CONFLUÊNCIAS LITERÁRIAS NAS PERIFERIAS DO CAPITALISMO: A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL EM MACHADO E POE

May 28, 2017 | Autor: Greicy Bellin | Categoria: Brazilian Literature, North American Studies
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"(…) as a wild, alienated figure, a lost soul who walked the streets, in madness or melancholy, with his lips moving in indistinct curses, whose harsh experience had deprived him of all faith in man or woman."
"(…) it therefore results that criticism, being everything in the universe, is, consequently, nothing whatever in fact."
"(…) a national "republic" of letters, in which unbiased assessments of contemporary literature would become the norm, rather than the current kowtowing to regional interests and large commercial publishing hegemonies."

CONFLUÊNCIAS LITERÁRIAS NAS PERIFERIAS DO CAPITALISMO: A CONSTITUIÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL EM MACHADO E POE
Machado de Assis, em crônica de 1 de junho de 1878, sintetiza da seguinte maneira o tema da fala que me traz a esta conferência:
Que os Estados Unidos começam a galantear-nos, é coisa fora de dúvida; correspondamos ao galanteio; flor por flor, olhadela por olhadela, apertão por apertão. Conjuguemos os nossos interesses, e um pouco também os nossos sentimentos; para estes é um elo, a liberdade; para aqueles, há outro, que é o trabalho; e o que são o trabalho e a liberdade senão as duas grandes necessidades do homem? Com um e outro se conquistam a ciência, a prosperidade e a ventura pública. Esta nova linha de navegação afigura-se-me que não é uma simples linha de barcos. Já conhecemos melhor os Estados Unidos; já eles começam a conhecer-nos melhor. Conheçamo-nos de todo, e o proveito será comum. (ASSIS, 2008, p. 95).
Comunidades incomuns emergem desta fala, publicada no jornal O Cruzeiro por ocasião da inauguração do City of Rio de Janeiro, paquete da United States and Brazil Steam Ships que faria a ligação entre o Rio e Nova York em uma viagem de 22 dias. O trecho da crônica aponta para uma sensibilidade sintonizada com ideias de liberdade, trabalho, ciência, prosperidade e ventura pública, associadas aos Estados Unidos e percebidas como parâmetro a ser seguido pelo Brasil. A metáfora do galanteio estabelecido por meio de flores, olhadelas e apertões é indicativa de uma visão de abertura que não se locupleta com a mentalidade periférica consolidada no referencial europeu. É a partir desta ideia que Machado de Assis preconizará uma construção identitária a respeito da qual pouco se fala e quase nada se discute, tendo em vista o frequente alinhamento de sua obra aos padrões literários franceses e ingleses. Tal construção encontrará em Edgar Allan Poe um paradigma a princípio inusitado, mas produtivo e interessante de constituição de identidade em um contexto caracterizado pela subserviência intelectual e pela imitação de modelos literários estrangeiros.
Comparar Poe a Machado parece realmente algo incomum, considerando a existência de uma tradição crítica consolidada já no século XIX, que percebia Poe como "um selvagem, uma figura alienada, uma alma perdida que vagava pelas ruas, em estado de loucura ou melancolia, com os lábios se movendo em maldições indistintas, e com uma amarga experiência de vida que o teria privado de toda a fé nos homens e também nas mulheres." (WALKER, in CARLSON, 1996, p. 25). Este viés tem sido problematizado pela fortuna crítica poeana das últimas décadas, que tenta desmistificar o estereótipo de alienado, alcoólatra e atormentado ao empreender análises que consideram a relação de Poe com o contexto literário de sua época e, por mais incomum que possa parecer, com as questões relativas ao nacionalismo. O flerte entre Poe e Machado torna-se evidente na tradução parodiada de "O corvo", que sinaliza a existência de trocas literárias transatlânticas operadas por intermédio de Baudelaire, o mais famoso disseminador da obra poeana em contexto mundial. O que se observa é que grande parte da fortuna crítica machadiana evita reunir dois escritores a princípio muito diferentes entre si, mas que se assemelham de forma surpreendente no que diz respeito à constituição de uma identidade nacional nas literaturas brasileira e norte-americana do século XIX.
A publicação de "Instinto de nacionalidade" no periódico nova-iorquino O Novo Mundo, é sintomática de uma preocupação com a construção da identidade nacional em nações caracterizadas pela persistente servidão intelectual, que se constituía em um verdadeiro entrave para a formação de todo e qualquer elemento que identificasse um cidadão como brasileiro ou norte-americano. O travejamento da experiência periférica analisado por Roberto Schwarz em "As ideias fora do lugar" é objeto de constante preocupação por parte de Poe e de Machado, ainda que tal preocupação tenha sido subalternizada por uma historiografia literária que associou os Estados Unidos à noção de capitalismo selvagem, opressor e excludente. O trecho da crônica machadiana citado no início desta exposição aponta em uma direção oposta ao vislumbrar para o Brasil uma linha de navegação assentada na independência política (e literária) forjada com base na luta armada, nos embates intelectuais, na liberdade, e não em articulações de cunho exclusivamente político. A desconfiança em relação à apropriação do célebre "grito do Ipiranga" na busca pela identidade nacional no campo literário transparece já no primeiro parágrafo de "Instinto de nacionalidade", em que Machado, demonstrando toda a sua lucidez na percepção do que seria uma real identidade brasileira, afirma que "esta outra independência (a literária, grifo meu) não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração nem duas; muitas trabalharão até perfazê-la de todo." (ASSIS, 2008, p. 1203).
Comenta-se à exaustão que "Instinto de nacionalidade" sinaliza a ruptura machadiana com o encarceramento aos limites do local, alargando a ideia do que era considerado "literatura nacional" e pressupondo a existência de uma identidade literária que não se construiria com base no referencial representado pelo movimento romântico. O que não se comenta, e que vale salientar, é que tal percepção também transparece, em certa medida, nos textos críticos de Poe. Assim como Machado, o escritor tencionava construir uma identidade literária nacional livre dos preconceitos e das ideias tendenciosas relacionadas à busca pela "cor local". O modelo de crítica literária praticado pela intelectualidade norte-americana do século XIX era também criticado por Poe, que o considerava uma imitação do modelo inglês presente no British Quarterly Reviews. O escritor denunciava o caráter mistificador do nacionalismo literário ufanista, usado pelos críticos como pretexto para não focar em assuntos exclusivamente literários, o que teria consequências nefastas, pelo menos em termos de avaliação da literatura: "(...) a consequência é que a crítica, sendo tudo, se torna um nada." (POE, in THOMPSON, 2004, p. 634, tradução minha). Na visão de Poe, não haveria propriamente uma identidade nacional em contextos de imitação literária e/ou nacionalismo ufanista, ideia esta reforçada pela conclamação a uma "república nacional das letras", na qual "parâmetros isentos de avaliação das obras literárias seriam a norma principal, ao contrário do pertencimento aos interesses regionais (...)" (THOMPSON, 2004, p. 32, tradução minha). Além de desconstruir a tão propalada dicotomia entre norte e sul, motivo de segregação de muitos escritores norte-americanos na época de Poe, a noção de "república nacional das letras" aponta para a construção de uma identidade nacional própria, livre da discursividade romântica que encarcera o texto literário e seu escritor aos limites de uma localidade construída com base em pressupostos ufanistas de nação.
Machado sem dúvida captou a mensagem poeana e a percebeu como referencial para uma literatura ainda subserviente e atrelada ao modelo europeu. Daí a emergência do "sentimento íntimo" em oposição ao "instinto de nacionalidade" sustentado pelos românticos, instinto este que não corresponderia a uma efetiva consciência de nacionalidade e de constituição de uma identidade nacional na literatura. Ao afirmar que o escritor deveria ser "homem do seu tempo e de seu país, ainda que tratasse de assuntos remotos no tempo e no espaço", Machado busca construir uma república brasileira das letras, o que aponta para a sua confluência com a obra de Poe, produto do processo chamado por Natalie Bas (2011) de "americanization from within", segundo o qual os escritores brasileiros teriam revelado autonomia e não subserviência no diálogo com os norte-americanos.
O questionamento machadiano ao rótulo de nacionalista dado a certos escritores aparece em "Instinto de nacionalidade" na referência, ainda que indireta, a Henry Wadsworth Longfellow, contemporâneo de Poe: "Mas, pois que isto vai ser impresso em terra americana e inglesa, perguntarei simplesmente se o autor do "Song of Hiawatha" não é o mesmo autor da Golden Legend, que nada tem com a terra que o viu nascer, e cujo cantor admirável é (...)" (ASSIS, 2008, p. 1205). Machado aponta, de maneira sub-reptícia, para o contrassenso de se considerar "nacional" um poeta que ambienta a ação de um poema na Alemanha medieval, considerando a impossibilidade de se criar um cenário deste tipo em um país pertencente ao novo mundo. Longfellow foi acusado de plágio por Poe na famosa contenda literária "Little Longfellow war", quase da mesma forma que Machado acusaria Eça de Queirós de imitar Zola em O primo Basílio. O que estes textos revelam, ao fim e ao cabo, é a preocupação com os "perigos" da imitação literária, que limitava as possibilidades de constituição de sistemas culturais autônomos e capazes de dialogar criativamente com o referencial europeu, copiado de maneira persistente e quase instintiva por escritores que não estavam de fato engajados na construção de uma verdadeira identidade nacional por meio da literatura.
Assim sendo, não me parece exagerado afirmar que as reivindicações de Poe e Machado se revestem de inegável teor político ao preconizar uma real independência para o texto visto como colonizado e para os escritores oriundos de contextos localizados nas "periferias do capitalismo", para usar a célebre expressão de Roberto Schwarz. A ideia, representada pelos Estados Unidos, de uma real luta pela independência, juntamente com uma leitura muito própria da obra de Poe (sim, Machado era leitor fluente em inglês) e com uma percepção de identidade que se opunha às hegemonias francesa e inglesa, permitiram ao escritor vislumbrar, com a lucidez característica de um verdadeiro bruxo, um contexto extremamente moderno e aberto para o entendimento dos diversos processos de constituição identitária e de embates criativos com os modelos colonizadores. A reivindicação de Machado por um sentimento íntimo e a conclamação de Poe por uma república nacional das letras são, no final das contas, mais do que atuais, considerando a importância dada às questões relativas à identidade nacional nos dias de hoje em diversas partes do mundo. Obrigada.

REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.
CASANOVA, Pascale. A República Mundial das Letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

DANIEL, Reginald G. Machado de Assis and the Brazilian literary independence: toward a postcolonial national aesthetic. Machado de Assis em linha: Rio de Janeiro, v. 7, n. 14, p. 163-182, 2014.

GLEDSON, John. 1872: "A parasita azul" Ficção, nacionalismo e paródia. Cadernos de Literatura Brasileira: Machado de Assis, São Paulo, v. 23-24, p. 163-218, 2008.

GUIMARÃES, Hélio de Seixas. A emergência do paradigma inglês no romance e na crítica de Machado de Assis. In: GUIDIN, Márcia Lígia; GRANJA, Lúcia; RICIERI, Francine Weiss (orgs). Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo: Editora UNESP, 2008. p. 95-108.

POE, Edgar Allan. Exordium to critical notices. In: THOMPSON, Gary Richard (org). The Selected Writings of Edgar Allan Poe. New York: Norton and Company, 2004.

____________. Letter to B. In: _______. The Selected Writings of Edgar Allan Poe. New York: Norton and Company, 2004.

___________. Little Longfellow War. In: ________. The Selected Writings of Edgar Allan Poe. New York: Norton and Company, 2004.

SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In: ________. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, 1992. p. 13-28.

WALKER, Ian. The Poe legend. In: CARLSON, Eric W. A companion to Poe studies. Westport: Greenwood Press, 1996. p. 19-42.





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