Conflito, consenso e democracia em J. S. Mill

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2016 Edição Especial n° 01

VIII Encontro Nacional de Pesquisa em Filosofia da UFPR Resumos Expandidos

ISSN 1517-5529

Conflito, consenso e democracia em J. S. Mill Gustavo Hessmann Dalaqua Doutorando em Filosofia pela USP A relação entre conflito e consenso na teoria da democracia elaborada por Mill é um tema controverso entre os leitores de Considerations on Representative Government238. Para alguns intérpretes, Mill focaria em demasia o consenso, motivo por que seria incapaz de conceber espaço para o conflito em sua democracia. Uma das análises que mais ressalta este ponto é a de Marilena Chauí, que censura a democracia representativa milliana por “impedir [a] explicitação e desenvolvimento completos” dos “conflitos sociais”239. De acordo com tal leitura, a relação entre conflito e consenso na filosofia do autor seria de negação: ao enfatizar o consenso em sua democracia, Mill negaria o desenrolar dos conflitos. Há, contudo, intérpretes que afirmam o contrário. Em Mill on Democracy, Nadia Urbinati explica que, ao eleger o conflito como motor primacial da política, Mill ofereceria um modelo de democracia que dispensaria o consenso240. Também aqui, a relação entre conflito e consenso seria de negação, ainda que sob uma polarização invertida: ao fazer do conflito elemento cabedal da política, Mill negaria a importância do consenso para a vida democrática241. Urbinati têm razão ao afirmar que a explicitação dos conflitos ocupa uma função central na política democrática milliana. Todavia, apesar de ser inadequado entender, à maneira de Chauí, que Mill tende a suprimir o conflito político, é igualmente impreciso afirmar que, ao apreciar a vitalidade do conflito, Mill nega a utilidade do consenso na política. A afirmação de um agonismo radical na filosofia milliana exigiria o esquecimento estratégico de longos excertos do segundo capítulo de On Liberty, do ensaio “Coleridge” e dos capítulos finais de The Logic of the Moral Sciences. Nestas passagens, Mill sublinha a necessidade de um consenso político sobre dois princípios fundamentais que formariam 238 1861. 239 CHAUÍ, 2005, p. 23. 240 URBINATI, 2002, pp. 4, 82. 241 TURNER, 2010, p. 37. 2016 | Edição Especial nº 01 VIII Encontro Nacional de Pesquisa em Filosofia da UFPR

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como que o substrato de todo êthos democrático242.243 Ao mesmo tempo, o filósofo insta pela institucionalização política do conflito e declara que a existência de visões conflitantes é o que evita a corrupção da democracia244. Vê-se, pois, que as leituras opostas mencionadas acima, ainda que incompletas, contam com respaldo textual. Tanto a uma quanto a outra, entretanto, o que falta é compreender de que modo as ênfases no consenso e no conflito se articulam no interior da democracia milliana. A relação entre conflito e consenso em Mill é um pouco mais complexa do que os comentadores do filósofo supuseram até agora. Quando afirma que o consenso sobre o valor fundamental dos “princípios da liberdade individual e da igualdade sócio-política” é condição sine qua non para a estabilidade do regime democrático, a intenção de Mill não é elidir o conflito245. Pelo contrário, o consenso que o filósofo postula como necessário à estabilidade democrática assinala o início, e não o fim, do conflito político. Os princípios da liberdade e da igualdade configuram limites formais, e não substanciais, para a deliberação democrática. Formalmente, o princípio da liberdade, por exemplo, é insubstituível e não está aberto à negociação, porém sua consistência o está. Uma vez postos na base da vida democrática, os princípios da liberdade e da igualdade passam a ser os pontos nevrálgicos da discussão política. A igualdade exige o voto paritário, ou reclama por vezes a concessão de votos plurais para membros de uma determinada minoria? A liberdade permite a livre associação dos cidadãos em qualquer local público, ou restrições quanto ao seu espaço de atuação lhe seriam compatíveis? Eis algumas questões que Mill discute e para as quais sugere respostas246. Todavia, convém ressaltar que o filósofo jamais teve o propósito de determinar sozinho a consistência dos princípios fundamentais da 242 MILL, 1859, pp. 48-53, CW X, pp. 133-5 e MILL, 1988, p. 111. 243 Seguindo a prática padrão dos comentadores de Mill, sempre que usar a edição dos Collected Works of John Stuart Mill, usarei a abreviação CW, enumerando, em seguida, o volume e a página (ex: “CW I, p. 201” equivalerá a “Collected Works, volume I, página 201”). 244 CW X, p. 108 e MILL, 1861, p. 235. 245 MILL, 1988, p. 111. 246 CW I, p. 278 e MILL, 1861, p. 334. 2016 | Edição Especial nº 01 VIII Encontro Nacional de Pesquisa em Filosofia da UFPR

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democracia. Conforme aponta Thompson, não impor de antemão as minudências de seus princípios e deixar que os mesmos sejam estabelecidos por aqueles que os adotarão na prática é, decerto, o mínimo a se esperar de um filósofo da democracia247. Subscrevemos, portanto, à interpretação de Karen Zivi248, segundo a qual os princípios basilares da democracia milliana, e os direitos individuais que deles se seguem, têm seu conteúdo definido por meio da deliberação política. No regime democrático, os direitos individuais não são concedidos de modo peremptório. Na verdade, eles sequer são concedidos; o característico de uma democracia é que, nela, os direitos são conquistados por seus próprios portadores, que discursivamente digladiam entre si. De acordo com a filosofia política de Mill, “devemos conceber os direitos como reivindicações políticas, e o ato de reivindicar direitos [deve ser concebido] como prática de uma política democrática participativa e agonística”249.250 A ideia de que o conteúdo preciso dos princípios de igualdade e liberdade individuais deve ser estabelecido por meio da deliberação política é uma das grandes características do modelo deliberativo de democracia251, e é nesse sentido que podemos identificar Mill como um dos precursores da democracia deliberativa252. Todavia, ainda que uma parte significativa dos filósofos contemporâneos da corrente deliberacionista tenda a valorizar o consenso às expensas do conflito253, convém destacar que, em Mill, o objetivo da deliberação democrática não é erradicar o conflito e fazer a harmonia prevalecer de uma vez por todas. Para Mill, é importante que a disputa em torno da definição dos conteúdos da liberdade e da igualdade jamais cesse. A investigação

247 THOMPSON, 1976, p. 182. 248 2006. 249 ZIVI, 2006, p. 49. 250 Esse fato é importante porque nos permite pôr em xeque a ideia, propagada por um sem número de comunitaristas, de que a tradição liberal tende a pensar o indivíduo, o direito e a liberdade de modo atomístico. No caso de Mill, tal interpretação não procede de modo algum. 251 BENHABIB, 1996, p. 79. 252 GUTMANN e THOMPSON, 2004, p. 9. 253 MIGUEL, 2014. 2016 | Edição Especial nº 01 VIII Encontro Nacional de Pesquisa em Filosofia da UFPR

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coletiva acerca do conteúdo da liberdade e da igualdade só é capaz de alcançar resultados provisórios em uma democracia. De acordo com Mill, a crítica dos princípios norteadores de uma democracia deve ser constante, pois é através do debate adversativo que os cidadãos percebem as deficiências que, inevitavelmente, até o mais inclusivo dos governos apresentará com relação à liberdade e à igualdade. Na medida em que escancara suas falhas e aponta para uma possível solução, o debate conflituoso é salutar à democracia. “Em todas as questões humanas [human affairs], requer-se influências conflitantes”254. Uma política sem influências conflitantes redundaria para Mill em uma sociedade estacionária, onde a deliberação pública seria incapaz de prosseguir na luta contra a “abolição das exclusões”, o que por sua vez pavimentaria um solo propício para o recrudescimento de antigas exclusões255. “As comunidades só progridem enquanto existe um conflito entre o poder mais forte e algum outro poder rival”256. Quando não há conflito, “primeiro surge a estagnação, e depois a corrupção [do corpo político]”257. Nesse sentido, prossegue o filósofo, precisamos criar para as democracias modernas arranjos institucionais que salvaguardem “um suporte social, um point d’appui para a resistência individual às tendências do poder dominante”258. No afã de cumprir semelhante propósito, Mill propõe dois mecanismos institucionais: um plano de representação proporcional (que o autor toma de empréstimo do cientista político Thomas Hare) e um sistema de votação plural (plural voting). Juntas, ambas as medidas têm como meta impedir a prevalência irrestrita de um único grupo social no governo e a degeneração da democracia representativa em mera “legislação de classe” – na definição do autor, “o governo dirigido [apenas] para o benefício da classe dominante, em detrimento do todo”259.

254 MILL, 1861, p. 291. 255 Ibid, p. 342. 256 Ibid, p. 315. 257 Ibid, p. 316. 258 Idem. 259 Ibid, p. 299). 2016 | Edição Especial nº 01 VIII Encontro Nacional de Pesquisa em Filosofia da UFPR

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A representação de todos os grupos sociais na assembleia política é necessária porque, segundo Mill, os mais aptos a entender e defender os interesses de um grupo social são os próprios membros que o compõem, e não outras pessoas. “É importante que cada um dos governados tenha voz no governo, pois dificilmente deve-se esperar que aqueles que não têm voz não sejam injustamente postos de lado por aqueles que a têm”260. Mill repara que seu argumento não pressupõe uma antropologia negativa261. A suposição de uma maldade intrínseca que levaria o ser humano a desrespeitar de propósito o interesse de quem não pertence ao seu grupo social não é necessária. Para justificar a representação proporcional de todos os grupos, “[b]asta-nos supor que, na ausência de seus defensores naturais, o interesse dos excluídos corre sempre o risco de não ser enxergado; ou, quando é de fato enxergado, é visto com olhos muito diferentes dos daqueles que lhe estão diretamente concernidos”262. As sociedades modernas, às quais o sistema representativo se aplica, são marcadas pelo pluralismo, sendo que os interesses de seus cidadãos variam conforme suas posições sociais e seus estilos de vidas. Uma maneira de assegurar o aspecto conflituoso da deliberação na democracia representativa seria, então, estruturar um esquema de representação proporcional conforme a composição da população, que propiciasse a inclusão dos grupos minoritários na assembleia representativa. Entretanto, dependendo do caso, a mera presença de um grupo minoritário na assembleia política não é suficiente para lhes assegurar paridade participativa. Em um país onde a maioria da população é preconceituosa e ignorante – seria, de acordo com o filósofo, o caso da Inglaterra vitoriana263 –, conferir valor idêntico ao voto de cada participante tenderia a condenar ao silêncio a voz de algumas minorias. Na prática, o resultado final seria um debate político sem diversidade efetiva, onde a mesma massa homogênea prevaleceria sem nenhum contrapeso.

260 CW XIX, p. 322. 261 MILL, 1861, p. 246. 262 Idem. 263 MILL, 1859, p. 78. 2016 | Edição Especial nº 01 VIII Encontro Nacional de Pesquisa em Filosofia da UFPR

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Sendo assim, Mill propõe, como complemento da representação proporcional, o sistema de votação plural. A concessão de votos plurais seria lícita para os representantes de grupos sociais que, dependendo das circunstâncias, tivessem mais conhecimento de uma determinada pauta264. Porque gozam de um acesso epistêmico privilegiado, os diretamente afetados por uma proposta política devem ter maior impacto de decisão, já que sabem mais do que os outros as possíveis consequências que a implementação da proposta lhes acarretará. Recebendo mecanismos de compensação que dessem força a sua voz nas questões que mais os afetassem, os grupos sociais minoritários, ao fazer frente à maioria, conseguiriam cumprir uma função vital da democracia, qual seja, a de garantir o não esgotamento do conflito na deliberação política. À medida em que cumprisse tal função, a democracia representativa faria com que os conflitos que perpassam a sociedade fossem discutidos à luz de interesses mais inclusivos do que aqueles que observaríamos em um debate conduzido por apenas um grupo social, que não contasse com a presença do grupo de interesse oposto265. O desenvolvimento do conflito político não deve ser estimulado a ponto de solapar a base da democracia, e é por isso que Mill impõe limites à deliberação democrática e prega um consenso mínimo em torno de dois princípios que, desde a época de Platão, são tidos como constitutivos de qualquer regime democrático266. Esses dois princípios – a liberdade e a igualdade – marcam as fronteiras de um campo discursivo dentro do qual o conflito poderá se desenrolar. O conflito que procede mediante a referência a qualquer um dos princípios é salutar e deve ser encorajado porque fortalece as bases do regime democrático. Entretanto, o combate político que tem por objetivo aniquilar tais princípios deve ser denegado e não pode ganhar espaço em um regime democrático porque põe em risco o próprio funcionamento da democracia. Ou seja, o conflito que Mill admite em sua democracia representativa não é ilimitado. Aquele que, por exemplo, argumenta que indivíduos de um determinado grupo social 264 MILL, 1861, p. 334. 265 Ibid, pp. 282-3. 266 República 557e-558a e Leis 693d. 2016 | Edição Especial nº 01 VIII Encontro Nacional de Pesquisa em Filosofia da UFPR

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devem ser destituídos do direito à liberdade e à igualdade jamais deverá ser ouvido quando for tentar participar da disputa democrática milliana, quando mais não seja porque princípios de legitimação contraditórios não podem coexistir em um mesmo regime político. Posto que conceba espaço para o conflito político, a democracia representativa milliana não configura um agonismo radical porque pressupõe o reconhecimento de dois princípios formais que servem de sustentáculo para a vida democrática: a liberdade e a igualdade de todos os cidadãos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENHABIB, S. “Toward a Deliberative Model of Democratic Legitimacy”. In: Democracy and Difference. Nova Jersey: Princeton University Press, 1996 CHAUÍ, M. “Considerações sobre a democracia e obstáculos à sua concretização”. In: TEIXEIRA, A. C. Os sentidos da democracia e da participação. São Paulo: Instituto Pólis, 2005. GUTMANN, A.; THOMPSON, D. Why Deliberative Democracy? Nova Jersey: Princeton University Press, 2004. MIGUEL, L. F. “Os limites da deliberação”. In: Democracia e representação. São Paulo: Unesp, 2014. MILL, J. S. The Collected Works of John Stuart Mill, 33 vols. Toronto: University of Toronto Press; Londres: Routledge and Kegan Paul, 1963-1991. _____. “Considerations on Representative Government”. In: On Liberty and Other Essays. Edição e notas de J. Gray. Oxford: Oxford University Press, 2008 [1861]. _____. “On Liberty”. In: On Liberty and Other Essays. Edição e notas de J. Gray. Oxford: Oxford University Press, 2008 [1859].

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_____. The Logic of the Moral Sciences. Chicago: Open Court, 1988 THOMPSON, D. John Stuart Mill and Representative Government. Nova Jersey: Princeton University Press, 1976. TURNER, B. “John Stuart Mill and the Antagonistic Foundation of Liberal Politics”. The Review of Politics, vol. 72, 2010 URBINATI, N. Mill on Democracy: from the Athenian Polis to Representative Government. Chicago e Londres: University of Chicago Press, 2002. ZIVI, K. “Cultivating Character: John Stuart Mill and the Subject of Rights”. American Journal of Political Science, Nova Jersey, vol. 50, no. 1, 2006

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