Rocha Pombo parecer que deriva justamente dessa preocupação, já antiga. Em 1897, quando o diretor geral de Instrução Pública fez anunciar o concurso de um compêndio de História da América, solicitei a honra de, na qualidade de membro do Conselho Superior, dar o parecer sobre as obras que se apresentassem”. Vale ainda lembrar o que Bomfim, em nota de rodapé, considera sobre o livro de Rocha Pombo, premiado no mencionado concurso. Diz ele que esta obra também “chegara a essa conclusão: que os males atuais da América Latina não são mais que o peso de um passado funesto, conclusão que ora demonstro e documento, quando estudo os efeitos do parasitismo das metrópoles, a que já me referia no parecer”. BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, [1905],1993, p.35.

236

estético identitário brasileiro (531). Neste sentido, parece lícito dedicar atenção à compreensão da história em Manoel Bomfim, questão, aliás, realçada pelo autor, desde o início de sua obra, quando afirma que “os povos sul-americanos se apresentam, hoje, num estado que mal lhes dá direito a ser considerados povos civilizados. Em quase todos eles, em muitos pontos do Brasil inclusive, a situação é verdadeiramente lastimável” (532). Como facilmente se percebe, trata-se de um olhar bastante próximo do sentimento crítico e enérgico dimanado pela brasileira Geração de 1870. Mas, se assim o é, como pensamos, caberá mostrar como este “sotaque” intelectual mobiliza criticamente o passado em seu anseio de modernização e progresso, prestando atenção ao uso dado aos fundamentos teóricos de inspiração cientificista atrás analisados. A avaliação do autor aponta para a existência de um processo de “retardamento” latino-americano diante da “marcha” civilizacional e do progresso capitaneado pelos povos “mais adiantados” da Europa (533). Além de uma diferença de “ritmo”, portanto, haveria também um equívoco no “sentido” deste caminhar coletivo no Novo Mundo. Ao invés de aproximarem-se dos “povos adiantados”, os latino-americanos estariam se distanciando cada vez mais. Por que motivo? Segundo o autor, o caso dos 531

A opinião de Azevedo Amaral representa bem o tom de alguma mobilização da obra de Bomfim que não deixa esconder o invólucro fundacional de seu conteúdo, inclusive articulandoo ao nacionalismo varguista. Diz o autor que “entre os primeiros que contribuíram eficazmente para despertar na consciência brasileira a ânsia de encontra a própria realidade, Manoel Bomfim ocupa lugar de grande destaque. Não é portanto inoportuna a passagem do primeiro aniversário do Estado Novo para fazer da reedição da América Latina uma expressão de reconhecimento nacional a um dos mais esclarecidos precursores do movimento de realismo político, que nos integrou afinal no curso normal da nossa evolução histórica”. AMARAL, Azevedo. “Prefácio à 2ª. edição” In: BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p.32. Esta perspectiva é também ecoada em OLIVEIRA, Franklin de. “Manoel Bomfim, o nascimento de uma nação” In: BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2ª edição. 1993, pp.21-28. 532 BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p.4950. 533 Daí que, para Bomfim, “nações novas deveriam progredir como cem, enquanto as antigas e cultas progridem como cinquenta; só assim lograriam alcançá-las e gozar todos os benefícios que se ligam às civilizações adiantadas. No entanto, marcham lentamente, como dez, isto é, retardam-se, distanciam-se cada vez mais da civilização moderna”. Idem, ibidem, p.49.

237

“novos” países latino-americanos conformaria algumas especificidades histórico-biológicas. Eis sua explicação: “participando diretamente da civilização ocidental, pertencendo a ela, relacionados diretamente, intimamente a todos os outros povos cultos, e sendo ao mesmo tempo dos mais atrasados, e por conseguinte dos mais fracos, somos forçosamente infelizes. Sofremos todos os males, desvantagens e ônus, fatais às sociedades cultas, sem fruirmos quase nenhum dos benefícios com que o progresso tem suavizado a vida humana. Da civilização, só possuímos os encargos: nem paz, nem ordem, nem garantias políticas; nem justiça, nem ciência, nem conforto, nem higiene; nem cultura, nem instrução, nem gozos estéticos, nem riqueza; nem trabalho organizado, nem hábito de trabalho livre, muita vez, nem mesmo possibilidade de trabalhar; nem atividade social, nem instituições de verdadeira solidariedade e cooperação; nem ideais, nem glórias, nem beleza…”, [num quadro onde só existe] “miséria, dores, ignorância, tirania, pobreza”, [resultadas da exploração] “pelo mercantilismo cosmopolita e voraz, imoral e dissolvente, retardatário por cálculo, egoísta e inumano por natureza”, [do qual] “estas pobres sociedades não sabem e não podem se defender” (534).

Frente a esta consideração – e expondo uma compreensão históricosociológica que combina uma visão abstrata do tempo, cara às filosofias da História,

com

um

entendimento

organicista

da

existência

das

nacionalidades –, Bomfim dirá que “um povo não faz revoluções senão quando uma causa profunda, orgânica, o impele a isto; que as revoluções, e cada uma das outras causas dotadas, ora por este, ora por aquele, são efeitos e não causas, efeitos ligados a uma mesma origem, e que é mister buscar cuidadosamente esta origem combatendo-a” (535). Por isso, o autor assevera que “o progresso orgânico é o resultado do esforço contínuo e do exercício combinado de todos os órgãos na luta pela vida” (536). Semelhante raciocínio mais claro ficará se prestarmos atenção à utilização que Bomfim faz de metáforas naturalistas (no âmbito da analogia estabelecida por ele entre o médico, que era, e o crítico da história, que também era). Numa passagem bastante significativa, dedica mais de duas páginas e meia a explicitar os fatos que explicam o porquê de alguns 534

Idem, ibidem, p.49-50. Idem, ibidem, p.50. Grifos nossos. 536 Idem, ibidem, p.57. 535

238

organismos animais se tornarem parasitas. Nesse ponto, o autor versa sobre as características do Chondracanthus gibbosus, um animal marinho, muito rudimentar e simples, que, à primeira vista, parecia tratar-se de um verme, mas que Bomfim demonstrará tratar-se, antes, de um parasita (537). A este pretexto, o argumento do parasitismo biológico serve-lhe de substrato referencial para a análise da formação histórica dos povos peninsulares – entendidos como a origem comum dos povos latino-americanos. Tal como o Chondracanthus, que transitou de animal predador para parasita, o mesmo processo ter-se-ia observado com as nacionalidades colonizadores da Ibero-América. Assim o vemos questionar: “sucederá o mesmo com os organismos sociais? Sim; é impossível negá-lo”. E, numa patente analogia entre organismo e sociedade, considera que “uma causa deprimente e perniciosa para os indivíduos em particular não pode deixar de ser perniciosa e deprimente para a sociedade no seu total”. Afinal, “os organismos sociais regem-se por leis peculiares a eles, mas estas leis não podem estar em oposição com as que regem a vida dos elementos sociais em particular [pois] o todo participa das qualidades das partes, e delas depende”, na medida em que “o vigor de um organismo representa a soma de vigor dos elementos que o constituem; uma condição que é nociva a 537

Apenas a título de exemplo, merece a pena atentar no movimento analítico de Bomfim: “colocai um organismo em condições de vida que o dispensem de exercitar os seus órgãos sensoriais e locomotores, e estes se atrofiarão fatalmente. Foi o que sucedeu com o Chondracanthus: era um crustáceo livre, inteligente – do grau de inteligência que possui o comum dos crustáceos, provido de todos os instrumentos – órgãos e aparelhos – indispensáveis para guiá-lo na procura dos alimentos, ir ao encontro deles, fugir dos perigos, apanhar as substâncias nutritivas, levá-las à boca, triturá-las, digeri-las; munido de um tegumeno que o protegia dos choques exteriores. Por uma circunstância qualquer, ele se achou um dia sobre uma presa viva; tirou dela o alimento; deu-se bem, voltou ainda… Então, ele era apenas um animal depredador. Depois, nem mais se afastou da vítima, apegou-se a ela, fixou-se definitivamente, e todo o seu esforço ou trabalho vital se resumiu, deste momento em diante, em sugar o animal a que se prendia. Aí encontra ele tudo; a vida lhe é muito mais fácil do que se, da natureza, tivesse de tirar diretamente o sustento. (…) Fatalmente, um tal regime reflete sobre a inteligência, e esta se amesquinha, decai, também. A inteligência nutre-se e enriquece às custas das impressões e imagens ávidas do mundo exterior; ela se desenvolve na luta pela conquista dos alimentos, e para escapar aos perigos; num animal que tenha o sustento garantido e a vida abrigada, conservando-se ao mesmo tempo em condições de não receber impressões exteriores – num tal animal, a inteligência atrofia-se necessariamente”. Idem, ibidem, p.56-58.

239

esses elementos considerados, individualmente, é fatalmente nociva ao organismo”. O paralelo traçado por Bomfim entre o progresso social e o progresso orgânico é claro: “diferenciação dos órgãos, especialização das funções, divisão do trabalho – estas são as condições indispensáveis à perfeição” (538). Conforme já se disse, a teoria darwiniana não pressupunha o entendimento da natureza vinculado à ideia de perfeição. Neste ponto, aliás, reside um dos aspectos de maior importância da noção darwiniana da “descendência com modificações”, noção esta que, entretanto, acabará por se ver “amalgamada” com o ideal de perfeição colado à Inglaterra vitoriana através dos trabalhos de Spencer e Haeckel (539). É sabido, por outro lado, que este pano de fundo perfectibilista enquadra, até certo ponto, uma espécie de “naturalização” das filosofias da história que, partindo da impulsão hegeliana, emprestavam um cariz ascendente e progressivo ao desenrolar do tempo histórico. Ora, o que é visível no caso do autor brasileiro é a sua disponibilidade para se situar na articulação daqueles dois contributos, no sentido de utilizar o “tribunal da história” hegeliano para julgar o “parasitismo” ibérico nos nascentes “organismos sociais” da América

Latina.

Este

aspecto

permite

entender

diversas

linhas

interpretativas desenvolvidas por Bonfim. Torna compreensível o processo de julgamento do passado ao qual se entregará. Antes, porém, não podem restar dúvidas de que, se “a marcha do progresso e da evolução é a mesma nos organismos biológicos e nos sociais, é fatal que as circunstâncias capazes de entravar esse progresso nos primeiros há de forçosamente produzir os mesmos efeitos nos segundos”. Bem vistas as coisas, “um organismo social, vivendo parasitariamente sobre outro, há de fatalmente degenerar, decair, degradar-se, evoluir, em suma”. Bomfim, verosímil 538 539

Idem, ibidem, p.59. Grifos no original. Conforme mostramos na segunda parte deste trabalho.

240

leitor dos diversos autores que propagavam as noções de “luta” e de “seleção natural”, recupera-as a um sem-número de interpretações de cariz filosófico-histórico,

como

a

de

que

“uma

sociedade

que

viva

parasitariamente sobre a outra perde o hábito de lutar contra a natureza; não sente necessidade de apurar seus processos, nem de pôr em contribuição a inteligência, porque não é da natureza diretamente que ela tira sua subsistência, e sim do trabalho de outro grupo; com o fruto desse trabalho ela pode ter tudo” (540). Atente-se que, para Bomfim, a luta não se dá na natureza (como em Darwin) mas, numa perspectiva bastante colada ao ideário hegeliano, esta luta dá-se contra a natureza, no sentido de, com os instrumentos da razão, superar os condicionantes naturais. Manoel Bomfim propaga uma visão que liga a ideia de “degeneração” biológica, ou parasitismo, à noção de “degeneração moral”, entendida esta como consequência daquela, para em seguida, agregar estas noções ao espectro de um “julgamento” de fato. Daí que, citando a Nouvelle théorie biologique du crime, de Max Nordau, afirme que o “crime é parasitismo humano”, pois o “degenerado é um débil, e em virtude da lei do menor esforço ele procura explorar o próximo, em vez de viver com ele sobre a base das trocas equivalentes, porque isto lhe é mais fácil”(541). No desenrolar desta ideia sobressairá sua condição de médico que não se furta à mobilização do organicismo social, na certeza de que “uma verdade, porém, é hoje universalmente aceita – que as sociedades existem como verdadeiros organismos, sujeitos como os outros a leis categóricas” (542). E, “como organismos vivos”, explica o autor que “as sociedades dependem, não só do meio, não só das condições de lugar, mas também das condições de tempo. Quer dizer: para estudar convenientemente um grupo social – uma nacionalidade no seu estado atual, e compreender os motivos pelos 540

Idem, ibidem, p.59-60. Idem, ibidem, p.61. 542 Idem, ibidem, p.51. 541

241

quais ela se apresenta nestas ou naquelas condições, temos de analisar não só o meio em que ela se acha, como os seus antecedentes. Uma nacionalidade é o produto de uma evolução; o seu estado presente é forçosamente a resultante de ação do seu passado, combinada à ação do meio” (543). E porque as analogias com o naturalismo organicista permitemlhe, e porque é forte sua convicção sobre a relevância do “fator tempo” na obtenção do diagnóstico, logo lembrará os ares de médico-historiador: “é o estudo, o conhecimento deste passado que o vai instruir definitivamente, e dizer se o indivíduo pode, ou não, curar-se. A cura depende, em grande parte, da importância desse «histórico», principalmente quando as condições presentes são relativamente favoráveis, e são tais que a elas o indivíduo se poderia adaptar facilmente, se não tivesse contra si uma herança funesta. Então, num tal caso, o empenho do clínico é dirigido todo, não contra o meio atual, pois que este é propício – mas contra o passado, para vencê-lo e eliminá-lo” (544). Logicamente, então – será esta a decorrência de Bonfim – que o “histórico” deste paciente atrás descrito é semelhante ao caso das nacionalidades latino-americanas: afinal, “não há nada que justifique ou explique esse atraso em que se vêm, as dificuldades que têm encontrado no seu desenvolvimento. O meio é propício, e por isso mesmo, diante desta anomalia, o sociólogo não pode deixar de voltar-se para o passado a fim de buscar as causas dos males presentes. Há um outro fator a indicar bem expressamente que é nesse passado, nas condições de formação das nacionalidades sul-americanas, que reside a verdadeira causa das suas perturbações atuais: é que, por um lado, estas perturbações, estes males são absolutamente os 543

Dirá o médico que o “mesmo sucede com os organismos biológicos: se, num espaço, num meio muitas vezes restrito, único e igual, encontramos organismos de uma diversidade infinita, é porque eles não dependem só do meio atual, mas também das condições e formas anteriores, que a hereditariedade conserva – representam uma herança adaptada. É por isso, ainda, que uns se mostram mais perfeitos do que outros; é nestes – nos mais perfeitos – que a adaptação é mais completa; neles, o passado não pesa tão fortemente que embarace as adaptações indispensáveis. Isto se dá quanto às espécies, e se dá também quanto aos indivíduos em particular. Que vem a ser a doença? Uma inadaptação do organismo a certas condições especiais. Por que razão nem todos os indivíduos adoecem ao mesmo tempo, por uma mesma causa? Porque uns são mais resistentes; quer dizer, mais adaptáveis a essas causas do que outros”. Idem, ibidem, p.52. Grifos nossos. 544 Idem, ibidem, p.53. Grifos nossos.

242

mesmos – mais ou menos atenuados – em todas elas; e, por outro lado, estes povos tiveram a mesma origem, formaram-se nas mesmas condições, foram educados pelos mesmos processos, e esses males eles os vêm sofrendo desde o primeiro momento. Pois, se os antecedentes são comuns, se os sintomas são os mesmos, se estes continuam com aqueles – é bem natural que nestes antecedentes esteja a verdadeira causa” (545).

Daí que convide seu leitor a analisar esse passado para ver até que ponto ele explica “os vícios atuais, até que ponto tais vícios derivam da herança e educação recebida” (546). E o que Manoel Bonfim conclui a esterespeito? Que indicações retira das suas investigações analíticas em torno da “formação” histórica da América Latina? Acaso perceberá aí alguma especificidade luso-brasileira frente às relações “castelhanas”, entre espanhóis e americanos, ou, ao contrário, perceberá um único fio-condutor na colonização ibérica no Novo Mundo? Segundo ele, “ao fazer este exame necessário da vida e do caráter das nações colonizadoras da América do Sul, um fato impõe-se logo à nossa atenção: é que elas padecem com as naturais modificações de meio – os mesmo males que as nações da América Latina. Nas duas – Espanha e Portugal, que, no caso, figuram como uma unidade – o mesmo atraso geral: uma geral desorientação, porventura, um certo desânimo, falta de atividade social, mal-estar em todas as classes, irritação constante e, sobretudo, uma fraqueza tão acentuada, que a muitos se afigura, também, como uma incapacidade essencial a manterem-se soberanas e livres a par dos outros povos. Isto é muito para notar, principalmente porque essas nações foram, em tempos relativamente bem próximos, excepcionalmente poderosas, ricas e adiantadas” (547). Eis aqui um ponto de vista que merece todo o nosso interesse: o tratamento conjunto de Portugal e Espanha, que conformariam uma unidade histórica e étnica, em escala ibérica, tomados como base para o entendimento da formação brasileira, fazem ressoar nele um eco da 545

Idem, ibidem, p.53. Grifos nossos. Idem, ibidem, p.54. 547 Idem, ibidem, p.54. Grifos nossos. 546

243

História da Civilização Ibérica, de Oliveira Martins. Vejamos a fortuna desta similitude.

2.3.

Para o intelectual brasileiro, durante os séculos XVII e XVIII, “a

Ibéria, que havia dado ao mundo Cervantes, Camões, Murilo, Lope de Vegal, Rivera… desaparece, involui, degenera; não se vê um só nome espanhol ou português entre os homens que fundaram a cultura moderna e dominam a natureza, ou naquelas que refazem a filosofia racionalista, que iluminará as gentes na conquista da justiça e da liberdade”. O reflexo das críticas feitas pela Geração de 70 portuguesa, como nas Conferências do Casino, parece bastante claro. O jogo de contraste entre o glorioso passado ibérico e o anseio de modernização atrelado ao sentimento de decadência ecoam na obra de Manoel Bomfim. Para ele, “enquanto os ânimos, fortalecidos pela ciência, vão lutando e se vão liberando, aqui e ali, aos poucos, mas continuamente, até chegar a esse estado de emancipação de espírito dos fins do século XIX, a Espanha apropria-se da Inquisição para eliminar sistematicamente todas as aspirações de liberdade e ergue em sistema a escravidão espiritual – degrada-se…” (548). Desde os fins do século XV, afirma Bomfim, “a Espanha está constituída nação moderna, livre, organizada, vitoriosa e à custa dos seus próprios esforços. Este trabalho íntimo de organização fora prodigioso, único talvez, do que se conhece na história dos povos. Daqueles aluviões sucessivos de gentes – fenícios, celtas, cartagineses, romanos, godos, suevos, alanos, mouros, árabes… ela fizera uma nacionalidade única, perfeitamente caracterizada, homogénea e forte. Foi um cadinho de povos e raças, tradições e costumes – depurou, eliminou os elementos irredutíveis, irritantes; fundiu, congregou, numa massa única, o resto. O cadinho ferveu doze séculos –

548

Idem, ibidem, p.54.

244

1.200 anos de luta, guerra contínua!” (549). Perante tal quadro, “qual o efeito destes onze séculos de guerra constante e generalizada sobre o carácter das nacionalidades ibéricas?… De que forma esse passado vem influir sobre o futuro?” (550). O passado ibérico de lutas contra os árabes teria caucionado duas vertentes de elementos condicionantes da formação dos povos que, depois, colonizaram a América Latina: “a educação guerreira, exclusivamente guerreira, a cultura intensiva dos instintos belicosos de centenas de gerações sucessivas; o regime a que eles se afizeram durante esses longos séculos – de viver de saques e razias; o desenvolvimento sempre crescente das tendências depredadoras; a impossibilidade, quase, de se habituarem ao trabalho pacífico” (551). Significa isto que, para Manoel Bomfim, a guerra e a cobiça, a depredação e a exploração, são componentes estruturais dos povos ibéricos. Características estas advindas de uma longa tradição que remete ao processo de reconquista da Península junto ao Sarraceno, tornado elemento fundante do carácter do português e do espanhol. Fatores de onde teria provindo uma inexorável apetência para a reprodução, no Novo Mundo, das práticas “herdadas”: a depredação, a exploração, a rapina, a aversão ao trabalho, etc. Um flagrante esqueleto neolamarckiano – isto é, a transmissão dos caracteres adquiridos – logo coberto com os panos da moral do Iluminismo eurocêntrico. Será este figurino híbrido – um neolamarckismo moralista – que consubstanciará, no autor, sua teoria sobre o “parasitismo ibérico” e sua ação deletéria nos povos latino-americanos (552).

549

Idem, ibidem, p.72. Idem, ibidem, p.71. Recorde-se que Oliveira Martins fazia semelhante questionamento. 551 Idem, ibidem, p.74. 552 Vejamos mais um pouco o argumento do brasileiro. Segundo ele, “um povo que viveu continuamente em guerra por oito séculos, viveu certamente de rapinas e saques por todo esse tempo. Tornou-se um regime normal; e era fatal: porque estava nos hábitos da época, porque os ódios e as vinditas estimulavam a isto, porque a perversão dos instintos guerreiros leva 550

245

Bomfim dirá que se a Espanha só “queria conquistar é porque o movimento adquirido a precipitava a isto; porque se habituara a viver exclusivamente do fruto das conquistas; porque não sabia fazer outra coisa senão guerrear; porque cultivara, intensamente, por onze séculos, os instintos guerreiros e agressivos, e guerrear se tornara para os homens uma necessidade orgânica; porque, em contato por oito séculos com o árabe depredador e mercantil, tomara gosto ao luxo e à riqueza facilmente adquiridas; porque aprendera com ele a ter horror e repugnância ao trabalho normal, sedentário, verdadeiramente produtor” (553). Por isso, indaga em tom algo inquisitorial: “que juízos se pode fazer da beleza moral dessas almas, que passavam a existência a cortar de açoites as carnes de míseros escravos e que aceitavam como legítimo viver do trabalho destes desgraçados, cuja vida será um martírio contínuo?!” (554). Inquietações tanto mais justificadas porquanto, como ensinava Oliveira Martins, cuja obra Bonfim bem conhecia e cita em demasia, “é na história ultramarina, vasto campo onde os caracteres podiam bracejar mais à larga que todas as extravagâncias e bizarrias do temperamento peninsular se mostram mais livremente” (555). Recorde, a este respeito, que Oliveira Martins já havia escrito trechos muito semelhantes àqueles que, assinados por Bonfim, acima transcrevemos (556). Conforme afirmamos, ao não diferenciar, nem racial nem moralmente, a formação de Portugal e da Espanha, tratando-os invariavelmente os povos belicosos a se fazerem depredadores, e, finalmente, porque o trabalho normal, pacífico, era quase impossível”. Idem, ibidem, p.76. 553 Idem, ibidem, p.81-82. Grifos nossos. 554 Idem, ibidem, p.61. 555 MARTINS, J.P. de Oliveira História da Civilização Ibérica. Lisboa: Guimarães Editores, [1879], 1994, p.254-255. 556 Veja-se o que diz J.P. de Oliveira Martins em O Brasil e as Colónias Portuguesas: “Esgotadas as minas, banida para as tradições da história a caça dos indígenas, abolida em princípio a escravidão, o no Brasil remiu-se do fardo da herança colonial. A agricultura, fonte de um comércio abundante e próspero, exige dotes diversos e melhor educação”. MARTINS, J. P. de Oliveira. O Brasil e as Colónias Portuguesas. Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, [1880], 1978, p.151.

246

conjuntamente, o autor brasileiro aproximava-se do português:

ambos

fazem da escala (neo)ibérica uma referência identitária de primeira grandeza. Estas aproximações se reforçam ao verificarmos o modo expresso como Oliveira Martins é referido no livro de Bomfim (embora nem sempre deixe explícita sua fonte). É o que sucede com a apropriação bomfiniana de partes do quadro histórico identitário martiniano sobre Portugal: para os portugueses, “a vergonha é trabalhar, lavrar a terra. «A sociedade que se desenvolve num modo espontâneo, diz Oliveira Martins em estilo de alta sociologia, à lei da natureza (guerreando e saqueando), vai sucessivamente definindo as ideias coletivas, a maneira que progride na série das formas evolutivas». A idéia coletiva aqui é varrer a Terra – saque universal” (557). E se Oliveira Martins havia já considerado a História da Civilização Ibérica como um caso de “teratologia histórica” (558), não parecerá absurdo, para Manoel Bomfim, a utilização dos mesmos juízos históricos martinianos no sentido de mostrar a necessidade da cultura brasileira se demarcar da portuguesa. De igual modo, não lhe repugnará exercitar as analogias históricas para dramatizar o período colonial, como não lhe merecerá reservas a adequação da sua linha interpretativa às fases históricas definidas para o processo evolutivo português, sustentando que ao findar o período das reconquistas, sucederá o período das depredações e saques. Afinal, era certo que, no colonialismo português, “fazia-se a rapina, porque a guerra necessária a isto obrigava; agora, quer-se a guerra pelo amor do saque e da rapina. É o segundo período – o da expansão depredadora:

sede

de

riqueza,

voracidade

desencadeada,

apetites

insaciáveis” (559).

557

BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p.82. OLIVEIRA MARTINS, J.P. História da Civilização Ibérica. Lisboa: Guimarães Editores, [1879], 1994, p.54. 559 BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p.82. 558

247

A transposição orgânica da “herança” da metrópole portuguesa para as elites brasileiras fica nítida num quadro histórico – narrado em América Latina, e muito ecoado doravante, por um sem-número de obras –, que considera que a independência brasileira exprimiria um fenômeno de transporte parasitário grave, na medida em que “não só não houve alteração essencial no regime governativo, como não foi destituído um só dos altos funcionários. Era o Estado-colônia; um dia, espantada pelas águias de Bonaparte, partiu-se de lá da metrópole a coroa, e veio achar-se aqui, substituindo o governador geral; depois retirou-se o rei, deixando aqui o príncipe em seu lugar-tenente – e o Estado sempre o mesmo, mantendo a orientação tradicional. Foi então quando o príncipe, lugar-tenente da metrópole, chefe do Estado-colônia, declarou nacionalizar-se brasileiro, e, em vez de «futuro rei de Portugal e do Brasil», qual era, passou a «Imperador do Brasil e futuro rei de Portugal»”. Tal relação entre Estado e sociedade permanecerá posteriormente à Abdicação de D. Pedro I, pois ele “partiu, e a máquina ali ficou no trilho: regência, maioridade, rei, revolução, ditadura, presidentes… várias gentes se têm sucedido nas funções, mas o ponto de vista não muda” (560). Mais ainda, Bomfim vai recordar factos históricos da independência nacional – isto é, do marco fundacional colectivo – no sentido de lhes conferir alguma unidade enquanto reflexo da permanência da moral colonial na sociedade brasileira. Diz ele que, “repassando-se os fatos e a história da independência nas colónias latinas da América, se vê que ela se divide em dois períodos: 1) resistência violenta dos refractários à ideia emancipadora; 2) transigência dos mesmos, sua adesão aos movimentos. Em nenhum país estas duas fases se acusam melhor do que no Brasil. Em 1789-92 esquarteja-se a Conjuração mineira; em 1817, os independentes de Pernambuco são combatidos, vencidos e executados implacavelmente; em 1822, a 560

Idem, ibidem, p.192.

248

independência é proclama pelo próprio «futuro rei de Portugal». É característico.” (561). Para ele, “no Brasil, os refratários e realistas ainda foram mais felizes, porque tiveram um príncipe de sangue, o próprio herdeiro da coroa da metrópole, para chefe da monarquia com que eles fizeram aqui a independência”(562). O verdadeiro momento “emancipador” brasileiro teria ocorrido em Pernambuco, com os republicanos de 1817. Libertação “abafada”, portanto, apesar de ser óbvio, para Bomfim considerava que o “Brasil representava desde muito tempo os elementos constitucionais de uma nacionalidade”. E se, entretanto, esta se emancipara, fora porque “as ideias de liberdade andavam por toda parte” e porque “a colônia era forte demais, e Portugal, decrépito, era a sombra, apenas, de uma grandeza passada e efémera: crescera e fora logo anulado pelo parasitismo” (563). Importante é perceber, no decurso desta toada discursiva, que foi exatamente pela influência enorme dos “retratos históricos” de Portugal pintados pelas cores do “vencidismo” de Oliveira Martins que Manoel Bomfim pôde formatar boa parte da sua leitura da realidade portuguesa e a respectiva actuação nos trópicos. Foi-lhe igualmente possível compor quadros da vida colonial como o seguinte: “É esta a síntese da vida económica das novas nacionalidades por todo o tempo de colónia: o senhor extorquindo o trabalho ao escravo, o negociante, o padre, o fisco e a chusma dos subparasitas, extorquindo ao colono o que roubara ao índio e ao negro. Trabalhar, produzir, só o escravo fazia” (564). Tal como Oliveira Martins, Manoel Bomfim considera que “a escravidão na América do Sul 561

Idem, ibidem, p.220. Faz-se notar que também Oliveira Martins chamava atenção para a “comunidade de sangue”, seja em escala ibérica, seja em escala ibero-americana. Veja-se, por exemplo, seu texto publicado no Nacional, em 27/01/1891, posteriormente editado em MARTINS, J.P. de Oliveira. Dispersos. Tomo II. Lisboa: Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, 1824. Idem, ibidem, p. 227 563 Idem, ibidem, p. 227. 564 Idem, ibidem, p.131. 562

249

foi a abjeção moral, a degradação do trabalho, o embrutecimento e o aniquilamento do trabalhador; e foi também a viciação da produção, gerando males de efeitos extensíssimos, que teriam, todavia, desaparecido com o progredir normal das nacionalidades nascentes”(565). É verdade que, neste ponto, o escritor português introduzia um elemento de escusa de responsabilidades. Reconhece, com efeito, que “a filantropia moderna tem acusado os portugueses de inventores deste comércio de nova espécie; e a nosso ver com fundamento, por isso nos coube a sorte de possuirmos o litoral da África e boa parte da América tropical. Tínhamos a produção e o consumo, a mercadoria e o mercado, dentro dos vastos limites das nossas colónias”. Mas pergunta: “Era, porém, um crime como se pretende, o escravizar o negro e levá-lo à América? Eis aí uma questão mais grave a que nós respondemos negativamente, apesar da crueldade e da fereza dessa espécie de comércio. Não menos ferozes e horrendos nos parecem, também, os morticínios e a escravidão com que os Romanos submeteram a nossa Península; e esse foi, entretanto, o duro preço por que ela pôde entrar no grémio dos povos de civilização latina. Também a escravidão do negro foi o duro preço da exploração da América, porque, sem ela, o Brasil não se teria tornado no que vemos” (566). Na realidade, se Oliveira Martins assim se permite referir ao escravismo, é porque o compreende no âmbito de um “ciclo” histórico consumado – um corsi e recorsi à Vico. Pacientes na Antiguidade e agentes na Modernidade, os portugueses já teriam completado todos os ciclos vitais desta instituição humana. E mais: o autor ainda afirma que, sem o escravo negro levado à América pelas mãos portuguesas, o Brasil não teria se tornado uma nação desenvolvida, conforme a compreendia ele no último quartel dezenovista. Ora, tal como Oliveira Martins, Bomfim crê na 565

Idem, ibidem, p.133. MARTINS, J.P. de Oliveira. O Brasil e as Colónias Portuguesas. Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 7ª edição, [1880], 1978, p.55-56. 566

250

capacidade de regeneração das sociedades: “as sociedades humanas têm energias regeneradoras de que mal desconfiamos”. No entanto, se o português tinha na modernidade parisiense o parâmetro a contrastar, o brasileiro já busca nos Estados Unidos o diferencial explicativo, com se percebe quando afirmava que “na América do Norte, os estados do Sul estão, hoje, em situação bem próspera, apesar da escravidão. É que as colônias inglesas puderam organizar-se desde logo segundo convinha aos seus próprios interesses, e não foram vítimas de um parasitismo integral, como esse que as metrópoles ibéricas estabeleceram para as suas colónias” (567). Por isso, incontornável lhe parece realçar os “desastrosos efeitos” do escravismo português para a nascente sociedade brasileira. A

evidência

dramaticamente

pelo

da

decadência

próprio

lusitana,

Oliveira

Martins

tal

como nas

suas

narrada obras

historiográficas, permitir a Manoel Bomfim uma radicalização da sua própria interpretação (568). É que, para este fito, por paradoxal que possa parecer, nenhuma fonte seria mais adequada aos seus propósitos que a interpretação martiniana, como se vê, claramente, neste excerto: “Referindo-se à metrópole, diz Oliveira Martins: «Se a guerra é antes um sistema de rapinas que uma sucessão de campanhas, a justiça é também mais a expressão arbitrária de um instinto do que a aplicação regular de um princípio». Esse instinto é o parasitismo, e na colónia é que ele se tornou, por sua vez, o inspirador único de todas as justiças”. Eis o terreno preparado para a condenação sumária da “herança” portuguesa: “fora disto, não há mais nada: nem polícia, nem higiene, nem proteção ao fraco, nem garantias, nem escolas, nem obras de interesse público… nada que

567 BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p.133-134. 568 Segundo Bomfim, “quando foram instituídas as colónias, as nações ibéricas ainda não tinham completado a sua organização; ou, melhor: a evolução política havia parado; a decadência, a degeneração, começara já”. Idem, ibidem, p.141.

251

represente a ação benéfica e pacífica dos poderes públicos” (569). Dois motivos, para Bonfim, teriam tido papel fundamental para que o parasitismo português conseguisse raízes no solo brasileiro: i) “o Brasil era, naquela época, a única e verdadeira colónia portuguesa, e para cá vinham quase todos os que, no reino, não obtinham viver diretamente ou indiretamente do Tesouro real”; e ii) “emigrando para o Rio de Janeiro, a corte trouxera consigo uma sobrecarga desses elementos refratários – o que havia de melhor no gênero”. Neste ponto, convirá atentar, uma vez mais, para o facto de que a fonte deste “retrato” histórico dos elementos “refractários” que chegam ao Brasil, quando da transferência da Coroa, é, justamente, J.P. de Oliveira Martins. A pujança pictórica da narrativa martiniana salta aos olhos, citada explicitamente no livro do brasileiro: “«Enxame de parasitas imundos, desembargadores e repentistas, peraltas e sécias, frades e freiras, monsenhores e castrados. Os botes formigavam carregando, levando, vasando bocados da nação despedaçada… monges, desembargadores, toda essa ralé de ineptos figurões de lodo… Uma nuvem de gafanhotos, que desde o século XVII devorava tudo em Portugal, e ia pousar agora no Brasil, para, em casa, o dirigir mais à vontade»” (570).

Diante de tal quadro – e de outros semelhantes –, composto pela pena de um português, não há que estranhar o aproveitamento que dele faz Bomfim para sua teoria do parasitismo e apontar para o passado – para a “herança” portuguesa – na hora de definir o verdadeiro mal de origem brasileiro. Um passado colonial que ganha tonalidade de evidência histórica num sentido que extrapola, inclusive, o “fato passado” mobilizado a título de res gestae, indo mais além, no sentido em que indica o quinhão sociológico a ser combatido; ou não fosse certo, para Bomfim, que o Estado brasileiro, pelos seus vícios e degradação completa, representa

569

Idem, ibidem, p.143. O trecho citado também consta na História de Portugal, à página p.237 da edição já referida. BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, p.227.

570

252

ainda o passado colonial português (571). Esta será a bactéria a combater: o lastro da memória lusitana na sociedade brasileira, que o autor isola, qual “parasita”, como responsável pelo “mal de origem” da América Latina. Afinal, o colonialismo português “não era, como nos Estados Unidos, um regime político espontâneo, inspirado pelas necessidades próprias das sociedades nascentes, não era sequer um regime fictício, artificial, mas lógico, estável, garantidor e progressista, ao qual as nacionalidades em embrião se pudessem moldar com o tempo. Não; era um regime antipático, iníquo, arcaico e incompleto – era o sistema da metrópole, desnaturado o preciso para ser adaptado ao programa parasitário, imposto à colônia” (572). Esta constatação, porém, não resolvia o problema de todo. Havia um agravante importante. O fato de que o organismo parasitado derivar do organismo parasita, sendo por ele educado, gera uma situação contrditoria e exasperadora: “o novo organismo nacional procura, ao mesmo tempo, imitar e repelir as instituições e o regime da metrópole”. Descortinam-se, com isso, duas tendências fatais às novas nacionalidades latino-americanas, “a hereditariedade, imitação e educação aproximando-as dos costumes e processos políticos da metrópole; a repulsa, a antipatia e o horror à opressão e espoliação de que foram vítimas, afastando-as daquilo que a hereditariedade e a educação lhes impõem. Nacionalidades saídas das nações ibéricas, mas ao mesmo tempo oprimidas e exploradas por elas, as repúblicas sul-americanas viverão por muito tempo ainda neste conflito permanente consigo mesmas” (573). Citando particularmente a Hérédité psycologique, de Ribot, Manoel Bomfim considera a existência de “caracteres psicológicos” transmitidos 571 Para o autor, no Brasil do final do século XIX, “o Estado é o inimigo, o opressor e o espoliador; a ele não se liga nenhuma idéia de bem ou de útil; só inspira ódio e desconfiança… Tal é a tradição; ainda hoje se notam estes sentimentos, porque, ainda hoje, ele não perdeu o seu caráter, duplamente maléfico – tirânico e espoliador”. Idem, ibidem. 572 Idem, ibidem, p.144. 573 Idem, ibidem, p.154-155.

253

hereditariamente pela colonização ibérica às sociedades latino-americanas (574). Pelo que, focando a identidade latino-americana, em relação à ibérica, Manoel Bomfim considera que “no fundo, as qualidades dominantes de caráter são as mesmas, mostrando bem claramente o parentesco que entre elas existe” (575). Apesar das variações relacionadas com o meio, a “herança” ibérica que os povos latino-americanos portam justificam a persistência de “qualidades dominantes de caráter”, ingrediente moral ibérico conservado em suas ex-colônias. De cariz materialista-monista – fundamento teórico em que, recorde-se, a correlatividade entre matéria e espírito é esteio epistêmico –, sua compreensão da hereditariedade entre os povos não se resume apenas às questões raciais, por assim dizer, incorporando também o entendimento de uma transposição “psicológica” e conformando, com isso, uma transferência moral, facto que ajuda a que se lhe agreguem as colorações de ordem moral de um julgamento no “tribunal da história”. Assim sendo, cabe saber, dentre as características morais herdadas, qual a que deixa claro o grau de parentesco ibérico. A este respeito, Bomfim é taxativo: “das qualidades a nós transmitidas, a mais sensível e mais interessante – por ser a mais funesta – é o conservantismo, não se pode dizer obstinado, por ser, em grande parte, inconsciente, mas que se pode chamar propriamente – um conservantismo essencial, mais afeito que intelectual”, pois, “na prática, todos esses homens das classes dirigentes são escravos passivos da tradição e da rotina; são ativos apenas para opor-se a qualquer inovação afetiva, a qualquer transformação real, progressista”. 574

Junte-se a isto o retrato histórico de Oliveira Martins e o resultado estará dado: “se o fato da hereditariedade social não fosse coisa evidente por simples raciocínio, o espetáculo das sociedades ibero-americanas, em comparação aos povos da península, seria bastante, por si só, como prova completa. Não é que, ao transitar-se por esta ou aquela parte da América do Sul, se tenha a impressão de estar em Sevilha ou em Trás-os-Montes. Os povos aqui variaram, e o meio é outro. Mesmo nos limites de um só país e sob as mesmas instituições, a feição moral das populações se transforma um tanto; a variação é, a par da hereditariedade, o fator necessário na evolução dos seres vivos”. Idem, ibidem, p.157-158 575 Idem, ibidem, idem.

254

Trata-se de uma “tendência instintiva ao conservantismo” (576). Daí uma perplexidade: “a história nos mostrará, nas nacionalidades sul-americanas, um partido «conservador», pesando decisivamente sobre a marcha das coisas públicas. Pergunta-se agora: que é que havia então para conservar?”. Perceba-se: a elite latino-americana é, para ele, a representante da “herança” ibérica; uma herança nefasta; donde, sua crítica social aponta para as elites enquanto verdadeiras representantes do passado (577). Daí a reincidência na questão: “que pretendem então defender, deste passado?… Ele é uma série de crimes, iniqüidades, violações de direitos, resistências sistemáticas ao progresso. Que é que pretendem conservar? Só se é justamente a decadência, a resignação social, e tudo mais que, prendendo-nos ao passado, se opõe obstinadamente à vida e ao progresso, que não é mais que a perda incessante de hábitos, a luta contra os costumes estabelecidos, a adoção do que é moda e do que é novo, em oposição à tendência dos preguiçosos e tímidos a imitar a história (Tarde)” (578). “Imitar a história”. Eis o “calcanhar de Aquiles” da noção de correlatividade, implícita à compreensão da hereditariedade, consoante o materialismo-monista: ao mesmo tempo moral e natural, em todos os casos, a transmissão das qualidades ibéricas era, para Bomfim, o verdadeiro óbice a ser superado em direcção a um real progresso das sociedades latinoamericanas (579). Daí que seja o “passado” o obstáculo a vencer, pois o “conservadorismo” das elites representaria, ainda, o jugo colonial. Este só seria ultrapassado pela “ilustração”, pela “ciência”, em estreita ligação às filosofias racionalistas da história. Em ordem a este desiderato, Bonfim não hesita em promover a combinação de um Gabriel Tarde e de um Nietzsche, 576

Idem, ibidem, p.159-160. Grifos nossos. Não deixa de ser curiosa a mobilização da obra de Manoel Bomfim no âmbito dos estudos sobre a “superação” do “atraso brasileiro”, como, por exemplo, em SILVA, José Maria de Oliveira. “Manoel Bomfim e a sociedade do futuro”. Educação & Sociedade, n.º22, 1987. 578 Ibidem, idem, idem. Grifos nossos. 579 Para uma reverberação deste posicionamento de Bomfim, tomado como “radicalismo”, ver CÂNDIDO, Antônio. “Radicalismos” In: Revista Estudos Avançados, Vol.4, n.8, 1990, p.4-38. 577

255

mobilizados à moda de uma Magistra Vitae monista, na altura de explicar que, mais que superar, se trata de desrespeitar o passado como condição para o desenvolvimento, como vitória da “razão” contra as forças “herdadas” da natureza degenerada: “Nietzsche tem razão quando diz ser o irrespeito e o desprestígio a condição essencial de todo o progresso. As nações sul-americanas têm que recompor toda a sua vida política, administrativa, econômica, social e intelectual; se não querem morrer entanguidas, mesquinhas e ridículas, têm que travar uma luta sistemática, direta, formal, conscientemente dirigida contra o passado, respeitando apenas a sociabilidade afetiva, natural entre as populações, e os sentimentos de hombridade e independência nacional, característicos destes povos. Tudo mais será tenazmente combatido – é o meio de levar estas sociedades ao progresso, e colocá-las a par de outros povos, e de ganhar a distância enorme que nos separa das nações verdadeiramente cultas e progressistas” (580).

Deste ponto de vista, o conservadorismo das elites é entendido como um resultado do passado colonial, pois “não é só por interesse, é por herança, por educação”, que se instalam o sentimento de “desconfiança” e “o horror ao progresso”, uma “antipatia” que “é incontestavelmente herdada dos povos colonizadores que o parasitismo tornou conservadores ferrenhos”. Trata-se, no fundo, para Bomfim, da “essência do parasitismo”: um organismo quando principia a viver às custas de outro cessa de progredir, pois já não tem necessidade. Assim sendo, gera-se-lhe, pelo contrário, um deletério interesse de não alterar a sua situação. Sendo o progresso só alcançável no âmbito de uma “luta” contra o passado, e entendendo-se este como o palco “natural” da “herança ibérica, compreende-se que, assim sendo, a superação do fardo ibérico, verdadeiro “mal de origem” latino-americano, só possa vir, entretanto, com a adopção de uma organização intelectual e moderna que tinha nos países centroeuropeus sua fonte emissora. Entendendo que somente a adoção da ciência mais avançada propiciaria a superação dos vícios naturais herdados da decadência ibérica e que tanto obstaculizavam o florescimento das 580

Idem, ibidem, p.160-161. Grifos nossos.

256

sociedades novas, o autor de América Latina: males de origem articulava, de modo muito particular, os preceitos do organicismo sociológico sob o fio condutor de uma temporalidade que se consumava tal qual um tribunal ilustrado. E é nesse ponto que, numa metáfora orgânica, entende a funesta herança que os colonizadores deixaram na América Latina: o mal de origem como expressão de parasitismo. Ao conhecimento, à ciência, à instrução popular, caberia a missão de “curar” esse mal e limpar o passado, actuando como um remédio para a doença da sociedade latino-americana, essa sobrevivência e essa herança do passado ibérico, chaga produzida pelos anos de parasitismo das “sanguessugas de além mar” (581). A perspectiva bomfiniana, pois, é clara. Não vale a pena prolongarlhe os trechos explicativos. Mas carece, entretanto, de ser acentuado que também o anseio de modernização de Bomfim, à semelhança do que pudemos apreciar noutros níveis, é análogo ao de Oliveira Martins. Enquanto o “retrato” do passado lusitano feito pelo autor de O Brasil e as Colónias Portuguesas suscita, no contexto português, uma recepção crítica vertida para o reconhecimento social (e para sua melhoria), no Brasil, a recepção daquele mesmo quadro autocrítico é pretexto para um reforço demarcatório, sutentando o afastamento de uma pecha originária que, comprovadamente – a partir da própria leitura martiniana –, havia razões de sobra para recusar. Pense-se, a título de exemplo, no retrato inscrito na História de Portugal, de um rei português de não-desprezível importância na estética identitária das relações luso-brasileiras: D. João VI, personagem que, em todas representações martinianas, foi o “mais extenso e pormenorizado, tanto no plano físico como no ponto de vista psicológico” (582):

581

Idem, ibidem, p.175. MATOS, Sérgio Campos de. “História e Ficção em Oliveira Martins. Imagens da Degenerescência”. Revista de História das Ideias. Vol.21, 2000, p.161-162. 582

257

“Representante quase póstumo de uma dinastia, epitáfio vivo dos Braganças, sombra espessa de uma série de reis doidos ou ineptamente maus, D. João VI, já velho, pesado, sujo, gorduroso, feio e obeso, com o olhar morto, a face caída e tostada, o beiço pendente, curvado sobre os joelhos inchados, baloiçando como um fardo entre as almofadas de veludo dos velhos coches dourados de D. João V, e seguindo um magro esquadrão de cavalaria – era, para os que assim o viram, sobre as ruas pedregosas de Lisboa, uma aparição burlesca. Para nós, ao lembrarmo-nos de que nesse coche, desconjuntado pelos solavancos das calçadas, vai o herdeiro e o representante do Condestável, o espectáculo ressuscita-nos a história da Nação, também desconjuntada pelos balanços da sua vida tormentosa. E se, porventura, as misteriosas leis da vida têm um papel na história, força é reconhecer que na família dos Braganças não vingou a semente da nobre raça de Nuno Álvares: viu-se em todos eles a descendência do crasso sangue alentejano da filha do Barbadão” (583).

Diante de tão “burlesca” figura, imagem de evidente decadência ao mesmo tempo orgânica e histórica” (584), bem se pode entender que a respectiva repercussão na margem ocidental do Atlântico e, em concreto, na atmosfera intelectual em que surpreendemos Manoel Bonfim, fosse pretexto para confirmar as piores leituras sobre o carácter parasita da “semente da nobre raça de Nuno Álvares” ou da sua semente abastardada. Nos dois autores mencionados, Manoel Bomfim e Oliveira Martins, há uma tentativa de aprender com os erros do passado, tal qual uma Magistra Vitae moderna, é certo. No entanto, uma coisa é combater o próprio passado, ou melhor, os equívocos e corrupções da dinastia de Bragança, com o faz Oliveira Martins, em sentido autocrítico. Outra coisa, porém, é combater um passado tido como passado do outro, como “herança funesta”. Num caso, o magistério da história produz uma apetência por aperfeiçoamento; no outro, produz-se um anseio por afastamento, feito bandeira de uma necessária “cura” do passado e de um necessário combate a ser consumado contra o tudo o que remetesse ao passado lusitano (585). É 583

MARTINS, J.P. de Oliveira. História de Portugal. Vol. II. Lisboa: Europa-América, [1879], 1991, p.188. Grifos nossos. 584 MATOS, Sérgio Campos de. “História e Ficção em Oliveira Martins. Imagens da Degenerescência”. Revista de História das Ideias. Vol.21, 2000, p.161-162. 585 Após um intervalo de mais de uma década, a produção historiográfica bomfiniana, depois da publicação de América Latina: males de origem, em 1905, empreenderá a produção de uma trilogia: O Brasil na América, publicado em 1929, O Brasil na História, estampado em 1930, e O Brasil Nação, editado em 1932. Nestes livros, o autor dá azo à incorporação gradual do ideário marxista, que já ganhava força no início do século XX. Contudo, a mobilização da

258

que, precisamente, a construção da nação brasileira deverá começar, para Bomfim, a partir do marco de onde Portugal acabou. Embora parecida com a imagem pintada pelas obras de Oliveira Martins, a ideia de Bomfim se distingue da do autor de O Brasil e as Colónias portuguesas, justamente, na utilização feita da exemplaridade do passado: o que para um é positividade, para outro é negatividade. Mesmo com base em utilização do mesmo “retrato” ou juízo sobre o passado, aparentemente próxima, por vezes até idêntica, seu efeito, porém, será diverso, posto que a evidência da degradação, num lado do Atlântico, receitará sua extirpação, em sua margem tropical. Em finais do século XIX e nos inícios do seguinte, o culto do afastamento brasileiro face a Portugal, defendido por representativa linha interpretativa da identidade brasileira em redefinição, ditava, frente à lição da história, a sua inversão. Bem vistas as coisas, o percurso que efectuamos conduziu nossa investigação ao cerne da problemática demarcatória. Sendo a historicidade elemento fulcral da demarcação cultural, compreender-se-á que ela acompanhe a própria lógica demarcatória e que se torne possível que sua delimitação, mesmo quando iniciada pelo seu próprio centro de referência – a história nacional –, possa transmitir-se como matriz a outros contextos,

história e o “papel” conferido a Portugal na construção de projectos para o desenvolvimento brasileiro permanecerá o mesmo que fora traçado em 1905, ou seja, o de “mal de origem”. A este respeito, valerá à pena estudar, em futuros trabalhos, a influência das idéias de Manoel Bomfim, sobretudo de sua estética identitária, por exemplo, na obra de Caio Prado Júnior, principalmente em A Formação do Brasil contemporâneo, publicado em 1945. No prefácio de O Brasil na América, Bomfim revela a influência de suas idéias de América Latina na organização das obras posteriores, dizendo que “compreende-se, pois, que nestas páginas de agora se encontre, apenas, o desenvolvimento de conceitos patentes no outro livro. Não há modificação de sentimentos, nem novidade de pensamento”. Esta compreensão da relação lusobrasileira foi também ecoada nos seus livros posteriores, ganhando mais nitidez ainda. Em O Brasil na História, por exemplo, estampado em 1930, há poucos anos antes de sua morte, Bomfim afirmará que “das condições duras e tristes que a história nos impoz, nenhuma é mais dura e lastimável do que essa necessidade de – affirmarmos a nosso caracter e toda a tradição nacional contra esse povo, mesmo, que nos formou”. BOMFIM, Manoel. O Brasil na América. Caracterização da formação brasileira. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1929, p.7 e BOMFIM, Manoel. O Brasil na História: deturpação das tradições. Degradação política. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1ª edição, 1930, p.193. Grifos nossos.

259

outros fins e, sobretudo, possa produzir efeitos diversos ou inversos. Afirma Rui Cunha Martins que, em matéria de estratégias de transgressão e/ou reafirmação de fronteiras, bem como de definição e estabelecimento de limites – também os de ordem cultural –, “o que aqui se emancipa pode, ali, num outro contexto, manifestar propriedades de constrangimento, e que o contrário é também possível”. Asserção válida para o complexo processo de construção das identidades nacionais, quando se sabe que estas, ao trabalharem sobre fenômenos de demarcação cultural, trabalham sobre fenômenos de redefinição do limite. E este, “em rigor, nem sequer solicita a sua resolução, superando-se, unicamente, como perpétua reinvenção de si mesmo. Motivo pelo qual pode dizer-se, com propriedade, que o maior produtor de fronteiras é a própria fronteira” (586).

3. Moçárabes e Mestiços: a concorrência da forma híbrida. Do processo de clarificação identitária luso-brasileiro não emergia apenas a proposta de uma diferenciação futura por via de um radical afastamento do passado originário. Na verdade, essa mesma questão da origem, agora entendida enquanto primazia de determinado núcleo de características tidas por fundantes de cada uma das nacionalidades, dava corpo a uma leitura concorrente do relacionamento entre as culturas portuguesa e brasileira. Em rigor, a problemática de base é a mesma nos dois casos: o entendimento do fator “originalidade” e a necessidade imperiosa de, para efeitos de demarcação identitária, clarificar os limites pertinentes entre duas culturas historicamente comprometidas. Mas esta mesma questão comportava duas dimensões complementares: a questão da 586

MARTINS, Rui Cunha. “O paradoxo da demarcação emancipatória: a fronteira na era da sua reprodutibilidade icónica”. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º59. Fevereiro 2001, p.5051.

260

“origem” tomada por equivalente de “começo” e a questão da “origem” tomada por equivalente de “originalidade” e de ineditismo. E se aquela, a dimensão da origem enquanto princípio, era resolvida, à escala brasileira, pela noção de “mal de origem” (foi o que vimos), imperioso parecia, em simultâneo, resolver a dimensão da essência, isto é, da “originalidade”, da “forma original”. A dificuldade estava na coexistência de duas “formas originais” de igual matriz, afinal, sua manifestação em duas culturas diferentes só podia aparecer como negação da própria originalidade buscada. A concorrência surge aí, numa comum reivindicação da “forma híbrida”. Recordar-se-á que, em capítulo anterior, abordamos a polêmica entre Teófilo Braga e Sílvio Romero. Importa agora recuperar essa corrente dialógica entre as obras do açoriano e do sergipano, que aqui tomaremos por expressiva da aludida linha concorrencial instalada no universo identitário luso-brasileiro. São dois, para o nosso intuito, os aspectos a reter: sua similitude formal (587) e uma paralela concorrência estéticoidentitária – tipificada pelas figuras do “moçárabe” e do “mestiço” – no âmbito das demarcações da história processadas no seio da fundação das culturas nacionais “portuguesa” e “brasileira”.

3.1.

Como é sobejamente reconhecido, Teófilo Braga possui um papel

destacado no rol de intelectuais que, nos finais do XIX, se preocuparam com escrutinar o passado para construir, a partir daí, referenciais estéticos sobre a “cultura portuguesa”. Sua ação na divulgação de ideias, no âmbito da “frente cientista”, teve uma amplitude que não se resumiu ao âmbito 587

Aproximações hermenêuticas das obras de Teófilo Braga e Sílvio Romero foram já delineadas por alguns pesquisadores que participaram do III Colóquio Tobias Barreto. A este respeito, sugerimos a consulta de Sílvio Romero e Teófilo Braga. Actas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1996, em especial os textos de RODRIGUES, Ana Maria Moog, “Sílvio Romero, consciência da nacionalidade e afinidade com Theófilo Braga”, pp.81.101 e BORGES, Paulo Alexandre, “Tradição, literatura e nacionalidade em Teófilo Braga e Sílvio Romero”, pp.121-136.

261

português (588). Ao contrário, sua obra teve repercussão bastante também no Brasil (589), tanto no sentido de um “irmanar” cientista, como no sentido de se instituir em pólo de contraste no processo de autodeterminação idearia e estética brasileiro (590). Trata-se, deste modo, de um perfil intelectual e de uma obra de alguma forma atuantes em escala cultural “luso-brasileira”. Tomaremos como expressão de seu pensamento, para o que aqui nos interessa, a edição de 1909 de sua História da Literatura Portuguesa, o que se justifica pelo fato de se tratar de uma versão madura de suas ideias que já há tempos vinham sendo submetidas ao público letrado (591) e à crítica académica (592), ao ponto de se poder afirmar que muitas das questões que Teófilo havia antes abordado confluíram neste

588

É interessante também realçar a importância da obra de Teófilo Braga no âmbito da demarcação cultural da Galiza. A este respeito, consultar FEIJÓ, Elias J. Torres. “Cultura portuguesa e legitimação do sistema galeguista: historiadores e filólogos (1880-1891)”. Ler História, 36, 1999, pp.273-318. 589 Veja-se, por exemplo, a extensa lista de citações e referências a Teófilo Braga colectadas na imprensa brasileira pelo seu discípulo Fran Paxeco. PAXECO, Fran. Teófilo no Brasil. Lisboa: Casa Ventura Abrantes, 1917. Consultar também as cartas onde Teófilo menciona seu relacionamento cultural com vários brasileiros, bem com algumas cerimónias realizadas por Fran Paxeco, no Brasil, em homenagem ao seu mestre. PAXECO, Fran. Cartas de Teófilo (com um definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas “confissões” de Camilo). Lisboa: Portugália, 1924. 590 Como foi no caso de Sílvio Romero, conforme expusemos no primeiro capítulo. Lembrem-se também as referências a Teófilo nos “Fatores da Literatura Brasileira” em ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Tomo Primeiro. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. Coleção Documentos brasileiros, dirigida por Octávio Tarquínio de Sousa. 3ª Edição organizada e prefaciada por Nelson Romero, [1888], 1943. 591 É o próprio Teófilo quem o diz, ao mencionar que “já por três vezes o vasto corpo da História da Literatura portuguesa tem sido submetido a este processo de condensação: em 1875 no Manual de História da Literatura portuguesa (in-de VII- 474p.), destinado às lições orais. Em breve ficou atrasado, pela publicação dos Cancioneiros trovadorescos e pelo aperfeiçoamento do método histórico e filosófico, dando lugar à remodelação do plano em 1885 no Curso da História da Literatura portuguesa (in-8º granda, de 421p.)”. BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909], 1989, p.59. 592 Veja-se, a este respeito, a intensa polêmica com Oliveira Martins, entre outros. BRAGA, Teófilo. Os críticos da História da Literatura Portugueza. Exame das affirmações dos Srs. Oliveira Martins, Anthero de Quental e Pinheiro Chagas. Porto: Imprensa Portugueza Editora, 1872 e MARTINS, J.P. de Oliveira. “A Teoria do Mosarabismo, de Teófilo Braga” (Inédito). Biblos. Coimbra, n.º28, 1952, pp.139-177.

262

opúsculo, servidas agora por uma maior sistematização de seu pensamento (593), constatação que avaliza sua representatividade (594). Oriunda de uma compreensão estético-filosófica que crê na representatividade da Literatura como “manifestação do génio” português, a História da Literatura Portuguesa enquadra-se na perspectiva atinente ao cientismo histórico, para onde convergem, desde o momento jusante da “frente cientista”, muitos elementos do pensamento heterodoxo positivista à Littré, amalgamados com traços do neolamarckismo e do materialismo monista. Uma atmosfera intelectual cujo denodo fatual conferia ao estudo das literaturas nacionais uma dimensão que correspondia ao escrutínio estético da nacionalidade. Se, no caso de Teófilo Braga, a preocupação nacionalista, em suas vinculações filosóficas ao cientismo dezenovista, assume um destaque particularmente importante, isso se deve à sua participação em uma matriz de compreensão da identidade e da cultura portuguesa que, por sua vez, exercita uma mobilização da história peculiar: a definição de “factores estáticos” e “dinâmicos” da cultura portuguesa corresponderia ao intuito de, uma vez mais, “revivescer” as energias indómitas de uma lusitanidade “racial”. É tendo em conta este cenário précompreensivo, bem como a sua natural interferência sobre a nossa específica escala de análise, que temos por pertinente a colocação das seguintes questões: i) como Teófilo definia a “cultura” portuguesa? ii) qual a mobilização da história exercitada pela matriz teofiliana? e iii) qual o

593 Referimos, aqui, além do Manual de História da Literatura em Portugal, editado em 1875, e do Curso da História da Literatura Portuguesa, de 1885, mencionados por Teófilo, também Epopêas da Raça Mosárabe, publicado pela Imprensa Portuguesa Editora em 1871, “Elementos da Nacionalidade Portuguesa”, publicado em fragmentos na Revista de Estudos Livres, no biênio1883-1884, e Contos Tradicionais do Povo Português, volumes I e II, publicados em 1883. 594 Lembre-se também que esta edição da História da Literatura Portuguesa, de 1909, foi dada à estampa em meio ao conturbado ambiente posterior ao regicídio e ao acirramento da campanha republicana. Como se sabe, em 1910, Teófilo Braga será nomeado o primeiro presidente da República em Portugal, posição a que fora alçado pela sua liderança e representatividade no âmbito dos movimentos envolvidos na troca de regime político.

263

lugar, expresso ou implícito, do Brasil no relacionamento cultural lusobrasileiro deduzido da sua abordagem? Será do escrutínio destes elementos que nos ocuparemos a seguir. De acordo com o pensamento teofiliano “a elaboração da Literatura portuguesa é o produto do ethos da raça, do sentimento da nacionalidade e da consciência histórica”. Sua obra representaria, assim, o estudo histórico de um “produto superior do génio português”, com o auxílio analítico de “processos críticos” que buscavam compreender “a psicologia colectiva e o ponto de vista sociológico” (595). É que, para Teófilo Braga, “para que uma Literatura se forme é necessário que uma raça fixe os seus caracteres antropológicos pela prolongada hereditariedade, que funde a agregação ou consenso moral da Nacionalidade, tendo o estímulo de resistência na sua Tradição e na unidade a Língua disciplinada pela escrita, universalizando a relação psicológica das emoções populares com as manifestações concebidas pelos génios artísticos” (596). Daí que o estudo da literatura fosse entendido como o representante de uma “síntese completa” da nacionalidade, na medida em que para ele confluíam “os aspectos da sua evolução secular e histórica”. Pois “na marcha histórica de qualquer povo”, considera Teófilo, “existe um trabalho constante de síntese ou coordenação espontânea de todas as suas energias, conformando os actos com os sentimentos e ideias dominantes” (597). Nas linhas escritas em 1909, Braga considera existirem três sínteses: a “síntese activa” exercitada pela política geral; a “síntese especulativa” representada pela filosofia, entendida esta como o espaço discursivo para onde dimanavam os dados objectivos das

595 BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.61-62. 596 Idem, ibidem, p.63. 597 Idem, ibidem.

264

ciências; e ainda uma “síntese afectiva” manifestada na literatura e na arte, enquanto manifestação da “tradição” e da “autonomia nacional” (598). Atente-se para o papel de representante “afectivo” que o autor confere à Literatura. A sua explicação radica em que, mesmo sendo adepto da filosofia positiva, Teófilo não deixou, entretanto, de fazer eco de compreensões algo metafísicas vinculadas à ideia de “Povo” (599), baliza tão cara ao romantismo de um Schlegel, por exemplo. Lembre-se, neste ínterim, que muito de sua curiosidade filológica também possui esta filiação. Não obstante isto, o pensamento teofiliano, como já se disse com propriedade (600), apresenta originalidade, não se submetendo à glosa nem do positivismo ortodoxo laffitista nem mesmo da heterodoxia littreana. Entre outras coisas, sua preocupação com a demarcação rácica da cultura portuguesa, no âmbito dos demais povos ibéricos, bem como pela sua vinculação mais geral ao movimento de cientifização das sociedades, foi marcada pelo “enlace” de um heterodoxo positivismo com o materialismo monista. A este respeito, valerá a pena recordar, com Amadeu Carvalho Homem, que “facilmente se explica a transição teofiliana da positividade para o cientismo monístico-materialista, ou melhor, a simbiose que nele se opera entre estes dois termos. Segundo as leituras de Comte e Littré, o positivismo escapava à dicotomia idealismo-materialismo. Como nada afirmava ou negava sobre a existência de primeiros princípios e de fins últimos, limitando-se a assinalar a impertinência destas noções no plano da funcionalidade científica, aquela filosofia pôde ser apresentada como um agnosticismo. Mas a postura positivista, precisamente pelo facto da sua neutralidade, tanto consentia a compaginação com um idealismo cauto, – é exemplar, neste aspecto, o discurso de Spencer sobre o Incognoscível –, 598

Idem, ibidem, p.64. PALMA-FERREIRA, João. “Prefácio”. In: BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1989. 600 HOMEM, Amadeu Carvalho. O Positivismo em Portugal: o contributo de Teófilo Braga. Coimbra: Minerva, 1989. 599

265

como permitia a inflexão materialista. Bastava, para isso, abandonar com decisão o campo agnóstico e sustentar a imanência de uma armadura de leis naturais e de princípios materiais em que se incluíssem todos os aspectos do «cosmos» inerte e vivente. Teófilo não hesitou em dar esse passo” (601). De posse destes elementos, estamos melhor apetrechados para situar a importância que não poderia deixar de lhe merecer o problema da natureza e do cariz identitário da “cultura portuguesa”, do mesmo modo que o estudo das literaturas nacionais. Para o pensador açoriano, seu estudo está subordinado ao meio social, tanto na origem como no destino. Entenda-se: origem e destino da nacionalidade. É que o método utilizado por Teófilo, como ele próprio o dizia com ênfase, “assenta no ponto de vista francamente histórico” (602), afirmação que, entretanto, não quer dizer que a matriz teofiliana mobilizava uma mesma lógica da história que a de um Oliveira Martins, por exemplo. Ao contrário: entre a “lição moral” da história martiniana, e a abordagem de Teófilo, há muito que distinguir. Interessa-nos, em especial, o acento exposto a este respeito por Ana Leonor Pereira, ao chamar a atenção para o fato de que “as noções de imprevisibilidade, acaso, indeterminação, não têm lugar na teoria teofiliana da história” (603). É que, para o autor da História Universal: esboço de Sociologia Descriptiva, editada entre 1878-1882 (604), a cientifização da 601

HOMEM, Amadeu Carvalho. O Positivismo em Portugal: o contributo de Teófilo Braga. Coimbra: Minerva, 1989, p.105. BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.64. 603 PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal (1865-1914). Filosofia. História. Engenharia Social. Coimbra: Nova Almedina, 2001, p. 162. 604 Obra que, aliás, Joaquim Saldanha Marinho, célebre senador e jornalista – signatário do Manifesto Republicano de 1870 –, agradeceu a Teófilo Braga. Em carta assinada a 8 de janeiro de 1879, no Rio de Janeiro, expressava-se da seguinte maneira o senador brasileiro: “Por intermédio do seu digno editor tive a honra de ser obsequiado com um exemplar da História Universal, com que v. acaba de enriquecer as letras portuguesas e os estudos históricos. Há muito acompanho, sempre com crescente entusiasmo, os variados e importantes trabalhos literários e científicos que tem valido a v. os encómios e louvores de juízos mais competentes do que eu. Admiro-o pelo seu muito saber e brilhante talento; não o admiro menos pela sua infatigável perseverança no trabalho, e pela coragem com que propaga as doutrinas que eu considero as únicas capazes de regenerarem a sociedade moderna”. In: BRAGA, Teófilo. 602

266

história advinha da “subordinação do facto social ao facto biológico” (605). Dir-se-ia que a “entificação da História”, manifesta nas filosofias da história, fora substituída pela “entificação da Ciência” (606). É que, tal como vimos, a sociologia – entendida como ciência-mater da cientifização da realidade social – fora “arrancada ao pélago da História”, na poética de Isidro Martins Júnior. Daí que não possa passar despercebido que a mobilização da história, em Teófilo Braga, se dê enquanto sociologia descritiva. Deve, entretanto, frisar-se que nenhum destes aspectos pode brigar com outra precisão igualmente nuclear: sua leitura da “história” em muito estava condicionada pelas ciências da matéria. E se era lícito admitir que nada se cria, tudo se transforma, especial relevância teria de ser concedida ao princípio da correlatividade entre matéria e espírito, entre natureza e sociedade – pressuposto-chave do monismo materialista (607). A transferência epistêmica dos princípios e leis gerais da natureza para a compreensão da vida do homem em sociedade foi a escora fundamental do sistêmico pensamento de Teófilo Braga. Representava a premência da empiria e sua recusa às metafísicas filosofias da história. Dito isto, não surpreenderá a detecção, na História da Literatura Portuguesa, de uma preocupação especial com os conceitos de raça e meio, mobilizados como constantes epistêmicas para o entendimento das

Quarenta Anos de Vida Literária 1860-1900) – Cartas a Teófilo Braga, com um prólogo “Autobiografia mental de um pensador isolado”. Lisboa: Tipografia Lusitana – Editora Artur Brandão, 1902, p.210. 605 BRAGA, Teófilo. História Universal: Esboço de sociologia descritptiva, p.9 citado por PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal (1865-1914). Filosofia. História. Engenharia Social. Coimbra: Nova Almedina, 2001, p.156. 606 Sobre a entificação da ciência e sua relação com o historicismo, consultar CATROGA, Fernando. “Cientismo e Historicismo”, In: FITAS, Augusto J.; CATROGA, Fernando et all. Seminário sobre o Positivismo. Évora: Centro de Investigação da U. E. Série: Centro de Estudos de História e Filosofia da Ciência, n.º3, 1998. 607 Segundo Amadeu Carvalho Homem, “A correlatividade será, desta maneira, o grande princípio norteador das sínteses filosóficas positivas, já que conhecer a matéria pelas modificações do meio (ou forças) é o mesmo que garantir que a acção das forças (movimento) modificará os equilíbrios da matéria”. HOMEM, Amadeu Carvalho. O Positivismo em Portugal: o contributo de Teófilo Braga. Coimbra: Minerva, 1989, p.111.

267

sociedades. Consoante o pensamento teofiliano, “a Literatura reflecte todas as sucessivas modificações desse meio, achando-se, como todos os outros fenómenos sociológicos, sujeita a leis naturais de ordem estática ou de conservação, e de acção dinâmica ou de progresso”. Por isso, Teófilo chamará a atenção para o fato de que estes elementos constantes funcionariam “como órgãos subtraídos à vontade individual, mas pelos quais se exercem os processos da concepção artística e constituem os elementos estáticos das Literaturas: a Raça, a Tradição, a Língua e a Nacionalidade” (608). A estes, porém, se juntariam forçosamente os elementos variáveis, “dinâmicos”, que seriam representadas pela soma das “épocas históricas” e a ação do meio social sobre a Literatura Nacional. Neste quesito, destacará a Idade Média, a Renascença e o Romantismo. Vejamos, por conseguinte, a concretização de uma noção de história fortemente coincidente com a ideia de “sociologia descritiva” aliada a uma paralela voracidade sistêmica em permanente requisição dos caracteres “raça” e “meio”, mobilizados como constantes históricas. A isto, agregue-se uma compreensão da temporalidade vinculada ao monismomaterialista que, ao enfatizar a existência de uma “elaboração orgânica da literatura”, ajuda a fundamentar a existência de uma originalidade racial portuguesa

no

âmbito

ibérico

(609).

Estes

tópicos,

em

sua

complementaridade, parecem assentar bem ao pensamento teofiliano. Por ser assim, vemo-lo dedicar-se amiúde à questão dos critérios rácicos da

608 BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.64-65. 609 Teófilo ecoava as considerações de Pi y Margall acerca da existência de diversas “nacionalidades ibéricas”, conforme pode-se ver no seguinte trecho: “Entre as Literaturas hispânicas, duas correspondem às duas raças, a ibérica e a lusitana, que subsistem diferenciadas desde as épocas remotas até as mais recentes crises históricas, e basta esta correspondência para descobrir o seu carácter tradicional e popular, e por vez modificado pelo pedantismo erudito. Enquanto as Literaturas castelhana e portuguesa avançam para a perfeição estética, outras, como a aragonesa, valenciana e catalã, que floresceram, extinguiram-se, porque o apoio da nacionalidade reduziu-se a um regionalismo em revolta contra uma incorporação política e administrativa, como se confirma pela galiciana”. Idem, ibidem, p.66.

268

Antropologia dezenovista, tomada como um estudo “verdadeiramente reconstrutivo da história primitiva” (610), na medida em que “os grandes factos antropológicos da formação de uma raça e do seu agrupamento espontâneo em sociedade, até chegar à forma voluntária ou consciente de nação, com costumes, língua, religião e indústria próprias, não podem ser determinados pelo cômputo cronológico, não começam em um dado dia; são a consequência de elementos anteriores, de energias persistentes, de acção do meio cósmico, e por isso quanto mais se profundarem estas condições mesológicas, antropológicas e étnicas, tanto mais se esclarece esse facto complexo que se denomina a História, e se compreende melhor a evolução progressiva da actividade de um povo” (611). Para Braga, o estudo da “raça” é “preliminar para a compreensão da Literatura” porque é entendido como revelador das condições da vida nacional. Baseado nas conclusões “científicas” da Antropologia de sua época, chama atenção para o critério monista da persistência dos caracteres adquiridos, ou como ele revela, para a “persistência das Raças, nos seus tipos ainda os mais remotos, e a conservação dos seus costumes através dos mais numerosos e mais fortes” (612). Com tal arcabouço teórico, natural parecia a Teófilo que se escrutinasse o recôndito passado da história primitiva em busca das constantes étnicas. O recurso à filologia e à antropologia estaria, deste modo, a subsidiar sua análise da literatura portuguesa – seria ele o suporte descritivo do sistema teofiliano. Por outro lado, estribado em Prichard, Teófilo Braga assinalava a nuclearidade da noção de hereditariedade através do conceito de raça, entendido como representante da “origem”. Um critério analítico que tinha o poder de explicar o porquê das formas literárias, tendo igualmente a capacidade de 610

Idem, ibidem, p.67. BRAGA, Teófilo. “Elementos da Nacionalidade Portuguesa” In: Revista de Estudos Livres, Lisboa: Nova Livraria Internacional Editora, volume 1883-1884, 1884, p.5. 612 BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.67. 611

269

realçar a originalidade e a autonomia nacionais. Afinal, “as Literaturas distinguem-se entre si pelas tradições elaboradas em línguas escritas e pelo modo de sentir de uma nacionalidade” (613). A isto, somava-se a influência das análises de Taine sobre a literatura inglesa (614). Tal como o inglês, Teófilo cria na transparência dos diversos componentes étnicos na literatura nacional, como bem se percebe ao sustentar que “sob este critério, há um outro importante fenómeno a considerar: o encontro e fusão de duas raças determina uma revivescência de tradições hierológicas ou poéticas”. Segundo ele, será “o estudo da raça na história de qualquer literatura o meio de descobrir a base tradicional sobre que se desenvolveu, e dela deduzir o que tenha originalidade e feição nacional” (615). Esta incursão a que procedemos, mesmo que de forma sucinta, pelo pensamento de Teófilo e pela matriz de entendimento histórico que mobilizava, habilita-nos a averiguar sua definição da “cultura portuguesa”. Nada a estranhar, pois, o seu convencimento de que, em se tratando de Portugal, o “problema da raça é do mais alto interesse”, posto que a faixa ocidental da Península Ibérica, constituída reino autônomo no século XII, preenche o território que “é ainda o que foi ocupado pelas tribos lusitanas, tendo a menos a Galiza e a Andaluzia, que formavam, segundo Estrabão, no seu conjunto a LUSITANIA dos antigos” (616). Como é sabido, a tese de Teófilo Braga – que buscava sustentar a existência de uma originalidade racial como determinante da existência de Portugal como nação – ia em desacordo com a historiografia de Alexandre Herculano (a qual ressalta o

613

Idem, ibidem, p.68. Como o próprio Teófilo revela: “este mesmo critério foi aplicado por Taine à Literatura inglesa, em que o elemento saxão conserva o génio e as tradições germânicas, ao passo que o normando submete-se à disciplina da imitação, como se manifesta na dupla influência de Shakespeare e Pope”. O paralelo entre esta dualidade Shakespeare e Pope e a estabelecida, depois, entre Camões e Gil Vicente foge aos propósitos desta pesquisa. Deixamos, contudo, apenas esta sugestão analítica. Idem, ibidem, p.68. 615 Idem, ibidem, p.69 616 Idem, ibidem. 614

270

carácter da vontade política dos reis) (617). Esta mesma questão, seria o cavalo de batalha da intensa polêmica travada entre o açoriano e Oliveira Martins – que ecoava a tese de Herculano (618). Assim, não surpreende que Teófilo

considere

que

os

mencionados

“dois

historiógrafos,

desnacionalizaram Portugal”. Outra desnaturação do tipo português, para Brga, “é feita pelos eruditos que compilam factos, que identificam Portugal com um país de Celtas, sem conhecerem nem a cronologia desta raça, nem os seus caracteres antropológicos em antítese com os dos portugueses. E, já é favor; porque, para os nossos vizinhos castelhanos, não há diferença alguma entre Espanhóis e Portugueses, são um povo único!” (619). Não há, para Teófilo, um descolamento entre a esfera política – a vontade política da proclamação da autonomia portucalense – e a concretude dos princípios constantes observados na natureza. Sendo a correlação entre matéria e espírito a pedra-de-toque do materialismo monista, a pujança deste ideário no pensamento teófiliano deu-lhe a segurança necessária para buscar a explicação da existência de Portugal na natureza. Fez-lhe demarcar a cultura pela raça. O “espírito do povo” ou a vontade política seriam consequência de uma longa maturação racial. Assim, o período 1128-1141 era compreendido como uma revivescência do lusismo, avesso aos anseios unionistas do castelhanismo. Esta demarcação entre o luso e o castelhano remontava, porém, ao período romano. Uma dualidade que, para Teófilo, não remete à política; 617

Sobre a existência de determinações rácicas para a existência de Portugal, declara o açoriano: “a esta pergunta, respondeu Alexandre Herculano negativamente, considerando a Lusitânia um território diferente do de Portugal, e os Lusos umas tribos bárbaras, com quem o povo português nada tinha de comum, por ser um elemento adventício, transplantado das Astúrias e do reino de Leão; que pretender relacionar os dados de Estrabão sobre os Lusitanos com os portugueses, era uma preocupação heráldica dos humanistas do século XVI. Como poderia o historiador compreender o individualismo étnico de Portugal?”. Idem, ibidem, p.70. 618 Sobre Oliveira Martins, diz Teófilo: “Pior do que Herculano, veio o frasista Oliveira Martins, considerando Portugal essa horda de adventícios asturo-leoneses submetendo-se à agregação de uma nacionalidade pelas ambições e esforços continuados dos políticos dirigentes”. Idem, ibidem, p.70. 619 Idem, ibidem, p.70.

271

relaciona-se com a persistência de caracteres antropológicos, pois, “a eterna divortia”, dirá ele, mencionando a Púnica de Sílio Itálico, “entre Iberos e Celtas, é ainda hoje implacavelmente mantida nas duas nacionalidades hispânicas”, conformando, com isto, “duas raças, a ibérica e a lusitana, evolucionando nas situações primitivas”. De acordo com esta leitura, a Península Ibérica entendia-se como estando dividida em dois segmentos étnicos, duas vertentes: “a oriental, ocupada pelos Iberos, e a ocidental pelos Lusitanos, mantendo através de todos os cataclismos sociais e históricos as suas individualidades étnicas, manifestando-se ao fim de tantos séculos a Nacionalidade castelhana e a Nacionalidade portuguesa, sempre inconfundíveis” (620). E se a constituição cientista demanda à descritividade fatual o saciar da sede probatória, não espanta que Teófilo busque definir fenotipicamente, bem à moda da antropologia física dezenovista, os caracteres essenciais da raça lusitana, base da sua definição do Luso enquanto representante pré-céltico do ramo dos Ligures: “na vertente ocidental estabeleceu-se o Luso, ramo de uma raça navegadora que fazia o comércio do âmbar, do mar do Norte, os Ligures. Distingue-se esta raça pela sua estatura mediana, e cabeça redonda; pela cor trigueira da pele, cabelos e olhos castanhos, e leptorrinia” (621). De tudo o foi citado, resulta patente a importância que Teófilo emprestava à demarcação entre Portugal e Espanha (622). E será deste ponto que arranca a importância desmesurada conferida ás divisões raciais, linguísticas e literárias. Afinal, aquela “primitiva extensão do território mostra-nos como a população lusitana pôde contrabalançar-se com a população ibérica, cujos caracteres são nitidamente diferenciados pelos 620

Idem, ibidem, p.70. Idem, ibidem, p.71. 622 É importante frisar que, para Teófilo, “as diferenças do Ibero e do Luso ainda hoje se impõem à observação no antagonismo político, intelectual e moral; não os separam fronteiras materiais, nem tão-pouco instituições religiosas ou sociais, mas prevalece uma imanente antinomia. É na raça que ela se há-de encontrar”. Idem, ibidem. 621

272

geógrafos gregos e romanos. Embora diminuído o território pelas divisões administrativas romanas, e pelas incorporações neogóticas, o pequeno Portugal de hoje nunca perdeu a população lusitana que o ocupava, podendo afirmar-se, pelos recursos da comprovação antropológica, que não há solução de continuidade do tipo luso para o português actual” (623). Por isto, dirá, no território em que veio a constituir-se um dia o Estado de Portugal, “vê-se que essa nova nacionalidade apareceu no século XII como uma revivescência étnica” (624). Acresce a esta interpretação, o papel atribuído aos Celtas pela compreensão teofiliana das nacionalidades na Península Ibérica. Segundo o autor da História da Literatura Portuguesa, a invasão dos Celtas atuou mais fortemente entre os Iberos que entre os Lusos. Por isso, fazendo eco das considerações de Sarmento, aduz que “celtas e iberos formam uma nação mixta, os Celtiberos”, informação que, contudo, só ganha o devido realce com a adenda de que “frente os lusitanos a invasão céltica foi mesquinha” (625). De uma forma ou de outra, e isso parece ser o dado a reter, a demarcação rácica entre os povos habitantes da Península Ibérica sustenta a respectiva demarcação identitária. Esta, entretanto, será completada ainda por outro elemento. Para Teófilo, nem romanos, nem celtas, nem fenícios se mestiçaram com a raça lusa, quadro que se irá alterar com a invasão sarracena de 711. É neste contexto que se processa, na teoria teofiliana, a entrada em cena dos moçárabes. É neste contexto preciso que, por maioria de razão, as suas considerações aumentam exponencialmente de significado para a instrução da nossa problemática. A matriz interpretativa de base é, grosseiramente, esta: “quando se constituiu a nacionalidade portuguesa, no século XII, foi essa população dos Moçárabes a matéria-prima; era ela que estava no

623

Idem, ibidem, p.72. Idem, ibidem, p.73. 625 Idem, ibidem, p.74. 624

273

território da obliterada Lusitânia” (626). O detalhe da matéria-prima não é de somenos: no contexto da constituição nacional, o incremento moçárabe é elemento fundante, primevo, verdadeiro traço de originalidade da cultura portuguesa. Em bom rigor, a influência moçárabe foi sendo trabalhada, por Teófilo durante bastante tempo (627), em simultâneo, com a paralela ascendência do “lusismo”, conformando de alguma maneira, uma dualidade cultural entre “cultura aristocrática” e “cultura popular” (628). Segundo Braga, “a classe popular, cada vez mais comprimida, só pôde evolucionar socialmente no princípio do século VIII, quando a invasão dos Árabes pela tolerância política e religiosa lhe permitiu a sua livre actividade e expressão das suas crenças. É preciso distinguir esta dupla influência, a aristocracia eclesiástica, ou erudita, a qual pela circunstância da resistência contra os Árabes se chama Asturo-Leonesa, e a popular, desde o século XI conhecida pelo nome de Moçárabe” (629). Já na Epopeia da Raça Moçárabe, publicada em 1871, Teófilo chamava atenção para a 626

Idem, ibidem, p.80. Desde a versão de 1871, da História da Literatura Portuguesa, Teófilo Braga propagava a importância da contribuição rácica do moçárabe na formação de Portugal. Esta edição de 1871 foi alvo de muitas críticas, às quais o autor respondeu no opúsculo Os Críticos da História da Literatura Portuguesa. É, entretanto, na Epopéia da Raça Moçárabe, publicada em 1871, que se podem encontrar trechos como este, que revelam muito do argumento teofiliano: “O povo portuguez também teve uma poesia própria, nacional, filha do génio da raça a que pertencia, cantando as paixões e as phases da vida, acompanhando as suas transformações, contando a sua história mais ou menos apagada, mais ou menos original. Ninguém suspeitou tal existência; alguns poetas, como Gil Vicente, tiraram d’ella grandes recursos de espontaneidade, mas não com o respeito que dá a verdadeira comprehensão. (…) Procurar na intima organização da raça mosarabe, que constitui o povo portuguez, os elementos primários que entraram na cração dos Romanceiros, eis o que forma o objecto d’este livro. Todas as investigações seriam sem critério, se por ventura se não acompanhar o problema do génesis da raça”. BRAGA, Teófilo. Epopêas da Raça Mosárabe. Porto: Imprensa Portuguesa Editora, 1871, p.5-6. Grifos nossos. 628 “A nacionalidade portugueza é formada de dois elementos; perfeitamente caracterizados na ethnographia e na primitiva occupação do território, torna-se mais evidente esta verdade na história da Poesia. Do Douro até ao Algarve existiam essas povoações mosarabes, que foram sendo encorporadas no território em que Dom Affonso Henriques constituiu o seu reino; estas povoações formam o elemento gothico-arabe da nossa nacionalidade, e a ellas pertence a grande poesia épico-narrativa dos Romanceiros”. Idem, ibidem, p.5 629 BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.87-88. 627

274

incorporação e mistura do elemento árabe com o godo (luso). Segundo ele, “do século VII ao século XIII o godo tornou-se Mosarabe ou imitador do árabe: do século XIII ao século XV o povo continuou a reconhecer essa influencia sustentada pelos Mixtiarabes ou árabes forros que viviam entre as povoações christãs”. (630). Assim sendo, foi fácil “a harmonia moral entre a população existente e o invasor, que se apropriara da civilização helénica, abrindo novos focos de revivescência do génio grego em Damasco e Bagdade. Os hispano-godos imitaram o viver dos árabes, conservando as suas crenças cristãs, e formaram a população dos Moçarabes” (631). Explicitações deste teor poderiam, como se sabe, repetirse. Para os nossos intuitos, não se torna necessário prolongar a evidência probatória. O significado do “moçárabe” na sua abordagem da cultura portuguesa está, para nós, suficientemente gravado. A ele voltaremos em seguida. Mais proveitoso, em contrapartida, se afigura recuperar o que se sabe sobre a função da língua em Teófilo. Será também deste modo que nos aproximaremos do lugar ocupado pelo Brasil no seio da sua matriz teórica. Como se verá adiante, o olhar teofiliano sobre o Brasil prolonga a sua reflexão sobre o modo da “originalidade” cultural portuguesa. Na História da Literatura Portuguesa, em sua edição de 1909, desenvolverá suas ideias veiculadas desde a década de 1870, dizendo que “a língua portuguesa, que diferenciava uma raça, era meio de expressão do sentimento de uma nacionalidade. A escrita fixa-a, dá-lhe a norma de analogia nas suas derivações, e modificando-a artisticamente pelo estilo literário, torna-a pelo génio dos seus escritores, um meio de coesão da própria nacionalidade. Terminada a época dos Descobrimentos, os Quinhentistas fortificavam a vida da nação proclamando a cultura da 630 BRAGA, Teófilo. Epopêas da Raça Mosárabe. Porto: Imprensa Portuguesa Editora, 1871, p.111-112. 631 BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.103.

275

língua” (632). E se podia aceitar-se que “Camões, servindo o sentimento nacional na epopeia dos Lusíadas, unificou a língua popular com a erudita, que é a que se fala e que se escreve em todo o país” (633), tal fato não podia escamotear que “fora da Literatura a língua portuguesa teve um largo desdobramento de dialectos, devido ao forte individualismo do povo, e em consequência da expansão histórica em um vastíssimo domínio colonial” (634). Razão mais do que justificativa para conferir a devida importância, a importância que Braga comprovadamente lhes reconhecia, aos Cantos e Contos Populares do Brasil e ao seu estudo. Com sua “bagagem” teórica marcada pelos critérios do materialismo-monista – nomeadamente quanto à transmissão de caracteres adquiridos –, a pesquisa sobre a modificação portuguesa nos trópicos brasileiros assumia características análogas às de um laboratório étnico e sociológico (635). Compreender-se-á que seja justamente neste ponto que a definição das características culturais “portuguesas” intersecta visivelmente os limites da própria cultura “brasileira”. E compreender-se-á, também, a inevitabilidade de um questionamento como o seguinte: sendo o “moçarabismo” português uma mistura do luso com o árabe, quais poderiam ser as repercussões linguísticas deste hibridismo cultural se lhe fossem agregados africanos e índios? À luz desta reflexão, a curiosidade científica de Teófilo Braga para com a “cultura popular” brasileira traduz a convicção na possibilidade de escrutinar, em diversas partes do globo, a “revivescência” da cultura portuguesa. Afinal, “temos o dialecto do Crioulo nas possessões da África e Cabo Verde, o Matuto, no Brasil, o Reinol ou 632

Idem, ibidem, p.109-110. Idem, ibidem, p.110. Idem, ibidem. 635 Nos Contos Populares do Povo Português, Teófilo faz a seguinte consideração: “Parecerá à primeira vista estéril a investigação das tradições em um recente nacionalidade como o Brasil; mas com a colonização deste importante país dá-se um fenómeno conjuntamente étnico e sociológico, que poremos em relevo”. BRAGA, Teófilo. Contos Tradicionais do Povo Português. Volume I, Lisboa: Publicações Dom Quixote, [1883] 1987, p.62 633 634

276

Indo-português, em Colombo, capital do Ceilão, em Malaca”. Certo era, de qualquer modo, que “os dialectos do português são numerosos e têm sido estudados proficientemente por filólogos estrangeiros e nacionais; são um documento do poder de assimilação e de resistência do povo português” (636). As evidências linguísticas assinalavam não apenas graus de dispersão da presença portuguesa, mas, sobretudo, o seu substrato, essa fonte de energias a serem revividas. Afinal, “durante quarenta anos da unificação ibérica (1580-1640) a língua portuguesa trocada pela castelhana pela aristocracia e homens cultos, era usada pela gente do povo, como o último vestígio da nacionalidade, e foi ela também o estímulo da sua revivescência” (637). Em carta enviada a seu discípulo no Brasil, Fran Paxeco, em 27 de Novembro de 1905, Teófilo, sem deixar de mencionar seu desafeto com Sílvio Romero, deixava bem claras as suas intenções: “quem relancear os dois volumes da História da poesia portuguesa, compreenderá os meus objectivos, quando atirava a impressão dos cantos populares do Algarve, da Madeira, da Galiza, do Brasil, afim de integrar as desmembradas tradições lusitanas. O Sílvio anda muito longe de perceber isto. Deixo-o onde está, evitando

contactos

desabonadores”(638).

Tanto

quanto

parece,

a

preocupação de bem enquadrar um lugar para o “hibridismo” na caracterização da cultura portuguesa surge como móbil maior de Teófilo ao debruçar-se sobre a “cultura popular brasileira”. No opúsculo “Sobre a Novelística Brasileira” – que inicialmente serviu como prefácio à publicação dos Contos de Romero, e que posteriormente foi agregado aos

636 BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1909] 1989, p.111. 637 Idem, ibidem. 638 Carta de Teófilo Braga a Fran Paxeco, Lisboa, 27/1111905. In: Fran Paxeco, Cartas de Teófilo (com um definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas “confissões” de Camilo). Lisboa: Portugália, 1924, p.64-67.

277

Contos Tradicionais do Povo Português –, Teófilo Braga escreve que, no Brasil, “a primeira ocupação dos Portugueses fez-se por um modo pacífico, com intuitos mercantis conciliados com a propaganda religiosa; a necessidade da cooperação agrícola obrigou ao aproveitamento de uma raça degradada, e nesta cohabitação permanente em um grande campo de exploração, o Português radicou a sua tenacidade colonial pela fusão ou mestiçagem com o elemento indígena e com o elemento negro. Este importante fenómeno histórico, donde derivam os novos caracteres de uma nacionalidade, distingue de um modo bem acentuado o sistema de colonização da América do Sul” (639).

Ora, Sílvio Romero, apesar de Teófilo dizer que “estava muito longe de perceber” isto, percebera, seguramente, que a intenção de Teófilo era justamente perscrutar na “cultura popular brasileira”, nos Cantos e nos Contos, por si compilados, o fenômeno de modificação da “raiz” lusitana em um meio diverso, o brasileiro. Sílvio, aliás, sabia mais do que isto. Sabia também que o empreendimento intelectual teofiliano chocava-se com o seu – justamente pela similitude da forma. Pela semelhante recorrência à estética do hibridismo. Pela forma como o “moçárabe” de um – e tratandose do “moçárabe” com potencial de revivescência – diminuía a peculiaridade demarcatória do “mestiço” do outro – tratando-se de um “mestiço” talhado para vincar a unicidade e a diferenciação de carácter. Daí que ao movimento de aproximação intelectual transatlântico expresso na associação do açoriano com o sergipano, nas páginas da Revista de Estudos Livres, se tenha seguido de uma acirrada polêmica, posto que, justamente por compartilharem de uma mesma atenção ao potencial demarcatório do estudo étnico e sociológico das literaturas – atento aos efeitos da hereditariedade –, as duas perspectivas acabavam por concorrer uma com a outra. É que a assunção da escala nacional como referência

639

BRAGA, Teófilo. Contos Tradicionais do Povo Português. Volume I, Lisboa: Publicações Dom Quixote, [1883] 1987, p.62-63. Grifos nossos.

278

cultural encarava com suspeição a partilha de um mesmo “código de originalidade” por duas culturas diferentes.

3.2.

Impõe-se, agora, colocar a observação do lado de Sílvio Romero.

Dizer que ele se tratar do “duplo” brasileiro de Teófilo é, até certo ponto, verdade. Mas não é dizer tudo: é na sua similaridade de pontos de partida formais que radica a procura do distanciamento. Como mobilizava o brasileiro a historicidade e, a partir desta, buscava demarcar a originalidade cultural brasileira? Esta é, aqui, a questão a elucidar. De um aspecto não sobram dúvidas: a Romero reconhece-se papel destacado nas narrativas dezenovistas que buscaram fundar um padrão estético-identitário para o Brasil (640). Encarada nessa perspectiva, sua História da Literatura Brasileira permite acompanhar os esforços romerianos naquele sentido. Trata-se de uma obra dividida em duas partes distintas. Num primeiro tomo, Romero define os elementos de uma “história natural” da literatura brasileira, emprestando especial relevo às “condições de nosso determinismo literário”, bem como às “aplicações da geologia e da biologia às criações do espírito” (641). No segundo volume, uma vez estabelecidas as demarcações teóricas, o autor desenvolve então a sua perspectiva analítica. A concepção, aí desenvolvida, de quatro fases histórias da formação nacional brasileira – o período de formação (1500-1750), período de desenvolvimento autonômico (1750-1830), período de transformação romântica (1830-1870) e período de reacção crítica, que vai de 1870 em

640 MOTA, Maria Aparecida Rezende. Sílvio Romero. Dilemas e combates no Brasil da virada do século XX. Rio de Janeiro: FGV, 2000. 641 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora [1888], 1953, p.59

279

diante – completa a apresentação formal da sua obra (642). Vejamos o respectivo sentido e os correspondentes pressupostos pré-compreensivos. Romero foi loquaz em declarar a “morte do passado” – leia-se, do “passado” lusitano – destacando, pelo estudo da literatura, a “originalidade brasileira”. Quanto ao relevo dado à literatura, refira-se que – como Teófilo Braga – Sílvio acreditava na possibilidade de coletar traços da “cultura popular”, inventariando o que diferenciava – demarcava – o Brasil no concerto mundial. Por isso, sua utilização da literatura ultrapassava em muito o “fato literário”. Como ele mesmo o dizia, “a divisão proposta não se guia exclusivamente pelos fatos literários; porque para mim a expressão literatura tem a amplitude que lhe dão os críticos e historiadores alemães. Compreende todas as manifestações da inteligência de um povo: - política, economia, arte, criações populares, ciências” (643). Em termos profundos, a “Literatura Brasileira” definia-se, para o crítico sergipano, por um “processo de adaptação de ideias europeias às sociedades do continente”. O flagrante recurso à ação do “meio” como elemento diferenciador, modificador, da influência portuguesa, não é casual: advém do impacto do materialismo monista, temperado por uma apetência de futuro – leia-se: de superação do passado, representado pela teleologia evolucionária. Refletindo

as

demarcações

operadas

no

contexto

dos

diversos

“evolucionismos”, esta arquitectura ideária perfazia um movimento que ia “da imitação tumultuária, do antigo servilhismo mental”, à “escolha, à seleção literária e científica”. É que, para Romero, “a darwinização da 642 Nas palavras de Romero: “o positivismo filosófico francês, o naturalismo literário da mesma procedência, a crítica realista alemã, o transformismo darwiniano e o evolucionismo de Spencer começaram a espalhar-se em alguns círculos acadêmicos, e uma certa mutação foi-se operando na intuição corrente. Todos os anos crescia o número dos combatentes; foram eles os primeiros que no Brasil promoveram a reação seguida e forte contra o velho romantismo transcendental e metafísico”. Atente-se que na periodização romeriana, destaca-se o ano de 1870 – a geração de 1870 – como sendo aquela que teria operado uma “reacção crítica” fundamental no sentido de definir a “cultura brasileira”. Como já se disse, este movimento crítico veio na esteira do impacto da chegada do “bando de idéias novas”. Ibidem, idem, p.60. 643 Ibidem, idem.

280

crítica é uma realidade tão grande quanto é a da biologia”. Imbuído que estava desta “poderosa lei da concorrência vital por meio da seleção natural”, isto é, “da adaptação e da hereditariedade”, o crítico brasileiro perscrutava na literatura a marca da diferenciação nacional (644). Com o exposto, pode-se perceber que, tanto a História da Literatura Portuguesa, de Teófilo Braga, quanto a História da Literatura Brasileira, de Sílvio Romero, compartilham de um mesmo cuidado para com a comprovação factual da cultura nacional de seus países. Os conceitos de “raça” e “meio” balizam empiricamente a linha divisória que separava, para o açoriano, o “português” dos demais “povos ibéricos”, e, para o sergipano, o “brasileiro” de Portugal. Só no horizonte deste escopo se entenderá a “função estética” análoga de suas interpretações nacionais, emblematicamente

definidas

como

“moçarabismo”

teofiliano

e

“mestiçagem” romeriana. Em paralelo, outro ponto em comum nos dois projectos culturais é a idealização de um sistema composto por “fatores estáticos” e “fatores dinâmicos”, complementarmente articulados. Para Romero, “a hereditariedade representa os elementos estáveis, estáticos, as energias das raças, os predicados fundamentais dos povos; é o lado nacional nas literaturas”. E se a hereditariedade, é compreendida como uma constante histórica, a este “elemento estável” Romero trata de aduzir “a adaptação”, entendida como expressão dos “elementos móveis, dinâmicos, genéticos, transmissíveis de povo a povo”. Hereditariedade e Adaptação eram, portanto, duas faces da mesma moeda: uma, referindo-se à escala universal, outra à nacional; uma, representando a semelhança, outra a diferenciação. Ecos da perspectiva naturalista da história da literatura, considerações de quem se assume “munido do critério popular e étnico para

644

Ibidem, idem, p.63.

281

explicar o nosso carácter nacional”, e esteio da mobilização própria do “critério positivo e evolucionista da nova filosofia social” (645). Por isso, o estudioso pretendia estar no um exercício da atenção creitériosa: “todo poeta, todo romancista, todo dramaturgo, todo crítico, todo escritor brasileiro de nossos dias tem a seu cargo um duplo problema e há-de preencher uma dupla função: deve saber do que vai pelo mundo culto, isto é, entre aquelas nações europeias que imediatamente influenciam a inteligência nacional, e incumbe-lhe também não perder de mira que escreve para um povo que se forma, que tem suas tendências próprias, que pode tomar uma feição, um ascendente original. Uma e outra preocupação são justificáveis e fundamentais”. [Afinal], “para que a adaptação de doutrinas e escolas europeias ao nosso meio social e literário seja fecunda e progressiva, é de instante necessidade conhecer bem o estado do pensamento do Velho Mundo e ter uma ideia nítida do passado e da atualidade nacional” (646).

Não surpreende, assim, que o autor entenda retomar as suas anotações dos primeiros textos publicados no Rio de Janeiro – expostas na primeira parte deste trabalho –, operando, em 1888, na sua História da Literatura Brasileira, uma espécie de copy and paste analítico, nomeadamente quanto à discussão das “principais teorias da história do Brasil”. Ou seja, o autor trabalha a partir das suas linhas escritas em 1883 e primeiramente publicadas na Revista de Estudos Livres. As “principais teorias” em causa, relativas à história brasileira, eram a de Karl Friederich von Martius, a de Thomas Buckle, a de Teófilo Braga, a de Oliveira Martins, a dos discípulos de Comte e a dos sectários de Spencer(647). Romero analisa cada uma delas. Começa pela obra do botânico Karl Friederich Philipp von Martius, autor de uma dissertação intitulada “Como se deve escrever a história do Brasil”, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico

645

Idem, ibidem, p.64 Idem, ibidem. 647 ROMERO, Silvio. “Teorias Históricas e Escolas Literárias no Brasil” In: Revista de Estudos Livres. Ano I, volume I, 1883-1884, p.203 e ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora [1888], 1953, pp.64-65. 646

282

Brasileiro, em Janeiro de 1845(648). Segundo Romero, embora pequeno, trata-se de um dos “mais interessantes” trabalhos feitos por escritores estrangeiros, pois “Martius abriga-se ao grande princípio moderno das nacionalidades, coloca-se num ponto de vista etnográfico e indica em traços rápidos os diversos elementos do povo brasileiro”, revelando, desta forma, os “selvagens americanos” e seus hábitos, os portugueses e “suas vantagens de gente civilizada”. Não admira que as considerações do naturalista alemão mereçam a anuência do crítico sergipano: na verdade, como assentirá este último, foi “de tudo isto é que saiu o povo brasileiro” (649). Este reconhecimento não impedia, contudo, a imputação de uma lacuna: a de sua exposição ser “puramente descritiva”. Faltava, com efeito, no realce da ação dos elementos raciais, um “nexo causal”. Este nexo causal que será estabelecido, na interpretação romeriana da literatura brasileira, pela mobilização do evolucionismo spenceriano – como veremos adiante. Por sua vez, de decididos reparos se compõe, entretanto, a sua apreciação da obra de Thomas Henry Buckle, “afamado autor da História da Civilização da Inglaterra”, que, publicada em 1857 e “detalhadamente” se ocupando do Brasil. Desta feita, está em causa a divisão das nações, feita por Buckle, através do par analítico “moderno/primitivo”. Dentro deste postulado, o “moderno” teria as condições naturais favoráveis, tornando a força civilizacional superior à natureza e, no último, no pólo “primitivo”, dar-se-ia o contrário, isto é, sem condições ambientais favoráveis, o homem ficaria subjugado às forças naturais. Vale frisar que a análise romeriana desta perspectiva se opões à sua aplicação ao Brasil, na medida que ditava 648 MARTIUS, Karl F. P. von, “Como se deve escrever a história do Brasil”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro . Rio de Janeiro : IHGB, n.º24, 1845. Para uma análise da obra de von Martius, no âmbito da produção historiográfica do IHGB, consultar, entre outros, GUIMARÃES, Manoel Salgado. “Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico e o Projeto de uma História Nacional”. In: Estudos históricos. Rio de Janeiro, n.1, 1988, p.5-27. 649 ROMERO, Silvio. “Teorias Históricas e Escolas Literárias no Brasil”. In: Revista de Estudos Livres. Ano I, Volume I, 1883-1884, p.203 e ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeir: José Olimpio Editora [1888], 1953, p.65.

283

a “falta de uma civilização primitiva brasileira”. Isto se revela, para Romero, “falsa na descrição geral do clima brasileiro” e “em demasia exterior [posto que] cosmológica demais” (650). Debruça-se então Romero, com muito maior detalhe, sobre a obra do português Teófilo Braga. Faz, contudo, a ressalva de que Teófilo não tivera por objetivo primeiro escrever uma teoria da história brasileira, realizando apenas alguns estudos sobre a evolução literária do Brasil. O sergipanoo se refere às informações contidas no prólogo do Parnaso Português Moderno, de 1877 (651), depois reproduzidas também nas Questões de Literatura e Arte Portuguesa, obra de 1881 (652). Primeira nota a ter em conta: nas considerações de Romero patenteia-se uma especial atenção à noção de “hibridação”, aspecto que não pode deixar de remeter para a interpretação que temos defendido quanto à existência de uma acentuada concorrência entre os dois autores no âmbito da estética do hibridismo. Naturalmente, a expressão dessa lógica concorrencial não se dá de uma vez por todas e de modo assumido. Ele é definida laboriosamente no quadro de um elenco de discordâncias que remetem francamente para aquela questão de fundo. Merece censura a Romero o fato de que “Braga acredita que o lirismo da Europa meridional teve uma origem comum” e que “esta fonte geral foram as populações turanas, descidas da alta Ásia”, divididas em dois grupos, um dolicocéfalo e outro branquicéfalo. Essa crítica tem sua razão de ser porque tem efeitos na compreensão que Teófilo terá dos índios americanos, motivo pelo qual Romero rejeitará também o 650 Conforme Romero, o britânico, em “sua pretensiosidade de explicar puramente pela física do globo as civilizações primitivas e actuais”, criou uma doutrina “incompleta é estéril”. A tese sobre a história do Brasil propagada pelo autor da History of Civilizacion in England é considerada como um “círculo vicioso”, na medida em que explica o “clima pela civilização e a civilização pelo clima”. Para Sílvio, teorias como esta apenas “atiram-nos frases ao rosto, supondo que nos enchem a cabeça de fatos”. Idem, ibidem, p.66-67. 651 BRAGA, Teófilo, Parnaso português moderno. Lisboa: Francisco Arthur da Silva, 1877. 652 BRAGA, Teófilo, Questões de literatura e arte portuguesa. Lisboa: A.J.P. Lopes, 1881.

284

postulado de que se tenha dado na América uma “semelhante marcha de povos turanianos” (como defendia o açoriano), fundada na homologia, observada na Europa, entre a “branquicefalia do basco francês e a dolicocefalia do basco espanhol”, e manifestada, em contexto americano, com a “suposta dolicocefalia das raças da América do Norte e a pretendida branquicefalia geral das da América meridional”. Para Sílvio, “tudo isto é muito largo e também muito aventuroso”, sendo, antes, “presunções que nada têm de positivo, nada têm de provado” (653). De acordo com ele, “a hipótese de Teófilo Braga, tirada das idéias de Retzius, Beloguet, PrunerBey e Varnhagen, para ser aceite, deveria justificar os seguintes fatos”: i) “o monogenismo das raças humanas e sua origem comum na Ásia, o que não é nada fácil no estado atual da ciência e diante justamente dos trabalhos de Paul Broca, que o escritor português chama sem razão em seu auxílio [Romero dirá que Broca defendia o poligenismo]; ii) “a veracidade da tríade de M. Muller, que defende que os povos dividem-se em arianos, semitas e turanos, empresa difícil ante a lingüística das raças uralo-altaicas, polinesias, africanas e americanas”; iii) “a emigração dos turanos para a América”; iv)“a redução dos povos deste continente a esse ramo único”; e v) “enfim demonstrar a identidade do desenvolvimento das raças americanas e asiáticas, um impossível a olhos vistos”(654). Considera, por fim, Romero, que “tudo o que se disser sobre a tese do asiatismo dos povos americanos é pintar na água, ou escrever na areia”, o que o conduz a defender a tese de Lund que afirmava ser o continente americano habitado antes mesmo do velho mundo (655). E conclui: “admitindo a identidade das

653 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora [1888], 1953, p.67. 654 Idem, ibidem, pp.67-68. 655 É interessante notar a ressalva cientista, feita por Romero, a respeito da origem dos povos americanos: “Os estudos científicos sobre as raças americanas começam agora no Brasil. Reduzem-se por ora a pequenos trabalhos sobre craniologia, lingüística e arqueologia artística e industrial. Não existem muitos fatos demonstrados, os materiais são ainda limitadíssimos;

285

origens do lirismo português e tupinambá, como quer Teófilo Braga, o que daí se poderá inferir para a filosofia da história brasileira? Nada. A tese do notável português é puramente literária e não visa a uma explicação científica de nossos desenvolvimento social” (656). Em seguida, parte para a análise de J.P. de Oliveira Martins, focando seu livro O Brasil e as Colónias Portuguesas. Segundo Romero, as teses martinianas dão conta de “todo o interesse dramático e filosófico da história nacional na luta entre os jesuítas e os índios de um lado e os colonos portugueses e os negros de outro”. Critica, porém, o dualismo da obra, visto ser “em grande parte de pura fantasia, e, no que tem de real, não passa de um fato isolado, de pouco valor e duração […] que não pode trazer em seu bojo, como um segredo de fada, toda a latitude da futura evolução do Brasil”. De acordo com Sílvio, o erro cometido por Oliveira Martins seria o de alçar “à categoria de princípio geral e dirigente” o que era “um simples incidente”, fazendo da sua obra como “uma dessas sínteses fúteis com que certos novelistas da história gostam de nos presentear de vez em quando” (657). Será, ainda, no mesmo tom de desconsideração que irá analisar as teorias produzidas pelo positivismo brasileiro, detendo-se particulamente nas obras de Teixeira Mendes e Anibal Falcão, produtoras de uma “teoria da pátria brasileira”(658). Nestas obras, denuncia sua “comodidade” de suas interpretaçõespor estarem ancoradas na reprodução do dualismo histórico entre germânicos e ibéricos, reprodução para ele desnecessária e demasiadamente simétrica. Sua

entretanto, já temos uma dúzia de teorias para explicar a origem dos tupis-guaranis e dos americanos em geral”. Idem, ibidem, p.68-69 656 Idem, ibidem, p.70. 657 Idem, ibidem, p.70 658 MENDES, Teixeira. A pátria brasileira. Rio de Janeiro, 1881. FALCÃO, Aníbal. Fórmula da civilização brasileira. In: Diário de Pernambuco, n.º 46 a 50, 1883.

286

transportação para explicação do caso brasileiro era forçada e produto de pura “fantasia” (659). Mas, uma vez refutadas, em maior ou menor grau, as várias aproximações ao fenômeno brasileiro, qual, em fim de contas, a sua própria visão? É significativo, a este propósito, o modo como Sílvio Romero opta por comentar a última das linhas teóricas a cuja crítica se tinha proposto, justamente a que, nas suas próprias palavras, exprimia uma conotação spenceriana. Dirá o seguinte: “Uma teoria da evolução histórica do Brasil deveria elucidar entre nós a ação do meio físico, por todas as suas faces, com fatos positivos e não por simples frasesfeitas; estudar as qualidades etnológicas das raças que nos constituíram; consignar as condições biológicas e econômicas em que se acharam os povos para aqui imigrados nos primeiros tempos da conquista; determinar quais os hábitos antigos que se estiolaram por inúteis e irrealizáveis, como órgãos atrofiados por falta de função; acompanhar o advento das populações cruzadas e suas predisposições; descobrir assim as qualidades e tendências recentes que foram despertando; descrever os novos incentivos de psicologia nacional que se iniciaram no organismo social e determinaram-lhe a marcha futura. De todas as teorias propostas a de Spencer é a que mais se aproxima do alvo, por mais lacunosa que ainda seja” (660).

Compreende-se. Se “uma teoria da história dum povo parece-me que deve ser completa de sua marcha evolutiva [e que] deve apoderar-se de todos os fatos, firmar-se sobre eles para esclarecer o segredo do passado e abrir largas perspectivas na direção do futuro”; se, além disso, “seu fim não é só o de mostrar o que esse povo tem de comum com os outros; sua obrigação é ao contrário exibir os motivos das originalidades, das particularidades, das diferenciações desse povo no meio de todos os outros”; então, a tal projecto “não lhe cumpre só dizer, por exemplo, que o Brasil é o prolongamento da cultura portuguesa a que se ligaram vermelhos e negros. Isto é muito descarnado e seco; resta ainda saber como estes elementos aturaram e atuarão uns sobre os outros e mostrar as causas de 659 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora [1888], 1953, p.71. 660 Ibidem, idem, p.73.

287

seleção histórica que nos vão afastando de nossos antepassados ibéricos e de nossos vizinhos também filiados na velha cultura ibérica” (661). A preocupação de Sílvio Romero de fundar um padrão estético-analítico da “cultura brasileira” anda, pois, de mãos dadas com uma mobilização da história onde o tempo futuro ultrapassa o passado em importância, posto ser o garantidor da ação demarcatória do nacional – via “seleção natural”. Não é casual, portanto, que o sergipano autor de História da Literatura Brasileira, publicada em 1888, iniciasse do seguinte modo seu projeto estético identitário: “a história do Brasil, como deve ser hoje compreendida, não é, conforme se julgava antigamente e era repetido pelos entusiastas lusos, a história exclusiva dos portugueses na América. Não é também, como quis de passagem supor o romanticismo, a história dos tupis, ou, segundo o sonho de alguns representantes do africanismo entre nós, a dos negros em o Novo Mundo” (662). Entrevêem-se as referências implícitas aos clássicos padrões de explicação da “cultura brasileira”: o “lusismo” de um Francisco Adolfo de Varnhagen (663), o “indianismo” de um José de Alencar (664) e o “africanismo” de um Castro Alves (665). Como vimos em capítulos anteriores, desde há muito Romero buscava a definição de uma estética identitária que definisse a singularidade da “cultura brasileira” perante os demais povos. Lembre-se como, em 1880, no opúsculo A literatura brasileira e a crítica moderna, já declarava que “o 661

Idem, ibidem, p. 72-73. Grifos nossos Idem, ibidem, p.55. 663 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert e Madrid, 1ª edição 1854-1857. Para um análise da obra de Varnhagen, consultar WHELING, Arno. Estado História e Memória: Varnhagen e a Construção da Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 664 ALENCAR, José de. O Guarani. São Paulo: Círculo do Livro, 1ª edição 1857, [s.d]. Existem muitas obras que se dedicaram a estudar o indianismo alencariano. Indicamos, aqui, em título de exemplo, a obra de BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. 665 ALVES, Castro. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, [s.d.], principalmente “Navio Negreiro” e “Vozes d’África”, contidas no livro Os escravos, de 1868. Para uma análise bio-bibliográfica de Castro Alves, indicamos o recente trabalho de COSTA E SILVA, Alberto da. Castro Alves:um poeta sempre jovem. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 662

288

índio não é o brasileiro, mas o português também não; a alternativa entre o cauin e o vinho verde é antigalha – carunchosa. É preciso descortinar entre os dois extremos, alguma coisa de melhor” (666). Na sua História da Literatura Brasileira, estampada oito anos depois das linhas acima e poucos dias antes da Abolição da Escravidão no Brasil, suas ideias ganham maturidade e maior solidez formal. Daí que dissesse que a história do Brasil “é antes a história da formação de um tipo novo pela ação de cinco fatores, formação sextiária em que predomina a mestiçagem. Todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas ideias. Os operários deste fato inicial têm sido: o português, o negro, o índio, o meio físico e a imitação estrangeira” (667). De transcendência máxima era, para Romero, estudar “tudo quanto há contribuído para a diferenciação

nacional”,

sendo

esta

diferenciação

entendida,

simbolicamente, como o “critério novo”. Detalhe não desprezível: o critério da novidade. Ele assinala o lugar nevrálgico da originalidade, preocupação maior de Romero no âmbito da fundação estética da “cultura brasileira”, intuito identitário que, ao laborar em torno de uma alteridade definida, em boa medida, pelas propriedades do contraste, redundava, segundo o viés romeriano, num axioma afinal bem simples: “tanto mais um autor ou um político tenha trabalhado para a determinação de nosso carácter nacional, quanto maior é o seu merecimento [do mesmo modo que, ao contrário,] quem tiver sido um mero imitador português, não teve ação, foi um tipo negativo” (668). O crivo analítico de Sílvio, como em suas linhas de 1880, seguia apontando para Portugal, com o objetivo de demarcar os “produtores” da “cultura brasileira” relativamente ao lusitano. Assim explanava o autor: 666 ROMERO, Sílvio. A literatura brasileira e a crítica moderna. Rio de Janeiro: Imprensa Industrial, 1880, p.75-76. 667 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olimpio Editora [1888], 1953, p.55-56. Grifos nossos. 668 Ibidem, idem, p.56. Grifos nossos

289

“Só contemplarei, portanto, como nossos os nascidos no Brasil, quer tenham saído, quer não, e os filhos de Portugal, que no Brasil viveram longamente, lutaram e morreram por nós, como Anchieta e Gonzaga nos tempos coloniais, e, como políticos, nos tempos modernos, Clemente Pereira e Limpo de Abreu. Todos estes tiveram do reino só o berço, sua vida foi brasileira e pelos brasileiros” (669). De alguma maneira, este Romero para quem “os tempos passados são como mortos” e que, com base nesse pressuposto, neles se permite instalar aqueles, e apenas aqueles, que se acordavam com a sua ideia de originalidade e que compunham essa originalidade como critério maisor de uma história rescrita a partir dessa obsessão presente e dessa “antevisão”, a posteriori, do que o passado deveria ser, realiza aquilo que Fernando Catroga, parafraseando Schlegel, chamou de “previsão ao contrário” (670). Com efeito, para Romero, o critério da originalidade e da diferenciação nacional é a constante analítica de sua genealogia mestiça. Combinado com certo anseio romântico, pela preocupação com a idiossincrasia nacional, cola-se, porém, à batuta empiricista do positivismo heterodoxo. Herbert Spencer lhe dará o norte evolutivo, chave-mestra da diferenciação brasileira face ao passado português, germe da originalidade mestiça. Afinal, “um povo que se forma não deve só pedir lições aos outros; deve procurar ser-lhes também um exemplo” (671). Num tal cenário, como estranhar a concorrência pela matriz de hibridização cultural que o interesse de Teófilo Braga no estudo das tradições,

modinhas

e

lendas

brasileiras



tomado,

enquanto

“prolongamento” das tradições portuguesas em novo contexto – vem abrir? Como não aceitar que é exatamente neste ponto que sua estética relacional 669

Ibidem, idem, p.58. CATROGA, Fernando. Caminhos do Fim da História. Coimbra: Quarteto, 2003, p.79. 671 ROMERO, Silvio. História da Literatura Brasileira. Tomo Primeiro. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. Coleção Documentos brasileiros, dirigida por Octávio Tarquínio de Sousa. 3ª Edição organizada e prefaciada por Nelson Romero, [1888], 1943, p.43. 670

290

entra em choque com a de Sílvio Romero, conformando, a um primeiro nível, um confronto ditado pela similaridade formal, um choque pela semelhança do modelo original idealizado? E como não perceber, de igual modo, as diferenças que a partir dessa base comum se levantam? Afinal, a libertação do telos histórico implícito na sociologia materialista monista de Teófilo Braga será combatida pelo objectivo demarcatório de Sílvio Romero, enformado pelo telos evolucionista de matriz spenceriana que justificava a originalidade e autonomia da cultura brasileira. Dito de outro modo: a “persistência” lusitana nos trópicos que, para Teófilo, representará o espectáculo neolamarckiano e monista da readaptação de uma “raiz” cultural em novo meio ambiente – o laboratório tropical brasileiro –, entra em forte choque com a demarcação pela história da originalidade de um povo em formação, como era o brasileiro, consoante a explicação nacionalista de Romero. Demarcações de vária ordem, portanto. Não eram as únicas combinatórias possíveis. Porque se este tipo de dispersões hermenêuticas e de modelos concorrenciais atuava à escala luso-brasileira, definindo, nesse jogo demarcatório, os contornos de cada uma das culturas nacionais implicadas. Dito isto, importa ter presente que outro tanto sucedia, paralelamente, no âmbito interno brasileiro. No âmbito escalar regional também se reproduziam aqueles alinhamentos, aquelas mobilizações teóricas, aquela mesma busca de definição identitária. Mesmo se realizada, tão somente, a título exploratório, a aproximação a esse processo constituirá o nosso derradeiro investimento analítico.

291

4. “Riograndeseses” e “Sertanejos”: a intersecção portuguesa do regionalismo brasileiro.

De acordo com a nossa hipótese, o regionalismo brasileiro representou também uma forma de “administrar” o “passado português” no Brasil. Dito de outro modo, a fundação de estéticas culturais e identitárias que apelam à escala regional terá ativado, por sua vez, mobilizações da história no sentido de “naturalizar” (consoante o espectro materialistamonista) a “presença” do “português” na formação dos tipos regionais brasileiros. Quererá isto dizer, de algum modo, que passamos a indagar a construção de “mestiços regionais”, se a expressão é permitida? Até certo ponto, pode considerar-se que sim, que intentamos, afinal, aferir do desdobramento processado pelo “efeito” romeriano e pela obsessão pela originalidade, de uma matriz nacional para um ambiente regional. Vejamos, a partir de dois estudos de caso, os contornos desta percepção para o período em estudo. A análise a que nos propomos, tem carácter exploratório. O nosso suporte empírico constará, exclusivamente, do opúsculo de Víctor Valpírio, “Contos Rio-Grandenses (Introdução)”, escrito em Porto Alegre, em 1872, e de um fragmento da magistral obra de Euclides da Cunha, Os Sertões: campanha de Canudos, que veio à estampa em 1902. Nos dois casos, ocupar-nos-emos apenas com os aspectos relevando de determinada mobilização da história, e, mesmo aí, somente com aqueles em que essa mobilização se faz a pretexto de determinado entendimento ou proposta analítica referente à escala luso-brasileira, mais propriamente à sua “negociação” em âmbito regional. Damos assim lugar, é certo, a uma compressão momentânea do nosso objeto de estudo. Esse é, de forma declarada, o nosso intuito. A problemática de fundo é a mesma, mas a possibilidade de lhe apreciar os efeitos a níveis não coincidentes com as esferas nacionais de relacionamento é desafio indeclinável para captar o 292

fenômeno da multiplicação de escalas característico de qualquer estratégia de delimitação (672) e uma das manifestações do caráter configuracional das relações luso-brasileiras do período em questão. Publicado em Porto Alegre, no número cinco da Revista Mensal do Partenon Literário (673), em Novembro de 1872, o opúsculo intitulado “Contos Rio-Grandenses (Introdução)” simboliza claramente uma busca da “identidade regional” propulsionada a partir de um “acerto de contas” com Portugal. Um “acerto” que tem o endosso do naturalismo, tão caro ao repertório teórico disponível naquele contexto. O autor, Victor Valpírio, inicia chamando a atenção para a premência de “fazermos independência literária, e estabelecermos na federação das letras república à parte”. Rápido se surpreende o mesmo sentido estético da americanização, já observado no manifesto republicano de 1870. A opção de ressaltar o “cunho americano” na produção literária, o faz chamar atenção para o “raio de sol das Américas, que doira as nossas frontes juvenis [e que] espelhar-se brilhante nas produções da musa dos brasileiros” (674). O subentendido da aposta americana de Valpírio comporta a correção de alguma excessiva reverência para com o legado e a capacidade referencial europeia: “Não modelemos tanto as nossas aspirações pelo cadinho europeu, nós que na mais opulenta plaga lemos a epopéia estupenda da criação do livro infinito da natureza. De originalidade ou ao

672 MARTINS, Rui Cunha. O Método da Fronteira. Radiografia histórica de um dispositivo contemportâneo (matrizes ibéricas e americanas). Coimbra: Almedina, 2008. 673 Sobre a Revista Mensal do Partenon Literário consultar CÉSAR, Guilhermino. História da Literatura do Rio Grande do Sul (1737-1902). Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro/ Corag, 2006, principalmente o capítulo “O grupo do Partenon Literário”, pp.181-200, e também HESSEL, Lothar. O Partenon Literário e sua obra. Porto Alegre: Flama, 1976. O “programa” do Partenon Literário de Porto Alegre foi publicado na revista Letras de hoje, n.40, 1980, pp.1719. 674 Assim se manifestava Victor Valpírio: “Dos ombros da náiade do Amazonas afastemos o manto servil da imitação européia, pesado para o nosso clima ardente, e demos-lhes as vestes leves, gentis, da virgem das florestas natalícias”. VALPÍRIO, Víctor. “Contos Rio-Grandenses (Introdução)”. In: Revista Mensal do Partenon Literário: 2ª série. Novembro de 1872, n.º 5. Porto Alegre: Tipografia do ‘Constitucional’, 1872, pp.41.

293

menos naturalização da ideia, precisa a literatura pátria”. Num país de dimensões continentais, fácil era interpretar a diversidade natural e climática como apelo à mobilização da escala regional para a constituição de um referente estético primordial. Aliás, nas palavras do autor, “segundo a região, clima ou natureza do país, são as condições de vida dos povos; outra a face predominante do seu carácter; outras as suas inclinações naturais, o seu sentir social: como que todos os povos têm uma alma natal” (675). Se o apego à natureza como produtora de originalidade estéticocultural parece assim inquestionável (676), importa não o entender como indicador de uma menor atenção à história, nem como incapacidade para estruturar, sobre a história e a partir dela, essa vertente tópica da construção identitária que é o complexo acerto de contas com o passado. O apelo ao espaço não significa o esquecimento do tempo: ao contrário, naturaliza-o, sedimenta-o. Quem não distingue “em uma roda de brasileiros o filho de Portugal?”. Para Valpírio, “não é preciso que ele fale para indicar-se-lhe a naturalidade!” (677). Não era verdade que, como rezava esse opúsculo de 1872, “Portugal é de algum modo nosso avoengo; nossos antepassados se entroncarão na família lusitana”? A questão era a de que o liame entre gaúchos e portugueses se traçava pela negatividade, na medida em que “de comum temos a língua que falamos, já com acentuada cor brasileira, a casa de Bragança e Bourbon, cujo cetro agrilhoa o gordo costado lusitano e a

675

Idem, ibidem, p.42. Grifos nossos. Outro elemento que parece evidente é o processo de “naturalização da ideia”, certamente eco da divulgação do “bando de idéias novas” em Porto Alegre, como provam as elogiosas frases de Sílvio Romero à acção de Carlos von Koseritz. Sobre as demarcações nativistas gaúchas sob influência do pensamento de Kosertiz, consultar GANS, Magda Roswita. Presença Teuta em Porto Alegre no século XIX (1850-1889). Porto Alegre: Editora da UFRGS/ANPUHRS, 2004, principalmente o capítulo “A construção dos limites étnicos pelos teutos de Porto Alegre. Discursos intelectuais e representações coletivas”, pp.111-210. 677 Idem, ibidem, p.42-43. 676

294

um pouco mais franzina lombeira brasileira, e instituições caducas, desprestigiadas, que mutuamente se copiam” (678). Terreno aberto, por conseguinte, para todo o gênero de exercícios de diferenciação, forçando a linha divisória a ganhar nitidez, a ganhar o recorte de uma “mestiçagem” diferencial, não já estruturada sobre o “brasileiro” mas sobre o “rio grandense”, conceito e escala capaz, tanto quanto aquele, de fundar a separação em relação ao português. Pois “no sangue do nosso povo corre, de mescla com os portugueses, gotas de outra raça; em nossa imaginação pululam outras ideias, em nosso coração outro sentir e em nossa alma outras ambições”. Para Valpírio,

“não é o bom lavrador do Minho, que após prolongado trabalho em suas geiras descança ao crepitar dos velhos cepos no fogo da lareira, – o audaz gaúcho que voa nos pampas do sul montado no furioso bagual, tendo por pátria a solidão sem fim, sem amores nem família, sem laços que o detenham em sua vida errante! Não é o barqueiro do Douro, não é o saudoso pescador do Tejo, – o intrépido jangadeiro dos mares do norte, que no frágil lenho arrosta a sanha do oceano seu descôr; – o robusto caboclo do Pará, que entronizando na piroga corta com o remo subtil as argentas escamas do rei das águas! O trabalhador da Beira, que passa longos serões ao lado do fogo na debulhada do trigo, – das não é o escravo brasileiro, que ao cantar do galo à meia-noite, mal dormido, corre ao som do sino da charqueada, tremendo de frio que corta, sob o açoite ameaçador do capataz, a cancha, para matar bois até dia alto, e daí até a noite lidar com carnes: isto, meses seguidos, uma safra inteira” (679).

678 679

Idem, ibidem, p.42. Idem, ibidem, p.42-43.

295

Compreensivelmente, dado que a referencialidade portuguesa surge como algo a ser superado, o recurso à história surge como o móbil organizador desta renegociação memorial. Falará, por isso, Valpírio, “do velho e decadente Portugal, mortuário esquife onde repousam para sempre as glórias de um povo ilustre, que há dois séculos conduz à sepultura a dinastia de Bragança, fatal coveiro, – ao Brasil, que, ainda envolto nas fachas da infância, prega os olhos cintilantes, onde bóiam inebriadas as aspirações do século, no véu azul que venda o horizonte futuro” (680). O quadro traçado é claro: na busca pela originalidade estética dos Contos RioGrandenses, a “herança” portuguesa é entendida como o referente do passado a ser superado. Tal como verificado à escala nacional, a fundação de uma originalidade cultural gaúcha passa, assim, pelo processo de demarcação de fronteiras identitárias que mobilizam, também elas, o passado “português” como ultra-passado. Veja-se, a título exemplar, o retrato desse português prisioneiro da sua própria herança, tal como descrito no discurso gaúcho: “O gênio português, lidador cansado, de alvas cãs à mercê dos ventos, assenta-se à beira da estrada, inválido hoje, a embeber-se nas cismas de um passado venturoso de poderio e glória; rememorando um por um todos os seus feitos grandiosos nas éras que já lá vão. Volve os olhos saudosos ao passado, relê folha por folha a história grandiosa do seu arrojo e génio, e de seus lábios frios com o bafejar da noite, ao ver tumultuariamente desfraldarem o estandarte do século nas ameias do progresso os povos viris, escapam-se as palavras: «Ai! Já não posso mais!»”(681). Não desconhecemos que o processo da construção da identidade regional no Rio Grande do Sul foi influenciado por outros elementos, não 680

Idem, ibidem, p.43. VALPÍRIO, Víctor. “Contos Rio-Grandenses (Introdução)”. In: Revista Mensal do Partenon Literário: 2ª série. Novembro de 1872, n.º 5. Porto Alegre: Tipografia do ‘Constitucional’, 1872, pp.43.

681

296

limitados, nem sequer obrigatoriamente reportados à referencialidade portuguesa (682). Para os nossos intuitos, porém, afastados da problemática concreta da identidade reiograndese ou gaúcha e seus componentes históricos, resulta óbvia uma linha de imbricação que, envolvendo os esforços demarcatórios verificados às escalas transnacional (lusobrasileira), nacional (portuguesa e brasileira) e regional (gaúcha) (683), suporta razoavelmente bem a nossa hipótese de trabalho prévia. Aliás, no mesmo sentido parece apontar a outra via de inquérito, respeitante, desta feita, conforme se recordará, ao espaço nordestino. Também para a definição da cultura sertaneja foi necessário um retraçar de fronteiras que implicou as configurações luso-brasileiras em “solo” metafórico regional. Neste ponto, não hesitamos quanto à conveniência de tomarmos o livro Os Sertões: campanha de Canudos, de Euclides da Cunha, como narrativa estética seminal. Como é sabido, a mencionada obra euclidiana, estampada em 1902, possui destacado papel no âmbito da cultura brasileira (684), fato que mereceu a dedicação de muitos intérpretes (685). Contudo, o

682 Consultar, entre outros, OLIVEN, Rubem George. A Parte e o Todo. A diversidade cultural no Brasil-Nação. Petrópolis: Vozes, 1992 entre outros. 683 As relações entre nacionalismo e nativismo não escaparam aos comentaristas da época. Eça de Queirós, por exemplo, em crônica publicada na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, em 1896, fazia as seguintes considerações sobre o movimento nativista no Brasil: “e é certo ainda que muitos moços, com a ingenuidade um pouco tumultuosa que é própria da nossa raça, confundindo nativismo com nacionalismo, tivessem concebido o sonho de um Brasil só brasileiro. Estas idéias e interesses, tendo um fundo idêntico de negação sem dúvida se juntariam, atravancariam a rua com o seu bando e a sua bandeira, e por motivo daquela excitação contagiosa, que tanto prejudica as sociedade meridionais, encontrariam apoio, por um momento, entre multidões crédulas e com os nervos ainda abalado por uma dura guerra civil. Mas essa influência do nativismo só podia ser (como foi, creio eu) muito transitória, no meio de uma nação tão amorável, tão generosa, tão hospitaleira, tão européia e de tão vasta fraternidade como é o Brasil, para sua grande honra entre as nações”. Na mesma crônica, Eça relacionava o apelo ao nativismo no âmbito do crescimento da influência “yankee” no Brasil, percebendo, assim, as imbricações escalares no âmbito identitário do final do século XIX. QUEIRÓS, Eça. “Nativismo”. In: ABDALA JÚNIOR, Benjamim (org.). Ecos do Brasil: Eça de Queirós, leituras brasileiras e portuguesas. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000, p.156. 684 ZILLY, Berthold. “A Reinvenção do Brasil a partir dos sertões: como Canudos é a quintessência do sertão, e o sertão a quintessência do país, o livro de Euclides da Cunha "é" o país, ele reinventa o Brasil, contribuindo para a idéia que a nação tem de si mesma”. In: Revista Humboldt Ano 42, 2000, n.º 80, p. 44-51.

297

que aqui nos interessará em Os Sertões será, especificamente, o momento em que, para estabelecer um “retrato” do sertanejo, Euclides da Cunha estabelece uma dialogia estética com um específico “retrato” português. E se, ao longo de Os Sertões, a demarcação da originalidade cultural do sertanejo, habitante do interior do nordeste brasileiro, se assume como pedra-de-toque da obra, deve dizer-se que, nessa sua busca pela melhor definição das populações do hinterland brasileiro, Euclides da Cunha não hesita em apelar à história como suporte da sua indagação identitária. Não hesita, de igual modo, em “convocar” o passado português, gerindo-o em articulação com o perfil desenhado para um mestiço brasileiro regionalmente definido. Por que “regionalmente” definido? Porque, não havia, para o Euclides de 1902, “um tipo antropológico brasileiro” (686). E por que a “gestão” do referente português? Por uma dupla razão: primeiro, pela utilização da obra de Oliveira Martins, que Euclides menciona expressamente, como fonte explicativa sobre quem eram os portugueses que para o sertão tinham ido; segundo, pela mobilização histórica no sentido de realçar a “herança” lusitana como ingrediente na formação do ripo regional do sertão. Para o autor de Os Sertões, no interior nordestino sobrevivia “uma grande herança de abusos extravagantes, [a qual,] extinta na orla marítima pelo influxo modificador de outras crenças e de outras raças, no sertão ficou intacta” (687). 685 Estando, designadamente, neste caso, as nossas próprias incursões pela obra euclidiana, seja quanto ao processo intelectual do contato de Euclides da Cunha com o interior do nordeste brasileiro seja quanto ao papel fundante de sua obra numa matriz cultural brasileira. Para a primeira questão, ver PAREDES, Marçal de Menezes. “Nacionalidade brasileira e projeto moderno: entre a incorporação da diferença e a introjeção da culpa”. Revista de História das Ideias. Vol.23. Coimbra: Faculdade de Letras, 2002, pp.545-574; para a segunda, PAREDES, Marçal de Menezes. Memórias de um ser-tão brasileiro. Tempo, história e memória em ‘Os Sertões’ de Euclides da Cunha. Curitiba: Juruá, 2002. Neste último trabalho, dicutem-se as diferentes interpretações da obra euclidiana. 686 CUNHA, Euclides da. Os Sertões: campanha de Canudos. Edição crítica de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Editora Ática, 2000, p.84. 687 Idem, ibidem, p.125.

298

E, de fato, tão intacta ficara, no sertão, a marca portuguesa que trouxera esses “abusos extravagantes”, que Euclides da Cunha mais não faz do que buscar inspiração, rquitetando seu discurso sobre os quadros de autoria de Oliveira Martins, como que decalcados pelo autor de “Os Sertões” ao descrever essa herança lusa:

“trouxeram-na as gentes impressionáveis, que afluíram para a nossa terra, depois de desfeito no Oriente o sonho miraculoso da Índia. Vinham cheias daquele misticismo feroz, em que o fervor religioso reverberava à candência forte das fogueiras inquisitoriais, lavrando intensas na Península. Eram parcelas do mesmo povo que em Lisboa, sob a obsessão dolorosa dos milagres e assaltado de súbitas alucinações, via, sobre o paço dos reis, ataúdes agoureiros, línguas de flamas misteriosas, catervas de mouros de albornozes brancos, passando processionalmente; combates paladinos nas alturas… E da mesma gente que após Alcácer-Quibir, em plena «caquexia nacional», segundo do dizer vigoroso de Oliveira Martins, procurava ante a ruína iminente, como salvação única, a fórmula superior das esperanças messiânicas” (688). No contexto da obra euclidiana, a referência direta ao episódio de Alcácer-Quibir, que Oliveira Martins considera um dos marcos da “morte” de Portugal, é mobilizada por Euclides da Cunha como a prova de que o sertanejo representava um caso de “atavismo” na história. No sertão brasileiro remanescia a sobrevivência de algo morto: Portugal. De outra forma não se entenderá a explicação do sebastianismo “sertanejo”, manifesta na figura de Antônio Conselheiro, líder político-religioso de Canudos, que ecoava a crença no retorno de D. Sebastião. Como não se entenderá a insistência posta por Euclides na mesma tónica: “considerando as desordens sertanejas, hoje, e os messias insanos que as provocam, irresistivelmente nos assaltam, empolgantes, as figuras dos profetas peninsulares de outrora – o rei de Penamacor, o rei da Ericeira, errantes pelas faldas das serras, votados ao martírio, arrebatando na mesma idealização, na mesma insânia, no mesmo sonho doentio, as multidões

688

Idem, ibidem. Grifos nossos.

299

crendeiras” (689). Euclides, é sabido, não se furtou, ao longo de toda a sua obra, a fazer inúmeras considerações acerca do “funcionamento” do tempo (690). No caso da sua explicitação sobre o atavismo sertanejo, ressoava, como sobrevivência de um passado supostamente “morto”, um lastro da herança portuguesa. Ou seja, é precisamente com a sua particular predisposição para com o elemento temporal que nos deparamos. A demarcação identitária do tipo regional sertanejo, é, assim, também o resultado de um encontro com a história. Com diferentes momentos históricos, visto tratar-se, na versão euclidiana, de um processo temporal de justaposição. Uma “justaposição histórica” que se calca “sobre três séculos” e que é “Exata, completa, sem dobras. Imóvel o tempo sobre a rústica sociedade sertaneja, despeada do movimento geral da evolução humana, ela respira ainda na atmosfera moral dos iluminados que encalçavam, doudos, o Miguelinho e o Bandarra. Nem lhe falta, para completar o símile, o misticismo político do sebastianismo. Extinto em Portugal, ele persiste todo, hoje, de modo singularmente impressionador, nos sertões do Norte” (691).

Fiquemos por aqui. A “justaposição histórica”

de nos alerta

Euclides da Cunha não não serve, apenas, para pensar o caso das imbricações escalar que se suporpõe em níveis diferentes: um apelo à discussão dos limites simbólicos em escala transnacional, nacional e também visto em nível regiona. Desta feita, todos estes âmbitos escalares fazem parte de desdobramentos do discurso identitário. Nesse processo, 689

Idem, ibidem, p.125-126. A imbricação da delimitação cultural com a demarcação da história é clara desde a introdução de Os Sertões, como se vê no seguinte excerto: “O jagunço destemeroso, o taberéu ingênuo e o caipira simplório, serão em breve tipos relegados às tradições evanescentes, ou extintas. Primeiros efeitos de variados cruzamentos, destinavam-se talvez à formação dos princípios imediatos de uma grande raça. Faltou-lhes, porém, uma situação de parada ou equilíbrio, que lhes não permite mais a velocidade adquirida pela marchas dos povos neste século. Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo. A civilização avançará nos sertões impelida por essa implacável «força motriz da História» que Gumplowicz, maior que Hobbes, lobrigou, num lance genial, no esmagamento inevitável das raças fracas pelas raças fortes”. Idem, ibidem, p.13-14. 691 Idem, ibidem, p.126. Grifos nossos. 690

300

couve às interpretações da história um papel duplo: seja como garantidor das novas referencialidades escalares, seja como agente diferenciador em estéticas concorrenciais. Em todos os casos, contudo, ressoa indelével o uso da história como recurso probatório mais crível, como instrumento de contrução e de reconstrução de memórias forjadoras de indentidade. Numa palavra: como mecanismo central renegociador dos sentimentos de pertencimento no seio das configurações culturais luso-brasileiras.

301

CONCLUSÃO: AS FRONTEIRAS CULTURAIS LUSO-BRASILEIRAS.

Nos finais do século XIX, as culturas portuguesa e brasileira entregam-se a um complexo esforço demarcatório – ao mesmo tempo teórico, político e identitário –, cujo resultado mais visível é uma atmosfera de tendencial afastamento cultural entre ambas, quando não de obsessiva aposta na diferenciação. No seguimento da nossa investigação, não pode ser outro o eixo conclusivo primordial. Afinal, foi possível verificar que aquele investimento demarcatório realizado à escala transatlântica e transnacional – configuracional – é parte integrante e indispensável da própria definição de cada uma das escalas nacionais de referência. Como se o reconhecimento das culturas nacionais envolvidas fosse inabarcável à margem da clarificação do relacionamento entre Portugal e Brasil. Acrescente-se, por fim, a estas dimensões, a percepção do lugar de manifesta nuclearidade ocupado pela história nestes processos – evidente na centralidade tomada pela problemática da “origem” – e teremos aqueles que podem considerar-se, em termos genéricos, os eixos conclusivos de maior relevo a que conduziu a análise efetuada sobre a realidade cultural luso-brasileira para a conjuntura histórica de 1870-1910. Uma análise estruturada, por sua vez, sobre três patamares de inquérito.

302

A identificação de um âmbito relacional marcado por intensa circulação de informação e por intensa actividade argumentativa entre ambos os lados do Atlântico – por nós identificado enquanto configuração luso-brasileira –, obrigou-nos a uma caracterização dessa mesma escala, atenta à sua respectiva funcionalidade. Nesse contexto, mereceram particular destaque quer as redes discursivas nela atuantes, quer os modos de relacionamento com mais frequência ativados, quer ainda os modelos interpretativos desenvolvidos, em tonalidade concorrencial, sobre o próprio sentido dessa escala de caráter configuracional. Em relação às redes discursivas

observaram-se

a

que,

partindo

da

reflexão

política,

desembocava na alegoria da “comunidade de sangue” luso-brasileira, por um lado, e a que, partindo da partilha científica dinamizada no seio do positivismo e do republicanismo, desembocava na alegoria dos “povos irmãos” como expressão da busca pela “fraternidade universal” à dimensão luso-brasileira, por outro. No tocante aos modos de relacionamento, abordou-se o recurso fosse à linha da dissensão, fosse à linha do consenso – esta última averiguada a pretexto do comemoracionismo camoniano – para a produção de efeitos negociais entre as duas culturas. E concedeu-se, enfim, uma atenção às interpretações concorrenciais. Isto permitiu a identificação de três eixos de entendimento sobre o relacionamento lusobrasileiro: o primeiro, que chamámos de derivativo, apontava para a consideração do Brasil como prolongamento de Portugal no continente americano; o segundo, denominado convergente, assinalava a associação de brasileiros e portugueses no âmbito da cientifização destas sociedades no seio do positivismo republicano; o terceiro, propagado pelos que chamados cultores do distanciamento, incidia numa separação identitária do Brasil através da incorporação de Portugal como um ingrediente, entre outros, de uma “brasilidade” original e autônoma.

303

Mediante o desenvolvimento de um segundo patamar de inquérito, pretendeu-se, uma vez constatada e demonstrada a vigência de uma configuração cultural luso-brasileira, direcionar a pesquisa para aquilo que, teoricamente, a fundamentaria: o “repertório teórico” disponível para pensadores portugueses e brasileiros em finais do século XIX. Nesse nível, vieram à tona as condições históricas, políticas e autorais de mobilização do quadro teórico trabalho, bem como os defazamentos e paralelos alinhamentos, profundos ou ocasionais, a que deu lugar a recepção da bagagem doutrinária. Com este fito, surpreendemos a existência de movimentos correlatos de renovação cultural nos dois países, autorizando o tratamento conjunto das “portuguesas” Questão Coimbrã e Conferências do Casino Lisbonense e da “brasileira” Escola do Recife, bem como, no quadro deste processo de crítica cultural, a formação de uma frente cientista luso-brasileira. Esta última, inicialmente incrementada pela difusão

do

positivismo

como

esteio

crítico

da

metafísica,

do

anticlericalismo e do ultramontanismo, evoluirá, através da dispersão gradual das teorias naturalistas disponíveis no final do século XIX, no sentido da produção de demarcações várias – primeiramente entre níveis de ortodoxia e heterodoxia –, perfazendo eixos teóricos em nível transnacional luso-brasileiro, a saber: o eixo ultraortodoxo, o demoliberal, o materialista monista. Em todos estes casos, os pressupostos atinentes aos variados “evolucionismos” existentes em escala luso-brasileira acusaram, por sua vez, diferentes formas de mobilização da história, tornada critério nevrálgico dos fenômenos demarcatórios. A verificação do lugar da história na configuração cultural lusobrasileira, antevista nos patamares anteriores, do mesmo modo que a verificação do potencial delimitador que se lhe reconhecia em sede de negociação e de redefinição de fronteiras político-culturais, conduziram a investigação bem ao cerne do problema identitário luso-brasileiro: a 304

problemática da originalidade. Deste ponto de vista, foi possível assinalar duas principais linhas de força. Em primeiro lugar, uma inversão produzida no âmbito do critério do julgamento moral e das “lições da história”. Com base em O Brasil e as Colónias Portuguesas, de J. P. de Oliveira Martins, percebemos uma compreensão do Brasil como o “herdeiro” americano dos navegadores portugueses e uma leitura da sociedade brasileira como revivescência derivada do período áureo da cultura lusitana; mas, ao invés disto, notamos, em contraposição, o brasileiro Manoel Bomfim, em sua obra América Latina: males de origem, lançar a “orgânica” ligação portuguesa ao “tribunal da história”, invertendo o pressuposto martiniano da “herança” e condenando-o enquanto mal de origem brasileiro. Por seu turno, uma segunda linha de força pode definir-se como uma concorrência no recurso à forma da hibridização cultural enquanto critério de originalidade, depreendendida a partir do confronto entre as obras de Teófilo Braga e Sílvio Romero. Por um lado, a observação de uma comum apetência estética pelo hibridismo – expresso nas figuras do moçárabe “português” e do mestiço “brasileiro” –, no momento de atribuir marca de originalidade às culturas “portuguesa” e “brasileira”, é fator de aproximação entre ambos os pontos de vista. Por outro lado, contudo, essa similitude, ao revelar-se concorrencial na disputa pela singularidade – em paralela atribuição da diferença nacional baseada no critério da “forma híbrida” –, imporá uma estratégia de enfrentamento e uma pugna pelo afastamento das fronteiras culturais e políticas. Tendências, igualmente verificáveis em outros âmbitos escalares: o deslocamento do nosso campo de observação para os contextos regionais brasileiros (analisados a partir das construções identitárias do “sertanejo” e do “rio-grandense”), delineadas a título exploratório, conferiu razoável dose de credibilidade à hipótese de que as escalas infra-nacionais são, também elas, participantes dos referidos processos de arquitetura identitária. As pistas apontam no 305

sentido de que as culturas regionais definiam a sua própria originalidade e, por isso, os critérios da sua própria diferença à medida em que também o fazia a escala nacional. Em ambos os casos, a assunção do afastamento com Portugal parece fazer-se em paralelo com a demarcação das respectivas matrizes identitárias. Cabe ainda apontar para uma potencial averiguação, em outros contextos – e para além deste estudo – da fortuna de perscrutar o uso mobilizador da história na contrução de matrizes identitárias. Daqui surgiriam outras linhas de desenvolvimento desta pesquisa. O certo é que – e esta é nossa convicção –, o esforço de fundamentação identitária em várias escalas potenciais envolvidas não foi – nem é – exclusividade do contexto luso-brasileiro entre 1870-1910. O processo de demarcação entre as culturas portuguesa e brasileira não deixará de ser questionado com regularidade, quer de um quer de outro lado do Atlântico. Tanto assim que, poucas décadas depois, Gilberto Freyre se viu na necessidade de lhe conferir um sentido, propondo um entendimento luso-tropical destes mesmos fenômenos. Como se compreende, ao entregar-se a semelhante tarefa, Freyre não poderia ter deixado de mergulhar, nessa atmosfera de finais do século XIX em que, de modo significativo, as matrizes identitárias que ele pretendia estudar haviam merecido particular investimento político e doutrinário. Avaliar a atenção concedida por Freyre – na sua elaboração teórica e nas suaa mobilizações para além do eixo luso-brasileiro –, é matéria ainda por trabalhar. A ventura de testar o uso das ideias e dos princípios teóricos mobilizados pelos autores estudados neste estudo, em outros contextos – e dando margem a fundamentação de outras manifestações identitárias – é assunto, porém, para outras investigações e, com certeza, para outras escalas.

306

FONTES Arquivos e Acervos Arquivo Histórico de Juiz de Fora, Minas Gerais (Brasil). Biblioteca Central da Pontifiícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Brasil) Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (Portugal) Biblioteca Nacional, Lisboa (Portugal). Real Gabinete Português de Leitura, Rio de Janeiro. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro (Brasil). Ǥ‡”‹×†‹…‘• A Reforma, Porto Alegre, Junho de 1880. Correio de Minas, Juiz de Fora, Janeiro a Dezembro 1900. Correio de Minas, Juiz de Fora, Janeiro a Dezembro, 1899. Echo do Ultramar, literatura, ciências e artes. Porto Alegre, N.º 1, Ano 1, 1876. Jornal do Comércio, Juiz de Fora, Janeiro a Dezembro 1899. Jornal do Comércio, Juiz de Fora, Janeiro a Dezembro 1900. Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, Janeiro a Dezembro, 1894. Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, Janeiro a Dezembro, 1895. O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume I (números 1 a 6), 1879, 482p. O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume II (números 1 a 6), 1879-1880, 482p. O Positivismo: Revista de filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume III (números 1 a 6), 1880, 449p. O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume IV (números 1 a 6), 1882, 482p. Revista de Estudos Livres. Programa. Directores literário-científicos: em Portugal Doutor Teófilo Braga e Teixeira Bastos; no Brasil Doutores Américo Brasiliense, Carlos Koseritz e Sílvio Romero. Lisboa: Nova Livraria Internacional, 1883-1884. Revista de Estudos Livres. Programa. Directores literário-científicos: Doutor Teófilo Braga e Teixeira Bastos. Lisboa: Nova Livraria Internacional 1885-1886. 307

Revista de Portugal. Volume I. Directos Eça de Queiroz. Porto: Editores Lugan & Genelux, 1890. Revista de Portugal. Volume II. Directos Eça de Queiroz. Porto: Editores Lugan & Genelux, 1890. Revista de Portugal. Volume III. Directos Eça de Queiroz. Porto: Editores Lugan & Genelux, 1890. Revista de Portugal. Volume IV. Directos Eça de Queiroz. Porto: Editores Lugan & Genelux, 1892. Revista Ocidental, Ano 1º, Tomo Primeiro. Lisboa: Escritorio de la Revista Occidental, 1875. Revista Ocidental, Ano 1º, Tomo Segundo. Lisboa: Escritorio de la Revista Occidental, 1875. II. Fontes Impressas. ARARIPE JR., José. Lucros e Perdas: crônica mensal dos acontecimentos. Por Sílvio Romero e Araripe Júnior. Rio de Janeiro: Livraria Contemporânea de Faro & Lino, 2ª edição, junho, 1883, In: Obra Crítica de Araripe Júnior. Volume I (1868-1887). Direcção de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958. ARARIPE JR., Tristão de Alencar. Lucros e Perdas, n.º2, julho 1883. In: ARARIPE JUNIOR, Tristão de Alencar, Lucros e Perdas. In: Obra Crítica de Araripe Júnior. Volume I (1868-1887). Direcção de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1958. ARRIAGA. José. A política conservadora e as modernas allianças dos partidos políticos portugueses. Lisboa: Imprensa de J.G. de Sousa Neves, 1879. BARRETO, Luiz Pereira. Soluções Positivas da Política Brasileira [1880]. In: Obras Completas, Volume III. Organizado por Roque Spencer Maciel de Barros. São Paulo: Humanitas, 2003. BARRETO, Moniz. “Revista Literária: ‘Fastos da Dictadura militar no Brazil, por Frederico de S.”. In: Revista de Portugal. Vol. III. Porto: Chardron, 1890. BARRETO, Tobias. “Ensaio de prehistoria da litteratura classica allemã”. Revista de Estudos Livres. Volume I (1883-1884). Lisboa: Nova Livraria Internacional, editora, 1884, pp.552-561. BASTOS, Teixeira Bastos. “Conservação e Evolução”. In: O Positivismo. Segundo Anno, n.º2, dezembro-janeiro, 1880. BASTOS, Teixeira. “A Terra e o Homem à luz da moderna ciência. Duas conferências feitas em 1878 por Carlos von Koseritz. Porto Alegre, 308

1884, 151p”. In: Secção “Bibliografia”. Revista de Estudos Livres, ano II, 1885-1886, Directores literário-científicos Doutor Teófilo Braga e Teixeira Bastos. Lisboa: Nova Livraria Internacional, 1887. BASTOS, Teixeira. Recepção crítica à Introdução à história da literatura brasileira, por Silvio Romero. Primeiro volume. Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1882, 254p. In: Revista de Estudos Livres. Volume I (1883-1884), 1884. BASTOS, Teixeira. Secção Bibliographia – “A poesia cientifica (Escorço de um livro futuro), por Izidoro Martins Junior. Recife, 1883, 73 pag.”, Revista de Estudos Livres. Volume I (1883-1884), 1884. BASTOS, Teixeira. Teófilo Braga e sua obra: estudo complementar das “Modernas ideias na Literatura Portuguesa”. Porto: Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1892. BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume I. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927. BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Volume II. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1927. BOMFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, [1905], 1993. BOMFIM, Manoel. O Brasil na América. Caracterização da formação brasileira. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1929. BOMFIM, Manoel. O Brasil na História. Deturpação das tradições. Degradação política. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1930. BOMFIM, Manoel. O Brasil Nação. Rio de Janeiro: Topbooks, [1931], 1996. BRAGA, Teófilo (1843-1924). Contos Tradicionais do Povo Português. Volume I, Lisboa: Publicações Dom Quixote, [1883] 1987. BRAGA, Teófilo (1843-1924). Contos Tradicionais do Povo Português. Volume II, Lisboa: Publicações Dom Quixote, [1ª edição: 1883] 1987 BRAGA, Teófilo. “Carlos Darwin”. In: O Ocidente. Lisboa, 5 (123), de 21 de maio de 1882. BRAGA, Teófilo. “Centenário de Camões no Brasil”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1880. BRAGA, Teófilo. “Constituição da Estética Positiva”, In: O Positivismo, primeiro anno, n.6, agosto-setembro, 1879. BRAGA, Teófilo. “Elementos da Nacionalidade Portuguesa”. In: Revista de Estudos Livres, Lisboa: Nova Livraria Internacional Editora. Volume I (1883-1884), 1884. BRAGA, Teófilo. “Ensaio sobre a moderna concepção do Direito, por Alberto Salles. Sam Paulo, Typographia da Provincia, MDCCCLXXXV, 267p.”. Secção “Bibliographia”. Revista de Estudos Livres. Directores Litterário-Scientificos Doutor Teófilo Braga e 309

Teixeira Bastos. Volume II (1885-1886), Lisboa: Nova Livraria Internacional editora, 1887, pp.419-423. BRAGA, Teófilo. “Las Nacionalidades, por Pi y Margall”. In: Secção “Bibliographia”. O Positivismo. Primeiro Anno, N.º4, Abril-Maio, 1879. BRAGA, Teófilo. “Plano para a História de Portugal”. Antelóquio a PAXECO, Fran. Portugal não é Ibérico. Lisboa: Livraria Rodrigues, 1932. BRAGA, Teófilo. “Sobre a Novelística Brasileira”. In: ROMERO, Silvio. Contos populares do Brasil. Lisboa: Nova Livraria Internacional, 1ª ed., 1885. BRAGA, Teófilo. “Sobre a revista Lucros e Perdas – crónica mensal dos acontecimentos, por Silvio Romero e Araripe Júnior. Rio de Janeiro, 1883, 1º fascículo”. In: Secção “Bibliografia”. Revista de Estudos Livres, Volume I (1883-1884), 1884. BRAGA, Teófilo. “Teocracias Literárias”. In: Questão Coimbrã (Bom senso e Bom gosto). Apresentação crítica, selecção, notas, linhas de leitura e pontos de orientação de MARINHO, Maria José, FERREIRA, Alberto. Lisboa: Editorial Comunicação, 1989, pp.133142. BRAGA, Teófilo. Carta de 11/07/1900. Inserida em Fran Paxeco, Cartas de Teófilo com um definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas “confissões” de Camilo). Lisboa: Portugália, 1924, p.20-34. BRAGA, Teófilo. Carta de Teófilo Braga a Fran Paxeco. In: PAXECO, Fran. O Sr. Sílvio Romero e a Literatura Portuguesa. Maranhão: Editores A. P. Ramos d’ Almeida & C. Suces., 1900. BRAGA, Teófilo. Epopêas da Raça Mosárabe. Porto: Imprensa Portuguesa Editora, 1871. BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, [1º ed.1909], 1989. BRAGA, Teófilo. História das Ideias Republicanas em Portugal. Lisboa: Veja, 1983. BRAGA, Teófilo. Os críticos da História da Literatura Portuguesa: exame das afirmações dos Srs. Oliveira Martins, Antero de Quental e Pinheiro Chagas. Porto: Imprensa Portuguesa Editora, 1872. BRAGA, Teófilo. Parnaso português moderno. Lisboa: Francisco Arthur da Silva, 1877. BRAGA, Teófilo. Questões de literatura e arte portuguesa. Lisboa: A.J.P. Lopes, 1881. BRAGA, Teófilo. Visão dos Tempos. Porto: Livraria Chardron, [1864] 1894. 310

CASTELO BRANCO, Camilo. “Prefácio” [1879]. Cancioneiro Alegre de poetas portugueses e brasileiros. Mem Martins: Europa-América, 1984. CASTILHO, António Feliciano de. Camões: estudo historico-poetico liberrimamente fundado sobre um drama francez dos senhores Victor Perrot e Armand Du Mesnil. Lisboa: Typ. da Sociedade Typográphica Franco-portugueza, 1863-1864. CUNHA, Euclides da. Os Sertões: campanha de Canudos. Edição crítica de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Editora Ática, 2000. DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. Tradução de Eduardo Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, [1859], 1987. FALCÃO, Aníbal. Fórmula da civilização brasileira In: Diário de Pernambuco, n.º 46 a 50, 1883. FIGUEIREDO, F. de. O Centenário de Camões. Rio de Janeiro: Tipografia da Escola, Serafim José Alves Editor, 1880. FRANCO, Augusto. “Duas Palavras”. In. ROMERO, Silvio. Passe Recibo (Réplica a Teófilo Braga). Publicação dirigida por Augusto Franco. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1904. GUIMARÃES, Artur. Questões económicas nacionae. pref. de Sylvio Romero. Lisboa : Typographia da "A Editora", 1904. HAECKEL, Ernest. A Origem do Homem. Lisboa: Editorial Gleba, 2ª edição, 1989. “Homenagem a Luiz de Camões – 10 de Junho de 1880”. Revista Brasileira. Rio de Janeiro: Midosi Editor, 1880. KOSERITZ, Carlos von. Carta a Teófilo de 22/12/1884. In: Quarenta Anos de Vida Literária 1860-1900) – Cartas a Teófilo Braga, com um prólogo “Autobiografia mental de um pensador isolado”. Lisboa: Tipografia Lusitana – Editora Artur Brandão, 1902. LAMARCK, Jean-Baptiste. Discours d’ouverture du Cours de l’an VII, 1880. In: TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris: PUF, 1996. LEMOS, Miguel. Luiz de Camões. Paris: Siège Central du Positivisme, 1880. LEMOS, Miguel. Resumo histórico do movimento positivista no Brasil. Rio de Janeiro: Sociedade Positivista, 1882. Acervo Biblioteca Nacional, Lisboa. LITTRÉ, Émile. “Estudo sobre os Progresso do Positivismo”, posfácio à COMTE, Augusto. Princípios de Filosofia Positiva. São Paulo : Editorial Paulista, [s.d]. 311

LITTRÉ, Émile. “Que penser de la désuétude qui gagne les spéculation concernant l’origine et la finalité du monde et de ses êtres ?” O Positivismo, Primeiro Ano, n.º3, Fevereiro-Março, 1879. LITTRÉ, Émile. Conservation, Révolution, Positivisme. Deuxième édition, augmenté de remarques courantes, chez Germer Ballière, 1879, apud Júlio de Mattos, “Bibliografia”. In: O Positivismo, n.º5, junho-julho, 1979, p.393-401. LITTRÉ, Émille, Conservation, Révolution et Positivisme. Paris : Librarie Philosophique de Ladrange, 1852. Luiz de Camões – Homenagem da Gazeta de Notícias em 10 de Junho de 1880. Rio de Janeiro: Tipografia da Gazeta de Notícias, 1880. MACHADO, Basílio. Discurso proferido no sarau literário que, em comemoração do tricentenário de Camões, promoveu o Club Ginástico Português, de S. Paulo, a 10 de Janeiro de 1880. São Paulo: Tipografia da Constituinte, 1880. MAGALHÃES, Luiz. “A revolta do Porto”. In: Revista de Portugal. Direcção Eça de Queiroz. Vol. III. Porto: Chardron, 1890. “Manifesto Republicano de 1870”. In: O Brasil no Pensamento Brasileiro. Introdução, organização e notas de Djacir Menezes. Rio de Janeiro: INEP, 1957. MARTINS JÚNIOR, Isidro. “A função história da Economia política”. Revista de Estudos Livres. Directores Litterário-Scientificos Doutor Teófilo Braga e Teixeira Bastos. Volume II (1885-1886), Lisboa: Nova Livraria Internacional, editora 1887, pp.462-470. MARTINS, J. P. de Oliveira Martins. Portugal Contemporâneo. Vol. I. Porto: Lello & Irmão Editores, [1881], 1981. MARTINS, J. P. de Oliveira. “A Liga Ibérica”, 1892. In: MARTINS, J. P. de Oliveira Política e História. Volume II (1884 – 1893). Lisboa: Guimarães & Cia Editores, 1957. MARTINS, J. P. de Oliveira. “A Teoria do Mosarabismo de Teófilo Braga” (Inédito). Biblos. Coimbra, n.º28, 1952, pp.139-177. MARTINS, J. P. de Oliveira. “Advertência”. In: Os Filhos de D. João I. Lisboa: Editora Ulisseia [1891], 1998. MARTINS, J. P. de Oliveira. “Teoria da História Universal”. In: Política e História. Volume II (1884-1893). Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 1957. MARTINS, J. P. de Oliveira. História da Civilização Ibérica. Lisboa: Guimarães Editores, [1879], 1994. MARTINS, J. P. de Oliveira. O Brasil e as colónias portuguesas. Lisboa: Guimarães & C.ª Editores, 7ª edição, [1880], 1978. MARTINS, J.P. de Oliveira. “Los Povos Peninsulares y la civilización moderna”, In: Revista Ocidental, Direcção de Antero de Quental e 312

Jaime Batalha Reis, Ano I, Tomo I, fascículo de 15 de Fevereiro, 1875. MARTINS, J.P. de Oliveira. Dispersos. Tomo II. Lisboa: Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, 1824. MARTINS, J.P. de Oliveira. História de Portugal. Vol.1. Lisboa: EuropaAmérica, 2ª edição, [1879], 1989. MARTINS, J.P. de Oliveira. História de Portugal. Vol.2. Publicações Europa-América, 2ª edição, [1879], 1991. MARTINS, J.P. de Oliveira. Política e História. Volume II (1884-1893). Lisboa: Guimarães & Cia Editores, 1957. MATTOS, Júlio de. “A República Federal, por Assis Brasil”. O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.6, Agosto/Setembro, 1881. O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume III (números 1 a 6), 1880, p.439-440. MATTOS, Júlio de. “A significação filosófica e social das festas do Tricentenário de Camões”. In: O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.5, Junho/Junho, 1880. [B.G.U.C.]. MATTOS, Júlio de. “Bibliografia”. In: O Positivismo,n.5, junho-julho, 1879. MATTOS, Júlio de. “O Movimento Republicano no Brasil”. O Positivismo: revista de filosofia. Quarto Ano, n.3, Maio/Junho, 1882. MATTOS, Júlio de. “Popularização da Filosofia Positiva no Brasil”. O Positivismo: revista de filosofia. Segundo Ano, n.3, Fevereiro/Março, 1880, In: O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume II (números 1 a 6), 1879-1880. MATTOS, Júlio de. O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.4, Abril/Maio, 1881, p.284-285. MATTOS, Júlio de. O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.4, Abril/Maio, 1881. O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume II (números 1 a 6), 1879-1880, p.284-285. MATTOS, Júlio de. O Positivismo: revista de filosofia. Terceiro Ano, n.4, Abril/Maio, 1881. O Positivismo: Revista de Filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume II (números 1 a 6), 1879-1880, p.284-285. MATTOS, Júlio de. Secção “Variedades”, O Positivismo, Primeiro Anno, 1879, N.º6, 1879, pp.473-480. MATTOS, Júlio de. Secção “Variedades”. O Positivismo: revista de filosofia. Ano I, n.º5, junho-julho, 1879. In: O Positivismo: revista de filosofia. Direcção Teófilo Braga e Júlio Mattos. Porto: Livraria 313

Universal de Magalhães & Moniz Editores, Volume I (números 1 a 6), 1879, p.402-403. MONTORO, Reinaldo Carlos. O Centenário de Camões no Brasil. Portugal em 1580. O Brasil em 1880. Estudos comparativos. Rio de Janeiro: António José Gomes Brandão Editor, 1880, p.8. Acervo da Camoniana dos Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa. NABUCO, Joaquim. Camões. Discurso pronunciado a 10 de junho de 1880, no Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Leuzinger & filhos, 1880. Acervo Real Gabinete Português de Leitura, Rio de Janeiro. PAULA SOUZA, Dr. J. de. Luiz de Camões. (Homenagem de um brasileiro, ao grande representante da nacionalidade portuguesa). São Paulo: Tipografia da Constituinte, 1880. Acervo Camoniana, Reservados Biblioteca Nacional, Lisboa. PAXECO, Fran. Cartas de Teófilo (com um definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas “confissões” de Camilo). Lisboa: Portugália, 1924. PAXECO, Fran. O Sr. Sílvio Romero e a Literatura Portuguesa. Maranhão: Editores A. P. Ramos d’ Almeida & C. Suces., 1900. PAXECO, Fran. Teófilo no Brasil. Lisboa: Casa Ventura Abrantes, 1917. PEDROSO, Consiglieri. “O Fortuito na história”. In: O Positivismo, Primeiro Anno, n.º1, outubro-novembro, 1879. PI Y MARGALL, Francisco. Las nacionalidades. Madrid, 1877. PRADO, Eduardo (Fredeirico de S.), “Os Acontecimentos do Brasil”, Revista de Portugal, volume I. Porto: Editores Lugan & Genelux, 1889. PRADO, Eduardo, “Destinos Políticos do Brasil”. Revista de Portugal, volume I. Porto: Editores Lugan & Genelux, 1889. “Prospecto da Revista Ocidental”, anexo a MARINHO, Maria José. “A Revista Ocidental, 1875 – um projecto da Geração de 70” In: Revista da Biblioteca Nacional, 2ª série, vol.7, n.º1, 1992. Quarenta Anos de Vida Literária 1860-1900) – Cartas a Teófilo Braga, com um prólogo “Autobiografia mental de um pensador isolado”. Lisboa: Tipografia Lusitana – Editora Artur Brandão, 1902. QUEIRÓS, Eça (João Gomes). “Notas do Mês”. Revista de Portugal, volume I. Porto: Editores Lugan & Genelux, 1889. QUEIRÓS, Eça de. Carta de Eça de Queiroz ao presidente da Província de Pernambuco, publicada no Jornal do Recife e na Província, nas edições de 12 e 14 de Outubro de 1875. In: Polémicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização e introdução João Carlos Reis. Lisboa : Europress/Instituto Português do Livro, 1986. 314

QUEIRÓS, Eça de. O Crime do Padre Amaro. Cenas de uma vida devota. Edição de 1880, revista pelo autor, precedida de uma carta inédita de Antero de Quental. Lisboa, Edição Livros do Brasil, 1880. QUEIRÓS, Eça. “Nativismo”. In: ABDALA JÚNIOR, Benjamim (org.). Ecos do Brasil: Eça de Queirós, leituras brasileiras e portuguesas. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000, QUENTAL, Antero de Prosas sócio-políticas. Apres. de Joel Serrão. Lisboa: INCM, 1982. QUENTAL, Antero de. Bom Senso e Bom Gosto, Carta ao Ex.mo Sr. António Feliciano de Castilho. In: FERREIRA, Alberto. Antologia de textos da questão Coimbrã. Seleção de textos e notas de Maria José Marinho. 2ª ed. Lisboa/Porto: Litexa, 1999. QUENTAL, Antero de. Odes Modernas. Lisboa: Veja, 1994. QUENTAL, Antero. Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos: discurso pronunciado na noite de 27 de Maio na sala do Casino Lisbonense. Porto : Typ. Commercial, 1871. RAGA, Teófilo. Carta a Fran Paxeco 27.11.1905. In: PAXECO, Fran. Cartas de Teófilo (com um definitivo trecho autobiográfico do Mestre e duas “confissões” de Camilo). Lisboa: Portugália, 1924, pp.64-67. REIS, Jaime Batalha. O Descobrimento do Brasil intelectual pelos portugueses do século XX. Organização, prefácio e notas de Elza Miné. Lisboa, Dom Quixote, 1988. ROMERO, Silvio. “A Literatura Brasileira; suas relações com a portuguesa; o Realismo” In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, p.273-292. ROMERO, Sílvio. “A Poesia Popular no Brasil – 2ª parte”. In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo I, 1879. ROMERO, Sílvio. “A Poesia Popular no Brasil – 3ª parte”. In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo I, 1879. ROMERO, Sílvio. “A Poesia Popular no Brasil– 1ª parte”. In: Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo I, 1879, p.94-102. ROMERO, Sílvio. “A prioridade de Pernambuco no Movimento Espiritual Brasileiro”, Revista Brasileira, Rio de Janeiro J. D. de Oliveira, Ano I, Tomo II, outubro de 1879, pp.486-496. ROMERO, Sílvio. “Academia Brasileira de Letras – Discurso pronunciado aos 18 de Dezembro de 1906, por ocasião da recepção do Dr. Euclides da Cunha” In: Provocações e Debates (Contribuições para o Estudo do Brasil Social). Porto: Livraria Chardron, 1910.

315

ROMERO, Sílvio. “Considerações Indispensáveis”. In: BARRETO, Tobias. Estudos Alemães. Volume VII das Obras Completas. [sem local]: Edição do Estado de Sergipe, 1926. ROMERO, Sílvio. “Theorias históricas e Escolas litterarias no Brazil”. Revista de Estudos Livres. Volume I (1883-1884). Lisboa: Nova Livraria Internacional, editora, 1884. ROMERO, Sílvio. A América Latina. Analyse do livro de igual título do Dr. M. Bomfim. Porto: Livraria Chardron, 1906. ROMERO, Sílvio. A literatura brasileira e a crítica moderna, Rio de Janeiro: Imprensa Industrial, 1880. [B.N.R.J.] ROMERO, Silvio. A Pátria Portuguesa, o território e a Raça. Apreciação do livro de igual título de Teófilo Braga. Lisboa. Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1906. ROMERO, Sílvio. Contos populares do Brazil: com um estudo preliminar e notas comparativas (colligidos pelo dr. Sylvio Roméro, com estudo preliminar e notas por Theophilo Braga). Lisboa: Nova Livraria Internacional, 1885. Acervo Biblioteca Nacional, Lisboa. ROMERO, Sílvio. Estudos sociaes: o Brasil na primeira decada do seculo XX: problemas brasileiros. Lisboa: A Editora, 1911. ROMERO, Silvio. História da Literatura Brasileira. Tomo Primeiro. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. Coleção Documentos brasileiros, dirigida por Octávio Tarquínio de Sousa. 3ª Edição organizada e prefaciada por Nelson Romero, [1888], 1943. ROMERO, Sílvio. Martins Penna: ensaio crítico com um estudo de Arthur Orlando sobre o auctor da "Hist. da litt. brazileira". Porto: Chardron, 1900. ROMERO, Sílvio. Modernas Escolas Literárias. In: Estudos de Literatura Contemporânea. Edição Comemorativa. Organização de Luiz António Barreto. Rio de Janeiro: Imago, 2002. ROMERO, Sílvio. O elemento português no Brasil: conferência. Lisboa: Typographia da Companhia Nacional Editora, 1902. ROMERO, Silvio. Passe Recibo (Réplica a Teófilo Braga). Publicação dirigida por Augusto Franco. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1904. ROMERO, Sílvio. Pinheiro Chagas. Conferencia. Realizada no Teatro Recreio Dramático, do Rio de Janeiro, a 5 de setembro de 1904. Lisboa: Tipografia da D’A Editora, 1904. ROMERO, Sílvio. Provocações e debates: (contribuições para o estudo do Brazil social). Porto: Lelo & Irmãos, 1910. ROMERO, Sílvio. Quadro synthetico da evolução dos géneros na litteratura brasileira. Porto: Chardron, 1911.

316

ROMERO, Silvio. Uma Esperteza. Os Cantos e Contos Populares do Brasil e o Sr. Teófilo Braga. Protesto. Rio de Janeiro: Tipografia da Escola, de Serafim José Alves, 1887. SPENCER, Herbert. Do Progresso, sua lei e sua causa. Lisboa: Editorial Inquérito, 1939. VALPÍRIO, Víctor. “Contos Rio-Grandenses (Introdução)”. In: Revista Mensal do Partenon Literário: 2ª série. Novembro de 1872, n.º 5. Porto Alegre: Tipografia do ‘Constitucional’, 1872

317

BIBLIOGRAFIA DE REFERÊNCIA

AGUIAR, Ronaldo Conde. Um Rebelde Esquecido: tempo, vida e obra de Manoel Bomfim. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000. ALENCAR, José de. O Guarani. São Paulo: Círculo do Livro, [1857], [s.d]. ALMEIDA, Antônio da Rocha, “Vultos da Pátria – 260 – Carlos von Koseritz”, Jornal Correio do Povo, 15/08/1965. ALVES, Castro. Poesias Completas. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, [s.d.]. AMADO, Gilberto, Minha Formação no Recife. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1955. AMARAL, Azevedo. “Prefácio à 2ª. edição” In: BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993, pp.29-32. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a expansão do nacionalismo. Lisboa: Edições 70, [1983], 2005. ANTÓN, Luis Gonzáles. España y las Españas. Madrid: Alianza Editorial, 2002. APPADURAI,

Arjun.

Dimensões

Culturais

da

Globalização.

A

modernidade sem peias. Lisboa: Teorema, 2004. ARNAUD, Pierre. Politique d’Auguste Comte. Textes choisis et présentés par Pierre Arnaud. Paris: Armand Colin, 1965. As grandes polémicas portuguesas. Lisboa: Verbo, 2 vols. 1964-1967. ASSIS, Machado de. Instinto de Nacionalidade e outros ensaios. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999. BARASH, Jeffrey Andrew. "Les sources de la mémoire". In: Revue de Métaphisique et de Morale, janviers-mars, 1999, n.º 1.

318

BARRETO, Abeillard. Bibliografia Sul-Riograndense (A contribuição portuguesa e estrangeira para o conhecimento do Rio Grande do Sul). Volume II (K-Z). Rio de Janeiro: Conselho Federal de Cultura, 1976. BECQUEMONT, Daniel. Darwin, Darwinisme, Évolutionisme. Paris: Édition Kimé, 1992. BELO, José Maria. História da República. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940. BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. BERRIEL, Carlos Eduardo. “Paulo Prado, modernismo e Geração de 70”. Revista Estudos Portugueses e Africanos. Campinas, 32, julhodezembro, 1998, pp.69-83. BERRIEL, José Carlos. Tietê, Tejo, Sena. A obra de Paulo Prado. Campinas: Papirus, 2000. BERRINI, Beatriz. Brasil e Portugal: a geração de 70. Breves indicações dos correspondentes brasileiros e portugueses por Paulo Franchetti e Beatriz Berrini. Prefácio de Isabel Pires de Lima. Porto: Campo das Letras, 2003. BORGES, Paulo Alexandre. “Tradição, literatura e nacionalidade em Teófilo Braga e Sílvio Romero”. In: Sílvio Romero e Teófilo Braga. Actas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1996, pp.121-136. BORGES, Paulo A. Pensamento Atlântico, estudos e ensaios de pensamento luso-brasileiro. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2002. BRAGANÇA DE MIRANDA, José A. Traços: ensaios de crítica da cultura. Lisboa: Veja, 1998. BRAGANÇA DE MIRANDA, José A. Teoria da Cultura. Lisboa: Século XXI, 2002. 319

BRUNO, Sampaio. O Brasil Mental. Esboço Crítico. Porto: Lello Editores, [1898], 1997. BUENO, Aparecida de Fátima “Relações conflituosas: o Ultimatum inglês na Revista de Portugal”. Trabalho apresentado no âmbito do VII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, em Coimbra, nos dias 16, 17 e 18 de Setembro de 2004. CALAFATE, Pedro. “A filosofia da história em Teófilo Braga. Um confronto com Sílvio Romero”. In: Sílvio Romero e Teófilo Braga Atas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia LusoBrasileiro, 1996, pp.151-163. CÂMARA CASCUDO, Luís da. “Epígrafe e Nota bibliográfica”. In: ROMERO, Sílvio. Estudos sobre a Poesia Popular do Brasil. Petrópolis: Vozes, Coleção Dimensões do Brasil, 1977. CÂNDIDO, Antônio. “Radicalismos” In: Revista Estudos Avançados, Vol.4, n.º8, 1990, p.4-38. CASTELO, Cláudia. «O modo português de estar no mundo». O lusotropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961). Porto: Afrontamento, 1999. CATROGA, Fernando. “Os inícios do positivismo em Portugal: seu significado político-social”. Separata da Revista de História das Ideias, vol.1, 1977. CATROGA, Fernando. “A importância do positivismo na consolidação da ideologia republicana em Portugal”. In: Biblos. Vol. LIII, Coimbra, 1977. CATROGA, Fernando. O Problema Político em Antero de Quental. Um confronto com Oliveira Martins. Coimbra: Centro de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 1981.

320

CATROGA, Fernando. “Nacionalismo e ecumenismo. A questão ibérica na segunda metade do século XIX”. Cultura, História, Filosofia, vol.6, 1985. CATROGA, Fernando. O Republicanismo em Portugal: da formação ao 5 de Outubro de 1910. Coimbra: Faculdade de Letras, 1991. CATROGA, Fernando e ARCHER, Paulo Archer de. Sociedade e Cultura Portuguesa II, Lisboa: universidade Aberta, 1996. CATROGA,

Fernando.

“Alexandre

Herculano

e

o

Historicismo

Romântico”. In: TORGAL, Luís dos Reis; MENDES, José Amado; CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX e XX. Volume I – A História Através da História. Coimbra: Temas e Debates, 1998, pp.45-98. CATROGA, Fernando. “Historia e Ciências Sociais em Oliveira Martins”. In: TORGAL, Luís dos Reis; MENDES, José Amado; CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX e XX. Volume I - A História Através da História. Coimbra: Temas e Debates, 1998, pp.137-184. CATROGA, Fernando. “Ritualizações da história” In: TORGAL, Luís Reis; MENDES, José Amado e CATROGA, Fernando. História da História em Portugal. Séculos XIX – XX. Volume II. Coimbra: Temas e Debates, 1998, pp.221-361. CATROGA, Fernando. “Cientismo e Historicismo”. In: FITAS, Augusto J.; CATROGA, Fernando et all. Seminário sobre o Positivismo. Évora: Centro de Investigação da U. E. Série: Centro de Estudos de História e Filosofia da Ciência, n.º3, 1998. CATROGA, Fernando. Antero de Quental. História, Socialismo, Política. Lisboa: Editorial de Notícias, 2001. CATROGA, Fernando. Caminhos do fim da história. Coimbra: Quarteto, 2003. 321

CATROGA, Fernando. “O Magistério da História e a exemplaridade do ‘grande homem’. A biografia em Oliveira Martins”. In: PÉREZ JIMENES, A. RIBEIRO FERREIRA, J. FIALHO, Maria do Céu (orgs.). O retracto literário e a biografia como estratégia de teorização política. Coimbra-Málaga, 2004. CÉSAR, Guilhermino. História da Literatura do Rio Grande do Sul (17371902). Porto Alegre: Editora Globo. Coleção Província, Volume 10, 1956. CHACON, Vamireh. O Futuro Político da Lusofonia. Lisboa/São Paulo: Verbo, 2002. COMTE, Augusto. Augusto Comte: sociologia. Organizador Evaristo de Moraes Filho. São Paulo: Ática, 1978. COSTA E SILVA, Alberto da. Castro Alves: um poeta sempre jovem. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. COSTA, João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. Coleção Documentos Brasileiros, dirigida por Otávio Tarquínio de Souza. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1956. DE DECCA, Edgar Salvadori. “Tal Pai, qual filho? Narrativas da identidade nacional” In: Lígia Chiappini e Maria Stella Bresciani (orgs). Literatura e Cultura no Brasil. São Paulo: Cortez Editora, 2002. Dicionário da Geração de 70, direcção de Guilherme de Oliveira Martins e Ana Maria Alves. Lisboa: Editora Presença [no prelo]. DUARA, Prasenjit. “Os historiadores entre o passado e o futuro das nações”. Ler História, 41 (2001), pp.31-37. ELIOT, T.S. Notas para uma Definição de Cultura. Lisboa: Século XXI, [1948], 1996. FEIJÓ, Elias J. Torres. “Cultura Portuguesa e legitimação galeguista: historiadores e filólogos (1880-1891)”. Ler História, 36 (1999), pp.273318. 322

FERREIRA, Alberto. Antologia de textos da questão Coimbrã. Seleção de textos e notas de Maria José Marinho. 2ª ed. Lisboa/Porto: Litexa, 1999. FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Veja, 1992. FRANCHETTI, Paulo e BERRINI, Beatriz Berrini. “Eça de Queiroz e Oliveira Martins”. Correspondência. Campinas, Editora da Unicamp, 1995. FRANCHETTI, Paulo, “Oliveira Martins e o Brasil”. In: Remate de Males, n.22. Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, 2002. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. São Paulo: Círculo do Livro, [1933], [s.d]. GANS, Magda Roswita. Presença Teuta em Porto Alegre no século XIX (1850-1889). Porto Alegre: Editora da UFRGS/ANPUHRS, 2004 GAUER, Ruth Maria Chittó. A Construção do Estado-Nação no Brasil – a contribuição dos Egressos de Coimbra. Curitiba: Editora Juruá, 2001. GAUER, Ruth Maria Chittó. A Qualidade do Tempo. História. Direito. Filosofia. Psiquiatria. Antropologia. Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. GAYON, Jean. Darwin et l’après-Darwin, Paris : Éditions Kimé, 1992, p.4. GELLNER, Ernst. Dos Nacionalismos. Lisboa: Teorema, 1998. GERTZ, René. Karl von Koseritz: seleção de textos. Porto Alegre: Edipucrs (Coleção Pensadores Gaúchos), 1999. GIL, Fernando. Mímesis e Negação. Lisboa: INCM, 1984. GIL, Fernando. Modos de Evidencia. Lisboa: INCM, 1998. GIL, Fernando. “Modos da verdade (entrevista conduzida por Rui Cunha Martins)”. Revista de História das Ideias. Vol. 23. Coimbra: Faculdade de Letras, 2002, pp.15-39.

323

GOULD, Stephen Jay. O Mundo depois de Darwin. Reflexões sobre história natural. Lisboa: Editorial Presença, 1988. GREENE, John. “O paradigma kuhniano e a revolução darwinista na história natural”. In: CARRILHO, Manuel Maria (org.). História e Prática das Ciências. Lisboa: A Regra do Jogo, 1979, pp.119-150. GRUBER, R. P. Auguste Comte: fondateur du positivisme: sa vie – sa doctrine. Paris: Lethilleux, 1892. GRUBER, R. P. Le Positivisme depuis Comte jusqu’à nos jours. Paris : Lethielleux, 1893. GUIMARÃES, Manoel Salgado. “Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico e o Projeto de uma História Nacional”. In: Estudos históricos. Rio de Janeiro, n.1, 1988, p.5-27. HACKING, Ian. Múltipla personalidade e as ciências da memória. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000. HARTOG, François. Régimes d’Historicité. Présentisme et expériences du temps. Paris: Seuil, 2003 HASTINGS, Adrian. La construcción de las nacionalidades. Madrid: Cambridge University Press, 2000. HEGEL, G. W. A Razão na História. Introdução à Filosofia da História Universal. Lisboa: Edições 70, 1995. HERDER, Johan Gottfried. Também uma filosofia da história para a humanidade. Lisboa: Antigona, [1774], 1995. HESSEL, Lothar e outros. O Partenon Literário e sua obra. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1976. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II – O Brasil Monárquico. 1º Volume: O processo de emancipação. Direção de Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo/Rio de Janeiro: DIFEL, 1976. HOBSBAWN, Eric. Hobsbawm, Eric. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. 324

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, [1936], 1999. HOMEM, Amadeu Carvalho. A Ideia Republicana em Portugal. O contributo de Teófilo Braga. Coimbra: Livraria Minerva, 1989. HOMEM, Amadeu Carvalho. “Antero de Quental e Teófilo Braga. Um exercício comparativo”. Separata da Revista Insulana. Ponta Delgada, 1991, pp.127-144. HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para a história do republicanismo portuense, no período anterior ao Ultimato”. In: Biblos. Vol. LXXI, 1995. HOMEM, Amadeu Carvalho. “Para uma leitura sociológica e política da «Questão Coimbra»”. Separata da Revista Máthesis, nº4, 1995, pp.89102. HOMEM, Amadeu Carvalho. “O tema do iberismo no republicanismo federalista português”. In: LEAL, Ernesto Castro (org.). O Federalismo Europeu. História, Política e Utopia. Lisboa: Edições Colibri, 2001, pp.81-88. HOMEM, Amadeu Carvalho. “Liberalismo, democracia e socialismo na história contemporânea de Portugal”. In: SESZ, Cristiane Lopes; RIBEIRO, Maria Manuela Tavares; BRANCATO, Sandra; LEITE, Renato Lopes; ISAÍA, Arthur César. Portugal-Brasil no século XX. Sociedade, Cultura, Ideologia. Bauru: EDUSC, 2003, pp.15-28. HOMEM, Amadeu Carvalho. Do Romantismo ao Realismo. Temas de Cultura Portuguesa (século XIX). Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2005. HOMEM, Amadeu Carvalho. O Republicanismo em Portugal: o contributo de Teófilo Braga. Coimbra: Minerva, 1989. JOÃO, Maria Isabel. “Percursos da Memória: centenários portugueses no século XIX”. In: Camões. Revista de Letras e Culturas Lusófonas. N.º 8, Janeiro/Março de 2000. 325

KOSELLECK, Reinhard. Le Futur Passé. Contribuition à la sémantique des temps historique. Paris: Éditions de EHESS, [1979] 1990. LINZ, Ivan. “O Positivismo no Brasil”. Separata de Decimália. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Biblioteca Nacional, 1959, pp.3-8. LOURENÇO, Eduardo. A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia. Lisboa: Gradiva, 1999. LOURENÇO, Eduardo. Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade. Lisboa: Gradiva, 1999. LÖWITH, Karl. O Sentido da História. Lisboa: Edições 70, [1948] 1990. MARINHO, Maria José. “A Revista Ocidental, 1875 – um projecto da Geração de 70”. In: Revista da Biblioteca Nacional, 2ª série, vol.7, n.º1, 1992. MARQUES, A. H. de Oliveira. Breve História de Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1ª edição, 1995. MARTINS, J. P. de Oliveira. Portugal e Brasil. Introdução e notas de Sérgio Campos Matos, fixação do texto de Bruno Eiras e Sérgio Campos de Matos. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2005. MARTINS, Rui Cunha. “Fronteira, referencialidade, visibilidade”. Revista de Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, Edição Especial, n.1, 2000, pp.7-19. MARTINS, Rui Cunha. “O paradoxo da demarcação emancipatória: a fronteira na era da sua reprodutibilidade icónica”. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 59. Fevereiro 2001, p.37-63. MARTINS, Rui Cunha. “A arena da história ou o labirinto do Estado? Delimitações intermunicipais e memórias concorrenciais nos inícios do século XX”. In Cadernos do Noroeste, 15 (1-2), 2001, pp.37-56.

326

MARTINS, Rui Cunha. “Os locais do discurso político: efeitos de presunção e reptos globais”. Arunce – Revista de Divulgação Cultural. N.1, 16, 2001, pp.121-127. MARTINS, Rui Cunha. “A pletórica da identidade, ou a alucinação dos cânones”. Separata de Identidade, Identidades. Porto: ADECAP, 2002, pp.149-156. MARTINS, Rui Cunha. “Da fronteira como mnemónica negocial: traço, delimitação e narração”. Porto: CEPESE, Separata da Revista População e Sociedade, n.º8, 2002, pp. 147-159. MARTINS, Rui Cunha. “Soberania política e condição de assentimento”. In: GIL, Fernando; LIVET, Jean-Pierre. The Process of believe/O processo da crença. Lisboa: Gradiva, 2003. MARTINS, Rui Cunha. “O nome da alma: ‘memória’, por hipótese”. In: GAUER, Ruth Maria Chittó. A Qualidade do Tempo. História. Direito. Filosofia. Psiquiatria. Antropologia. Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp.17-29. MARTINS, Rui Cunha. “Estado, tempo e limite”. Revista de História das Ideias. Vol.26. Coimbra: Faculdade de Letras, 2005, pp.307-342. MARTIUS, Karl P. von, “Como se deve escrever a história do Brasil”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: IHGB, n.º24, 1845. MASSARANI, Luisa. A divulgação científica no Rio de Janeiro. Algumas reflexões sobre a década de 20. Rio de Janeiro: UFRJ/ECO [Dissertação de Mestrado em Ciência da Informação], 1998. MATOS, Sérgio Campos. “História e ficção em Oliveira Martins. Imagens da degenerescência”. Revista de História das Idéias. Vol.21. Coimbra: Faculdade de Letras, 2000, pp.159-192. MATOS, Sérgio Campos. “Introdução”. In: MARTINS, J. P. de Oliveira. Portugal e Brasil. Introdução e notas de Sérgio Campos Matos, fixação 327

do texto de Bruno Eiras e Sérgio Campos de Matos. Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2005. MAURÍCIO, Carlos. “Oliveira Martins Historiador ou o Problema da Dupla Vida de Portugal”. Ler História, 30, 1996, pp.37-70. MAYR, Ernst. Una larga controversia: Darwin y el darwinismo. Barcelona: Crítica, 1992. MINÉ, Elza. “Prefácio”. In REIS, Jaime Batalha. O Descobrimento do Brasil intelectual pelos portugueses do século XX. Organização, prefácio e notas de Elza Miné. Lisboa, Dom Quixote, 1988. MONTALENTI, Giuseppe. Charles Darwin. Lisboa: Edições 70, 1984. MOTA, Maria Aparecida Rezende. Sílvio Romero. Dilemas e combates no Brasil da virada do século XX. Rio de Janeiro: FGV, 2000. NEGRI, Antimo. Augusto Comte e L’Umanesimo Positivistico. Roma: Armando Editor, 1971. NOBREGA, Dormevilly. Prosadores. Colectânea. Vol. 1. Juiz de Fora: Fundação Cultural Alfredo Lage, 1982,. NUNES, João Arriscado. “Reportórios, configurações e fronteiras: sobre cultura, identidade e globalização”. Oficinas do CES, n.º43. Coimbra: Centro de Estudos Sociais, 1995. NUNES, Maria Tétis. Silvio Romero e Manuel Bomfim: pioneiros de uma ideologia nacional. Aracaju: Cadernos da UFS, n.º 4, [s.d.]. OLIVEIRA, Franklin de. “Manoel Bomfim, o nascimento de uma nação” In: BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2ª edição. 1993, pp.21-28. OLIVEN, Rubem George. A Parte e o Todo. A diversidade cultural no Brasil-Nação. Petrópolis: Vozes, 1992 PAIM, Antônio. A Filosofia Brasileira. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Série Biblioteca Breve, volume 123, 1991.

328

PAIM, Antônio. História das Idéias Filosóficas no Brasil. 5ª edição revista. Londrina: editora da UEL, 1997. PALMA-FERREIRA, João. “Prefácio”.In: BRAGA, Teófilo. História da Literatura Portuguesa. Idade Média, 1º Volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1989. PAREDES, Marçal de Menezes. “Nacionalidade Brasileira e Projeto Moderno: entre a incorporação da diferença e a introjeção da culpa”. História das Ideias. Vol. 23. Coimbra: Faculdade de Letras, 2002, pp.545-574. PAREDES, Marçal de Menezes. Memória de um Ser-tão brasileiro. Tempo, História e Memória em ‘Os Sertões’, de Euclides da Cunha. Curitiba: Juruá, 2002. PAREDES, Marçal de Menezes. “Sertões da História ou o crime das nacionalidades”. In: DUARTE, Maria Beatriz Balena e MEDEIROS, João Luiz. Mosaico de Identidades. Interpretações Contemporâneas das Ciências Humanas e a Temática da Identidade. Curitiba: Juruá, 2004, pp.149-164. PAREDES, Marçal de Menezes. “História e Escala ou o Brasil e a identidade portuguesa: um estudo sobre J. P. de Oliveira Martins”. Ágora. Santa Cruz do Sul, Vol. 11, n.1, 2005, pp.281-293. PAREDES, Marçal de Menezes. “Querela dos Originais: notas sobre a polêmica entre Sílvio Romero e Teófilo Braga”. Estudos IberoAmericanos. PUCRS, Edição Especial. N.º2, 2006. PEREIRA, Ana Leonor. Darwin em Portugal. Filosofia. História. Engenharia Social. Coimbra: Almedina, 2001. PEREIRA, José Esteves. “Teófilo Braga e Sílvio Romero: duas perspectivas sociológicas”. In: Sílvio Romero e Teófilo Braga Atas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia LusoBrasileiro, 1996, pp.167-181. 329

PEREIRA, Miguel Baptista. “Filosofia e memória nos caminhos do milénio”, In: Revista Filosófica de Coimbra, vol.8, n.º16, Outubro de 1999. PEREIRA, Miriam Halpern. “Oliveira Martins e o Fontismo”. Ler História, 34 (1998), pp.17-31. PIMENTEL, Manuel Cândido. “A crítica do positivismo comteano em Teófilo Braga e Sílvio Romero”. Atas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro, 1996, pp.17-53. PIRES, António Machado. A ideia de decadência na Geração de 70. Lisboa: Vega, 2ª edição, 1991. Polémicas de Eça de Queiroz. Volume II (1867-1872). Organização e introdução João Carlos Reis. Lisboa : Europress/Instituto Português do Livro, 1986. POLIAKOV, Leon. O Mito Ariano: ensaio sobre as fontes do racismo e do nacionalismo. Tradução Luiz João Gaio. São Paulo: Perspectiva, Edusp, 1974. PONTE, Carmo Salazar. Oliveira Martins. História como tragédia. Lisboa: INCM, 1998. PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora Brasiliense, [1943], 1957. RAMOS, Rui. História de Portugal. A Segunda Fundação (1890-1926). Volume VI. Direcção Geral José Mattoso. Lisboa: Editorial Estampa, 2001. REALE, Miguel. “O Historicismo de Sílvio Romero”. In: Sílvio Romero e Teófilo Braga Atas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro, 1996, pp.14-150. REIS, Carlos. As Conferências do Casino. Lisboa: Alfa, 1990. REVEL, Jacques. Jeux d’échelles : la micro-analyse à l’experience. Textes rassemblés et présentés par Jacques Revel. Paris : Gallimard, 1996. 330

RIBEIRO, Darcy. “Manoel Bomfim: antropólogo” In: BOMFIM, Manoel. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, Edição do Centenário, 2005, pp.11-22. RIBEIRO, Maria Manuela Tavares. Portugal e a Revolução de 1848. Coimbra, Livraria Minerva, 1990. RIBEIRO, Maria Manuela Tavares. "Portugal e o Brasil: a modernidade constitucional".

In:

Anais

II

Simpósio

Internacional-Estados

Americanos: Relações Continentais e Intercontinentais, Porto Alegre, Passo Fundo, Editora Universitária, 1997, pp.103-112. RICOEUR, Paul. "Dever de memória, dever de Justiça". In: RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção. Conversas com François Azouvi e Marc De Launay. Lisboa: Edições 70, 1997. RICOEUR, Paul. “Entre mémoire et historire”. In: Projet, n.º248, 19961997. RODRIGUES, Ana Maria Moog, “Sílvio Romero, consciência da nacionalidade e afinidade com Theófilo Braga”, In: Sílvio Romero e Teófilo Braga Atas do III Colóquio Tobias Barreto. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro, 1996, pp.81-101. SEIXAS, Xosé Manoel Nuñes. Los nacionalismo em la Espana contemporânea (siglos XIX y XX). Barcelona: Ediciones Hipótesis, 1999. SERRÃO, Joel. Art, “decadencia”. In: Dicionário de História de Portugal. Iniciativas Editoriais, 1º volume, Lisboa, 1963. SERRÃO, Joel. Dicionário de História de Portugal. Iniciativas Editoriais, 1º volume, Lisboa, 1963. SILVA, José Maria de Oliveira. “Manoel Bomfim e a sociedade do futuro”. Educação & Sociedade, n.º22, 1987. SMITH, Anthony. La construcción de las nacionalidades. Madrid: Cambridge University Press, [1997] 2000. 331

SOARES, Mozart Pereira. O Positivismo no Brasil: 200 anos de Augusto Comte. Porto Alegre: AGE, Editora da Universidade, 1998. TORT, Patrick. Dictionnaire du Darwinismo et de l’Évolution. Paris: PUF, 1996. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert e Madrid, 1ª edição 1854-1857. VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. História cultural e polémicas literárias no Brasil 1870-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. VERÍSSIMO, José. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). Brasília: Editora da UnB, 5ª edição, [1912] 1998. VIANA,

Oliveira.

O

Ocaso

do

Império.

São

Paulo:

Editora

Melhoramentos, 2ª edição, 1925. WHELING, Arno. Estado História e Memória: Varnhagen e a Construção da Identidade Nacional. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. WHITE, Hayden. “Forword” In: KOSELLECK, Reinhardt. The Practical of Conceptual History. Timing History, Spacing Concepts. California: Stanford University Press, 2002. ZILLY, Berthold. “A Reinvenção do Brasil a partir dos sertões: como Canudos é a quintessência do sertão, e o sertão a quintessência do país, o livro de Euclides da Cunha "é" o país, ele reinventa o Brasil, contribuindo para a idéia que a nação tem de si mesma”. In: Revista Humboldt Ano 42, 2000, n.º 80, p. 44-51.

332

333

Buy your books fast and straightforward online - at one of world’s fastest growing online book stores! Environmentally sound due to Print-on-Demand technologies.

Buy your books online at

www.get-morebooks.com Compre os seus livros mais rápido e diretamente na internet, em uma das livrarias on-line com o maior crescimento no mundo! Produção que protege o meio ambiente através das tecnologias de impressão sob demanda.

Compre os seus livros on-line em

www.morebooks.es VDM Verlagsservicegesellschaft mbH Heinrich-Böcking-Str. 6-8 D - 66121 Saarbrücken

Telefon: +49 681 3720 174 Telefax: +49 681 3720 1749

[email protected] www.vdm-vsg.de

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.