CONFLITO DE GÊNERO EM HOJE DE MADRUGADA DE RADUAN NASSAR Eduardo Navarrete (UEM)

August 31, 2017 | Autor: Eduardo Navarrete | Categoria: Literature, History and literature
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1 CONFLITO DE GÊNERO EM HOJE DE MADRUGADA DE RADUAN NASSAR Eduardo Navarrete (UEM) Introdução Raduan Nassar é daqueles escritores que tiveram grande reconhecimento em vida. O filho de imigrantes libaneses foi saudado, tanto pela Crítica quanto pelo público, como uma das grandes revelações de nossas letras nos últimos tempos. E todo esse merecido destaque se deve certamente aos recursos linguísticos e estéticos que usa – extremo apuro estilístico e alta carga lírica –, e ao universo temático com que trabalha. Tal universo é constituído por conflitos familiares e amorosos, onde vemos sobressairse, entre outras coisas, a problemática referente ao relacionamento entre os gêneros. Presente em todos os livros do autor, seja entre as personagens principais ou entre as secundárias, a relação entre homem e mulher é tematizada de uma perspectiva sóciohistórica, de modo que são trazidas para primeiro plano as diferenças cristalizadas historicamente entre os sexos, tanto na sociedade dita pós-moderna quanto na patriarcal. Talvez seja acertado dizer que, tratando de momentos distintos de nossa História, a obra de Nassar traça um panorama das vicissitudes das relações familiares e amorosas no Brasil. Sabemos que Nassar concebeu seus textos na década de 60 e, sobretudo, na de 70, momento esse de transformações radicais em todas as esferas da sociedade Ocidental. Trata-se do início do que muitos chamam de pós-modernidade – um novo período histórico caracterizado pelo intenso individualismo, pela valorização das diferenças, pelo declínio das metanarrativas, etc. (SANTOS, 1986). A família, como núcleo social básico, sentiu os efeitos dessas transformações mais estruturais, sendo que aquele modelo de família nuclear burguês, sustentado pela ainda presente ideologia patriarcal, sofreu fortes abalos, caminhando para uma pluralidade de formas, como a família monoparental, homossexual, etc. Como não poderia deixar de ser, a mulher e o homem, nesse contexto, também tiveram seus papéis remodelados a partir dos novos valores e práticas da contemporaneidade. A moral hedonista, a exacerbação do individualismo e a consequente fragilidade dos afetos e das relações (BAUMAN, 2005), levaram ambos, impulsionados pela revolução comportamental de Maio de 1968, a uma tentativa de ruptura mais radical com os antigos padrões de feminilidade e masculinidade patriarcais. A mulher que, submissa ao poder masculino, “estava destinada ao lar, aos

2 muros de sua casa, à fidelidade absoluta” (PERROT, 1993, p. 76), desde então, busca uma libertação plena, não apenas econômica, mas também política e sexual, conforme vemos nas exigências da quarta etapa do movimento feminista no Brasil, que, “além de discutirem o direito à sexualidade, ao prazer e ao aborto, levantaram-se contra a ditadura militar e a censura” (ZOLIN, 2007, p. 54). É uma mulher senhora de seu corpo e de seus desejos, beneficiada pela pílula anticoncepcional e pela descoberta da masturbação, defendendo uma nova concepção de maternidade (ela pode escolher quantos, quando e se quer ter filhos ou não) que vemos nascer. Por sua vez, o homem sente sua autoridade, que antes era tida como absoluta no âmbito familiar, decair frente aos avanços femininos, é impelido a abandonar sua pose viril e adotar uma nova sensibilidade, e a própria paternidade passa por uma reconceituação na medida em que o pai perde seu status de homem do saber frente aos filhos (CORSO, 2011). Raduan Nassar, contemporâneo dessa nova realidade histórica, vivenciou e testemunhou todas essas mutações, tematizando-as em suas narrativas ficcionais. Seus enredos revelam uma profunda preocupação com os dramas familiares e amorosos contemporâneos, abordando a conflituosa questão do relacionamento entre os sexos. Dois dos seus livros trazem personagens femininas e masculinas imersas nas novas e problemáticas configurações das relações de gênero: Um Copo de Cólera, novela que relata o conflito amoroso e ideológico de um casal de classe média; e Menina a Caminho, coletânea de contos, em que as personagens femininas medem forças com seus parceiros amorosos. Neste artigo, limitar-nos-emos a abordar um dos contos dessa coletânea, a saber, Hoje de Madrugada. Escrito em 1970, ele enfoca um momento íntimo de um casal contemporâneo, onde a mulher solicita em vão a satisfação de sua carência sexual e afetiva. É um texto pouco explorado e, apesar de ter como temática central os problemas dos homens e mulheres contemporâneos, ainda não foi investigado sob esse ponto de vista. Ele integra, junto com os outros contos, uma parte menor da obra de Nassar, que ele mesmo definiu como “safrinha” (CADERNOS, 1996, p. 65), e cuja linguagem, diferentemente do tom febril e delirante das obras maiores, é mais comedida e menos apaixonada. Trata-se de uma narrativa em que Nassar nos coloca diante de mulheres contemporâneas em intenso conflito com o universo masculino, podendo ser notadas as relações de poder que permeiam os gêneros. Nosso intento, no trabalho com esse texto, é fazer um exame dos perfis femininos e masculinos construídos pelo prosador, cotejando-os com os modelos de feminilidade e masculinidade tradicionais, verificando

3 em que medida eles se aproximam ou distanciam. Em outras palavras, buscamos compreender sem as mulheres e homens de seus textos criaram novas condutas realmente emancipatórias ou se ainda têm “um pé na casa patriarcal” (LAURETIS, 1994). Para tanto, lançaremos mão de uma metodologia que mescla as contribuições da História Cultural e da Crítica Feminista - duas propostas de estudo que repousam sobre a noção de gênero, a qual postula o caráter social e cultural das distinções entre os sexos. A vertente historiográfica chama a atenção para o caráter histórico e mutante dos conteúdos da feminilidade, bem como da masculinidade, e tem como objetivo identificar, para cada período e lugar, as representações culturais (lingüísticas, literárias, imagéticas, etc.) que constroem as diferenças e relações de poder entre os gêneros fazendo-as parecerem naturais e universais (CHARTIER, 1995). A Crítica Feminista, do mesmo modo, tem como objetivo revelar as ideologias basilares da dominação masculina nos textos literários, tanto masculinos quanto femininos, respondendo, ao modo de Kate Millet, a questões como: ”Que tipo de papéis as personagens femininas representam? Com que tipo de temas elas estão associadas? Quais as pressuposições implícitas contidas num dado texto em relação ao (à) seu (sua) leitor (a)?” (ZOLIN, 2009, p. 226). Além de fundamentarem-se na noção de gênero, essas duas perspectivas teóricas têm em comum também o fato de trabalharem com um mesmo conceito fundamental – o de representações. E, com efeito, será com tal instrumento teórico que analisaremos o conto de Raduan Nassar. Podemos defini-lo como os “esquemas intelectuais, que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado” (CHARTIER, 1990, p.17). Tomada nessa perspectiva, isto é, como um esquema intelectual encarregado de atribuir significações, a literatura deixa de ser um simples espelho da realidade e passa a ser vista como uma construção linguística, produzida a partir da posição, dos interesses e ideologias de cada autor no campo social e literário. Por isso, é necessário estabelecer aqui, também, a relação entre as representações criadas no texto ficcional e as ideologias defendidas pelo autor, haja vista que, como assevera Antonio Candido (1967), estas são determinantes cruciais na constituição, não só do conteúdo, mas também da própria estrutura interna da obra.

4 Eva Derrotada, Adão Triunfante... Escrito em 1970, o conto Hoje de Madrugada é uma narrativa curta, porém densa. Ela aborda uma cena, um momento íntimo na vida de um casal de classe média urbana. Através do recurso da análise mental em que se analisa ao mesmo tempo em que se vivencia uma situação dramática (JÚNIOR, 2005, p. 48), o narrador protagonista, depois de raiado o dia, registra um episódio que lhe ocorreu na madrugada: sua mulher (que, assim como ele, não é nomeada) entra silenciosamente em seu quarto de trabalho, onde ele está na escrivaninha acordado, e suplica-lhe pela satisfação de seus desejos amorosos e sexuais. Descrevendo linearmente a sequência de pequenos fatos ocorridos, ele quase nada diz acerca da vida ou da história do casal, e, muito menos, do motivo da tensão existente entre eles. Sua narrativa, desprovida de digressões, se concentra na comunicação que houve entre os dois naquele breve instante, comunicação esta que se deu apenas por intermédio de umas poucas palavras escritas e, sobretudo, por intermédio dos gestos; não há a palavra falada, a comunicação oral entre eles. Por isso, compreender esse conto depende, em grande medida, da decifração da linguagem gestual que se dá entre as personagens. Como fica claro, o conflito dramático gira em torno das súplicas amorosas da parte dela e da recusa categórica e resoluta da parte dele. O próprio movimento do texto reproduz tal conflito. Estruturado em cinco grandes parágrafos, o conto apresenta, nos quatro primeiros, um vai-e-vem entre uma súplica dela e uma rejeição dele: no primeiro, ela entra no quarto e fica acuada no canto à espera de alguma palavra, mas ele mal ergue os olhos e permanece em silêncio, “mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranquilizá-la” (NASSAR, 1997, p. 54); no segundo, ela apanha um bloco de anotações e escreve “vim em busca de amor” (idem, p. 55), ao que ele responde secamente “não tenho afeto para dar” (idem, p. 55); no terceiro, ela tenta acariciar-lhe a nuca e ele ergue seu braço, “retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos” (idem, p. 56); no quarto, a investida dela se dá por baixo da mesa, onde ela, com o pé, afaga suas pernas, enquanto ele se esquiva, “recolhendo meus próprios pés que cruzei sobre a cadeira” (idem, p. 57); já no derradeiro parágrafo, não há esse movimento de súplica e recusa, sendo ele apenas um desfecho em que ela desiste de suas tentativas e segue embora de “ombros caídos” (idem, p. 58). Mulher e homem, nesse conto, formam, portanto, um par antinômico, um opondo-

5 se diametralmente ao outro. E essa oposição, embora se trate de um casal da pósmodernidade, vivendo todas as supostas reformulações dos padrões masculinos e femininos, se dá ainda, em linhas gerais, segundo os moldes estabelecidos pela ideologia patriarcal. A mulher e o homem nassarianos em Hoje de Madrugada, desse modo, são constituídos a partir de traços tradicionalmente atribuídos ao sexo masculino e feminino. Vejamos, em primeiro lugar, a personagem feminina. Antes de tudo, temos que assinalar que o narrador procura definir um antes e um agora da mulher, isto é, procura sublinhar a diferença entre o comportamento que ela tinha no passado e o que ela teve naquele momento. São dois os trechos em que ele adverte o leitor dessas mudanças (aliás, são esses os únicos trechos em que diz algo a respeito da vida pregressa deles). No primeiro, logo que ela adentra no quarto, ele nota “a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, energéticos em outros tempos” (idem, p. 54). Percebe-se, aqui, que a energia que o braço tivera é uma metáfora para a força, não física, mas simbólica da personagem em outros tempos em contraste com a fraqueza representada pela moleza. No segundo trecho, na “cena” seguinte, quando ela lhe escreve a frase dizendo que veio em busca de amor, o narrador compara a imagem altiva que ela tinha antigamente com a de completa rendição que apresenta agora: “Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada, provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia” (idem, p. 55). A referência ao golpe de misericórdia remete a uma guerra, a um duelo travado entre os dois, no qual ela teve uma postura desafiadora, mas que agora sucumbe ante o poder masculino. A personagem, portanto, no tempo em que se dá a narrativa, é uma mulher que, sem que o leitor/a saiba o porquê, perdeu seu poder e que se encontra no estado de quem se entrega na luta entre os gêneros. E, com efeito, a representação da personagem feminina é construída sob o signo da fragilidade, da fraqueza e da carência. Sabemos, através dos estudos de Bourdieu (2007), que dentro do patriarcalismo, a mulher é definida como um ser natural e essencialmente frágil, o que lhe impõe a condição de submissão, ao contrário do homem, que é marcado pela força e pela coragem. São diversos os traços gestuais sinalizados pelo narrador para compor um perfil frágil de sua mulher. Assim, logo que ela entrou “ficou espremida ali no canto” (NASSAR, 1997, p. 54). É a situação de um animal acuado e temeroso de seu predador. Outros gestos seus revelam que ela como que padecia de uma enfermidade grave: o narrador vê na frase que ela lhe escreve no

6 bloco de notas “um grito de socorro” (idem, p. 55), e quando ela escreve “responda” (idem, p. 55) após perceber que ele não responderia, ele diz: “era um gemido” (idem, p. 55). Nota-se que, na ausência de linguagem verbal, ele interpreta as frases dela como sons orais manifestados em situações de dor ou desespero. Ela, ainda, apresenta outras características doentias, como quando, angustiada, “mordia seus dedos” (idem, p.56), e, como ele diz ao ser tocado por ela, “me queimava a perna com sua febre” (idem, p. 57), além do que seus “dentes é que tremiam” (idem, p.57). Mordendo o próprio corpo, febril, trêmula – sinais evidentes de quem sofre de alguma doença. Nassar, ao caracterizar a personagem feminina, sôfrega por prazer tanto quanto uma Emma Bovary, com os sinais de uma doença, mostra que via o tão propalado hedonismo, não como uma garantia de felicidade, mas como uma patologia, como um estado de morbidez, que contrasta com a tranquilidade e repouso do personagem masculino que renunciou aos apelos do desejo. Em Hoje de Madrugada, portanto, a mulher desejante é representada pela doença e o homem que se abstém pela saúde. Enferma, ela também é caracterizada pela condição de extrema carência afetiva. É ela que o tempo todo vai à busca dele. É ela que, como diz o narrador, está mendigando afeto. Sua mendicância é mostrada através de uma imagem, onde ela aparece como uma ave que espera os grãos doados por seu dono: quando vê ele escrever no bloco a frase negativa que serviria de resposta a seu pedido, “sua mão, com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos” (NASSAR, 1997, p. 55). Ela age, assim, feito uma ave faminta que bica uma migalha de afeto que ele deixa cair em um “desperdício.” Além da fragilidade e da carência, há ainda outro traço, próprio da definição da mulher dada pelo patriarcalismo, que lhe marca o perfil: a emoção. A mulher de Hoje de Madrugada é, antes de tudo, emotiva; é impulsionada, não por reflexões racionais, mas pelo caldeirão de desejos e sentimentos que fervem dentro de si. A motivação fundamental de sua ação é o sentimento amoroso, a busca pela satisfação afetiva, como fica claro em suas tentativas de seduzir ele e na frase nervosa que ela lhe escreve: “vim em busca de amor” (idem, p. 55). Não lhe falta, inclusive, um quê de louca, uma marca de irracionalidade: o narrador-personagem, ao vê-la voltar da janela, afirma não se surpreender “com o traço de demência lhe pervertendo a cara” (idem, p. 56). Se a mulher, como vimos, apesar de estar inserida no contexto de reformulações dos padrões de feminilidades, ainda é representada de acordo com o molde da mulher tradicional, o mesmo ocorre com o personagem masculino, com o qual ela contrasta.

7 Formando uma oposição antitética com ela, ele é construído a partir das características predominantes dos homens no mundo patriarcal. Em primeiro lugar, ao contrário da fraqueza dela, chama atenção a força do personagem. Não a força física, que nem sequer é mencionada, mas a força que vem da determinação em não atender aos apelos do desejo, a força do ato de ignorar peremptoriamente as súplicas afetivas de sua mulher. Em suma, é a força da auto-suficiência, expressa na recusa dos afagos que ela lhe faz, seguidamente, no pescoço e nos pés, e da indiferença, que vemos no seu silêncio obstinado e no fato de, na maioria das vezes, ele, mantendo-se em um estado de inércia, nem sequer olhar para ela: “Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa” (idem, p. 55). E, em segundo lugar, ao passo que a mulher é regida pela emoção, o narrador parece estar desprovido de qualquer emotividade. Ele age apenas em função da temperança e da frieza racional. Nem sequer irritação ou nervosismo ele manifesta. Todos seus gestos são executados com lentidão, tanto que ele usa as palavras/expressões “com vagar”, “sem pressa” e “lentamente” repetidas vezes para qualificar seus atos. Mantém absoluto domínio de si, se esquivando-se, com impassibilidade, das investidas da mulher e lhe revelando numa frase seca: “não tenho afeto para dar” (idem, p. 55). Homem e mulher, portanto, formam, nesse conto, um par divido por características dicotômica bem ao modo da dicotomia estabelecida entre os sexos no pensamento patriarcal: mulher (fragilidade, emoção) versus homem (força, razão). Há, contudo, uma característica na composição da personagem feminina que comporta certa ambiguidade, isto é, revela que ela é, ao mesmo tempo, uma mulher emancipada e sujeita às determinações do patriarcalismo. Tal característica consiste no fato de, desde o início, ela, e não ele, tomar a iniciativa na conquista sexual e amorosa. Ela abandona a posição, tradicionalmente atribuída às mulheres, de passividade e castidade e torna-se ativa, assumindo livremente seu desejo e buscando seduzir e conquistar o homem. Nesse sentido, concordamos com De Paula, quando ela afirma que: (...) surpreende-nos a figura feminina nassariana no conto Hoje de Madrugada, que reflete um perfil já esboçado na novela Um Copo de Cólera, em que é ela quem vai em (sic) busca de saciar os desejos do corpo. Ou seja, é a mulher, a princípio, a agente da transformação da figura masculina em objeto de satisfação sexual, abandonando a posição de objeto para ser sujeito no jogo de sedução (DE PAULA, 2006, p. 116).

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Porém, essa mesma característica, representativa da libertação feminina ante o jugo masculino, faz parte, também, do repertório de conduta da mulher tradicional. Esta, como é sabido, despossuída de poder econômico, uma vez que não trabalhava fora do espaço doméstico, tinha na beleza seu único instrumento de negociação com o poder masculino. As narrativas ocidentais (literárias, cinematográficas, pictóricas, etc.), e possivelmente as orientais, não à toa, criaram o estereótipo da mulher que usa os encantos do corpo para atingir seus objetivos. É a mulher sedutora que remonta à própria Eva do Gênesis, a qual seduziu Adão com uma maçã levando-o à perdição. Na cultura judaico-cristã, consolidou-se essa imagem da mulher em que ela é “quase sempre associada ao pecado e, portanto, à tentação, à sedução e ao perigo, devido à tradição bíblica do livro do Gênesis, que dá à mulher a primazia na dinâmica da queda da humanidade e do chamado pecado original” (BINGEMER, 2002, p. 12). Em Hoje de Madrugada, a personagem feminina é construída de acordo com esse estereótipo, embora use a sedução, não como um meio para atingir objetivos outros, mas como um fim em si. É o que vemos nas carícias eróticas que ela faz no pescoço e nos pés do homem, bem como na exibição “de seu obsceno corpo debaixo da camisola” (NASSAR, 1997, p. 53) e do decote que deixava entrever “os seios flácidos tristemente expostos” (idem, p. 56). Observa-se, desse modo, uma personagem ambígua que rompe e, ao mesmo tempo, dá continuidade aos padrões que a ideologia patriarcal impôs ao sexo feminino. Ocorre, aqui, uma resistência ao poder masculino, mas uma resistência que se manifesta, não por fora, como uma rejeição explícita, mas por dentro da ideologia patriarcal. É um modo de resistir que, como nos informa Chartier, se dá pela apropriação da linguagem da dominação simbólica e pelo seu uso contra os dominadores: Nem todas as fissuras que corroem as formas de dominação masculina tomam a forma de dilacerações espetaculares, nem se exprimem sempre pela irrupção singular de um discurso de recusa ou de rejeição. Elas nascem com freqüência no interior do próprio consentimento, quando a incorporação da linguagem da dominação se encontra reempregada para marcar uma resistência (CHARTIER, 1995, p. 42).

E para exemplificar sua ideia, Chartier usa justamente o caso da beleza. Para ele, adequar-se aos padrões estéticos ditados pelo olhar masculino não é somente uma forma

9 de submissão, mas também pode ser um recurso para subverter a relação de dominação. É quando ocorre o que ele denomina de efeito beleza: “uma tática que mobiliza para seus próprios fins uma representação imposta – aceita mas que se volta contra a ordem que a produziu” (idem, p. 41). Do mesmo modo que a mulher, o personagem masculino também será, nesse ponto, portador de uma ambiguidade: ao mesmo tempo em que é o elemento passivo, inerte, se distanciando do padrão milenar de masculinidade, que impunha ao homem a obrigação de ser ativo na conquista, de ser o “caçador” e não a “caça”, ele se imuniza ante o poder de iniciativa e conquista feminina ao bloquear as investidas dela. É um homem marcado pela passividade, ele é o objeto, e não o sujeito, da conquista, mas ele não se deixa conquistar. Essa sua recusa ao afeto foi interpretada por De Paula como consequência da decadência da beleza do corpo da mulher notada por ele: (...) a recusa em dar amor, que o personagem forja a companheira, parece-nos – dentre vários motivos possíveis – permear a questão da beleza feminina e sua ausência. Assim, o narrador, ao traçar um paralelo entre a vigorosidade do corpo da mulher no passado e sua decadência no presente, faz com que nós lancemos o olhar sobre a questão do belo como qualidade impulsionadora do interesse sexual masculino. (DE PAULA, 2006, p. 117)

A nosso ver, essa interpretação é equivocada pela insuficiência de indícios que comprovem a decepção com a falta de beleza corpórea da parceira notada pelo narrador e, acima de tudo, pelo fato de acreditarmos que as razões da recusa são bem mais amplas e relevantes que uma simples questão estética. Acreditamos que uma explicação mais abalizada pode ser encontrada quando se coteja o protagonista de Hoje de Madrugada com os protagonistas de outros dois textos de Nassar. O narrador do conto que estamos analisando é muito similar aos narradores do conto O Ventre Seco e da novela Um Copo de Cólera. Não por acaso os três textos foram escritos em 1970 e tratam, em linhas gerais, da mesma situação dramática: o conflito amoroso entre um homem e uma mulher que pretende ser emancipada. Embora não se furte ao prazer sexual, o chacareiro de Um Copo de Cólera mostra-se descrente quanto ao amor, mas sua descrença faz parte de uma renúncia maior a qualquer relacionamento humano: “me recuso pois a pensar naquilo em que não mais acredito, seja o amor, a amizade, a família, a igreja, a humanidade; me lixo com tudo isso!” (NASSAR, 1992, p. 55). Já, em O Ventre Seco, não muito diferente, o narrador diz ter

10 abdicado dos bens materiais, do conhecimento e do prazer sexual: “Nem foi preciso fazer um voto de pobreza, mas fiz há muito o voto de ignorância, e hoje, beirando os quarenta, estou fazendo também o meu voto de castidade” (NASSAR, 1997, p. 62). São dois homens, assim, misantropos que ambicionam renunciar a qualquer laço humano. O narrador de Hoje de Madrugada, apesar de não dizer absolutamente nada acerca das motivações de sua recusa ao afeto feminino, em função de suas semelhanças com esses dois outros personagens, pode ser interpretado, tal como eles, como uma espécie de ermitão descrente (como prova o excerto acima, onde há a referência à prática religiosa dos santos de se fazer votos) que busca o isolamento total e a ruptura com todos os vínculos. Sua rejeição ao amor e ao sexo, portanto, muito mais que uma simples decepção com a falta de beleza, faz parte de uma renúncia maior à vida. Corroboram nossa hipótese a indiferença ascética que ele demonstra durante toda a narrativa e o fato de ele, como ele mesmo nos informa, não trabalhar, se dedicando à tarefa despropositada de rabiscar, à toa, um papel – um gesto que evidencia a total falta de sentido ou interesse pela vida, como se o narrador estivesse apenas divagando à deriva pela existência. Além de se afastar do padrão do homem tradicional ao representar a passividade frente à sua mulher, nosso narrador usa um instrumento de barganhas tradicionalmente feminino que é a recusa à satisfação sexual do parceiro. Se a mulher no universo patriarcal, não possuindo outras formas de poder, dispunha apenas de sua beleza física, privar o homem do acesso ao seu corpo, assim como a sedução, era uma forma possível de se opor e negociar com o poder masculino. Dar ou negar o corpo: eis as únicas táticas de que as mulheres dispunham nas lutas entre os gêneros. É o que vemos ocorrer, sob uma ótica cômica, na peça A Greve do Sexo do grego Aristófanes (1996), em que a protagonista, sentindo todos os estragos provocados pela guerra do Peloponeso à população ateniense, na falta de outros mecanismos de luta contra as decisões masculinas, convoca as mulheres da cidade a fazer uma greve de sexo até seus maridos decidirem pôr um fim à contenda. Nosso protagonista, ainda que não como um meio para atingir outros objetivos, mas como um fim em si, lança mão dessa tática, sem se preocupar, inclusive, com a obrigação imposta ao homem pelo patriarcalismo de não se furtar ao desejo feminino sob pena de colocar em suspeição sua própria masculinidade. Vendo esse gesto dentro da relação de gênero estabelecida pelos personagens, conclui-se que a recusa ao desejo da parte dele é, como disse ele mesmo, um golpe de misericórdia infligido à mulher. Negar-se a satisfazê-la sexual e amorosamente é um ato

11 que anula o recém-conquistado poder feminino de assumir livremente seu desejo e, ao mesmo tempo, é uma tentativa de reafirmação do abalado poder masculino. O conflito entre os sexos em Hoje de Madrugada se resolve com o triunfo masculino e uma derrota feminina, uma vez que ele, forjado em uma fortaleza de desafeição, não cede à tentação, e ela se transforma em sujeito da ação, mas fracassa em suas tentativas de sedução. Como um Adão triunfante, ele permanece impassível, enquanto ela, Eva derrotada, sai do quarto com os “ombros caídos” (NASSAR, 1997, p. 58), a própria imagem do fracasso. Referências ARISTÓFANES. A Greve do Sexo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. BAUMAN, Zygmunt. Identidade: Entrevista à Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. BINGEMER, M. Experiência de Deus em Corpo de Mulher. São Paulo: Loyola, 2002. BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. NASSAR, Raduan. Entrevista. In: Cadernos de literatura brasileira. n. 2. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1996. CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Ed. Nacional, 1967. CHARTIER, Roger. Diferença entre os Sexos e Dominação Simbólica. In: Cadernos Pagu, n° 4, Campinas, 1995, p. 37-47. CHARTIER, Roger. Por uma Sociologia Histórica das Práticas Culturais. In: _______. História Cultural: entre Práticas e Representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 13-28. CORSO, Diana; CORSO, Mario. Retratos de Família. Palestra proferida no Programa

12 Café Filosófico da TV Cultura. Campinas, 06 de maio de 2011. DE PAULA, Marcela Magalhães. A Falta de Beleza no Corpo: Interferências nas Relações de Afeto no Conto “Hoje de Madrugada”, de Raduan Nassar. In: Revista de Letras, N 28, 2006, p. 116-120. LAURETIS, Teresa de. A Tecnologia do Gênero. In: HOLLANDA, H.B. Tendências e Impasses: o Feminismo Crítico da Cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 206-242. LEMOS, Maria. Raduan Nassar: Apresentação de um Escritor entre a Tradição e a (Pós) Modernidade. Estudos Sociedade e Agricultura, n 20, 2003, p. 81-112. LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 1989. NASSAR, Raduan. Menina a Caminho. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. NASSAR, Raduan. Um Copo de Cólera. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. PERROT, Michele. O nó e o ninho. In: Veja 25 anos – Reflexões Para o Futuro. São Paulo: Abril, 1993, p. 74-81. SANTOS, Jair Ferreira de. O que é Pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 1986. SEDLMAYER, Sabrina. Pensar com Delicadeza, Imaginar com Ferocidade. In: REICHMANN, Brunilda. Relendo Lavoura Arcaica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. ZOLIN, Lúcia Osana. Crítica Feminista. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia. Teoria Literária: Abordagens Históricas e Tendências Contemporâneas. Maringá: Eduem, 2009.p. 217-243. ZOLIN, Lúcia Osana. O Matador, de Patrícia Melo: Gênero e Representação. Revista Letras, n. 71, Curitiba, 2007, p. 53-63.

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