Constant Nieuwenhuys - New Babylon: um esboço para uma cultura

July 21, 2017 | Autor: Daniel Cunha | Categoria: Utopia, Comunismo, Marxismo, Arquitetura e Urbanismo, New Babylon
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[-] Sumário # 5 EDITORIAL

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ENTREVISTA A CRISE DO PT E DO TRABALHO DE BASE NO BRASIL com MARCO FERNANDES

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ARTIGOS DOSSIÊ “CONSTANT” – Nota editorial

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CONSTANT E A VIA DO URBANISMO UNITÁRIO

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Guy Debord

NEW BABYLON - Um esboço para uma cultura

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Constant Nieuwenhuys

DESCRIÇÃO DA ZONA AMARELA

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Constant Nieuwenhuys

UM PROJETO EM CONSTRUÇÃO

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Uma deriva pelo espaço-tempo de “New Babylon” Daniel Cunha e Raphael F. Alvarenga

ESPAÇO SOCIAL E SOBREVIVÊNCIA DO CAPITALISMO

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A teoria da reprodução social de Henri Lefebvre Cláudio R. Duarte

FUTEBOL, CAPITAL, SADOMASOQUISMO

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O espetáculo como pseudo-jogo e montagem perversa Cláudio R. Duarte

PACTO COM AS TREVAS

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Uma leitura materialista de “Heart of Darkness” Raphael F. Alvarenga e Cláudio R. Duarte

A LOUCURA COM MÉTODO

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O Delírio e o Humanitismo nas “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Quincas Borba” Cláudio R. Duarte

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TRADUÇÕES LITERÁRIAS NO TEMPO PETRIFICADO – Introduzindo Brecht

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Rodrigo Campos Castro

O SOLDADO DE LA CIOTAT

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Bertold Brecht

LEITURAS E COMENTÁRIOS A IGUALDADE JURÍDICA SOB SUSPEITA

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Joelton Nascimento

EXPEDIENTE

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New Babylon Um esboço para uma cultura Constant Nieuwenhuys

I. O urbanismo de New Babylon “La poésie doit être faite par tous. Non par un.”1 Lautréamont

Modelo de sociedade A questão de saber como os homens viveriam em uma sociedade sem fome, sem exploração, e também sem trabalho, em uma sociedade onde, portanto, todos, sem exceção, pudessem desenvolver plenamente a sua criatividade, esta importante e intrigante questão evoca a imagem de um ambiente material que se diferencia essencialmente de tudo o que conhecemos, de tudo o que já foi estabelecido no campo da arquitetura e urbanismo. A história não pode nos oferecer comparações: a massa dos homens nunca foi livre, ou seja, criativa; nunca teve o conceito “criatividade” outro significado senão o de um desempenho particular de um indivíduo particular. Portanto, se assumirmos que todo trabalho não-criativo possa ser automatizado, que a produtividade assim possa aumentar de forma que nenhuma carência tenha de existir no mundo, que a terra e os meios de produção sejam socializados e a produção então racionalizada, de forma que o poder que alguns exercem sobre muitos cessaria de existir, se nós, em resumo, adotarmos como realizável o “reino da liberdade” (Marx), então não podemos nos satisfazer com a colocação da questão acima mencionada, mas devemos, em um esforço para responder àquela questão, vislumbrar um modelo de sociedade (ainda que esquemático), onde este conceito de “liberdade” seja aplicável. Por “liberdade” naturalmente não entendemos aqui a possibilidade de escolha entre várias alternativas, mas a ótima ativação da potência criativa de cada um. Se agruparmos todas as formas sociais conhecidas até aqui sob o denominador “utilitaristas”, então o modelo a ser projetado estará relacionado a uma sociedade “lúdica”. O conceito “lúdico” representa todas as atividades que, independentemente da utilidade ou 1

“A poesia deve ser feita por todos. Não por um.” Em francês no original (N. do T.)

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função, resultam da fantasia criadora; porque somente como ser criador pode o homem realizar-se plenamente e atingir as suas mais desenvolvidas condições de existência. Quando tentamos vislumbrar a imagem de uma sociedade na qual todo indivíduo está em condições de criar sua própria vida, de dar a ela a forma que esteja mais de acordo com os seus desejos mais profundos, então encontramos pouco apoio nas formas e imagens que surgiram no longo período da existência humana, nas quais os homens devem sacrificar a maior parte de sua energia na luta contínua pela sobrevivência. O modelo de sociedade que queremos desenvolver não somente se diferenciará fundamentalmente de todos os modelos anteriores, mas também será qualitativamente muito superior. Podemos começar com o estabelecimento de alguns pressupostos. - Através da automação de atividades repetitivas “úteis”, energia humana é liberada em massa para outras atividades. - A propriedade coletiva da terra e dos meios de produção e a consequente racionalização da produção de bens de uso abrem a possibilidade de aplicar esta energia na atividade criativa. - O desaparecimento do trabalho produtivo torna obsoleto o controle coletivo do tempo, de forma que este é liberado em escala colossal. - Se a ligação com um local de trabalho deixa de existir, tampouco há a necessidade de uma ligação com um local fixo de habitação e residência: o homem é dotado de maior mobilidade individual.

A rede É claro que o homem que tem a liberdade de gastar o seu tempo – todo o seu tempo de vida – da forma que escolher, e deslocar-se quando e para onde queira, dificilmente pode utilizar esta liberdade em um ambiente que está organizado segundo a regularidade do relógio e da localização fixa de cada indivíduo. Os requisitos do homo ludens para o seu ambiente deverão ter relação com o jogo2, a aventura, a mobilidade, com todas as condições que facilitem a livre criação de sua vida. Até agora os homens se preocuparam principalmente com a exploração do mundo natural. O homo ludens quer realmente transformar este mundo, 2

O substantivo holandês spel, assim como o inglês play, pode ser traduzido como jogo, brincadeira ou toque (de instrumento musical), e seu sentido no holandês original abarca os três significados. O mesmo vale para o verbo spelen: ik speel voetbal (eu jogo futebol), ik speel piano (eu toco piano), ik speel met de kinderen (eu brinco com as crianças). Ao longo deste texto, o substantivo jogo e o verbo jogar devem ser entendidos neste contexto.

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metamorfoseá-lo de acordo com as suas novas necessidades. Exploração e criação de seu ambiente devem coincidir: por um lado, ele próprio deve criar o terreno de sua exploração, e de outro, ele explorará a sua própria criação. Trata-se de um processo jamais acabado de criação e recriação do ambiente vital, sob a influência de um impulso coletivo colossal que resulta de todas as atividades vitais do conjunto dos indivíduos. Levando-se em conta a liberdade de tempo e a liberdade de localização que tomamos como pressuposto, deveremos chegar a uma nova forma de urbanização. O significado original, urbanismo [stedebouw] = construção [bouw] do assentamento, não rima com a flutuação que será a consequência lógica desta liberdade. Sem ligação com horários fixos e localizações fixas, não há nenhuma razão significativa para pensar em outra forma de vida que não a nômade, entendendo-se que este modo de vida acontece em um mundo artificial, construído. Chamemos este mundo de New Babylon e estabeleçamos imediatamente que New Babylon pouco ou nada tem em comum com uma “cidade” no sentido corrente da palavra. A cidade é a forma de urbanização que é típica para a sociedade utilitarista: originalmente uma fortaleza para a proteção contra um mundo exterior hostil; mais tarde, como “cidade aberta”, um centro comercial; finalmente, na era da mecanização, um centro de produção. Em todos estes casos a cidade é na realidade o lugar de residência de um determinado número de habitantes fixos que através de sua forma de vida são vinculados àquele lugar. Naturalmente, há exceções: as relações entre cidades abriram reciprocamente a possibilidade de mudar o local de residência a um número limitado de indivíduos, e através disso levar a cabo um processo de aculturação que fez com que algumas cidades, juntamente com sua função utilitária, desempenhassem também o papel de centro cultural. Mas também aqui tratava-se de fenômenos raros com os quais somente uns poucos se envolviam. A cultura de New Babylon na verdade não se baseia em desempenhos isolados ou em situações excepcionais, mas na atividade vital total de todos os homens, e cada uma delas está em relação dinâmica com o seu ambiente: nada prende o indivíduo a priori: tanto a frequência de seus movimentos quanto as distâncias que são percorridas dependem de decisões que são tomadas espontaneamente, e que espontaneamente podem ser modificadas. O tráfego social mostra sob estas condições uma imagem continuamente transformada, com desdobramentos imprevisíveis, e portanto não pode ser comparado com as estruturas sociais de uma vida comunitária constituída utilitariamente, com seus padrões de comportamento sempre repetidos. A forma de urbanização deve estar em consonância com a dinâmica do tráfego social. Isto significa que New Babylon, em contradição com a cidade-comoassentamento, deve ser muito mais organizada em seu macroaspecto, mas infinitamente mais 35

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complicada e flexível em seus microaspectos. A liberdade para uma forma de vida criativa exige de fato a maior independência possível de preocupações materiais, o que novamente implica que é preciso haver um abastecimento coletivo ampliado. Através da flutuação que surge como consequência da mobilidade do indivíduo, serão colocadas demandas muito maiores a este abastecimento do que no caso de uma cidade funcional com uma população sedentária. Além disso, a automação deve dar lugar a uma concentração da produção, o que levará ao surgimento de centros de produção gigantes, apartados do espaço vital humano. A localização destes centros de produção fora do espaço vital e a distribuição dos centros de abastecimento dentro do espaço vital determinam as grandes linhas da macroestrutura, dentro das quais se desenvolve uma refinada microestrutura, sob a influência de impulsos que permanecem indeterminados, e portanto requerem um alto grau de flexibilidade. Destas duas condições – organização otimizada da vida material de um lado, e maximização da possibilidade de desenvolvimento para cada indivíduo de outro, – chegamos a um esquema estrutural que não consiste em núcleos, como uma estrutura de habitação (habitat), mas que se baseia nos rastros que as pessoas desenham em sua errância: uma rede que pode expandir-se em todas as direções. Esta rede surge através de correntes de unidades ligadas entre si, nas quais se encontram os centros de bem-estar e outros suprimentos para a organização da vida social. Nos “nós” desta rede se encontram os centros de produção automatizados, sem a presença do homem. A unidade básica onde a rede é construída, e que indicaremos a partir de agora como SETORES, são, ainda que construtivamente autônomos, ligados entre si, de modo que a rede forma um espaço contínuo que é experimentado sem descontintuidades pelos que lá se encontram. New Babylon não termina em lugar algum (o mundo é redondo), não há fronteiras (porque não há economias nacionais), não há comunidades (porque a humanidade flutua), todos os locais são acessíveis por todos. O planeta inteiro é o lar de toda a população do planeta. Todos se deslocam no momento que querem, de onde e para onde querem. A vida é como uma jornada infinita em um ambiente que se transforma com tanta frequência que é sempre experimentado como novo.

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Realização A realização de New Babylon só pode começar quando estiver em questão uma economia que reconheça somente um objetivo: a satisfação de nossas necessidades, no sentido mais amplo do termo. Sem tal economia, a automatização total de todas as atividades não-criativas e portanto também o desenvolvimento da criatividade total do conjunto da humanidade é desde já impensável. A construção de New Babylon deve ser vista como um lento processo de crescimento, onde um setor após o outro tomará o lugar das estruturas urbanas previamente disponíveis. Inicialmente surgirão setores independentes entre si, entre as aglomerações populacionais existentes. Posteriormente, serão formadas ligações, em especial à medida que o tempo de trabalho diminui, e com isso o funcionamento dos centros habitacionais piora. Eles serão inicialmente terrenos para o encontro e as relações sociais, uma espécie de centro cultural. À medida que o número de setores e suas interconexões aumentam, as atividades dentro destes setores poderão tornar-se mais autônomas em relação às zonas habitacionais: uma forma de vida neobabilônica estará na ordem do dia. Esta forma de vida neobabilônica irá desenvolverse quando grupos de setores se reunirem em ramificações de uma estrutura em rede, e através disso possam concorrer com a estrutura habitacional existente, cujo sentido se perderá à medida que a participação do homem no processo de produção diminui. Tendo em vista que este desenvolvimento será levado a cabo em muitos lugares simultaneamente, vários destes agrupamentos de setores surgirão, que lentamente formarão ligações entre si, e finalmente será formada uma totalidade conectada. Na fase inicial a disseminação de setores e grupos de setores fará com que a necessidade de circulação rápida aumente: os trajetos através das áreas habitacionais devem ser tão curtos quanto possível quando se quer ir de um setor a outro. Mais tarde, na realidade, quando o mundo dos setores começa a tornar-se uma totalidade conectada e a flutuação ganha significado, isto será necessário em menor grau para a troca rápida de ambientes. A flexibilidade e transformabilidade do espaço interno dos setores abrem a possibilidade de um ambiente vital ricamente variado em uma área relativamente pequena. Os meios de transporte rápido serão menos necessários. Eles assumem uma nova função: deixam de ser máquinas para o transporte, e passam a ser máquinas para o jogo.

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Topografia O significado que esta rede de setores possui como espaço social e a interconexão dos setores que é sua pré-condição tornam impossível o compartilhamento do espaço vital com o espaço para o transporte rápido. Dentro do espaço vital ocorre um fluxo contínuo, mas em andamento lento: a circulação aqui vem junto com a totalidade da atividade vital, é um aspecto que não deve ser diferenciado dela. Contudo, persistirá existindo, ainda que agora em menor medida, uma certa necessidade de deslocamento rápido incidental, por ar ou – para curtas distâncias – por terra. Para a circulação aérea, heliportos e pistas de decolagem podem ser localizadas em cima dos setores. Para o transporte rápido por terra é necessária uma rede de estradas, que na verdade não precisa coincidir com a rede de setores. Para manter estas redes separadas e tão autônomas entre si quanto possível, será necessário colocá-las em diferentes níveis. A melhor forma de fazê-lo é construindo os setores em grande medida suspensos em relação à superfície, sobre suportes, cuja quantidade é preciso ser limitada ao máximo, de forma que o solo permaneça livre. No que se refere à forma, isto tem como consequência que o dimensionamento é predominantemente horizontal, com grande espraiamento. Uma vantagem disto é que em cima dos setores um sistema contínuo de terraços pode ser instalado, de forma que surge um segundo nível ao ar livre, bem acima do nível do solo: uma paisagem artificial sobre uma paisagem natural. O interior dos setores, como consequência de suas grandes dimensões, é essencialmente dependente do fornecimento de energia para iluminação, ventilação e climatização, uma “dependência” que contém uma liberação do ritmo de sucessão de dia e noite, uma liberação há muito aspirada pela humanidade. Tomado globalmente, o mapa de New Babylon mostrará a imagem de uma estrutura em rede de setores, em sua maior parte acima da superfície terrestre, e, abaixo, ao nível do solo, uma segunda rede de estradas. Os “interstícios” desta rede consistem em áreas abertas não construídas, com exceção dos centros de produção e outras instalações que não poderiam localizar-se dentro do espaço social dos setores, como antenas de transmissão, eventuais minas ou torres de perfuração, monumentos históricos, observatórios e outras construções para a pesquisa científica. Estas áreas não construídas serão constituídas em parte por solo cultivado para a produção de alimentos e em parte por reservas naturais, bosques e parques. A estrutura em rede traz como consequência que estas áreas abertas são diretamente acessíveis a partir dos setores circunvizinhos, sem que para isto uma distância significativa tenha de ser percorrida.

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A representação topográfica de New Babylon é um problema que não pode ser resolvido com os meios tradicionais da cartografia. Por um lado, o mapa de New Babylon deveria ser tridimensional, pois o espaço se desenvolve em diferentes níveis (nível do solo, interior da rede de setores, nível dos terraços), e a conexão destes níveis, a maneira pela qual eles estão interligados e se amalgamam, somente poderia ser ilustrado com um modelo espacial. Por outro lado, além disso, as estruturas não são permanentes, mas trata-se de uma microestrutura que se modifica incessantemente, de tal forma que também o fator tempo tem papel importante como quarta dimensão. Também no caso de um modelo espacial a representação só poderia ser incidental. Quando este modelo espacial puder ser simplificado em certo número de plantas em diferentes níveis e em certo número de cortes (o que já produz um volumoso atlas para cada setor), os desenhos, através de indicações simbólicas, devem tomar tal forma que as transformações topográficas de cada momento possam ser registradas, de forma que surgiria uma espécie de diário gráfico, independente para cada setor. O uso do computador será imprescindível na busca de uma solução para este problema.

O setor O setor é o menor elemento, a unidade construtiva da rede neobabilônica, o “elo” a partir do qual se forma esta rede em forma de corrente. Este setor, compreensivelmente, possui dimensões muito maiores do que os elementos – ou construções – de que são constituídas as cidades que conhecemos. A escala destes elementos está relacionada com o padrão dos laços sociais. Nas comunidades agrárias aldeãs, onde as relações humanas são tecidas estreitamente nas ligações familiares, este elemento consiste na habitação unifamiliar isolada. Nas cidades industriais, onde as ligações familiares foram invadidas por relações que provêm do caráter social do trabalho produtivo (educação, local de trabalho, agrupamentos sociais e políticos, recreação), através do que cada membro de uma família forma suas próprias relações sociais, independentemente das relações familiares, surgem unidades de escala muito maior: blocos habitacionais para muitas famílias, às vezes contando com serviços comunitários. Em ambos os casos os homens ainda sedentários possuem um padrão de vida regular correspondente. Quando realmente estiver em questão não somente a desintegração da família, mas também o desaparecimento do necessário entrelaçamento da divisão do tempo com a divisão do espaço que o trabalho produtivo traz consigo – coerção coletiva de neste ou naquele momento permanecer neste ou naquele lugar – então virão abaixo os últimos vínculos. Isto

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não significa que não existirão mais relações mais ou menos duradouras, mas sim que estas não mais seriam relações sociais coercitivas, mas ligações emocionais com a possibilidade de variação e mudanças. Já através da flutuação a quantidade de potenciais contatos e encontros será muito maior do que em uma comunidade sedentária. O setor consiste em uma construção-base, dentro da qual se executa a construção do meio vital. Esta construção-base deve ser desenvolvida de forma que, através da construção móvel do espaço vital (microestrutura), persista a maior liberdade possível. Em sua forma mais simples, pode-se imaginar uma construção-base que consiste em alguns planos horizontais estendidos uns sobre os outros, com ligações verticais entre si e com o solo, e um ou mais núcleos fixos para o abastecimento material. Dentro do espaço assim formado uma complexa estrutura de pequenos espaços vitais variáveis pode desenvolver-se. Além de construções suportadas, pode-se também pensar em construções flutuantes, penduradas em mastros, um setor pendente. Uma outra possibilidade é uma construção auto-suportada, que oferece a vantagem de ter menos pontos de apoio, mas onde a liberdade de divisão do espaço é mais limitada, porque a estrutura-base deverá ter mais influência sobre o módulo e também sobre as dimensões da microestrutura. A escolha de uma estrutura de tipo apoiada, suspensa ou auto-suportada para a construção de um setor dependerá das condições geográficas locais, entre outras. A estrutura-base pode ser vista como portadora da estrutura interna móvel. As dimensões do setor são tão grandes que a demolição ou mudança de sua forma geral é um empreendimento considerável. Somente quando a estrutura-base for tão neutra quanto possível e a estrutura interna variável permaneça independente dela, poderiam as mudanças no interior do setor, como se exige em uma forma de vida lúdica, ser executadas sem dificuldade. A construção variável é realizada com o auxílio de sistemas a ser desenvolvidos de elementos avulsos: paredes, pavimentos, escadarias, escadas portáteis3, tubos, pontes, etc., que devem ser transportáveis (leves) e fáceis de montar e desmontar (reutilizáveis várias vezes). O desenvolvimento deste sistema é evidentemente impossível sem a padronização dos tamanhos e a estandardização da produção. O dimensionamento da construção-base deve claramente basear-se no módulo destes elementos-padrão. Isto não deve ser nenhuma

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A fim de manter a diferenciação presente no original entre trappen (escadas portáteis constituídas de duas barras paralelas nas quais se inserem barras perpendiculares que constituem os degraus, podendo ser de uma ou duas folhas) e ladders (escadas geralmente fixas com estrutura em forma de pódio), traduziremos neste texto as primeiras por “escadas portáteis” e as outras por “escadarias” (N. do T.).

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limitação das possibilidades ou simplificação da forma a representar. Uma grande quantidade de tipos normalizados podem ser combinados e vários sistemas podem ser aplicados concomitantemente. A partir destes dados podemos agora lentamente formar uma imagem do setor em sua forma mais simples e esquemática: um corpo construtivo dimensionado predominantemente na horizontal, com uma superfície de talvez 10 a 20 hectares, geralmente livre da superfície do solo, 15 a 20 metros sobre o nível do chão, com uma altura total de 30 a 60 metros. Neste corpo construtivo há um ou mais núcleos fixos, onde há espaço para uma central técnica, um centro de serviços com quartos para uso individual (hotel) e também, em alguns setores, instalações para cuidados médicos, creches, armazenagem e distribuição de bens de uso, e também bibliotecas, espaços para estudos e pesquisas científicas e para o que mais for necessário. Estes núcleos requererão uma parte do espaço-setor. A maior e mais essencial parte do corpo do setor para New Babylon é realmente o espaço social com a sua construção móvel, o campo de ação do homo ludens. Uma unidade construtiva de dimensões tão grandes como o setor é muito mais independente do ambiente exterior do que um prédio de escala menor: a luz do sol, por exemplo, penetra poucos metros no interior, de forma que uma grande parte do setor deve ser iluminado artificialmente; a absorção do calor solar, ou o resfriamento por uma baixa temperatura externa em um corpo tão grande necessita de tanto tempo que variações da temperatura do ar externo terão muito pouca influência na temperatura dentro do setor. As condições climáticas dentro do setor (intensidade da luz, temperatura, umidade, condições atmosféricas, ventilação) deverão ser totalmente controladas através de instalações técnicas. Isto abre a possibilidade de estabelecer uma escala variável de condições climáticas no espaço do setor, e mudá-las à vontade. O clima pode assim tornar-se um meio importante no jogo com a esfera vital, principalmente se pensarmos que a utilização dos aparatos é público, e que existe uma certa autonomia técnica do setor, ou eventualmente grupo de setores, através do refinamento da localização dos aparatos (muitas pequenas centrais ao invés de uma grande). Não somente poderiam ser imitados diferentes climas, mas também climas ainda desconhecidos poderiam ser descobertos e contrastados entre si, alternados e modificados, a cada vez em combinações diferentes, em conexão com a divisão cambiante do espaço. Também as técnicas de imagem e som devem ser vistas sob este aspecto. A flutuação da vida no mundo dos setores fará surgir a necessidade de uma rede descentralizada de aparatos de emissão e recepção, que devem ser igualmente de uso público.

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A participação de inúmeras pessoas tanto na emissão quanto na recepção de sons e imagens abre a perspectiva da telecomunicação refinada como um elemento importante do comportamento lúdico social.

II. Os neobabilônios “Toute leur vie était employée, non d’après les lois, status ou règles, mais selon leur volonté et leur libre arbitre. Ils se levaient du lit quand bon leur semblait, buvait, mangeait, travaillaient, dormaient, quand ils en éprouvaient le désir. Nul ne les éveillait, nul ne les forçait à boire, ni à manger, ni à faire autre chose quelconque. Ainsi l’avait établi Gargantua. Dans leur règle, il n’y avait que cette clause: FAIS CE QUE TU VOUDRAS, parce que les gens libres, bien nés, bien instruits, conversant en honnêtes compagnies, ont, par nature, un instinct et un stimulant qui les pousse toujours à accomplir de vertueuses actions et à s’éloigner du vice: c’est ce qu’ils nomment honneur” 4. Rabelais

Criatividade e agressividade Ao vagar pelos setores de New Babylon as pessoas buscam novas experiências, novos ambientes desconhecidos. Por isso, elas não se deixam levar passivamente pelo mundo circundante, como os turistas, mas são bastante conscientes de seu poder de influenciar, transformar e reformar o mundo. Elas dispõe para isso de um arsenal ampliado de meios técnicos com os quais estão em condições de realizar qualquer mudança desejada. Assim como o pintor, a partir de uma paleta de cores limitada pode criar uma variedade ilimitada de formas, contrastes e estilos, ao neobabilônio torna-se possível, com a técnica como meio, estabelecer uma incessante variação e renovação de seu ambiente vital, recriando-o continuamente. Esta comparação evidencia uma diferença essencial: o pintor é um indivíduo, que somente após o seu ato criativo é confrontado com as reações dos outros. O ato criativo dos neobabilônios, em contrapartida, é um ato social, uma intervenção direta nos acontecimentos sociais, que portanto será respondido instantaneamente pelos demais. A criação individual do artista, do ponto de vista dos outros, é a priori descompromissada, e 4

“Toda a sua vida era empregada, não segundo leis, estatutos ou regras, mas segundo a sua vontade e livre arbítrio. Eles se levantavam da cama quando bem lhes aprouvesse, bebiam, comiam, trabalhavam, dormiam, quando disso tinham desejo. Ninguém os despertava, ninguém os forçava a beber, nem a comer, nem a fazer qualquer outra coisa. Assim estabeleceu Gargantua. Em sua regra, havia somente esta cláusula: FAZE O QUE DESEJAS, porque as pessoas livres, bem nascidas, bem instruídas, que conversam em companhias honestas, têm, por natureza, um instinto e um estímulo que lhes impulsiona sempre a realizar ações virtuosas e a afastar-se do vício: isto é o que eles chamam de honra”. Em francês no original (N. do T.).

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surge no isolamento. Mais tarde, quando a obra de arte é um fato consumado, vem o confronto com a sociedade. O neobabilônio na verdade está em contato direto com outras pessoas em cada fase de sua atividade criativa. Cada uma de suas ações, com efeito, tem lugar no espaço público, tem influência no ambiente vital de outros, e provoca portanto reações espontâneas, que retiram o caráter individual de seu ato. Toda iniciativa individual tem em New Babylon um caráter social, porque tem como consequência a reação imediata de outros indivíduos. Cada uma destas reações pode, por sua vez, dar causa a novas reações, de forma que surge uma reação em cadeia de intervenções, que só é interrompida quando é atingido um clímax que leva à “explosão” da situação existente, e à construção de uma nova situação. Este processo é incontrolável individualmente, e não é relevante quem o começou e por quem ele foi influenciado. O clímax é um momento no ambiente vital que pode ser visto como uma criação coletiva. O ritmo com o qual tais momentos surgem forma a textura do espaço-tempo da vida em New Babylon. Do ponto de vista do homo faber, poderia ser pensado que New Babylon é um mundo perigoso, no qual o homem “normal” se entregaria a todo tipo de forças destrutivas e agressivas. Quanto ao conceito de “homem normal”, aqui nos limitaremos a observar que tal conceito, ligado como está a condições históricas, resulta ser de conteúdo mutável, e nos ocuparemos mais com o conceito de “agressão”. A psicanálise sempre destacou muito a agressividade, e chegou ao ponto de falar em “pulsão” agressiva, com a qual todas as ações humanas estariam relacionadas. O material de observação permaneceu portanto evidentemente limitado ao homem em sua antiquíssima luta pela sobrevivência, uma luta que ele, como o animal, teve de travar até os dias atuais. Para a imagem de um homem livre, que não tem de lutar pela sobrevivência, falta uma base histórica. Como é aceito, a pulsão primordial de tudo o que vive é a pulsão à autoconservação. Todas as outras pulsões são explicadas a partir dela. A agressividade provém da aspiração ao poder. Esta luta é própria de um ser altamente desenvolvido (o homem), que pode prever, e que, em um mundo que contém uma ameaça à sua sobrevivência, quer colocar-se em segurança com antecipação, e, portanto, planejadamente. Assim, a satisfação das necessidades materiais imediatas não é suficiente para fazer a sua agressividade desaparecer. Nos países “ricos” altamente industrializados consta que os comportamentos agressivos de forma alguma desapareceram, também e principalmente na classe proprietária. Para poder esclarecer a flagrante contradição entre a segurança material e a continuidade da agressividade deve-se aceitar a existência de outra pulsão primordial como impulso de autoconservação; indicaríamos esta pulsão com a expressão “pulsão criativa”. Esta pulsão criativa deveria então ser considerada

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como uma sublimação da pulsão primordial, que surge quando as condições materiais tornam-se tão favoráveis que a autoconservação adquire o caráter de automanifestação. A impossibilidade de fato de realizar-se criativamente em uma sociedade baseada na opressão da criatividade, ou seja, na sociedade utilitarista, enquanto os requisitos materiais estão à disposição, oferece uma explicação para a desconexão de agressividade e luta pela sobrevivência. De fato, na sociedade atual tampouco a classe proprietária tem condições de manifestar-se criativamente. Compreensivelmente, a frustração entre os proprietários nesta sociedade é maior do que entre os despossuídos em luta por sua liberdade futura: também a luta pode ser uma forma de criatividade, nomeadamente quando tem como objetivo a transformação da sociedade existente.

A pulsão criativa A especulação em relação à existência de uma sociedade lúdica se apoia na suposição de que em todo homem existe potencialmente uma necessidade de manifestar-se como ser criativo, que pode ser considerada como uma sublimação de formas pulsionais mais primitivas. Esta pulsão criativa, na sociedade contemporânea em estagnação – onde a realização da vida se atrasa em relação à realidade potencial –, não pode ser satisfeita. Já a educação infantil é orientada a suplantar a pulsão criativa, e tornar o ser em crescimento maduro para uma posterior tarefa “útil” na sociedade em que, com a velocidade do desenvolvimento tecnológico, a utilidade já muitas vezes desapareceu antes que a educação esteja completa. O conceito de “educação”, sob estas condições, só pode ter um sentido negativo: opressão das pulsões criativas espontâneas. Se assim não o fosse, deveria o adulto ser vantajosamente comparado à criança do ponto de vista criativo, mas o caso parece ser o oposto. Deve-se questionar se a educação para a criatividade é de todo possível, e perguntar se toda assim chamada “educação” não deveria em princípio ser considerada uma limitação da liberdade que é um pressuposto da criatividade. Uma educação que vá positivamente ao encontro do comportamento criativo só poderia existir com a remoção de eventuais obstáculos que estão no caminho da criatividade. O homo ludens não precisa de educação, porque ele já aprende jogando. O indivíduo que não consegue inserir-se nos padrões da sociedade utilitarista é castigado com o isolamento. Fala-se neste caso de “associais”, um conceito que é quase sinônimo de “criminosos”. O conceito de “criminoso” está sujeito a transformações históricas,

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justamente porque o seu conteúdo permanece o mesmo: violação das relações sociais existentes. O delito [mis-daad] perturba estas relações, e a sociedade reage com a eliminação do malfeitor [misdadiger]. Quando o delito for esclarecido como um impulso frustrado ao poder, e for aceito que o impulso ao poder pode sublimar-se em pulsão criativa, então o delito deve ser considerado como uma tentativa malsucedida de criação. Diferente do artista, que fica passivo frente à realidade, mas como ser criativo, ele se agarra às condições existentes; mas enquanto na intervenção criativa a demolição e a construção estão inseparavelmente ligadas, o criminoso se limita à destruição. Isto na realidade não elimina o fato de que também o artista, através de suas intervenções, revela um comportamento “associal”, e, na sociedade utilitarista, só se diferencia do criminoso através da maneira pela qual ambos os atos são julgados pela sociedade. A vida comunitária neobabilônica não conhece nenhuma “ordem” que deva ser conservada, mas se baseia justamente na dinâmica de situações continuamente cambiantes. A maneira pela qual a vida comunitária neobabilônica funciona fará com que se tornem ativos justamente aqueles poderes que na sociedade utilitarista são oprimidos, ou, no máximo – como no caso do artista – tolerados até certo limite. Desde já, na sociedade atual ainda não é possível desenvolver uma forma de vida neobabilônica, nem mesmo por pouco tempo. Uma vez que as convenções estabelecidas dos contatos sociais são temporariamente suspensas (por exemplo, durante o carnaval), é de se notar antes um aumento da agressão do que uma talvez esperada intensificação do comportamento criativo. A agressividade é um fenômeno que está ligado com a opressão da criatividade potencial, logo, com a sociedade utilitarista.

O homem neobabilônico Por causa da luta pela sobrevivência a humanidade permaneceu dividida em grupos com interesses comuns, predominantemente concorrendo entre si, e em todo o caso não adequados à reunião em grupos maiores, que teriam de conduzir a luta pela sobrevivência com dificuldade maior. O desenvolvimento histórico da luta pela sobrevivência manteve a humanidade dividida em raças, estamentos, nações e classes sociais. Em uma sociedade sem luta pela sobrevivência não somente a concorrência individual, mas também a concorrência entre grupos sociais se extingue. Sem luta pela sobrevivência as barreiras e fronteiras se tornam obsoletas. Isto abre o caminho para uma miscigenação que conduz à desaparição das raças diferenciadas e ao surgimento de uma raça universal: os neobabilônios.

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O homem neobabilônio pode ser caracterizado como um indivíduo que realmente possui total liberdade de ação, mas que só pode realizar esta liberdade em colaboração com TODOS os outros indivíduos. A contradição entre interesses individuais e coletivos, tão típica da sociedade utilitarista, é inconcebível na sociedade lúdica. A sociedade lúdica só pode ser baseada em uma comunidade de interesse que englobe o mundo inteiro, com todos os seus indivíduos. Luta de interesses, concorrência e exploração, vistas contra este pano de fundo, se tornam conceitos sem sentido. O número total de indivíduos em New Babylon forma conjuntamente o coletivo neobabilônico, e da atividade simultânea de todos estes indivíduos resulta a cultura coletiva de New Babylon. Apesar de às vezes ter de continuamente percorrer grandes distâncias, o homo faber se movimenta em um espaço social limitado, porque ele está sempre obrigado a voltar à sua residência fixa. Ele é “erdgebunden”5, suas relações sociais determinam o seu espaço social: residência familiar, local de trabalho, local de residência de familiares e amigos. O neobabilônio não conhece estas limitações. O seu espaço social é infinitamente elástico: não somente pode ele movimentar-se livremente no espaço sem “enraizar-se” em lugar nenhum, como também ele se movimenta em um espaço que muda continuamente de forma e ambientação, e portanto não se mantém reconhecível no tempo. A flutuação e desorientação relacionadas têm como consequência o fato de que os contatos entre indivíduos podem tornar-se mais fáceis, assim como podem ser desfeitos, o que resulta em uma amplitude ótima das relações sociais.

III. A cultura neobabilônica “Il s’agit d’arriver à l’inconnu par le dérèglement de tous les sens” 6 Rimbaud

Visualização da cultura Não será fácil prefigurar de alguma maneira uma cultura que se baseia na criatividade permanente de toda a humanidade em um espaço social de escala mundial. Só podemos encontrar pontos de partida históricos, de forma muito modesta e sob condições que retiram quase todo o sentido da comparação, na forma da festa. A festa sempre teve para o homo faber o significado de uma evasão temporária de uma realidade diária caracterizada pela 5 6

“Ligado à terra”. Em alemão no original (N. do T.). “Trata-se de chegar ao desconhecido através do desregramento de todos os sentidos”. Em francês no original (N. do T.).

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frustração e alienação. É compreensível que em tal estado de exceção surjam poucas oportunidades para o desenvolvimento da invenção criativa vivida coletivamente. A opressão da liberdade criativa que imprime o seu selo na vida diária não pode perder o seu efeito de um momento ao outro: o homo ludens histórico permanece um homo ludens reprimido. Os antigos mercados anuais, quermesses, festas populares, bodas camponesas etc., eram apenas uma válvula de escape para a pulsão criativa frustrada. Eram as raras oportunidades nas quais o homo faber temporariamente se fantasiava de homo ludens; também nesta fantasia Huizinga viu e descreveu o homo ludens. O verdadeiro homo ludens de New Babylon naturalmente que não pode ser comparado a este homo faber fantasiado. Para ele o comportamento lúdico não é nenhuma evasão de sua existência diária, mas a essência de sua vida. Com New Babylon começa uma nova era na história da cultura que não é comparável com nenhuma era anterior. Todas as culturas que surgiram até hoje foram de natureza estática, ou seja, fundadas em uma ideologia que tinha como objetivo manter a forma social existente, positivá-la como “verdade secular”. Todas estas culturas têm portanto a mesma característica em comum: a tendência à continuidade, à conservação do “patrimônio cultural”. A cultura dinâmica de New Babylon, em contrapartida, constitui-se justamente na e através da transformação. Não há razão para manter toda relação social, como na sociedade utilitarista, onde a produção das relações sociais é dependente. Através da participação massiva no processo de aculturação, surge um padrão cultural sempre cambiante, a partir de uma corrente de movimentos criativos contrastantes. Uma vez que uma massa criativa ativa é algo totalmente desconhecido na história, para definir-se esta criatividade-massiva precisamos manipular conceitos – abundância de potência criativa, modificação contínua de todo o existente, jogo com a esfera vital – que não podem ou só dificilmente podem ser reunidos com os conceitos correntes de uma história cultural onde a criação sempre significou algo raro e custoso, algo que deve ser tratado com prudência.

O jogo com o ambiente vital A cultura neobabilônica consiste no jogo com as condições vitais, que reunimos na expressão “ambiente vital”. Este jogo se torna possível com o domínio técnico destas condições, de forma que o termo “jogo” aqui também deve ser entendido como criação consciente do ambiente vital.

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Os recursos com os quais o ambiente vital pode ser construído são numerosos e de natureza muito variada. Para ter uma apresentação sumária devemos dividi-los em grupos. Podemos partir de dois diferentes pontos de vista, um ponto de vista objetivo (critério I) e um ponto de vista subjetivo (critério II). Quando enumeramos uma certa quantidade de recursos, podemos diferenciá-los segundo o critério I em: a)

recursos com os quais o espaço é construído, ou que determinam o aspecto do ambiente circundante, e que, portanto, devem ser aplicados com certo planejamento prévio. Reuniremos estes sob o denominador de “recursos arquitetônicos”. Mencionamos como exemplos: forma e dimensões de um espaço, o material utilizado, a construção, a estrutura, a cor;

b)

recursos que, se bem influem fortemente as condições de um espaço, são rapidamente modificáveis, e portanto podem ser aplicados de forma menos planejada, como temperatura, umidade, luz, composição da atmosfera etc. Aqui pode-se falar de “recursos climatológicos”;

c)

recursos que não se relacionam diretamente com as condições espaciais propriamente ditas, mas que influenciam a experiência do espaço. O uso destes recursos é mais incidental, e seu efeito é de curta duração: movimento, alimento e bebida, o uso da língua. Pode-se chamar estes recursos de “recursos psicológicos”.

Outra subdivisão, mais subjetiva, pode ser feita tendo-se em vista a maneira pela qual os diferentes recursos determinantes do ambiente nos influenciam. Segundo este critério II, pode-se falar em recursos visuais e sonoros, e de recursos que influenciam o tato, o olfato e a gustação. Tanto na divisão segundo o critério I quanto na divisão segundo o critério II, nenhuma linha de separação rígida pode ser traçada. Muitos recursos que são importantes para o ambiente vital poderiam ser postos sob mais de uma classificação. Para citar alguns exemplos com relação ao primeiro critério, o aspecto arquitetônico do espaço não é independente das condições climatológicas ou do movimento dentro deste espaço; a apreciação da comida e da bebida não é a mesma em todas as condições espaciais ou climatológicas. O segundo critério mostra ainda mais sobreposições: a estrutura pode ser tanto vista quanto sentida, a língua pode ser ouvida mas também vista (leitura), comida e bebida podem ser degustadas mas também cheiradas, vistas e sentidas etc. Aos recursos enumerados muitos outros poderiam ser adicionados, e todos os recursos eventualmente mencionados seriam efetivos em

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AMBIENTE-MOMENTO

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PSICOLÓGICO

CLIMATOLÓGICO

ARQUITETÔNICO

GUSTAÇÃO

TATO

OLFATO

AUDIÇÃO

VISÃO

narcóticos

bebida

comida

movimento

material

estrutura

temperatura

umidade

odor

ruído

som

linguagem

luz

imagem

cor

construção

dimensão

forma

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combinação uns com os outros. Assim, temperatura e umidade juntas podem causar precipitação ou formação de neblina; som, imagem e movimento frequentemente estão integrados e não podem ser pensados sem levar em consideração a forma e as dimensões do espaço. Na realidade, haverá um tal entrelaçamento de todos os recursos determinantes do ambiente que a diferença só é importante do ponto de vista técnico. Não analisaremos os recursos aplicados durante a experiência de um ambiente-momento em maior medida do que, à vista de uma pintura, pensamos nos materiais que foram utilizados na sua confecção.

Comportamentos O comportamento humano, como é sabido, é fortemente influenciado por estes recursos determinantes do ambiente. Na psiquiatria, o uso – ou mau uso – destes recursos já é há muito conhecido sob a expressão “lavagem cerebral”. O fato de que o manejo destes aparatos técnicos em New Babylon seja livre para todos, que todos – em combinação com outros – possam participar na organização e reorganização do espaço, torna impossível a aplicação destes recursos com objetivos previamente planejados. Toda iniciativa direcionada, com efeito, pode a qualquer momento ser desviada por uma iniciativa que aponta em outra direção. Na verdade, cada indivíduo independente pode, através dos aparatos, mudar o ambiente vital, e através disso influenciar o comportamento dos outros, mas ao mesmo tempo ele próprio está sujeito a influências, de forma que o efeito é apenas de curta duração. Uma intervenção individual é uma provocação que é sempre respondida. Poderia talvez ser feita a observação de que os indivíduos não são criativos em igual medida, e que, portanto, os indivíduos mais ativos ou criativos exercerão maior influência sobre o ambiente vital do que aqueles que possuem menor energia ou menos fantasia. Tal consideração é típica do homem condicionado utilitaristicamente, que tende a ver a superioridade de pensamento e ação imediatamente como um meio de poder. Na cultura coletiva, contudo, todo ato individual desemboca na atividade social total. As influências do indivíduo não são distinguíveis no resultado, e portanto tampouco reconhecidas. A cultura coletiva é uma cultura-composição: toda atividade criativa é conjugada de forma interconexa, em contradição com a cultura da competição que conhecemos, na qual todas as atividades são

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medidas segundo o critério do mais forte, o assim chamado “gênio”, com o que ocorre um grande desperdício de criatividade. Imaginemos que em um determinado momento um certo número de pessoas se encontre em um determinado setor. Este setor está naquele momento subdividido em certa quantidade de espaços maiores e menores, com formas e ambientes os mais divergentes, devendo-se considerar também que todos estes espaços se encontram em um estágio de mudança – construção ou demolição. Todos os presentes estão em condições de intervir pessoalmente neste processo contínuo. Mas todos também podem livremente ir de um espaço a outro, enquanto o setor como um todo pode ser continuamente acessado por novas pessoas ou abandonado por aquelas que lá estão. Esta complexa instabilidade das condições do espaço e da composição da “população” forma a base da cultura neobabilônica. Os setores mudam de forma e atmosfera através de todas as atividades que nele se desenvolvem. Ninguém jamais poderá ir a um lugar que já visitou antes, ninguém jamais reconhecerá uma imagem de sua memória, tampouco, portanto, ninguém jamais cairá na rotina. Os costumes, que em conjunto formam um “padrão de comportamento”, surgem em uma sociedade utilitarista como um automatismo de ações contra o pano de fundo de um ambiente vital sem movimento e estático. A dinâmica de uma vida criativa elimina todo automatismo. Assim como um artista não pode ou não quer repetir uma obra já concluída, tampouco o homem neobabilônico, como criador de sua vida, tem necessidade de repetir os seus comportamentos.

O labirinto dinâmico Enquanto na sociedade utilitarista a orientação no espaço vital é um objetivo consciente e intencional, relacionado à eficiência no emprego do tempo, em New Babylon a desorientação é estimulada, como requisito da aventura, do jogo, da transformação criativa. Pode-se chamar o espaço vital de New Babylon, em certo sentido, de labirinto, onde o movimento dos homens não é dirigido nem pelo planejamento espacial, nem pela ritmização do tempo. A liberdade social que caracteriza a vida em New Babylon vem a exprimir-se na forma labiríntica do espaço social.

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A ambientação de um determinado espaço, com dadas características plásticas e acústicas, depende das pessoas que se encontrem neste espaço. Uma pessoa individual pode inserir-se passivamente neste ambiente, ou, no máximo, mudá-lo instantaneamente segundo os seus desejos. Mas já com a entrada de uma segunda pessoa passa a vigorar uma nova influência: uma interação que impede a inserção passiva. O ambiente não é mais determinado pelos dados materiais, mas adquire uma nova dimensão, a maneira como esses materiais são experimentados, julgados e manipulados: o espaço é “visto com outros olhos”. Se adicionarmos uma terceira e uma quarta pessoas às duas presentes, então a situação torna-se ainda mais complexa e menos controlável individualmente. Cada aumento do número de presentes, e cada modificação da composição desta associação, aumenta a complexidade e diminui o controle individual. A ambientação do espaço, através do seu uso coletivo, passa por uma transformação qualitativa, no sentido de que não é mais possível entregar-se passivamente a este ambiente. A atividade que se desenrola no espaço se torna parte integral do ambiente, que com isso não é mais estático, mas dinâmico. Em um espaço social onde tanto a quantidade de indivíduos presentes como as inter-relações entre os indivíduos estão sujeitas à continua transformação, provoca-se a todo momento dado, na consciência de todos os presentes naquele momento, um impulso à transformação do ambiente, tal como experimentado individualmente. A atividade simultânea de todos estes impulsos resulta em uma forma cuja influência no condicionamento do espaço será sensível. Tendo em vista que esta atividade nunca pode parar, devido ao caráter público do espaço do qual aqui falamos – o que significa que o espaço está exposto a influências desconhecidas, e que tais processos se desenrolam simultaneamente em infinitas variações em inúmeros espaços – espaços que, além disso, também se transformam continuamente em quantidade e em inter-relações – então pode-se imaginar que surge um imenso espaço social cuja imagem conjunta é diferente a cada momento, um labirinto dinâmico no sentido mais amplo e direto.

Tecnologia A tecnologia é um requisito indispensável para a realização de um modo de vida coletivo-experimental. Com efeito, não somente o domínio do ambiente material sem técnica é uma ficção, mas pode-se também argumentar que a participação massiva em acontecimentos criativos não é possível sem a aplicação de tecnologias de comunicação. A configuração e

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reconfiguração de materiais visuais e sonoros, sua emissão e recepção, estão entre os recursos indispensáveis sem os quais a vida em New Babylon não pode funcionar. Somente através da telecomunicação intensiva podem ser levados a cabo contatos sociais em uma vida comunitária flutuante, onde ninguém possui local fixo de residência. Em cada setor deve haver aparelhos suficientes à disposição de todos, sem perder de vista que o uso da técnica em New Babylon nunca deve ser considerado um assunto puramente funcional. Da mesma forma que a técnica de climatização é usada como um recurso para tornar o ambiente vital tão variável quanto possível (ao invés de buscar por um clima “ideal” do ponto de vista funcional, como os homens tenderiam a fazer na sociedade utilitarista), as técnicas de telecomunicação estarão a serviço de formas lúdicas de comportamento, e portanto não podem ser somente ou de todo vistas como meios para estabelecer contatos objetivados. A técnica em New Babylon é em primeiro lugar um recurso para o jogo. Da mesma forma que, para citar um exemplo simples, um visitante qualquer de um café pode, de um momento ao outro, trocar uma ambientação calma por uma animada inserindo uma moeda na jukebox, cada espaço de New Babylon pode a cada momento ter a sua ambientação transformada através da manipulação dos aparatos técnicos de regulação de som, luz, odorização, climatização. A intervenção coletiva de um pequeno grupo é suficiente para transformar também a divisão espacial. Vários espaços pequenos podem ser reunidos em um espaço maior, e viceversa; a forma do espaço pode ser transformada; acessos podem ser construídos ou bloqueados; escadarias, pontes, escadas portáteis, rampas, podem ser colocadas ou removidas; em resumo, toda mudança desejada na condição espacial pode ser executada com pouco esforço. Divisórias poderiam ser fabricadas em diferentes tipos, todas com os requisitos de isolamento térmico e acústico, características da superfície, cor e material. Também escadarias, pontes e tubos podem ser das mais variadas formas e construções. Através da aplicação de superfícies, rampas lisas, estreitamentos, angulações etc., de difícil acesso e irregulares, certos espaços podem funcionar seletivamente: assim, espaços somente acessíveis subindo escadas de cordas ou escalando um poste podem tornar-se o domínio predileto de crianças e jovens. Por outro lado, setores isolados, por exemplo aqueles que se apoiam em encostas de montanhas ou na costa litorânea, sofrem menos influência da flutuação, e portanto têm a preferência de idosos ou doentes.

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É importante que cada setor seja do ponto de vista construtivo e tecnológico tão autônomo quanto possível, e portanto não seja empecilho para a modificação de setores vizinhos. A ligação entre setores é estabelecida através de construções independentes em forma de ponte. Grandes centrais para a produção de energia (conversão de matéria em eletricidade, centrais nucleares) localizam-se obviamente fora – e à maior distância possível – do mundo dos setores.

Intensificação do espaço Devido à frequência com a qual tanto a estrutura quanto as condições do espaço são alternadas, o uso do espaço vital total em New Babylon é muito mais intensivo do que é o caso na sociedade utilitarista, com o seu modo de vida sedentário. O uso coletivo do espaço – a vastidão do espaço social – tem um efeito duplo: o indivíduo dispõe de um espaço vital muito maior do que em um mundo habitado sedentariamente, e ao mesmo tempo nenhum espaço fica sem utilização, nem mesmo temporariamente. O uso criativo do espaço, além disso, causa uma alternância tão intensa em seu aspecto que em uma superfície relativamente pequena é possível encontrar tantas variações quanto antes em uma viagem ao redor do globo. Isto significa que o deslocamento se torna relativamente independente da distância e da velocidade. O espaço se torna relativamente maior, porque a experiência do espaço é mais intensiva. Esta intensificação se torna possível através do uso criativo da técnica, uma forma de utilização que ainda não podemos imaginar, pois na sociedade utilitarista toda utilização é orientada a objetivos. A realização da vida humana só pode significar a incessante criação e recriação daquela vida; só então a vida pode ser chamada de vida humana, se ela for criada pelo próprio homem. Através da abolição da luta pela sobrevivência os homens disporão, pela primeira vez na história, do tempo de sua vida, e portanto terão a liberdade de dar à sua vida a forma que esteja de acordo com os seus desejos. Isto inclui o fato de que ele não mais se relaciona passivamente com o mundo circundante, tentando nele manter-se da melhor forma possível, mas que ele próprio quererá dar forma a um mundo no qual a sua liberdade possa realizar-se. A criação deste mundo é um requisito para a criação da vida, e tendo-se em vista que esta última significa uma recriação contínua, deve-se também ver a criação do mundo material como um processo contínuo.

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New Babylon, por estas razões, só pode ser construída pelos próprios neobabilônios, e é um produto da cultura neobabilônica. Neste momento, New Babylon só pode ser vista como um modelo, um modelo a ser pensado e com o qual jogar. Tudo o que sabemos é que o homem é potencialmente um ser criativo e que o desenvolvimento da tecnologia o coloca em condições de liberar a sua criatividade e conduzir a sua vida a um nível mais alto. O resto é especulativo e se apoia na experiência do artista na sociedade utilitarista, com todas as limitações a isso relacionadas. Neste momento nossa tarefa só pode consistir em um estudo da maneira pela qual pode ser construído um mundo material que, em contradição com o mundo funcional, permita o máximo desenvolvimento do comportamento criativo. Como primeiros requisitos para isto, vemos a ampliação psíquica do espaço (medida pela experiência do espaço) e o uso criativo da tecnologia.

[Traduzido por Daniel Cunha Original: New Babylon, een schets voor een kultuur, adaptação livre de manuscrito escrito entre 1960 e 1965 originalmente em alemão, publicado em holandês em New Babylon, catálogo de exposição no Museu Municipal de Haia (Haags Gemeentemuseum), 15 de junho a 1º de setembro de 1974. As maquetes e pinturas do projeto New Babylon encontram-se disponíveis para visitação no referido museu (para consulta on-line: http://www.gemeentemuseum.nl).]

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