Considerações acerca do maravilhoso latino-americano a partir de Carpentier e Lezama Lima

September 27, 2017 | Autor: Wanderlan Alves | Categoria: Latin American literature, Latin American culture, Literatura Fantástica
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II Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”, 3 a 5 de maio de 2011. UNESP – Campus de São José do Rio Preto

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CONSIDERAÇÕES ACERCA DO MARAVILHOSO LATINOAMERICANO A PARTIR DE CARPENTIER E DE LEZAMA LIMA Wanderlan da Silva Alves∗

RESUMO Considerando que Carpentier e Lezama Lima, ao refletirem sobre o maravilhoso na cultura laitno-americana, partem de um mesmo princípio – o de que traços de uma cultura aparecem reconfigurados em outras –, contudo, chegam a conclusões opostas: para Carpentier, o maravilhoso americano é uma manifestação, na América Latina, de uma série de formas de representação da cultura e da história existentes nas diversas sociedades humanas; para Lezama, a representação de uma realidade maravilhosa constitui, para a América Latina, um elemento estrutural que caracteriza e particulariza o ser americano; cotejaremos as duas visões acerca do maravilhoso latino-americano, buscando compreender o trajeto de cada um dos autores em sua formulação e o matiz político que cada uma porta: em Carpentier, a inserção das manifestações culturais latino-americanas no seio da cultura ocidental, por meio dos métodos de análise estruturais então vigentes; e em Lezama, o esforço por recuperar, no plano da cultura, elementos representacionais capazes de legitimar e dar visibilidade a uma identidade constitutiva do ser latino-americano. PALAVRAS-CHAVE: Alejo Carpentier; Cultura latino-americana; Ensaio latinoamericano; José Lezama Lima; Maravilhoso latino-americano.

“Mas o que é a História da América senão toda uma crônica da realidade maravilhosa?” (CARPENTIER, 1985) “Somente o difícil é estimulante; somente a resistência que nos desafia é capaz de assestar, suscitar e manter nossa potência de conhecimento, mas, na realidade, o que é o difícil? [...] É a forma em devir em que uma paisagem vai em direção a um sentido, uma interpretação ou uma simples hermenêutica, para ir depois em busca da sua reconstrução, que é o que marca definitivamente sua eficácia ou desuso, sua força ordenadora ou seu apagado eco, que é a sua visão histórica” (LEZAMA LIMA, 1988, p. 47). ∗

Mestre em Letras (Teoria da Literatura) pela UNESP/IBILCE. Atualmente cursa doutorado em Letras na mesma instituição. Bolsista do CNPq.

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Esses excertos situam nossa discussão: a realidade maravilhosa constitutiva das imagens do que se convencionou designar “latinoamericano” como elemento estrutural e representativo da cultura latino-americana. O fragmento de Carpentier está no famoso prólogo que apresenta o romance El reino de este mundo (1949) e que talvez tenha se tornado mais famoso do que o próprio romance. O trecho de Lezama, por sua vez, integra o primeiro dos ensaios (“Mitos e cansaço clássico”) que constituem o livro La expresión americana (1957), uma organização do próprio autor, formada por quatro conferências proferidas por ele no Centro de Altos Estudos do Instituto Nacional, em Havana, em janeiro de 1957. Apesar dos limites desta comunicação, tal cotejo nos parece viável, na medida em que nosso objetivo maior é analisar, comparativamente, a visão de maravilhoso defendida por cada um dos dois autores, buscando, desse modo, compreender, no trajeto de suas formulações, o matiz político-cultural de sua interpretação do maravilhoso latinoamericano. Carpentier parte da própria ideia de narrativa para problematizar os conceitos e as visões acerca da história latinoamericana, enquanto Lezama empreende um trabalho interpretativo que busca inserir no plano da história uma ideia difusa de natureza, para tentar chegar, por tal procedimento, ao que seria, para ele, uma visão histórica do continente americano, surgida no próprio continente. Carpentier parte da linguagem para fazer a crítica da história latinoamericana (na linguagem), enquanto Lezama parte da história (inicialmente vista por ele como natureza) para chegar a uma ideia metafórica de linguagem que, na linguagem que dá forma à sua crítica, se mostre capaz de oferecer instrumentos de leitura e interpretação da realidade latinoamericana a partir das estruturas que essa mesma realidade oferece ao hermeneuta, especialmente as provenientes da paisagem.

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Nesse sentido, o prólogo de Carpentier, além de seu tom marcadamente disfórico em relação ao Surrealismo francês – movimento do qual o autor se desvinculou teoricamente, mas não se desvencilhou plenamente em sua obra –, porta outra característica essencial: o desenvolvimento da argumentação a partir da produção literária ocidental, de modo que, mesmo ao questionar certo efeito maravilhoso decorrente das experiências vanguardistas do início do século XX ou de convenções estruturais do século XIX na literatura, considerando-as falsas e superficiais, Carpentier busca basear-se em obras representativas do maravilhoso na literatura europeia, encontrando-as em fontes diversas, que passam por Cervantes, pelas novelas de cavalaria, por Lewis, pela novela gótica, pelos cantos de Maldoror, etc. Isto é, apesar de se contrapor a alguns dos procedimentos mobilizados para a produção do efeito fantástico em alguns dos textos que assume como parâmetro para sua análise (especialmente os provenientes do Surrealismo), Carpentier opera uma síntese formal – na qual se mesclam distintas acepções de fantástico e de maravilhoso, por vezes conflitantes entre si – e acaba por inserir, também, o maravilhoso americano na produção literária e cultural do Ocidente como um todo, desvinculando-a de qualquer desenraizamento ou exotismo que, historicamente, marcaram o modo como os produtos culturais provenientes da América foram recebidos ou apresentados na Europa, desde a conquista. Ao posicionar-se em defesa do maravilhoso americano por considerar que, na América Latina, o maravilhoso expressa uma crítica da realidade (a história como uma crônica da realidade maravilhosa) que ele já não encontra na Europa, em razão do que ele chama de excessiva formalização do maravilhoso na literatura europeia (em sua concepção), o autor insere, paradoxalmente, o real maravilhoso americano no âmbito da literatura e da cultura ocidentais, na medida em que, por um lado, infere um conceito formal de maravilhoso (mesmo que de modo interposto) – o de que o efeito maravilhoso

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ou fantástico, no plano da linguagem, não pode ser o resultado de códigos préestabelecidos – e, por outro, no plano estrutural, demonstra que, enquanto realização de linguagem, o real maravilhoso, na América Latina, corresponde, de certo modo, à expressão dos mitos e da história latinoamericanos, do mesmo modo que em outras culturas e épocas, os mitos funcionam como narrações explicativas ou organizadoras de uma determinada sociedade, pois, como o próprio Carpentier defende, a realidade maravilhosa é “um patrimônio de toda a América, onde ainda não se concluiu [...] um inventário de cosmogonias” (CARPENTIER, 1985, p. 11), função que, em parte, o realismo maravilhoso cumpre, na literatura, para ele. Quanto a esse aspecto, seu prólogo acaba por fazer uma defesa do maravilhoso como sendo uma manifestação cultural localizável em diversas culturas, o que, numa visão estrutural, se liga à ideia de correspondência de mitos e narrativas orais como elementos simbólicos constitutivos das sociedades em geral, acepção que Lévi-Strauss (1970) confirma em seus estudos de antropologia. Lezama, por sua vez, ao defender que “só o difícil é estimulante” (LEZAMA LIMA, 1988, p. 47) e que o difícil é uma forma em devir, cria, na verdade, uma metáfora que constitui a base de suas reflexões em busca de definir a América e de encontrar um elemento estrutural e linguístico autêntico capaz de funcionar como síntese identitária do continente e do ser latinoamericanos. Portanto, o “difícil estimulante que é uma forma em devir” é a própria imago (isto é, imagem carregada de história) que ele identifica como sendo a América (Latina). Ao opor a natureza à paisagem, o autor cria dois conceitos, o de entidade natural imaginária e o de entidade cultural imaginária, respectivamente, que lhe permitem transitar da esfera da realidade à esfera das representações culturais para, desse modo, defender, também, uma identidade (latino)americana. Nesse sentido, o maravilhoso é um elemento-chave para o autor, uma

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vez que aparece no continente americano tanto como entidade natural imaginária quanto como entidade cultural. Como entidade natural se pode notar, por exemplo, na época da conquista, durante a qual os europeus se viam, por vezes, sem palavras para descrever o novo mundo, e se viam obrigados a encontrar outro modo de “mirar” capaz de representar, linguisticamente, uma realidade (maravilhosa) para cuja designação sua linguagem racionalista e estruturada em outra realidade não apresentava palavras suficientes. De onde veio a visão correspondente à mirabilia (simultaneamente, maravilha, mirar, encantamento) vinculada à própria natureza americana. Já como elemento cultural, o maravilhoso aparece, como faz questão de defender o autor, desde os textos do Popol Vuh, apresentando, por um lado, isotopias formais com textos de mitologias europeias e asiáticas (o que o autor critica, sugerindo possíveis alterações realizadas pelos espanhóis, ao recolherem e traduzirem tais mitos) e, por outro lado, apresentando elementos ou características particulares que o autor faz questão de identificar como sendo próprios do ser americano – a capacidade adaptativa, a perspicácia, o simphatos, etc. Nesse sentido, Lezama trabalha ativamente na construção de uma metáfora que lhe permita dar forma a uma imago americana. O autor encontra no maravilhoso o lugar da tradição reclamada por uma cultura que, quando nasce para o Ocidente, já nasce moderna, mas, para ser moderna, depende de uma tradição anterior (PAZ, 1984) com a qual possa relacionar-se. Não é uma casualidade que Lezama estabeleça a continuidade do potencial criador americano no que ele identifica como sendo o sujeito metafórico, que já aparece no “Senhor barroco” e, depois, o Romantismo, pois tais movimentos culturais se vinculam, na América Latina, a momentos de reivindicação por uma forma de expressão que já não se molda tranquila e passivamente a modelos europeus – vejase o barroco de Sor Juana, de Aleijadinho ou do índio Kondori, e, posteriormente, os

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ideais de constituição de uma nação, já no século XIX, por exemplo. O procedimento de Lezama parecer ser o estabelecimento do ideologema “América” como uma entidade cultural diversificada capaz de dialogar com outras realidades culturais sempre de modo crítico e vivificador. De certo modo, seu método consiste em “uma obrigação quase de voltar a viver [na linguagem] o que já não se pode precisar” (LEZAMA LIMA, 1988, p. 55), isto é, consiste na criação de uma metáfora que, sendo ficção, revisa a história (latino)americana, conferindo-lhe as raízes que lhe são necessárias para adentrar a história ocidental em condições culturais de igualdade possível em relação ao velho mundo, já que, segundo o autor, o mal americano está em ver-se (ante o europeu) como um problema a resolver ou como uma deformação. Tal perspectiva, que é, na verdade, uma visão literária que se cria em forma de metáforas para a figuração de uma identidade americana, parece corresponder à ideia do autor de que só se torna cognoscente uma cultura que é recriada pela imaginação criadora (LEZAMA LIMA, 1988), pois, para Lezama, a riqueza de uma cultura depende de sua capacidade de renovar e sintetizar formas virtuais de outras culturas, em nosso caso, as culturas européias, africanas e pré-colombianas. Como observa Chiampi em nota de rodapé aos ensaios do livro, Lezama procura “sustentar que as culturas são únicas em sua espécie, escolhem livremente o seu imaginário e, se refluem ou desaparecem, entrelaçam-se a ponto de permitirem estabelecer contrapontos em seus legados” (In: LEZAMA LIMA, 1988, p. 57 – nota 18), isto é, funcionam como os textos e a criação poética. Tais considerações nos conduzem, então, à segunda de nossas hipóteses fundamentais: há, na concepção de ambos os autores, o fator estrutural identificado com o choque de civilizações, no entanto, o papel desses choques não é visto do mesmo modo em Carpentier e em Lezama. Para Carpentier, a realidade encontrada no reino de Henri Christophe, no Haiti, é maravilhosa porque ali o próprio negro (ex-escravo)

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escraviza o negro, se fantasia de europeu e parece cultivar valores e conceitos norteadores das relações individuais que, na verdade, não lhe pertencem. A crítica de tal realidade, no maravilhoso, aponta para o desenraizamento do próprio negro, que não reconhece seu igual por razões políticas e econômicas, mas aponta, também, para os males que o contato com o europeu acarretou para a história do continente. O maravilhoso, nesse caso, não é propriamente o belo, mas a síntese paradoxal de elementos que surgem de uma inesperada alteração da realidade [...], de uma revelação privilegiada da realidade, de um destaque incomum ou singularmente favorecedor das inadvertidas riquezas da realidade, percebidas com particular intensidade, em virtude de uma exaltação do espírito, que o conduz até um tipo de “estado limite” (CARPENTIER, 1985, p. 14).

Desse modo, em Carpentier e em Lezama, o maravilhoso se apresenta, pois, como um ideologema, isto é, “o conjunto de objetos e eventos reais que singularizam a América no contexto ocidental” (CHIAMPI, 1980, p. 32), mas, em Carpentier, tal singularização não exclui o pertencimento morfológico ao maravilhoso universal, enquanto que em Lezama, é a capacidade (latino)americana de redimensionar seus objetos em sua relação com outras culturas o que promove tal singularização. Ou seja, em Carpentier, o maravilhoso, isto é, a fabulação, opera como crítica potencializada da realidade; já em Lezama, a fabulação adquire força de realidade e dá corpo à realidade cultural americana, para ele uma realidade em devir marcada pela curiosidade, pelo demoníaco e pelo potencial de assimilação que se torna cultura e, portanto, história, nas palavras da literatura (desde o barroco), nas mãos de artistas, desde o Aleijadinho, ou no enfrentamento com o mal, que é a natureza (para o Martín Fierro, per exemplo). Não muito diferentemente de Ortega y Gasset (1967), ainda que por outras vias, Lezama vê na América uma promessa, que, para ele, começa a ganhar corpo desde o barroco, mas

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continua, ainda, no presente de sua escrita, como promessa. Se para um (Carpentier), o maravilhoso americano é uma manifestação, na América Latina, de uma série de formas de representação da cultura e da história existentes nas diversas sociedades humanas, para o outro (Lezama), a representação de uma realidade maravilhosa constitui, para a América Latina, um elemento estrutural que caracteriza e particulariza o ser americano. Em Carpentier, tal gesto interpretativo promove a inserção das manifestações culturais latinoamericanas no seio da cultura ocidental, por meio dos métodos de análise então vigentes; em Lezama, o esforço por recuperar, no plano da cultura, elementos representacionais capazes de legitimar e dar visibilidade a uma identidade constitutiva do ser latinoamericano acabam por dar forma a seu próprio projeto literário, por meio de uma espécie de “sistema poético do mundo” (CHIAMPI, 1998) calcado na metáfora, do qual Paradiso, sua obra prima, que só se publicaria em 1966, é o maior exemplo. Na verdade, o autor faz, então, um ensaio de poética. Paradoxalmente, por fim, percebe-se que ambos os autores se aproximam ao flagrar, para a América Latina, o maravilhoso como representação formal de uma ausência, espécie de espaço criado na linguagem, seja como crônica de uma realidade maravilhosa, seja como imago resultante de uma paisagem que comunica o espírito ao indivíduo, mas, de qualquer modo, um espaço aberto ao conhecimento (de si?) que, parafraseando Lezama (1988), (se) interpreta e (se) reconhece, (se) prefigura e sente saudades. Referências bibliográficas CARPENTIER, A. O reino deste mundo. Trad. João Olavo Saldanha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985. CHIAMPI, I. Barroco e modernidade. São Paulo: Perspectiva/FAPESP, 1998. ______. Introdução – A história tecida pela linguagem. In: LEZAMA LIMA, J. A expressão americana. Trad. Irlemar Chiampi. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 17-41. ______. O realismo maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980.

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LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Trad. Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973. LEZAMA LIMA, J. A expressão americana. Trad. Irlemar Chiampi. São Paulo: Brasiliense, 1988. ______. Paradiso. 2. ed. México D. F., Biblioteca Era, 1970. ORTEGA Y GASSET, J. Intimidades. In: ___. Obras completas: el espectador. Madrid: Revista de Occidente, 1967. p. 635-663. PAZ, O. Os filhos do barro. Trad. Olga Zavary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

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