CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO E DIREITOS DA PERSONALIDADE: ELEMENTOS PARA UMA NOVA ABORDAGEM

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Conforme afirmam FIORILLO, Celso A. P.; DIAFÉRIA, Adriana, Biodiversidade e Patrimônio Genético no direito ambiental brasileiro, 1999, p.54, "Atualmente, os países mais ricos em biodiversidade são Brasil, Colômbia, Indonésia e México".
Neste trabalho, não serão minudenciadas as particularidades dos regimes jurídicos, das categorizações e das distinções feitas entre esses grupos de comunidades. Para o presente estudo, importante é a definição dada a populações e comunidades tradicionais pelo artigo 3 do Decreto 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, em que se lê: "I – Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.". Traz-se, também, como referência de estudo as importantes construções de DIEGUES, A. C. (Org.). Os saberes tradicionais e a biodiversidade no Brasil, p. 16-26, que podem ser encontradas em http://www.mma.gov.br/estruturas/chm/_arquivos/saberes.pdf; Diegues, neste relatório, define sociedades tradicionais como "grupos humanos culturalmente diferenciados que historicamente reproduzem seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base em modos de cooperação social e formas específicas de relações com a natureza, caracterizados tradicionalmente pelo manejo sustentado do meio ambiente. Essa noção se refere tanto a povos indígenas quanto a segmentos da população nacional que desenvolveram modos particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos", que se caracterizam "a) pela dependência frequentemente, por uma relação de simbiose entre a natureza, os ciclos naturais e os recursos naturais renováveis com os quais se constrói um modo de vida; b) pelo conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos que se reflete na elaboração de estratégias de uso e de manejo dos recursos naturais. Esse conhecimento é transferido por oralidade de geração em geração; c) pela noção de território ou espaço onde o grupo social se reproduz econômica e socialmente; d) pela moradia e ocupação desse território por várias gerações, ainda que alguns membros individuais possam ter se deslocado para os centros urbanos e voltado para a terra de seus antepassados; e) pela importância das atividades de subsistência, ainda que a produção.de mercadorias possa estar mais ou menos desenvolvida, o que implica uma relação com o mercado; f) pela reduzida acumulação de capital; g) importância dada à unidade familiar, doméstica ou comunal e às relações d e parentesco ou compadrio para o exercício das atividades econômicas, sociais e culturais; h) pela importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça, à pesca e a atividades extrativistas; i) pela tecnologia utilizada que é relativamente simples, de impacto limitado sobre o meio ambiente. Há uma reduzida divisão técnica e social do trabalho, sobressaindo o artesanal, cujo produtor (e sua família) domina o processo de trabalho até o produto final; j) pelo fraco poder político, que em geral reside com os grupos de poder dos centros urbanos; l) pela auto-identificação ou identificação pelos outros de se pertencer a uma cultura distinta das outras." "Exemplos empíricos de populações tradicionais são as comunidades caiçaras, os sitiantes e roceiros tradicionais, comunidades quilombolas, comunidades ribeirinhas, os pescadores artesanais, os grupos extrativistas e indígenas. Exemplos empíricos de populações não-tradicionais são os fazendeiros, veranistas, comerciantes, servidores públicos, empresários, empregados, donos de empresas de beneficiamento de palmito ou outros recursos, madeireiros, etc."
A informação e as referências sobre estes estudos podem ser encontrados em SANTILLI, Juliana. Socioambientalismo e novos direitos: proteção jurídica à diversidade biológica e cultural. São Paulo: Peiropolis, 2005. p.195. Ainda, recomenda-se a leitura do excelente trabalho conjunto de Bárbara Elisa Pereira e Antônio Carlos Diegues, do qual se extraiu o elucidativo trecho seguinte: "Contudo, apesar da relação entre população tradicional e natureza não se radicar nesta visão romântica do 'bom selvagem"', ela também não pode ser colocada no outro extremo, como um agente determinante na destruição de áreas naturais, pois a contextualização entre população tradicional e natureza remete à necessidade de uma reflexão acerca da coexistência de ambas e os efeitos gerados, o que recentemente tem se transformado em objeto de estudos de várias pesquisas. Toledo (2001) expõe alguns dados que procuram articular a presença de populações tradicionais em áreas naturais protegidas, acrescendo informações sobre a existência de espécies endêmicas nas regiões apontadas e o elevado nível da diversidade biológica. Por meio desses dados, o autor consegue indicar a coexistência desses elementos como benéfica para a natureza, visto que o manejo dos recursos naturais desenvolvidos pelas populações tradicionais e proporcionado pela acumulação dos conhecimentos transmitidos ao longo do tempo entre as gerações contribui para o fortalecimento e aumento da biodiversidade. Colchester (1995, p. 27) também afirma que 'existem poderosas razões para acreditar que muitos sistemas indígenas de emprego dos recursos são relativamente benignos'". PEREIRA, B. E.; DIEGUES, A. C. Conhecimento de populações tradicionais como possibilidade de conservação da natureza: uma reflexão sobre a perspectiva da etnoconservação. In: Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 22, p.47, 2010, Editora UFPR. Sobre tal questão, consultar ainda DIEGUES, A. C. (Org.). Os saberes tradicionais e a biodiversidade no Brasil, p. 11-16. Disponível em:http://www.mma.gov.br/estruturas/chm/_arquivos/saberes.pdf
A supracitada referência ao bom selvagem, neste ponto, é fundamental. É necessário expandir a análise desta temática, e de qualquer outra pertinente às comunidades tradicionais, povos indígenas e populações quilombolas (grupos cujas formas de relação de trabalho, entre si e com o mundo são, na maioria das vezes, distintas das formas de relação a que o ordenamento jurídico prioritariamente abarca e a que se está acostumado a vivenciar), sem recair em visões falseadas e romantizadas. Exemplos evidentes deste recorte provêm do patriarcalismo e das relações hierárquico-familiares, difundidas em muitas destas comunidades: a perda de impressões digitais das crianças na quebra da castanha-de-caju, bem como a utilização das mesmas em atividades específicas de plantio e colheita, construção de instrumentos etc, sem ou com mínima proteção; em relação à questão de gênero, a visão romantizada é prejudicial: deve-se reconhecer as condições em muitas das vezes precária de seu trabalho, não obstante a enorme relevância que ambos os grupos têm dentro da comunidade.
Sobre o papel da mulher nas comunidades tradicionais, consultar o artigo online de BRAGA, F.R.; BERTOLDI, M.R. As mulheres das comunidades tradicionais na promoção do desenvolvimento sustentável", disponível em http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=27e9661e033a73a6
Esta é a primeira constituição brasileira em que a expressão "meio ambiente" é utilizada. A principal tratativa do tema se dá no artigo 225 e seus parágrafos, em cujo caput se lê: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações." Interessante abordagem sobre tal artigo e sobre a proteção constitucional ao meio ambiente pode ser encontrada, sem prejuízo de outras fontes, em: LEUZINGER, Márcia Dieguez. Natureza e cultura: unidades de conservação de proteção integral e populações tradicionais residentes. Curitiba: Letra da Lei, 2009.
Decisões reafirmando tal importância não faltam. Para este trabalho, compartilha-se o conceito de direito ao meio ambiente trazido por Paulo Affonso Leme Machado a partir de julgado de relatoria do min. Celso de Mello, em que se afirma que tal direito se configura "como um típico direito de terceira geração que assiste, de modo subjetivamente indeterminado, a todo gênero humano, circunstância essa que justifica a especial obrigação – que incumbe ao Estado e à própria coletividade – de defendê-lo e de preservá-lo em benefício das presentes e futuras gerações". MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro, 2012, 20 ed., p. 153-154.
Disponível em http://www.wipo.int/tk/en/tk/
O artigo 8º da Lei 13.123 é representativo da centralidade do conhecimento tradicional na proteção ao patrimônio natural brasileiro. Dispõe que: "Ficam protegidos por esta Lei os conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético de populações indígenas, de comunidade tradicional ou de agricultor tradicional contra a utilização e exploração ilícita."
Na apresentação de seu trabalho, Marcelo Dias Varella e Ana Flávia Barros Platiau afirmam que "O tema 'controle do acesso aos recursos genéticos' tem sido objeto de intenso debate entre cientistas, governos, organizações da sociedade civil, empresas desde 1992 e, sobretudo, a partir do final dos anos 90. Neste contexto, insere-se a discussão sobre soberania e os recursos naturais, a biopirataria, o direito ao desenvolvimento das comunidades locais, povos indígenas e quilombolas, assim como do seu consentimento prévio e fundamentado para acesso ao material biológico situado em suas terras e o direito dos pesquisadores em realizar livremente suas pesquisas sobre material biológico em benefício da humanidade." PLATIAU, Ana Flávia Barros; VARELLA, Marcelo Dias. Diversidade biológica e conhecimentos tradicionais. Belo Horizonte, MG: ESMPU: Del Rey, 2004.
Conforme a Lei 9.279: Art. 42. A patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem o seu consentimento, de produzir, usar, colocar à venda, vender ou importar com estes propósitos: I - produto objeto de patente; II - processo ou produto obtido diretamente por processo patenteado.
Alterável, aqui, não pressupõe algo imediato, mas o conjunto de reiteradas práticas de membros da comunidade que inovam na perpetuação do conhecimento, por exemplo, alterando sua função, atrelando a outra prática etc. Alteração significa mudança, acumulação, ressignificação no uso.
Por exemplo, investigar de que maneira algum recurso natural é utilizado, com o que se combina, para alcançar qual finalidade.
DUTFIELD, Graham. Repartindo benefícios da biodiversidade. Qual o papel do sistema de patentes? In: PLATIAU, Ana Flávia Barros; VARELLA, Marcelo Dias. Diversidade biológica e conhecimentos tradicionais. Belo Horizonte, MG: ESMPU: Del Rey, 2004.
Por todos, consultar FACHIN, Luiz Edson. Estatuto juridico do patrimônio minimo: a luz do novo código civil brasileiro e da Constituiçao Federal. 2.ed. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, ou ainda FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro, RJ: Renovar, 2000.
Para uma apreciação teórica inicial, remetemos o leitor e a leitora às obras clássicas, nacionais e estrangeiras, sobre o tema: DE CUPIS, Adriano. I diritti della personalita. Milano: A. Giuffre, 1950; MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: parte especial: tomo VII: direito de personalidade: direito de familia: direito matrimonial (Existencia e validade do casamento). Revista dos Tribunais. 2013; GOMES, Orlando; THEODORO JUNIOR, Humberto. Introdução ao direito civil. 15. ed. atual. e notas de Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, C2000.
Fala-se, ainda, que tais direitos são absolutos, extrapatrimoniais, imprescritíveis, impenhoráveis.
Trazendo algumas críticas comunitaristas ao modelo liberal de abordagem da temática, é relevante a contribuição da dissertação de mestrado de Paulo Bastos de Souza, outrora citada.
Disponível em http://www.unifr.ch/iiedh/assets/files/Declarations/port-declaration2.pdf


RESUMO
O Brasil se caracteriza por ser um país que apresenta incomensurável riqueza natural, notadamente no que se refere ao patrimônio genético proveniente da fauna e da flora nacionais. Associada a isso, está a diversidade de conhecimentos e práticas das populações ditas tradicionais, dos povos indígenas e dos quilombolas, que apresentam, em suas estruturas, instituições próprias e formas peculiares de organização. O presente trabalho pretende tratar dos conhecimentos tradicionais associados (CTA) dessas populações, reconhecendo-se a necessidade de abordá-los sob a ótica dos Direitos da Personalidade. Ainda, se apontará a incompatibilidade entre a adoção do sistema de patentes e a pretensa proteção a esses conhecimentos. Por fim, tendo como premissa teórica a construção doutrinária sobre os direitos da personalidade, se analisará o conhecimento tradicional como um dos elementos constitutivos da identidade dos membros destas comunidades.
PALAVRAS-CHAVE: Conhecimento Tradicional Associado; Direitos da Personalidade; Lei de Biodiversidade; Sistema de Patentes; Identidade Cultural.







SUMÁRIO
1. CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO: CONCEITO E REALIDADE BRASILEIRA
2. O REGIME JURÍDICO DE PROTEÇÃO AOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS: ELEMENTOS PARA SUA CRÍTICA
3. DIREITOS DE PERSONALIDADE E CONHECIMENTO TRADICIONAL
4. CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS





1. CONHECIMENTO TRADICIONAL ASSOCIADO: CONCEITO E REALIDADE BRASILEIRA

É inegável que o Brasil possui imensa biodiversidade, formada por inúmeras espécies de animais, vegetais e micro-organismos, que se desenvolvem em um extenso território, com climas, relevos, pluviosidade, solos também diversos. Não é por outra razão a posição do Brasil como principal detentor de megadiversidade do mundo, concentrando de 15% a 20% de todas as espécies descritas na Terra, ou seja, o país abriga em sua extensão territorial até 11 milhões de formas de vida (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2002, p.12).
Os dados citados revelam, por si só, tanto a importância do Brasil na garantia do equilíbrio ecológico a nível global quanto a sua relevância como país destinatário para pesquisadores e indústrias internacionais, que buscam na variedade de recursos genéticos aqui existentes conteúdo para pesquisa ou componente para elaboração de um produto com destinação para consumo. Esses bens socioambientais ditos materiais ou tangíveis são objetos de tutela e proteção jurídica em face de sua já demonstrada importância, seja ela utilitária, econômica (industrial e comercial), funcional.
No entanto, não se prescinde da proteção, do respeito e da valorização dos conhecimentos tradicionais (aqui nominados bens imateriais ou intangíveis), uma vez que existem zonas de intensa correlação entre tais bens socioambientais: muitas vezes, a garantia da permanência de alguma espécie depende única e exclusivamente de como, por exemplo, essa espécie é cultivada por determinado grupo em alguma região – práticas e saberes tradicionais, portanto, se inter-relacionam com os bens materiais.
Interessantes estudos evidenciam que são as práticas, inovações e conhecimentos desenvolvidos pelas populações tradicionais, indígenas e quilombolas que asseguram a conservação da diversidade biológica dos ecossistemas. Essa informação mostra-se fulcral quando se considera o direito ao meio ambiente saudável (notadamente na perspectiva da conservação da diversidade biológica e do equilíbrio dos ecossistemas) como um direito de personalidade. Nas palavras de José Rubens Morato Leite, "a existência de um ambiente salubre e ecologicamente equilibrado representa uma condição especial para um completo desenvolvimento da personalidade humana." (LEITE, 2003, p.288).
A Constituição Federal de 1988 assegura e o Supremo Tribunal Federal tem ratificado o entendimento de que o meio ambiente constitui substrato para o exercício de uma vida digna e com qualidade. Neste ponto, assevera Álvaro Mirra que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado "é um direito fundamental da pessoa humana, como forma de preservar a vida e a dignidade das pessoas." (MIRRA, 1994).
Não obstante não seja esse o foco principal do presente estudo, essa associação que se faz entre a preservação dos ecossistemas pelos conhecimentos tradicionais, culminando, como se viu, na possibilidade de exercício da personalidade humana e como forma de tutela do meio ambiente como direito fundamental, revela a necessidade da tratativa do tema sob uma perspectiva complementar a que se adota atualmente – qual seja, a dos direitos de propriedade intelectual pelo sistema de patentes –, ou seja, sob a perspectiva dos direitos da personalidade.
Aqui, então, faz-se necessário estabelecer a delimitação e a precisão do conceito de conhecimento tradicional associado, a partir de leituras antropológicas. A Lei de Biodiversidade (Lei 13.123/2015) concebe conhecimento tradicional associado como sendo a "informação ou prática de população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional sobre as propriedades ou usos diretos ou indiretos associada ao patrimônio genético". A Medida Provisória 2116-16/2001, que foi revogada pela lei supracitada, entendia o CTA como "informação ou prática individual ou coletiva de comunidade indígena ou de comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético".
Por sua vez, os antropólogos Mauro Barbosa de Almeida e Manuela Carneiro da Cunha (2002, p. 15s) afirmam que os CTA são as formas de pensar, investigar, inovar, tanto quanto conhecimentos e práticas estabelecidos pelas comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas. Destacam, ainda, que esse conhecimento é o somatório dos de modos de fazer, pensar, conhecer, inovar individuais que, ao mesmo tempo em que se acumulam e se compartilham por gerações, são desenvolvidos e especializados com base em pesquisas e observações minuciosas, experimentações e ampla troca de informações.
Importante ressaltar que os dispositivos legais vigentes e as convenções tutelam o conhecimento tradicional associado à biodiversidade, não obstante as populações tradicionais detenham enorme variedade de conhecimentos úteis e inovações que possam ser aplicados em diversas outras áreas. Juliana Santilli (2005, p. 196) afirma que "O conhecimento tradicional associado inclui toda informação útil à identificação de princípios ativos de biomoléculas ou características funcionais de células e micro-organismos, independentemente de a utilização tradicional coincidir ou não com a utilização biotecnológica."
Segundo classificação da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), o conhecimento tradicional associado (Traditional Knowledge – TK) é um conjunto vivo de conhecimento que é desenvolvido e transmitido de geração em geração dentro de uma comunidade, fazendo parte, comumente, de sua identidade cultural ou espiritual.
Exemplos do que seriam os CTA são diversos, mas a título elucidativo, podem-se elencar os conhecimentos sobre solos, plantas e períodos de plantio; os distintos métodos de plantio, de caça, de pesca; as técnicas de trançar palhas para confecção de telhados e artesanatos diversos; os saberes sobre propriedades farmacêuticas, medicinais, agrícolas e alimentícias dos recursos naturais; a domesticação de animais, entre outros inúmeros exemplos de conhecimentos, saberes, técnicas, inovações, criações, modificações, práticas.
A valorização do patrimônio imaterial tem encontrado respaldo no ordenamento jurídico brasileiro, bem como em algumas das convenções que tratam da temática da preservação ambiental, sob a justificativa de evitar a apropriação e utilização indevidas desse patrimônio por terceiros e de conferir maior relação jurídica às relações entre os interessados e os detentores de tais recursos e conhecimentos. Exemplos não faltam: a lei 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), elenca entre seus objetivos a proteção dos "recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente." (artigo 4º, XIII); a Convenção da Diversidade Biológica, estabelecida durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no ano de 1992, enuncia em seu artigo 8º, alínea j, que "Cada Parte Contratante deve, na medida do possível e conforme o caso em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição equitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas."; mais recentemente – e com vultosa importância para o presente trabalho – pode-se citar a lei 13.123/2015, chamada de Lei da Biodiversidade que dispõe, entre outros, "sobre bens, direitos e obrigações relativos ao proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente." (artigo 1º, II) ou ainda, dos artigos 8º ao 10º, dispõe especificamente sobre o conhecimento tradicional associado.
Mostra-se fundamental, tendo em vista a riqueza material e imaterial dos recursos naturais existentes no território brasileiro, o estabelecimento de sistemas jurídicos de proteção desse patrimônio, e que contemple tanto as legítimas liberdades nas produções industriais ou científicas, reconhecidamente importantes na satisfação de muitas necessidades individuais e sociais, quanto a valorização e o respeito aos indispensáveis conhecimentos e práticas das populações tradicionais. No caso do Brasil, a necessidade de proteção é ainda mais premente quando se considera o passado de apropriação indevida dos recursos do território brasileiro. Um rápido olhar histórico demonstra os momentos em que o país foi saqueado pelas grandes potências estrangeiras desses períodos.
O exercício do olhar retrospectivo pode aflorar no leitor e na leitora múltiplos sentimentos. No entanto, o progresso impele irresistivelmente para o futuro, conforme nos ensina Walter Benjamin; deve-se ater ao que está acontecendo e ao que está por vir, tendo em mente o que já se passou (LOWY, 2005). Contemporaneamente, portanto, se vislumbra a permanência de práticas de apropriação e utilização indevidas de recursos genéticos de plantas, animais e micro-organismos, bem como dos conhecimentos tradicionais associados. Exemplos, pelo menos até a edição da Convenção da Diversidade Biológica, que se prestou a combater a biopirataria, eram recorrentes. Posteriormente, ainda houve casos dessa prática, como, por exemplo, em relação ao cupuaçu, à variedade da planta ayahuasca, à castanha-do-Pará, à andiroba, entre outras.
Assevera Juliana Santilli (2005, p. 204-205), após similar relato de casos de biopirataria, que "o que os vários casos de biopirataria mencionados acima têm em comum é o fato de que espécies vegetais foram coletadas em países biodiversos, com (ou sem) o uso de conhecimento tradicional associado, e sem o consentimento prévio (e informado) dos países de origem, e levadas para o exterior, com finalidade de identificação dos princípios ativos úteis, com base nos quais produtos e processos foram desenvolvidos e patenteados, sem a repartição dos benefícios com os países de origem de tais recursos. Desta forma, há uma apropriação indevida e injusta – e coibida pela Convenção sobre Diversidade Biológica – de um recurso que pertence a outro país e às suas comunidades locais, por meio do uso de um instrumento legal – o direito de propriedade intelectual, especialmente a patente –, consagrado pelas legislações nacionais e internacionais. Concebidos para proteger inovações desenvolvidas pela ciência ocidental, e para atender especialmente às necessidades das sociedades industriais, os direitos de propriedade intelectual têm permitido a apropriação privada de produtos e processos gerados de forma coletiva."
Desta forma, mostra-se fundamental repensar o atual regime jurídico de proteção do conhecimento tradicional associado e dos recursos genéticos brasileiros, sem abandonar, no entanto, as conquistas efetivamente alçadas nas últimas quase três décadas. É a partir desta premissa que serão abordados, a seguir, os pontos de incompatibilidade da proteção do conhecimento tradicional pelo sistema de patentes, defendendo-se a análise da temática sob a luz dos direitos de personalidade; em outras palavras, se tentará verificar de que maneira e em que medida os conhecimentos tradicionais se configuram, para as populações tradicionais, povos indígenas e quilombolas, instrumentos para o exercício de sua personalidade, uma vez que constituem a identidade destes sujeitos.


2. O REGIME JURÍDICO DE PROTEÇÃO AOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS: ELEMENTOS PARA SUA CRÍTICA

Conforme se verificou nas exposições anteriores, o tratamento jurídico do acesso aos recursos genéticos e ao conhecimento tradicional associado por meio do direito de propriedade intelectual, em especial pelo sistema de patentes, é fenômeno recente. Este trabalho não pretende negar a importância da existência de um regime legal de proteção desses bens (materiais e imateriais) naturais, mas, pelos motivos que serão expostos a seguir, não reconhece no sistema de patentes a melhor maneira de se garantir tal proteção, dadas as notáveis incompatibilidades entre este sistema e a relação que as comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas possuem com seus conhecimentos. Neste trabalho, não se pretende também construir, com tem feito com louvor Juliana Santilli, entre outros, a ideia de um regime de proteção sui generis.
Pretende-se, aqui, no entanto (e essa é a tese central do trabalho), complementarmente à ideia de estruturação de um regime de proteção pelos direitos intelectuais coletivos, defender que os direitos de personalidade se constituam como importante paradigma na consideração das relações entre CTA e as populações tradicionais. Em outras palavras, defende-se que, pela particularidade com que essas comunidades se relacionam com o meio em que vivem, os direitos de personalidade – e não propriamente os direitos de propriedade – sejam paradigma para melhor análise da temática, seja sob o viés jurídico ou pelos vieses extra-jurídicos.
Feitas estas explicações de cunho preliminar ao que será exposto no próximo capítulo, convém enunciar alguns pontos de incoerência entre o sistema de patentes e a efetiva proteção aos CTA.
O primeiro ponto de incongruência a se relatar é que o sistema de proteção por patentes desconsidera a forma como são produzidos e difundidos os conhecimentos tradicionais, bem como as características e os contextos culturais em que se inserem os grupos que os detêm. Agrawal (1999) afirma que a distinção entre os saberes tradicionais e a produção científica se dá nos seguintes níveis: o substantivo, que aborda as características distintivas e intrínsecas a cada maneira de conhecer, e o metodológico-epistemológico, que trata das maneiras por meio das quais cada saber investiga a realidade; e o nível contextual, que considera a inserção destes saberes nas circunstâncias pertinentes, de forma que o saber tradicional estaria mais profundamente enraizado em seu meio ambiente. Esta diferença entre saber tradicional e conhecimento científico, protegido principalmente por meio do sistema de patentes, se revela em dois âmbitos: o da temporalidade e o da titularidade do conhecimento.
No que tange ao marco temporal, os conhecimentos tradicionais possuem um caráter trans-geracional, visto que são desenvolvidos coletivamente pelos membros das comunidades e transmitidos, na maioria das vezes oralmente, ao longo das gerações, sendo, por isso, difícil determinar precisamente em que momento tal conhecimento ou prática surgiu, bem como não se pode prever se e quando deixará de existir. No sistema de patentes, por sua vez, ao se proceder o registro, concebe-se este momento como marco inicial de existência do produto registrado; ademais, neste sistema, estabelecem-se prazos determinados de vigência de patentes, numa evidente contrariedade à própria dinâmica dos CTA.
De outra banda, no que pertine à titularidade, os conhecimentos tradicionais são, por essência, coletivos, e a utilização de recursos e informações provenientes destes processos criativos e inventivos é amplamente compartilhada pelos membros dessas comunidades (SANTILLI in PLATIAU; VARELLA, 2004, p. 358). Neste ponto, é que se faz menção à tese que defende a adoção do conceito de "direitos intelectuais coletivos" (ou comunitários). Em contraposição a tal estrutura de circulação e utilização dos conhecimentos tradicionais, encontra-se o sistema de patentes, que confere ao seu titular (plenamente identificado ou identificável) o direito de exploração exclusiva sobre determinado produto ou processo. Desta forma, aquilo que foi desenvolvido conjunta e coletivamente com base nas particulares relações entre os membros da comunidade entre si e com o meio circundante, cai no domínio exclusivo e privado dos detentores dos direitos de propriedade intelectual.
Em valorosa contribuição, o antropólogo Claude Lévi-Strauss (2011) afirmava que as populações tradicionais efetivamente realizavam um tipo de ciência, a "ciência do concreto" que, não obstante diversa do conhecimento científico, seria igualmente válida em determinados aspectos. Para ele, não haveria grande diferença entre os modos de conhecer das comunidades tradicionais (por ele chamadas sociedades primitivas) e as comunidades científicas contemporâneas. Segundo Levi-Strauss (2011, p. 14), cada um desses conhecimentos e "cada uma dessas técnicas envolve séculos de observação metódica e ativa, de hipóteses testadas em experimentos repetidos infinitamente (...) não há dúvida que isso tenha requerido uma atitude genuinamente científica, um interesse continuado e cuidadoso e um desejo pelo conhecimento em si."
São esclarecedoras a palavras de Juliana Santilli (2005, p. 212), citando Manuela Carneiro da Cunha, na abordagem destes pontos. Segundo ela, "o sistema de patentes torna reservado um conhecimento que era compartilhado de maneira diversa, seja por especialização local, seja por livre circulação de ideias e informações. O sistema de patentes prejudica o modo como se produzem e usam os conhecimentos tradicionais, e não é possível usar, para proteger os conhecimentos tradicionais, os mesmos mecanismos que protegem a inovação nos países industrializados, sob pena de destruir o sistema que os produz e matar o que se queria conservar. Afinal, o que é "tradicional" no conhecimento tradicional não é sua antiguidade, mas o modo como ele é adquirido e usado, pois muitos desses conhecimentos são de fato recentes. É impossível conferir proteção jurídica eficaz aos conhecimentos tradicionais tomando-se por base um sistema baseado na lógica de que quem obtém a patente em primeiro lugar passa a deter o monopólio sobre sua utilização, impedindo que outros utilizem conhecimentos que são coletivos e compartilhados."
Ao contrário do que o adjetivo "tradicional" pareça indicar, essa forma de conhecimento caracteriza-se por sua dinamicidade, autenticidade e ancestralidade (REZENDE, 2008, P. 64), que se manifestam nos contínuos processos de mudança, alteração e adaptação às realidades fáticas, temporais, espaciais etc do grupo que detém tal conhecimento, ou seja, afasta-se de qualquer ideia de imutabilidade que lhe possa ser atribuída; o conhecimento tradicional, por fazer parte da cultura da comunidade, é constantemente manuseado, moldado, funcionalizado, sendo, por isso, potencialmente alterável.O sistema de patentes, por sua vez, na medida em que direciona o saber tradicional à persecução de um único fim, momentaneamente considerado, tende a cristalizar esse conhecimento, uma vez que desconsidera os outros usos não vislumbrados no momento de coleta (tanto do conhecimento quanto do recurso natural) e posteriores a ela, visto que, como já se afirmou, os conhecimentos tradicionais podem ser manuseados e readequados.
Por fim, assevera Vandana Shiva (2001, 32-38) que são patenteáveis apenas as invenções que tenham aplicabilidade industrial, e muitos conhecimentos não têm essa aplicação imediata; assim, os direitos de propriedade intelectual são reconhecidos apenas quando o conhecimento e a inovação geram lucro e não quando satisfazem necessidades sociais, excluindo todos os setores que produzem e inovam fora do modo de organização industrial.
A partir do exposto acima, verifica-se que a própria noção de propriedade, por si só exclusivista e individualista, de forte cunho patrimonial e econômico, é incompatível com a forma como os conhecimentos tradicionais são propagados e difundidos no seio das comunidades, pois "excessivamente estreito e limitado para abranger a complexidade dos processos que geram a criatividade e a inventividade nos contextos culturais" de tais comunidades (SANTILLI, 2005, P. 213). Pretender atribuir a titularidade desse conhecimento, que é coletivo e compartilhado, a um único indivíduo ou a um grupo, é diametralmente contrário aos valores que regem a vida coletiva nessas sociedades, bem como pode ser extremamente nocivo, posto que poderia provocar competições e rivalidades prejudiciais ao processo inventivo que se pretende proteger.




3. DIREITOS DE PERSONALIDADE E CONHECIMENTO TRADICIONAL

Feitas as considerações acima, que revelam, se não um descompasso total, uma visível incompatibilidade entre o sistema patentário e a pretensa defesa de uma plena e eficaz proteção do conhecimento tradicional associado. Tanto a tese da criação de um regime de proteção sui generis quanto a tese da busca de soluções dentro do sistema de patentes realizam uma crítica à atual conformação dos CTA pelas patentes por meio da valorização e da defesa do respeito e consideração às comunidades tradicionais e a maneira própria como se relacionam com seus conhecimentos e práticas.
Pode-se afirmar que tais transformações de compreensão e abordagem da temática surgiram no bojo do giro epistemológico, da virada copernicana que atingiu, e vem atingindo, o Direito como um todo e o Direito Civil em particular: a concepção patrimonialista, que permeava grande parte de seus institutos, vem cedendo espaço a construção do Direito pautado em perspectivas existenciais, atrelando-se cada vez mais aos direitos fundamentais, ao surgimento de novos direitos e à óptica constitucional. Essa mudança é bem expressa nas palavras de Pedro Bastos de Souza (2014, p. 64): "No plano das políticas culturais e de educação, é de se reconhecer uma mudança de perfil por parte do Estado Brasileiro, que passa a se postar de forma mais plural e democrática, distanciando-se do padrão hegemônico da cultura de consumo liberal, de matriz norte-americana, que privilegia o ter em lugar do ser, o eu em vez do nosso e um suposto ideal de liberdade em vez da solidariedade."
A partir desse pressuposto, em que se valoriza uma concepção existencial (e não somente patrimonial), defende-se que os conhecimentos tradicionais devem ser compreendidos como elementos constitutivos da personalidade dos sujeitos pertencentes às comunidades tradicionais. Não se desconsideram os avanços desde a ausência completa de proteção a um sistema de proteção com as falhas anteriormente elencadas. Tal sistema traz certo rol de exigências que, se rigorosamente observadas, permitem um maior respeito às comunidades tradicionais, bem como investe de maior grau de justiça e legitimidade a utilização dos CTA pelos particulares. Refere-se, aqui, sem prejuízo de outros dispositivos que tenham conteúdo similar, às disposições da Lei de Biodiversidade (lei 13.123/2015), que enunciam:
Art. 3º O acesso ao patrimônio genético existente no País ou ao conhecimento tradicional associado para fins de pesquisa ou desenvolvimento tecnológico e a exploração econômica de produto acabado ou material reprodutivo oriundo desse acesso somente serão realizados mediante cadastro, autorização ou notificação, e serão submetidos a fiscalização, restrições e repartição de benefícios nos termos e nas condições estabelecidos nesta Lei e no seu regulamento.
Art 8º §1o O Estado reconhece o direito de populações indígenas, de comunidades tradicionais e de agricultores tradicionais de participar da tomada de decisões, no âmbito nacional, sobre assuntos relacionados à conservação e ao uso sustentável de seus conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético do País, nos termos desta Lei e do seu regulamento.
Art. 9o O acesso ao conhecimento tradicional associado de origem identificável está condicionado à obtenção do consentimento prévio informado. (grifo nosso)
Art. 10. Às populações indígenas, às comunidades tradicionais e aos agricultores tradicionais que criam, desenvolvem, detêm ou conservam conhecimento tradicional associado são garantidos os direitos de: I - ter reconhecida sua contribuição para o desenvolvimento e conservação de patrimônio genético, em qualquer forma de publicação, utilização, exploração e divulgação; II - ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional associado em todas as publicações, utilizações, explorações e divulgações; III - perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou indiretamente, de conhecimento tradicional associado, nos termos desta Lei; IV - participar do processo de tomada de decisão sobre assuntos relacionados ao acesso a conhecimento tradicional associado e à repartição de benefícios decorrente desse acesso, na forma do regulamento; V - usar ou vender livremente produtos que contenham patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado, observados os dispositivos das Leis nos 9.456, de 25 de abril de 1997, e 10.711, de 5 de agosto de 2003; e VI - conservar, manejar, guardar, produzir, trocar, desenvolver, melhorar material reprodutivo que contenha patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado.
Art. 17. Os benefícios resultantes da exploração econômica de produto acabado ou de material reprodutivo oriundo de acesso ao patrimônio genético de espécies encontradas em condições in situ ou ao conhecimento tradicional associado, ainda que produzido fora do País, serão repartidos, de forma justa e equitativa, sendo que no caso do produto acabado o componente do patrimônio genético ou do conhecimento tradicional associado deve ser um dos elementos principais de agregação de valor, em conformidade ao que estabelece esta Lei. (grifo nosso)
Percebe-se a valorização das comunidades tradicionais nesta relação. No entanto, conceber os conhecimentos tradicionais como um dos aspectos que compõem a identidade de uma cultura (aqui entendido como o grupo tradicional) e, portanto, elemento para exercício da personalidade, é fundamental para atribuir mais autonomia a tais grupos, reconhecendo-os como capazes de gerir seus interesses da melhor maneira possível. A própria noção de personalidade pressupõe um respeito à esfera existencial dos sujeitos, uma consideração à maneira como os sujeitos se relacionam com a coletividade e como nela se identificam. Tal relação não se verifica com tamanha evidência no sistema de patentes ou de propriedade intelectual. E é justamente por este motivo que se defende neste trabalho a integração dos conhecimentos tradicionais ao seu atual sistema de proteção por intermédio de sua concepção como componente de um direito da personalidade, qual seja, o direito à identidade pessoal.
Não se pretende, aqui, abordar com afinco as teorias que circundam a temática dos direitos da personalidade, dada a complexidade e a ausência de uniformidade na doutrina. No entanto, objetivando precisar, no limite necessário, tal conceito, compreende-se que são considerados da personalidade os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma, bem como em suas projeções na e seus relacionamentos com a sociedade (BITTAR, 1995, p. 1-10).
Outra informação de grande relevância, bastante debatida na doutrina civilista, atine às características ou particularidades dos direitos de personalidade: ao mesmo tempo em que se afirmam sua indisponibilidade e intransmissibilidade, reitera-se que não são absolutos (SZANIAWSKI, 2005, p.180). Bittar (1995, p. 5) afirma que tais características se antepõem como limites à própria atuação do titular, que não pode eliminá-los por ato de vontade, contudo, sob certos aspectos, podendo deles dispor, como, por exemplo, na licença para uso da imagem e da voz; desta forma, esse consentimento não desnatura o direito, representando, por outra banda, exercício de faculdade inerente ao sujeito.
Atualmente, o Código Civil (Lei 10.406/2002) traz em seu texto, entre os artigos 11 e 21, a temática dos direitos da personalidade. Quem se confronta com estes dispositivos, observa que em momento algum enunciam no seu rol um direito à identidade pessoal. No entanto, esta afirmação pode ser rapidamente contestada; a uma, pois a própria noção de identidade pessoal é indissociável à ideia de personalidade, não exigindo este ponto maiores explanações; a duas, a própria doutrina, entre os quais os já nominados Bittar e Szaniawski, já se referem a essa espécie de direito, e os elementos que o compõem, como sendo uma das imbricações dos direitos da personalidade; a três, considera-se, e compartilhamos desta opinião, que o rol trazido no Código Civil não é exaustivo.
Sobre este último ponto, trazemos a imensa contribuição do professor Elimar Szaniawski e sua importante contribuição monográfica à temática, a obra Direitos da Personalidade e Sua Tutela. Segundo o autor (2005, p. 143), existe, na Constituição da República, de 1988, uma cláusula geral de concreção da proteção e do desenvolvimento da personalidade dos indivíduos; essa cláusula geral é o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º,III). Ensina-nos o eminente professor: "Consoante vimos, surgem ao lado da cláusula geral, protetora da personalidade humana, alguns direitos tipificados em lei, que se constituem nos chamados direitos especiais de personalidade. Embora tipificados em lei, esses direitos não se confundem com o fracionamento infinito dos atributos da personalidade que é casuísta (..,) [Esses direitos] convivem harmonicamente com a cláusula geral, havendo uma tutela ampla e absoluta da personalidade humana." (2005, p. 128)
Caio Mário da Silva Pereira, um dos mais notáveis civilistas brasileiros, tem opinião semelhante. O eminente jurista ressalta que o direito de personalidade não se constitui propriamente "um direito", sendo, portanto, ponto de apoio e irradiação de todos os direitos e obrigações. Ainda conforme seus ensinamentos, os direitos elencados na Constituição Federal (por exemplo, à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem) são considerados o mínimo, os direitos substanciais, nada obstando que outros direitos sejam arrolados posteriormente (PEREIRA, 2009, p. 204-205)
É precisamente neste ponto que se configura o direito à identidade pessoal como um importante direito da personalidade. Ainda conforme Szaniawski (2005, p. 165), ao tratar da questão, "como ser único e exclusivo, toda pessoa possui uma identidade que o identificará para si mesmo e para os outros"; e continua, trazendo a contribuição de Perreau, ao afirmar que "a identificação humana consiste em um direito que todos os indivíduos possuem de exigir de terceiros o reconhecimento de sua individualidade distinta das demais individualidades, uma vez que a individualidade constitui-se como um meio de ligação da unidade psicossomática e da unidade do ego mundis da personalidade."
Mas qual a relação existente entre os CTA e o direito à identidade pessoal como direito de personalidade?
Entende-se que o sujeito integrante da comunidade tradicional se configura e se percebe como membro desse grupo específico a partir do compartilhamento de valores, práticas, traços comuns e conhecimentos, que são sistemas de representação e de significação coletivamente construídos, partilhados e reproduzidos ao longo do tempo. Neste sentido, o sujeito se reconhece (se identifica) como pessoa pertencente a um grupo por, entre outros motivos, possuir, reproduzir e desenvolver determinada gama de conhecimentos tradicionalmente difundidos na comunidade a qual pertence, buscando sua continuidade.
Ensina Juliana Santilli (2005, p. 196) que "a produção de inovações e conhecimentos sobre a natureza não é motivada apenas por razões utilitárias, como, por exemplo, descobrir a propriedade medicinal de uma planta para tratar uma doença (...) Transcende a dimensão econômica e permeia o domínio das representações simbólicas e identitárias [grifo nosso]."
Quando se traz algumas definições de "identidade cultural", perceber a relação a relação descrita acima torna-se mais fácil. Segundo a Declaração de Friburgo sobre os direitos culturais, em seu artigo 2,
a. o termo "cultura" abrange os valores, as crenças, as convicções, as línguas, os conhecimentos e as artes, as tradições, as instituições e os modos de vida pelos quais uma pessoa ou um grupo de pessoas expressa sua humanidade e os significados que dá à sua existência e ao seu desenvolvimento; b. a expressão "identidade cultural" é compreendida como o conjunto de referências culturais pelo qual uma pessoa, individualmente ou em coletividade, se define, se constitui, se comunica e se propõe a ser reconhecida em sua dignidade; c. por "comunidade cultural" entende-se um grupo de pessoas que compartilha as referências constitutivas de uma identidade cultural em comum, desejando preservá-la e desenvolvê-la. (grifos nossos)

Convém destacar, ainda, que a identidade reflete o conjunto de esforços direcionados, ao longo do tempo, à construção da memória coletiva e da imagem coletiva (SOUZA, 2014, p. 70), que reforçam "o sentimento de pertença identitária e, de certa forma, garante unidade/coesão e continuidade histórica do grupo. A memória pode ser entendida como processos sociais e históricos de expressões, [de conhecimentos], que legitimam, reforçam e reproduzem a identidade do grupo." Nas palavras do autor (SOUZA, loc. cit), citando alguns outros teóricos da área: "Stuart Hall observa que as identidades nacionais na contemporaneidade resultam de um sentimento individual de pertencimento a uma determinada coletividade, cujos símbolos e formas de representação atribuem imagens à nação, ou seja, certos sentidos com os quais os membros daquele grupo tendem a se identificar. Desta maneira, a construção identitária das nações se estabelece a partir de um processo de identificação do sujeito com a cultura nacional, representada por um conjunto de significações que se mesclam no resgate das memórias e nas manifestações do imaginário deste povo."


4. CONCLUSÃO

Para evitar desnecessários alongamentos e já encaminhando para as conclusões do trabalho, cabe apenas sintetizar: os conhecimentos tradicionais, por serem elementos constitutivos, identificadores e de (auto-)reconhecimento tanto do indivíduo em si considerado como em suas relações com o grupo ao qual pertence, configuram-se como um dos principais componentes da identidade cultural dessas pessoas, devendo ser esta intrínseca e personalíssima relação considerada na prática jurídica, legislativa e privada, principalmente a quem se outorga a faculdade de conferir ou não registros patentários.
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