Considerações sobre o Livro I dos Solilóquios de Marco Aurélio

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Descrição do Produto

Comitê Científico Ary Baddini Tavares (UNIMESP) Daniel Nascimento (UFPI) Deyve Redyson (UFPB) Eduardo Kickhofel (UNIFESP) Eduardo Saad Diniz (USP, Ribeirão Preto) Jorge Miranda de Almeida (UESB) Marcia Tiburi (Mackenzie) Marcelo Martins Bueno (Mackenzie) Maria J. Binetti (CONICET, ARG) Patrícia C. Dip (UNGS/CONICET, ARG)

Editora LiberArs São Paulo 2012

Filosofia, política e transformação © 2012, Editora LiberArs Ltda. Direitos de edição reservados à Editora Liber Ars Ltda ISBN 978-85-64783-08-9 Editores Fransmar Costa Lima Lauro Fabiano de Souza Carvalho Revisão Ortográfica Patricia Magnani Revisão técnica Jasson Martins Editoração e capa Cesar Lima Impressão e acabamento Gráfica Rotermund

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP F488

Filosofia, política e transformação /Armindo José Longhi (organizador) – São Paulo, SP: LiberArs, 2012. 190 p. ; 21 cm. ISBN 978-85-64783-00-3 1. Filosofia. 2. Filosofia política. 3. Secularização. CDU 1:32

Bibliotecário Responsável: Cristiane Pozzebom CRB 10/1397

Todos os direitos reservados. A reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio, das páginas que compõem este livro, para uso não-individual, mesmo para fins didáticos, sem autorização escrita do editor, é ilícita e constitui uma contrafação danosa à cultura. Foi feito o depósito legal.

Editora Liber Ars Ltda www.liberars.com.br [email protected]

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .....................................................................................................................9 O CRISTIANISMO E AS RAÍZES DA SECULARIZAÇÃO DA POLÍTICA Luis Alberto de Boni ..................................................................................................... 13 PAIDÉIA ARISTOTÉLICA OU A TELEOLOGIA POLÍTICA DA EDUCAÇÃO Giovane do Nascimento .............................................................................................. 29 CARL SCHMITT CONTRA A DEMOCRACIA LIBERAL José Maria Arruda ......................................................................................................... 47 A MÁQUINA/DISPOSITIVO POLÍTICA: a biopolítica, o estado de exceção, a vida nua Sandro Luiz Bazzanella / Selvino José Assmann ............................................. 63 TENDÊNCIAS DO ESTADO CONTEMPORÂNEO: prelúdio à descentralização a partir da filosofia política moderna. Walter Marcos Knaesel Birkner .............................................................................. 91 TRANSFORMAÇÃO POLÍTICA: do deliberativo ao agonístico Armindo José Longhi ................................................................................................ 111 IRONIA E METÁFORA: esboço de um problema político do discurso filosófico Samon Noyama ............................................................................................................ 127 A POLISSEMIA DA “RAÇA” E SEUS DESDOBRAMENTOS POLÍTICOS NO BRASIL Claudio Cavalcante Junior....................................................................................... 143 CONSIDERAÇÕES SOBRE O LIVRO I DOS SOLILÓQUIOS DE MARCO AURÉLIO Thiago David Stadler................................................................................................. 159 ARRAZOADO ORTEGUIANO x TEORIA DAS ELITES Antonio Charles Santiago Almeida ..................................................................... 173

Para José Fagundes

APRESENTAÇÃO O livro, ora apresentado, é a reunião das conferências, palestras e mesas redondas realizadas no IV Colóquio Filosofia, política e transformação, evento organizado pelo Curso de Filosofia, Campus de União da Vitória, Universidade Estadual do Paraná, realizado de 22 a 26 de agosto de 2011, na cidade paranaense de União da Vitória e financiado pela Fundação Araucária. O objetivo principal do evento consistiu em discutir, no transcorrer da história do pensamento filosófico ocidental, as principais transformações nos conceitos, nas configurações e nos problemas abordados pela filosofia política. O que une os aqui reunidos é a preocupação central em pensar a dinamicidade do pensamento filosófico e suas implicações no mundo da vida sob a ótica dos problemas políticos específicos enfrentados pela sociedade em cada época. A Filosofia, como um conhecimento preocupado com o desenvolvimento da sociedade, não percebe a história como destruição do passado. Procura recuperar a perda da referência histórica. Transformação é uma chave que abre as portas e nos permite espreitar, a partir do tempo presente, qual foi o caminho percorrido pelo pensamento filosófico, lançando novas luzes sobre as encruzilhadas e labirintos que nos cercam. Quem nos abre a primeira porta é Luis Alberto de Boni com o texto O cristianismo e a secularização da política. O seu esforço teórico busca reconstruir historicamente o pensamento cristão, nos mostrando que é possível construir a teoria do estado leigo dentro do Cristianismo. O texto do professor de Boni, ao abrir a porta do pensamento cristão, auxilia aos que vivem no século XXI a entenderem a relação religião-política como dimensões convivendo no mundo humano. Para isso é necessário superar o lugar comum que exclui a convivência pacífica entre dogma religioso e estado laico. Giovane do Nascimento, com o texto Paidéia aristotélica ou a teleologia política da educação, abre uma segunda entrada ao indicar diferenças substanciais nas concepções platônicas e aristotélicas, muitas delas relegadas ao esquecimento por outras interpretações. Afirma que em Platão não há lugar para a ação humana, apenas para a constatação da irredutível imobilidade do mesmo. Enquanto em Aristóteles a iniciativa humana é central na busca da virtude

necessária na polis, mesmo percebendo as dificuldades a serem enfrentadas: não é porque quero a virtude que tal desejo se realiza. Quem indica o terceiro acesso é José Maria Arruda com o texto Carl Schmitt contra a democracia liberal. No início do século XX pensadores políticos criticam o pensamento liberal ao indicarem a existência, no discurso liberal, de substâncias metafísicas por trás do discurso, da semântica e da concepção de democracia. A enorme erudição de Schmitt acerca da história política e jurídica européia lhe permitiu afirmar que desde o início, a concepção moderna de Estado de Direito sempre esteve vinculada ao projeto político hegemônico da burguesia liberal. O objetivo da teoria política liberal é a neutralização da política e despolitização em favor de seus interesses econômicos e do seu conceito individualista de liberdade. Sandro Luiz Bazzanella e Selvino José Assmann abrem um novo acesso a política contemporânea com o texto A máquina/dispositivo política: a biopolítica, o estado de exceção, a vida nua. O fio condutor é o conceito de biopolítica e sua manifestação contemporânea no estado de exceção. Utiliza as reflexões de Michel Foucault e Giorgio Agamben para analisar os campos de concentração como limite entre a bíos e a zoè entre o direito e o vazio do direito, entre o humano e o inumano, produzindo vida nua, vida destituída do ordenamento jurídico que lhe garante a condição de vida humanamente qualificada. Afirma que a partir da reflexão de Agamben pode-se dizer que o campo de concentração se reproduz cotidianamente por meio de mecanismos de controle, de vigilância à que os espaços públicos locais, nacionais e globais estão expostos. Walter Marcos Knaesel Birkner, com o texto Tendências do Estado contemporâneo: prelúdio à descentralização a partir da filosofia moderna abre a discussão sobre o processo civilizatório, os sinais da morte e surgimento de instituições e suas conformações ao longo do tempo. Em especial, aborda o processo de descentralização numa das mais importantes instituições da trajetória do Ocidente, qual seja: o Estado. Argumenta a partir de uma leitura interdisciplinar que conjuga a filosofia política moderna com as ciências sociais e a história. Armindo José Longhi, com o texto Transformação política: do deliberativo ao agonístico, reflete sobre o significativo desinteresse dos indivíduos pela política, observado principalmente no grupo composto pelas novas gerações. Discute o processo de aprendizagem presente na formação política do cidadão a partir das condições em que ocorre a

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identificação do sujeito com a prática política. A discussão é proposta a partir da teoria agonística e da teoria deliberativa. Com o texto Ironia e metáfora: esboço de um problema político do discurso filosófico, Somon Noyama investiga como alguns elementos retóricos, a saber, a ironia e a metáfora, são apontados por Nietzsche como intrínsecos ao discurso da filosofia, seja seu uso feito de forma consciente, inconsciente, ou mesmo de forma reprodutiva, sustentando os argumentos de autoridade da tradição filosófica. Além disso, relaciona o uso desses dois elementos no discurso filosófico como sendo determinantes na formação dos valores mais importantes da cultura ocidental e, portanto, entendidos como forças ativas da formação cultural da humanidade. A polissemia da ‘raça’ e seus desdobramentos políticos no Brasil, texto escrito por Claudio Cavalcante Junior, aborda a construção sociocultural do conceito de raça e discriminação racial ao longo da História do Brasil, sobretudo na segunda metade do século XX. A discriminação racial, reconhecida em trabalhos acadêmicos a partir da década de 1950, é o ponto de partida para a formulação de soluções para os problemas raciais no Brasil. Segundo o autor, uma forma de solucioná-los é através de políticas públicas, em voga nos últimos anos. Tais políticas vêem gerando polêmicas, como é o caso de cotas de vagas para estudantes negros em universidades públicas. Com o texto Considerações sobre o Livro I dos Solilóquios de Marco Aurélio, Thiago David Stadler discute a pesquisa histórica e se pergunta: como sair deste incômodo terreno sepulcral para alcançar as férteis planícies do saber histórico? Responde que um dos possíveis caminhos é entender que de uma época para outra mudam os problemas que ocupam o primeiro plano; mudam as soluções para um problema já colocado; muda a função social da história e muda igualmente o modo de exercê-la, de praticá-la; ou seja, muda o ofício do historiador. O livro encerra com o texto Arrazoado orteguiano x teorias das elites de Antonio Charles Santiago Almeida. O autor discute os conceitos de “minorias” e “massas” { luz da filosofia política de Ortega y Gasset para o delineamento de um expediente político-filosófico. Com este objetivo, no primeiro momento, faz uma incursão nos textos orteguianos e, no segundo momento, coteja uma diferenciação entre o pensamento de Ortega y Gasset e dos teóricos elitistas, a saber, Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Robert Michels. O organizador 11

O CRISTIANISMO E AS RAÍZES DA SECULARIZAÇÃO DA POLÍTICA Luis Alberto de Boni Universidade do Porto (Portugal) Vou abordar um tema que pode ser estranho para muitos. Trata-se de uma tentativa de reconstrução histórica, mostrando como no pensamento cristão encontra-se embutida a noção de que existe uma separação entre religião e política, isto é, de que se pode, dentro do Cristianismo, elaborar a teoria de um estado leigo. Talvez alguém pergunte: “Mas que interessa isso para a Filosofia Política do século XXI?”. E eu respondo dizendo que o tema é brilhante, pois uma porç~o considerável dos habitantes do planeta defende que a única lei a imperar em uma sociedade é a sagrada, isto é, a sociedade deve ser regida pelas normas da religião, não havendo, pois, um espaço independente para a Política. Uma longa História que se inicia na Palestina O Cristianismo levava em si, desde as origens, uma concepção nova das relações entre Estado e Igreja, na qual não se propunha nem a mistura e nem a separação. Nesta concepção, nem o imperador, ou o rei, se intitulava sacerdote; nem o papa ou o bispo pretendiam o título real. Pode-se dizer que tudo se iniciou com uma frase de Jesus, quando, cavilosamente, perguntaram a ele se era permitido pagar tributo ao imperador. Para responder, Jesus disse: ‘“Mostrai-me um den|rio. De quem leva a imagem e a inscriç~o?’ Responderam-lhe: ‘De César’. Ent~o lhes disse: ‘Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”’ (Lc. 20, 20-27; Mt, 22, 15-22; Mc. 12, 13-17). Ora, Jesus não redigiu tratado sobre Política, mas, com essas palavras, estava fazendo uma clara distinção entre a religião que anunciava e os poderes públicos dos quais, aliás, era súdito. Ele estava dizendo que há coisas que pertencem a César, isto é, ao poder temporal, e há coisas que pertencem a Deus, por serem espirituais. E com isso estava indicando o caminho a ser trilhado por seus seguidores. Por aí seguiu o apóstolo Paulo que, duas décadas depois,

escrevendo aos Romanos, e defendendo a ordem pública, dizia: “Todo o homem seja sujeito às autoridades superiores, porque não há autoridade que não venha de Deus (non est enim potestas nisi a Deo)” (Rm. 13, 1). E, prosseguindo, dava a razão de ser da autoridade, que é manter a ordem, podendo, para tanto, usar a violência. Contudo, a comunidade cristã tinha consciência que há um limite na obediência devida à autoridade, que não pode interferir no foro íntimo, no âmbito das convicções religiosas. Isso se constatou logo nos primórdios da Igreja, quando os apóstolos, após terem sido presos pelo Grande Conselho dos judeus e proibidos de pregar, responderam: “Importa obedecer mais a Deus que aos homens” (At. 5, 29). Pouco mais tarde, Paulo pagou com a vida o fato de obedecer mais a Deus que à legislação de César. Com estes princípios, porém, o Cristianismo se tornou um perigo político para o império romano, que jamais imaginara uma religião que não fosse religião civil. Os cristãos diziam que seu Deus não era representado por imagens e se recusavam a cultuar os deuses do Panteon Romano, para o qual eram levadas estátuas das divindades cultuadas pelos povos do imenso império. Para as atilidas autoridades romanas, isso representava uma insubordinação política e um sinal de possível rebelião, capaz de atingir as bases ideológicas sobre as quais se erguera todo um mundo. Compreende-se assim como é que um grupo de pacíficos indivíduos, súditos fiéis, sem o menor projeto de tomar o poder, excelentes soldados quando chamados a defender a pátria, passou a ser perseguido como inimigo de Roma e de suas tradições. Santo Agostinho descreve muito bem esta situação ao narrar a relação dos batalhões de cristãos com o imperador Juliano, conhecido como o Apóstata. Diz ele que, quando o imperador ordenava que o exército atacasse, os cristãos o obedeciam e mostravam-se como intrépidos soldados. Mas quando mandava que seus comandados oferecessem incenso às divindades, os mesmos soldados se recusavam, afirmando que deviam obedecer antes a Deus que ao imperador. Um dia, porém, o imperador se converteu e a religião cristã, com Constantino, tornou-se uma das religiões oficiais de Roma. Poucas décadas depois, com Teodósio, transformou-se na única religião do império, sendo proscritas as demais. Para muitos, ante esses fatos, parecia que o reino de Deus estaria próximo e que a Igreja teria dias de paz e harmonia. Não havia mais separação entre o império e o 14

Cristianismo: o imperador era cristão e os bispos se transformaram em oficiais do império. Contudo, a realidade não correspondeu ao sonho. O império continuou sendo império romano, por vezes bem longe da pregação cristã. Citemos dois casos. No ano de 390 houve um motim popular em Tessalônica, na Grécia, no qual foi morto um oficial do exército. O imperador Teodósio, na tradição romana de não admitir rebeldia, depois de tudo ter sido acalmado, deu ordens para que num dia de espetáculo, ao qual só os homens acudiam, as tropas cercassem o local e passassem todos pelo fio da espada. Discordam os autores quanto ao número de mortos, situando-os entre 500 e 7.000. Pouco tempo depois, voltando a Milão, o imperador recebeu uma carta do bispo Ambrósio1 (o mesmo que três anos antes, batizara Agostinho). Ambrósio fora oficial do império e governada a região onde se situava Milão; sendo leigo, acabara aclamado bispo de Milão. A carta se inicia com um elogio à consideração que o imperador sempre tivera com ele, e segue com uma justificação pelo fato de ter estado presente no dia do regresso de Teodósio à cidade: o motivo é que ele estava sendo excluído das reuniões da corte, e isso tinha como causa a mortandade de Tessalônica. E ent~o surge a figura do bispo, dizendo: “Num caso como esse é preciso fazer penitência perante Deus. E tu, imperador, não terás vergonha de fazer aquilo que Davi fez e reconheceu, dizendo: ‘pequei contra Deus’”. E depois de elogiar o imperador, principalmente por sua clemência, prossegue: “Com temor eu digo: n~o ousarei celebrar a missa se tu estiveres presente. Se ela não é celebrada quando se trata da morte de um só inocente, poderá sê-lo quando são milhares os mortos? Eu digo: n~o”. A carta era datada de maio e Teodósio, que pediu perdão ao povo na porta da Igreja, só foi aceito aos santos mistérios no Natal daquele ano. – Cinco anos depois Teodósio veio a falecer, sendo assistido por Ambrósio no leito de morte. O elogio fúnebre proferido pelo bispo no dia do sepultamento foi digno da estatura do último grande imperador romano do Ocidente.

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AMBRÓSIO. Epistola 51; PL 36, 1160-1164. No presente trabalho limito-me a uma bibliografia mínima e deixo geralmente de anotar as referências das citações. Permito-me observar, também, que, por brevidade e devido à complexidade da obra de santo Agostinho, não me detenho a examinar-lhe o pensamento, ele que, sem dúvida, foi o principal formador do pensamento político da Cristandade.

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Tomemos mais um exemplo. Desta vez no Oriente. João Crisóstomo, (que em grego significa “Jo~o Boca de Ouro”), assim chamado pela sabedoria beleza de seus sermões, foi eleito patriarca de Constantinopla. Ao assumir o posto, percebeu que era necessária uma reforma interna no patriarcado e que também a moralidade pública, principalmente da corte, não era das melhores, em grande parte devido à avareza da imperatriz Eudóxia. Deposto por um sínodo corrupto, foi trazido de volta por uma revolta popular. Permanecendo o ódio da corte, pouco tempo depois foi novamente preso e exilado e, em 14 de setembro de 407, ao ser transferido de um local de exílio para outro, no caminho foi morto a pauladas pelos guardas, que para tanto haviam recebido dinheiro. Abrindo um parêntesis: cronologicamente, caberia examinar aqui o pensamento de santo Agostinho, mas, para tanto, seria preciso redigir outra conferência, pois ele sem dúvida, foi o principal formador do pensamento político da Cristandade2. Voltando ao tema: Outros casos poderiam ser apresentados, todos eles mostrando o desencontro entre a autoridade do estado e a religiosa. Atenhamo-nos aqui a um caso acontecido entre o papa e o basileos, o imperador de Constantinopla. Diversos foram os pontífices que se manifestaram sobre a relação entre o papa e o imperador, e alguns deles, indo além dos fatos concretos, teorizaram a respeito. Por 2

Basta ler o livro XIX do De civitate Dei para constatar que Agostinho reconhece a existência legítima da cidade terrena. Se ela não se pode fundamentar na justiça, porque não existe verdadeira justiça onde não se tributa a Deus o culto devido, contudo, pode-se definir o que vem a ser um povo [um estado] dizendo que ele “é o conjunto de seres racionais associados pela concorde comunidade de objetos amados” (Populus est coetus multitudinis rationalis rerum quas diligit concordi communione sociatus) (De civ. Dei, IX, 24). A cidade terrena “também goza de certa paz própria, que não deve ser desprezada [...] Mas interessa também a nossa cidade que dela goze neste mundo, porque, enquanto confundidas ambas as cidades, também usamos da paz de Babilônia” (Diligit tamen etiam ipse quamdam pacem suam non improbandam [...] Hanc autem ut interim habeat in hac vita, etiam nostri interest; quoniam, quamdiu permixtae sunt ambae civitates, utimur et nos pace Babylonis) (De civ. Dei, XIX, 26). Há um excelente livro a este respeito, infelizmente esgotado há muitos anos: F. M. T. RAMOS. A Ideia de Estado na Doutrina Ético-Política de S. Agostinho - Um Estudo do Epistolário Comparado com o De Civitate Dei. São Paulo: Loyola, 1982. – A transformação do pensamento de Agostinho nisso que se convencionou chamar de “Agostinismo político” conta com um estudo clássico: H.- X. ARQUILLIÈRE. L’Augustinisme politique. Paris: Vrin, 2. ed. 1955.

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trás disso tudo encontrava-se o césaro-papismo que se ia instaurando no Oriente, isto é, a doutrina de que o imperador é também cabeça da Igreja. Cabe citar o papa Gelásio I (492-496), um jurista, de origem africana. Dirigindo-se ao imperador Anastácio, que com olhos de pouca amizade se relacionava com o pontífice, este, chamando-o de ‘filho glorioso’ lhe diz que: “na condiç~o de romano, amo, respeito e admiro o príncipe romano; como cristão, almejo estar contigo na comunidade de sabedoria e verdade [...]; mas como vigário da Sé Apostólica sou obrigado a agir através de ensinamentos oportunos lá onde falta algo à plenitude da fé católica”. E segue-se então o clássico texto Duo quippe sunt, imperator auguste, quibus principaliter mundus hic regitur: “Dois são, pois, augusto imperador, aqueles pelos quais o mundo é soberanamente governado: a sagrada autoridade dos bispos e o poder régio. Entre esses dois poderes, maior é o peso que recai sobre os sacerdotes, porque eles deverão prestar contas, ante o juízo divino, também pelos reis dos homens”3. Examinemos o texto, cuja importância foi ressaltada, entre outros, também por Hannah Arendt. O papa diz que são dois os que governam o mundo, mas governam de modo diferente: um pela auctoritas, a autoridade; o outro, pela potestas, o poder. A palavra ‘autoridade’, no sentido aqui empregado, sequer possui correspondente na língua grega. Auctoritas indica o que poderíamos qualificar de ‘poder desarmado’, ‘poder moral’; enquanto a potestas se refere ao poder dotado de meios para usar a violência. No império romano, o senado – poder supremo da república e do império - possuía autoridade; enquanto os cônsules e os imperadores detinham o poder. A seu modo isso se preserva em nossa tradição ocidental: o parlamento, desarmado, possui a autoridade, cabe a ele fazer as leis; enquanto o presidente da República, ou o primeiroministro, possui o poder, cabendo a ele executar as leis. Gelásio afirmava, portanto, que há uma divisão no modo de dirigir o mundo, não cabendo ao sacerdote se imiscuir nas questões de administração temporal, e nem ao príncipe se ingerir no que se refere à salvação, devendo ele, porém, neste assunto, submeter-se à autoridade do sacerdote. Mas, no decorrer do tempo, houve por vezes uma grande distância entre a teoria e a realidade. Aconteceu que o Império do Oriente, enquanto ia se enfraquecendo, rumava também sempre mais 3

GELÁSIO. Epístola VIII. Ad Anastatium imperatorem; PL 59, 41-47.

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para o césaro-papismo. Concomitante com o esvaimento do poder do basileos na Itália e no norte da África, fortificou-se o poder dos reinos bárbaros na Europa. Entrementes, os pontífices romanos foram percebendo que as tentativas de negociar com Constantinopla tornaram-se pura perda de tempo. Mas a fragmentação dos reinos bárbaros e a ausência neles de lideranças culturais, abriam espaço para uma presença mais concreta do papado. Foi o que aconteceu com o papa Gregório Magno (+ 604), que acabou agindo como o grande líder do Ocidente. A correspondência enviada aos reis, a organização de sínodos, o contato mantido com os bispos, a imposição de uma liturgia única, a disseminação da Bíblia Vulgata, o uso do latim como língua oficial de liturgia e de comunicação, transformaram-no em um dos pais do Ocidente. Este, aos poucos, se tornou uma unidade cultural, que ia da Suécia à Espanha, determinada pelo Catolicismo, que lhe transmitia a sensação de pertença a um governo monolítico ideal, a ser regido por um imperador católico. Na Cristandade havia, pois, o papa e o imperador, mas qual seria a relação entre eles no comando do mundo cristão? Pode-se dizer que a teoria gelasiana da divisão dos poderes se mantinha em pé, mas na prática sobrava espaço para muita discussão a respeito da função do imperador na Igreja e do papa no império. O que se constatou, muitas vezes, foi que o vazio de poder acabou preenchido pelo mais apto. Assim, por exemplo, Gregório Magno agiu como um quase-monarca ante os fracos reis de seu tempo. Dois séculos mais tarde, o papa Silvestre III, na noite de Natal do ano 800, coroou Carlos Magno como imperador do Ocidente; este, porém, dentro de toda sua piedade cristã, tratou Silvestre e seus sucessores como simples ministros do culto. Alguns anos após, morto o imperador, seus herdeiros nem sempre conseguiram impor a vontade aos pontífices e, por vezes, foram por estes repreendidos. Nos séculos X e XI, por mais de uma vez o imperador interveio no papado. Em outras situações, porém, os dois lados mediram forças. Foi assim no século XI, quando da disputa pelas investiduras, entre Gregório VII e Henrique IV, ocasião em que o papa, tendo deposto o imperador, humilhou-o a implorar perdão, passando dias sobre a neve, às portas do castelo de Canossa. Transcorreram os tempos, e no início do século XIII, Inocêncio III, o último e maior papa

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da Cristandade, ainda se comportava, de fato e de direito, como o chefe maior do Ocidente, depondo e entronizando reis e imperadores. Mas, poucos anos após, constatou-se que o mundo mudara. Na metade do século XIII os papas Gregório IX e Inocêncio IV colocaram-se contra o imperador Frederico II, o Barbarossa, porém nada, nem a excomunhão, foi capaz de removê-lo do trono. Décadas depois, na passagem do século XIII para o século XIV, quando se enfrentaram Bonifácio VIII e Felipe, o Belo da França, a realidade era outra: a Cristandade cedia lugar a reinos independentes, como os da França, Inglaterra, Portugal e Aragão; e do Oriente aportava a Política de Aristóteles. O mundo não era mais o mesmo. Pensando cientificamente a Política Com a entrada no Ocidente da Ética, e principalmente da Política de Aristóteles, recriou-se o que podemos chamar de Ciência Política. Nesse empreendimento Tomás de Aquino tornou-se um marco de referência. Os comentários dele às duas obras do Filósofo, bem como os tratados por ele escritos sobre a Lei e a Justiça, na Suma Teológica, e o pequeno texto De regno, trazem no bojo muitas inovações que haveriam de marcar o pensamento político futuro. Assim, por exemplo, ao contrário da tradição patrística, que afirmava ser a autoridade sobre os homens fruto do pecado, Tomás, seguindo Aristóteles, vai dizer que o “homem é por natureza um animal político”, isto é, mesmo que n~o houve acontecido o pecado, os homens, no paraíso, teriam alguém exercendo a autoridade, a fim de dirigir vontades divergentes para um fim comum. E mesmo sem a revelação divina o homem haveria de se organizar socialmente. Tomás também insiste em que a autoridade reside no povo, que elege os governantes, mas pode também destituí-los; que a lei humana se fundamenta na lei natural, etc. Cito, enfim, uma frase dele, que nos interessa de perto. Quando, no De regno, faz a distinção entre o reino humano e o reino de Deus, que se realiza na Igreja, ele diz: “Para que as coisas terrenas fiquem separadas das espirituais, o ministério deste reino [divino] foi confiado n~o aos reis terrenos, mas aos sacerdotes”4. Observe-se a frase “para que as coisas terrenas fiquem separadas das espirituais”. Santo Tom|s est| dizendo que h| uma clara divisão na 4

TOMÁS DE AQUINO. De regno II, c. 3. Ed. Leonina, t. 42, p. 466.

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organização da vida dos homens: de um lado, os bens que se referem diretamente a Deus e à religião, e esses são regidos pelo papa, os bispos e o clero; do outro, os bens que pertencem aos afazeres da vida em sociedade aqui na terra, e esses ficam ao encargo do príncipe. Resumindo, em vista do presente trabalho, podemos manter duas afirmações tomasianas: a) a de que as coisas temporais são distintas das espirituais, e b) a de que pertence à natureza do homem viver na pólis ou no reino, isto é: a vida em sociedade pertence à ordem da natureza, não à da graça, e, por isso, mesmo antes da salvação por Cristo os homens viviam em sociedade. Tomás não foi um homem de gabinete, fazendo elucubrações. Percebe-se em sua obra que não lhe é desconhecida a existência das cidades-estados, como Veneza, Florença e outras; bem como dos reinos independentes que se iam estruturando dentro do mundo cristão. Porém, sua visão teórica, um tanto otimista, foi logo posta à prova. Na virada do século XIII para o século XIV estalou o conflito de poderes entre Filipe, o Belo, rei da França, e o papa Bonifácio VIII. O rei queria cobrar impostos do clero para sustentar a guerra que enfrentava contra os ingleses; o papa afirmava que os bens da Igreja não estavam sujeitos à tributação régia. Entre os defensores de cada parte encontravam-se teólogos e juristas de valor, o que permite dizer que foi este o primeiro debate ‘científico’ da Idade Média a respeito da relação entre os poderes, pois pela primeira vez eram arroladas as duas grandes redescobertas: Aristóteles e o Direito Romano. Do lado pontifício, o próprio papa Bonifácio VIII era um renomado jurista. Entre os textos que então redigiu encontra-se a célebre bula Unam sanctam, na qual, confundindo a Igreja com a cristandade, e afirmando que na Igreja não pode haver duas cabeças, conclui dizendo que para a salvação é necessário submeter-se ao Romano Pontífice. O grande teórico foi, porém, Egídio Romano, bispo-primaz da Aquitânia e antes ministro geral da Ordem dos Agostinianos. Egídio fora aluno de Tomás de Aquino, mas seguiu por caminhos distantes dos do mestre. Seu texto mais importante intitula-se De ecclesiastica potestate5. Ele concorda com Tomás ao dizer que o homem tende por natureza a viver em sociedade, mas não consegue manter a distinção entre duas ordens das coisas. Por isso, sua visão de sociedade difere da 5

EGÍDIO ROMANO. Sobre o Poder Eclesiástico. Petrópolis: Vozes, 1989.

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visão aristotélica, que é simplesmente ignorada. Depois, voltando-se para o modelo neoplatônico, que explica o universo a partir de emanações do Uno, Egídio repete a frase de Dionísio Areopagita: “É uma lei da Divindade que, na ordem do universo, as coisas inferiores sejam elevadas {s superiores passando pelas intermedi|rias”. Do mesmo modo, pois, é lei da Divindade que as coisas superiores desçam às inferiores através das intermediárias. Examinemos melhor esta afirmação. Plotino ensinava que acima de tudo existe, desde sempre e imóvel, o Uno (isto é, um único, como o nome define) e dele só procede, desde sempre, um ente, o Lógos, e deste somente um outro, a Alma do mundo, e desta as demais almas individuais, etc. Egídio toma esse modelo metafísico e o aplica à política, para explicar o mecanismo do poder, do domínio, da autoridade. Diz ele que a plenitude do poder se encontra em Deus, e deste desce para a maior autoridade constituída por Deus no mundo, que é o papa; e do papa ela passa aos reis, e assim por diante, até o último patamar. Repare-se que desse modo Egídio está negando algo aceito e defendido pelo Direito Romano e pela tradição cristã que se fora formando: que o poder provém do povo, ou, como diziam os juristas, o poder vem de Deus para o povo, que escolhe aquele que será constituído como autoridade. Egídio ignora a existência do povo. Mais ainda: a função do poder eclesiástico não é a de meramente transmitir o poder àquele que assumirá a autoridade civil. É muito mais. O poder eclesiástico institui o poder civil e o julga, podendo destituí-lo caso não aja corretamente. Neste mundo, o papa possui a plenitudo potestatis, a plenitude do poder, o que significa dizer que ele pode por si mesmo fazer tudo aquilo que faz através de causas segundas. É o que acontece com Deus, que, por exemplo, faz com que o homem, causa segunda, gere outros homens, mas ele, Deus, poderia, mesmo sem o homem, colocar outros homens na existência. Se, pois, o papa institui o poder civil, isso não significa que ele não possa agir sem este poder. Pelo contrário, ele o institui porque se trata de um poder inferior, que cuida das coisas inferiores, algo que não convém ao poder espiritual que se deve voltar acima de tudo para as coisas sagradas. Mas Egídio não para aí. Assim como aquele que se revolta contra o rei, diz ele, perde tudo aquilo que o rei lhe concedera, do mesmo modo também aquele que não se encontra na amizade de Deus deixa de ser proprietário dos bens que Deus dá aos homens. Tomando 21

a Carta de São Paulo aos Romanos, onde diz que por Cristo, de modo gratuito, fomos tornados justos (díkaioi) perante Deus, Egídio acrescenta, na linha de Paulo, que essa justiça o homem recebe pelo batismo. Logo, aquele que não recebe o batismo, não é justo perante Deus, bem como não o é aquele que, após o batismo, peca gravemente contra a lei divina. Ora, dissera Agostinho, na Cidade de Deus, que só há verdadeira justiça naquela república onde Cristo é fundador e guia. Egídio força essa afirmação e a acopla à noção de justiça, aliás usada por Agostinho, e proveniente do Direito Romano, quando diz que “justiça é dar a cada um o que é seu”. Portanto, n~o é justo aquele que não dá a Deus o que é de Deus e, então, tal pessoa fica também privada, de iure, de tudo aquilo que recebeu de Deus. Renascer pelo batismo significa, pois, tornar-se herdeiro não só do reino dos céus, mas também dos bens terrenos. Na visão de Egídio, portanto, a vida social se reduz a seu aspecto teológico, e a afirmação de que fora da Igreja não existe salvação (extra ecclesia nulla salus) se complementa dizendo que fora da Igreja não há domínio ou propriedade (extra Ecclesia nullum dominium). Os infiéis e os pecadores são, portanto, possuidores injustos dos bens da terra, e a Igreja só tolera isso a fim de evitar males maiores. Se substituirmos o papa pelo rei, encontramos em Egídio Romano uma teoria perfeita do absolutismo monárquico que se prenunciava. A reação às idéias oriundas dos círculos da cúria pontifícia não se fez esperar. O texto mais importante proveio de um frade dominicano, um tanto desconhecido: João Quidort, autor de uma obra intitulada De regia potestate et papali6. Como bom dominicano, ele segue os passos de Tomás de Aquino, mas vai além. Ele também diz que o homem é por natureza um animal social. Mas Aristóteles diluía o indivíduo na sociedade; Tomás o salvava introduzindo a noção de pessoa, como algo intocável; Quidort, prenunciando Locke, mostra os indivíduos em sua singularidade e independência, colocando o estado a serviço dos interesses individuais. Se o homem é por natureza um animal político, é possível colocar um paralelo, contrapondo á natureza a sobrenatureza; ao natural, o sobrenatural. E, com isso, temos duas ordens, provenientes do mesmo Deus: a ordem da criação e a ordem da salvação. O governo 6

JOÃO QUIDORT. Sobre o poder régio e papal. Petrópolis: Vozes, 1989.

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civil pertence à primeira, e todos os povos, também os que existiram antes de Cristo, sempre tiveram autoridade política legítima; já o governo eclesiástico situa-se noutro âmbito, tendo sido instituído por Cristo. Cada um desses poderes possui seu próprio âmbito de ação. O religioso alcança todo o mundo, pois a palavra pode ser expandir por todos os recantos. Já o secular se encontra limitado pelo alcance da espada, isto é, o poder de um rei ou de um príncipe alcança até onde a força coercitiva dele possa obrigar as pessoas. Essa afirmação traz em seu bojo dois importantes pressupostos. O primeiro, o de que o poder secular se caracteriza pelo uso da força. Não se trata de algo novo, pois Aristóteles, o Direito Romano, Agostinho e Tomás – para citar os dois mais importantes pensadores cristãos – já conheciam isso. Mas, nesse momento, com Quidort e Egídio Romano, a força é trazida para o núcleo da teoria do poder, onde permanecerá pelos séculos. Em segundo lugar, com esse argumento está sendo relegada a noção, um tanto ideal, de um santo império a dirigir o Ocidente. O poder imperador se estende até onde alcançar a força coercitiva de seu braço. Dali em diante, outro será o governante e, por isso, como então se passou a dizer: “Cada rei é imperador dentro de seu reino”. Quidort concorda com são Paulo e com a tradição cristã que todo o poder vem de Deus. Mas, contra Egídio, vai dizer que todo o poder promana de Deus para o povo, sem depender de intermediários. O exemplo que ele apresenta é esclarecedor. Diz ele que o pater familias tem em sua casa o mestre e o médico, sendo a função do mestre superior à do médico, pois este cuida da saúde do corpo, aquele, da saúde do espírito. Entretanto, o médico não depende do mestre, mas se relaciona diretamente com o senhor. Do mesmo modo, o poder secular se relaciona com Deus sem passar pela mediação da Igreja. Além disso, não existe uma ligação direta que, partindo de Deus, transmite o poder ao príncipe ou ao papa. O poder vem sempre conferido de Deus ao povo, e o povo escolhe quem será a autoridade dirigente. Isso vale também para o papa: Deus quer que a Igreja tenha o papa a dirigi-la, mas não é Deus que apresenta o candidato, e sim o colégio dos cardeais, representando todo o povo cristão. E assim como o povo pode remover o príncipe que deixa de servir ao bem comum, do mesmo modo os cardeais, ou o concílio, podem destituir um papa que não sirva ao bem da Igreja. O sumo pontífice está longe, portanto, de 23

ser um chefe com poderes absolutos. Ele sequer é proprietário dos bens eclesiásticos, dos quais é mero administrador em favor do povo cristão. Muito menos, portanto, pode reivindicar o domínio sobre os bens dos reis e dos indivíduos particulares. Aristóteles dizia que o ideal do cidadão é viver segundo as virtudes cívicas, virtudes essas que são apreendidas, descobertas, pela razão, sem necessidade da fé. Quidort concorda com ele e acrescenta que o ideal de vida do cristão é viver segundo as virtudes teologais, reveladas por Deus. Dizendo isso, ele se mantém na linha de Tomás de Aquino, pregando a separação entre as coisas espirituais e as temporais, e, com lógica, defende que o estado é um fim em si mesmo e tal fim é o vivere secundum virtutem, podendo-se, pois, conceber o estado e organizá-lo sem partir de pressupostos religiosos, e nem por isso ele deixará de ser um estado justo e verdadeiro. Contemporâneo de Quidort foi o franciscano escocês João Duns Scotus. Ele não redigiu algum tratado político, mas, em sua obra, ao inquirir sobre a origem da autoridade e do poder fez uma leitura inovadora, da qual convém citar um tópico, onde diz: A autoridade pode ser de duas formas: a paterna e a política. A política também é dupla, residindo ou em uma só pessoa ou na comunidade. – A primeira, isto é, a paterna, é justa pela lei natural [...] Mas a autoridade política, que é autoridade sobre estranhos, quer resida numa pessoa, quer na comunidade, pode ser justa pelo consenso comum e pela eleição da própria comunidade. [Ela] se refere aos que residem juntos, embora não os unam laços de sangue ou de relações próximas. Assim, por exemplo, se alguns estranhos entre si uniram-se para edificar ou habitar uma cidade e constataram que não podiam ser bemgovernados, se não tivessem alguma autoridade, poderiam, então, de comum acordo, admitir que sua comunidade fosse confiada a uma só pessoa ou a um grupo. [...] E esta autoridade política [...] é justa, pois com justiça pode alguém submeter-se a uma pessoa ou à comunidade naquelas coisas que não são contra a lei de Deus7.

Observe-se nesse texto, em primeiro lugar, que Duns Scotus está defendendo o contratualismo: os homens se reúnem não por 7

Duns Scotus on the Will and Morality. Ord. IV, d. 15, q. 2. Seleção e tradução de A. B. WOLTER.Wasington: The Catholic Univeristy of America, 1986, p. 314s.

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necessidade de natureza, mas por conveniência. Noutro tópico ele esclarece e diz – e Ockham depois repete –, que por natureza o homem é somente um animal conjugal e doméstico. Em segundo lugar, defende que quem leva os homens a se reunirem é a razão que Deus lhes deu para se organizarem nesta vida. Não existe, portanto, nenhuma influência de poder eclesiástico ou de princípios religiosos para instauração do governo civil. Por brevidade, não por negar-lhe a importância, limitamonos apenas a mencionar o pensamento de Dante, manifesto em De monarchia8. Cerca de uma década após Quidort e Scotus, e uma década antes de Marsílio e Ockham, ele defende a não-dependência do império ante a Igreja, por ser aquele anterior a esta e por estar colocado na ordem da natureza, e não da graça. Mas cada uma dessas ordens possui seu próprio fim e felicidade, chegando-se ao fim da primeira pela razão; e ao da segunda, pela revelação. Opondo-se, então, às doutrinas dos curialistas, diz: “Afirmo, ent~o que o poder temporal n~o recebe do espiritual nem a existência, nem a faculdade que é a autoridade, nem mesmo o exercício puro e simples”9. Cerca de 20 anos após Quidort e Scotus, quando do debate entre o papa João XXII e Luís da Baviera, um médico paduano, que chegou a reitor da Universidade de Paris, chamado Marsílio de Padua, lançou um livro revolucionário, com o título Defensor pacis10. Já o título é significativo e o autor explica o porquê. Ele quer defender o poder civil contra aquele que perturba a paz, e tal é o papa com suas pretensões sobre o poder temporal. Marsílio toma as teorias aristotélicas de modo dogmático, forçando, pois, o pensamento do filósofo grego, muito mais aberto à possibilidade e à conjetura. E partindo de Aristóteles, aceitando como sendo da natureza do homem a sociabilidade, inverte a leitura dos curialistas e projeta um estado soberano, dentro do qual se enquadra também o sacerdócio. Tendo por pano de fundo, ao que parece, a vida das cidadesrepúblicas italianas, afirma ele que poder supremo se encontra no conjunto do povo – ou na sua maior parte, a valentior pars. Cabe ao 8

DANTE ALIGHIERI. A Monarquia. São Paulo: Abril Cultural (Coleção Os Pensadores, vol. VIII), 1973, p. 191-232. 9 Ibid., l. 3, c.4, p. 222, 10 MARSÍLIO DE PÁDUA. O Defensor da Paz. Petrópolis: Vozes, 1997.

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povo, nomear os que redigirão os projetos de lei, aprovar as leis e eleger os governantes, bem como depô-los, se for o caso. Assim como a polis do Estagirita possui seis classes de pessoas, do mesmo modo o estado marsiliano conta com três classes bem definidas e que poderíamos qualificar de dirigentes: o judiciário, incluindo o que hoje chamamos de executivo, o exército e sacerdócio; e três subalternas: agricultores, artesão e financistas. O sacerdócio, considerado sob o aspecto teológico, destina-se a ensinar aos homens a mensagem de Cristo e levar os homens à salvação; na constituição da cidade, porém, ele deve seguir as determinações da lei civil, cabendo ao clero principalmente a educação do povo, ensinando-o a obedecer às autoridades. Os membros da Igreja não possuem nenhuma forma de poder coercitivo. O papa possui os mesmos poderes que qualquer outro sacerdote e está sujeito ao concílio, sendo que este deve ser convocado pelo legislador humano. Aliás, a dispensa de preceitos contidos no Evangelho só cabe ao concílio ou ao legislador humano, jamais ao papa ou a algum bispo. Além disso, compete ao legislador humano vigiar para que os ministros do culto tenham os bens suficientes para viver, mas o clero não pode exigir pagamento de dízimos. Já os religiosos, que prometem pobreza, não podem reter bens supérfluos e nem reivindicá-los ante a justiça e devem ser mantidos pobres pela autoridade. Assim, Marsílio propõe uma sociedade civil que não se encontra propriamente separada das coisas espirituais, mas que as incorpora, emasculadas, à constituição do estado. Ele só não percebeu que, ao negar a plenitudo potestatis ao papa, a estava transferindo ao imperador e ao poder civil. Wyclif, umas décadas mais jovem do que ele, leu-o e nele encontrou argumentos para defender o primado do rei da Inglaterra sobre a Igreja. Chegamos, enfim, em Guilherme de Ockham. Também ele, como seu confrade Duns Scotus, não se dedicou ex-professo à teoria política, mas, por causa das inúmeras disputas com o papado, devido originariamente à questão da pobreza dentro da Ordem Franciscana, acabou redigindo uma volumosa obra de grande alcance político. Cito dele como referência o Breviloquium de principatu tiranico11.

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GUILHERME DE OCKHAM. Brevilóquio sobre o Principado Tirânico. Petrópolis: Vozes, 1988.

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O teólogo Ockham, ao contrário de Marsílio, seu colega de exílio, defende o primado do papa entre os bispos, como sendo de instituição divina. Defrontando-se, porém, com o problema da extensão da autoridade pontifícia, inicia dizendo que se o papa possuísse a plenitudo potestatis poderia atuar ao arrepio da lei evangélica, que é a lei da liberdade, como ensinava são Paulo. De fato, se o sumo pontífice possuísse tal plenitude, poderia transformar em escravos aqueles que a Escritura proclamou como livres, na liberdade dos filhos de Deus. Ora, o papa sequer é senhor dos bens da Igreja, dos quais é mero administrador, muito menos, portanto, será senhor das pessoas. Indo além, e valendo-se da teoria nominalista, ele diz que a Igreja – uma entidade de razão que ninguém jamais viu – nada mais é do que o conjunto de todos os que crêem em Jesus Cristo, e a eles cabe a direção suprema da Igreja. O modo ordinário de eles se reunirem é o Concílio Ecumênico, no qual devem estar devidamente representados não só os bispos, os clérigos – pois eles são apenas uma parte da Igreja –, mas todos os cristãos, de cujos interesses se venha a tratar, sejam eles clérigos ou leigos, homens ou mulheres, visto que, segundo a velha tradição do Direito Romano, quod omnes tangit, ab omnibus probari debet (aquilo que a todos interessa, deve ser tratado por todos). Já com relação aos reinos, se residisse no papa a plenitude do poder, ele poderia depor o rei da França e doar a coroa a outra pessoa, como também poderia privar alguém de seus bens e atribuí-los a outrem. Ora, o próprio Cristo, enquanto homem passível e mortal, não teve tal poder, mas foi um obediente súdito do imperador, a quem pagou tributo. E quando conferiu poderes a Pedro, nem mesmo lhe conferiu todos os poderes espirituais que possuía, como o de conceder a graça sem o batismo, de instituir novos sacramentos etc. Os reinos, portanto, não são instituídos pela Igreja, pois existiram desde que os homens julgarem que era conveniente viver em sociedade (segue, pois, o contratualismo de Scotus). Diz ele a respeito: “... as autoridades seculares, a saber, a imperial, a régia e outras relevantes, são estabelecidas por Deus, não mediante a autoridade pontifícia, mas através da autoridade dos homens, a qual receberam não do papa, mas de Deus. Por isso, o poder real não provém do pontífice, mas de Deus, por intermédio do povo, que dele recebeu o poder para estabelecer para si um rei que o governe com vista à

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obtenção do bem comum”12. Portanto, “compete à razão do homem o dever de individuar a conveniência de instituir a autoridade, mas foi Deus que deu ao homem a razão para procurar as coisas necessárias e úteis para viver de modo ordenado e pacífico”13. A solução ockhamiana é engenhosa: com ela salva, de um lado, o princípio de que todo o poder provém de Deus e, de outro, a titularidade popular do poder, pois, como ele observa, o império pertence àquele que confere ao imperador o poder de fazer leis14. * * * Pode-se dizer que com Quidort, Scotus, Dante, Marsílio e Ockham, e com as mudanças políticas devido ao surgimento de estados independentes, a teoria da plenitude do poder papal e, consequentemente, da dependência do poder civil ante o espiritual perdeu seus fundamentos teóricos. Ela não desapareceu de um dia para outro (contemporâneo de Marsílio e Ockham foi o curialista Álvaro Paes15), mas suas raízes estavam minadas. O que despontava então no horizonte eram as pretensões de plenitudo potestatis por parte do absolutismo monárquico, que se valeu dos teóricos da Igreja para, invertendo os nomes, tentar instituir uma forma de césaropapismo no Ocidente. Permanecia, porém, no Ocidente o legado dos pensadores medievais, graças ao qual era possível pensar em um estado laico, isto é, montar uma teoria do estado que prescindisse do apelo aos dogmas religiosos – o que não significava, necessariamente, supô-lo como anticristão.

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Pode um príncipe, c. 4, p. 98s.; I, 243. No Dialogus. (III, II, I, ed. Goldast, c. 26, p. 899) a mesma ideia: "... porque, quando se diz que o poder imperial, e de modo geral todo o poder lícito e legítimo provém de Deus, contudo, não só de Deus, pois alguns provêm de Deus através dos homens, e tal é o poder imperial, que vem de Deus, mas pelos homens". 13 A. GHISALBERTI. Guilherme de Ockham. Porto Alegre: Edipucrs, 1997, p. 286. 14 Dial. III, II, 1, c. 27, p. 899. 15 Cf. J. A. de C. R. de SOUZA. As relações de poder na Idade Média Tardia – Marsílio de Pádua, Álvaro Paes e Guilherme de Ockham. Porto Alegre: EST Edições, 2009.

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PAIDÉIA ARISTOTÉLICA OU A TELEOLOGIA POLÍTICA DA EDUCAÇÃO Giovane do Nascimento Universidade Estadual Norte Fluminense

O pensamento de Aristóteles manter-se-á em grande medida ligado à tradição clássica e mais particularmente platônica, concedendo à busca da virtude um lugar central de sua reflexão ética. Talvez por essa razão – mas não apenas por ela, evidentemente – Franco Cambi afirma que, no que se refere à reflexão sobre a paidéia, sua obra pouco se distancia daquela de seu mestre: A sua paidéia é um pouco a correção empírica do grande e ousado modelo platônico, mas de maneira nenhuma uma refutação e um modelo alternativo. Entre os dois modelos há mais continuidade do que oposição ou diferença” (CAMBI, 1999, p. 93). Mas essa posição – ademais corrente em certa tradição da historiografia filosófica – parece, no entanto, bastante extremada e injusta. Assim, nosso propósito será não somente examinar algumas concepções da teoria das ações em Aristóteles, suas elaborações e controvérsias, mas procurar demonstrar, desses conceitos, a força elucidativa que nos ajuda a pensar a formação humana.

O projeto aristotélico de formação, que, apresentado nos livros VII e VIII da Política, encontra-se no cerne da discussão sobre a pólis, deu-se por finalidade a realização do télos humano, a eudaimonía (felicidade). Também sua reflexão sobre a ética concede à formação humana um papel central na sua efetivação (ARISTÓTELES, 1997; 1985 a). Cabe enfatizar a singularidade da formulação aristotélica em relação ao pensamento platônico – que Werner Jaeger, como outros pensadores da educação, ignorou de forma sistemática e conscienciosa, deslocando sua discussão para o espaço estrito e muitas vezes hermético da filosofia. E, de fato, de uma maneira geral, a filosofia de Aristóteles consiste na construção de uma ontologia bastante rigorosa, que tem como ponto de partida os entes em geral, voltando-se para o mundo

físico e para a lógica. Porém, diferentemente de seus antecessores, desde Parmênides, Aristóteles insiste em levar em consideração os modos de conhecimento instituídos no cotidiano da pólis, como o conhecimento proveniente da experiência sensível e como a opinião, liminarmente excluídos por Platão na medida em que constituem-se em visadas contingentes e necessariamente particulares da realidade. Assim, Aristóteles dialoga não só com toda a tradição anterior de pensamento, como com o homem na praça pública, com o vulgo. Sua filosofia evidencia, assim, a palavra humana sobre o ser, diferenciando-se do discurso filosófico que, a partir de Platão, buscará o ponto de vista do divino para falar das coisas humanas1. Ora, a perspectiva humana introduz na multiplicidade do ser, que é sua experiência cotidiana no mundo, e que Platão tentara evitar, ao pretender falar de um lugar de onde, ignorando o contingente, se pode admirar a unidade das essências. Ao recusar a metafísica platônica, Aristóteles deve se haver com o caráter contingente da realidade, que para ele é derivado da composição complexa entre matéria e forma, sendo a primeira relacionada à contingência em função da constante mudança da physis decorrendo daí a dificuldade de apreendê-la em virtude do limite do olhar humano. A matéria a torna inapreensível, uma vez que engendra a instabilidade ao seu conceito, impedindo uma determinação, ou delimitação de uma forma ideal do ser. Mas aquilo que foi duravelmente identificado à limitação da experiência humana e do conhecimento que dela deriva diretamente, incapaz de chegar às causas e princípios que constituem todo ser e todo dever-ser, é convertido, no pensamento de Aristóteles, em privilégio: somente ao humano, a ele e não os deuses, é dado um mundo por descrever ou construir. A contingência do mundo, o desafio 1

Sobre essa tendência que marcará o pensamento ocidental em sua busca pela objetividade científica, diz Arendt: “O problema da natureza humana [...] parece insolúvel, tanto em seu sentido psicológico como em seu sentido fisiológico em geral. É altamente improvável que nós, que podemos conhecer, determinar e definir a essência natural de todas as coisas que nos rodeiam e que não somos, venhamos a ser capazes de fazer o mesmo a nosso respeito: seria como pular sobre nossa própria sombra. Além disto, nada nos autoriza a presumir que o homem tenha uma natureza ou essência no mesmo sentido em que as outras coisas as têm. Em outras palavras, se temos uma natureza ou essência, então certamente só um deus pode conhecê-la e defini-la; e a condição prévia é que ele possa falar de um quem como se fosse um quê” (ARENDT, 1987, p. 18).

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imposto a cada instante pelo acaso exige desse indivíduo, em muitos momentos, uma intervenção – o que não ocorre num mundo divino regido pela necessidade, é em função da incompletude do mundo, ou, pela insatisfação do humano que há a intervenção, diferente de um mundo pleno, perfeito, acabado. Assim, dirá Aristóteles: Os deuses não são nem justos, nem corajosos, nem liberais, nem temperantes, pois não vivem em um mundo em que tenham de fazer contratos, enfrentar perigos, possuir dinheiro ou moderar seus desejos (ARISTÓTELES, 1997, X, 8, 1178 b 9-18).

A contingência não se apresenta apenas como obstáculo ao conhecimento, ou marca da limitação do saber humano; ela desperta a atitude investigativa, o espanto ou admiração diante do caráter misterioso de tudo que há. E abre a possibilidade para a iniciativa humana. Nas palavras de Pierre Aubenque: Sem a contingência, a ação dos homens seria impossível. Mas, sem a contingência, ela seria também inútil. […] a indeterminação do futuro é o que faz do homem o princípio; o inacabamento do mundo é o nascimento do homem (1986, p. 106).

A práxis humana só é possível em função das fraturas, ou do inacabamento da realidade. Desse modo, o mundo se apresenta para nós como algo a ser feito, indeterminado, confuso, carente de sentido – o que nos impele a agir, a querer intervir, a significar a realidade. Já aqui encontramos uma diferença substancial entre Aristóteles e seu mestre, pois no pensamento platônico não há lugar para a ação humana, apenas para a constatação da irredutível imobilidade do mesmo, face ao aparente fluxo das coisas. Além disso, não há sentido em intervir sobre o mundo, na medida em que ele é uma mera cópia imperfeita do mundo ideal. Assim, o querer humano não é suficiente para a efetivação da realidade. Em Aristóteles, pode-se dizer que a questão da iniciativa humana é central, mas o filósofo percebe de saída as dificuldades a serem enfrentadas: não é porque quero a justiça, ou a felicidade que tais desejos serão realizados. A fórmula - desejo o bem, mas pratico o mal, não tem sentido no universo platônico, onde o desejo é função do conhecer: se conheço o bem, não posso querer o mal. Para Platão, a 31

alma já é portadora da virtude, necessitando do exercício dialético para o reconhecimento do justo, do belo, da coragem etc. Para Aristóteles, somente através do hábito pode-se chegar à virtude – que não se encontra adormecida na alma humana, mas só ganha visibilidade pela instituição pública que a comunidade efetiva. O conhecimento de virtude não é, pois, suficiente; mas o mero desejo também não basta: é preciso ainda que se manifeste a iniciativa humana, sob forma de deliberação, condição sem a qual a ação não poderá ser uma boa ação, ou seja, uma ação virtuosa. Na concepção do estagirita, quem quer saber o que é a justiça deve olhar para o justo. O frónimos ou o homem prudente é aquele capaz de deliberar com prudência: contemplando as ações do virtuoso entendemos o que é virtude. Segundo Leon Robin, Nada lhe parece mais inútil do que a imaginação platônica de um Bem em si, fonte única do que é bom e verdadeiro. De que serviria ao tecelão, por exemplo – pergunta ele – que um tal bem existisse e fosse conhecido por ele? Alguém se tornaria melhor médico ao contemplá-lo? Por que o médico não tem em vista, evidentemente, a Saúde em si, mas a saúde do homem, ou para dizer melhor, a de tal homem em particular (1970, p. 40).

A noção de hábito ganha um sentido fundamental para a concepção de formação, pois é a partir da introdução dos valores instituídos e reconhecidos pela comunidade que se poderá tratar da formação do indivíduo. É sob as bases da cultura instituída que a educação estará fundada, e é à coletividade que cabe a decisão sobre a melhor formação, já que só se pode deliberar sobre a integralidade dos assuntos humanos, mas somente sobre aqueles que nos concernem – nenhum lacedemônio delibera sobre a melhor constituição dos citas (ARISTÓTELES, 1997, 1112 a 25). O papel concedido à cultura, aos hábitos e costumes da pólis no exame da melhor formação para o cidadão evidencia a ruptura com o sistema platônico, que buscava deduzir a ação correta de um princípio absoluto e extra-social: Aristóteles apóia a investigação sobre a boa ação na faculdade de discernimento adquirida por um cidadão plenamente inserido no contexto de sua polis, como disse Ernest Tugendhat: Como é sabido, a capacidade de formular juízos morais corretos e concretos – de phrónesis – segundo Aristóteles, não é uma 32

faculdade intelectual livre (freischwebendes), mas depende da disposição afetiva adequada do ser humano que, por sua vez, remete a uma correta educação (1988, p. 47).

Isso não significa, contudo, que a ética aristotélica rompa com a busca da areté proposta por Sócrates e Platão: mas, nela, o ponto de partida é sempre a opinião (doxa), que seu mestre rejeitava tão enfaticamente. Além disso, Aristóteles enumera também o acaso e o caráter contingente da realidade como aspectos a serem considerados na análise do agir no mundo. Não há, para os assuntos que tocam à educação, verdades absolutas e apriorísticas; desse modo, a teoria cede o passo aos bons hábitos, que são estampados nos exemplos fornecidos pelos justos: Eis aí por que, a fim de ouvir inteligentemente as preleções sobre o que é nobre e justo, e em geral sobre os temas de ciência política, é preciso ter sido educado nos bons hábitos. Porquanto o fato é o ponto de partida, e se for suficientemente claro para o ouvinte, não haverá necessidade de explicar por que é assim; e o homem que foi bem educado já possui esses pontos de partida ou pode adquiri-los com facilidade (ARISTÓTELES, 1997, 1125b 27-29).

A justiça é a ação praticada pelo justo, por aquele que adquiriu a capacidade de bem deliberar: não seria essa uma petição de princípio? Como saber se um homem é ou não virtuoso? Como reconhecer se uma ação é ou não justa? O próprio Aristóteles irá atentar para essa dificuldade, como bem observou Pierre Aubenque: […] Aristóteles se d| conta que a deliberaç~o, cujo conceito toma emprestado da prática política, não basta para constituir a virtude. Pois a deliberação não trata sobre o fim, mas sobre os meios, não trata do bem, mas sobre o útil, e a deliberação enquanto tal, pode ser colocada a serviço do mal (1986, p. 116).

A questão parece resultar da admissão do caráter contingente e prático da virtude, que faria da ética uma ciência sobre o acidente (AUBENQUE, 1986, p. 116): sem o apoio em um princípio universal, como falar em ética? Para Platão, como sabemos, isso é impossível: o discernimento das boas ações humanas é diretamente deduzido da idéia de Bem – mas já então é impossível fornecer à ação 33

humana qualquer estatuto ontológico. Aristóteles, no entanto, insiste em considerar a práxis, fazendo dela o próprio centro de sua ética. E, se a práxis, consistindo forçosamente a cada vez em uma deliberação, resiste ao método científico, tal como o concebia Platão, Aristóteles, ao invés de afastá-la, buscará interrogar o próprio conhecimento realizando uma teoria da ação: que tipo de conhecimento corresponde à ética, e como defini-lo? […] ninguém delibera sobre coisas que não podem ser de outro modo, nem sobre as que lhe é impossível fazer. Por conseguinte, como o conhecimento científico envolve demonstração, mas não há demonstração de coisas cujos primeiros princípios são variáveis (pois todas elas poderiam ser diferentemente), e como é impossível deliberar sobre coisas que são por necessidade, a sabedoria prática não pode ser ciência, nem arte (ARISTÓTELES, 1997, VI, 1140 a 30-35).

O conhecimento prático não visa, pois, à determinação, de uma vez por todas, de seu objeto, nem à produção de algo: trata-se de um tipo muito particular de conhecimento, que visa à ação (ARISTÓTELES, 1997, I, 1095 a 3). Porque o mundo não se mostra acabado e perfeito, ele é um mundo de relação, de analogias, de escolhas. A imperfeição do mundo exige uma tomada de posição e, por conseguinte, uma ação: a práxis humana arremata o que se apresenta como inacabado, diferentemente das coisas naturais que, possuindo uma constituição imanente, deixase conhecer em suas causas ou princípios. Mas a deliberação humana não é, na concepção de Aristóteles, possível senão no intervalo que é fixado pela própria natureza. Ela é, portanto, busca de meios para a realização daquilo que já está dado, para a realidade humana, como seu fim último. Sobre esse fim, que não pode ser conhecido diretamente, não nos cabe deliberar. Não há, portanto, uma formula geral de agir a partir da qual se deduz mecanicamente o modo correto da ação. Aristóteles não busca o absolutamente cognoscível, obedecendo a um modelo geométrico de dedução das conseqüências, mas o cognoscível em relação a nós (ROBIN, 1970, p. 41): “[…] as ações belas e justas, que a política investiga, admitem grande variedade e flutuações de opinião, de forma que se pode considerá-las como existindo por convenção apenas, e n~o por natureza” (ARISTÓTELES, 1997, 1094 b 15). 34

A ação jamais pode ser dita boa em si mesma, mas sempre em relação ao contexto em que se realiza; um ato considerado virtuoso em um momento determinado pode não sê-lo em outras circunstâncias. O cuidado que Aristóteles demonstra, ao descrever as virtudes morais, em apresentar as circunstâncias e os indivíduos que as praticaram é, pois, indicativo da inflexão que sua concepção ética realiza sobre seu método, aqui, bastante distinto dos procedimentos adotados em outros lugares de sua obra – como por exemplo, nas discussões sobre a ciência nos Analíticos2. O mesmo pode-se dizer do lugar que concede, em suas considerações, ao patrimônio de reflexões que constitui sua própria cultura – diferentemente de Platão, que despreza e omite tanto quanto lhe é possível a doxa3: Aristóteles viveu constantemente a doxa, reportando-se a ela (com a diaporética, a dialética, o justo meio-termo, e todas essas espécies de justezas e de justiças feitas), constituindo-a em sua nobreza, a ponto de a própria doxa ser, igualmente para nós, não mais, certamente, como uma autoridade legiferante e legitimadora, mas antes como fonte, conhecida ou não, das mais simples e das mais perenes constatações (CASSIN, 1999, p. 10)

O recurso aos exemplos, em que Aristóteles irá se basear para fundamentar o que seja uma boa formação, revela igualmente o valor concedido à opinião. Em sua investigação sobre aquela que é, não a formação em sentido absoluto, mas a melhor formação em função das circunstâncias, Aristóteles destaca a importância da escolha (proaíresis), base para toda ação. A formação deve preparar o cidadão 2

Os Analíticos a priori e a posteriori pertencem ao conjunto de pequenos tratados conhecidos como Organon (instrumental). São textos exotéricos, ou seja, dedicados a publicação e com características propedêuticas para os discípulos do Liceu. Os Analíticos a priori tratam dos raciocínios dedutivos e formais base da lógica clássica e os Analíticos a posteriori, dos métodos científicos cujo procedimento parte dos fatos para remontar as causas (aitia) primeiras que explicam o fenômeno, esse procedimento (epagogé) será mais tarde denominado indução. 3 Doxa aqui tem o sentido de opinião comum, no sentido aristotélico de partir de algo aceito por todos, um bom exemplo é o procedimento apresentado por Aristóteles quando trata do raciocínio dialético nos Tópicos, I, 100 b: “São, por outro lado, opiniões geralmente aceitas aquelas que todo mundo admite, ou a maioria das pessoas ou os filósofos – em outras palavras: todos, ou a maioria, ou os mais notáveis e eminentes”.

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para deliberar sobre si, sobre a vida na polis e sobre a melhor maneira de atuar na vida pública e na vida privada. Desse modo, o conceito de proaíresis torna-se central no pensamento ético de Aristóteles, que o distingue da deliberação. A boa deliberação sem dúvida prepara a escolha que o homem prudente realiza; mas, em Aristóteles, as duas não coincidem, como ocorre, por exemplo, na ética kantiana. Em Kant, a ação moral baseia-se em um imperativo categórico, revelando-se como uma ação racional pura, que não é contaminada pela psicologia pessoal e pelos desejos. Em contraposição a ela, a proaíresis aristotélica incorpora o desejo, que tensiona o humano em direção aos fins e, portanto, à busca dos meios mais eficazes para alcançá-los. A deliberação adquire, assim, um caráter mais propriamente técnico: o termo, que Aristóteles importa da vida política grega, traduz um exercício que poderá servir tanto à virtude quanto à má ação. Assim, conclui o comentarista, A proaíresis é… o momento da decis~o, o voto que sucede { deliberação e que não é mais somente a manifestação da inteligência deliberante, mas da vontade desiderante, que intervém para fazer oscilar a deliberação, tanto quanto para fixar o fim (AUBENQUE, 1986, p. 121).

Como comenta ainda Aubenque, a concepção aristotélica de deliberação implica no fato de que a boa escolha não se mede mais pela retidão da intenção, mas pela eficácia dos meios (1986, p. 122). Muitos críticos, a partir da modernidade, enfatizaram o caráter dogmático que estaria subentendido nessa redução instrumental da deliberação. No entanto, reduzir a ética de Aristóteles a esta aparente contradição, ou questioná-la sob pretexto da liberdade da vontade (AUBENQUE, 1986, p. 121), além do evidente anacronismo – que antecipa para o mundo helênico a doutrina da responsabilidade e da liberdade, baseada num sujeito autônomo e agindo em conformidade a uma lei moral – implica em desconsiderar o quanto o abandono dos modelos ideais lança Aristóteles no mundo da doxa e no desafio de pensar o humano em relação às contingências e adversidades de um mundo em constante mudança. Como dissemos anteriormente, Aristóteles encaminha suas investigações enfrentando a multiplicidade dos seres, ao invés da 36

solução de facilidade em que consiste a recusa da materialidade, da contingência e das multiplicidades provenientes da realidade – estratégia já utilizada por Parmênides e retomada por Platão que a levou às ultimas conseqüências. Componente necessário do vivente4, a matéria resiste à definição, não se deixa formular, mas se deixa moldar pelos atributos acidentais a partir dos quais somente ela se dá a conhecer: é forçoso, portanto, que o acesso ao ser só possa se fazer pelos seus acidentes. Realiza-se assim, no mundo sublunar, a multiplicidade incoercível do vivente: o ser de Aristóteles, comenta Aubenque, não se revela a nós senão através da irredutível pluralidade do discurso categorial: Assim, […] o ente se diz de v|rios modos; mas todo o ente se diz em ordem a um só princípio. Uns, com efeito, entes porque são substâncias; outros, porque são afecções da substância; outros, porque são caminhos para a substância, ou corrupções ou privações ou qualidades da substância ou das coisas ditas em ordem a substância, ou por que são negações de alguma destas coisas ou da substância5 (1962, p. 456).

Rompendo com a ontologia platônica, Aristóteles depara-se com a carência de sentido do ser, preso a um constante vir a ser, tornando-se constantemente outro. Resistindo a todo momento aos conceitos, o ser pode ser dito movimento, materialidade, contingência que não se dobra às categorias formais do ser. Mas o que se apresenta na obra do estagirita como um limite, passa contudo aos olhos de sua posteridade como abertura para novas formulações:

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Em várias passagens do livro Z Aristóteles utiliza o termo ousia como o composto de matéria e forma. Afinal, se o termo ousia se identificasse com a matéria, seria pura contingência e, assim, impossível qualquer determinação mas, por outro lado, se fosse reduzido a forma isolada da materialidade a teoria Aristotélica retornaria inevitavelmente o platonismo. 5 Metafísica 1003 b 5-10, trad. Valentin Garcia Yebra, Madrid: Gredos, 1987. No livro  1017 b 10-15 da Metafísica, Aristóteles apresenta a seguinte definição de ousia: Substância se chamam os corpos simples, por exemplo, a terra, o fogo, a água e todas as coisas semelhantes, e, em geral, os corpos e os compostos deles, tanto animais como demônios, e partes destes. Todas essas coisas se chamam substâncias porque não se predicam de um sujeito, mas, (ao contrário) as demais coisas são predicadas delas.

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Mas, a partir do momento em que tomamos o termo de movimento como fazê-lo no texto aristotélico e em verdade – como equivalente à mudança, à alteração de que o movimento local é apenas um caso particular, devemos incluir também a mudança de forma, a alteração, a transformação; e esta última, em seu sentido mais forte, inclui por sua vez o aparecimento, a emergência, a criação da forma. Afirmaremos, portanto, não a partir de uma nova “leitura” de Aristóteles, como diria o pretensioso e, ao mesmo tempo, pusilânime jargão atual, mas pensando, nós próprios, a partir do imenso questionamento que a obra do filósofo nos abre, e transgredindo conscientemente seus limites, que é phýsis o que tem, em si mesmo, princípio e origem da forma. O que significa dizer: é phýsis o que tem, em si mesmo, princípio e origem de criação – já que a única criação que importa é a das formas (CASTORIADIS, 1998, p. 215).

O homem é princípio, arkhé, ele se cria se produz, mas em vista de tornar-se aquilo que era para ser, ou seja, aquilo que era para ser será constantemente criação do próprio humano, resulta da sua própria invenção, que não está dada de antemão. Como bem diz Castoriadis : Essa não-predeterminação do homem aparece nas hesitações e nas aporias de Aristóteles em relação à polis e ao direito, e também, de uma maneira diferente, nas ambigüidades de sua concepção da techné. [...] Direi apenas que é precisamente no domínio humano, na sociedade e na história, que podemos identificar imediata e claramente a capacidade de uma classe de entes de criar a alteridade, novas formas, de se fazer existir em e por novas leis (1998, p. 216).

Por isso, os limites da Metafísica são o começo da ética. Se todas as coisas já estivessem pré-determinadas, como quis o idealismo platônico, não haveria nada a ser feito, nas palavras de Pierre Aubenque: “A meio-caminho de um saber absoluto, que tornaria a ação inútil, e de uma percepção caótica, que tornaria a ação impossível, a prudência aristotélica representa – tanto quanto a reserva, verecundia, do saber – o acaso e o risco da aç~o humana” (1986, p. 177). Aristóteles retoma a antiga inquietação grega, diante da imprevisibilidade do devir e da precariedade das coisas humanas, que convida o homem a ser princípio e criador de seu próprio mundo. É nesse sentido que, a partir de Aristóteles, se pode pensar, como o fez 38

Castoriadis, a formação humana como auto-criação e movimento que se constitui inicialmente numa tentativa de descrição da realidade, e, no entanto, no limite da natureza emerge a criação humana. Enfrentando as aporias que resultam do caráter fugidio e enigmático do ser, Aristóteles pensa a formação como um investimento de preparação desse indivíduo para a compreensão de seu télos, de sua finalidade. A Paidéia aristotélica e a formação para a polis A concepção aristotélica de formação possui, como vimos, um sentido muito geral, que abarca desde a noção de forma como princípio organizador do ser que visa a sua realização, até a ação do indivíduo, também relacionada à pólis. O homem deve buscar realizar sua própria forma, que se constitui na via contemplativa, na atividade intelectiva do nous, que será também a finalidade de toda a formação individual, visando a realização das virtudes dianoéticas. Contudo, é possível tratar do humano numa outra dimensão, além do aspecto puramente teórico e auto-formativo: ele é igualmente ser social e, nesse sentido, ao lado de uma formação individual que visa a sua realização para um fim (télos), em busca da eudaimonía, o humano possui, na concepção aristotélica, outros modos de lidar no mundo para além do limite da natureza. Por isso mesmo, o processo de formação sempre esteve, de alguma maneira, no centro da discussão do estagirita. Jean Lombard assinala um aspecto muito importante para análise da concepção aristotélica de formação. De maneira geral, embora o pensamento do estagirita tenha se constituído numa das principais influências para a posteridade, quando se trata da história da educação grega, consideram-se como marcas na evolução do movimento educativo a teoria idealista platônica e a idéia e cultura da sofistica, que posteriormente inspirará à tradição humanista, mas freqüentemente se omite a contribuição de Aristóteles (LOMBARD, 1994, p. 7). Os grandes textos sobre a educação na antiguidade simplesmente a ignoram, como é o caso de Henri I. Marrou e Werner Jaeger. A mesma coisa se passa, mais recentemente, com Franco Cambi: referindo-se a Aristóteles, eles o colocam numa posição

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subalterna frente aos grandes mestres (Platão, a sofística e Isócrates), não identificando qualquer originalidade em sua paidéia. No entanto, as contribuições para a formação geradas no Liceu, representaram um marco para a educação da época, a começar pela distinção de âmbitos de saberes (ética, política, física, estética), além de um programa propedêutico (Órganon) – que deu origem a toda ulterior discussão lógica e que, no Liceu, era aplicado aos iniciantes como uma espécie de introdução a todo conhecimento. Mais do que qualquer outra coisa, porém, sua antropologia, que destaca a abrangência e os limites da teoria e da prática na formação humana, introduz questionamentos essenciais para a crítica não só das formulações platônicas e sofísticas, mas inclusive da prática educativa da modernidade e de nossa atualidade. É possível que muitos dos obstáculos resultem do fato de que Aristóteles não elabora um programa educativo formal, como o fizeram Platão e Isócrates. Mas, se nos interessamos, não por uma proposta pedagógica acabada, mas pela possibilidade de estabelecer uma teoria consistente sobre a educação, encontramos nos livros VII e VIII da Política – obra admitida em geral como um dos textos mais antigos da reflexão de Aristóteles – elementos de rara relevância. Em que pese a conhecida tese genealógica de Werner Jaeger, que busca entender a filosofia de Aristóteles a partir de uma aproximação do pensamento platônico (insistindo sobre o dualismo entre alma e corpo, ou através de referências explícitas à Academia) é quase impossível não constatar o quanto Aristóteles nos legou para a reflexão e a prática da formação humana. A organização do saber aristotélico, efeito de pedagogia implícita, na verdade faz da obra inteira uma obra de educação, animado como os cursos do mestre pelo cuidado perpétuo de formar e ao mesmo tempo convencer (LOMBARD, 1994, p. 16).

Na origem de toda prática formativa está para Aristóteles a idéia da felicidade, finalidade máxima da existência humana, fixada já de partida na Política assim como nas Éticas. Na Política, a busca pela eudaimonía justifica a investigação sobre a comunidade humana e suas regras (1990, p. 13). Na Ética à Nicômaco, o Bem supremo é buscado pela conduta individual (ARISTÓTELES, 1997, I, 2). Em ambos os casos, porém, as implicações para a educação são evidentes. 40

Mas, como afirmamos, não se encontrarão nas obras mencionadas nenhum traço da busca por uma pólis ideal à maneira platônica, ou qualquer modelo utópico. É certo que o livro VII da Política retoma a apresentação e análise, já empreendidas em outros textos, de diferentes modelos de sociedade: mas não decorre daí um modelo acabado de pólis a exigir um rígido programa educacional. Contudo, como assinalou Lombard, formar para a felicidade, para o encontro do soberano bem, parece ser o pano de fundo da obra do estagirita: a busca (zetein) perpétua do conhecimento e da verdade não é jamais exterior à busca da felicidade que funda as Éticas e a Política. A própria filosofia – apresentada na Metafísica sob as denominações de sophia, ciência primeira ou philosophia – feita virtude do intelecto especulativo, se justifica pelo fato de corresponder ao princípio da felicidade. Mesmo a divisão aristotélica das ciências parecem representar um plano de estudos em três ciclos, dos quais os dois primeiros constituem a educação liberal do cidadão e o último a formação do sábio. Toda obra de Aristóteles é fiel ao preceito de Metafísica: de uma maneira geral, aquele que prova que sabe realmente alguma coisa é capaz de ensinar a outro (LOMBARD, 1994, p. 16).

A tentativa de propor uma formação que oriente o indivíduo em suas ações no mundo e na pólis, já demonstra um distanciamento do grande plano platônico, que não apresentou alternativas exeqüíveis para uma construção política: o projeto educativo de Platão constituise em uma espécie de iniciação, de ascese cujo objetivo é o bem ideal e transcendente. A formação platônica pretende conduzir o indivíduo, não ao exercício político de construção de uma cidade real, mas à cidade interior que o filósofo já carrega em si e que participa das belas formas da cidade ideal. Para Aristóteles, o fim da educação não é outro além do fim da existência humana – que, insiste ele, não se pode realizar fora da pólis. O indivíduo é aluno da pólis e é nela, e não em outro plano, que ele deve buscar a sua realização (LOMBARD, 1994, p. 22). Em outra passagem afirma: Aristóteles inclui de uma só vez a paideia na politeia, de uma maneira que lhe é própria, mas que se apóia sobre a acepção grega tradicional da politeia: para além do regime político, o 41

termo remete à vida coletiva, à sociabilidade e às suas formas, aos valores morais, à maneira de ser própria da cidade (LOMBARD, 1994, p. 23).

De forma que a educação jamais é isolada de seu meio natural, que é a sociedade. Por isso, na concepção de Aristóteles, a educação deveria ser pública: [...] em todas as capacidades e todas as artes há elementos que são necessários serem aprendidos previamente e assimilados pelo exercício de cada um deles, de modo que é evidente a mesma coisa para as atividades virtuosas. E visto que o fim de toda cidade é único, é manifesto que seja necessário uma só e mesma educação para todos e que seja cuidada coletivamente e não de maneira privada como no presente, em que todos visam suas próprias crianças separadamente, e lhes dispensam seu próprio ensinamento. Ora, é necessário que a aprendizagem do que concerne à coletividade seja coletivo. [...] O cuidado de cada parte tem por natureza em vista o cuidado com o todo (1990, VIII, 1337 a 20-30).

Como as disposições particulares do ser humano não são suficientes para sua plena realização, é imprescindível formá-lo pela cultura. Mas a Política não traz orientações para a instrução oficial da pólis, tendo em vista as circunstâncias específicas pelo momento vivido, não procede à definição de um sistema teórico, nem tampouco se ocupa de uma regulamentação para a pólis. A Política é um esforço antropológico de observação do real, a partir do funcionamento de outras póleis e de suas necessidades educacionais especificas. É aí que se pode observar a originalidade do pensamento de Aristóteles: a relevância de sua pedagogia consiste na sua tentativa de oferecer respostas a questões que se apresentavam à Atenas, no contexto de crise, procurando um meio-termo entre a tradição e as inovações de sua época. O momento de crise que vivia a Grécia conduziu a um sistema anárquico de ensino, no entanto, ele contradiz a noção de cidadania, tão cara aos gregos, onde os indivíduos só possuíam importância em suas relações na pólis. A Política de Aristóteles consistiu num esforço de recompor a pedagogia do Estado, colocando em acordo fins políticos e meios educativos, os únicos capazes de restaurar a pólis e retomar seus ideais. 42

A formação humana visa, pois, em Aristóteles, primordialmente o exercício da participação política. A pólis é seus cidadãos: se o primeiro gesto político é a criação da própria polis, a formação humana é seu instrumento privilegiado. Mas a ênfase na socialização não implica descuido com a dimensão individual: pelo contrário, a participação pública requer a aquisição de uma virtude que somente a prática pessoal da deliberação pode garantir. Mais do que uma idéia a virtude é essa prática, transformada pela cultura em uma segunda natureza, em um hábito democrático, realizando-se sempre em cada caso particular, pelo exercício da virtude adquirida, pelo hábito instituído por uma cultura. Desse modo, em suas reflexões sobre a pólis e sobre seus valores, ao longo da ampla elaboração antropológica que realiza, Aristóteles tece sua concepção de formação, que tem na prática seu ponto central. Em favor dessas considerações, pode-se parecer apelar a cada vez o comportamento dos indivíduos em sua vida privada e a prática dos legisladores: castiga-se, com efeito, e obriga-se a reparação destes que cometem ações perversas, a menos que tenham agido a contragosto ou por uma ignorância que eles mesmos não são causa, e por outro lado, honram-se esses que cumprem as boas ações, e devemos encorajar estes últimos e reprimir os outros (1997, III, 7 a 20-25).

Tal como a virtude, a formação humana não é, definitivamente, uma questão meramente intelectual: ao contrário, ela só se efetiva no tempo, por meio de ações. Ao contrário de Platão, Aristóteles não tem dúvidas de que a virtude pode ser adquirida: mas o que se ganha então, não é um conhecimento, uma Idéia, mas uma segunda natureza, uma segunda enteléquia, um hábito. A formação aristotélica se apresenta, desse modo, como uma alternativa oferecida a duas posições díspares: por um lado, o absolutismo idealista platônico, que tem na noção de desejo do bem em si o seu princípio formador; e, por outro lado, o relativismo subjetivista da sofística, de que o bem é sempre relativo àquele que o deseja. As duas posições que, tomadas em sua radicalidade, representam uma profunda ameaça à democracia, convergem em um ponto: a perspectiva individualista em que acabam por encerrar a ética. O projeto de formação de 43

Aristóteles recupera o exercício da democracia e de suas interrogações, na medida em que, ao partir dos exemplos cotidianos, concede ao interlocutor a participação no espaço público das opiniões. Referências ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o futuro. 6. ed. Tradução de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2007. ______. A condição humana. 10 ed. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. ARISTÓTELES. Politics. Princeton, New Jersey: Princeton University, 1985. ______. Metafísica de Aristóteles. 2 ed. Tradução de Valentín García Yebra. Madrid: Gredos, 1987. (Edición trilingüe). ______. Les Poliques, XIII. Tradução de Jean Tricot. Paris: Flammarion, 1990. ______. Étique à Nicomaque. Paris: Vrin, 1997. AUBENQUE, Pierre. Le problème de l' Être chez Aristote - Essai sur la problématique aristotélicienne. Paris: P.U.F, 1962. ______. La prudence chez Aristote. Paris: P.U.F., 1986. BRAGUE, Remi. Aristote et la question du monde: Essais sur le contexte cosmologique et antropologique de l’ontologie. Paris: PUF, 1988. CAMBI, Franco. História da pedagogia. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. CASSIN, Barbara. Le plaisir de parler. Paris: Les Edtitions de Minuit, 1986. ______. Aristóteles e o Lógos - contos da fenomenologia comum. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 1999. CASTORIADIS, Cornelius. Encruzilhadas do labirinto V: feito e a ser feito. Rio de Janeiro: DPA, 1999.

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CARL SCHMITT CONTRA A DEMOCRACIA LIBERAL José Maria Arruda Universidade Federal Fluminense

Em seus escritos do período de Weimar (1919-1932), Carl Schmitt anuncia como tarefa principal de seu pensamento político salvar o conceito de democracia de seus momentos liberais. Para isso, ele buscou revelar a substância metafísica por trás do discurso e da semântica do liberalismo e de sua concepção de democracia. Sua assombrosa erudição acerca da história política e jurídica europeia lhe permitiu trazer à tona elementos interessantes da formação conceitual do vocabulário liberal. Para o jurista alemão, a concepção moderna de Estado de Direito e de ordenamento jurídico corresponde somente ao projeto político hegemônico da burguesia liberal. Desde seu surgimento, todo o objetivo da burguesia é a neutralização da política em favor de seus interesses econômicos e de seu conceito individualista de liberdade; o resultado desse processo foi a submissão completa do Estado e da Política aos princípios do individualismo, a saber, à moral individual e ao cálculo de interesses privados. Assim, em sua própria essência, o liberalismo seria inimigo do Estado, por isso não foi capaz de desenvolver uma teoria positiva do poder estatal, somente de fazer restrições à sua soberania. O avanço do liberalismo burguês implicou cada vez mais uma diminuição da capacidade de ação política e intervenção social do Estado. Carl Schmitt rejeita veementemente a tese de que a liberdade do indivíduo possa estabelecer um limite à atuação do Estado. No liberalismo, a Economia assume o monopólio das decisões políticas e isso significa a destituição do Estado como instância suprema de decisão política, que ele caracterizou como a era da neutralização e da despolitização. No que se segue, tentarei expor alguns pontos centrais da crítica de Schmitt à democracia liberal. I No Conceito do Político, Schmitt afirma que os termos que compõem a semântica do campo político (Estado, república, sociedade,

classe, soberania, Estado de Direito, Constituição, democracia) são vazios em si mesmos e somente recebem um significado real quando referidos aos grupos que concretamente são concernidos, atingidos, combatidos, contestados e refutados por meio deles. Para Schmitt, a política é um espaço de relação, de conflito e disputa entre pessoas e grupos de pessoas, e não entre entidades ideais. Todos os conceitos da esfera espiritual, inclusive o conceito de espírito, são conceitos pluralistas e somente podem ser compreendidos tomando como ponto de partida a existência política concreta [...]. Todas as representações essenciais da esfera espiritual dos seres humanos são existenciais e não normativas (SCHMITT, 1996, p. 84).

Assim, para entender o surgimento da concepção de democracia do liberalismo é preciso ter em mente os dois adversários tradicionais da burguesia liberal: o príncipe e o povo. Esta posição existencial da burguesia torna compreensível sua estrutura conceitual, uma vez que, na epistemologia política schmittiana, posições e conceitos estão entrelaçados visceralmente. Do ponto de vista conceitual, o liberalismo deve ser visto antes de tudo como um sistema metafísico que faz da categoria do indivíduo seu conceito fundamental, derivando daí uma concepção individualista da liberdade e privatista de propriedade (SCHMITT, 1969, p. 45). A semântica conceitual do vocabulário liberal surgiu a partir da luta concreta contra o Estado Absolutista do século XVII. Os liberais procuravam diminuir cada vez mais o poder do monarca e obter garantias no campo político e na esfera econômica. Todas as ideias políticas do liberalismo têm como objetivo a limitação do poder soberano, a proteção do indivíduo e da propriedade privada contra a interferência do Estado e da coletividade (SCHMITT, 1993b, p. 126). O liberalismo dissemina um sentimento de desconfiança em relação a todo e qualquer exercício do poder, a toda e qualquer forma de presença do Estado. É por isso que, para Schmitt, o liberalismo não é propriamente uma teoria política, mas uma crítica de toda e qualquer forma de política em favor da economia e de uma visão abstrata do indivíduo. A junção entre democracia e liberalismo só foi possível porque ambos, em um determinado momento de suas lutas políticas, 48

tinham um inimigo político comum, a saber, o estado monárquico. Em meados do século XIX, como forma de diminuir mais ainda o poder monárquico, o movimento liberal se apropria, pois, da bandeira democrática que pregava a transferência do poder soberano para o povo, a superação da legitimação monárquica para a legitimação democrática do poder. No entanto, no lugar do povo, o movimento liberal estabeleceu o parlamento como lugar da produção das normas e da tomada de decisões políticas, evitando assim a participação popular e tomando para si a legitimação democrática. A identificação de soberania popular com representação parlamentar constitui um dos elementos essenciais do que Schmitt entende por democracia liberal. Em síntese, a ideia do Estado de Direito surgiu da luta política da burguesia liberal para limitar o poder do soberano através de dois meios: a ordem jurídica do Estado constitucional e a representação política parlamentar. Schmitt reconheceu no conceito liberal de Estado Democrático de Direito a expressão da ideologia burguesa e de sua metafísica do indivíduo. Isso se mostra no fato de que os teóricos liberais somente reconhecem como estado de direito legítimo aquele estado cuja constituição se rege fundamentalmente pela ideia burguesa de liberdade: a liberdade individual. Estrategicamente, o liberalismo fez de seu conceito particular de constituição o conceito universal de constituição (SCHMITT, 1993b, p. 36). Assim, para um liberal, só se pode falar em Estado como Estado de Direito quando as exigências da liberdade e da propriedade individual forem contempladas: A moderna constituição do Estado de Direito burguês corresponde em seus princípios ao ideal de constituição do individualismo burguês, de tal maneira que estes princípios são comumente identificados com a constituição enquanto tal, e ‘Estado constitucional’ com Estado de Direito burguês.... Esta constituição contém, em primeira linha, uma decisão em favor da liberdade burguesa: liberdade pessoal, propriedade privada, liberdade de contratos, liberdade de comércio [...] O Estado aparece como um empregado da sociedade, submetido ao seu controle estrito (SCHMITT, 1993b, p. 126).

O objetivo do liberalismo é regulamentar toda a ação do Estado e limitá-la a um funcionamento maquinal, calculado. O Estado 49

aparece não como uma unidade política, mas como um conjunto de normas e procedimentos (Normen und Verfahren), uma espécie de constructo kantiano artificial e formal. Em contraposição a um estado tirânico, os liberais consideram que, no Estado de Direito, qualquer intervenção estatal na esfera da liberdade individual só pode se dar sob amplo amparo da lei. O estabelecimento de um ordenamento jurídico fixo, estável, base do movimento constitucionalista liberal do século XIX, foi essencial tanto para a submissão do poder do Estado ao princípio de legalidade, mas, sobretudo, porque gerava um ambiente de segurança, predizibilidade e confiança em que prosperavam as transações comerciais, as transferências hereditárias e os negócios. O constitucionalismo foi o instrumento que a burguesia liberal utilizou para defender seus interesses econômicos privados através da imposição de uma série de direitos individuais e através da separação de poderes. Enquanto a democracia é uma forma particular de exercício efetivo da soberania política, o constitucionalismo é exatamente o oposto, ou seja, é uma forma de limitar a soberania política. A burguesia pretende “moderar” o poder político dividindo e contrabalançando diferentes organismos do Estado – presidência, parlamento, cortes de justiça – nenhuma delas devendo exercer a soberania plenamente. O constitucionalismo liberal impõe limitações ao exercício da soberania e nesse sentido entra em contradição com a democracia. Em um artigo de 1929, intitulado “Der bürgerliche Rechtsstaat”, Schmitt afirma que: O Estado de Direito burguês se caracteriza, em linhas gerais, por se assentar sobre a ideia dos direitos fundamentais do indivíduo e sobre o princípio da divisão dos poderes. Dessa forma, a liberdade do indivíduo é posta, a princípio, como ilimitada; o Estado e seu poder, como limitados. O que o Estado pode fazer, vai ser rigorosamente determinado. Por toda parte são introduzidos órgãos de controle, cuja ação é juridicamente assegurada. Ilimitada, no entanto, é a liberdade pessoal do individuo. Ela não é regulada por leis, e qualquer possível violação a ela precisa se dar dentro de parâmetros estabelecidos por determinadas normas. O ponto de partida é a esfera das possibilidades ilimitadas dos indivíduos e a controlabilidade geral do Estado. Este princípio de divisão liberal atravessa toda a organização do Estado. As competências do Estado serão 50

divididas em seus mínimos detalhes e as possibilidades de dominação contrabalançadas umas com as outras (SCHMITT, 1995, p. 45).

A teoria liberal impôs um conceito de constituição que tem três pontos básicos: a) o reconhecimento dos direitos fundamentais do indivíduo; b) a separação dos poderes do Estado; e c) representação política burguesa no parlamento. O uso da palavra “Estado de Direito” nas teorias liberais é, portanto, um uso político (ou seja, polêmico) e tende a desqualificar toda e qualquer forma de Estado que não assuma os valores defendidos pelo liberalismo. Para o modo de expressão do liberalismo burguês só existe Constituição ali onde a propriedade privada e a liberdade individual forem asseguradas; tudo o mais não é Constituição, mas despotismo, ditadura, tirania, escravidão (SCHMITT, 1993b, p. 37).

A divisão de poderes baseia-se em uma ideia banal: seria perigoso que o órgão que elabora a lei, seja também aquele que a executa; isso seria uma grande tentação para quem detém o poder. Durante o iluminismo ficou famosa a divisa: nul corps armé ne peut délibérer. Logo, nenhum órgão do estado deve concentrar todo o poder em si e isso explica distinção cada vez maior entre deliberare e agere, fundamento da distinção entre legislativo e executivo. Onde não houver separação entre legislativo e executivo, há necessariamente ditadura e arbítrio. Schmitt lembra que na declaração dos direitos do homem e do cidadão, em seu artigo XVI, lê-se que sociedades que não respeitam os direitos individuais nem a separação de poderes são desprovidas de constituição. Em síntese, o liberalismo consequente tem nicho específico em parte na esfera econômica, em parte no moralismo abstrato e é um sistema artificial de métodos visando, em última instância, o enfraquecimento do Estado e o exercício pleno da vontade soberana. II Em confluência com as exigências democráticas, o movimento liberal se fortaleceu ao exigir a criação de uma 51

representação da sociedade diante do monarca e ao defender a tese de que o legislativo deve influenciar o executivo. Ao longo do século XIX, a luta da burguesia contra o estado monárquico travou-se basicamente como luta pela instituição de parlamentos como lugar de produção do ordenamento legal. Segundo Schmitt, a separação entre Estado e Sociedade resulta das construções dualistas e polêmicas da burguesia contra o Estado monárquico (príncipe versus povo, coroa versus câmara, governo versus representação popular, etc.). O parlamento no século XIX foi pensado como o lugar onde a representação popular se confrontava com o governo, onde a sociedade se opunha ao Estado, o povo ao príncipe. Para a burguesia, era fundamental substituir a pessoa do Rex pela ideia de regnum e pela ratio universal. O rei tem que obedecer à lei, o poder da lei deriva do fato de que, diferentemente do comando e do ordenamento pessoal, ela emana da razão, ela é pura ratio, sem interferência nenhuma da cupiditas ou da turbatio. Era preciso contrapor o “government by will” por um “government by constitution”. O movimento liberal procurou, então, ampliar e estender os poderes e a jurisdição das assembleias populares ou do parlamento até que o monarca fosse completamente alijado do processo legislativo. O critério formal da validação legal era o apelo à forma de legitimação democrática através da suposta participação popular nas assembleias. Mas aqui se engendra, segundo Schmitt, uma transformação semântica do conceito de lei, gerando dois conceitos incompatíveis: de uma lado, a lei é definida como uma norma cuja validade deriva de suas propriedades racionais intrínsecas; de outro, lei é tudo aquilo que é posto pela vontade do “povo”, em que a categoria “povo” pode ser considerada semanticamente equivalente { categoria “representaç~o popular”. A rigor, o poder político do parlamento cresceu tanto que modificou o significado do termo “lei”: qualquer norma só se torna lei se for previamente aprovada no parlamento (SCHMITT, 1993a, p. 19). Para Schmitt, o feito extraordinário do liberalismo foi substituir qualquer noção substancial de vontade popular pela noção formal de vontade do parlamento. É nesse sentido que, segundo ele, o movimento liberal guinou o movimento democrático em direção à dominação parlamentar. Entretanto, a única justificação para existência do parlamento é de natureza técnico-pragmática: dado a impossibilidade da reunião do povo em uma praça pública para 52

deliberação das questões fundamentais, conclui-se, então, da necessidade de uma assembleia de representantes eleitos pelo povo. Por isso, o parlamento aparece como altamente democrático. Para Schmitt, no entanto, a questão envolve mais do que isso: ela implica em saber por que exatamente o parlamento foi visto como ultimum sapientiae, como lugar de produção da verdade e da racionalidade do ordenamento jurídico e das decisões políticas; somente com a crença de que a instituição do parlamento produz a vontade geral, a racionalidade enquanto tal e a correção das leis, somente com isso se pode aceitar a tese de que o parlamento deve influenciar e intervir no governo, ou seja, de que o parlamento exerça o domínio político propriamente dito (SCHMITT, 1969, p. 42). Schmitt descreve o parlamentarismo como resultado da posição metafísica do liberalismo que acredita na produção da verdade e da justiça através da discussão e da livre troca de opiniões. Ora, os liberais criaram uma oposição entre o poder monárquico, que se exerce enquanto mando, e o poder democrático-parlamentar que se exerce através da discussão e do convencimento. A crença que está na base do parlamentarismo é, portanto, a crença em um government by discussion. O parlamentarismo - como parte da ideologia liberal – reforça a ideia de que o espaço político é um espaço onde se efetuam trocas de ideias e argumentos entre representantes de segmentos sociais distintos para, através de uma negociação entre pontos de vista, estabelecer conceitos válidos de verdade e justiça. O parlamento pretende ser o centro da articulação racional da opinião pública. O liberalismo se apoia, portanto, em uma concepção pragmática de verdade como resultado/função do processo de formação da opinião pública. A verdade aparece como uma função da concorrência de opiniões. É interessante perceber que o liberalismo pressupõe aquilo que Schmitt denomina o racionalismo relativo: embora pretenda resolver tudo através de argumentos racionais, o liberal nunca pode se colocar questões substanciais referentes às visões de mundo, ele somente pode se limitar a coisas que, que por conta de sua natureza relativa, podem ser resolvidas com negociações e compromissos. Assim, no racionalismo relativo do liberalismo, uma parte das questões – exatamente as questões substanciais sobre visões de mundo – tem de permanecer fora de discussão, sob pena de não se chegar a consenso e, pelo contrário, gerar disputas entre os indivíduos 53

(SCHMITT, 1969, p. 58). Logo a discussão no interior do liberalismo pressupõe bases não discutíveis. Para Schmitt, o liberalismo se funda de fato na ausência de uma verdade comum, de uma unidade popular e no adiamento da decisão política sobre as questões essenciais da vida social: a busca da verdade se converte em uma conversa eterna (ewiges Gespräch). A noção de verdade e justiça é completamente supérflua, pois ela remete sempre à correção dos procedimentos instrumentais de racionalidade das decisões. O procedimento aparece como garantidor da legitimidade. A liberdade de discurso, de imprensa, de associação, de discussão são mais do que instrumentos úteis, eles são questão de vida e morte para o liberalismo e sua estratégia de esvaziamento da política como espaço de decisão coletiva, de exercício da soberania popular. Schmitt não cansa de fazer alusão ao pensador antiliberal espanhol Donosó Cortez, que ridicularizava a burguesia chamando os parlamentares liberais de “la classe discutidora”, aqueles que vivem da ilusão de que é possível através da troca de argumentos chegar a uma deliberação e a uma ação acerca dos conflitos sociais. Por causa do postulado de publicidade da vida política, confunde-se liberalismo e democracia. O surgimento do espaço público e da publicização dos atos do Estado foi visto como a cura de todos os problemas de corrupção e abuso de poder dos regimes absolutistas. No Iluminismo, julga-se que a opinião pública funcionaria como um corretivo eficaz contra regimes despóticos. Liberdade de discurso e liberdade de imprensa foram transformados em elementos essenciais da formação do espaço público. A liberdade de imprensa foi vista como a proteção mais efetiva contra o arbítrio político. Retomando uma definição de Richard Thoma, Schmitt define opinião pública como “produto de uma aç~o recíproca entre jornais e leitores” (SCHMITT, 1994, p. 26). Para Schmitt, os princípios fundamentais que formam o “espírito” da democracia liberal-parlamentar são o princípio da discussão e o princípio da publicidade. Discussão significa uma troca de opiniões que se dá com o intuito de convencer o oponente, através de argumentos racionais, da pretensão de verdade e correção da própria posição ou de se deixar convencer pelo oponente (SCHMITT, 1969, p. 9). A atividade parlamentar é regulada por procedimentos que garantem a liberdade de fala e pela publicização das sessões. O liberal 54

acredita que o consenso social e político vai surgir espontaneamente da livre disputa das opiniões no parlamento, do mesmo modo que o equilíbrio no mercado surge da livre concorrência dos indivíduos. Esse processo tem suas regras e procedimentos específicos, sobretudo os que garantem a circulação das opiniões, tal como, no mercado, capital e bens circulam livremente. Para Schmitt, em sua prática efetiva, porém, as decisões do parlamento não são tomadas no plenário, mas em comissões reservadas. Os partidos são representantes permanentes dos interesses de segmentos do eleitorado e seus membros devem votar segundo as orientações das lideranças partidárias. Ora, com isso a discussão desaparece do parlamento, pois a disciplina partidária é exigida dos parlamentares. Como afirma Schmitt, nenhum debate público vai influenciar um parlamentar que vota de acordo com a orientação de seu partido. A força de cada partido é medida pela quantidade de votos que ele possui no parlamento. Dessa forma, no parlamento as discussões se convertem em negociações e compromissos, determinados por um cálculo de resultados e não por uma noção desinteressada de bem público. O parlamento se converte, assim, em uma instituição cujas decisões são resultado de barganha, e cujas votações nominais não passam de mera formalidade. Os partidos políticos, enquanto grupos de interesses, substituem o princípio da discussão pelo princípio da negociação (Verhandlung) e as grandes decisões do parlamento são tomadas, não em sessões abertas, mas a portas fechadas pelos líderes partidários. As negociações não são orientadas para a busca da verdade e do melhor argumento, mas pela contabilização dos interesses e das chances de ganho e de ocupação do poder. Para Schmitt, isso não se representa somente de uma crise acidental ou contingente do parlamento, mas é inerente à essência do liberalismo que entende a discussão como uma forma de concorrência de opiniões e de acordo entre partes. Se o liberalismo estimula cada vez mais a divisão social e o pluralismo das concepções de mundo, como é possível chegar a uma unidade sobre as decisões fundamentais da vida social e política? É por isso que, para Schmitt, a crise política da democracia liberal não é um fenômeno empírico e passageiro, mas algo que pertence estruturalmente à essência da democracia liberal, incapaz ela própria de produzir homogeneidade social e política, baseada sempre em 55

negociações e arranjos partidários com base em interesses imediatos. Pode-se dizer que assim como para Marx, o capitalismo gera necessariamente crises; para Schmitt, a democracia liberal é um sistema político inviável, que leva à dissolução do Estado. O que agrava o caráter crítico da concepção liberal de democracia é o fato de que o desenvolvimento das modernas sociedades de massa tornou a discussão pública e argumentativa no parlamento uma mera formalidade. Os partidos não passam de fachadas para grupos sociais e econômicos que calculam suas chances de poder e a partir daí fecham compromissos e formalizam coalizões sem bases programáticas (SCHMITT, 1969, p. 11). O elemento discursivo-normativo, de que falava Habermas, desaparece completamente e é substituído pelo cálculo de interesses e pelas articulações para chegar ao poder. Na democracia liberal, o problema consiste menos em se esforçar para convencer os outros da validade das pretensões de verdade postas discursivamente, mas sim de obter maiorias nas votações. Em verdade, o parlamento não consegue efetuar a passagem dos indivíduos atomizados para a unidade da vontade geral, pois ele reproduz, no plano político, as divisões geradas no plano econômico pelo liberalismo. A democracia liberal perpetua, assim, a dominação dos interesses econômicos e corporações. As massas são alvo de um forte aparato de propaganda que é tanto mais eficaz quanto apela para seus interesses imediatos ou manipula suas emoções. Dessa forma, as políticas do Estado passam a depender, de um lado, das preferências individuais manifestas na forma de uma opinião pública difusa e manipulada pelos aparatos de informação e propaganda nas mãos da burguesia, de outro, dos arranjos parlamentares ditados por interesses partidários. A opinião publica recebe um valor absoluto embora ela fosse somente um meio contra a política secreta do absolutismo. Schmitt lembra ainda que o surgimento do parlamento está ligado às grandes tradições da cultura europeia e, sobretudo, ao temor das elites cultas contra um possível domínio das massas incultas, um medo da democracia. Para ele, sinal claro dessa deturpação da democracia no liberalismo é o fato de a ciência política ter se dedicado cada vez mais a investigar os mecanismos através dos quais os partidos poderiam desenvolver sua propaganda eleitoral, organizar as massas e dominar a opinião pública. Em última instância, fica claro a íntima relação entre partidos políticos, 56

grande imprensa e grande capital, que sempre trataram as disputas políticas como sombras da realidade econômica (SCHMITT, 1969, p. 30). Para Schmitt, há uma contradição entre o conceito de democracia, que exige certa homogeneidade social, e a ideia liberal de uma sociedade individualista e pluralista. O Estado é tomado como um aparato instrumental, burocrático, e não uma entidade coletiva que pudesse ser objeto de confiança e lealdade. O liberalismo faz a legalidade do Estado depender de um contrato livre entre os indivíduos, mas esquece que para a formação da volonté generale um estado verdadeiro somente pode surgir onde há certo grau de homogeneidade do povo, pois sem isso não poderia haver unidade de ação. A ideia do contrato social entre indivíduos variados, com interesses diversos e agindo de modo puramente egoísta é parte da antropologia liberal. Em verdade, na vertente democrática do pensamento de Rousseau, o Estado não é um contrato de indivíduos, mas uma entidade coletiva que expressa a vontade geral, fundamentada na luta por soberania, na unidade popular e na identidade entre governantes e governados. Na opinião de Schmitt, existe uma profunda contraposição entre a consciência individual do homem liberal e a homogeneidade requerida para a noção de democracia (SCHMITT, 1969, p. 23). O principal problema de uma teoria democrática, a saber, estabelecer quem é o povo, quem faz parte da unidade política, não pode ser compreendido por um viés liberal, cuja metafísica parte sempre da ideia abstrata de indivíduo e de humanidade e é incapaz de compreender os processos histórico-políticos de formação das identidades coletivas e das unidades políticas. Enquanto forma de democracia sem povo, a democracia liberal tornou-se um conceito sem substância, incapaz de formar um consenso verdadeiramente democrático – isto é, homogêneo, existindo somente uma ilusão de unidade, ali onde existe há de fato somente a barganha entre grupos de interesses e lobbys políticos. Assumindo, em parte, a crítica marxista às democracias formais, Schmitt diz: O que hoje na Europa vale como Democracia é um engodo da dominação econômica do capital sobre a imprensa e os partidos políticos, ou seja, é um engodo de uma vontade popular falsamente moldada (SCHMITT, 1969, p. 38). 57

III Para Schmitt, o sentido da palavra liberdade no liberalismo se esgota em liberdade de opinião, liberdade de imprensa, de associação e imunidade parlamentar. Porém, onde a vontade soberana do povo é chamada a se pronunciar, no voto, há a exigência de que esse voto seja secreto, o que significa realmente a compreensão da passagem meramente mec}nica do privado para o público: “O soberano desaparece na cabine de votaç~o”. A liberdade de opinião, no liberalismo, é sempre uma liberdade de opinião de indivíduos privados (SCHMITT, 1969, p. 50), o que implica uma espécie de privatização da política. O povo como unidade desaparece, restando somente a ideia de que a vontade soberana do povo é o resultado da somatória das vontades individuais expressas através da manifestação silenciosa do voto. Para Schmitt, um dos maiores engodos da democracia liberal é transmitir a ideia de que democracia se resume simplesmente ao exercício universal do direito de voto e de que o voto secreto deve ser o fundamento último da vida política (SCHMITT, 1994, p. 25). Em verdade, nas decisões de ordem política, o indivíduo não vota como privatus, mas como citoyen tendo em vista o bem-estar de todos. No liberalismo, o povo é excluído de manifestação política. A identificação entre democracia e voto individual, afirma Schmitt, não é democracia, mas liberalismo do século XIX (SCHMITT, 1994, p. 126). Segundo ele, há que se distinguir entre direito de escolha (Wahlrecht) que significa o direito de escolher seus próprios representantes; e o direito de decisão (Entscheidungsrecht), que significaria o direito de se posicionar sobre questões essenciais da vida social e política. A democracia liberal, através de seu modelo representativo parlamentar, tende a limitar o direito de decisão dos cidadãos meramente ao direito de escolha de representantes no parlamento. A ampliaç~o do conceito jurídico de “povo” para o conceito sociológico de “massa” deu-se, ao longo do século XIX e XX, com uma significativa ampliação da população no processo eleitoral. Essa ampliação, porém, foi meramente quantitativa em relação ao número de votantes (mulheres, adolescentes, etc.), e não qualitativa com o 58

incremento de mecanismos efetivos de participação popular nas decisões políticas. No liberalismo, o conceito de democracia resume-se a processo eleitoral e coeficiente de eleitores. A rigor, o que se poderia chamar efetivamente de ampliação da participação popular nas decisões políticas deveria ser resultado da criação de mecanismos de decisão sobre as questões concretas da vida social e política (plebiscitos, referendos, mobilização social, manifestações públicas, etc.). A democracia representativa é, para ele, um resíduo inconsequente da luta da burguesia contra o estado monárquico e, como vimos, uma concessão a problemas de ordem técnicopragmática. A democracia é, segundo Schmitt, mais do que um sistema de registro de votos secretos. Em sua essência, ela se apoia em uma série de identidades. Identidades entre governantes e governados, senhor e súdito, identidade do povo com sua representação, identidade de estado e eleitores, identidade de estado e lei, identidade do quantitativo com o qualitativo. Todo o problema da democracia se resume na questão da formação da vontade popular e nos mecanismos através dos quais ocorre a manifestação clara dessa vontade. Contra o tecnicismo da democracia liberal, Schmitt opõe o que ele chama de democracia imediata (unmittelbare Demokratie), democracia radical ou democracia sem mediações. Em seu modo de ver, somente a democracia direta poderia realizar as tendências igualitárias inerentes ao movimento democrático da modernidade. A democracia radical leva à decisão popular sobre todas as questões importantes da vida social, inclusive no plano econômico; a democracia liberal, por seu turno leva somente a uma igualdade jurídica sob a base de uma vida social na qual se desenvolvem todas as desigualdades possíveis entre os indivíduos (SCHMITT, 1994, p. 22). Quanto mais arraigado for o sentimento democrático de um povo, a vontade popular pode ser expressa de muitos meios, mais interessantes que os diversos mecanismos estatísticos pensados minuciosamente pelo aparato do estado liberal. Como alternativa ao sistema parlamentar, Schmitt propõe uma espécie de sistema presidial forte com ampla participação popular. Se é necessário que o princípio democrático da identidade entre governante e governado seja complementado pelo princípio de representação, essa representação tanto pode ser dar por uma assembleia quanto por um único 59

indivíduo. O mais importante é que o princípio de identidade seja efetivado de uma maneira não meramente formal, mas substancial e efetiva. Nesse sistema, o povo soberano exerceria sua vontade política através de diversas formas, entre elas, inclusive, o voto nos referendos e plebiscitos. Mas não se pode determinar previamente os limites do exercício da soberania. Democracia é manifestação da vontade popular nos meios em que essa vontade popular quiser e puder se manifestar. Para Carl Schmitt, todas as teorias modernas do Estado de Direito liberal tentam eliminar o conceito do soberano, em última instância, tentam eliminar o exercício da soberania. O legalismo buscou despersonalizar o conceito de soberania e aplicá-lo a entidades abstratas (normas, leis, constituição, razão, etc.). Assim como a teologia deística procurou eliminar a noção de milagre e de ação providencial de Deus no mundo, ideologicamente o liberalismo político e o normativismo jurídico procuraram eliminar o conceito de uma vontade soberana que pudesse alterar a ordem jurídica. Como resultado de sua vis~o mecanizada e “reificada” do mundo, o liberalismo deixou de perceber a natureza intrinsecamente conflituosa da ação política e a necessidade inelutável de intervenção ocasional do Soberano para decidir em casos extremos. A negação do problema da soberania é um desdobramento da postura liberal de negação da autonomia do poder estatal enquanto tal. O Liberalismo pretende uma neutralização completa da política, por isso não existe uma teoria política liberal, mas somente uma crítica liberal da política. Entretanto, o liberalismo não é apolítico em suas intenções e em seus efeitos. Ele se vale de uma retórica éticohumanista para encobrir a realidade dos interesses econômicos que estão no centro dos debates sobre a atuação do Estado. A política é a capacidade de um povo decidir sobre sua própria forma de vida, sobre sua própria existência, capacidade de autodeterminação, de tornar-se de fato soberano, dando forma concreta à sua liberdade fundamental enquanto entidade política. O centro do movimento liberal foi e continua sendo, segundo Schmitt, a propriedade privada. No liberalismo, a economia predomina, enquanto o espaço político é desqualificado como espaço de mera violência e substituído por um humanismo abstrato. O liberalismo pretende evitar a ideia da guerra como componente da luta política e transmuta essa guerra pela concorrência econômica e 60

pela discussão de ideias, pela discussão espiritual. A situação da política em seu tempo, Schmitt caracterizava como um “imperialismo econômico camuflado com uma retórica humanista”. Infelizmente, seu tempo ainda é o nosso tempo. Referências ARRUDA, J. M. Carl Schmitt: Estado, Política e Direito, In: OLIVEIRA, M. et alii. Filosofia Política Contemporânea. Petropolis: Vozes, 2003, p. 56-86. DYZENHAUS, D. Law as Politics. Carl Schmitt’s critique of Liberalism. Londres, 1998. GOTTFRIED, P. Carl Schmitt: Politics and Theory. Greenwood Press, 1992. MOUFFE, C. Carl Schmitt and the Paradox of Liberal Democracy, In: C. MOUFFE (ed.): The Challenge of Carl Schmitt. Londres: Verso, 1999, pp. 38-53. SCHMITT, C. Die geistesgechichtliche Lage Parlamentarismus. Berlim: Duncker & Humblot, 1969.

des

heutigen

______. Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität. (1922). 6. Berlim: Duncker & Humblot, 1993a. ______. Verfassungslehre. Berlim: Duncker & Humblot, 1993b. ______. Legalität und Legitimität. Berlim: Duncker & Humblot, 1993c. ______. Positionen und Begriffe. Berlim: Duncker & Humblot, 1994. ______. Staat, Grossraum, Nomos. Berlim: Duncker & Humblot, 1995. ______. Der Begriff des Politischen. Berlim: Duncker & Humblot, 1996 .

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A MÁQUINA/DISPOSITIVO POLÍTICA:

A BIOPOLÍTICA, O ESTADO DE EXCEÇÃO, A VIDA NUA Sandro Luiz Bazzanella Universidade do Contestado Selvino José Assmann Universidade Federal de Santa Catarina

Questões introdutórias: Agamben e a Biopolítica Giorgio Agamben jurista e filósofo, é um dos pensadores mais lidos na atualidade. Nascido em Roma em 1942. Sua obra tem início nos anos 70, com ênfase no debate em torno da estética e da obra de arte, assumindo a intensidade das reflexões políticas em meados dos anos 90. Neste sentido, a obra Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I, publicado em 1995 (no Brasil em 2002, pela editora da UFMG), marca de forma mais contundente suas reflexões no âmbito da política. Esta obra, que inaugura uma série denominada Homo Sacer, pode ser definida, como a obra que produz o encontro entre duas linhas de força do pensamento político do século XX, que nunca haviam se encontrado: Hannah Arendt e Michel Foucault. É a partir das perspectivas destes dois pensadores que o filósofo italiano movimentará suas pesquisas e investigações em torno dos fenômenos, advindos de sua concepção da biopolítica como politização da vida nua. É a vida nua que constituirá para Agamben a marca distintiva da modernidade, resultante das estruturas políticas ocidentais desde seus primórdios. Agamben vai consolidando em sua obra uma corajosa leitura do pensamento político contemporâneo, recorrendo a paradigmas extremos como o ‘campo de concentraç~o’ ou o ‘estado de exceç~o’ e, sobretudo falando da biopolítica como luta da vida e das formas da vida contra o poder, que procura submetê-las a seus fins por meios muitas vezes ilegítimos (ASSMANN, 2007, p. 7).

Na tentativa de nos aproximarmos do arco conceitual e discursivo do filósofo, cabe citar alguns pensadores, que se situam entre suas influências filosóficas e, sobretudo, temáticas. Mas, observese que tais aproximações não se dão sem o devido reconhecimento e, salvaguardadas as diferenças conceituais e interpretativas de cada filósofo em jogo, entre eles: Friedrich Hegel, Martin Heidegger, Walter Benjamin, Hannah Arendt, Michel Foucault, Carl Schmitt, Gerson Scholem, Émile Benveniste. Talvez ainda se possa dizer que Agamben é um filósofo cuja matriz de pensamento é aristotélica, na medida em que seu perquirir filosófico desenvolve-se pensando as singularidades em sua essencialidade no plano da imanência absoluta. É uma forma de pensar o mundo, a vida em sua totalidade naquilo que lhe é próprio, em sua condição singular imanente. Ou seja, Agamben pretende fazer uma ontologia da vida, ou dito de outro modo, uma ontologia da potência que incida diretamente nas mais diversas formas-de-vida que se articulam na história em geral e na contemporaneidade de maneira específica. Quanto ao conceito de biopolítica, em seu texto: “O que é um dispositivo”, Agamben argumenta de que o cuidado terminológico, o trato conceitual é condição de primeira grandeza do trabalho filosófico. “As questões terminológicas s~o importantes na filosofia. [...] a terminologia é o momento poético do pensamento”1. Nesta perspectiva, a influência decisiva na discussão conceitual em torno da biopolítica é de Michel Foucault, que a partir de suas pesquisas e cursos desenvolvidos no Collége de France em meados da década de 70, toma o conceito de biopolítica de escritos de economia e estatística dos séculos XVIII e XIX e o insere no contexto da dinâmica política moderna e contemporânea. Porém, aponte-se para o fato de que as influências de Foucault sobre o pensamento de Agamben, transcendem o conceito de biopolítica, implicando na concepção e no método do exercício do filosofar, como exercício que busca, a partir de uma perspectiva arqueológica, genealógica e paradigmática, as

1

Le questioni terminologiche sono importanti in filosofia. [...], la terminologia è il momento poetico del pensiero. AGAMBEN, Giorgio. Che cos' è un dispositivo? Roma: Editora Nottetempo, 2006, p. 05 (Tradução de Vinícius Nicastro Honesko (In) AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Editora Argos, 2009, p. 27).

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descontinuidades políticas, éticas, epistemológicas que condicionam ontologicamente a ocidentalidade na contemporaneidade. Mas - vale ressaltar uma vez mais – que influência neste caso não significa repetição ou manutenção do que outro autor já havia dito. Há muita diferença entre dizer – como o faz Foucault – que a biopolítica é um fenômeno relacionado ao nascimento do Estado moderno e, de sua racionalidade técnico-administrativa em relação ao território e a população que o compõem, reconhecendo as influências constitutivas do poder pastoral, características do exercício do poder eclesiástico presente no mundo judaico-cristão medieval, e sustentar, como o faz Agamben, que a biopolítica é intrínseca à experiência política ocidental desde seus primórdios, ou então, que ela é constitutiva da própria política ou das relações de poder político. Sendo assim, a biopolítica tem uma dimensão ontológica, enquanto para Foucault não se pode falar da biopolítica a não ser como característica da política a partir do século XVIII. Por isso também, para Agamben, a biopolítica (fazer viver e deixar morrer) se vincula à teoria da soberania (fazer matar e de deixar viver), enquanto para Foucault a teoria da soberania, mesmo que conviva historicamente com a biopolítica, se distinga claramente da biopolítica. No que concerne ao conceito de estado de exceção, vale assinalar a aproximação de Agamben com Walter Benjamin e, sobretudo, nesta discussão em específico, com Carl Schmitt, filósofo e jurista alemão (1888 – 1985), que desenvolveu intensa reflexão em torno da dinâmica política ocidental, afirmando seu caráter intrínseco de exceção, bem como seus fundamentos teológicos judaico-cristãos medievais, herdados, ou secularizados pela modernidade. Agamben assim se posiciona: O encontro com Carl Schmitt se deu, por outro lado, relativamente tarde, e teve um caráter totalmente distinto. Era evidente (...) que, se eu queria trabalhar com o direito e sobre a política, era com ele que eu devia medir-me. Como com um inimigo antes de tudo – mas a antinomia amigo-inimigo era precisamente uma das teses schmittianas que eu queria pôr em questão (ROBERTO, 2008, p. 3).

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A máquina/dispositivo política: A Biopolítica, o Estado de Exceção, a Vida Nua. Como decorrência da máquina/dispositivo antropológica que divide animalidade de humanidade, Agamben aponta e amplia sua crítica à metafísica ocidental em suas estruturas políticas presentes desde seus primórdios. A polis materializa-se sobre a fratura originária, entre animalidade e humanidade, entre voz e phone, entre physis e nomos. A vida humana sob determinadas prerrogativas, própria dos gregos, passa a ser concebida como vida qualificada politicamente e, portanto, pode ser incluída na polis. Neste sentido, a zoé é vida biológica não qualificada, e bios é a vida política como tal, como vida qualificada. Em sentido inverso, a vida concebida em sua dimensão biológica está desprovida das condições e dos direitos políticos necessários a seu ingresso na vida qualificada da comunidade política, mas mantida no espaço da “oikos”, da casa em função da necessidade de produção cotidiana das condições de sobrevivência e da reprodução da mesma. A política se apresenta então como a estrutura, em sentido próprio fundamental da metafísica ocidental, enquanto ocupa o limiar em que se realiza a articulação entre o ser vivente e o logos (AGAMBEN, 2002, p. 16).

O que está em jogo nas investigações arqueológicas e genealógicas de Agamben é a apreensão de modelos paradigmáticos na gênese e estrutura da política e da cultura ocidental, como condição de possibilidade de compreensão das formas a partir das quais a vida foi e sempre é aprisionada pela política e da centralidade que a economia assumiu na modernidade e na contemporaneidade. É a busca da compreensão de como a política, em sua condição ontológica, articula-se contemporaneamente com a racionalidade pragmática administrativo-política de gestão da vida humana em sua dimensão eminentemente biológica, caracterizando o paradigma biopolítico contemporâneo. Mas também tem sentido perguntar pelas possíveis formas-de-vida que deste contexto vêm e surgem no tempo presente: “o que est| em quest~o é a vida nua do cidadão, o novo corpo biopolítico da humanidade” (AGAMBEN, 2002, p. 17). 66

Para Agamben, a história política do Ocidente pode ser interpretada como a história do abandono, do sacrifício, mesmo que insacrificável da vida nua pelo poder soberano. É a vida que, em sua nudez biológica, passa a ser assumida pela política, fazendo-a viver ou deixando-a morrer, de acordo com os interesses geridos pelo permanente estado de exceção que a acompanha, otimizando as formas-de-vida humana para contemplar, a partir de uma lógica de produção e consumo, os interesses em jogo nas relações de poder. Desta forma, o fundamento do poder político desde seus primórdios reside sobre a vida em sua dimensão biológica, em sua característica sacrificável, submissa ao poder de morte do soberano. Aqui, mais uma vez, chamamos atenção para diferenças nas análises foucaultianas e agambenianas da biopolítica. Podemos dizer, em certo sentido, que o filósofo italiano procura desenvolver uma filosofia da história, mesmo que não seja a de uma história simplesmente progressiva, cujo fio condutor da análise são as formas-de-vida que se estabeleceram e suas relações com as estruturas políticas, teológicas e econômicas em cada contexto, o que também o leva a diferenciar-se da leitura política de Carl Schmitt. Nesta condição Agamben assim se posiciona: A dupla categorial fundamental da política ocidental não é aquela amigo-inimigo, mas vida nua-existência política, zoè-bíos, exclusão-inclusão. A política existe porque o homem é o vivente que, na linguagem, separa e opõe a si a própria vida nua e, ao mesmo tempo, se mantém em relação com ela numa exclusão inclusiva (AGAMBEN, 2002, p. 16).

Nesta perspectiva, o filósofo italiano vai buscar numa obscura figura do direito romano, o homo sacer, o modelo paradigmático de produção e justificativa da vida nua no contexto da estrutura jurídica e política do Ocidente, marcada pelo poder soberano e pelo estado de exceção. Toma como pressuposto o fato de que o termo latino “sacer” contém em si duas determinações de significado aparentemente opostas: “sagrado” e “mat|vel”. Agamben procura compreender o sentido da sacralidade da vida enquanto princípio inviolável e elemento político originário. Neste sentido, as justaposições de “sacer” indicam aquele que está fora tanto do direito humano na medida em que é sagrado, quanto do direito divino, por ser matável, sem uma justificação sacrifical. 67

En primer lugar, el homo sacer es una figura del derecho romano arcaico que Agamben retoma y vuelve a pensar modernamente, en cuanto a su función en el derecho romano es una pena, un castigo por el cual se consagra a un hombre a los dioses infernales. En esta consagración se lo está sacando del reino de la tierra, pero no se le está sacrificando, por lo que aún no ha ingresado al reino de los cielos. Como explica Émile Benveniste, la pena era aplicada por los mismos dioses en el sentido de una venganza. “Qui legem violauit, sacer esto. “Que quien viole la ley, sea sacer” [...]. Por outro lado, homo sacer será también quien haya tocado lo sacer, y esta manera debe ser desterrado de la comunidad, no se lo castiga pero tampoco se castiga aquel que lo mate (TAUB, 2008, p. 118).

Sob tais pressupostos, o homo sacer apresenta-se como habitante de uma zona de indeterminação entre vida humana e morte consagrada, demonstrando como a sacralidade é apenas a figura de uma vida nua fundante da dinâmica jurídico-política presente na gênese da civilizaç~o ocidental. “[...] o homo sacer pertence ao Deus na forma da insacrificabilidade e é incluído na comunidade na forma da matabilidade. A vida insacrificável e, todavia, matável, é a vida sacra” (AGAMBEN, 2002, p, 90). Para Agamben, que aqui e em tantos outros textos tem como parâmetro as reflexões de Carl Schmitt, o paradigma biopolítico está, como já dissemos, na gênese da civilização ocidental, nas cisões originárias que fundam a polis, que contrapõem physis e nomos. Esta concepção de biopolítica como condição paradigmática presente na estrutura originária da civilização ocidental é o que o diferencia de Foucault. E tal diferença – insistimos – faz com que Agamben não seja um mero “discípulo” ou continuador da obra de Foucault, como tantos querem. Mesmo que não nos pareça suficiente, parece válido o comentário de Baumann a este respeito: O filósofo do direito Giorgio Agamben pretende verificar, com base nas teses biopolíticas do Michel Foucault tardio, a concepção não-jurídico-institucional do biopoder e completá-la de certa forma, confrontando-a com o cerne do poder soberano – o poder sobre vida e morte. O biopoder é examinado e ampliado com fenômenos como o campo de concentração, o fugitivo, o complexo técnico-médico, mas precisamente com o 68

direito sobre eles, gerado pelo Estado. O próprio Foucault não teria mais conseguido elaborar adiante essa concepção, depois que colocou preliminarmente de lado os aspectos e as premissas jurídico-institucionais de suas análises do discurso do biopoder moderno. Agamben reivindica, portanto, ter escrito o livro que o próprio Foucault deveria ter escrito, se não tivesse, por fim, desviado da crítica da biopolítica e se devotado às questões da natureza estatal e da soberania sob o aspecto predominantemente subjetivo da “governamentalidade” (BAUMANN, 2003, p. 13).

Podemos dizer que Foucault sempre ressaltou que tudo é construção humana e que de algum modo a história é sempre uma ruptura com a natureza, enquanto Agamben alerta para o fato de que aquilo que denomina como vida nua, mesmo que seja a resultante de uma produção específica do poder e não um fato natural, nunca derrota definitivamente uma natureza humana. O humano é aquilo que participa da natureza em sua abertura constitutiva, mas paradoxalmente sua condição de humanidade implica um ser no uso complexo da linguagem e de cultura. Neste sentido, a vida nua é a resultante das articulações da política e do direito no exercício do poder soberano em constante estado de exceção que as separa de seu contexto societário, produzindo vidas destituídas de Voz, de linguagem, de cultura, vidas, reduzidas a pura biologicidade e, sob tais condições podendo ser submetidas a situações-limites de vida e de morte de acordo com os interesses e a lógica do poder em curso. O humano e o inumano são somente dois vetores no campo de força do vivente. E esse campo é integralmente histórico, se é verdade que se dá história de tudo aquilo de que se dá vida. Porém, nesse continuum vivente se podem produzir interrupções e cesuras: o “muçulmano” em Auschwitz e o testemunho que responde por ele são duas singularidades desse gênero (COSTA, 2006, p. 135).

De acordo com Agamben, na Antigüidade clássica, os gregos (e esta é uma característica desde os primórdios da civilização ocidental presente até nossos dias, a indeterminação conceitual da vida), qualificavam as formas-de-vida basicamente em dois níveis Zoe e Bios. A característica da primeira forma-de-vida, a Zoe, era o fato de procurar representar a vida em sua totalidade. Vida animal, vida 69

humana e, vida dos deuses e, mais especificamente do ponto de vista da Polis, era a vida própria dos escravos, dos comerciantes, das mulheres e das crianças em sua proximidade e vinculação com a vida biológica. Portanto, a Zoe apresentava-se como vida desqualificada na perspectiva da Polis, forma-de-vida que estava sob os cuidados do poder doméstico exercido pelo Pater. A Bios designava a forma-de-vida de um indivíduo, de um grupo; era a vida qualificada do cidadão em sua participação na dinâmica política da polis, dos debates públicos. Era assim, portadora de direitos e deveres públicos e, reconhecida nesta condição como meio para o alcance da felicidade, do bem viver. Los griegos no disponían de un término único para expresar lo que nosotros queremos decir con la palabra vida. Se servían de los términos semántica y morfolo gicamente distintos: zoé, que expresaba el simple hecho de vivir común a todos los vivientes (animales, hombres e dioses) y bíos que significaba la forma o manera de vivir propia de un individuo o de un grupo (AGAMBEN, 2001, p. 13).

Para Agamben, assim como no dispositivo antropológico, o que possibilitou ao homem romper com a natureza na qual a vida se inseria em sua condição biológica, fechada em si mesma, elevando-se à condição de humano, com a possibilidade de cindir-se uma vez mais no plano da vida humana entre zoe e bios, transformando-se num “animal político”, segundo a cl|ssica definiç~o de Aristóteles como “zôon politikòn” é a condição do ser humano possuir Voz. E, a partir desta Voz, desenvolver a linguagem que nomeia o mundo, a existência, conferindo-lhe um logos que lhe permitiu desencadear operações de pensamento, a partir do qual nomeia os entes que lhe são externos, constituindo o mundo, o sentido e a finalidade de sua existência, afirmando sua humanidade. Assim, o homem é um animal cívico, mais social do que as abelhas e os outros animais que vivem juntos. A natureza, que nada faz em vão, concedeu apenas a ele o dom da palavra, que não devemos confundir com os sons da voz. Estes são apenas a expressão de sensações agradáveis ou desagradáveis, de que os outros animais são, como nós, capazes. A natureza deu-lhes um órgão limitado a este único efeito; nós, porém, temos a mais, senão o conhecimento desenvolvido, pelo menos o sentimento 70

obscuro do bem e do mal, do útil e do nocivo, do justo e do injusto, objetos para a manifestação dos quais nos foi principalmente dado o órgão da fala. Este comércio da palavra é o laço de toda sociedade doméstica e civil (ARISTÓTELES, 2006, p. 5).

Através do domínio da linguagem, da palavra, o ser humano rompe com a vida no seu estrito âmbito biológico. Transforma-se num ser vivo dotado de linguagem, aristotelicamente como “Zôon lógon échon”, o que lhe permite a constituição da cidade, da Polis, da comunidade política, que para além da preservação da vida biológica, tem como princípio teleológico a busca do bem viver. Na verdade, o interesse comum também nos une, pois cada um aí encontra meios de viver melhor. Eis, portanto, o nosso fim principal, comum a todos e a cada um em particular, reunimonos, mesmo que seja só para pôr a vida em segurança (ARISTÓTELES, 2006, p. 53).

Porém, para Aristóteles a busca do bem viver, por parte do ser humano, não é a mera busca do viver, a partir do qual se articula a Polis; dessa forma, ele transcende o fato imediato da proteção e da segurança como condição de continuidade da vida biológica, estabelecendo uma íntima relação com a vida concebida como uma bios, como vida qualificada que se materializa no espaço político decisório das questões vitais em torno da Polis, como o locus por excelência da vida do cidadão. Espaço que busca materializar nas práticas da vida humana, a ordem, a harmonia, a beleza presente no cosmo e, na busca deste ideal ético e estético, a vida qualificada caracteriza-se por ser “(...) uma vida dedicada aos assuntos públicos e políticos” (ARENDT, 1991, p. 20), que realiza sua plenitude vital no encontro entre plurais, no confronto de opiniões e ideias em relação aos interesses da coletividade, daquilo que é público. “E é aqui que Aristóteles distingue entre a finalidade mais alta da política que consiste em um viver modalizado, o viver feliz ou bem (eu o kalòs zen), e uma finalidade inicial e de ordem inferior que é o viver simplesmente”2. 2

“Ed è qui che Aristotele distingue fra la finalità più alta della política che consiste in un vivere modalizzato, il vivere felice o bene (eu o kalòs zen), e una finalità

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Mas não é apenas para viver juntos, mas sim para bem viver juntos que se fez o Estado, sem o quê, a sociedade compreenderia os escravos e até mesmo os outros animais. Ora, não é assim. Esses seres não participam de forma alguma da felicidade pública, nem vivem conforme suas vontades. [...]. O fim da sociedade civil é, portanto, viver bem; todas as suas instituições não são senão meios para isso, e a própria Cidade é apenas uma grande comunidade de famílias e de aldeias em que a vida encontra todos estes meios de perfeição e de suficiência. É isto o que chamamos de uma vida feliz e honesta. A sociedade civil é, pois, menos uma saciedade de vida comum do que uma sociedade de honra e de virtude (ARISTÓTELES, 2006, p. 53-56).

Sob estas prerrogativas, segundo Hannah Arendt, “Aristóteles distinguia três modos de vida (bioi) que os homens podiam escolher livremente, isto é, em inteira independência das necessidades da vida biológica e das relações dela decorrentes” (ARENDT, 1991, p. 20). É na Ética a Nicômaco que encontramos as distinções entre as três bioi: [...] a vida dedicada aos prazeres (bíos apolaustikòs), a vida política (bíos politikòs), e a vida contemplativa (bíos theoretikòs). Sempre na Ética a Nicômaco, todavia, o viver, zen, é definido ‘por si mesmo como um bem e uma coisa agrad|vel’, enquanto a vida, zoe, é “bem por natureza” (1170 a-b)3.

A escolha por um destes modos de vida decorria da liberdade de que dispunham os cidadãos no exercício pleno da atividade política na polis, desvencilhados dos imperativos e das exigências do trabalho executado pelos escravos e, também, do trabalho artesanal, do iniziale e di ordine inferiore che è el vivere simplicemente” (Tradução nossa). MOSCATI, Antonella di. Zoé/Bíos. (In): BRANDIMARTE, R; STUTTEChiantera P.; VITTORIO P. Di.; MARZOCCA, O.; ROMANO, O; RUSSO, A; SIMONE A. LESSICO DI BIOPOLITICA. Roma: Manifestolibri, 2006, p. 337. 3 “[...] la vita dedita al piacere (bíos apolaustikòs), la vita política (bíos politikòs), e la vita contemplativa (bíos theoretikòs). Sempre nell‟Etica Nicomachea, tuttavia, il vivere, zen, é definito “di per sé un bene e una cosa piacevole”, mentre la vita, zoe, é “um bene per natura” (1170 a-b)” (Tradução nossa). MOSCATI, Antonella di. Zoé/Bíos. (In) BRANDIMARTE, R; STUTTE-Chiantera P.; VITTORIO P. Di.; MARZOCCA, O.; ROMANO, O; RUSSO, A; SIMONE A. LESSICO DI BIOPOLITICA, 2006. Op cit., p. 337.

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comércio que se impõem cotidianamente sobre os homens, como garantia de manutenção da vida e, consequentemente, tolhendo a liberdade de ação e de movimento na polis. Desta forma, os três modos de vida que se apresentam aos seres humanos que dispõem de liberdade teriam em comum: [...] o fato de se ocuparem do “belo”, isto é, de coisas que n~o eram necessárias nem meramente úteis: a vida voltada para os prazeres do corpo, na qual o belo é consumido tal como é dado; a vida dedicada aos assuntos da polis, na qual a excelência produz belos feitos; e a vida do filósofo, dedicada à investigação e à contemplação das coisas eternas, cuja beleza perene não pode ser causada pela interferência produtiva do homem nem alterada através do consumo humano (ARENDT, 1991, p. 21).

Através da gênese antropológica e política da civilização ocidental, Agamben confirma a tese de que desde os primórdios civilizatórios a vida se torna objeto da política, seja pela condição biológica da vida que lhe é limitante no acesso à vida qualificada na pólis, ou mesmo, em seu inverso, como vida qualificada, que se realiza no espaço por excelência da liberdade política da cidade. Esta perspectiva biopolítica se articula no decorrer da civilização ocidental, apresentando-se na modernidade a partir da precedência da vida biológica sobre a vida política. Voltando novamente à obra: A condição humana (1991), Arendt apresenta detalhadamente de que forma, a partir do Império Romano, passando pelas estruturas conceituais da cultura judaicocristã medieval, a modernidade transforma-se no locus da inversão e da ruptura com a condição ontológica da Polis grega, na medida em que a economia passa a ser determinante, elevando o trabalho e, por fim, o labor4, a condição característica e determinante da existência política das populações transformadas em sociedades de massas. Sendo assim, “[...] quase conseguimos nivelar todas as atividades humanas, reduzindo-as ao denominador comum de assegurar as 4

Hannah Arendt é contundente em seu posicionamento diante da condição moderna ao reduzir o imperativo da pragmaticidade dos processos de labor a que estão submetidas as massas humanas ao redor do planeta. “[...]. Laborar significa ser escravizado pela necessidade, escravidão está inerente às condições de vida humana” (1991, p. 94).

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coisas necessárias à vida e de produzi-las em abund}ncia” (ARENDT, 1991, p. 139). Na modernidade inaugura-se um avassalador processo de biologização da política e, na mesma medida, de politização da vida. Agamben confirma as análises que o precederam de Arendt e Foucault, de que o fato determinante na modernidade é ter tornado a vida biológica, a zoè, objeto determinante da política e não mais a bios, a vida qualificada presente no centro da antiga Pólis grega. “Ambos, en definitivo, han mostrado como la politización de la zoe, de la vida desnuda, determina una profunda modificación de los conceptos políticos de la Antigüedad” (CASTRO, 2008, p. 50). A leitura que Hannah Arendt faz ao longo de sua obra e, de forma mais específica, em A condição humana (1991), procura demonstrar como na modernidade a política, a vita activa, presente entre os gregos foi suprassumida pelo trabalho e pelo labor na sociedade de massas humanas atomizadas em processos de produção e de consumo. Tal fenômeno desdobra-se nas experiências totalitárias que o século XX vivenciou. Na obra As origens do totalitarismo III – Totalitarismo, o paroxismo do poder (1979, p.????), a filósofa alemã apresenta esta condição na seguinte formulação: Somente onde há grandes massas supérfluas que podem ser sacrificadas sem resultados desastrosos de despovoamento é que se torna viável o governo totalitário [...]. O termo massas só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização profissional ou sindicato de trabalhadores. [...] Em sua ascensão, tanto o movimento nazista da Alemanha quanto os movimentos comunistas da Europa depois de 1930 recrutaram os seus membros dentre essa massa de pessoas aparentemente indiferentes, que todos os outros partidos haviam abandonado por lhes parecerem demasiado apáticas ou estúpidas para lhes merecerem a atenção.

Por seu turno, Foucault, partindo dos conceitos de biopolítica e de biopoder, investiga de que forma os Estados nacionais modernos constituíram a racionalidade administrativo-política a partir da qual estabeleceram rigorosos processos de gestão do território, dos 74

indivíduos e da população. “Foucault, en efecto, con los conceptos de biopoder y biopolítica hace referencia al proceso por el cual, con la formación de los estados nacionales modernos, la política se hace cargo, en sus cálculos y mecanismos, de la vida biológica de los individuos y de las poblaciones” (CASTRO, 2008, p. 50). Com o advento e a especificação do capitalismo industrial, uma inédita aritmética política abala o vivente. Se a disciplina ("a anátomo-política"), para regular o modo de produção capitalista, se ocupa do corpo individual, a biopolítica é o dispositivo que aprimora, radicaliza e intensifica a sua tarefa: governa, n~o só o corpo, mas a vida biológica como tal: “{ diferença da disciplina, que atinge o corpo, esta nova técnica de poder não disciplinar se aplica à vida dos homens, ou melhor, atinge não tanto o homem-corpo, quanto o homem que vive, o homem como um ser vivo. Poderíamos dizer que, no limite, atinge o homem-espécie”. O bio-poder reproduz e administra a vida5.

Porém, o fato decisivo na leitura e na análise que Agamben faz da biopolítica, para além das interpretações de Hannah Arendt e de Foucault, é pensá-la a partir de uma matriz jurídica que relaciona direito e vida, presente desde os primórdios da ocidentalidade, manifestando-se na figura do poder soberano e do estado de exceção que se tornam regra na modernidade permitindo tomar a vida em sua nudez, em sua biologicidade desprovida de qualquer direito político. Transforma, assim, a totalidade da vida num objeto de gerenciamento por parte do Estado; otimiza as potencialidades vitais e deixa morrer, 5

Con l`avvento e la specificazione del capitalismo industriale un`inedita aritmetica politica travolge il vivente. Se la disciplina (“l`anatomo-política”), per regolare il modo di produzione capitalistico, si occupa del corpo individuale, la biopolitica è il dispositivo che ne raffina, radicalizza e sviluppa il compito: governa, cioè, non piú esclusivamente il corpo, ma la vita biologica in quanto tale: “a differenza della disciplina, che investe il corpo, questa nuova tecnica di potere non disciplinare si aplica alla vita degli uomini, o meglio, investe non tanto l`uomo-corpo, quanto l`uomo che vive, l`uomo in quanto essere vivente. Potremmo dire, al limite, che investe l`uomo-specie”. Il bio-potere riproduce e amministra la vita. (Tradução Nossa). AMATO, Pierandrea. La natura umana e il potere: La nozione de biopolítica nell`opera di Michel Foucault. (In) AMATO, Pierandrea (a cura di). LA BIOPOLITICA: Il Potere Sulla Vita e la Costituzione della Soggettività. Milano: Eterotopie Mimesis, 2004, p. 27.

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de acordo com os cálculos de custo e benefício estabelecidos pela dinâmica econômica determinante das relações vitais produtivas e de consumo. Que a vida passa a ser concebida como vida nua, submetida ao poder soberano e ao estado de exceção, significa afirmar a “estatizaç~o do biológico”. “Na politizaç~o da vida desnuda como tal, ele reconhece o acontecimento decisivo da Idade Moderna, a saber, a ‘transformaç~o radical das categorias político-filosóficas cl|ssicas’. Quando a soberania produz o corpo biopolítico da população, a vida desnuda por um lado se torna o fundamento da política ocidental” (BAUMAN, 2003, p. 13). A crítica de Agamben às formas de vida na contemporaneidade “[...] parte de una teoria de la soberanía, en donde la vida es el elemento original da la política y constituye el núcleo originário aunque oculto del poder soberano” (HEFFES, 2007, p. 9). Portanto, a perspectiva de Agamben se abre à análise do poder soberano como condição para encontrar uma zona de indiscernibilidade, de confluência entre o modelo jurídico institucionalizado e a constituição moderna de biopoder, de poder administrativo sobre a vida e a morte, estendido à condição humana em sua totalidade. É nesse contexto que se situa a afirmação de Agamben: A presente pesquisa concerne precisamente este oculto ponto de interseção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do poder. O que ela teve de registrar entre os seus prováveis resultados é precisamente que as duas análises não podem ser separadas e que a implicação da vida nua na esfera política constitui o núcleo originário [...] do poder soberano (AGAMBEN, 2002, p. 9).

Assim, Agamben formula a crítica à noção de soberania retomando a constatação do jurista alemão Carl Schmitt em sua obra “Politische Theologie”, publicada em 1922. Nesta obra, de múltiplas faces e argumentos, o jurista parte do princípio de que a exceção está no interior da estrutura jurídica: “A exceç~o n~o é trazida para dentro do direito, eis que j| se encontra nele [...]” (GRAU, 2006, p. IX). Este é o paradoxo sobre o qual se funda a soberania no Ocidente. “O paradoxo da soberania se enuncia: o soberano está ao mesmo tempo, dentro e 76

fora do ordenamento jurídico” (AGAMBEN, 2002, p. 23). Portanto, na cl|ssica definiç~o de Schmitt: “Soberano é quem decide sobre o estado de exceç~o” (SCHMITT, 2006, p. 7). Carl Schmitt, chama a atenção para o fato de que o direito e a aplicabilidade da lei não se apresentam como fins em si mesmos, mas obedecem { lógica das decisões políticas. “A ordem jurídica, como toda ordem repousa em uma decis~o e n~o em uma norma” (SCHMITT, 2006, p. 11). Este pressuposto permite ao jurista alemão ir mais longe e afirmar que a existência da norma somente é possível a partir de uma determinada decisão que justifique o sentido do ordenamento jurídico. Não há sentido e nem aplicabilidade possíveis da norma em situaç~o de caos. “[...] o direito ‘n~o possui por si nenhuma existência, mas o seu ser é a própria vida dos homens’. A decis~o soberana traça e de tanto em tanto renova este limiar de indiferença entre o externo e o interno, exclusão e inclusão, nómos e physis, em que a vida é originariamente excepcionada do direito” (AGAMBEN, 2002, p. 34). Toda norma geral exige uma configuração normal das condições de vida nas quais ela deve encontrar aplicação segundo os pressupostos legais e os quais ela submete à sua regulamentação normativa. A norma necessita de um meio homogêneo. Essa normalidade f|tica n~o é somente um “mero pressuposto” que o jurista pode ignorar. Ao contr|rio pertence { sua validade imanente. Não existe norma que seja aplicável ao caos. A ordem deve ser estabelecida para que a ordem jurídica tenha um sentido. Deve ser criada uma situação normal, e soberano é aquele que decide, definitivamente, sobre se tal situação normal é realmente dominante (SCHMITT, 2006, p. 13).

A efetivação e validade da norma dependem essencialmente da anormalidade como seu contraponto. O que significa dizer que o soberano se encontra ao mesmo tempo fora e dentro da norma jurídica, o que lhe permite decidir quando, como e onde pode vigorar o estado de direito. Ao situar-se dentro e fora do direito, é a exceção que confirma e, principalmente, condiciona a regra. “O particular ‘vigor’ da lei consiste nesta capacidade de manter-se em relação com uma exterioridade. Chamamos relação de exceção a esta forma extrema da relação que inclui alguma coisa unicamente através de sua exclus~o” (AGAMBEN, 2002, p. 26). Ou dito ainda de outro modo, “Se a exceç~o é a estrutura da soberania, a soberania não é, então nem um conceito 77

exclusivamente político, nem uma categoria exclusivamente jurídica, nem uma potência externa ao direito (Schmitt), nem a norma suprema do ordenamento jurídico (Klesen): ela é a estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a inclui em si através da própria suspensão” (AGAMBEN, 2002, p. 35). É a partir destes pressupostos sobre os quais se assenta o poder soberano que Agamben se posiciona defendendo: “[...] que la excepción es el dispositivo y la forma de la relación entre derecho y la vida (CASTRO, 2008, p. 52). A forma como nos constituímos política e juridicamente no Ocidente, remete a uma relação do direito com a vida que se caracteriza ao mesmo tempo por situações de exclusão e inclusão da vida. Cria-se assim uma zona de indiscernibilidade entre fato e direito. “A situaç~o que vem a ser criada na exceç~o, possui, portanto, este particular, o de não poder ser definida nem como uma situação de fato, nem como uma situação de direito, mas institui entre estas um paradoxal limiar de indiferença” (AGAMBEN, 2002, p. 26). Lo interesante del concepto de excepción (soberana) que Agamben resignifica y amplia desde el pensamiento de Carl Schmitt es, primero, que esta relación de excepción es positiva: la situación que crea la excepción introduce entre las situaciones de hecho y derecho un “umbral de indiferencia”- como ya mencioné – y, este umbral es el propio estado de excepción en donde se distingue lo que está adentro y lo que esta afuera. Entonces, no tiene como fin controlar un exceso (como el fundamento primigenio de la creación de esta norma jurídica) sino la de definir un espacio. Así podría pensarse este espacio como un lugar indiferente. [...] la indiferencia en si no es positiva ni negativa, sino que posibilita un actuar, un tipo de comportamiento dentro de este estado de indiferencia en las relaciones entre los hombres. [...] El estado de excepción es la manera en que modernamente se hace efectiva la violencia en manos del poder soberano y, específicamente, es el momento en que el poder soberano decide efectivizar el uso de su violencia y así confirma la excepción como estado (TAUB, 2008, p. 58-59).

Para Agamben, a modernidade caracteriza-se pelo paradoxo da soberania, na medida em que as decisões soberanas se situam num espaço de indecidibilidade e indiscernibilidade entre fato e direito, entre vida qualificada, detentora de direitos, e vida nua, desprovida de direitos e exposta à violência. O soberano tem a possibilidade de estar 78

dentro e fora da lei ao mesmo tempo. E é neste contexto que a soberania produz o corpo biopolítico da população, dispondo de sua vida e das condições de sua morte. Faz morrer, ou, deixa viver. Portanto, o paradoxo da soberania é que esta politiza a vida desnudando-a de seus direitos políticos. Situando-a numa zona de indiscernibilidade entre fato e direito, justiça e injustiça, entre vida matável ou sacrificável, vida nua e vida protegida pelas declarações universais de direito. O paradoxo da soberania se enuncia: “o soberano est|, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico”. [...] o soberano, tendo o poder legal de suspender a validade da lei, coloca-se legalmente fora da lei. Isto significa que o paradoxo pode ser formulado também deste modo: “a lei est| fora dela mesma”, ou ent~o: “eu, o soberano, que estou fora da lei, declaro que não há um fora da lei” (AGAMBEN, 2002, p. 23).

É sob estas perspectivas civilizatórias que Agamben aponta para o fato inconteste de que o estado de exceção faz parte da estrutura jurídica e política do Ocidente, desde sua gênese, até aos dias de hoje. “O significado imediatamente biopolítico do estado de exceç~o como estrutura original em que o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspens~o” (AGAMBEN, 2004, p. 14). As formas a partir das quais a vida foi potencializada e colocada em ato está na origem da dinâmica política que se move num constante estado de exceção em relação à norma, à lei e à justiça. O estado de exceção apresenta-se assim como a inclus~o/exclus~o da “vida nua”, na dimens~o puramente biológica e situando-a na centralidade dos cálculos de custo e benefício do capital, e exclui de sua dimensão cidadã, plural, portadora de direitos e deveres. Esvazia-a de sua condição qualificada que se estabelece na politicidade dos espaços públicos no encontro de pluralidades que confrontam suas visões de mundo em busca do bem viver, da felicidade, de formas-de-vida que se reconhecem porque se articulam politicamente. É, pois, neste sentido que a exceção constitui a estrutura fundamental da lei e se apresenta como o traço que melhor define o seu caráter soberano: porque expressa uma ruptura da totalidade da ordem jurídica vigente numa determinada 79

situação, e, porque nessa ruptura, a extrema necessidade do juízo coincide com o seu caráter sumário, a exceção manifesta simultaneamente quer uma potência de incluir excluindo, quer uma potência de excluir incluindo. Por isso, pôde Schmitt dizer da excepç~o que “é mais interessante do que o caso normal. O caso normal não prova nada, enquanto a exceção prova tudo. Não só prova a regra, como é a própria regra que vive só da exceção [...]” (BENTO, 2000, p. 1-19).

Agamben alerta para o fato de que o que caracteriza decisivamente a política ocidental é a presença estrutural do estado de exceção, este estado de indiscernibilidade entre a vida e a vida nua, no espaço de inclusão e exclusão, de aplicação da norma e de sua ineficácia. A intensidade desta análise questiona as clássicas definições da política como qualificação das formas-de-vida pública na perspectiva platônica e aristotélica. Ou na leitura que se realiza das prerrogativas contratualistas sobre as quais se funda a concepção do Estado moderno, alicerçado nos princípios da liberdade e da igualdade de condições e de direito. Neste sentido, operando por fraturas, cisões, inclusões e exclusões, a estrutura biopolítica manifesta-se na modernidade em várias perspectivas entre elas: a promulgação dos direitos do homem e do cidadão pela Assembléia Nacional Constituinte da França em 1789, ao mesmo tempo em que, em vários momentos posteriores, mas de forma mais específica nas primeiras décadas do século XX, durante a primeira e a segunda guerra mundiais, milhões de seres humanos viram-se destituídos de seus direitos, numa zona de anomia que permitia sua execução por parte do poder soberano. Esta estrutura biopolítica continua a manifestar-se de forma contundente na divisão entre direitos do homem e do indivíduo que se encontra cada vez mais privatizado em si mesmo, e os direitos do cidadão, na medida em que a cidadania é concebida como o dever de produzir e o direito de consumir o que for possível. Ou seja, cidadania na modernidade significa obediência à lógica da racionalidade gestora da vida e da morte em sua totalidade. São situações contemporâneas em que os indivíduos se encontram cada vez mais lançados em zonas de anomia. Por isso, tem razão Agamben em dizer: A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer contra o poder soberano como um direito humano em todos os sentidos 80

fundamental, exprime ao contrário, em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua irreparável exposição na relação de abandono (BENTO, 2000, p. 91).

Portanto, o posicionamento de Agamben em relação às formas-de-vida que se configuraram na ocidentalidade, com especial atenção à contemporaneidade, encontra seu ponto de aglutinação a partir da VIII tese da filosofia da história de Walter Benjamin, que se apresenta na seguinte formulação: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ no qual vivemos é a regra. [...]” (LÖWY, 2005, p. 83). A análise de Agamben parte do pressuposto de que vivemos em pleno estado de exceção cuja principal característica é a redução da vida a condição de vida nua, destituída de direitos, de cidadania, da condição de participar efetivamente nas decisões políticas que afetam diretamente sua condição. Sob tal ótica, as formas-de-vida que se apresentam, na contemporaneidade, reduzidas à condição de vida nua, estão submetidas à redutibilidade exclusivamente biológica de sua condição, o que permite que a vida seja objeto da política, transformando-se em biopolítica. “A defesa da vida tornou-se um lugar-comum. Todos a invocam, desde os que se ocupem de manipulação genética até os que empreendem guerras planetárias” (PELBART, 2003, p. 13). As análises agambenianas apontam em várias direções, mas duas delas parecem significativas no contexto da análise apresentada até este ponto. Independente da ordem de prioridade dos argumentos aqui apresentados, a questão é que a biopolítica se afirmou significativamente na modernidade como técnica de governo, de gestão da vida produtiva e de consumo das populações e, contemporaneamente, como conjunto de técnicas de controle biológico da espécie. Articula-se através de um biopoder, que se caracteriza num poder sem precedentes sobre formas de potencialização da vida e da morte, sobre os corpos e as mentes de milhões de seres humanos, num estado de exceção permanente. Portanto, a política moderna, transformada em biopolítica enquanto potencialização da vida, possui na tanatopolítica seu outro pólo constitutivo. Produz constantemente “vida nua”. Inclui e exclui. Incorpora e abandona sistematicamente milhares de vidas supérfluas e indesejáveis. Neste contexto, transforma todas as vidas humanas em vidas supérfluas e matáveis. 81

É sob estes pressupostos – e por mais que receba críticas por isso – que, para Agamben, o campo de concentração é o paradigma da modernidade. Foi nos campos de concentração que a vida foi despojada inteiramente de seus direitos, apresentando-se como vida nua par excellence na plenitude do estado de exceç~o. “Antes de ser o campo da morte, Auschwitz é o lugar de um experimento ainda impensado, no qual, para além da vida e da morte, o judeu se transforma em muçulmano e o homem em não-homem” (AGAMBEN, 2008, p. 60). No campo de concentração, o exercício do poder soberano como prerrogativa de deixar viver ou fazer morrer apresenta-se na plena potencialidade e em ato, na execução sumária da vida sacrificável porque é vida nua, despersonalizada, injustificada e, portanto, fora de qualquer estrutura jurídica que possa ampará-la. Primo Levi em sua obra Os afogados e os sobreviventes (2004), apresenta um relato contundente da condição da vida nua naquele contexto: Cercado pela morte, muitas vezes o deportado não era capaz de avaliar a extensão do massacre que se desenrolava sob seus olhos. O companheiro que hoje tinha trabalhado a seu lado amanhã sumia: podia estar na barraca próxima ou ter sido varrido do mundo; não havia jeito de saber. Em suma, sentia-se dominado por um enorme edifício de violência e de ameaça, mas não podia daí construir uma representação porque seus olhos estavam presos ao solo pela carência de todos os minutos. [...] Numa distância de anos, hoje se pode bem afirmar que a história dos Lager foi escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu próprio não tatearam o fundo. Quem o fez não voltou, ou então na sua capacidade de observação ficou paralisado pelo sofrimento e pela incompreensão (LEVI, 2004, p. 14).

O campo de concentração manifestou, de forma radical, o limite entre a bios e a zoe, entre o direito e o vazio do direito, entre o humano e o inumano, a partir de duas figuras paradoxais presentes no campo: a figura do Muselmann (muçulmano) como “homo sacer”, como vida nua, matável e sacrificável, e a do “Sonderkommando”, esquadrão especial composto por prisioneiros que passam a ser os encarregados pela gestão das câmaras de gás e dos fornos crematórios, recrutados pelos soldados nazistas da SS (SS, sigla que se refere a palavra alemã Schutzstaffel, que significa “Esquadr~o de Proteç~o”. Era um grupo 82

ligado ao Partido Nazista, criado em 1925). Os Sonderkommando, cuja criaç~o é considerada por Levi “o delito mais demoníaco do nacionalsocialismo”, acabavam agindo a partir da lógica do estado de exceção em tempo integral, decidindo sobre a vida e a morte dos prisioneiros do campo. Os Esquadrões Especiais eram constituídos em sua maior parte pelos judeus. Por um lado, isso não pode espantar, uma vez que o objetivo principal dos Lager era destruir os judeus e que a população de Auschwitz, a partir de 1943, era constituída por judeus numa proporção entre 90 a 95%, por outro, fica-se atônito diante deste paroxismo de perfídia e de ódio: os judeus é que deveriam pôr nos fornos os judeus, devia-se demonstrar que os judeus, sub-raça, sub-homens, se dobram a qualquer humilhação, inclusive à destruição de si mesmos. Além do mais, atestou-se que nem todos os SS aceitavam de bom grado o massacre como tarefa cotidiana; delegar às próprias vítimas uma parte do trabalho, e justamente a mais suja, devia servir (e provavelmente serviu) para aliviar algumas consciências. [...] Alguns testemunharam que aqueles desgraçados dispunham de uma grande quantidade de bebidas alcoólicas, encontrando-se permanentemente num estado de embrutecimento e de prostraç~o total. Um deles declarou: “Ao fazer este trabalho, ou se enlouquece no primeiro dia, ou ent~o se acostuma”. Mas outro disse: “Por certo, teria podido matar-me ou me deixar matar; mas eu queria sobreviver, para vingar-me e para dar testemunho. Vocês não devem acreditar que nós somos monstros: somos como vocês, só que muito mais infelizes” (LEVI, 2004, p. 44-45).

O “muçulmano” caracterizava-se na realidade dos campos de concentração como vida em pura dimensão biológica, desprovida de direitos políticos, desprovida de si mesma, de linguagem, de eticidade e, consequentemente, de dignidade. Enfim, vida nua, homo sacer, desprovido de todo e qualquer direito humano, perde sua condição de comunicabilidade e isto lhe impede de reconhecer-se como humano, fica exposto à violência pura do poder soberano que decide sobre sua vida e sua morte. “Talvez nunca, antes de Auschwitz, foram descritos com tanta eficácia o naufrágio da dignidade perante uma figura extrema do humano, e a inutilidade do respeito de si frente à absoluta degradaç~o” (AGAMBEN, 2008, p. 69). 83

Agamben aponta para o fato de que o campo é a evidência dramática da manifestação in concreto da matriz biopolítica originária presente na ocidentalidade desde seus primórdios. Por isso, o nazismo não pode ser visto, segundo o pensador italiano, como uma exceção na trajetória da civilização ocidental, mas a manifestação contundente das fraturas e das rupturas metafísicas da mesma, e sobre as quais se articula toda a estrutura política e jurídica que aprisiona a vida e a mantém em uma condição de indiscernibilidade como condição da produção de vida nua, de vida sacrificável. O campo é o espaço de realização da matriz biopolítica ocidental na medida em que é o espaço de materialização em plenitude do poder soberano e do estado de exceção sobre a qual se manifesta a violência soberana. Fixa-se assim, à revelia de toda e qualquer ordem jurídica e política na qual se constituíram os direitos humanos, destituindo os seres humanos de sua condição política originária, o momento em que a vida deixa de ser politicamente relevante e, portanto, torna-se mat|vel, sacrific|vel. “Auschwitz é exatamente o lugar em que o estado de exceção coincide, de maneira perfeita, como regra e situação extrema. Converte-se no próprio paradigma do cotidiano” (AGAMBEN, 2008, p. 57). [...] en los campos existía un orden que excluía de su condición de hombres-políticos a aquellos que allí fueron llevados. Los que estaban a cargo de los campos tomaron para si la violencia soberana porque en este contexto el poder soberano fija el momento en que la vida deja de ser políticamente relevante. Es el momento biopolítico de la modernidad por excelencia. [...] si el Führer es la ley y se dirige directamente a ellos, ellos son los portadores políticos de la ley-viviente: cada hombre era como un dios soberano, y como tal, podía decidir sobre el otro sin responder de nadie. [...] En realidad esta indeterminación acaba por radicalizar la situación normativa (no suspenderla), y es por ello que no hay comportamiento por fuera de lo que el Führer ordena (TAUB, 2008, p. 60).

Sem que aqui discutamos melhor esta incômoda afirmação de Agamben de que o campo é o paradigma de toda política contemporânea, e nao só do nacional-socialismo, podemos sustentar que o posicionamento analítico e inquiridor do autor frente às formas de vida que se constituem politicamente no Ocidente, apresenta uma 84

realidade contemporânea inquietante, senão desestabilizadora, na medida em que afirma categoricamente que: “El campo es el espacio que se abre cuando el estado de excepción empieza a convertirse en regla” (AGAMBEN, 2001, p. 38). O tempo é um tempo de produção em massa de “homines sacri”, de seres humanos lançados em uma situaç~o de anomia, de abandono, de irrecuperáveis vidas nuas, desprotegidas, matáveis e sacrificáveis de acordo com os interesses e as normas que paradoxalmente se propõem a proteger a vida e a liberdade humanas. Sob tais pressupostos pode-se dizer que o campo se reproduz cotidianamente por meio de mecanismos de controle, de vigilância a que os espaços públicos locais, nacionais e globais estão expostos. Nesta mesma perspectiva, o campo se reproduz nos espasmos de violência dos exércitos nacionais e pretensamente supranacionais, ou das polícias nacionais e globais a que se atribui o direito de intervenção em outros países em nome de uma pretensa e paradoxal defesa da liberdade, e também está presente na biopirataria em busca de material genético de florestas, animais e seres humanos. Sob estas perspectivas, o campo se manifesta em nosso dia-a-dia e, fundamentalmente, na medida da busca por segurança, mesmo que isto implique na perda da liberdade. O campo é o novo regulador oculto da inscrição da vida no ordenamento – ou, antes, o sinal da impossibilidade do sistema de funcionar sem transformar-se em uma máquina letal. É significativo que os campos surjam juntamente com as novas leis sobre cidadania e sobre a desnacionalização dos cidadãos. [...] O campo como localização deslocante é a matriz oculta da política em que ainda vivemos, que devemos aprender a reconhecer através de todas as suas metamorfoses, nas zonas d’attente de nossos aeroportos bem como em certas periferias de nossas cidades. [...] O campo, que agora se estabeleceu firmemente em seu interior, é o novo nómos biopolítico do planeta (AGAMBEN, 2002, p. 182-183).

Considerações finais A partir destes pressupostos metafísicos em que se articulam demandas políticas e jurídicas sobre a vida no Ocidente, a manifestação do poder soberano implica a existência do par inclusão/exclusão da vida e de produção de vida nua como condição 85

da vida qualificada, cabe o questionamento formulado por Emmanuel Taub: “[...] ¿habría poder soberano en la modernidad sin la posibilidad de transformar a parte de la población en homo sacer?” (TAUB, 2008, p. 141). A resposta a este questionamento, encontra-se no próprio Agamben, no livro que faz referência às discussões até aqui desenvolvidas, “Homo Sacer”: o poder soberano e a vida nua” (2002), em que o filósofo italiano afirma peremptoriamente: “Quando vida e política, divididos na origem e articulados entre si através da terra de ninguém do estado de exceção, na qual habita a vida nua, tendem a identificar-se, então toda a vida torna-se sacra e toda a política tornase exceç~o” (AGAMBEN, 2002, p. 55). Porém, outros questionamentos podem ser feitos à análise de Agamben, entre elas: Se o campo é a realidade última e permanente da estrutura político-jurídica, manifesta desde os primórdios da civilização ocidental e materializada no estado de exceção em que vivemos, o que será possível esperar das formas-de-vida que se colocarem em jogo neste contexto? Entre as várias respostas implícitas na estrutura discursiva e analítica de Agamben, serão apresentadas três possibilidades presumivelmente convergentes. A primeira está na dinâmica do próprio estado de exceção que, por ser exceção à regra, pode abrir espaços para as diversas formas-de-vida a se confrontarem na formulação de novas regras de jogo e não apenas obedecer àquelas existentes. A exceção seria assim a condição da abertura de uma exceção vital que poderia potencializar outras formas-de-vida. Uma segunda possibilidade emerge do argumento anterior, mas potencializado por uma concepção rememoradora e redentora de tempo, ou seja, na medida em que o tempo que virá não virá como promessa de futuro, mas que, escatologicamente já se faz no presente na medida em que surge das memórias, das lutas, das dores, dos sofrimentos, das alegrias do passado, articulando formas-de-vida compatíveis com o contexto do tempo presente. A terceira possibilidade, para a qual convergem as duas anteriores, relaciona-se com as formas-de-vida resultantes da potência do pensamento como condição da constante e ininterrupta abertura para o vir-a-ser, para o que virá.

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Ou seja, o posicionamento filosófico e reflexivo de Agamben, vinculado a uma ontologia da potência, remete a pensar para além da violência biopolítica constitutiva do ocidente e manifestada em toda sua potencialidade na contemporaneidade, remetendo ao resgate da condição política como modo de ser ocidental, o que pode permitir tornar a política condição e locus privilegiado da experiência do que vem a todo instante, a cada momento. E o que vem, simplesmente virá. Não virá de um futuro pré-anunciado, como horizonte de verdade gnosiológica essencial, de finalidade reservada à humanidade, mas vem a cada instante em que o qualquer um, o ser qualquer, em que a singularidade na simplicidade de suas relações, se apropria do mundo, da vida, da existência como condição do bem viver, constituindo-se assim uma nova forma-de-vida. Referências ASSMANN, Selvino José. Apresentação (In). AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução e apresentação Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo. 2007. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. ______. Medios sin fin: notas sobre la política. Traducción de Antonio Gimeno Cuspinera: Valência: Pré-textos, 2001. ______. Estado de Exceção. Tradução de Iraci Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. ______. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Tradução Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. ______. Che cos' è un dispositivo? Roma: Editora Nottetempo, 2006. (Tradução de Vinícius Nicastro Honesko (In) AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Editora Argos, 2009, p. 27-51). AMATO, Pierandrea. La natura umana e il potere: La nozione de biopolitica nell`opera di Michel Foucault. In: AMATO, Pierandrea (a cura di). LA BIOPOLITICA: Il potere sulla vita e la costituzione della soggettività. Milano: Eterotopie Mimesis, 2004, p. 15-40.

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TENDÊNCIAS DO ESTADO CONTEMPORÂNEO: PRELÚDIO À DESCENTRALIZAÇÃO A PARTIR DA FILOSOFIA POLÍTICA MODERNA Walter Marcos Knaesel Birkner Universidade do Contestado Ao sugerirmos o título acima, reconheçamos desde o início que, sendo sinônimo de inclinações, propensões ou caminhos possíveis, a express~o “tendências” tem um significado umbilical com a história, indicando movimento. Desse modo, é apropriado afirmar que aquilo que denominamos nosso “processo civilizatório”, nos termos de Norbert Elias, está a nos indicar o tempo todo os sinais dessas inclinações, as explicações sobre a morte e surgimento de costumes e instituições, e suas conformações ao longo do tempo. Não poderia isso ser diferente em relação a uma das mais importantes instituições da trajetória histórica do Ocidente, qual seja: o Estado. E, apesar do plural sugerido no título, falaremos basicamente de uma das aparentes tendências do Estado contemporâneo: a descentralização. Para tanto, tentamos apresentar o argumento a partir de uma leitura interdisciplinar que conjuga a filosofia política moderna com as ciências sociais e a história. Não obstante, para o melhor esclarecimento, é útil explicar o propósito de interpretar os movimentos de descentralização como uma tendência do Estado contemporâneo. É resultado de um interesse investigativo que remonta às primeiras investigações sobre um movimento de descentralização política que emergiu em meados da década de noventa do século XX em Santa Catarina, com o surgimento dos Fóruns de Desenvolvimento Regional Integrado - FDRI1. Eram organizações mistas que integravam representantes da sociedade civil e dos governos estadual e municipais. O propósito geral era o de encontrar alternativas ao desenvolvimento das regiões catarinenses. Naquele momento, tratava-se do arranjo sinérgico entre comunidades regionais e a esfera governamental, esta última apresentando os primeiros sinais de insuficiência da forma de administração

1

A respeito desse assunto, consultar BIRKNER, 2006; SIEBERT, 2001.

centralizada ante os efeitos da globalização e da reestruturação do Estado2. Já na primeira década do século XXI, os FDRI foram sucedidos pela política de descentralização governamental implantada com as Secretarias de Desenvolvimento Regional, em curso a partir de 2003. Desde então essa experiência tem sido objeto de acompanhamento investigativo, cujo significado, ao largo de outras experiências brasileiras e internacionais, procuramos corroborar aos argumentos que sugerem os movimentos de descentralização como uma tendência contemporânea do Estado. Para o desenvolvimento dessa idéia, precisamos considerar, sumariamente, a formação do Estado moderno. O movimento histórico que conduz à sua emergência, e que a historiografia em geral data entre os séculos XIV e XV, é marcado primeiramente por impulsos centrípetos. Assim, o Estado moderno é de modo geral o resultado de conflitos e associações entre senhores feudais na disputa por terras e ampliação territorial. No interior desse processo, o fortalecimento do poder levou à centralização, que redundou no absolutismo (ELIAS, 1993). Posteriormente, o movimento antitético ao absolutismo começa a se esboçar historicamente somente no século XVIII (SENELLART, 2006) e resulta, não sem idas e vindas, na instituição da democracia contemporânea. E, se assim podemos falar, o primeiro grande consenso em torno desta começa a ser lentamente edificado no Ocidente a partir da segunda metade do século XX. Na quadra atual, portanto, ao olharmos para as tensões e movimentos do Estado, é possível identificar inclinações descentralizadoras ocorrendo no Ocidente nos últimos sessenta anos. Contemplam, aparentemente, uma importante transição na trajetória democrática no Ocidente, revelando-se nos experimentos políticos contemporâneos, cada vez mais próximos de nós3. Nesse sentido, situemos nos primeiros anos do pós-guerra o início dessa tendência, em função dos esforços de democratização e liberdade econômica realizados no Ocidente, como também pelo compromisso internacional

2

A respeito da reestruturação do Estado, sugere-se consultar: PEREIRA; SPINK, 1998. 3 Atualmente, existem algumas experiências de descentralização em curso no Brasil, como em Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Ceará, Bahia e Pernambuco.

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a favor da paz e dos direitos humanos, cuja manifestação mais emblemática é a Declaração dos Direitos Humanos da ONU, em 1948. Na America Latina, por sua vez, o amplo processo continental de fim das experiências autoritárias, dando lugar à volta da democracia, tem redundado mais recentemente em esforços na promoção de tentativas de descentralização política e administrativa. Mais especificamente no Brasil, o ponto de partida para um longo processo em curso é a Constituição de 19884. Hobbes: homem lobo do homem e o direito à vida A fim de somar com o argumento da tendência descentralizadora, torna-se útil a recorrência à obra Do Estado soberano ao Estado das autonomias, do cientista social português Carlos Eduardo Pacheco do Amaral (1999). No entendimento desse autor, estaríamos vivendo a passagem histórica de um Estado centralizado, predominantemente hobbesiano, para um Estado descentralizado, cada vez mais regional, na trilha do liberalismo político de John Locke. Acompanhando o raciocínio de Amaral, o Estado estaria vivendo uma crise de soberania, sinalizada pelas dificuldades de governar, distribuir poder, atender demandas e promover o desenvolvimento hegemônico. Ora, essas dificuldades podemos bem admiti-las diante de certas situações. Por exemplo, quando nos defrontamos com os atuais desequilíbrios regionais no interior de um país, podemos perceber as dificuldades de o Estado contemporâneo manifestar seu poder hegemônico. Primeiramente, porque a forma mais recente de manifestação desses desequilíbrios tem a ver com a globalização desencadeada na última década do século XX. E, do ponto de vista do poder político, a principal característica desse processo é a sobreposição e influência de interesses econômicos privados sobre os desígnios do Estado-nação. Em outras palavras, essa sobreposição significou, mais do que nunca, em perda de soberania. Na mesma perspectiva dessa crise do Estado podemos identificar os problemas que os governos nacionais enfrentam relacionados à segurança pública e à violência urbana. Sobrecarregado, responsável por tentar impor a ordem através de um 4

Para uma explicação sobre isso, ler FLEURY, 2009.

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equilíbrio muito precário entre a punição, a correção e a proteção aos direitos humanos, o Estado tem diante de si uma responsabilidade por demais complexa para enfrentá-la sozinho. Isso não se difere em relação à sua dificuldade em atender as demandas pelos direitos sociais vinculadas à concepção do welfare state, que potencializou consciências coletivas incessantes na reivindicação de direitos que os indivíduos aprenderam a entender como inalienáveis de sua condição de vida. Nesse sentido, a operacionalização das políticas públicas se tornou praticamente impossível sem a descentralização do poder, ou pelo menos a sua desconcentração5. Essa situação de incapacidade de atendimento força o Estado, por diversos caminhos, a se aproximar dos indivíduos e das comunidades para governar de forma compartilhada em atendimento às demandas que não cessam. Essas demandas são, inclusive, de procedimento, portanto pautadas pelo desejo de maior autonomia política, expresso por segmentos sociais6. Não se ignore aqui, o que seria inocente, o quanto a “m~o” do Estado é necessária ante a grandeza dos problemas, principalmente esses relacionados à segurança e à assistência social. Nessa seara, alguns cenários são claramente hobbesianos. Não obstante, é no atendimento à multiplicidade dos problemas corriqueiros e cotidianos que o Estado manifesta os limites do seu alcance e eficiência. Precisa da sociedade, como precisa das regiões, embora tenha muito mais facilidades em protagonizar do que em reconhecer autonomias regionais e compartilhar poder. Assim, as experiências em curso revelam as contradições naturais entre vontades e resistências, num vai e vem histórico cujos resultados não são absolutamente seguros, mas podem sugerir tendências.

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Alguns autores questionam o termo descentralização, ao afirmarem que experiências governamentais que se anunciam nessa direção não passam de processos de desconcentração de serviços, sem que a esfera governamental efetivamente proporcione autonomia política necessária para que tais processos efetivamente descentralizem poder. Ver: FILIPPIM; ABRUCIO, 2010; BINOTO; RIBEIRO; DALLABRIDA; SIQUEIRA, 2010. 6 É importante considerar o movimento histórico de demandas emancipatórias, provocadas por Ongs e redes sociais de cidadãos críticos, consumidores exigentes e emissores de informação. Por conta das vias de comunicação e troca de informações, jamais o Mundo presenciou indivíduos tão convencidos como hoje da legitimidade de suas demandas e do direito de participar da formulação e operacionalização do atendimento a elas.

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Nesse sentido, é imperioso um esforço interpretativo desse movimento histórico no sentido de testar a hipótese aqui apresentada, qual seja a de uma tendência histórica de descentralização do Estado contemporâneo. Para isso, sugerimos que esse esforço, sem abrir mão do pretenso rigor metodológico das ciências sociais, se apóie na filosofia política moderna. Isso requer, aqui o sugerimos, uma recorrência ao jusnaturalismo, desde a justificação absolutista até a defesa da liberdade individual e das autonomias regionais7. Para tanto, apresentemos resumidamente o dorso filosofal dessa trajetória que vai da centralização do poder até a sua tendência oposta. E, ao fazermos isso, precisamos dizer mais uma vez que qualquer originalidade aparente nesta interpretação deve ser atribuída às percepções e indicações de alguns autores consultados aqui. Nessa direção, voltemos a Amaral (1999), que faz referência a três nomes da filosofia política moderna, a fim de interpretar o movimento histórico no rumo da descentralização. Em termos de teoria do Estado, o filósofo moderno a quem mais se recorre para demonstrar a justificação do Estado centralizado é Thomas Hobbes. Sobre isso, desconhecemos discordância. Trata-se de uma justificativa do Estado forte, o Leviatã, a partir de sua concepção antropológica, isto é, de um entendimento sobre a natureza humana. Como deve saber qualquer estudante de ciências sociais, filosofia ou direito, Hobbes entende que o contrato social se firma entre os homens que, reconhecendo sua incapacidade de autoorganização, abrem mão de sua liberdade. E o fazem outorgando ao Estado a tarefa exclusiva – o monopólio - do uso da violência, como ameaça ou de fato, para garantir a todos o direito natural à vida e à segurança8. Ao atribuir uma natureza malévola ou egoísta aos homens 7

De modo geral, esse esforço interpretativo sugere o encontro da história, da filosofia e das ciências sociais. 8 Para que tenhamos uma idéia de como o pressuposto hobbesiano é influente nas concepções da ordem política moderna, considere-se, por exemplo que essa idéia do sacrifício da liberdade em nome da segurança é a principal justificativa das experiências autoritárias e totalitárias. Era exatamente essa a posição de Golbery do Couto e Silva, artífice intelectual do regime militar brasileiro, ao defender uma intervenção autoritária no Brasil da década de sessenta e justificar posteriormente o golpe de 64. Mas essa posição, já encontramos nas palavras do cientista político Samuel Huntington, não por acaso consultor em três governos militares brasileiros. Huntington, como seu leitor Golbery, sustentava que pelas peculiaridades históricas do Brasil, justificava-se uma suspensão temporária das liberdades em

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[homem, lobo do homem], estava apresentada a condição de justificação do Estado soberano, ente superior único capaz de garantir ordem social. Não deve causar surpresa que essa concepção continue implícita na cultura política ocidental, mesmo no interior de ambientes institucionalmente democráticos, durante o século XX. A rigor, como admitimos anteriormente, são inúmeras as situações sociais, relacionadas à segurança e à cidadania, a solicitarem a presença soberana do Estado, sem a qual não haveria o que fazer. Rousseau: o bom selvagem e a afirmação da igualdade Não obstante, é também durante o século XX que podemos verificar a progressiva afirmação dos direitos sociais. Se no século XIX a organização do capitalismo permitiu a constituição de direitos civis, o século seguinte foi palco da emergência de direitos políticos e sociais. E, a despeito de todo o reconhecimento da práxis que resultou na materialização desses direitos, homens e mulheres lutaram em nome de valores, em nome de utopias e de certa concepção sobre o ser humano, que novamente podemos encontrar na filosofia política moderna. Esta concepção antropológica ajudou a justificar formas de organização do Estado no século XX, estabelecendo pressupostos e preceitos constitucionais nas principais democracias do Ocidente. Grande parte dessa inspiração vem da concepção de homem e de sociedade inerente ao pensamento de Jean Jacques Rousseau9. No jusnaturalismo de Hobbes, é uma concepção antropológica negativa da natureza humana que justifica a intervenção centralizadora e exclusiva do Estado em nome do direito natural à vida e à segurança. Portanto, no pacto social hobbesiano está obviamente ausente a idéia da autonomia política da vida em comunidade. A liberdade natural dos homens dá lugar ao direito à vida. Já no contrato social de Rousseau, o ponto de partida sobre a natureza humana é oposto. Se para Hobbes o homem nasce mau e a sociedade o civiliza por meio do Estado Leviatã, para Rousseau o homem nasce bom e a sociedade o corrompe. Noutras palavras, os homens nascem livres e nome da segurança que permitisse a constituição paulatina de ambiente favorável ao reestabelecimento das liberdades civis e constituição de uma democracia. 9 É, sobretudo, em Emílio ou Da Educação que encontramos a idéia do bom selvagem.

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iguais, mas a sociedade, por meio da propriedade privada, cria o conflito e a desigualdade social. Por conseqüência disso, o Estado se justifica se, e somente se, garantir as condições do restabelecimento da natureza humana do “bom selvagem”. Assim, enquanto o principal direito no Leviatã de Hobbes é a garantia à vida, no pensamento de Rousseau será o restabelecimento da igualdade entre os homens, sendo esta a express~o da vontade geral e “condiç~o natural” que garantiria inclusive a liberdade, daí a precedência da igualdade em relação à última10. Não parece difícil perceber, a partir desse entendimento, a força do pensamento rousseauniano para a constituição histórica do Estado de bem estar. Afinal, é antes de tudo o valor da igualdade o ponto de partida para a reivindicação dos direitos sociais, maior emblema do welfare state. E o welfare state é a mais emblemática das experiências do Estado ocidental no século XX. Nesse sentido, a afirmação dos direitos sociais foi mais intensa e, muitas vezes, precedeu a afirmação dos direitos políticos. Salvo exceções, esses direitos não vieram sem lutas. Mas, sendo possível reconhecer a força do discurso socialista e o seu desdobramento mais pragmático no Ocidente – a social democracia –, é mister reconhecer que a grande batalha política ocidental no século XX foi pela afirmação da igualdade, premissa mais importante do pensamento rousseauniano e única condição necessária ao restabelecimento da liberdade tolhida pela sociedade, por meio da propriedade privada. É necessário reconhecer, portanto, a importância que teve a concepção democrática de Rousseau ao fortalecimento do Estado de direito, sobretudo o Estado dos direitos sociais, materializando as condições de igualdade necessárias a fim da consecução da vontade geral. Portanto, se a condição do Estado autoritário foi justificada predominantemente em nome da segurança, a condição do Estado democrático de direitos foi e continua sendo justificada predominantemente em nome da igualdade, nesse contexto compreendida como condição sine qua non da liberdade. Há um importante consenso internacional acerca dessa premissa, conquanto

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Note-se a semelhança com o que Marx dirá mais tarde a respeito da sociedade capitalista.

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nada autorize a falar em consolidação desse ideal, ante os desafios mundiais no combate às desigualdades e à falta de liberdade11. Não obstante, útil é lembrar que o último quartel do século XX foi palco da insurgência neo-liberal de uma “nova direita”, por meio do combate aos direitos instituídos pelo welfare state. A sugestão pusilânime desses críticos do intervencionismo de bem estar foi na direção de um capitalismo anárquico neo-darwinista12. Diante de renovado cenário competitivo promovido pela globalização, e do esgotamento concomitante do welfare state, a melhor resposta estaria na menor intervenção do Estado. Assim, ao estatismo meio hobbesiano, meio rousseauniano, sucederia uma proposta de Estado mínimo nos termos de um reducionismo liberal de cunho economicista. Todavia, a crise de 2008, de modo geral entendida como resultado desse neo-darwinismo, tratou de reduzir o discurso do Estado mínimo a um movimento reacionário que pouco apresentaria de “novo” { necessidade de revitalizaç~o da competitividade e do próprio vigor de uma sociedade confortável e perigosamente acomodada sob as “asas” do Estado. A necessidade persiste, mas a resposta a ela parece carecer de um salto discursivo, a orientar a perspectiva de mudança política. Nessa direção, novas respostas estariam fora dos limites atuais do intervencionismo, mas também do Estado mínimo. Mais uma vez, é à filosofia política moderna que precisamos recorrer. Pensando numa tendência contemporânea do Estado, a saída estaria na numa espécie de revisão do contrato social capaz de engendrar um sistema político que apresente a melhor combinação possível entre “liberdade, co-responsabilidade e participaç~o” (AMARAL, 1999, p. 127). Em primeiro lugar, isso implicaria na superação do Estado centralizador e unitário, cuja conformação discursiva encontramos, como já foi dito, no Leviatã de Hobbes. Mas não é somente isso. Por extensão, implicaria também numa superação, ainda que parcial, de uma concepção rousseauniana. 11

A maioria dos Estados-nações ainda é governada por regimes despóticos e apresenta quadros de desigualdade social elevados. 12 O significado da expressão, sugerida por Amaral (1999), está relacionado às proposições em favor da competitividade do livre mercado e à intervenção mínima estatal.

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Aqui é preciso explicar o car|ter “parcial” da superaç~o desta última concepção. Se não é difícil sugerir a superação do centralismo hobbesiano, claramente oposto à idéia liberal que compõe o imaginário da democracia contemporânea, o mesmo não se pode dizer de Rousseau. No contrato social deste último, há uma defesa da coletividade, isto é, de uma vontade geral à qual as decisões do Estado devem estar submetidas. Assim, a organização social estaria assentada num acordo – o contrato social – em que os indivíduos condicionariam as suas liberdades ao bem da coletividade, em consonância com o interesse da maioria. Ora, esse interesse da maioria, expressando a vontade geral é, em suma, a epígrafe da democracia moderna. Nesses termos, o contrato de Rousseau foi inspirador às variações interpretativas e desdobramentos práticos na constituição de inúmeros Estados democráticos, a começar pela França13. Nesse sentido, sua obra é freqüentemente apresentada em oposição ao Leviatã de Hobbes. Afinal, se o contrato social deste sugere a outorga dos indivíduos ao Estado soberano, Rousseau sugere essa outorga à coletividade soberana, à qual as decisões do Estado devem estar submetidas. Enquanto Hobbes é o inspirador do absolutismo, Rousseau o é da democracia. Entretanto, há um desdobramento da concepção democrática e antropológica que Rousseau propõe, e que redunda contraditoriamente num Estado inibidor da autonomia dos indivíduos. Ora, se por natureza o ser humano é bom, mas a sociedade o corrompe, o papel do Estado seria o de reconduzi-lo à sua natureza boa. Isso se daria através do contrato social que restabeleceria as condições de igualdade entre os homens. Lembremo-nos que essa condição natural de igualdade é originariamente perdida em sociedade em função da instituição da propriedade privada. Segundo Rousseau, seria essa a fonte de toda a desigualdade e vício humanos. Nessa condição, a maioria estaria submetida e corrompida por uma minoria proprietária, que se apossa do Estado e faz as leis de acordo com seus interesses, impedindo a vontade geral. A materialização da vontade geral, portanto, só se daria através do contrato, em que a maioria dos homens entraria em consenso sobre a necessidade do 13

Rousseau é apresentado na literatura política como o maior inspirador dos ideais da Revolução Francesa.

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restabelecimento da igualdade, sendo a isto que o Estado estaria submetido. Assim, a sociedade já não seria mais a corruptora da natureza humana restaurada pelo contrato social, por sua vez resguardado pelo Estado, vigilante e defensor permanente. Haja Estado! Nessa direção, o esforço primordial do Estado estará permanentemente voltado ao estabelecimento das condições a essa igualdade. Conquanto haja razoável consenso acerca dessa necessidade, o problema é que põe em constante risco a autonomia dos indivíduos. Dependendo da variação interpretativa, esse norte orientador de pressupostos constitucionais e da formulação de políticas públicas pode conferir um peso desmedido à vontade geral, em detrimento dos direitos individuais. As conseqüências disso não inumeráveis, podendo resultar naquilo que é facilmente identificado com a crítica do conservadorismo liberal: estímulos à acomodação coletiva e desestímulos à auto-responsabilidade14. Nessa perspectiva, outro ponto importante é o que muitos chamam pelo neologismo de “vitimizaç~o” dos indivíduos. Em outras palavras, toda espécie de desvio comportamental, sobretudo dos crimes, mas também da ignorância, da falta de politização etc., tende a ser visto como efeitos de uma sociedade injusta e desigual, grande causadora de todos os males. Já que os indivíduos são naturalmente bons, seus desvios se explicam pela sociedade desigual que os corrompe. Assim, o Estado é responsável pelo cumprimento do contrato social, tendo a obrigação ética de se responsabilizar por esses desvios, proteger e assistir, no lugar de imputar responsabilidades. Nesse sentido, o Estado assume, em nome da vontade geral e da concepç~o antropológica do “bom selvagem”, uma tarefa gigantesca. Por isso, pode-se dizer que o Estado, ao tomar a si tarefas que ele poderia compactuar com a sociedade, a despolitiza. Isso é possível perceber, por exemplo, no excesso de “judicializaç~o” da sociedade contemporânea, substituindo o diálogo, a política comunitária, e reforçando o poder corporativista de certas profissões, como as do advogado e do assistente social15. Essa tendência parece se 14

Em países como o Brasil, há uma considerável indisposição entre a maioria dos intelectuais em relação a essa posição liberal-conservadora. 15 Em relação a essas profissões, pode-se inferir que o caráter rousseauniano da Constituição brasileira, de um compromisso igualitarista, preencha de justificativas

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manifestar nos sistemas prisionais, em que certos tipos de criminosos seriam beneficiados por leis inspiradas nessa concepç~o do “bom selvagem”. Na radicalizaç~o dessa perspectiva, criminosos s~o entendidos como vítimas e não contraventores da sociedade. Eles próprios tendem a assumir, de modo oportunista, esse discurso. Portanto, retira-se a responsabilidade do indivíduo, imputando-a a fatores externos, significando isso uma espécie de desumanização. A conseqüência mais incomensurável dessa concepção antropológica do bom selvagem é o fortalecimento da idéia do Estado todo poderoso, guardião dos direitos. Ele passa a ser entendido como promotor único e unitário da igualdade. Note-se que o faz em nome da igualdade e não da segurança, embora o ímpeto centrípeto seja o mesmo. Naturalmente, o aumento desse consenso justifica pressões cada vez maiores dos indivíduos sobre o Estado, o que não deixa de favorecer os inúmeros agentes estatais e seus interesses fisiológicos e corporativos, cujas funções são justificadas pela necessidade do atendimento às demandas. Assim, em nome da vontade geral, expressa nas constituições resultantes dos amplos consensos nacionais, cresce ad infinitum o aparato estatal. Governos assumem cada vez mais a tarefa de promover o bem público, retirando das sociedades regionais e locais a autonomia de resolverem problemas que o Estado assoberbado não consegue. Nessa medida, atrofia a criatividade das comunidades, matando a política na raiz. Diante da imensidão dos problemas, cada vez que se diz “O Estado tem que fazer”, foge-se da pergunta sobre “quais os limites desse Estado bem feitor?”. Em meio a esse quadro de unitarismo estatal, em que o centralismo absolutista hobbesiano é substituído pelo centralismo democrático de Rousseau, ou os indivíduos se tornam voluntariamente reféns de uma espécie assombrosa de totalitarismo da vontade geral, ou o Estado se ramifica na sociedade, por meio de novas instâncias intermediárias, locais e regionais. Nessa direção, não se trataria mais da “proteç~o atomizada dos indivíduos isolados e abstratos” garantida pela soberania do Estado centralizado, mas da consideraç~o “das pessoas reais e situadas na pluralidade comunitária, contexto no qual imprimem significado às suas vidas” (AMARAL, 1999, p. 128).

a necessidade dessas profissões, em defesa dos indivíduos ante uma sociedade desigual e injusta.

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Locke: o direito à liberdade em comunidade Essa resposta ao centralismo significa, portanto, a característica e o resultado cumulativo de um processo de mudança política em curso em vários lugares do Ocidente. Significa uma tendência do Estado contemporâneo de perda de unidade de poder para uma difusão territorial em novas unidades intermediárias (Ibidem, 131), como também no fortalecimento das unidades federativas16. Na filosofia política moderna, essa superação do centralismo absolutista de Hobbes e do centralismo democrático de Rousseau, podemos encontrar no liberalismo de John Locke (Ibidem, 135). A tendência descentralizadora do Estado contemporâneo que insistentemente sugerimos encontra, nos textos do filósofo inglês, um aporte discursivo importante, embora não exclusivo17. Não se encontra ali a alienação dos indivíduos a um ente exterior único, seja ele o Estado, seja a coletividade. Ao contrário, os indivíduos são portadores de direitos intransferíveis, sendo estes a vida, a liberdade e a propriedade. O Estado existe como convenção dos indivíduos, que o concebem para a garantia desses direitos. É para isso que os homens criaram governos. Se, todavia, esses direitos não fossem respeitados, os homens teriam todo o direito de se rebelar contra o governo injusto e rejeitar suas imposições. Na filosofia de Locke, o Estado tem suas funções específicas, sobretudo administrativas, mas não chega a ser um ente soberano, de poderes exclusivos. Tampouco, a coletividade dos indivíduos, constituinte da vontade geral, pode sê-lo, em sobreposição aos indivíduos autônomos. Nessa concepção, ao homem está resguardada e imputada a condição autônoma de responsabilidade pelos seus atos, vida e posses. Não compete ao Estado a intromissão, seja em nome do que ou de quem for, penetrar no “núcleo privativo dos direitos e 16

No Brasil, existem algumas experiências de descentralização política e ou administrativa em curso. Não obstante, aparecem na mídia e na bibliografia da ciência política reivindicações ou indicações sobre a necessidade de um pacto federativo entre União, estados e municípios, na direção de maior autonomia das instâncias federativas sub-nacionais. 17 É também na obra de Alexis de Tocqueville, Democracia na América, que encontramos importantes elementos constitutivos para uma defesa de governos descentralizados.

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liberdades naturais e originárias da condição pré-política do homem” (Ibidem, seq. & Locke, 2007, p. 68-97). Cabe, ao contrário, que o Estado garanta as condições públicas ao exercício desses direitos. Nessa perspectiva, não é o poder político que age o tempo todo, nas mais variadas situações, em nome dos direitos naturais. Passa a ser o indivíduo, na assunção da sua autonomia e responsabilidade, que age em comunidade, estabelecendo os acordos mútuos para a vida política. Essa confiança na capacidade dos indivíduos, sugerida no liberalismo de Locke, dispensa o grande e centralizado aparato jurídico. É este o real significado do Estado mínimo: o Estado de confiança nos indivíduos em coletividade. Aquele cuja fortaleza está justamente apoiada na autonomia das comunidades, facilitando a tarefa do Estado. Nessa perspectiva antropológica, o indivíduo não é simplesmente o ser atomizado e portador de direitos. Ele é o agente desses direitos, única condição de garanti-los. Agora sim estamos falando do sujeito político, condição resultante de sua liberdade compactuada na comunidade, diante da qual é também responsável, não apenas reflexo passivo. E, ao Estado, modo geral, é incumbência garantir essa liberdade auto-refletida. Sua tarefa agora já não parece tão grande. A concepção antropológica de Locke confere ao homem a tarefa geral de cuidar da sua vida, das suas posses e administrar a sua liberdade em coletividade. E é justamente essa condição que aproxima a sua perspectiva de uma ordem política baseada na autonomia dos locais e regiões. Invocando Locke, mas também Tocqueville, Amaral aponta para um nível intermediário entre o poder pessoal e o poder do Estado, chamando a isso de poder civil local. Assim, de poder único, o Estado passa a contar com mais duas entidades civis: as pessoas e as autarquias, cada qual com suas atribuições e limites, não podendo uma interferir noutra, salvo sob circunstâncias de consenso que o requeiram (AMARAL, 1999, p. 142 & Locke, 2007, Segundo opúsculo). Nesse sentido, o liberalismo de Locke ganha contorno contemporâneo, servindo de aporte reflexivo às abordagens favoráveis à regionalização e à descentralização do poder. Mas isso só é possível afirmar na medida em que, no liberalismo de John Locke, o indivíduo claramente antecede o Estado, sendo este sua concessão. Por extensão, assim como o indivíduo, também os municípios e as regiões o 103

antecedem. Desse modo, advoga Amaral, “tal como {s pessoas individuais, também às pessoas coletivas (municípios e regiões) corresponde uma esfera de privacidade, de direitos e de liberdades próprios e inalienáveis, e todo um âmbito de atividades e de funções, na prossecução e na gestão das suas vidas próprias e dos seus interesses específicos”. Nesse }mbito, continua o autor, “n~o é legitima qualquer interferência por parte do Estado” (AMARAL, 1999, p. 141). Desta feita, corresponde aos municípios e às regiões um poder semelhante ao núcleo de direitos e liberdades naturais dos indivíduos. Por conseqüência, a descentralização do poder e sua regionalização aproximam o Estado das comunidades regionais. Nesse processo, a criação de entidades intermediárias ajuda na governança por meio da instituição de funções auxiliares. Entre outras vantagens, essa aproximação tende a combater vícios favorecidos pela centralização, como é o caso do patrimonialismo. E, ao contrário do que pregam os defensores mais centralistas do Estado, amplia laços de confiança entre governo e sociedade, fortalecendo e legitimando o poder político estatal ao invés de enfraquecê-lo18. Assim, o regionalismo e a descentralização apontam para a própria afirmação do federalismo como tendência de uma mudança histórica no republicanismo do Estado contemporâneo. Incentivar e atribuir poder político e administrativo às regiões significa, não obstante, potencializar a cultura, as formas de identidade, o diálogo, a solidariedade e a cooperação, com desdobramentos positivos ao desenvolvimento regional. Segundo Amaral, essa tendência representaria a própria “reaç~o ao positivismo da Modernidade” – aquele que anula as diferenças em nome de um grande e único projeto civilizatório, que todos teriam de seguir (Ibidem, p. 180). A descentralização em Santa Catarina: estudo de um caso concreto A explanação precedente tem um significado prático, como dissemos no início: deve facilitar a análise de processos políticos 18

Nessa perspectiva das instâncias intermediárias de governança, a descentralização e a regionalização significam algo diferente da relação que Rousseau, no Contrato Social, sugere entre o Estado e os indivíduos, dispensando as intermediações em nome do seu assembleísmo.

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contemporâneos que sinalizam para impulsos centrífugos. Nesse sentido, torna-se oportuna a apresentação de alguns resultados de uma pesquisa de avaliação institucional sobre uma experiência em curso, que é o processo de descentralização político-administrativo no estado de Santa Catarina. A intenção é comparar as conjeturas relacionadas à descentralização e regionalização políticas com os resultados de uma pesquisa empírica sobre um processo real cujos desígnios convergem de modo geral com o exposto anteriormente. A pesquisa foi realizada durante o ano de 2009 com o objetivo geral de avaliar os pontos fortes, fracos, as ameaças e oportunidades. Ao todo, 432 pessoas, integrantes do processo, responderam questionários ou foram entrevistadas19. Em 2003, o estado de Santa Catarina instituiu, através de uma política de governo, as Secretarias de Desenvolvimento Regional – SDR e seus respectivos Conselhos de Desenvolvimento Regional – CDR20. Tais secretarias estão localizadas em cidades sedes de microrregiões catarinenses. Como também dissemos no início, essa política governamental de descentralização foi precedida pela experiência dos Fóruns de Desenvolvimento Regional Integrado, cujo propósito geral de promoção do desenvolvimento regional era o mesmo das SDR, o que permite falar num movimento centrífugo que remonta a meados da década de noventa do século XX, quando estes FDRI começaram a surgir21. As SDR e seus CDR são vinculados à Diretoria de Descentralização da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão. No seu organograma regional as SDR são compostas por um secretário, com staff de primeiro escalão, de um diretor geral e de gerentes de áreas. Sua principal incumbência é operacionalizar os 19

A pesquisa gerou um relatório de noventa páginas, com gráficos demonstrativos relacionados aos percentuais das respostas, que foi entregue à Diretoria de Descentralização da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de Santa Catarina. 20 As SDR foram criadas no governo de Luiz Henrique da Silveira, da coalisão PMDB-PSDB-DEM. Seu número inicial foi de 29 secretarias, depois atingindo o total de 36. 21 A criação das SDR acabou se sobrepondo aos FDRI que, criados pelo voluntarismo da sociedade civil regional, continham uma característica de tipo top down. Apesar disso, o processo de descentralização e regionalização continuou, não se podendo falar de um caso típico de solução de continuidade.

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recursos vindos do governo estadual, assim como as decisões tomadas nos CDR. Por sua vez, os CDR são compostos pelo presidente [o próprio secretário regional], prefeitos, presidentes dos legislativos municipais e dois representantes da sociedade civil de cada município. A principal tarefa nessa instância consiste em acolher as demandas municipais e intermunicipais, avaliar sua viabilidade, aprovar ou reprová-las, e encaminhá-las à SDR. A avaliação geral do processo por parte dos integrantes foi considerada positiva durante o período de 2003 a 2009. Pela maioria dos respondentes, a descentralização é considerada uma inovação na forma de administrar a coisa pública e atender às demandas regionais. Sobretudo, fica evidente nas manifestações de grande parte dos integrantes o fato de a descentralização ter o sentido de atender a aspirações naturais das comunidades regionais. Conquanto as insuficiências sejam apontadas, a opinião majoritária é de reconhecimento sobre as mudanças e expectativas que o processo gerou. Nessa direção, a resposta mais emblemática e bastante manifestada nos depoimentos é de que, com todas as idas e vindas, a descentralização é dada como irreversível. Veja-se abaixo, os principais pontos fortes apontados, isto é, aqueles que obtiveram maior regularidade nas respostas sobre a avaliação da descentralização: - Amplificou, via reuniões mensais do CDR, o ambiente do diálogo regional; - Promoveu transparência ao submeter os projetos locais à apreciação dos conselheiros, inibindo a formulação de demandas de duvidoso interesse público; - Estimulou a solidariedade e o senso de identidade micro-regional; - Aumentou o conhecimento e a criatividade regionais com a troca de experiências intermunicipais; - Promoveu a proximidade entre comunidade regional e governo estadual, aumentando o diálogo e diminuindo despesas; - Melhorou o tratamento aos municípios menores, contemplando demandas e diminuindo a desigualdade. Na seqüência, apresentam-se os principais pontos fracos mencionados pelos inquiridos. Veja-se: - Falta autonomia orçamentária e financeira aos CDR; - Por decorrência, diminui o caráter político do processo; 106

- Falta qualificação técnica e teórica dos operadores, sendo que a reclamação pesa principalmente sobre os que ocupam cargos indicados, mas também sobre os conselheiros. - Há excesso de burocracia, pela existência dos trâmites burocráticos que continuam passando pela administração centralizada. Considerações finais Pelo que apresentam as respostas da avaliação institucional, pode-se verificar a convergência de alguns apontamentos dos inquiridos com os pressupostos sugeridos anteriormente, baseados no liberalismo de John Locke e na apreciação feita por Amaral. Tanto na avaliação geral, quanto nos pontos fortes sugeridos em relação à descentralização, pressupostos gerais encontrados na filosofia política moderna se confirmam nas opiniões de agentes do processo investigado. É nessa condição que encontramos opiniões sobre a amplificação do diálogo regional, de maior transparência sobre as decisões, na comparação com períodos precedentes de concentração. Na mesma direção, inúmeros respondentes entendem que a descentralização estimula a solidariedade, reforça o senso de identidade regional, aumenta o conhecimento intrarregional, como amplia a criatividade por conta da troca de experiências intermunicipais. Além disso, confirmam os depoentes, a descentralização aproxima a governo estadual dos municípios, principalmente os mais distantes da capital. E, por fim, favorece os municípios menores, combatendo a desigualdade regional. Entre as quatro principais fragilidades apontadas pelos inquiridos, da mesma forma fica evidente que os operadores do processo estão cientes do que o processo requer para o seu aperfeiçoamento. O primeiro ponto diz respeito à falta de autonomia orçamentária e, por conseqüência, decisória dos Conselhos de Desenvolvimento Regional, cujo principal desígnio é justamente o seu caráter político. É que a liberação dos recursos continua na dependência das secretarias setoriais de estado, centralizadas no governo estadual. Daí que a insuficiência do papel político dos CDR, reclamadas pelos inquiridos, é tão somente conseqüência deste primeiro ponto. Tão importante quanto isso é a reclamação também generalizada quanto à falta de qualificação técnica como também 107

teórica de muitos integrantes - esta última no sentido da compreensão dos operadores sobre o significado político e histórico do processo. E, por último, aparece a reclamação sobre os excessos de burocracia. Trata-se de fenômeno inibidor à inovação, algo que a política de descentralização se propõe a combater, mas que enfrenta a resistência de um corpo burocrático conservador, que vê na descentralização uma perda de poder. De maneira geral, os pontos fortes e fracos enunciados revelam, sobretudo, a consciência dos operadores sobre a situação geral dessa política, como também tende a revelar expectativas e boa vontade. Afinal, na medida em que o processo funciona, se revela o atendimento ao anseio de comunidades regionais que sempre reclamaram maior autonomia. Mais do que satisfação, o processo de descentralização gerou expectativas nessa direção. Porquanto se mostre insuficiente, pelos conflitos que naturalmente suscita, a descentralização permite a compreensão de que mudanças são possíveis tanto quanto desejadas, gerando, repita-se, expectativas acerca delas. Além de tudo, a mudança política abre espaço para novas lideranças, cuja ambição é um importante combustível à superação dos obstáculos. Mas requer uma disposição governamental que parece nunca estar garantida, sobretudo nas trocas de governantes. E requer, igualmente, um processo de sensibilização permanente. Entre tudo o que se observa até aqui, pode-se supor que, uma vez detonado, o processo de descentralização criou insatisfações e aspirações crescentes e incontidas. Isso posto, torna-se necessário investigar, continuadamente, as possibilidades do caráter irreversível sugerido pela maioria dos operadores inquiridos na pesquisa. Finalmente, cabe lembrar que o propósito do exposto foi abrir perspectivas interpretativas acerca do fenômeno contemporâneo da descentralização, que entendemos aqui como uma tendência política na conformação histórica dos Estados democráticos. E a forma de fazê-lo foi a partir de um aporte na filosofia política moderna que permita justamente compreender a trajetória histórica do Estado moderno. Não estamos propondo isso por mero idealismo epistemológico, no sentido de que os próximos passos políticos requeiram as luzes da filosofia. É importante lembrar que o recurso à filosofia não signifique algo além do vôo da coruja. Noutras palavras, que ela ajude as ciências sociais a compreender o que se passa no 108

longo tempo, sendo isto o suficiente. Assim, a utilização da filosofia política como prelúdio à interpretação de um caso real em curso significa também o esforço do diálogo interdisciplinar. Em outras palavras, significa a possibilidade de uma interpretação do longo tempo, proporcionada pelo recurso à filosofia e também à história, com a interpretação contemporânea e muitas vezes pontual dos estudos empíricos das ciências sociais. Referências AMARAL, C. E. P. do. Do Estado soberano ao Estado das autonomias. Blumenau: Furb, 1999. ARON, R.. Etapas do pensamento sociológico. BINOTTO, E.; RIBEIRO, E. S.; DALLABRIDA, V. R.; SIQUEIRA, E. S. Descentralização político-administrativa: o caso de uma secretaria de estado. In: Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional, vol. 6, p. 186-213, 2010. BIRKNER, W. M. K. Capital social em Santa Catarina: a experiência dos Fóruns de Desenvolvimento Regional Integrado. Blumenau: Furb, 2006. BIRKNER, W. M. K.; TOMIO. F. R. L.; BAZZANELLA, S. L. A descentralização em Santa Catarina. In: Revista de Administração Municipal. vol. 275, out-dez/2010, p. 66-85. BIRKNER. W. M K.; BOELL, A.; RUDNICK, L. T. Secretarias de Desenvolvimento Regional de SC: avaliação parcial: período 2007-8. In: Revista Humus. vol. 02, abril/2011, p. 53-72. ELIAS, N. O processo civilizatório: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. _____. O processo civilizatório: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. FILIPPIM, E. S.; ABRUCIO, F. L.. Quando descentralizar é concentrar poder: o papel do governo estadual na experiência catarinense. In: Revista RAC, vol.14, n.2, p. 212-28, mar/abr de 2010. FLEURY, S. (Org.). Democracia, descentralização e desenvolvimento: Brasil e Espanha. Rio de Janeiro: FGV, 2006. 109

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TRANSFORMAÇÃO POLÍTICA: DO DELIBERATIVO AO AGONÍSTICO Armindo José Longhi Universidade Estadual do Paraná Universidade do Contestado Cada qual considera claras as ideias que estão no mesmo grau de confusão que as suas (Marcel Proust)

Introdução Na contemporaneidade percebe-se um fenômeno significativo na política: crescente desinteresse dos indivíduos pela política, principalmente por parte do grupo composto pelos jovens. Como explicar? Para responder é necessário é pesquisar as múltiplas questões envolvidas na relação estabelecida entre o indivíduo, aprendizagem, formação política e prática política contemporânea. Refletir sobre esta relação implica em pensar o processo de aprendizagem presente na formação política do cidadão. A preocupação volta-se para uma tarefa ambiciosa, ou seja, enquadrar teoricamente um problema incomensurável: descrever o processo de aprendizagem presente na formação política dos cidadãos. Da questão norteadora se seguem outras: quais são as condições em que ocorre a identificação do sujeito com a prática política? Por que é lugar comum interpretar que os jovens não se interessam por política? O individualismo hoje dominante oculta do cidadão a possibilidade de se identificar com projetos políticos? Explicar as múltiplas causas implicadas na participação política é processo complexo. Encontramos diversos teóricos políticos preocupados com o desenvolvimento de modelos políticos contemporâneos mais democráticos, novas propostas de participação e novas teorias que, quando aplicadas na sociedade, pretendem dar conta do problema do desinteresse pela política. As possibilidades apontadas pelas teorias pretendem devolver ao indivíduo o interesse pela participação na política, por meio da associação com indivíduos ou grupos sociais.

Entre as novas teorias citamos duas propostas. A primeira, o modelo deliberativo, possui como principal representante Jürgen Habermas quando propõem um modelo político baseado nas relações intersubjetivas que se concretizariam na relação dialógica entre indivíduos com os mesmos direitos e valores. O modelo proposto por Habermas afasta as manifestações coercitivas dos pólos de disputas dialógicas no campo social quando o indivíduo busca o consenso entre diferentes alternativas. Segundo a proposta, o diálogo criaria laços entre os indivíduos, afastando-os da consciência fechada sobre si mesma (solipsista) que permanece presente desde o início da modernidade e que já não serviria mais para a esfera política das sociedades complexas. A segunda proposta, o modelo agonístico, busca encontrar no próprio indivíduo, na condiç~o ontológica de “o político”, os elementos que definem o cidadão pelas suas características intrínsecas, utilizado, por exemplo, a psicanálise, para identificar e entender o caráter político presente nas relações de poder, encontradas na natureza do indivíduo. Partindo das novas descobertas psicanalistas, utiliza estes novos conhecimentos para criar um modelo de política democrática vibrante, com indivíduos dispostos a defender seu grupo de identificação, conscientes da importância de suas propostas para a transformação da sociedade e, ao mesmo tempo, respeitam os valores dos adversários mediante regras pré-estabelecidas, e assim desenvolvem um novo interesse político baseado na identificação com um grupo em uma sociedade pluralista. Como decorrência dos dois modelos, encontramos modelos políticos com diferentes preocupações quanto aos problemas enfrentados pelas sociedades democráticas contemporâneas. Estes modelos políticos divergem tanto sobre a forma dos indivíduos atuarem na sociedade quanto a forma de desenvolver no indivíduo um caráter político vibrante e participativo. O modelo deliberativo e o agonístico são modelos políticos divergentes entre si. O primeiro modelo é representado pelos teóricos liberais, tanto os liberais de caráter agregativo quanto os de caráter deliberativo. Deste último grupo faz parte Jürgen Habermas. Segundo Mouffe (2007), tanto o modelo liberal quanto o agregativo anulam o verdadeiro car|ter de “o político”.

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Ateremo-nos em apresentar as críticas de Mouffe dirigidas as teorias liberais, em especial ao modelo deliberativo proposto por Habermas. O objetivo da apropriação é justificar a hipótese de que o modelo liberal deliberativo produz o afastamento dos jovens da política exatamente quando propõem a criação de novas perspectivas de políticas democráticas. Sociedade Democrática A história do ocidente registra inúmeras experiências democráticas nos últimos 25 séculos. Ocorreram avanços e retrocessos. As relações entre a sociedade antiga com a nova produziram mudanças típicas em cada evento. Em cada experiência histórica a mudança foi marcada predominantemente pela recusa do velho, pela substituiu de partes do passado, pela incorporação do velho no novo ou pela superação do artigo. Dada a riqueza da experiência histórica das sociedades democráticas do ocidente, a noção de sociedade democrática torna-se uma representação extremamente complexa e diversa. A expressão ‘sociedade democr|tica’ reúne dois conceitos que individualmente s~o polissêmicos. Ao unir os conceitos de ‘sociedade’ e de ‘democracia’ para se referir a diversidade de organização política vividas pelas diversas sociedades, as sociedades complexas do mundo ocidental contemporâneo produziu um conceito ainda mais intrincado. De forma equivocada, o pensamento político liberal percebe as expressões ‘sociedade democr|tica’ e ‘política liberal’ como faces da mesma moeda. Sobre esta compreensão duvidosa é necessário fazer uma observação bastante óbvia. O que o ocidente entende por sociedade democrática enquanto organização política é muito mais ampla do que pretende o discurso político liberal ao sugerir equivalência entre ‘pensamento liberal’ e ‘sociedade democr|tica’. De um modo geral podemos expressar como liberalismo político a forma política na qual os indivíduos são livres para perseguir seus objetivos pessoais, os indivíduos estão seguros do direito de usufruir dos resultados do seu trabalho e os indivíduos crêem que a justiça os tratará de forma isonômica e imparcial mantendo intactos seus direitos individuais.

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Sob certos aspectos o pensamento político liberal é oposto ao pensamento político republicano. Para o pensamento republicano, na vertente da perspectiva proposta por Maquiavel, a formulação da lei só deve limitar a ação dos indivíduos e estabelecer garantias para os mesmo. Jamais poderia ser um produto da política e, ao mesmo tempo, um estímulo de exercício da política (ABREU, 2008, p. 180). O pensamento político liberal comunga num ponto com o pensamento político republicano: ambos excluem da dinâmica política o fenômeno do conflito. Os resultados da pesquisa permitem argumentar num caminho contrário. A boa sociedade democrática é aquela que incorpora o conflito e considera o modelo político baseado em adversários como não obsoleto. As noções políticas derivadas das concepções políticas liberais possuem uma visão otimista do presente e do futuro, imaginam um mundo livre, globalizado e sem a existência de inimigos por que todos foram eliminados do cenário político. A perspectiva liberal divulga a idéia de que com o desenrolar econômico-político a atualidade representa o progresso da própria evolução da humanidade, como uma ‘segunda modernidade’, onde os indivíduos livres podem dedicar-se a uma diversidade infinita de estilos de vida. Os liberais acreditam na ‘democratizaç~o da democracia’ e nas noções de ‘democracia livre de partidos’ por n~o mais existir o conflito ideológico, ‘democracia dialógica’ baseada no diálogo racional ou ‘democracia cosmopolita’ nos moldes da ONU (Organizaç~o das Nações Unidas). Tais crenças (MOUFFE, 2005) são a causa de muitos problemas enfrentados pelas instituições democráticas na atualidade, ao negarem ou desconhecerem a dimensão antagônica constitutiva do político. A negação do conflito, tanto na teoria quanto na prática política, implica em riscos políticos. A despolitização das novas gerações é só um deles. Os teóricos liberais (HABERMAS, 2011) defendem uma concepção de política democrática que seja capaz de atingir consensos e reconciliações, e acreditam na existência de um mundo onde se tenha superado a discriminaç~o ‘Nós/Eles’. Ao anular as relações conflituosas, os liberais excluem a verdadeira tarefa da política democrática. Autores defendem que o papel específico e próprio dos teóricos políticos consiste em criar uma “esfera pública vibrante onde muitas visões conflitantes podem se expressar e onde a possibilidade 114

de escolha entre projetos alternativos é legítimo” (MOUFFE, 2003, p. 11). Criar uma esfera pública vibrante seria a forma adequada de controlar o antagônico sem eliminar as características constituintes do político e, conseqüentemente, da própria política derivada da natureza do político. Mouffe defende o modelo político democrático do pluralismo agonístico por acreditar que a identidade é formado quando o indivíduo se identifica com um grupo. A identificação com o grupo possibilita deferentes alternativas em oposição a outros grupos. O binômio Nós/Eles possui um caráter social antagônico derivado das características intrínsecas de ‘o político’. É justamente o car|ter conflituoso que possibilita a existência de uma esfera política vibrante no debate político e é a própria condição de constituição de uma democracia legítima. Conceito de ‘a política’ e de ‘o político’ Na esteira do vocabul|rio heideggeriano, ‘o político’ refere-se ao nível ontológico, ou seja, “uma atitude tal em relaç~o ao ente que o deixe ser em si mesmo, no que é e como é” (HEIDEGGER apud ABBAGNANO, p. 848). No nível ontológico o espaço político é entendido como “o modo próprio no qual se constituí a sociedade” (MOUFFE, 2007, p. 16). O modo próprio constitutivo das sociedades democráticas é o conflito. No nível ôntico, o espaço da política pode ser conceituado como o “conjunto de pr|ticas e instituições através da qual se cria uma determinada ordem organizando a coexistência humana no contexto dos conflitos derivados ‘do político’” (MOUFFE, 2007, p. 16). Assim, a natureza conflituosa da política é o objeto acerca do qual a política democrática deve partir com a finalidade de impedir o conflito deliberado. Da práxis da vida em sociedade deve emergir a política democrática. Quanto mais próxima da práxis humana mais imanente será a política democrática. Para defender esta posição é necessário recuperar a argumentação de Chantal Mouffe. Ao invés de aceitar a relação Nós/Eles como o ponto de conflito gerador de uma consciência radical entre amigo e inimigo, Mouffe propõem um modo diferente de

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estabelecer esta oposição na relação Nós/Eles. Tal relação permite reconhecer o pluralismo constitutivo da democracia moderna. Para elevar a relação Nós/Eles para um patamar superior, superando a interpretação de Carl Schmitt, Mouffe (2007, p. 22) utiliza dois elementos: a noção de exterioridade constitutiva e o fenômeno das massas. 1º Elemento: exterioridade constitutiva. Utiliza a noção de ‘exterioridade constitutiva’ para destacar o fato de que a identificaç~o política implica em estabelecer a diferença presente na relação Nós/Eles. Assim, considerando que toda identificação é relacional e a diferença é precondiç~o de tal identificaç~o, a noç~o de ‘exterioridade constitutiva’ indica que a percepç~o do ‘outro’ é o que constituí a ‘exterioridade’. A noç~o de ‘exterioridade constitutiva’ coloca Mouffe numa posição mais adequada para rever a argumentação de Carl Schmitt. A formação da identidade política a partir da relação Nós/Eles deve admitir a possibilidade sempre presente do conflito. O desafio para a política contemporânea é estabelecer uma interpretação para a relação Nós/Eles que seja capaz de inibir o surgimento do antagonismo sem cair na ilusão de erradicar o conflito por que ele está sempre presente no espaço político, ou seja, o conflito político é a nossa condição ontológica. Sobre a condição ontológica do conflito Mouffe afirma que: [...] deve existir algum vínculo em comum entre as partes em conflito, de maneira que não tratem seus oponentes como inimigos a ser erradicados, como ocorre com a relação antagônica amigo/inimigo. Também não podem considerá-los como competidores cujos interesses podem ser tratados como uma mera negociação ou reconciliar-se através da deliberação, por que neste caso o elemento antagônico seria eliminado, e assim negar-se-ia o político. Podemos dizer que a tarefa da democracia é transformar o antagonismo em agonismo (2007, p. 27).

Para superar o antagonismo sem excluir o conflito, Mouffe propõe a teoria agonística por dois motivos: a) a teoria agonística aceita o pluralismo como elemento constitutivo da democracia moderna e b) aceitando o pluralismo democrático é possível encontrar

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o vínculo comum entre as partes em conflito, superando a relação antagônica ‘amigo/inimigo’ proposta por Schmitt. 2º Elemento: fenômeno das massas. O conceito do ‘fenômeno das massas’ foi desenvolvido por Elias Canetti. Mouffe utiliza este elemento para explicitar o duplo mecanismo de afastamento e atração exercido pela massa sobre o indivíduo. Atribui a este mecanismo os diferentes impulsos que movem os atores nas práticas sociais. Por um lado o indivíduo possui o impulso para a individualidade que o diferencia dos demais. Por outro, existe um impulso que leva os atores sociais a desejarem a fusão com a massa. Para Mouffe (2007, p. 30-31) o impulso para a fusão com a massa é a parte integrante da estrutura psicológica dos seres humanos. Negar esta tendência é o que torna o enfoque racionalista incapaz de aceitar a paixão (afeto) como produtora do sentido da ação no momento em que o cidadão adere aos movimentos políticos de massa. O objeto da política é elucidado em estreita relação com o conceito de vida e articulado mediante a relação existente entre conhecer, julgar e expressar. Vida possui um sentido que vai além do sentido biológico ou psicológico. Podemos conceituar vida como a faculdade (sentido kantiano) de um ente atuar de acordo com suas representações. As representações são os fins que o próprio agente ou grupos de agentes se propõem. A vida é uma capacidade de atuar de acordo com suas próprias paixões. O ato de escrever sobre a representação de um objeto produz prazer. Não conseguir representar este mesmo objeto é a experiência do desprazer. O prazer ou desprazer são produzidos pela faculdade do ente humano atuar de acordo com suas representações. Não importa se o objeto a ser descrito seja belo ou feio1. O afastamento e a atração exercida pela massa é uma questão sempre presente. Com a inclusão da força afetiva (paixão) na origem das formas coletivas de identificação é possível criticar o consenso porque o “enfoque racionalista é incapaz de compreender que aquilo que impulsiona as pessoas a votar é muito mais que a simples defesa

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Em nosso tempo o significado desta concepção pode ser apreciado na poesia de Carlos Drummond de Andrade (1983, p. 949): “Certa palavra dorme na sombra / de um livro raro./ Como desencantá-la? / É a senha da vida / a senha do mundo / vou procurá-la”.

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de seus interesses. Existe uma dimensão afetiva importante no fato de votar, uma questão de identificação” (MOUFFE, 2007, p. 31). A mobilização por uma causa exige politização, porém a politização não existe sem a produção de uma representação do conflito no mundo, que inclua campos opostos nos quais as pessoas possam se identificar, permitindo que as paixões se mobilizem politicamente no processo democrático. Diz Mouffe: A partir de Freud e Canetti devemos compreender que, mesmo nas sociedades muito individualistas, a necessidade de identificações coletivas nunca desaparecerá porque é constitutiva da existência dos seres humanos. [...] Os teóricos que querem eliminar as paixões da política ao sustentar que a política democrática deveria ser entendida só com razão, moderação e consenso, estão mostrando a falta de compreensão da dinâmica do político. Não percebem que a política democrática necessita exercer uma influencia real nos desejos e fantasias das pessoas e, ao invés de opor interesses e sentimentos, razão e paixão, deveriam oferecer formas de identificação que conduzam a práticas democráticas (2007, p. 35).

Os teóricos liberais são incapazes de perceber três elementos: 1º) o papel primordial desempenhado pela disputa na vida política; 2º) a impossibilidade de encontrar soluções racionais imparciais para as questões políticas; 3º) o papel integrador exercido pelo conflito na democracia contemporânea. Sobre esta incapacidade dos teóricos liberais Mouffe afirma: “O consenso é, sem dúvida, necessário, porém deve estar acompanhado pelo dissenso. Em uma democracia pluralista tais desacordos não são apenas legítimos, são também necessários porque proporcionam a matéria da política” (2007, p. 37). Pelo fato de que a sociedade democrática requer o debate sobre as alternativas possíveis, esta mesma sociedade deve proporcionar formas políticas de identificação coletiva em torno de posturas democráticas claramente diversas. Modelo político habermasiano Partindo da teoria do agir comunicativo, Habermas propõe que a ação do indivíduo deve basear-se nos princípios do procedimento comunicativo, sendo necessário reconstruir as 118

características do agir humano validado pela razão comunicativa. Ao definir a razão como comunicativa, Habermas pretende dar conta da natureza coletiva e social do ser humano. A razão comunicativa seria suficientemente capaz de estruturar a natureza social e coletiva do homem através do consenso orientado pelo entendimento. O consenso possuiria força suficiente para decidir no campo da política qual regra coletiva é válida. Para dar conta desta tarefa Habermas interpreta a linguagem como meio estabilizador das relações intersubjetivas criadas pelo sujeito capaz de atuar livre e linguisticamente competente. Seguindo a esteira dos liberais, Habermas busca na validade universal da racionalidade os parâmetros necessários sobre os quais se apoiaria a sociedade democrática. Onde há ação política existe agir comunicativo, ou seja, a razão é irmã siamesa da ação. A possibilidade da razão e da ação andar par e passo durante o debate político é dada pela linguagem. A linguagem, quando guiada pelo entendimento presente no indivíduo competente, é forte o suficiente para estabilizar o consenso sobre as formas do agir humano no debate político. Entendida como capacidade subjetiva presente no cidadão particular competente, a intersubjetividade é capaz de gerar as novas propostas políticas para o indivíduo e para a sociedade. A aprovação de uma nova proposta é concretizada no diálogo estabelecido dentro do campo político. No processo de obtenção do consenso as propostas políticas são estudadas e, eventualmente, poderão ser reestruturadas para equacionar os múltiplos interesses individuais de acordo com os dissensos produzidos pela natureza do debate político. Assim, a intersubjetividade garante a estruturação do consenso diante da necessidade mais próxima. O consenso produz o desenvolvimento democrático da sociedade e a emancipação do indivíduo porque participa das transformações políticas da sociedade. O indivíduo participará dos próximos porque está motivado pelo sucesso do consenso obtido intersubjetivamente. Segundo Habermas é necessário aceitar e compreender a linguagem como elemento mediador suficientemente forte para estabelecer regras morais e jurídicas, bem como explicar como as regras morais e jurídicas se formam. Ele afirma que: Todo agente que atue comunicativamente tem que assegurar na execução de qualquer ato de fala, pretensões universais de 119

validade e supor que tais pretensões possam ser desempenhadas. Na medida em que queira participar do processo de entendimento, não pode deixar de assegurar as seguintes pretensões universais de validade: se expressar inteligivelmente, ser compreendido pelo outro, permitir ser entendido e se entender com os demais (HABERMAS, 2001, p. 300).

A proposta de Habermas atribui à linguagem um papel fundamental, sendo o médium intransponível de todo sentido de validade (ARMINDO, 2008). Ou seja, para se comunicar a única alternativa disponível é a linguagem, sem ela o indivíduo não conhece nem terá acesso as diversas dimensões do mundo. Para isso é necessário reconstruir racionalmente as interações lingüísticas, definir a razão como procedimento para o agir comunicativo e estabelecer o entendimento como a forma de identificação sobre o mundo objetivo, social e subjetivo (HABERMAS, 2001). Ao diferenciar a racionalidade em instrumental e comunicativa, Habermas interpreta o fenômeno próprio das sociedades complexas: fenômeno no qual a racionalidade instrumental, específica do mundo sistêmico, invade a racionalidade comunicativa, específica do mundo da vida. Com isso Habermas preserva a racionalidade instrumental porque ela é necessária para a subsistência humana. Porém, denuncia que ao invadir o mundo da vida a racionalidade instrumental impede a obtenção do consenso. Quando a racionalidade instrumental invade o mudo da vida, mundo no qual deveria prevalecer a racionalidade comunicativa, desaparece o lugar legítimo para reconhecer e estabelecer o consenso acerca da maneira mais adequada de agir politicamente. O mundo da vida é, por assim dizer, o lugar transcendental em que o falante e o ouvinte se encontram; é o lugar em que podem estabelecer reciprocamente a pretensão de que suas emissões concordam com o mundo objetivo, subjetivo e social; e em que podem criticar e exibir os fundamentos das respectivas pretensões de validade, resolver seus desentendimentos e chegar a um acordo (HABERMAS, 1999, p. 179).

O modelo comunicativo proposto é assumido como o campo político legítimo para realizar validamente o diálogo livre de coerções 120

externas. Nele as regras poderão ser discutidas e reformuladas pelos indivíduos presentes no debate. O debate político exige um indivíduo qualificado, conhecedor e seguidor de regras, e guiado pelo entendimento. Este indivíduo seria capaz de identificar a coerção e, quando necessário, eliminá-la do debate político legítimo. A diferença conceitual entre o político e o espaço da política permite afirmar que o princípio puro do liberalismo não pode dar origem a uma concepção especificamente política porque todo individualismo consistente nega o político. A impossibilidade ocorre porque o consenso se baseia em atos de exclusão, sendo impossível obter um consenso racional plenamente inclusivo. Comentando a dinâmica essencialmente conflituosa da vida social, Mouffe afirma que: O conflito revela que todo consenso encontra-se fundado sobre atos de exclusão e indica precisamente os limites de todo consenso racional, a existência de um excluído impossível de ser eliminado. A crença liberal de que o interesse geral resulta do livre jogo dos interesses privados, e em que um consenso racional universal seria o produto de uma discussão livre, conduz necessariamente o liberalismo à cegueira em face do fenômeno político (1992, p. 7).

Retornamos ao argumento de Schmitt quando afirma que a crença liberal cria um ponto cego, ou seja, o espaço político não pode ser compreendido pelo racionalismo liberal pela simples razão de que todo racionalismo liberal precisa negar o antagonismo. O que o antagonismo schmitiano revela é o limite de todo consenso racional. Mouffe afirma que, “ao aderir o pensamento liberal ao individualismo e ao racionalismo sua negação do político na dimensão antagônica não é só uma omiss~o empírica, mas também uma omiss~o constitutiva” (2007, p. 19). As teorias liberais formam dois grupos. O modelo liberal agregativo concebe: a política como estabelecimento de um compromisso entre diferentes forças em conflito na sociedade. Os indivíduos são descritos como seres racionais, guiados pela maximização de seus próprios interesses, atuando no mundo político de uma maneira basicamente instrumental. Esta é a idéia de mercado

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aplicada ao campo da política, apreendida a partir de concepções tomadas da economia (MOUFFE, 2007, p. 7).

Desenvolvido como uma reação ao modelo agregativo, o modelo deliberativo: Aspira um vínculo entre moralidade e política. Seus defensores querem substituir a racionalidade instrumental pela racionalidade comunicativa. Acreditam que é possível criar um consenso moral racional no campo da política mediante a livre discussão (MOUFFE, 2007, p. 20).

Habermas, principal defensor do grupo deliberativo, conhece as concepções de Schmitt e procura refutá-lo argumentando que os que questionam a possibilidade do consenso racional sustentando que a política constitui um terreno no qual sempre se pode esperar que exista a discórdia estão pondo em questão a própria possibilidade da democracia. Nas palavras de Habermas: Se as questões de justiça não podem transcender a compreensão ética das formas de vida enfrentadas, e se os valores, conflitos e oposições existencialmente relevantes devem introduzir-se em todas as questões controversas. Então em uma análise final terminaremos em algo semelhante à compreensão de política de Carl Schmitt (1996, p. 20).

O que Habermas afirma é que a interpretação do político pela perspectiva das categorias amigo/inimigo, proposta por Schmitt, é contrária ao projeto democrático. Ideia de vontade política Para Mouffe o conflito é inerente a natureza do político, por exemplo, quando o indivíduo busca o confronto para garantir sua hegemonia, mesmo que temporária. Habermas, por sua vez, acredita que a força do consenso é obtida pela capacidade comunicativa do sujeito competente linguisticamente. Como poderíamos interpretar o crescente desinteresse do indivíduo pela política a partir de propostas antagônicas?

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Mouffe critica o modelo liberal predominante por alimentar o caráter subjetivo voltado exclusivamente para: indivíduos descritos como seres racionais, guiados pela maximização de seus próprios interesses, atuando no mundo político de uma maneira basicamente instrumental. Esta é a idéia de mercado aplicada ao campo da política, apreendida a partir de concepções tomadas da economia (MOUFFE, 2077, p. 20).

Habermas interpreta que a ausência de interesse é um fenômeno decorrente do próprio do agir instrumental, ou seja, a razão instrumental aportou no espaço da política, lugar onde deveria prevalecer a racionalidade comunicativa2. Existe um diagnóstico comum em Mouffe e Habermas. Ambos interpretam que a política contemporânea é marcada pela ação de indivíduos desinteressados pela política. Mesmo existindo pontos em comum, percebemos divergências. Habermas deposita grande expectativa no processo dialógico como meio para obter consensos políticos. O sucesso na obtenção do consenso atrairia o indivíduo para os problemas coletivos. Mouffe critica os teóricos liberais a partir de dois elementos: 1º) sustenta que o modelo de política deliberativa simplesmente ignora a dimensão psicológica do sujeito político, dimensão repleta de relações de poder e antagonismos. Ao aceitar esta característica humana, Mouffe defende a inclusão da dimensão psicológica no campo da política. 2º) por reconhecer a dimensão psicológica o modelo orientado segundo uma razão preocupada com um modo de agir racional universal afasta o indivíduo da prática decisória coletiva.

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Durante a modernidade os campos da epistemologia, da ética e da estética, passaram a ser representados nos campos da ciência. Assim como o direito e a moral passaram a orientar-se segundo lógicas internas. A partir de Descartes e Kant conceitos como de verdade, valor moral e belo passam a vigorar como modelo de autoridade fundada no sujeito. Neste contexto o agir subjetivo orientado para a maioridade adquire predominância sobre o agir político. A prática política cotidiana perde seu valor na mesma proporção em que cresce a importância da razão entendida como capacidade para orientar-se por uma prática universal (LONGHI, 2008).

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Considerações finais É necessário retomar a pergunta inicial: qual é o processo de aprendizagem presente na formação política dos cidadãos? Postas as considerações é possível entender a origem da carência de pensamento e de agir político, principalmente entre o grupo dos jovens, percebidos como o menos envolvido. É válido concluir que a ausência de envolvimento resulta do processo político ultrapassado. Adjetivamos este processo como ultrapassado porque ele promove o individualismo e nega o caráter político desenvolvido entre grupos ou entre sujeitos pertencentes ao mesmo espaço com diálogo legítimo. Mesmo percebendo ser mais freqüente entre os jovens do que nos adultos, o cidadão em geral se afasta da política ao perceber o mundo pela perspectiva do interesse individual. Na individualidade a ação é ordenada segundo o interesse próprio. O indivíduo solipsista esquece o outro porque não consegue se identificar com projetos comuns, elemento essencial das sociedades democráticas. Do confronto proposto por este trabalho é possível pensarmos as políticas contemporâneas como um espaço no qual as novas gerações possam avaliar as diversas e diferentes alternativas. Parece plausível pensar que o indivíduo participa de um projeto político quando ele estabelece uma identidade positiva ou negativa entre ele e o projeto. A identidade é negativa quando ocorre o dissenso entre o indivíduo e o projeto. Tanto a identidade quanto o dissenso retira o individuo da passividade. Por um lado, é necessário abandonar a idéia de que a exclusão dos conflitos é a única alternativa que realmente sustenta uma política democrática legítima. Por outro, é fundamental defender que as relações antagônicas desenvolvidas nas relações sociais são inerentes ao mundo político, sendo impossível a eliminação desta característica por completo. Se aceitarmos a plausibilidade da teoria antagonista, então é necessário investigar o que existe de irreal na concepção política deliberativa proposta Habermas. É viável construir um novo modelo político partindo da razão comunicativa desenvolvida a partir da linguagem? A razão comunicativa é capaz de produzir consensos no campo da moralidade e da justiça? A teoria da ação comunicativa defende e assegura como alternativa democrática legítima a via que 124

nega a presença do conflito político em toda relação política. Porém, a ausência do conflito nega a própria possibilidade de constituir uma política democrática. O resultado da disputa entre o dissenso e o consenso é a possibilidade de explicar e reduzir o fenômeno do desinteresse pelo político. Aproximar o sujeito do campo político é a possibilidade de implantar novas propostas políticas democráticas, visando a superação dos problemas encontrados na esfera política. Antes de finalizar é necessário fazer quatro indicações: 1ª) O cidadão em geral se afasta do espaço da política ao interpretar o mundo pela perspectiva individualista. Como consequência o indivíduo esquece o outro. Este esquecimento é o efeito colateral da ausência de identificação com projetos comuns, elemento essencial da prática política. 2ª) O indivíduo se envolve num projeto político quando estabelece uma identidade positiva ou negativa, concordando ou discordância. Tanto a identificação positiva quanto a negativa politiza o individuo retirando-o da passividade política. 3ª) A exclusão dos conflitos não é uma alternativa capaz de sustentar uma política democrática legítima. Como conseqüência, é necessário entender que a relação de conflito presente na relação social é inerente ao espaço político, sendo impossível sua eliminação completa. 4ª) A disputa pela exclusão ou permanência do conflito no espaço político decidirá qual é o processo de formação legítimo para educar cidadãos preocupados com a prática política e com a superação das contradições presentes na esfera política democrática contemporânea. Referências ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2010. ABREU, M. A. de A. Conflito e interesse no pensamento político republicano. Tese de doutorado. USP. 2008. ANDRADE, C. D. de. “Discurso de primavera e algumas sombras”. In: Nova reunião, II. Rio de Janeiro: Record, 1983.

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LACLAU, E.; MOUFFE, C. Hegemonía y estratégia socialista: hacia una radicalización de la democracia. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2010. LONGHI, A. J. Ação educativa e agir comunicativo. Caçador: UnC, 2008. HABERMAS, J. Teoria de la acción comunicativa II: crítica de la razón funcionalista. v. 2. Madrid: Taurus, 1999. _____. A Constelação Pós-Nacional, ensaios políticos. São Paulo, Littera Mundi. 2011. Tradução Márcio Seligmann Silva. Fonte: www.4shared.com. Acesso: 02/03/2011. MOUFFE. C. En torno a lo político. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007. _____. “Por um modelo agonístico de democracia”. In: Revista Sociologia e Política, Dez. 2010, vol. 25, n. 3, p. 11-23. ISNN 0104-4478. Acesso: 02/03/2011. _____. “Pensando a democracia com, e contra, Carl Schmitt”. In: Cadernos da Escola do Legislativo. V. 5, n. 9 (jul./dez.), p. 75-88. Tradução: Menelick de Carvalho Neto. Fonte: www.almg.gov.br. Acesso: 02/03/2011. _____. “Democracia, cidadania e as questões do pluralismo”. In: Revista Política e Sociedade, n. 3, out./2003. Acesso: www.periodicos.ufsc.br. SANTOS, R. E. “Entre autoridade e lei: considerações sobre o realismo político de Carl Schmitt”. In: Revista Peri, v. 02, n.02, 2010, p. 140-154. http://nexos.ufsc.br/index.php/article. Acesso: 13/04/2011. SCHMITT, C. O conceito do político. Tradução: Alvaro L. M. Valls. Petrópolis: Vozes, 1992.

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IRONIA E METÁFORA: ESBOÇO DE UM PROBLEMA POLÍTICO DO DISCURSO FILOSÓFICO Samon Noyama Universidade Estadual do Paraná A perfeita semelhança é a absoluta diferença. Theodor Adorno Ironia e metáfora em Nietzsche Até mesmo por aqueles que não são admiradores do pensamento de Nietzsche, é de comum acordo que a sua filosofia é marcada pela eloqüência, pela versatilidade dos elementos argumentativos e pela capacidade inconfundível de criar imagens que signifiquem questões, isto é, tornar suas questões filosóficas verdadeiros problemas visualizáveis, mecanismo que se torna possível através do uso de recursos imagéticos utilizados com rara habilidade. O valor que se dá a esta assinatura nietzschiana, o estatuto e peso filosófico da sua posição parecem ser compatíveis com a envergadura de suas polêmicas: as acusações que ele faz à tradição do pensamento soam quase como absurdas diante do poder e do significado que tem para nós a autoridade dos “cl|ssicos”. Por isso n~o chega a ser absurdo afirmar que o que Nietzsche disse não poderia ter sido dito de forma diferente, ou seja: toda a “fala” deste filósofo combina harmoniosamente com o conteúdo das afirmações drásticas que culminam com o diagnóstico preciso que ele faz da cultura ocidental moderna. Mas, no caso de Nietzsche, polemizar não é o bastante: é preciso falar para alguém, para o mundo, e não apenas para dar conta dos critérios e do rigor exigidos pelos ditames de um jogo de linguagem particular que se acostumou, ao passar dos séculos, a estabelecer uma verdade conveniente. Mais ainda, pode-se dizer que esse convite ao diálogo se faz de forma bastante provocativa, ora intimidando o leitor, ora seduzindo-o irresistivelmente à disputa argumentativa. Nota-se, em tempo, que não se trata de desqualificar o estatuto da verdade cientifica estabelecida, e sim, de apontar para uma

questão: esse edifício de tamanho tão incrível, cujas bases fundamentais de acordo lingüístico pré estabelecido que concorda em tomar como verdadeiro aquilo que não ultrapasse – e caso o fizesse seria reprovada imediatamente – as cercas da “verdade” da linguagem, dos conceitos, dos valores morais, em última instância, de um único e exclusivo tipo de discurso filosófico, esteve sempre direcionado a único e exclusivo tipo de homem: o comum, o mediano, o passivo – moderno, diria Nietzsche, para quem essa verdade da linguagem é constituída a partir de duas metáforas: imagem e som. Essas duas metáforas formam a palavra. Filósofo atento ao poder persuasivo e imagético da palavra, Nietzsche chama atenção para uma transposição que talvez hoje nos pareça um procedimento deveras naturalizado: supor que, entre o som que se efetua ao pronunciar uma palavra e gama de significados atrelados ao signo possa haver uma relação necessária, e por isso, a palavra se tornaria um elemento condicional da linguagem que pretende ser, de acordo com este arranjo forjado, a morada da verdade. Para ele, nenhum problema até então, desde que tudo isso seja admitido como uma invenção. Contudo, jamais pode ser admitido como invenção uma vez que este seu grande valor só existe e sustenta seu poder supremo na medida em que a verdade da linguagem não é uma invenção, mas sim, uma revelação. Este revelar é o descobrir a realidade das coisas, como se de fato as palavras tivessem alguma ligação natural com as coisas reais. Mais ainda: que o único ou problema vital da filosofia gira em torno de esmiuçar essa ligação natural até ela se tornar plenamente decifrada. É, sobretudo neste ponto, que a crítica de Nietzsche à verdade da linguagem atinge sua estrutura nevrálgica na teoria do conhecimento. E, ainda que os aspectos filológicos acerca da linguagem e da retórica que apareçam explicitamente nos textos de juventude sobre a retórica, a alegoria da história da humanidade, se assim quisermos denominá-la, com a qual Nietzsche nos brinda no brilhante e absurdo início de Verdade e mentira no sentido extra-moral, é a imagem mais sucinta que ele conseguiu descrever a história dessa humanidade que crê na verdade como valor superestimado e que ela mesma acredita ser capaz de, através da linguagem, provar a existência e a verdade das coisas do mundo existente. A primeira leitura sugere que a força dessa metáfora reside na capacidade de definir o humano como algo insignificante diante do que ele sustenta 128

ser: a verdadeira fábula é a nossa história. O resto é chão. E qual seria, de fato, o problema desse procedimento? Que tipo de verdade essa metáfora produz? Qual poderia ser a relação dele com a história e a política? Ele reside no sem número de equivalências desmedidas e arbitrariamente articuladas que, maquiadas com os elementos epistemológicos e retóricos administrados, criam uma fábula com ares de verdade: se se trata apenas de uma fábula, seu valor é pequeno. Mas se admitimos essa narrativa como revelação da verdade outrora oculta aos olhos e ouvidos enganadores dos paupérrimos seres humanos, a razão adquire valores supremos, a humanidade satisfaz-se com sua imensa capacidade de interpretar e descrever os grandes enigmas da vida, isto é, de atingir a “verdade”, e o mundo diminui sua potência natural em favor da grandiloqüência dos homens. O sujeito de conhecimento triunfa diante do jogo das vicissitudes da natureza e a unidade supera a totalidade. Rogério Lopes sugere que Nietzsche utiliza distintas formas retóricas sem deixar perder a identidade do texto filosófico, que ele chama de colocar em cena “uma filosofia cujos sentidos est~o constantemente sob o signo da instabilidade”1. Mas podemos ainda admitir uma interpretação menos moderada e talvez menos preocupada em mostrar uma isenção diante da questão, e dizer que a vitória da verdade é uma grande farsa, cujo tamanho é proporcional à imaginação e criatividade da mentira. Ainda em Sobre verdade e mentira, a declaração de Nietzsche2 é lapidar: A coisa em si é, também para o formador da linguagem, inteiramente incaptável e nem seque algo que vale a pena. Ele designa apenas a relação das coisas aos homens e toma em auxílio para exprimi-las as mais audaciosas metáforas.

Não seria o caso de trazer à discussão a polêmica tese de Górgias, sobretudo se admitirmos a distância que possa haver entre Nietzsche e seu momento histórico e a época da polêmica entre 1

LOPES, Rogério. Elementos de retórica em Nietzsche. São Paulo: Loyola, 2006, p. 39. 2 NIETZSCHE, F. Sobre a verdade e mentira no sentido extra-moral. Tradução de Rubens R. T. Filho. São Paulo: Abril, 1983, p. 47. 129

filósofos e sofistas, mas ao menos uma menção honrosa: neste quesito, a desejada identidade entre ser e pensamento, ou entre coisa e palavra, aproxima-se muito mais de um divórcio litigioso, no qual as partes não chegam ao comum acordo, do que de num paraíso onde cada elemento se articula com os demais em harmonia indissolúvel, diante da qual a verdade reina absoluta e intocável. Há, ao menos, que se ter a dignidade de discutir o assunto em outros termos. A Bildung A história da cultura ocidental é o curriculum vitae do homem formador. Mas ele não é apenas formador no sentido clássico de educação; enquanto Bildner, ele é também um falsificador. Ele dá aparência (e não é qualquer aparência!) e forma definidas a algo que é naturalmente sem forma ou disforme. Por isso trata-se de um artifício, de uma atividade falsificadora; e aí mesmo reside sua genialidade. Um artista capaz de criar apenas metáforas das coisas, pois as coisas só podem ter mesmo metáforas e nada mais. O que nós chamamos de coisa é, simplesmente, nossa vers~o da famosa “coisa mesma” e, portanto, sempre uma verdade falsa. Um conceito que se sabe falso com aparência de verdadeiro pode ser muito mais eloqüente do que um conceito que se imagina realmente verdadeiro. Essa presunção é denunciada por Nietzsche em nome de duas características psicológicas do homem: a ingenuidade e a prepotência. Vê-se, pois, que não estamos tratando de uma questão inerte, mas de um procedimento que tem seu ofício no campo da linguagem e sua subsistência no exercício histórico da construção de relações de poder. Sua importância, dessa forma, exala ares políticos a todo instante. Se, do ponto de vista moral, isso pode ser entendido como o grande problema da humanidade, por outro lado pode ser também seu grande poder: antes tivesse admitido o poder criativo e imaginativo da criação de metáforas e supervalorizado a metáfora como algo falso, que não diz nada de exato e preciso em relação à realidade, mas que, justamente por seu caráter falsificador, é o que há de mais verdadeiro gerado pelas capacidades humanas3. Isto que dizer que Nietzsche 3

Essa questão não se encerra apenas nas circunstâncias aqui expostas. A necessidade por um posicionamento político diante da querela entre os sofistas e os filósofos, por exemplo, definiu o privilégio de uma perspectiva diante da 130

inverte então o valor de verdade e procura ver no falso a verdade, e nesta, a maior falsificação já produzida: a metáfora da verdade, que nos impõe outras metáforas, tais quais: o absoluto, a certeza, a evidência e o universal. Por isso a Bildung, enquanto formação cultural da humanidade, é um processo cumulativo de substituição de valores notoriamente (e isso nada tem de ruim, pelo contrário) falsos por verdades estabelecidas, que experimentam suas mais agudas contradições no campo da moral. Parece que a discussão para Nietzsche não passa pelo mérito maniqueísta dos valores estabelecidas pela cultura, e por isso a verdade não se tornaria um dilema complexo e profundamente trágico na história da humanidade se a filosofia não tivesse se transformado em algo tão sério e sisudo. A univocidade, a perspectiva única, que atendem pela imagem e pela metáfora do egipcismo dos filósofos é atacada por Nietzsche como um dos maiores prejuízos para a potência vital do pensamento. A moral é a expressão máxima da inversão de valores em nome da supervalorização de uma característica potencialmente admirável dos homens, mas que vem sendo utilizada para seu mais pobre e declinante fim. Mais uma vez, a questão esbarra na falsa caracterização do homem racional que camufla sua natureza artística e forjadora em nome de uma ciência, da verdade, de valores culturais em detrimento da natureza, pois concluir do estímulo nervoso uma causa fora de nós, ou seja, substituindo a invenção da palavra e da linguagem por uma suposta origem necessária, já é resultado de uma aplicação falsa e ilegítima do princípio de razão, porque permite a segunda suposição de que a verdade seja uma conclusão ou fim necessário do uso da razão. Essa suposição, por sua vez, remete à gênese estrutural do pensamento do ocidente e, por isso, torna-se fonte de uma discussão interminável, por assim dizer. Ela é gêmea da filosofia. Essa inversão de dupla cidadania, que opera no campo da teoria do conhecimento mas não pode separar-se em definitivo da vida e da realidade. Todo esse julgamento não precisa chegar às vias de fato de se questionar e pretender sustentar uma única versão mais “verdadeira”, mas o simples fato de constituir uma grave crise política, com conseqüências radicias em nossa história, é o suficiente para pensarmos que as decisões tomadas em questão de ordem restrita, como no caso da linguagem ou da estética, fundam valores de importância incalculável para a história que se constrói tempos depois. 131

política e da ética, e por isso, implica diretamente na formação cultural da humanidade, leva Nietzsche a mencionar, ainda no §1 de Sobre verdade e mentira, a famosa Cucolândia das Nuvens, metáfora de Aristófanes para o fim último idealizado pela razão humana. Cronologicamente, sabemos que seria inviável supor que essa Cucolândia corresponderia à República de Platão, fato que torna a metáfora aristofanesca mais interessante ainda. Os excessos da racionalidade, o peso demasiado que a lógica, a retórica e a razão recebem gradativamente entre os atenienses é alvo do sarcasmo do autor de As Aves. Se a comédia tinha na época (e ainda hoje conserva essa função) o papel de estabelecer uma crítica aos costumes e valores, Aristófanes foi tão genial quanto Sófocles, ao diagnosticar, não os aspectos trágicos da natureza humana, mas as suas mais absurdas invenções: a sociedade, a lei, o julgamento e a verdade. É interessante perceber que o que aconteceu no campo da retórica e da linguagem teve seu equivalente no tocante às artes, pois assim como aos sofistas foi dada uma importância secundária, à comédia foi dada uma categoria menor dentro das imitações da arte4. Não por acaso ambos elegem o mesmo alvo: Sócrates; assumindo, de certa forma, a máscara de críticos da cultura. Estranho imaginar que este, enquanto personagem dos diálogos platônicos, se apresenta muitas vezes como crítico, ironista e comediante. A zombaria típica de Aristófanes se parece com uma das formas que Sócrates encontra para provocar seus interlocutores, com freqüência expostos numa situação ridícula da qual se envergonham e alegam a grandeza do seu mestre, talvez para evitar a conclusão de que são eles profundamente ignorantes. Afinal, reconhecer a qualidade e a virtude de um mestre ainda é mais fácil do que reconhecer a própria ignorância, por mais que esse suposto mestre muitas vezes tenha ares de fanfarrão: uma figura jocosa e mendicante. A humildade material e intelectual de Sócrates é suficientemente enigmática para deixar 4

Refiro-me aqui, diretamente, à diferença estabelecida por Aristóteles entre a tragédia e a comédia. Enquanto a primeira é a imitação das ações humanas de caráter elevado, a segunda é a imitação das ações humanas de caráter rebaixado. Não nos interessa aqui se Aristóteles foi arbitrário ou se descreveu honestamente a cultura da época, mas tão somente ressaltar que, historicamente, mais um capítulo se apresentou na distinção valorativa entre as atividades humanas, sobretudo as artísticas. 132

conclusões precipitadas, fato que justifica alguns trabalhos extremamente interessantes acerca do tema, como o de Sarah Kofman5. Seria absurdo cogitar a escolha de Sócrates como uma homenagem? A primeira leitura dá uma resposta negativa, pois o filósofo grego é de fato uma figura que representa os principais valores da tradição filosófica, desde uma abdicação dos valores materiais (e andar descalço!) até a tentativa de fazer da filosofia o saber mais elevado entre os demais. Além disso, nos acostumamos a aproximá-lo dos valores mais representativos da nossa cultura: há certa semelhança em pensar Sócrates como símbolo dos valores da razão, e Jesus como ícone dos valores cristãos. Nos dois casos, porém, trata-se de uma simbologia extremamente ambígua, pois certos valores cultivados estão ocultos nas figuras que os representam. O poder é, talvez, um dos valores mais simbólicos tanto da filosofia quanto do Cristianismo e ele aparece disfarçado em suas imagens. Em geral, os comentadores de Nietzsche se contentam em apontar Sócrates como uma espécie de câncer, adotando uma postura muitas vezes questionada pelo próprio Nietzsche. De todo modo, talvez fosse interessante não levar essa posição tão a sério. Há que se pensar também no poder figurativo de Sócrates e na maneira apaixonada como o filósofo trágico se refere ao seu suposto adversário. A filosofia de Nietzsche é um convite irrecusável ao pensamento, uma intimação, às vezes uma intimidação. O leitor, além de trazer algo na sua bagagem que vai possibilitar a leitura geral e compreensão dos temas e das referências ocultas na obra nietzschiana, tem de estar disposto a contribuir com seu pensamento a pedra primeira atirada pelo autor. O diálogo com a história da filosofia é inexorável, e a herança está mais próxima do destino do que da escolha. É um recurso que afirma a autonomia do texto, da idéia, e, por outro lado, abre espaço e recebe de bom grado a novidade: o espírito ávido de idéias, ansioso para sentir-se caminhando pelo seu próprio caminho, sem sombras, sem rédeas, sem ponto de partida e chegada. É o que sugerimos após a leitura do aforismo 178 de Humano, demasiado humano, “A efic|cia do incompleto”.

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Ensaio intitulado Socrate (s), publicado em 1989 na França. 133

A eficácia do incompleto – Assim como as figuras em relevo fazem muito efeito sobre a imaginação por estarem como que a ponto de sair da parede e subitamente se deterem, inibidas por algo: assim também é a apresentação incompleta, como um relevo, de um pensamento, de toda uma filosofia, é às vezes mais eficaz que uma apresentação exaustiva: deixa-se mais a fazer para quem observa, ele é incitado a continuar elaborando o que lhe aparece tão fortemente lavrado em luz e sombra, a pensá-lo até o fim e superar ele mesmo o obstáculo que até então impedia o desprendimento completo6.

As metáforas que julgam explicar ou facilitar a compreensão de conceitos e ideias, supostamente nos aproximando da verdade das coisas, não foram construídas a partir da eficácia do incompleto. Ao contrário, foram enraizadas a partir da suposição, defendida como tese irrefutável, de que há completude, finitude e acabamento. Como se o homem pudesse usar a razão e produzir conceitos que, feito rejunte de azulejo, transformassem peças isoladas e diferentes num todo completo, único e inteiriço. Podemos pensar que isso é a verdadeira farsa, e que há rara beleza em julgar esse procedimento ex machina como algo genial. Mas quando o admitimos ser a obra mais importante e verdadeira da humanidade, nos alimentamos de ideias, valores e construções históricas, políticas e ideológicas com as quais cultivamos uma relação difícil, penosa e incompleta. A julgar pelas mudanças na forma de escrever ao longo de sua obra, é possível perceber que a preocupação de Nietzsche com a maneira de se expressar é constante. A “Tentativa de autocrítica” publicada posteriormente em O nascimento da tragédia já mostra a insatisfação do autor por ficar preso à lógica hegeliana, dialética; e revela seu empenho em buscar um estilo próprio; a sua filosofia. Esse argumento reforça duas idéias: primeiro, que na filosofia de Nietzsche forma e conteúdo são inseparáveis e, segundo, que a forma de expor as idéias é fator determinante para definir o valor do pensamento. Seguindo a argumentação de Rogério Lopes em Elemento de retórica em Nietzsche, na seç~o dois “Entre aforismo e ensaio: a retórica como forma de apresentaç~o”, podemos esclarecer a decis~o de Nietzsche pela adoção das formas mais curtas, como o aforismo, o 6

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2000, p. 132. 134

ensaio, as máximas e sentenças. O autor ainda nos lembra que Nietzsche não chega a utilizar amplamente o aforismo no sentido preciso do termo, e sim faz uso da expressão desvinculada do gênero literário e da classificação tradicional. Guardadas as devidas distinções estritas a cada uma dessas formas, que, segundo o autor, oscilam de acordo com autores e determinados momentos históricos, a adoção dessas formas tem uma justificativa comum: um dos grandes motivadores da filosofia de Nietzsche reside na leitura que ele faz da concepção de filosofia de Sócrates e de Platão, com especial atenção em dois sentidos. Primeiro, no que se refere ao privilégio da forma dedutiva nas investigações filosóficas, que acabou por fortalecer o dogmatismo na tradição filosófica; segundo, e decorrente do primeiro, a tese platônica de que à filosofia cabe o encerramento, a definição dos problemas apresentado no princípio da investigação. A questão da valoração da arte e da verdade é um tema nietzschiano que está atrelado aos demais temas de sua filosofia, afinal, o início da decadência da modernidade está, para ele, na construção de um projeto que defende uma superioridade da idéia de verdade ditada pelos parâmetros da ciência, em detrimento da possibilidade de haver valor de verdade na arte. Se em relação à tragédia esse movimento ocorre com a intervenção da razão na criação, que culmina com as peças de Eurípides, na filosofia este projeto pode ser sintetizado sobretudo em Platão. Mais uma vez, Nietzsche se volta contra o estatuto da verdade enunciado pela filosofia platônica, que seria um dos momentos fundadores da tradição metafísica na filosofia. Não vamos nos alongar aqui na especificidade da crítica que Nietzsche direciona a cada um deles, e sim, à questão central da crítica: a crença de que a racionalidade pode preceder e julgar a arte, no tocante aos problemas da existência humana, evidencia a posição de que a verdade é mais importante que a arte, em outras palavras, há uma superioridade em termos de valor da verdade sobre a arte. Há, portanto, uma subordinação do poeta ao pensador racional, uma valorização da razão em detrimento da arte no primado do pensamento predominantemente reprodutivista. A arte trágica, viva em instinto, perde o seu valor e sua potência como conhecimento diante da racionalidade cientificista. A consciência e a crença em uma verdade eterna e universal são suficientes e necessárias para o artista,

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que se submete a tais princípios do pensador racional, do modelo de pensador defendido por tais postulados. A morte do artista trágico é o sinônimo da decadência de um ciclo de gerações que elegeu a ciência como modelo para a humanidade e subjugou a arte como forma de conhecer. O estatuto científico da arte possibilita a sua recuperação no processo de formação do homem grego. Uma paidéia de heróis conscientes e natureza morta; de soberania da racionalidade e de exoneração da arte trágica, do instinto e da vida. Uma morte em vida, do poeta que sucumbe aos caprichos objetivos e pragmáticos de uma filosofia que se pretende como solução para o mundo, mas que não permite a ousadia, o erro e polifonia do pensamento. Diz o próprio Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia: A crença inabalável de que o pensamento, seguindo o fio da causalidade, pode atingir os abismos mais longínquos do ser e de que ele não é apenas capaz de conhecer o ser, mas ainda de corrigi-lo7.

Se a questão do valor da verdade é central no pensamento de Nietzsche, podemos pensar com ele que a maneira de apresentar ou de expor uma idéia tem uma importância conseqüente. Além disso, dentro da própria história da filosofia, pensar na melhor forma de fazer filosofia também tem sido alvo do esforço de muitos pensadores que, em certa medida, têm concentrado seus esforços em dizer qual é a forma ideal para se filosofar. Encontrar a forma ideal para se filosofar é uma questão que nos interessa. A tradição filosófica se desenvolveu de tal maneira que forma e conteúdo, sob este aspecto, tornaram-se ovo e galinha. O que Nietzsche chama de decadência não é a encruzilhada, é a falta de caminho. Dar continuidade ao pensamento filosófico sob a perspectiva de que há um valor superior aos demais, e que este valor é a verdade, levou o homem a fixar-se no problema da forma e esconder-se dos problemas de conteúdo. Em outras palavras: pensar a forma tornou-se mais importante que pensar, mais valorizado que o próprio pensamento. A filosofia procurou como dizer a verdade e esqueceu-se 7

NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 93. 136

de questioná-la e acabou por fortalecer um método-prisão. Ou ainda, em prejuízo do objeto, fomentou uma fetichização do método. Com isso, nossa história reúne então um conjunto de formulações e valores legitimados que não precisam ser questionados em sua raiz. Se nos dispusermos a reelaborar a forma com que construímos tais valores, podemos ter alternativas às decisões radicais que tomamos no campo da política e da ciência, que certamente contribuíram para a solidificação de ideias que hoje cegam nossa visão de mundo, já tão carente de possibilidades e de criatividade. Para além de experimentar variadas formas de escrever, seja em fragmentos, poesia, ensaio, aforismo, máximas e sentenças, descobrir seu próprio caminho foi sua decisão. E podemos dizer que pensar com Nietzsche, e não pensar o seu pensamento, seja esta tarefa árdua de trilhar cada um seu próprio caminho, entre experiências e questionamentos. Questionar as formas, as verdades, os sistemas, a cultura, o homem e experimentar as vias de se fazer esse questionamento. Enfim, neste porvir, trilhar um não-caminho. E este não é o desafio da filosofia, apenas. É o desafio do homem, como filósofo, poeta, ou o que quer que seja. Desde que não seja o pesado espírito de gravidade. Diz Nietzsche: O homem é difícil de descobrir e, mais difícil de tudo, descobrirse ele a si mesmo; muitas vezes, mente o espírito a respeito da alma. Assim obra o espírito de gravidade. Descobriu-se a si mesmo, porém, o homem que diz: ‘Este é o meu bem e mal’. Destarte, fez-se calar a toupeira e anão que diz: ‘bem para todos, mal para todos’8.

Em seguida, no último trecho do espírito de gravidade, ele trata sobre a busca do homem, que é a busca de cada homem. E sempre e somente a contragosto perguntei pelos caminhos – isto sempre me repugnava! Preferia interrogar e experimentar os próprios caminhos. Experimentar e interrogar os, consistiu nisso todo o meu caminho; – e, na verdade, deve-se aprender, também, a responder a tais perguntas! Mas esse – é o meu gosto: 8

NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 232. 137

– não um gosto melhor ou pior, mas o meu, do qual não mais me envergonho ou faço segredo. ‘Este agora, – é o meu caminho; – onde est| o vosso?’; assim respondia eu aos que me perguntavam ‘o caminho’. Porque o caminho – não existe! Assim falou Zaratustra9.

O que podemos aprender com esta passagem sobre o espírito de gravidade é mais uma afiada crítica de Nietzsche à cultura moderna. Somos espíritos de gravidade por não aceitar o desafio de buscar nosso próprio caminho. O valor que a tradição, o pensamento filosófico e científico, e a moral de nossa cultura têm sobre nossas atitudes é enorme a ponto de provocar esse engessamento. Seguir, copiar, aceitar, ouvir, reprimir, moralizar, pensar (sob o estigma de bem e mal), são os verbos da modernidade. São todos verbos do coletivo, de grupos, de manadas, de iguais. Iguais na condição de espírito de gravidade, que pesa e afunda, que nada faz por si mesmo nem pelo mundo. Percorrer novos caminhos, únicos e próprios, não enche os olhos desses espíritos, porque a cabeça baixa não lhes oferece a visão do horizonte. Nesse sentido, a delimitação de uma natureza discursiva formal e metodologicamente padronizada reforça essa crítica. Por isso, para ele, a Filosofia que se faz é a derrocada do homem, é um sinal de decadência. Porque ela nos faz pensar sob os conceitos e as formas já pensados; a reproduzir o já pensado, sem sequer questionar sua própria forma. Ao invés da novidade do novo, o mesmo do mesmo. Porque ela se estabelece como último paradigma, como único caminho, o que tem um télos, o que almeja aquela verdade. Podemos interpretar a figura do espírito de gravidade simplesmente como mais uma versão nietzschiana para o homem moderno, marcado decisivamente por uma influência negativa da tradição cultural do ocidente. Nesse sentido, especialmente na perspectiva de Nietzsche, essa herança cultural é o registro da história de um fracasso, da decadência dos valores culturais modernos, na medida em que eles sejam uma continuidade – no pior sentido do termo. Essa leitura de Nietzsche como crítico dos valores morais e cristãos talvez esteja, inclusive, exposta de forma excessiva, o que acaba por atenuar a sua força e pertinência. Este é um dos motivos 9

Idem, p. 233. 138

pelos quais não pretendemos continuar investigando as questões ligadas a este propósito; o outro é a pretensão de relacionar este fator importante da filosofia de Nietzsche com o tema central da nossa pesquisa. Preferimos, então, procurar averiguar se há, ainda, outra relação entre esse processo decadente e o problema da forma na escrita da filosofia. Quanto mais a escrita estiver resignada por sua submissão a estes e outros modelos, menos ela poderá ter seu valor aproximado do valor da experiência que o indivíduo faz na realidade. Não é preciso concordar com Nietzsche, nem apontar as suas obras como filosofia ou literatura. As polêmicas em torno dessas problemáticas são importantes – quando são – para os historiadores e comentadores da filosofia, ou da literatura. A pergunta pelo valor das experiências cognitivas e artísticas do homem permanece, mesmo que não se julgue comparativamente. Os discursos que se aplicam às diferentes formas de experiência restringem o valor de cada uma delas, mais ainda se nesta concorrência houver um valor supremo, tal como a ciência se apresentou nos últimos séculos. Mas no escopo da filosofia cabe, ainda, perguntar-se pelos limites e possibilidades de libertar-se destes paradigmas, mesmo que esse desligamento seja, inicialmente, na sua forma. Porque de alguma maneira, procurar alternativas discursivas, experimentar os inúmeros recursos da linguagem e das línguas, por si só, representa um pensamento aberto, atento às possibilidades e multiplicidades de interpretações da realidade, isto é, digno da vitalidade e da exuberância que podem acompanhar a filosofia. Esboço do problema político Chamamos esboço porque seria pretensioso demais dar conta desta possível relação que encontramos entre tais elementos da linguagem e constituição própria da política. Trata-se de uma tentativa, de certo modo empenhada e atenta às armadilhas que nós mesmos trouxemos ao texto, de identificar uma questão que nos parece de extrema importância e relevância filosófica: a linha tênue que separa os discursos da filosofia e da política, um do outro, e a interferência violenta que pode haver na história quando elementos

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discursivos são administrados de acordo com os interesses mais diversos. Além disso, pretendemos estabelecer de forma consistente as possíveis relações entre as estratégias da linguagem que estruturam nossa forma canônica de ver o mundo, isto é, encontrar uma forma de ligar esse problema que sairia da retórica até a política exigiria certamente outros esforços e interlocuções. Até mesmo a viabilidade de estabelecer tais vínculos pode permanecer uma questão em aberto. Mas, afinal, o que se pode fazer com um poder de interpretação tão capaz como é a filosofia se não nos propusermos a experimentar seus limites? Ainda que seja extremamente arriscado e não muito bem recebido, o esforço em renunciar às facilidades e segurança dos nossos cânones pode ser a única rota de fuga para uma filosofia que precisar de ar e de espaço. Em geral, recorremos às nossas autoridades para não errar. Quando são elas que nos induzem ao erro, ocultamos as referências para manter a segurança de um discurso que, se não é brilhante pela competência em pormenorizar adornos e preferências estilísticas de cada filósofo, nem por ainda imaginar a possibilidade de se encontrar algo original, pelo menos não será motivo de críticas ou vítima da indiferença de entendidos no assunto e cardeais da verdade estabelecida. Por um motivo ou por outro, preferimos não nos manifestar. Renunciamos à palavra. Não mais por dificuldade em dizer com precisão e clareza o que pensamos (para aqueles que ainda julgam isso possível), nem por opção em andar atrás de quem disse melhor e expressou sistematicamente os grandes problemas da humanidade. Talvez estejamos enfrentando uma espécie de vingança da história, um veneno da linguagem que criamos que hoje nos brinda com uma infinidade de impossibilidades e imprecisões que nos deixa órfãos, porque os valores que nos acalentavam o leito hoje não nos servem mais. Se isto tem de fato um estatuto de crise, é uma questão. E se for uma crise, o quão ela é insuperável ou definitiva é outra. Por isso, o problema do discurso é, sem dúvida, de uma magnitude política imensurável. Se quisermos enfrentá-lo, temos que reconhecer as regras do jogo, bem como as limitações das palavras, significados e de demais elementos concernentes à escritura. Na margem oposta à da palavra, encontramos o corpo. A matéria, por um lado, oferece um grau de objetividade interessante, sobretudo do 140

ponto de vista científico. Por outro, nos submete de uma forma violenta e avassaladora, pois além de não conseguir abarcar a completude dos objetos com nossa linguagem, tornamo-nos reféns imaculados de sua exuberância corpórea: o corpo é tão eloqüente quão a morte. Ele e a sensibilidade há muito nos criam tantos obstáculos que descredenciamos sua forma de expressão na concorrência pela verdade, por imaginar que isso pudesse facilitar o andamento da história. Ressalvas feitas, questão exposta e muito trabalho ainda por fazer. A metáfora e a ironia são dois dos elementos da linguagem que Nietzsche nos brinda tanto a partir da perspectiva de uma análise dos seus usos pela filosofia, quanto do ponto de vista de que usufrui com muita destreza para questionar valores estabelecidos e para criar outras imagens capazes de exprimir a complexidade e a grandiosidade da experiência da vida na Terra. Decerto, são muitos os demais elementos que constituem esse amplo campo da relação entre linguagem e política. Fica, a título de convite, a ilustração última desta discussão: o espantoso manejo que Manoel de Barros faz com as palavras em Matéria de poesia10, e a suspeita de que nós, na filosofia, podemos descobrir muitos caminhos observando os usos da linguagem da literatura e da poesia: As coisas jogadas fora têm grande importância – como um homem jogado fora. (...) Aliás é também objeto de poesia saber qual o período médio que um homem jogado fora pode permanecer na terra sem nascerem em sua boca as raízes da escória. Referências

ARISTÓFANES. As vespas; as aves; As rãs. Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010. 10

BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010. 141

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1999. KOFMAN, Sarah. Nietzsche et la métaphore. Paris: Payot, 1972. LOPES, Rogério. Elementos de retórica em Nietzsche. São Paulo: Loyola, 2006. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. ______. Humano, demasiado humano. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. ______. Obra incompleta. Tradução de Rubens R. T. Filho. São Paulo: Abril, 1983. (Col. Os pensadores). ______. O nascimento da tragédia. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. SUAREZ, Rosana. Nietzsche comediante: a filosofia na ótica irreverente de Nietzsche. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. ______. Nietzsche e a linguagem. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011.

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A POLISSEMIA DA “RAÇA” E SEUS DESDOBRAMENTOS POLÍTICOS NO BRASIL Claudio Cavalcante Junior Universidade Estadual do Paraná Introdução Neste texto, pretendemos apresentar uma visão geral da categoria “raça” a partir de textos chaves para em seguida discutir o preconceito racial pensado como grande entrave para a ascensão social de indivíduos negros. A solução estaria, segundo algumas perspectivas, na adoção de políticas afirmativas que tornam mais viáveis o acesso a negros a bens públicos como vagas em universidades púbicas. Antes de avançarmos nestas questões, é mister deixar claro que a “raça” tratada aqui n~o inclui qualquer tipo de essencialismo, visto que é considerada uma categoria social e culturalmente construída, apesar de sua origem estar na biologia e de ser frequente em diversos trabalhos sobre o tema discursos nativos que reivindiquem o pertencimento a um grupo racial (CAVALCANTE JUNIOR, 2008; PINTO, 2006), segundo padrões genéticos, o que não encontra consistência nas ciências naturais. Além de categoria social, “raça” também pode ser encarada como categoria política pois, é uma identidade que ao ser adotada ativa em muitos casos uma posição política do indivíduo envolvido, onde estaria a origem de movimentos reivindicatórios raciais. Ao tratar de relações raciais no Brasil, é preciso ressaltar o grande tema que se tornou parte da ideologia nacional no Brasil: a miscigenação. Gilberto Freyre (1995 [1933]) elevou esta questão à principal característica nacional contrastando com a abordagem de alguns autores brasileiros que desde a segunda metade do século XIX associavam mestiçagem à degenerescência da população (FREYRE, 1995 [1933], p. 11-41). A mestiçagem defendida por Gilberto Freyre seria fruto das relações raciais harmônicas, até certo ponto, no Brasil o que gerará críticas décadas seguintes em especial nos trabalhos que tratam da situaç~o racial no Brasil que enfocaram o “preconceito de

cor” como é o caso dos trabalhos de Oracy Nogueira (1955) e Roger Bastide e Florestan Fernandes (1959). Até o início da década de 1950, o Brasil nutria a imagem de uma verdadeira “democracia racial” por negros norte-americanos que visitaram o país do início do século XX até a década de 1940 (FRY, 2005, p. 170). Isto se devia ao fato de o Brasil ser considerado um lugar “idílico” (FRY, 2005, p. 170), onde pessoas de diferentes cores conviviam de modo harmonioso e sem problemas, mantendo relações de amizade e andando na mesma calçada. Esta visão sobre a situação racial no Brasil inspirou a UNESCO a financiar em 1954 uma série de trabalhos para descobrir “soluções” para o racismo em outros lugares do mundo. Os trabalhos realizados para o projeto UNESCO tinham como objetivo estudar “os problemas de diferentes grupos étnicos e raciais que viviam num ambiente social comum” a partir da sugest~o do sociólogo Artur Ramos (FRY, 2005, p. 216). Os antropólogos e os sociólogos que participaram deste projeto acabaram por denunciar a imensa desigualdade e preconceito racial que existia no Brasil, considerado pelos autores “mascarado” e difícil de combater (FRY, 2005, p. 170 e 216). A democracia racial como mito fundador do Brasil Em 1933, Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala tratou da mistura de culturas e da “salvaç~o” do Brasil, com sua defesa da miscigenaç~o e seus antagonismos “harmonizados”. Abordou a construção da nação e sua especificidade sobretudo em relação aos Estados Unidos onde não haveria uma relação harmoniosa entre senhores e escravos como a que ocorrera no Brasil. Nesta relação, valorizou não só o elemento africano e europeu, como o indígena defendendo a contribuição de forma positiva para a formação da sociedade brasileira de todos os três grupos. Para o autor, todo brasileiro, independente da filiação genealógica, era culturalmente africano, ameríndio e europeu, a base deste Brasil imaginado como híbrido (racial e culturalmente). A partir disso, se constitui uma imagem de “democracia racial” aceita no Brasil e no resto do mundo até a década de 1940 (FRY, 2005, p. 216).

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Em 1950, após a Segunda Guerra Mundial e dos genocídios promovidos pela Alemanha Nazista, a UNESCO divulga a primeira declaraç~o sobre “raça” afirmando que esta n~o tem fundamento biológico, no entanto as crenças em raças se mantinham como mito social (FRY, 2005, p. 15). A partir daí desenvolve um projeto-piloto que tinha com objetivo estudar os problemas de diferentes grupos étnicos e raciais que coabitavam um mesmo espaço (FRY, 2005, p. 216). O Brasil é o local escolhido para este projeto que contava com uma série de pesquisas para descobrir “soluções” para o racismo em outros lugares do mundo, pois se imaginava que era um lugar onde pessoas de diferentes “cores” conviviam de modo harmonioso e sem problemas. Esta iniciativa acaba revelando que no Brasil também é vítima do preconceito racial, apesar de ter características próprias. É neste contexto que surge grande parte de novos trabalhos sobre as populações “negras” no Brasil concentrados na quest~o do preconceito de cor. Entre os trabalhos encomendados pela UNESCO, merece destaque o de Oracy Nogueira (1955). Oracy Nogueira desenvolve seu estudo comparativo sobre preconceito racial no Brasil e nos Estados Unidos a partir da análise de modelos distintos de classificação social adotados nos dois casos que produzem formas distintas de preconceito o que ele definirá como preconceito racial de marca, caso brasileiro, e preconceito racial de origem, caso norte-americano. No Brasil, o preconceito é de marca, pois ele se exerce em relação à aparência ao passo que nos Estados Unidos o preconceito é de origem: o que define um indivíduo como negro é o fato de ter algum ancestral negro (NOGUEIRA, 1955, p. 285). No caso brasileiro, o preconceito é mais implícito, nos Estados Unidos, explicito inclusive com a segregação racial que assolou os estados do sul daquele país até a década de 1960. Oracy Nogueira apresenta a flexibilidade das fronteiras raciais no caso do Brasil, onde há a possibilidade de escolha em algumas situações e como as fronteiras são fixas no caso norteamericano (NOGUEIRA, 1955, pp. 285-286). A identidade racial no Brasil é contextualmente negociada, como pode ser visto na expressão da “cor” para o IBGE de tempos em tempos (FRY, 2005, p. 16). Nos Estados Unidos, as categorias “negro” e “branco” s~o consideradas naturais de acordo com a “one drop rule” (“regra da gota única”) (FRY, 145

2005, p. 294). A diferença é marcada por sinais diacríticos compreendidos por todos, além do elemento naturalizante desta identidade. Assim no caso norte-americano, a categoria étnica “black” (“negro”) unia descendentes de escravos africanos que possuem línguas e culturas diferente tendo como fim interesses políticos compartilhados (ERIKSEN, 1993, p. 81-82). É mister ressaltar que no Caribe h| n~o só a categoria “black”, mas também “brown” (literalmente “marrom”) (ERIKSEN, 1993, p. 83). Os “Brownes” da Jamaica, por exemplo, s~o “mestiços”, identificados com a classe média, já no caso norte-americano a categoria “brown” é inexistente, visto que qualquer um que tenha algum ancestral “black” é classificado como tal. Já no Brasil, é possível a definição racial segundo diversas cores. Uma identidade racial contextual que pode mudar de acordo com a capacidade de manipulação por parte do sujeito. Onde relações pessoais entre indivíduos de grupos “raciais” distintos como laços de amizade e admiração são testemunhadas, algo inimaginável no caso norte-americano (NOGUEIRA, 1955, p. 290, nota 29). No caso brasileiro, apesar da definição racial ser baseado em critérios físicos, há formas de driblar certas barreiras como no exemplo dado Oracy Nogueira, do negro que entra no clube recreativo no qual negros não tinha acesso. O indivíduo consegue isto quando tem alguma: [...] superioridade inegável, em inteligência ou instrução, em educação profissional e condição econômica, ou se for hábil, ambicioso e perseverante, poderá levar o clube a lhe dar acesso, ‘abrindo-lhe uma exceç~o’, sem se obrigar a proceder da mesma forma para com outras pessoas com traços raciais equivalentes ou, mesmo, mais leves (NOGUEIRA, 1955, p. 286).

No caso dos Estados Unidos, por se tratar de um país multicultural, é valorizado o fato de as identidades étnicas serem mantidas, visto que os elementos que definem a identidade nacional norte-americana não demandam um processo de desetnificação. Já no Brasil, imigrantes e seus descendentes têm de abandonar seus diacríticos étnicos para poderem se tornar brasileiros, para se integrarem adotando uma cultural nacional homogênea. Desta forma, 146

a diferença cultural não é comunicada publicamente em prol da integração na nação brasileira. Como falou um descendente de sírios a Oracy Nogueira: “O problema do italiano, no Brasil, é o da desmacarronização, assim como o do sírio é o da desquibização e, o do alemão, o da desbifização” (NOGUEIRA, 1955, p. 291, nota 29). A valorização da miscigenação é um ponto que afasta o modelo brasileiro do norte-americano. No Brasil, há a expectativa de que tipos raciais como o negro e o índio desapareçam (NOGUEIRA, 1995, p. 290). Nesta situação, há também a expectativa de que o estrangeiro (branco) abandone sua herança cultural em proveito da “cultura nacional” (NOGUEIRA, 1995, p. 291). J| nos Estados Unidos, o fato de as minorias manterem sua própria cultura, falar sua língua e ser endogâmicas é valorizado, devido à ideologia do multiculturalismo que não só reconhece como estimula a diferença dos grupos. A etiqueta de relações inter-raciais põe ênfase no caso brasileiro no controle do comportamento de indivíduos do grupo discriminador, de modo a evitar a suscetibilização ou humilhação do indivíduo do grupo discriminado o que limita os perigos de um conflito aberto (BASTIDE; FERNANDES, 1959, p. 148 e NOGUEIRA, 1955, p. 292). Esta postura diferente do caso (do sul) dos Estados Unidos onde a segregação era clara, violenta e institucionalizada, o que, unido aos demais fatores, explicaria o fenômeno do passing1. Apesar de muitas das observações feitas por Oracy Nogueira ainda serem atuais, as novas formas de classificação têm tido um grande impacto na sociedade. Assim ser negro pode passar a ser alguém que tem uma história de discriminação racial. Uma história compartilhada pode ser um critério para a produção de uma nova identidade, sem perder de vista os alicerces sustentados por questões genealógicas, ou seja ter alguma descendência africana, por exemplo, e também classe social que influenciaria a escolha da cor. Os resultados das pesquisas para a UNESCO revelaram as tensões entre o mito e o “racismo { moda brasileira” (FRY, 2005, p. 217). De forma geral, os autores envolvidos no projeto chegaram à conclus~o de que o “processo de hegemonia racial” desativaria a “consciência” da discriminaç~o racial e da desigualdade, mas estimularia a discriminação racial e a negaria ao mesmo tempo. 1

Nos Estados Unidos, há casos de indivíduos identificados como “negros”, mas com cor da pele clara, trocavam de localidade e de nome e torna-se “branco”.

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Assim, a forma mais eficaz de ascensão social se encontrava na escolha por tentar cruzar a fronteira racial visto que dependendo do contexto, “negros” podem se tornar “brancos”, ou “morenos”, de acordo com a aparência física e até do status social. Isto se deve ao fato de a identidade negra não ser objetiva ou essencializada, dentro dos padrões classificatórios brasileiros. Agora vemos indivíduos se organizando politicamente a partir do reconhecimento de uma “negritude” e que deve impulso com políticas estatais como a constituição da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, ligada ao Ministério da Justiça, em 1995. Estas estratégias são possíveis porque no Brasil a reação em relação a discriminação tende a ser individual, muitas vezes procurando o indivíduo: [...] compensar suas marcas pela ostentação de aptidões e características que impliquem em aprovação social tanto pelos de sua própria condição racial (cor) como pelos componentes do grupo dominante e por indivíduos de marcas mais ‘leves’ que as suas (NOGUEIRA, 1955, pp. 294-295).

No Brasil, a probabilidade de ascensão social está na razão inversa da intensidade das marcas de que o indivíduo é portador, ficando o preconceito de raça disfarçado sob o de classe, com o qual tende a coincidir (NOGUEIRA, 1955, p. 296). Assim os obstáculos para a ascensão social diminuem à medida que a cor clareia (BASTIDE; FERNANDES, 1959, p. 167), contrariando o que dissera Freyre para quem haveria a tendência no Brasil de favorecer o mais possível a ascensão social do negro (FREYRE, 1995, p. 415). Segundo Peter Fry (2005), a desigualdade no mercado de trabalho, e em educação, pode ocorrer mesmo entre irmãos onde o mais claro é mais bem sucedido que o mais escuro (FRY, 2005, p. 324)2. O modelo bipolar de classificação racial, como o que existe nos Estados Unidos, vem ao longo dos anos se tornando mais popular 2

O acesso a bens públicos, como vagas em universidades públicas através de cotas raciais, também pode variar entre irmãos no Brasil. Vide o caso dos gêmeos idênticos que ao tentarem ser cotistas no vestibular da Universidade de Brasília, se definindo como negros, apenas um foi aceito. Após a polêmica, a universidade voltou atrás e reconheceu o outro irmão também como negro, conforme artigo de Bassete (2007).

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no Brasil, onde a forma de pensar as identidades raciais é mais complexa. Esta complexidade pode ser constatada em pesquisa feita em 1976, que mostrou que 135 categorias de classificaç~o de “cor” ou “raça” foram mencionadas demonstrando a grande flexibilidade na escolha da “cor” no Brasil (FRY, 2005, p. 176). O modelo complexo de classificaç~o da “cor” é acompanhado pela relaç~o entre as gradações de cor e gradações de riqueza e pobreza. Assim havia as desigualdades sociais e econômicas entre os mais escuros e os mais claros, mas semelhanças culturais entre os brasileiros de maneira geral, pois compartilhariam de uma cultura única nacional. Com esta grande quantidade de cores, junto à idéia de miscigenação, o pensamento racial brasileiro acreditava que o branco poderia englobar o negro, ou seja, afastando a ideia de identidade “racial” baseada na origem, o que possibilitou a política de branqueamento com o estímulo à migração européia. Já segundo a taxionomia bipolar dos Estados Unidos, que divide brancos e negros, a raça “inferior” seria dominante, manchando ou poluindo a “pureza branca” com critérios objetivos, a descendência, que definiam as linhas “raciais” (FRY, 2005, p. 198). Com mudanças atuais no tipo de classificação no Brasil, parece haver uma espécie de redução do tipo múltiplo ou ampliação ao tipo bipolar, mesmo insistindo em três categorias. O Censo brasileiro passa a trabalhar com as categorias “preto” e “pardo” sendo que “negro” passa a englobar tanto “preto” quanto “pardo”. No Brasil, apesar da grande quantidade de classificações raciais, há a tensão entre estas duas taxonomias com o exemplo de expressões populares como “quem passa de branco preto é” (FRY, 2005, p. 224). Florestan Fernandes e Roger Bastide (1959) sentiam que a discriminação racial e a desigualdade entre brancos e pessoas de cor eram em grande parte resultantes da herança da escravidão e da dificuldade que os negros brasileiros haviam enfrentado para se adaptar ao capitalismo. Pensavam assim que com a integração do negro à economia, a desigualdade e a discriminação desapareceriam (FRY, 2005, p. 217). O preconceito de cor teria como função justificar o trabalho do africano no período da escravatura e após a abolição serviria para justificar a sociedade de classes (BASTIDE; FERNANDES, 1959, p. 13). Apesar da mudança da estrutura social com a abolição e a república, os 149

autores apontam reminiscências dos antigos estigmas dos brancos sobre os negros. Muitos brancos na década de 1950, quando fizeram a pesquisa, ainda se achavam superiores aos negros, sustentando estereótipos negativos ao considerar os negros como degradados moralmente e intelectualmente, aptos apenas para trabalhos manuais ou para a prática de esporte, principalmente do futebol (BASTIDE; FERNANDES, 1959, p. 166). Com estigmas que permanecem no sistema de classes, há uma série de dificuldades para a ascensão social do negro facilitada quando h| um “padrinho” branco que colabora para a ascens~o de alguns destes indivíduos ao isolá-los e cortar “suas raízes” raciais. Desta forma o negro passaria a se identificar com brancos chegando até a reproduzir esteriótipos negativos acerca dos outros negros em situação social desfavorável (BASTIDE; FERNANDES, 1959, pp. 116 e 140). O preconceito desta forma operaria como instrumento para impedir a ascensão do grupo de negros dificultando, por exemplo, o acesso à educação. Assim é privilegiado apenas um pequeno número para haver a preservação da ordem vigente, através deste novo mecanismo que teria substituído o sistema de escravidão que preservava a ordem senhorial até então (BASTIDE; FERNANDES, 1959, p. 89). Por fim os autores afirmam ser necessário que os negros para ascenderem tomem consciência de sua “negritude” e que superem o “tabu da cor” (BASTIDE; FERNANDES, 1959, pp. 197 e 242). Os negros precisam combater o preconceito racial na luta pela ascensão social de todo o grupo criando possibilidades, sobretudo através da solidariedade racial e da educação, para sua ascensão social promovendo finalmente sua integração nacional de fato (BASTIDE; FERNANDES, 1959, p. 234). A abordagem de Fernandes e Bastide ressoa em discursos de pessoas com algum envolvimento no movimento negro3 quando encaram a “consciência negra” como um despertar em algum momento de uma espécie de identidade adormecida e o meio através do qual superariam o atual “estado de dominaç~o”. Os autores 3

Informações colhidas nas manifestações ocorridas ao longo do dia 20 de novembro de 2007 em que era comemorado o Dia Consciência Negra realizado no Centro da cidade do Rio de Janeiro.

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essencializam a identidade negra e deixam de lado questões fundamentais nas relações raciais no Brasil como a falta de critérios objetivos para delimitar as fronteiras raciais tratando a flexibilidade destas identidades como meras estratégias para facilitar a ascensão social de alguns indivíduos. De fato a flexibilidade na escolha da cor poderia levar indivíduos a se classificarem n~o como “negros”, mas como “mulato claro” ou “moreno”. Situaç~o que pode atualmente mudar com a possibilidade de acesso a bens públicos, caso das cotas raciais no vestibular para estudantes pretos, pardos e índios4 adotadas por universidades públicas, que favorece a escolha e pode alavancar uma tomada de consciência da negritude. Tomando as identidades raciais como as identidades étnicas abordadas por Fredrik Barth, vemos que: [...] a travessia da fronteira étnica por um indivíduo, ou seja, a mudança de identidade ocorre sempre que a performance desse indivíduo não tem condições de sucesso e há outras identidades alternativas ao seu alcance (BARTH, 2000, p. 91).

O trabalho de Roger Bastide e Florestan Fernandes mostrou que a discriminaç~o racial e a desigualdade entre brancos e “pessoas de cor” eram em grande parte resultantes de um dram|tico processo histórico, passando pela escravidão e a marginalização no sistema econômico. Assim bastaria a sua integração à economia que a desigualdade e a discriminação desapareceriam. Até os trabalhos encomendados pela UNESCO, acreditava-se que no Brasil só existia preconceito de classe. Há no Brasil, país onde a miscigenação é um valor cultural, a presença de um racismo peculiar que tem como característica o fato de ser silencioso. Cultura homogênea como identidade nacional Além do Brasil, em ex-colônias portugueses na África também foi dada ênfase { “convers~o” de diversos grupos étnicos a uma cultura dominante (FRY, 2005, p. 175). Uma cultura fruto do encontro dos povos, um ideal de miscigenação cultural tem como objetivo a construção de um país homogêneo. A ameaça desta 4

Utilizamos aqui a mesma classificação racial do IBGE.

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homogeneidade pode por em risco a própria existência do Estadonação, segundo a ideologia nacional em muitos países. A valorização de uma cultura homogênea fez com que publicações em língua estrangeira e escolas onde eram ensinadas as línguas de imigrantes fossem proibidas pela Constituição de 1937, pois constituía uma ameaça a nação (LESSER, 2001, p. 218 e 230). Desta forma, toda a educação deveria ser em português e todos os imigrantes devem por fim se tornar brasileiros, abandonando sobretudo sua língua, o que rendeu a proibição por lei de se falar língua estrangeira em espaço público e privado (LESSER, 2001, p. 233). A busca pela assimilação de valores compartilhados pelo grupo é semelhante às tentativas de assimilação a uma cultura nacional tanto no Brasil, ou em ex-colônias portuguesas na África onde houve um grande esforço para a formação de uma homogeneidade cultural e linguística como em Moçambique. O Brasil também passou por um processo de homogeneização cultural o que o aproxima do modelo de Moçambique. O contraste das situações raciais nos Estados Unidos e no Brasil é semelhante à encontrada entre Zimbábue e Moçambique, que estão na base das identidades nacionais destes países. Isto se deve ao fato de serem exemplos do contraste entre os ideais de “segregaç~o” e “assimilaç~o” (FRY, 2005, p. 46). A homogeneidade cultural do Brasil, uma de suas grandes características nacionais, absorveu símbolos africanos transformados em elementos centrais da identidade nacional (FRY, 2005, p. 27). Assim há grande dificuldade de grupos negros estabelecerem seus próprios diacríticos culturais, pois muitos elementos culturais que teriam origem africana tornaram-se símbolos nacionais brasileiros. Por isso que hoje é frequente que símbolos da identidade negra venham de fora do Brasil como o reggae (no Maranhão) e o hip hop (no Rio de Janeiro e São Paulo) e da própria África na Bahia com os grupos carnavalescos “afro” para demarcar fronteiras (FRY, 2005, p. 233). Além da feijoada, o samba e o candomblé são outros exemplos de expressão cultural negra transformados em símbolos nacionais (FRY, 2005, p. 155).

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Ações Afirmativas e movimento negro Atualmente, é recorrente em etnografias como a de Paulo Pinto (2006) a retórica a respeito de uma “tomada de consciência” da negritude. Em trabalho sobre o impacto do sistema de cotas raciais na UERJ, o autor cita a grande recorrência de alunos ligados a movimento negro de frases como: “’Me descobri negro (a) h| X anos/meses’ ou ‘só me dei conta que era negro (a) há X anos/meses” (PINTO, 2006, p. 160). Em vários momentos, há esta formação da identidade, como se fosse uma identidade adormecida, cada vez mais positiva marcada, por exemplo, pela comemoração no dia 20 de novembro, desde 1995, do Dia da Consciência Negra que se tornou feriado em algumas cidades e estados no Brasil. Este dia passou a partir de então a ganhar força como um dia que é lembrado a resistência dos negros na luta pela liberdade, pois foi o a data em que teria morrido Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares (1630-1697) localizado hoje no Estado de Alagoas. Zumbi é através desse processo transformado em herói da população negra contra a opressão e o racismo. É importante também ressaltar que a Constituição de 1988 deu direito de propriedade a terras ocupadas por descendentes de escravos quilombolas. Este se torna um dia em que os símbolos outrora ligados à população de origem africana são celebrados como parte da identidade afro-brasileira ou mesmo africana. Há a reconfiguração de diacríticos étnicos, tais como o candomblé, uma “religi~o de matriz africana”, a culin|ria baiana ou o samba, que passam a ser encarados como parte de uma tradição importada da África. Estes elementos africanos passam a ser valorizados, se afastando de posturas como em relaç~o { “africanizaç~o” do carnaval em Salvador, por exemplo, j| criticada por jornais no início do século XX, naquele período, considerado uma ameaça à civilização brasileira, pois a afastava cada vez mais da “Europa culta” (RODRIGUES, 1987 [1932], p. 157-159). A “restituiç~o” destes símbolos como africanos é evidente nas comemorações nesta data que vem ocorrendo em frente ao busto de Zumbi na Praça XI, no centro da cidade do Rio de Janeiro. Uma região com um forte valor simbólico para populações negras, pois foi

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onde se instalou uma grande comunidade de ex-escravos oriundos da Bahia a partir do final do século XIX (COSTA E SILVA, 2005). Nas comemorações realizadas no ano de 2007, houve a presença de grupos de afoxé, samba, sacerdotes de religiões afrobrasileiras, políticos e militantes do movimento negro. Era enfatizado todo o tempo, a riqueza do que foi chamado de “cultura africana” que se mantém viva hoje na sociedade brasileira, além do empenho de todos na luta contra o racismo. Uma grande valorização não só da cultura de origem africana, mas da consciência desta cultura, na manipulação performática de diversos atores para exibir publicamente que eram negros. Entre estas marcas havia os cabelos com uma estética “afro”, a música e a comida. Além destas datas e da representação de heróis, Zumbi no Brasil ou Malcolm X nos Estados Unidos, merece destaque outros fatores que podem contribuir para a formação de uma identidade negra como, por exemplo, o interesse de consumir os mesmos produtos. Foi o que aconteceu quando os negros passaram a ser imaginados como brasileiros com uma estética própria (FRY, 2005, p. 264). Com o fortalecimento das ações afirmativas, que começam a ser adotadas pelo Estado, a partir da criação da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial em 1995, a identidade negra toma outro rumo. A possibilidade de pleitear vagas em serviços públicos ou em universidades a partir de critérios raciais é um importante fator que colabora com a escolha por ser negro. Algumas medidas começaram a ser tomadas após Conferência de Durban5 quando foram propostas ações afirmativas em prol da “populaç~o negra”. No Brasil, o Programa Nacional de Direitos Humanos propõe intervenções que visam fortalecer uma definição bipolar de raça no Brasil e implementar políticas específicas em favor dos brasileiros negros (FRY, 2005, p. 227). Paulo Pinto (2006) fala da manipulação da identidade racial como estratégia para indivíduos conseguirem entrar em cursos universitários concorridos como o de medicina. Esta atitude é condenada como fraude por alguns alunos, sobretudo por aqueles 5

Conferência realizada pela Organização das Nações Unidas na cidade de Durban, África do Sul, em 2001, com o objetivo de encontrar soluções para o combate ao racismo, xenofobia e demais formas de intolerância.

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ligados ao movimento negro (PINTO, 2006, p. 154). A discriminação une brasileiros “negros” de diferentes trajetórias ao torn|-los alvos de diversos agentes sociais. Eis a origem de uma memória que passa a ser compartilhada por diversos indivíduos. A escolha por determinada “cor” como estratégia para maior acesso a bens públicos pode encontrar limites devido à formalização de critérios objetivos para definir “cor” ou “raça” no Brasil através do Estatuto da Igualdade Racial que limitariam a escolha do pertencimento racial. Segundo Paulo Pinto: “Um dos pressupostos da adoção da política de cotas na universidade é a possibilidade de definir quem tem ou não o direito de ser beneficiado por tal política” (PINTO, 2006, p. 150). No texto supracitado, Paulo Pinto dá um panorama dos novos rumos que classificação racial brasileira tem tomado examinando as trajetórias dos estudantes e os efeitos da implantação das cotas raciais sobre a construção de identidades raciais, as representações de mérito individual e as identidades e representações acadêmicas entre alunos e professores da universidade, que ressoam de diferentes formas segundo valores compartilhados por estudantes dependendo do curso universitário (PINTO, 2006, p. 142). A implantação de ações afirmativas é uma das formas que promoveriam o acesso aos bens, recursos e canais de inserção e mobilidade social para indivíduos “potencialmente excluídos” através de uma série de medidas que teria por fim neutralizar e compensar os efeitos negativos da discriminação racial (PINTO, 2006, p. 136). No debate nacional, a identidade negra encarada como identidade racial ou étnica vem sendo essencializada: “como se estas fossem apenas signos ‘descritivos’ de uma ‘verdade’ inscrita na ‘natureza’” (PINTO, 2006, p. 147). As discussões, que envolvem a adoção das cotas raciais, têm oscilado entre a construção da identidade negra, como identidade étnica, a qual implicaria elementos culturais, e racial, no caso diria respeito a questões fenotípicas ou genealógicas (PINTO, 2006, p. 139). A partir desta abordagem ser “negro” ou “preto” n~o se resume {s características fenotípicas do indivíduo, pois seria também baseada no compartilhamento de uma “cultura negra” ou { exclus~o social para definir essa identidade racial (PINTO, 2006, p. 139).

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Tenta-se buscar a demarcação de fronteiras raciais que definem as identidades culturais num processo que busca a objetivação destas. Mesmo assim há casos que o autor demonstra que há possibilidade de passagem ou diluição da fronteira racial em certos contextos (PINTO, 2006, p. 150-151). Alguns dos interlocutores de Paulo Pinto apontam a possibilidade de relativização das categorias raciais a partir da manipulação performática dos traços fenotípicos. Esta manipulação estratégica da identidade racial é condenada como fraude por alguns alunos na universidade, sobretudo os ligados a movimentos sociais identitários, o que ocorre sobretudo em contextos competitivos, como quando disputam vagas nos cursos de medicina ou de odontologia (PINTO, 2006, p. 153-154). Assim os defensores das cotas raciais na UERJ, apontam para a necessidade de “mecanismos de controles” (uma “comiss~o de avaliaç~o”) para impedir “fraudadores”. Em tom irônico, um deles diz que esta comissão deveria ser formada por porteiros e policiais (PINTO, 2006, p. 155). A discriminação ganha um importante papel neste contexto ao demarcar e definir a identidade racial negra. A experiência do sofrimento seria uma das marcas que definiriam a fronteira que separa os brancos dos negros e permite mobilizar os possíveis beneficiários e distingui os portadores de identidades legítimas (PINTO, 2006, p. 158). Conclusão Este texto tentou apresentar na história do pensamento sociológico brasileiro como foi definida “raça” e como foi pensado o “racismo”, o que colabora na compreens~o da situaç~o racial no Brasil atualmente. Novos estudos foram realizados nas últimas décadas a partir das iniciativas do Estado que formou a Secretaria de Igualdade Racial e o Estatuto da Igualdade Racial e institucionalizou cotas raciais para o acesso de minorias raciais a vagas em universidades públicas. Todas estas iniciativas podem ser vistas como tentativas de consertar um “erro histórico”, devido { situaç~o de “marginalizaç~o” desde a chegada dos primeiros africanos ao Brasil. É neste contexto de transição, em que há mudanças na classificação racial no Brasil a partir de políticas publicas, que são construídas novas construídas identidades sociais em que a adoção de uma identidade racial não 156

apenas possibilita o acesso legítimo a bens públicos, mas contribui no combate de antigos estigmas e torna, de diferentes formas, positivo ser “negro”. Referências BARTH, Fredrik. O Guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. BASTIDE, Roger & FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959. BASSETE, Fernanda. “Cotas na UnB: gêmeo idêntico é barrado”. Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Vestibular/0,,MUL437865604-619,00.html. Acesso: 30 de agosto de 2007. CAVALCANTE JUNIOR, Claudio. Processos de construção e comunicação das Identidades Negras e Africanas na Comunidade Muçulmana Sunita do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Antropologia, PPGA. UFF, Niterói, 2008. COSTA E SILVA, Alberto da. “Comprando e vendendo Alcorões no Rio de Janeiro no século XIX”. In: Estudos Avançados, vol.18, n.50. São Paulo, 2004. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340142004000100024. Acesso: 30 de Novembro, 2005. ERIKSEN, Thomas H. Ethnicity & Nationalism: Anthropological Perspectives. Colorado: Pluto Press, 1993. FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Casa-grande e senzala. Formação da família brasileira sob regime de economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1995. FRY, Peter H. A Persistência da Raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África Austral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. LESSER, Jeffrey. A Negociação da identidade nacional: Imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: UNESP, 2001. MALCOLM X. Autobiografia de Malcolm X / com colaboração de Alex Haley. Rio de Janeiro: Record, 1992. 157

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O LIVRO I DOS SOLILÓQUIOS DE MARCO AURÉLIO Thiago David Stadler Universidade Federal do Paraná Quão difícil é nos libertarmos dos sepulcros do cemitério de idéias que formam o tão apregoado conhecimento histórico. Muitas vezes, prisioneiros destes túmulos, vagamos como um fantasma ocioso no jardim da história (VOLPI, 2008, p. 25): revisitamos todas as belezas e as curiosidades que este oferece à vista, mas como fantasmas somos incapazes de atuar historicamente. Alguns espíritos não contentes com esta impotência tentam desfazer as amarras tecidas muitas vezes celebradas? – pela inércia utilizando instrumentos equivocados. Assim, se faz presente a conformidade de um senso comum1 que, assim como os fantasmas que o avivaram, ignora a vivacidade do pensamento e a indispensável crítica histórica. Da mesma maneira, os desfavores de uma interdisciplinaridade cegada pela necessidade de ampliação do campo de pesquisa, sem atentar-se para o posterior imperativo de ampliação de métodos, trabalham para a depreciação do fazer história. Por último, os fantasmas proclamam a vontade redentora de enquadrar-se em um grande modelo autoexplicativo, mas esquecidos de como é a vida vivida, ignoram que todo movimento histórico é real e com toda a sua riqueza, não passível de sistematização: o que importa é a reprodução intelectual do concreto, e não a má abstração que reduz o concreto a simples elemento de um sistema (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p. 52). “Aristocratas do nada”, ampliaç~o dos problemas e n~o dos métodos, grandes modelos intelectuais2. Com todas estas “ações” estes

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Importante notar que este senso comum não se limita ao estado permanente do “conhecimento superficial”, mas adquire maiores problemas quando ditos “aristocratas do nada” tentam contemplar toda a sucessão temporal histórica como se este ato fosse possível. 2 Pode parecer que tal proposta foi superada pela historiografia contemporânea, mas a tendência em buscar “caminhos totais” continua viva. Podemos citar a paradoxal situação da manifestação pós-moderna: “Certamiente, el postmodernismo no es más que otro gran relato, quizás el último gran relato historiográfico, pero con la particularidad y la paradoja de que abomina de los

libertos, assim reconhecidos entre eles próprios, julgam escapar da escuridão e solidão do cemitério de idéias históricas, mas o que fazem é apenas reproduzi-lo cada vez mais. Assumir tais posturas é ignorar os diferentes efeitos práticos e teóricos que a difusão e a recepção dos diferentes pensamentos provocam (SÁNCHEZ VÁZQUES, 2002, p. 109), além das condições de produção do documento/monumento histórico. A pergunta que urge é: como sair deste incômodo terreno sepulcral para alcançar as férteis planícies do saber histórico? Um dos possíveis caminhos e, particularmente o perseguido neste trabalho, é entender que de uma época para outra mudam os problemas que ocupam o primeiro plano; mudam as soluções para um problema já colocado; muda a função social da história e muda igualmente o modo de exercêla, de praticá-la; ou seja, muda o ofício do historiador3 (SÁNCHEZ VÁZQUES, 2002, p. 67). Logo, o problema não é a existência de um cemitério repleto de idéias, visto que seria ignorância considerar que o mundo é composto apenas pelos vivos4, mas sim, a postura de não atualizar tais idéias, de utilizá-las sempre da mesma maneira, mesmo com diferentes problemáticas; ou seja, o engessamento de categorias teóricas.

grandes relatos como metodología de conocimiento, interpretación y representación de la realidade” (AURELL, 2008, p. 26). 3 A citação original faz referência ao ofício do filósofo. 4 Esta concepção de atualizar as noções do passado era pilar básico numa tradição histórica do mundo clássico. A dicotomia transformação x tradição já se tornava presente na forma de redigir a História naquele período. Podemos referenciar um dos trabalhos de Renan Frighetto – Transformação e Tradição: a influência do pensamento político e ideológico do mundo romano clássico na Antiguidade Tardia – o qual aborda exatamente esta temática. Frighetto constata este fato nos séculos IV e V da era cristã teorizando acerca da simultaneidade entre novas perspectivas do pensamento político das monarquias bárbaras, mas fortemente marcada pelos vínculos com a tradição clássica romana: “Encontramo-nos diante dum caso notório de recuperação da tradição política e cultural que remonta ao período romano, alcançando a Antiguidade Tardia hispânica. Não obstante, nem tudo que é recuperado é literalmente copiado, sendo esta máxima válida para os escritos que analisamos. Seria inconcebível que o texto ciceroniano, redigido num contexto específico para um público próprio, fosse aplicado sem nenhuma nova incorporação séculos depois” (FRIGHETTO, 2008, p. 36). Interessante notar como esta prática tão antiga de se fazer história desapareceu em muitos círculos atuais de historiadores, visto a perpétua repetição de pensamentos sistematizados, sem o “toque” individual do pesquisador dando novas perspectivas para futuros questionamentos.

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Trata-se de assumir uma postura que torne o pensamento pertencente ao momento estudado sem, contudo, ignorar o natural vínculo entre o pensar e o nosso próprio tempo. Cabe afirmar que para isso acontecer se faz necessário refletir sobre a história de forma rigorosa, objetiva e fundamentada (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2002, p. 40), cientes de que não alcançaremos todas as respostas5, mas que estas devem ser dadas respeitando seu caráter efêmero e transitório dentro do saber histórico. Tais respostas remontam à necessidade de quebrar esta reprodução dogmática do conhecimento histórico agindo no sentido de evitar um “estado de mobilidade perpétua” circular, que se reproduz e se repete sem fim – cultura cristalizada (VOLPI, 2008, p. 29). É nesta linha de reformulações do pensamento histórico que Jaume Aurell propôs uma inquietante questão: la historiografia occidental siempre ha rechazado otras formas de hacer historia que, no estén basadas en el racionalismo y el objetivismo. Somos incapaces, por ejemplo, de advertir que la autobiografia puede ser más histórica que la monografia, porque a pesar de toda su carga emocional puede abarcar esferas de la realidad a la que la fria monografia de archivo nunca accederá. Sin embargo, desconfiamos de este gênero por su fuerte carga subjetiva e imaginativa (AURELL, 2008, p. 25).

Sua preocupação, quem sabe provocação, recai na recusa de grande parte dos historiadores em não aceitar a validade de documentos não comuns à sua própria cultura. Interessante apontar que esta afirmação de Aurell foi proferida já no século XXI, ou seja, a tão questionada hierarquia de fontes ainda se apresenta viva entre os estudiosos. Parece-nos que para alguns destes estudiosos os termos “subjetividade” e “imaginaç~o” deveriam ser banidos do vocabul|rio do historiador, pois eles atestariam a não seriedade dos estudos históricos. Todavia, são elementos destas categorias que trazem o homem para dentro da história, se não este pode se perder em meio a 5

Salientamos que ser objetivo não exclui temas e observações subjetivas. Tornar a história um campo de afirmações comprobatórias sem o espaço para dúvidas, lacunas e subjetivismos é caminhar em um terreno perigoso. Rigor, objetividade e fundamento são necessários para a seriedade do método histórico, mas não podem apagar a carga subjetiva e imaginativa que as composições históricas carregam.

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tantos emaranhados de estatísticas, estruturas, fatalismos e determinismos (AURELL, 2008, p. 24). Esta aspiração a uma história totalmente objetiva, amplamente criticada durante o século XX, apaga um ponto fundamental da percepção histórica: os homens que aqui estiveram e que aqui estão são formados de carne, osso e contradições internas. Logo, devemos dar espaço para a imaginação e a subjetividade, pois estas fazem parte do nosso ser, mas atenção, esta abertura deve respeitar os limites do próprio objeto de estudo6. Aurell encerra esta questão de forma convincente apresentando uma tendência recorrente, mas errônea nos estudos históricos: tendemos a identificar subjetivismo e imaginación com ficción, sin caer en la cuenta de que ficción es una categoria relacionada com realidad, no con las otras dos dicotomias verdad-mentira y objetividad-subjetividad. Se puede ser muy subjetivo sin abandonar em absoluto del âmbito de lo real (AURELL, 2008, p. 26).

Realidade é quase uma obsessão dos historiadores. Atualmente dá-se preferência pela express~o “representaç~o da realidade”, mais correta em nossa concepç~o. Entender esta representatividade do real como algo construído e produzido não meramente “percebido” (ARÓSTEGUI, 1993, p. 205) é mais um caminho para fugir dos muros sufocantes do cemitério de idéias da história. Como vimos, esta construção/produção da realidade histórica também deve levar em conta a diversidade documental que possua aspectos subjetivos e imaginativos. Com eles podemos aproveitar as experiências dos homens do passado, suas dúvidas, suas incertezas, por fim, sua existência. O intelecto humano tem esta capacidade de estender-se a todo ser, ainda mais ao ser que foi. Aproveitar outras formas de fonte histórica é dar valor a este intelecto, o qual por natureza é uma mescla de objetividade e subjetividade. É através desta

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“Lo cierto es que hay uma verdad objetiva, y um pasado real, que há existido, al que podemos acceder a través de diversas fuentes de conocimiento – orales, escritas, iconográficas. Lo que muchas veces olvidamos, y parece también de sentido común, es que hay muchas maneras de acceder a ese único pasado, u no tiene por qué ser mejores unas que otras, sino simplesmente diferentes” (AURELL, 2008, p. 26).

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díade7 que o homem consegue repensar, “re-presenciar” a vida, as experiências e os atos dos homens de outras épocas (ELDERS, 2008, p. 33). Dessa forma, ampliam-se os elementos sociais capazes de construir a inteligibilidade que os homens pretendem extrair da sua própria existência (ARÓSTEGUI, 1993, p. 206). Partindo das discussões levantadas podemos propor que um dos documentos produzidos pelo homem com grande peso na questão da “existência” e, por conseguinte, da vontade de entender/relatar as situações vividas é o diário. Os diários encontram-se numa encruzilhada entre fontes exemplares para uma história que privilegie diversos pontos de vista e fonte pouco confiável, exatamente pela tendência relativizadora e eminentemente subjetiva de seu texto e da abordagem do contexto histórico. Todavia, como dito anteriormente, a carga subjetiva de uma documentação não retira sua natureza de realidade, apenas opõe-se à objetividade. Philippe Lejeune afirma que “antes que um texto, o di|rio é uma pr|tica”, que “levar um di|rio é antes de tudo uma maneira de viver” (SALATINO DE ZUBIRÍA, 2008, p. 22). É pensando nestes termos que propomos algumas considerações sobre um diário especialmente notório da antiguidade helenística: os Solilóquios8 do imperador romano Marco Aurélio (161-180 d.C.). Cabe inicialmente apresentar uma distinção necessária para as nossas considerações sobre os Solilóquios aurelianos. María Salatino de Zubiría propõe uma diferenciação entre o diário íntimo e o dietário: En el primero (diário íntimo) señala un predominio de lo afectivo; la escritura nace de las experiencias de la vida cotidiana y, generalmente, puede estar fechado. Por el contrario, 7

Aceitar esta duplicidade é imperativo para compreender o homem como ser histórico. Devemos levar em conta que a imprevisibilidade e a arbitrariedade também participam do cotidiano do homem, visto que o homem é livre em suas decisões. Porém, como afirma Elders, “pero lo que se ha hecho o lo que no, forma parte ya del pasado y está fijado para siempre”, sejam arbitrários ou não, logo, passíveis de ser estudados pelos historiadores. (ELDERS, 2008, p. 33) 8 Não se sabe como os manuscritos de Marco Aurélio foram preservados e chegaram até nós. Algumas especulações falam de dois grandes amigos do imperador, Aufidius Victorinus e Seius Fuscianus, que poderiam fazer parte do processo de conservação dos Solilóquios. Assim como de uma das filhas do imperador, Cornificia, e até mesmo de um “homem-livre” de Marco Aurélio, Chryseros que havia escrito algo sobre a fundação de Roma e, por ventura, poderia ter conservado as memórias do imperador. (BIRLEY, 2001, p. 212)

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en el segundo (dietário), importa lo intelectual, tiene carácter intemporal - se penetra en la intimidad del pensamiento del autor, pero no en las circunstancias de la vida que lo generan - y no es diario, ni íntimo (2008, p. 8).

Com esta afirmação conseguimos levantar dois pontos centrais: 1ª) num diário íntimo há o predomínio do emotivo frente à razão; 2ª) num dietário o autor utiliza-se do emotivo, mas o essencial é a transmissão racional de determinado conteúdo. A partir destas diferenças é possível aprofundar a noção amplamente difundida de olhar para os Solilóquios como um diário do imperador. Parece-nos, assim como para Zubiría, que os escritos de Marco Aurélio encontramse no exato limite entre o diário íntimo e o dietário. Ocupar esta posição limítrofe gera uma mescla entre os dois pontos citados acima, contudo o predomínio é de natureza intelectual. A obra possui caráter e poder caracteristicamente literário-filosófico, visto que seus comentários – sentenças – buscam a expressão de verdades profundas – mesmo que para isso fosse usado o emotivo, o imaginativo. Todas as suas verdades foram escritas entre 172 – 180 d.C em campanha militar contra os Quados. Daí a automática referência ao diário, visto que a maneira como foi escrito remete à dedicação em escrever nos tempos livres e sozinho9. Contudo, ao analisarmos o conteúdo dos Solilóquios encontramos o domínio do intelectual em suas considerações – aproximando-o ao dietário. Para o historiador Anthony Birley, Marco Aurélio buscou com isso treinar seu pensamento em questões que antes nunca havia pensado: Nor is it surprising that some of what he wrote could have been spoken as philosophical precepts’ to others. This may be because it represents his distilled recollections of the teaching of Apollonius or Rusticus or his other tutors. In any case, as he reveals, he tried to train himself to think thoughts that he would never be ashamed to express to anyone who suddenly asked him: ‘What are you thinking now?’ In the form in which it is transmitted the work is inevitably scrappy, repetitive, often concise to the point of obscurity, with frequent changes of 9

“There can be no doubt that Marcus wrote for himself alone, in his tent „among the Quadi‟ as in Book 2, or „at Carnuntum‟, as Book 3 is headed, in the camp of the legion XIV Gemina, and wherever else he found himself in the years from 172–180”. (BIRLEY, 2001, p.213)

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subject. Sometimes, no doubt, he had time for only a few sentences, and may have resumed writing after a gap of some days or weeks (BIRLEY, 2001, p. 213).

“O que estou pensando agora?”. Esta interrogaç~o recebe as mais variadas respostas de Marco Aurélio. Levando em consideração o momento vivido pelo imperador o que ressalta em suas “respostas” é a consciência da precariedade das coisas, da fragilidade do homem e de suas obras, do caráter efêmero de todas as coisas materiais (DAZA MARTÍNEZ, 1984, p. 279): Mesmo que fosse para viver três mil anos e tantos outros anos vezes dez mil, lembre que ninguém perde outra vida que a própria que se vive, nem vive outra além da que se perde. Em conseqüência, o mais longevo e o mais precoce confluem em um mesmo ponto. O presente, em efeito, é igual para todos, o que se perde também é igual, e o que os separa é, evidentemente, um simples instante. Logo, nem o passado nem o futuro poder-se-ia perder, porque não os temos. Tenha sempre presente, portanto, essas duas coisas: uma, que tudo, desde sempre, apresenta-se de forma igual e descreve os mesmos círculos, e não importa se estes forem contemplados durante cem anos, duzentos ou um tempo indefinido; a outra, o que viveu mais tempo e o que morreu mais prematuramente, sofrem idêntica perda. Porque só nos é privado o presente, visto que é apenas ele que possuímos, e o que não se possui, não se pode perder (MARCO AURÉLIO, 1946, II, 14).

Tais preocupações são interessantes para confrontar com uma idéia habitual – presente no cemitério de idéias – de “Idade de Ouro” que se estenderia de Trajano até Marco Aurélio10. Este 10

Pouco a pouco percebemos que apesar da atmosfera de “idade de ouro” do século II d.C, as dificuldades também estavam presentes. Alguns autores como W. Görlitz e Jesus Daza Martinez constatam este tema como um “envelhecimento do universo greco-romano” e a conseqüente confusão que este envelhecimento apontava. Já no governo de Antonino Pio o sentimento de que o Império havia chego a uma “idade senil” estava amplamente difundida, pois se constatava a precariedade das estruturas externas romanas, a fragilidade do homem e suas obras, etc. Este envelhecimento fica claro quando percebemos a mudança de foco da política “agressiva” de Trajano para a desvalorização da política e a valorização de discussões morais levantadas por Marco Aurélio (GARZÓN BLANCO, 19921994, p. 110).

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confronto pode ser melhor compreendido ao compararmos os Solilóquios de Marco Aurélio com as afirmações feitas alguns anos antes pelo apologista Élio Aristídes em seu Elogio de Roma, escrito no período de Antonino Pio – pai adotivo de Marco Aurélio – as quais buscavam transmitir noções de um período respeitoso com o passado e glorioso no presente11: “[...], pois para estar seguro basta ser cidadão romano, ou melhor dito, ser um dos que estão unidos a sua hegemonia [...], acostumou a todas as regiões a levar uma vida organizada e ordenada” (ÉLIO ARISTIDES, 1987, Discursos XXVI). O que notamos é que esta vida organizada e ordenada não se mostra fecunda nos Solilóquios aurelianos, os quais pouco convergem para a idéia de “período de ouro”, antes apontam para um momento controverso, de envelhecimento das estruturas, problemas religiosos, etc. – não necessariamente pontuados e explicitados, mas notados pelo teor da sentença. Explícito é o seu ideal pessoal (como homem12, como filósofo 13 estóico e como imperador14) encontrado numa série de exortações e conselhos que ele dá a si mesmo em uma passagem do Livro VI que inicia com uma chamada a vigilância para manter-se livre da tentação 11

Apesar das glórias relatadas no Elogio de Roma podemos notar algumas passagens que também denotam alguma fragilidade do período: “[...] desta cidade, grande em todos os seus aspetos, ninguém poderia afirmar que não foi dotada de poder na mesma medida que seu tamanho territorial. Quando se dirige o olhar desde a totalidade do Império, sente-se admiração pela cidade ao pensar que uma pequena parte governa toda a terra; porém quando se olha para a própria cidade e seus limites, já não cabe mais admiração de que toda a civilização seja mandada por ela” (ÉLIO ARISTIDES, 1987, XXVI, p. 9-10). 12 Na hora de fazer um balanço sobre a sua vida, Marco Aurélio fez-se reconhecer mais como um filósofo e moralista do que como um homem de estado e responsável pelo governo do Império. Contudo, isto não retirou todas as suas ações diante das circunstancias governamentais do império: esteve presente nos lugares mais conflituosos, agiu em rebeliões populares, tratou sobre o cristianismo, sobre a tentativa de golpe do general Avidio Casio (DAZA MARTÍNEZ, 1984, p. 280). 13 Durante a visita a Atenas em 176 que Marco Aurélio funda as quatro cátedras públicas de filosofia: epicurismo, estoicismo, platonismo e aristotelismo (CORTÉS COPETE, 1998, p. 258). 14 Como homem público Marco Aurélio apresentou inúmeras dificuldades. Fora os problemas que de fato o afetaram (pressão dos bárbaros – partos, quados, marcomanos – rebeliões militares, cataclismos naturais), ele possuía várias limitações: idealização cega do passado; falta de uma visão dinâmica da História e, por conseguinte, da vida política; sem noções para conciliar Oriente e Ocidente; sem conhecimento das aspirações das províncias do Império.

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de “cesarizar”, ou ambicionar demais o poder, continuando com uma enumeração das qualidades e virtudes15 que gostaria de ver realizada em sua vida: honradez, piedade, benevolência, amor pela justiça, firmeza no cumprimento dos deveres Cuidado! Não te converta em um César, nunca te esqueça disso, porque pode ocorrer. Mantenha-te, portanto, calmo, bom, puro, respeitável, sem arrogância, amigo do justo, piedoso, benévolo, afável, firme no cumprimento do dever. Lute por conservar-te tal como a filosofia o quer. Respeite os deuses, ajude a salvar os homens. Breve é a vida. O único fruto de uma vida terrena é uma piedosa disposição e atos úteis à comunidade (MARCO AURÉLIO, 1946, VI, p. 30).

Marco Aurélio manifesta, em suma, sua aspiração a permanecer sempre como a filosofia o formou, reverenciando aos deuses, servindo aos homens e buscando em tudo o bem da comunidade política, em cuja frente se encontra (DAZA MARTÍNEZ, 1984, p. 282). Todavia, apesar de sua preocupação com a comunidade política, Marco Aurélio não oferece em sua obra uma doutrina política em sentido estrito. De acordo com Jesús Daza Martínez “o conteúdo doutrinal de seus Solilóquios se esgota por inteiro na prática da justiça, virtude geral, ou no dever de atividade social que para cada um é predicado. A moralidade absorveu a reflex~o política” (1984, p. 293). Esta moralidade não aparece sem sentido dentro do pensamento de Marco Aurélio, já que sua formação estóica privilegiou tal ramo da filosofia – ética – em detrimento das duas outras áreas – física e lógica16 “[...] n~o ter caído, quando me atraí pela filosofia, em mãos de um sofista nem ter-me entretido com a análise de autores ou de 15

Fundada na natureza e na razão, a justiça está na origem de todas as demais virtudes. Ao enumerar os bens supremos da vida humana, situa em primeiro lugar a justiça, seguida da verdade, da temperança e do valor. Viver segundo estes bens é ser fiel às exigências da vida racional e à finalidade essencial da polis; devem ser preferidos, em qualquer caso, às riquezas, ao poder, aos prazeres, à fama. Em outro momento de suas reflexões, e desejando explicar os princípios que devem guiar as ações humanas, aconselha, antes de tudo, trabalhar como faria a Justiça mesma – deusa (DAZA MARTÍNEZ, 1984, p. 289). 16 As doutrinas da tradição estóica constituem um ponto permanente de referência para Marco Aurélio: a lógica (que incluía uma teoria do conhecimento, o estudo da linguagem, a dialética e o silogismo), a física (que incluía a teologia, as ciências naturais e a metafísica) e a ética (estudo da vida reta, da felicidade, do fim último).

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silogismos nem ocupar-me a fundo com os fenômenos celestes” (MARCO AURÉLIO, 1946, I, 17). Ao fim, a filosofia em Marco Aurélio cristalizou-se em ética17 como afirma María Salatino de Zubiría: Muy romano, este emperador que vive y se ve vivir, juzgándose desde la mirada de su ‘genio’, advierte qué tiene la filosofía de indispensable para un hombre de acción como él, en qué medida cada máxima estoica lo ayuda directamente en el oficio de cada dia (2008, p. 21).

Homem de ação, Marco Aurélio buscou responder ao chamado da tarefa pública e militar, mas seu interior lhe direcionou ao mundo silencioso das palavras e de sua entrelaçada malha de idéias. Levou vida de imperador e foi, na intimidade de si mesmo, um estudioso. Escalando os muros do cemitério de ideias A partir de agora, em consonância com a proposta inicial deste trabalho, apresentamos algumas considerações sobre o Livro I dos Solilóquios de Marco Aurélio. O Livro I provavelmente foi o último escrito por Marco Aurélio e constitui um instrumento valioso para conhecer as fontes que inspiraram o feitio de sua obra. Ao analisarmos seu conteúdo e sua forma percebemos algumas características que devem ser pontuadas: 1ª) quanto a forma do Livro I: O Livro I dos Solilóquios apresenta em dezessete sentenças todas as influências que marcaram a vida de Marco Aurélio. O interessante deste recurso é a ação de apresentação dupla: ao mesmo tempo em que conhecemos um pouco sobre cada um de seus mestres, conhecemos a “totalidade” de Marco Aurélio. Ou seja, ao exaltar as características dos outros que foram seus tutores temos a clara percepção de que estas marcas também estão presentes no próprio imperador. Dessa maneira, o Livro I pode ser entendido como uma “expressão do sujeito”, visto o acúmulo em um só indivíduo das características distintas de todos os seus amigos, mestres, familiares, deuses. 17

“Não siga discutindo sobre que tipo de qualidades deve reunir um homem bom, mas sim, trate de ser-lo” (MARCO AURÉLIO, 1946, X, p. 16).

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2ª) quanto ao teor do Livro I: primeiro, gratidão à sua linhagem (avós, pai, mãe, bisavós); logo, aos seus mestres (Diognetes, Rústico, Apolônio, Sexto, Alexandre, Frontão); depois seus amigos (Catulo Cinna, seu irmão Severo, Máximo); depois ao seu pai adotivo, o imperador Antonino Pio. Os dezesseis agradecimentos acabam em um círculo maior, o de maior extensão, que engloba a tudo: a gratidão aos deuses, porque deles procederam todos os bens anteriores (SALATINO DE ZUBIRÍA, 2008, p. 23). Toda esta gratidão torna-se um código de conduta moral a ser seguido. Os agradecimentos são feitos como forma de honrar os seus próximos, mas o mais importante – notado em todos os outros livros – é colocar em prática tais ensinamentos. Ou seja, Marco Aurélio através da gratidão define as regras que deveriam reger sua vida e, naturalmente, de todos aqueles que buscassem a vida reta. Neste ponto nos damos a liberdade de ousar. Ao atentarmonos para as duas condições do Livro I – “express~o do sujeito” e “definiç~o de regras” – e da posterior repetição de grandes temas filosófico-estóicos18 nos outros onze livros, percebemos uma singela aproximação com uma técnica musical – quanto à forma de escrita/composição – desenvolvida no período medieval e aprimorada no século XVI: a técnica fugal, ou simplesmente Fuga. Esta composição musical é construída como se o compositor estivesse fugindo e perseguindo o tema central utilizando-se de seu variado repertório musical. O interessante ponto que nos saltou aos olhos é a exata idéia de uma Fuga iniciar-se com a definição das regras e a expressão do sujeito musical. Já o término pode ser feito através de uma recapitulação de toda a composição, buscando uma unidade da obra. Todas estas características da técnica fugal – “definir regras e expressão do sujeito no primeiro momento”; “recapitulaç~o e

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Dogmas fundamentalmente estóicos chegaram até Marco Aurélio, resumidos, claros, contundentes, listas para ser aplicadas diretamente às condutas diárias: a distinção entre as coisas que dependem de nós e as que não dependem; a certeza de que somente no homem descansa o juízo sobre as coisas; de que pensamento e vontade são os verdadeiros bens interiores; de que tudo mais é supérfluo e deve nos deixar indiferente; de que o sábio preferir antes a resignação e a renúncia (sustine et abstine) do que as coisas e o sucesso; deve conformar-se com a ordem natural e necessária dos acontecimentos graças a um sentido claro da providência universal imanente a tudo que existe (SALATINO DE ZUBIRÍA, 2008, p. 5).

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unidade19” – nos influenciaram a propor uma definição para os Solilóquios aurelianos: tal obra constitui um instrumento de fuga e perseguição. No primeiro caso do momento vivido por Marco Aurélio – seu exterior -, já no segundo, referente aos seus ideais, seu pensamento – seu interior: Muitos para seu descanso buscam as casas de campo, a beiramar, os montes; coisas que você mesmo sonha com anseio; porém tudo isto é supérfluo [...] em nenhuma parte o homem tem um retiro mais quieto nem mais despreocupante que dentro de seu espírito; sobretudo aquele que possui em seu interior tais bens, que ao inclinar-se até eles, consegue de imediato a tranqüilidade total (MARCO AURÉLIO, 1946, IV, p. 3).

No tocante ao fim buscado pela técnica fugal – perseguição à unidade do todo – traçamos um paralelo com a procura da unicidade das coisas almejada por Marco Aurélio, fortemente influenciado por Heráclito20: Conceba sem cessar o mundo como um ser vivente único, que contém uma só substância e uma única alma, e como tudo se refere a uma só faculdade de sentir, e como tudo o faz com um só impulso, e como tudo é responsável solidariamente de tudo que acontece [...]. (MARCO AURÉLIO, 1946, IV, p. 40).

Depois de definir as regras gerais e a apresentação do sujeito no Livro I, Marco Aurélio apresenta um plantel de temas nos outros onze livros, mas ao final todos devem convergir em um único ponto: uma vida baseada na filosofia. Diferente do compositor de uma Fuga que utiliza o arranjo de suas notas preferidas para fugir/perseguir diversos temas e, no fim, atingir a unidade musical, Marco Aurélio foge 19

Influenciado por Heráclito e inserido na tradição estóica e ciceroniana, Marco Aurélio estabelece uma vinculação profunda entre os conceitos de natureza, razão, lei e justiça. A idéia de unidade é a base última de sua metafísica, de sua doutrina moral, de sua filosofia jurídica e de sua concepção de política. 20 A harmonia antagônica ou harmonia de tensões é a lei das coisas e unidade do mundo, unidade não por cima ou por baixo dos contrários, mas nos contrários por eles mesmos. Há a perpétua necessidade de tensão entre os contrários para que haja o perpétuo devir do Uno criador. Nada se mantém o mesmo, tudo sempre está diferente, justamente pelo conflito/tensão e posterior harmonia dos contrários (DAZA MARTÍNEZ, 1984, p. 284).

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e persegue seus assuntos guiado pelo silêncio de seu pensamento, mas buscando uma igual unicidade O tempo da vida humana, um ponto; sua substância, fluente; sua sensação, turva; a composição do corpo humano, facilmente corruptível; sua alma, um peão; sua fortuna, algo difícil de conjecturar; sua fama, indecifrável. Em poucas palavras: tudo que pertence ao corpo, um rio; sonhos e vapor, o que é próprio da alma; a vida, guerra e estância em terra estranha; a fama póstuma, esquecida. O que, então, pode nos dar companhia? Única e exclusivamente a filosofia (MARCO AURÉLIO, 1946, II, p. 17).

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ARRAZOADO ORTEGUIANO X TEORIA DAS ELITES Antonio Charles Santiago Almeida Universidade Estadual do Paraná Considerações Iniciais A discussão ora proposta dedica-se a compreender a dimensão política e filosófica dos conceitos cardeais que articulam o pensamento do filósofo e político espanhol Ortega y Gasset (18831955). Ademais, pretende-se diferenciar o pensamento orteguiano da discussão de a Teoria das elites, elaborada pelos teóricos Gaetano Mosca (1858 -1941), Vilfredo Pareto (1848-1923) e Robert Michels (1876-1936). O debate permite compreender o que Ortega chama de império brutal das massas. Este império é resultado de uma sociedade que estimulou, a partir do século XIX, a participação em demasia das massas no cenário político e social. Decerto que os dois últimos séculos foram marcados por inúmeros movimentos de massa, por isso uma parcela significativa de pensadores debruçou-se na tentativa de compreender o fenômeno social e político denominado de sociedade de massa, oriundo, ora dos movimentos sociais, ora da participação popular. Mas os teóricos de a sociedade de massa não esgotaram a reflexão e deixaram lacunas no que diz respeito ao surgimento e à participação popular das massas, isso porque, segundo Ortega, o século XIX principia o advento das massas em todos os lugares da sociedade. É evidente que a discussão da teoria da sociedade de massa é fruto de uma análise histórica, sobretudo depois da revolução burguesa ocorrida na Inglaterra no século XVIII, da Revolução Francesa e tantas revoltas populares em que eram visíveis as massas no seio do movimento. Pensadores se dedicaram a compreender o avanço das massas e sua ação na sociedade moderna, uma vez que a história apresentava o surgimento de um grupo social: a massa, que determinava as condições de mudanças em quase toda a Europa. Dessa forma, fazia-se necessário empreender um estudo sistemático em torno desse novo fenômeno para compreender a dinâmica que se fazia presente na sociedade vigente.

Ortega percebe a importância da discussão sobre a sociedade de massa e retoma os conceitos, que, segundo ele, são capitais para entendimento dos problemas sociais e políticos da Espanha e, consequentemente, da Europa, a saber, minorias e massas. Contudo, ele não tipifica a divisão entre minorias e massas pelas classes sociais; sua reflexão perpassa a idéia de uma sociedade que se desvela não apenas pela questão econômica, mas se estende às questões religiosa, moral, política e cultural, pois a vida não é só economia – assevera Ortega. Como já fora dito, havia uma presença demasiada das massas no cenário social e político, e as teorias científicas tentavam impedir o descolamento das massas do papel de coadjuvante para o de protagonista da vida política. É nesse contexto que Ortega divide a sociedade em duas categorias, minorias e massas, e, para isso, é necessário considerar o momento histórico em que se encontrava o autor e sua reflexão em torno do homem à luz da perspectiva histórica. Quando a discussão gira em torno dos conceitos de minorias e massas, o rechaço à filosofia política de Ortega se agrava, pois quase sempre o leitor, de forma arbitrária, toma de empréstimo os conceitos marxistas de sociedade para tentar compreender o arcabouço teórico orteguiano. Entretanto, o próprio Ortega já havia assinalado que a sua filosofia difere e muito da compreensão marxista no que tange a discussão conceitual de minorias e massas, pois minoria não é a burguesia, como também, massa não é o proletariado. Faz-se premente esclarecer que Ortega não é um pensador elitista semelhante aos teóricos da sociedade de massa, ainda que haja certa ambigüidade no seu posicionamento, pois ora ele se define como liberal, ora esboça reações conservadoras em seus textos, é impreciso denominá-lo de teórico elitista ou marxista. Todavia, seu liberalismo perpassa a transitoriedade conceitual e se expressa no que vem a denominar de raciovitalismo, ou seja, a vida compreendida como razão última ou, ainda, a vida como razão histórica circunstancial. Nesse sentido, toda relação, do ponto de vista da equivalência, com teóricos elitistas ou marxistas será equivocada e improfícua. Intenta-se, de forma parcial, fazer incursões no pensamento elitista e promover uma diferenciação teórica da epistemologia de Ortega com relação aos pensadores Mosca, Pareto e Michels.

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Teoria das elites: sociedade de massa x pensamento orteguiano I Mosca, pensador italiano, autor de várias obras, dentre as quais se destaca A Classe Dirigente, publicada em 1896, foi um teórico elitista, que compreendeu a sociedade por meio de duas classes, a saber: classe dirigente e classe dirigida. Uma espécie de lei natural, isto é, uma observação histórica em que se evidenciam, desde os primórdios, uma minoria que governa e a maioria que é governada. Na perspectiva do autor, a divisão é natural e se faz sentir ao longo da história, pois sempre existiu uma classe para dirigir e outra para ser dirigida na sociedade. A tal respeito, Mosca escreve “em todas as sociedades – desde as parcamente desenvolvidas, que mal atingiram os primórdios da civilização, até as mais avançadas e poderosas – aparecem duas classes de pessoas: uma classe que dirige e outra que é dirigida” (1999, p. 51). A discussão basilar é a permanência dessa configuração entre governantes e governados, em que os governantes serão sempre a minoria – conjunto de indivíduo de capacidade intelectual, moral ou mesmo hereditária das aristocracias. Sobre isso, Mosca afirma: “Sabemos que em nosso país, qualquer que seja ele, a direção dos interesses públicos está em mãos de uma minoria de pessoas influentes, direção essa à qual, voluntária ou involuntariamente, a maioria se submete” (1999, p. 51). Porém, n~o é verdade que, para Mosca, a minoria é sempre herdeira da aristocracia, pois existem outros elementos que compõem a classe dirigente. Segundo o autor, ainda que a própria história tenha demonstrado que as minorias advêm da hereditariedade, não é correto sustentar que se trata de uma realidade imutável. Isso porque é comum em qualquer movimento a organização de uma classe dirigente que não necessariamente tenha um vínculo com a aristocracia hereditária, pelo contrário, a classe dirigente se constitui com a organização. Nessa perspectiva Mosca afirma: Finalmente, se tivéssemos de sustentar a idéia dos que afirmam que a influência do princípio de hereditariedade na formação das classes dirigentes é única e exclusiva, seriamos levados a uma conclusão parecida com a que fomos levados pelo princípio 175

evolucionário: a história política da humanidade deveria ser bem mais simples do que é. Se a classe dirigente realmente pertencesse a uma raça diferente, ou se as qualidades que a habilitam ao domínio fossem transmitidas primordialmente por hereditariedade orgânica, é difícil ver como, uma vez formada, a classe poderia declinar ou perder o poder (1966, p. 67).

Portanto, a ideia de uma classe dirigente é tão presente para Mosca que, de acordo com ele, mesmo que a massa resolva, por meio de uma rebelião ou revolução, tomar o poder, haverá, dentro da massa, a formação de uma minoria para dirigir a sociedade, pois é impossível que não exista uma minoria na condução de qualquer organização humana. A esse respeito afirma: [...], supondo que o descontentamento das massas conseguisse depor uma classe dirigente, inevitavelmente, como mostraremos mais adiante, seria necessária outra minoria organizada no seio das massas para executar as funções de uma classe dirigente (MOSCA, 1966, p. 53).

A discussão ora apresentada possibilita a divisão da sociedade, bem como a necessidade de uma minoria, para assegurar os destinos da sociedade, e esta, independente da hereditariedade, configura-se por meio da organização de indivíduos que precisam comandar a sociedade. A tese da classe dirigente sustentada pelo autor corrobora com uma divisão entre os que governam, a minoria, e os governados, as massas, para o bom funcionamento da sociedade. Para Mosca, nunca, na história da humanidade, houve uma sociedade que não estivesse dividida entre a minoria que dirige e a massa que obedece. Esta é a lei que rege a humanidade. Porém, ainda que tenha sido a teoria em discussão no momento de formação intelectual de Ortega, este, no que diz respeito à configuração da minoria como classe dirigente, não corresponde à leitura de Mosca, pois a sociedade, segundo o autor espanhol, não é governada pelas minorias, pelo contrário, a massa na contemporaneidade é que conduz e determina os destinos da sociedade. A influência do pensador italiano se evidencia no pensamento de Ortega quando se trata de compreender o fenômeno visual que se fazia presente na sociedade contemporânea – as massas. 176

As observações que fazem os teóricos mencionados partem da realidade histórica do momento, mas ambos buscaram a fundamentação de suas teorias na própria história, quer dizer, observaram o passado e buscaram identificar a participação das massas no processo político ao longo dos tempos. Para Mosca, a massa tem um papel bem definido – obedecer e legitimar uma minoria que nascera para o mando – mesmo havendo mudança conceitual do que se entende por minoria ou elite no processo de direção da sociedade. Para esse pensador italiano, é notória a obediência das massas desde as primeiras civilizações. Já para Ortega, as massas, no passado, obedeciam e sabiam de seu lugar na sociedade, a saber, não participar de nada que era importante e seleto às minorias. Mas na contemporaneidade, houve uma variação histórica e o que se percebe é precisamente uma rebelião das massas, uma espécie de homem gregário que resolveu aparecer e comandar a sociedade. A alusão ao fenômeno que o pensador espanhol chama de cheio ou aglomerado é a demasia da multidão despossuída de singularidade. Nesse entendimento afirma: [...] de repente a multidão tornou-se visível, instalou-se nos lugares preferenciais da sociedade. Antes, se existia, passava despercebida, ocupava o fundo do cenário social; agora antecipou-se às baterias, tornou-se o personagem principal. Já não há protagonista: só há coro (ORTEGA Y GASSET, 1987, p. 43).

Contudo, faz-se necessário observar o dissenso entre os teóricos, no que diz respeito aos conceitos que cercam as suas teorias, uma vez que eles se diferem à medida que vão discorrendo e esboçando seu pensamento. Em relação à questão das massas, mesmo que os argumentos de Mosca tenham influenciado a formação intelectual de Ortega, o filósofo espanhol retoma o conceito com base no que ele chama de qualitativo e não mais quantitativo, isto é, a massa é o conjunto de indivíduos que se encontra no mundo sem condição de pensar a sua realidade circunstancial por meio de sua própria singularidade. De acordo com o autor de A Classe Dirigente, a massa é o conjunto de indivíduos desqualificados intelectualmente e desprovidos de poder na sociedade e que, por isso, servem apenas

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para legitimar o exercício da classe dirigente de forma pacífica e harmônica – pois esta é a sua natureza. Outro ponto de dissenso entre esses teóricos se apresenta na medida em que compreendem o surgimento e a formação das minorias: em Mosca, a minoria está diretamente associada à riqueza, pois riqueza produz poder. Assim, ele compreende a minoria como a classe abastada da sociedade que detém o monopólio da produção econômica, cultural e política. Mesmo que, no passado, o domínio e a predominância de uma classe sobre outra tenham ocorrido pelo uso da violência ou coisa do gênero, hoje, o domínio que uma minoria exerce e dirige a sociedade se faz por meio da riqueza. Nessa perspectiva, assegura Mosca: “A riqueza, e n~o o valor militar vem a ser a função característica da classe dominante: as pessoas que dirigem são os ricos e n~o mais os bravos” (ORTEGA Y GASSET, 1987, p. 59). A minoria1 é definida pelo autor como a classe que dirige a sociedade. Além disso, nunca houve ou mesmo haverá um governo de massa, pois sempre existirá a constituição de uma minoria preparada para exercer a direção da sociedade – pensa Mosca. Cabe notar, todavia, que mesmo havendo a influência do debate em torno da história das idéias deste autor na elaboração teórica de Ortega, é possível perceber o seu distanciamento para com a teoria elitista esboçada por Mosca, quando o filósofo espanhol não pensa a condição de massa associada diretamente a uma questão de natureza. A discussão se orienta pelo aparecimento desordenado das massas no cenário político e social, isto é, o que se observa na contemporaneidade é “[...] o advento das massas ao pleno poderio social” (ORTEGA, 11987, p, 41). Para Ortega, as massas se constituem num fenômeno contemporâneo, ou mesmo moderno, e não algo trans1

A idéia de minoria é associada à direção da sociedade, ou seja, só é possível o desenvolvimento de uma sociedade por meio de uma minoria que se configura segundo o autor: “No entanto, além da grande vantagem decorrente do fato de serem organizadas, as minorias dirigentes são usualmente constituídas de tal maneira que os indivíduos que a constituem conferem certa superioridade material, intelectual e mesmo moral; ou então são herdeiros de indivíduos que possuíram tais qualidades. Em outras palavras, os membros de uma minoria sempre possuem um atributo, real ou aparente, que é altamente valorizado e de muita influência na sociedade em que vivem” (MOSCA, 1966, p. 55). Aqui é visível uma diferença capital entre Mosca e Ortega: para aquele, a minoria é quem dirige a sociedade, já para este, a minoria deveria dirigir a sociedade, mas quem assume a direção da sociedade é justamente a massa que se rebelara contra a minoria.

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histórico. Esse conceito orteguiano distancia-se da concepção de Mosca e permite pensar a compreensão política do século XX e, também, perceber que o “elitismo” do pensador espanhol é mediado por uma crítica ao desordenamento que a vida moderna cria em termos políticos, levando, por exemplo, ao fenômeno da massa tanto da direita fascista, quanto da esquerda leninista com a noção de ditadura do proletariado. Vê-se que a discussão apresentada anteriormente origina-se de uma observação, também, histórica e visual. Ortega difere de Mosca, no que diz respeito às classes dirigentes ou minorias, quanto a sua formação que, segundo o espanhol, não se configura pela riqueza, quer dizer, ainda que os ricos estejam no seio da minoria, não significa que eles sejam a representação ideal desta categoria, uma vez que riqueza também é condição de massa, na medida em que esta não produz vitalidade nos indivíduos a ponto de transvalorar2 as condições materiais em perspectivas de vida finita e histórica. O expediente que Ortega percorre é conceitual, político e sociológico, já apresentado anteriormente, e, por isso, sua contribuição e inovação fazem-se justamente pelo caráter de singularidade e vitalidade que deve assumir cada indivíduo na passagem da massa à minoria, pois a noção de massa e minoria é cultural e não de natureza. A discussão, ora ensejada, não é solipsista, pois Mosca elaborou análise histórica para discorrer, ao longo dos tempos, sobre a divisão da sociedade em duas classes já mencionadas. Ademais, o autor estuda como se constroem as minorias e, para isso, faz um passeio entre as questões da religião, da hereditariedade e até das lutas militares para apontar como a riqueza, na sociedade moderna, configura-se como fonte de poder e dominação das massas, a verdadeira constituição das minorias. A inclusão desse pensador, expoente do pensamento político do século XIX, neste debate é para que se perceba sua influência e motivação na elaboração intelectual de Ortega, ainda que este efetue uma leitura diferenciada do que Mosca denomina de classe dirigente. 2

Esse conceito é utilizado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844 - 1900) para demonstrar como é possível a destruição, a inversão e a criação de novos valores. Ortega segue o mesmo expediente na medida em que discute a mudança de perspectiva de sociedade por meio do homem especial.

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Todavia, mesmo com o deslocamento conceitual que faz Ortega, é necessário que se considere que ele partiu, a priori, da reflexão que faziam os teóricos da sociedade de massa. II Vilfredo Pareto (1848-1923) é classificado como teórico elitista e expoente da teoria da sociedade de massa. A sociedade é, segundo Pareto, dividida em duas classes sociais: de um lado, a elite e, do outro, a massa. Nesse sentido afirma o pensador: “Quer certos teóricos gostem ou não, o fato é que a sociedade humana não é homogênea, que os indivíduos são física, moral e intelectualmente diferentes” (1966, p. 71). De acordo com essa reflexão, os homens não são iguais e, por isso, precisam e devem se organizar de forma diferente. Para este teórico é de fundamental importância que se tome a sociedade como um complexo sociológico de diversas faces e que, portanto, para compreensão da questão social e política é necessário pensar a categoria dos que mandam e a dos que obedecem na sociedade moderna. Esta relação, segundo o autor, é natural. E por isso não se pode postular a sociedade como deveria ser, mas, antes de tudo, como de fato é a própria sociedade e sua divisão social. Nesse sentido, adverte Pareto: O mínimo que podemos fazer é dividir a sociedade em dois extratos – um estrato superior, que usualmente contém os dirigentes, e um estrato inferior, que usualmente contém os dirigidos. Esse fato é tão óbvio que sempre se fez presente nas observações mais superficiais, acontecendo o mesmo com a circulação dos indivíduos entre os dois estratos (1960, p. 76).

Ortega persegue o mesmo caminho de Pareto e não aceita que se tome como verdade absoluta a igualdade dos indivíduos, mesmo porque eles são, pela sua própria formação humana, diferentes. O problema é que, segundo o pensador espanhol, desde a revolução francesa, os intelectuais liberais defendem o nivelamento dos indivíduos de acordo com a noção de igualdade e liberdade. Com isso, perdem-se a singularidade e a particularidade de cada indivíduo

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na formação de sua história circunstancial, bem como a constituição de uma sociedade nobre por meio do esforço contínuo de cada sujeito. Com relação à divisão da sociedade, Ortega pensa segundo a compreensão cultural e, assim, coloca de um lado as massas, e do outro, as minorias. Já para Pareto, a elite se divide em duas categorias, a saber: elite governante3 e elite não governante. E quando este autor trata de elite, ele se refere a uma classe que manda e dirige a sociedade. Esta é que determina as forças de produção e dominação da própria sociedade. E o que resta desta divisão é justamente, segundo Pareto, um extrato inferior de sociedade, o que hoje se pode chamar, baseado na divisão proposta pelo pensador, de massa social. Pode-se afirmar, sem os contrastes teóricos, que há uma mobilidade nas elites em Pareto, uma circulação de elites. Nesta perspectiva, Pareto afirma: “As aristocracias n~o perduram por muito tempo. Quaisquer que sejam as causas, é um fato incontestável que depois de certo tempo elas morrem. A história é um cemitério de aristocracias” (1996, p. 77). Mas a mobilidade não é social, pois o extrato inferior da sociedade não pode formar uma elite. O que ocorre segundo este pensador é justamente uma circulação de aristocracias. Mas a sociedade sempre viveu e viverá sob o comando de uma aristocracia que se renovará e se substituirá. As observações de Pareto partem de uma análise histórica, para ele, só por meio de uma aristocracia autêntica é possível o bom desenvolvimento de uma sociedade. Porém, o pormenor é que ocorre uma circulação de classes, bem como o ajuntamento de pessoas em torno do poder que n~o é mais possível falar de “puras aristocracias”. Caso não ocorresse o ajuntamento, a história da humanidade seria outra, poder-se-ia falar de perfeição de sociedade. 3

A discussão das elites é, basicamente, uma temática dentro da sociologia de Pareto. Raymond Aron, na obra As Etapas do Pensamento Sociológico, faz uma reflexão ampla em torno da sociologia de Pareto e acrescenta a questão dos “resíduos” e “derivações” para, posteriormente, compreender a análise da sociedade que faz Pareto. Ainda que a discussão que se pretende não é de dessecamento dos conceitos paretianos, mas antes de tudo, estabelecer uma relação possível de consenso e dissenso com o filósofo e político Ortega. Vale uma leitura da conceituação das ações humanas lógicas e ações humanas não-lógicas que Aron faz da sociologia de Pareto. Com relação a precisão de elite governante e não governante é uma construção de hierarquia dentro dos possuidores do poder que se denominam de elite.

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Ortega parte da discussão do momento, que era compreender a participação das massas no processo político para, a partir daí, delinear uma nova proposta de política para sociedade espanhola. Mesmo sabendo que o filósofo espanhol difere de Pareto, em relação ao conceito de aristocracia, é importante considerar a discussão apresentada por este, pois suas análises apontam para um problema que era visível no século XIX – a ascensão das massas ao poder social. Esse caráter sociológico de Pareto permite compreender a formação dicotômica da sociedade, pois, segundo ele, as aristocracias não são eternas e, por isso, a humanidade é justamente, na perspectiva de Pareto, um cemitério de aristocracias. A sociedade é semelhante a um organismo vivo e, como há o fluxo sanguíneo para garantir a vida, assim também há a circulação das elites, sem a qual é impossível que a sociedade sobreviva. E quando isso não ocorre ou se dá de forma lenta, a sociedade se desestrutura e sobrevêm a violência e o caos social. É premente apontar a descrença com relação aos movimentos socialistas, ou ainda, o governo de massas. Uma revolução social, no entendimento de Pareto, nada mais seria do que a substituição de uma elite por outra, de formação diferente, mas, no fim, nunca haveria o governo de massa ou uma revolução socialista, pois se forma no centro do poder uma minoria que assume o governo e, conseqüentemente, o poder. E tudo não passa, segundo Pareto, de discurso para insuflar o coração das massas no sentido de tomada de poder e sua distribuição. A discussão da teoria da sociedade de massa e o debate político que os teóricos propõem permitem pensar, com base em um momento histórico, a participação das massas. O século XIX vive a euforia de uma política iluminista em que as massas são cada vez mais motivadas a participar na sociedade e, por isso, crescem os partidos políticos, os discursos em torno da democracia e agigantam os movimentos sociais. É nesse contexto que teóricos disputam a compreensão desta sociedade em movimento. A discussão que é denominada de elitista propõe a restrição da democracia e nega a noção de igualdade no processo político para todos os indivíduos. Ortega é considerado muitas vezes como teórico elitista, mas não se pode afirmar de forma categórica que o pensador espanhol defenda a teoria elitista de sociedade. É preciso estabelecer uma 182

relação de diferenciação teórica entre Ortega e os pensadores da sociedade de massa. Após a relação entre os pensadores, faz-se necessário verificar o aporte teórico de cada pensador, para, posteriormente, definir se, de fato, o pensador espanhol comunga das idéias elitistas, ou se apenas usa parte do expediente para formular sua discussão em torno das massas. De acordo com a discussão apresentada, Ortega conceitua o homem massa da seguinte maneira: “Portanto n~o se deve entender por massa, nem apenas, nem principalmente, ‘massas oper|rias’. Massa é o homem-médio” (1987, p. 44). Para o filósofo de Madrid é preciso definir a tipologia de homem e em seguida o seu papel social, pois, diferente de Pareto, as aristocracias são decadentes e estão ligadas a uma noção de liberalismo equivocado, o que resulta em uma sociedade deformada política e socialmente, isso porque não é visível na esfera pública a presença das aristocracias autênticas. É certo que tais pensadores compreendem a sociedade à luz da heterogenia social e que, por isso, precisa de uma liderança para comandar os destinos das massas e do espaço público. Mas esta liderança é permeada por uma formação e pela origem aristocrática dosada por um alto grau de superioridade. E esta é, segundo Pareto, uma realidade que ninguém compreende – a sociedade não é homogênea, ou seja, há uma relação de superioridade e inferioridade na humanidade. Ortega corrobora com esta idéia, mas não a postula como Pareto, ou seja, para ele, há o caráter heterogêneo na sociedade, mas não significa que se trate de uma posição natural. Esta heterogenia é cultural e depende das vontades de cada sujeito envolvido no processo circunstancial, o que não caracteriza uma relação de superioridade e inferioridade entre os indivíduos. Entretanto, a questão corresponde a tipologia de homem denominada homem-especial4 e homem-massa. Quer dizer, a heterogenia é patente, porém não é natural, mas cultural, pois depende das escolhas que cada indivíduo passa a executar em seu meio social. 4

Não se pode tomar como homem-especial o burguês, ou ainda, o sujeito-elite que preconiza a teoria da sociedade de massa. Este sujeito se percebe como finito e histórico e, por isso, tem a responsabilidade de transformar a sua circunstância em espaços melhorados para o bem comum.

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III Michels, sociólogo alemão era de família burguesa o que lhe possibilitou viajar e conhecer outras culturas, mas foi na Itália, em contato com os socialistas, que ele se tornou, em 1902, socialista. De volta à Alemanha, aderiu à social- democracia e se tornou militante no período de 1903 a 1907. Como teórico e militante, aproximou-se da ala esquerdista do partido e, ainda, estabeleceu relações com o grupo anarco-sindicalista. Mais tarde rompeu com a estrutura partidária da social-democracia, denunciou a falta de democracia no interior do partido e, também, apontou o uso em demasia do poder pela classe dirigente. É consenso entre os historiadores que Mosca, Pareto e Michels são os fundadores da teoria da sociedade de massa ou, como é também denominada, Teoria das Elites. Michels faz uma análise sociológica dos partidos políticos e aponta a presença de elite no seio de partidos políticos de esquerda. A obra capital deste pensador é Sociologia dos Partidos Políticos, publicada em 1911, que provoca um furor nos partidos políticos e de forma especial nos partidos socialistas. Adverte-nos o autor na obra citada: “A organizaç~o tem o efeito de dividir todo partido ou sindicato profissional em uma minoria dirigente e uma maioria dirigida” (MICHELS, 1982, p, 21). H| um detalhe importante em relação a Michels e os demais teóricos elitistas: não se trata simplesmente de um teórico que faz uma análise histográfica neutra, mas de um militante que se decepcionou com a social-democracia, por isso sua observação é mais do que uma teoria como fizeram Mosca e Pareto. Sua percepção parte da concretude de um partido socialista. Não se pode, entretanto, tomar a leitura da obra Sociologia dos Partidos Políticos como referência científica na questão dos partidos políticos ou mesmo da democracia, pois seus escritos são determinados por motivações particulares. Contudo, mesmo sendo uma obra que nasce da decepção de um militante esquerdista, é possível aproveitar suas observações no que concerne à teoria da sociedade de massa, basta citar que ele apresenta uma questão de bastante relevância: a manipulação política de uma classe que controla e dirige. Segundo Michels: “(...) a massa se deixa sugestionar facilmente pela eloqüência de poderosos oradores populares” (1982, p. 17). Vê-se, segundo o autor, uma massa que se 184

deixa seduzir e que, por isso, legitima o discurso de democracia e que, no fundo, não passa de manobra política de uma classe que dirige o partido e, em proporções largas, dirige a sociedade. Cabe considerar que Michels se decepciona com o modelo de democracia e assegura que, no processo democrático, as massas são úteis apenas na escolha de seus dirigentes e que não há outro papel para elas após o sufrágio, a não ser o de serem dirigidas. Assegura também que, cada vez mais, é necess|ria a presença de chefes no processo político: “A massa é reduzida a contentar-se com prestações de contas sumaríssimas ou a recorrer a comissões de controle” (MICHELS, 1982, p. 23). E o pormenor desta teoria é justamente o desejo das massas de terem seus chefes e aceitarem pacificamente seus destinos de serem dirigidas. O debate que faz Michels encontra na obra Psicologia das Multidões5 respaldo teórico para desenvolver suas teses sobre democracia e participação popular. O autor de Sociologia dos Partidos Políticos faz citações de fragmentos de Psicologia das Multidões para elucidar o problema proposto em torno da democracia e da impossibilidade das massas participarem da vida pública. Nesta perspectiva é que Michels esclarece: “A multid~o anula o indivíduo, e, desse modo, sua personalidade e seu sentimento de responsabilidade” (1982, p. 17). A questão é que, segundo este autor, a sociedade, semelhante ao partido, dispõe de multidão, e não de indivíduos, quer

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Gustave Le Bon (1997), teórico da sociedade de massa, na sua obra Psicologia das Multidões, faz um diagnóstico da sociedade e atribui às massas a responsabilidade de todo sofrimento social e político do mundo moderno e acrescenta o desvio de personalidade dessa multidão que resolveu se rebelar e participar das questões sociais e políticas. Ou seja, o pensador descola o foco dos reais problemas sociais e políticos e atribui às massas a culpa dos problemas da sociedade moderna. Tal pensador não consegue estabelecer uma conexão entre a complexidade do mundo moderno e o advento da técnica e da fábrica como causadores da crise social e política. Octavio Ianni faz uma análise da questão sociológica das multidões e apresenta uma reflexão histórica do mundo moderno e suas complexidades. Segundo ele, não se trata de uma questão meramente social ou política, pois vários são os fatores que vão contribuir para as manifestações no campo ou na cidade e conseqüentemente as revoluções sociais e políticas. Em outros termos, não basta a classificação das massas como responsáveis pela crise social e política, é preciso que se observem fatores sociais, econômicos, culturais e religiosos no processo de construção de sociedade (Cf. IANNI, Octavio. A Sociologia no Mundo Moderno. In: Tempo social. São Paulo: Editora da USP, 1989, p. 7-27).

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dizer, a multidão não pensa, não dispõe de reflexão singular, por isso se deixa sugestionar por promessas e discursos. Ortega perfaz outro caminho. Reconhece a presença da massa no processo político e entende que ela é violenta e destrutiva, enquanto os teóricos elitistas esboçam uma sociedade em que as massas seguem um destino definido que é o de serem dirigidas. Para o pensador espanhol, o que ocorre é uma rebelião desse fenômeno contra uma classe que deve dirigir os destinos da sociedade. A análise de Ortega é de ruptura; não se trata de perceber o papel das massas no cenário social, mas de coibir seu avanço na sociedade moderna, pois, de repente, ela apareceu e assumiu o comando da sociedade. O que se testemunha é justamente uma sociedade de massas “comandando” uma sociedade moderna. Contra todos os teóricos elitistas, propugna não haver uma elite governando a sociedade, o que há é a massa em todos os lugares da sociedade. Seguindo esse raciocínio, adverte o pensador espanhol: “Agora, os povos-massa resolveram que aquele sistema de normas que é a civilização européia caducou, mas, como são incapazes de criar outro, não sabem o que fazer, e para preencher o tempo ficam dando cambalhotas” (ORTEGA Y GASSET, 1987, p. 170). Esta é a configuração política da Europa. O homem massa não aceita o mando de uma minoria qualificada e, ainda, quer mandar na sociedade, mas não sabe como fazer isso. Dessa forma, passa todo o seu tempo destruindo os ideais e valores que os antepassados edificaram com tanto sacrifício. Mas, retomando aos teóricos elitistas mencionados, é possível perceber nos três pensadores aspectos distintos e fundamentais em relação à concepção de democracia, socialismo e participação popular. A discussão apresentada por eles nasce de um período de intenso movimento sócio-político que abalava as estruturas circunstanciais de um regime decadente, o Ancien Régime. Estas reflexões surgiram como decorrência da presença das massas no processo político e social e, por isso, de certa forma, acabaram fortalecendo o antigo regime e endurecendo os aparelhos ideológicos do Estado contra os movimentos sociais e de massa. E como se não bastasse, tudo isso era justificável como proteção da própria democracia. Para os pensadores da teoria da sociedade de massa, a importância era estruturar o debate em torno de duas classes sociais e, para isso, precisavam determinar a atuação de cada classe pelo que se 186

entende por elite e massa, ou ainda, a relação entre ambas na estruturação da sociedade e no seu bom desenvolvimento. Decerto que Mosca, Pareto e Michels efetuaram leituras semelhantes entre si, todos irão identificar a presença da massa na sociedade moderna e sua característica essencial – garantir o poder a uma minoria. Faz-se necessário considerar que cada teórico mencionado discorre de maneira particular em espaços circunstanciais diferenciados e com singularidades específicas. A menção a eles é para que se compreenda o debate político em torno da temática apresentada, mas, também, o caminho que Ortega perfaz na compreensão de uma nova concepção política. O filósofo espanhol observa, à luz dos conceitos de minorias e massas, a qualidade dos indivíduos envolvidos no processo político, por isso os denomina de massa e minoria sem qualquer relação com a noção de quantidade ou multidão. Nesta medida, a discussão modifica a análise da percepção que deram os seus antecessores ao problema conceitual de “massas”. À guisa da conclusão A discussão apresentada não fora de compreensão política com base na história da filosofia, pelo contrário, intentou-se promover um debate estrutural que circundasse as histórias das ideias políticas a partir da filosofia de Ortega já presente em outros autores denominados de teóricos elitistas. Mesmo porque o filósofo espanhol persegue o mesmo expediente dos teóricos elitistas, a saber: compreender a sociedade de sua época e articular diagnóstico conforme a especificidade que a realidade circunstancial reclama. Entretanto, a compreensão orteguiana difere da dos demais pensadores pela capacidade de repensar os conceitos de minorias e massas e restabelecer seus significados por meio de uma lógica própria que se configura na relação com outros conceitos perspectiva e circunstância. Ortega y Gasset reconhece o debate que fizeram os teóricos ao logo da história e acrescenta que ele pretende provocar uma reflexão que imbrica da questão conceitual e começa diferenciando o conceito de massa dos teóricos elitistas, com base no que ele chama de “qualitativo”. A massa não é o conjunto de trabalhadores, tampouco o 187

coletivo de miseráveis que vivem à margem da sociedade capitalista. Nessa perspectiva, afirma que: [...] Desse modo converte-se o que era apenas quantidade – a multidão – em uma determinação qualitativa; é a qualidade comum, é o monstrengo social, é o homem enquanto não diferenciado dos outros homens, mas que representa um tipo genérico (ORTEGA Y GASSET, 1987, p. 44).

Vê-se uma preocupação com este novo fenômeno – a massa – , que pode se desde uma pessoa ao seu coletivo e, ainda, sujeito que se sente como todo mundo e não dispõe de singularidade específica, ou seja, não atribui a si mesmo valores e que, por isso, vive como todo mundo. E o grande problema é justamente o nivelamento do homem moderno, que é massa, que orquestra por meio da violência em defesa de suas paixões e seus desejos. Com a descrição deste fenômeno, o autor denuncia o que acontecerá mais adiante, a barbárie do nazismo e do fascismo. A discussão em torno da massa se inicia com a obra Espanha Invertebrada, publicada em 1921, que se divide em duas partes: a primeira, Particularismo e Ação direta, e, a segunda, Ausência dos Melhores. Segundo o autor, faz-se necessário apresentar à Europa a enfermidade que sofre a Espanha e, por conseguinte, a desintegração dos seus espaços públicos, isto é, não há na Espanha uma vértebra política capaz de reunir os homens em torno de um projeto grandioso de nobreza para o povo espanhol. Nesse sentido, afirma Ortega y Gasset: “Assim, quando uma naç~o se recusa a ser massa – isto é, a seguir a minoria diretora – a nação se desintegra, a sociedade se desintegra, e ocorre o caos social, a invertebraç~o histórica” (1959, p. 97). Como já apresentado, havia uma presença demasiada das massas no cenário social e político, e as teorias científicas tentavam impedir o descolamento das massas do papel de coadjuvante para o de protagonista da vida política. Contudo, do ponto de vista metodológico, a discussão tomou por base uma análise interna da obra A Rebelião das Massas, buscando compreender alguns dos seus conceitos e a relação entre eles para obtenção do mote político-filosófico em seus escritos, já que a discussão conceitual começa na obra As Meditações de Quixote, perpassa pela obra Espanha Invertebrada e será sistematizada e concluída nos escritos A Rebelião das Massas. Dessa forma, pretendeu188

se por meio da articulação conceitual, compor uma rede explicativa da teoria político-filosófica deste autor e sua importância no debate em torno da política. Simultaneamente, ampliou-se uma relação de Ortega com outros teóricos para formalização de um diálogo possível respeitando o consenso e dissenso entre os mesmos no que confere a singularidade teórica de cada autor.

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SOBRE OS AUTORES Antonio Charles Santiago é professor da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR-FAFIUV). Graduado em Filosofia, Especialista em Educação, Cultura e Memória, Mestre em Ciências Sociais. Aluno do Doutorado em Educação pela UFPR e bolsista da Fundação Araucária. (E-mail: [email protected]) Armindo José Longhi é professor da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) e da Universidade do Contestado (UnC). Graduado e mestre em Filosofia pela UFSM. Doutor em Educação pela UNICAMP. (E-mail: [email protected]) Claudio Cavalcante Junior, nascido em Niterói (RJ) no ano de 1981, é professor de filosofia e antropologia da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR). Graduado em Filosofia (2004) pela UFRJ e mestre em Antropologia pela PPGA/UFF. Giovane do Nascimento é professor da Universidade Estadual Norte Fluminense. José Maria Arruda é professor da Universidade Federal Fluminense. Luiz Alberto de Boni é professor-pesquisador da Universidade do Porto/Portugal. Foi professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, onde foi Diretor da Unidade (1988-1992). Presidiu a Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval (1991-1998), da qual foi um dos fundadores. Presidiu também a Associação Brasileira de Estudos Medievais (2001-2005). Samon Noyana é professor do Curso de Filosofia da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR/FAFIUV). Graduado em Filosofia pela UFRJ, mestre em Filosofia pela UFOP e doutorando em Filosofia pelo PPFG/UFRJ.

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Sandro Luiz Bazzanella é doutor em Ciências Humanas pelo Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGICH). Professor de Filosofia da Universidade do Contestado. Selvino José Assmann é doutor em Filosofia pela Pontificia Università Lateranense – Roma. Professor do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGICH). Thiago David Stadler é doutorando do programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. Membro do Núcleo de Estudos Mediterrânicos – NEMED. Walter Marcos Knaesel Birkner é graduado em Ciências Sociais pela FURB, mestre em História Política pela UnC e doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP. Professor da Universidade do Contestado atuando nos cursos de graduação e mestrado.

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Esta obra foi composta com tipografias Cambria 11 e impresso nas oficinas gráficas da Editorial Rotermund, com papel off-set 75g e capa em papel Cartão Supremo 250g, acabamento Prolan. Os livros da Editora LiberArs são impressos com papel oriundo de áreas de reflorestamento planejado e de empresas ambientalmente responsáveis.

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