Construção, pressupostos e implicações da Avaliação de Impacto em processos de Licenciamento Ambiental de grandes empreendimentos

June 14, 2017 | Autor: Natália Gaspar | Categoria: Licenciamento Ambiental, Grandes Empreendimentos, Avaliação De Impactos Ambientais
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Construção, pressupostos e implicações da Avaliação de Impacto em processos de Licenciamento Ambiental de grandes empreendimentos Natália Morais Gaspar1 Resumo: Com este trabalho, procuro demonstrar como e porque avaliações de impacto ambiental realizadas no âmbito de estudos para licenciamento ambiental de grandes empreendimentos no Brasil contribuem para afirmar a sua viabilidade ambiental, a despeito de seus efeitos socioambientais negativos. Argumento que é na etapa de “Avaliação

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subdimensionamento dos efeitos negativos do empreendimento/atividade, através da sua identificação, classificação e hierarquização segundo critérios padronizados, que frequentemente parecem se sobrepor e obliterar.

Neste contexto, defendo que as

informações sobre a população humana das regiões afetadas por grandes empreendimentos, pesquisadas por profissionais das Ciências Humanas, ao serem apropriadas pelas metodologias criadas para analisar conjuntamente os diagnósticos dos “meios” “físico”, “biótico” e “socioeconômico” e, a partir daí, identificar e caracterizar os ditos “impactos”, perdem parte da sua eficácia ao serem submetidas a uma racionalidade quantitativa e econômica que negligencia valores intangíveis. Para tanto, analiso o caso do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) de uma linha de transmissão de energia elétrica que percorrerá os estados brasileiros do Tocantins, Maranhão, Piauí e Bahia, transportando energia a ser gerada pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Procuro demonstrar que o tratamento numérico e “objetivo” dos efeitos das transformações associadas à implantação de um empreendimento confere um caráter técnico a tomadas de decisão – sobre a realização ou não do empreendimento, sobre a sua localização entre outras possíveis, sobre a forma como será implantado – que são de ordem política. Argumento que, para além de prever e “mitigar” “impactos”, os estudos contribuem para a consolidação e a estabilidade das avaliações de impacto ambiental como ferramenta que permite conferir um tratamento técnico a questões como o aumento da prostituição próximo a canteiros de obras, o prejuízo ou inviabilização de pequenos produtores, os incômodos à população, a remoção de famílias, e assim por diante. Estes problemas associados à implantação de um empreendimento passam a ser considerados como passíveis de serem previstos e calculados por avaliações de impacto 1

Doutora em Antropologia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ.

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ambiental e passíveis de serem amenizados por medidas “mitigadoras”, deixando de estar relacionados a decisões políticas que dizem respeito à seleção de quem pode ser beneficiado e quem pode ser prejudicado em um modelo de desenvolvimento. Palavras-chave: Licenciamento Ambiental – Avaliação de Impacto Ambiental – Grandes Empreendimentos Introdução Em meio aos aparatos legais e institucionais destinados a lidar com questões ambientais no Brasil, destaca-se o processo de licenciamento ambiental de empreendimentos/atividades potencialmente poluidores como definidor da alocação de recursos entre atores conflitantes, através da formulação de um discurso técnicocientífico apoiado nas avaliações impacto ambiental. Neste processo, os estudos ambientais2, que contêm avaliações de impacto ambiental, desempenham relevante papel ao definir “impactos” e “impactados”, entre outras prerrogativas. Assim, definem quais das transformações impulsionadas pela instalação de um empreendimento são consideradas significativas e quais pessoas ou grupos serão alvo de medidas “mitigadoras” de “impactos”. Estes estudos costumam ser desenvolvidos por empresas de consultoria ambiental, contratadas pelas empresas ou consórcios de empresas proprietários dos empreendimentos, e são encaminhados a órgãos ambientais governamentais, encarregados de analisá-los para decidir sobre a concessão de licenças ambientais. Nos estudos ambientais, levando em conta conjuntos de informações dispostos em numerosos capítulos, elaborados por equipes de diversas formações acadêmicas e profissionais, geralmente há um trecho dedicado à Avaliação de Impacto Ambiental (AIA), frequentemente sintetizada em uma ferramenta que se apresenta sob a forma de uma tabela ou similar – a Matriz de Análise de Impacto. Neste construto técnico, que reúne e relaciona “dados” sobre os diferentes “meios” (geralmente “socioeconômico”, “biótico” e “abiótico”3), estabelecem-se a abrangência dos ditos “impactos” e a

2 O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) foram estabelecidos pela Resolução CONAMA n°01/1986. 3 De acordo com Bronz, a realização do EIA depende das seguintes atividades: “ (1) diagnóstico ambiental que caracteriza a situação da área de influência do projeto antes de sua implantação, considerados os meios físico, biológico e socioeconômico; (2) análise dos impactos ambientais do

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definição dos grupos considerados “impactados”. Ou seja, trata-se de um dos principais instrumentos que conferem legitimidade técnica para alocação de recursos entre grupos com interesses divergentes. De um modo geral, os distintos instrumentos técnicos utilizados para avaliar todos os “impactos” simultaneamente guardam algumas características em comum. Alguns pressupostos permeiam estas avaliações: o pressuposto de que, a partir do conhecimento das características do empreendimento e do local onde será implantado, é possível prever os seus efeitos futuros; o pressuposto de que é possível isolar a influência do empreendimento em questão dentre os demais processos em curso nos locais onde ele é implantado, identificando assim os “impactos” relativos exclusivamente àquele empreendimento; o pressuposto de que todos os elementos que serão alterados com a implantação do empreendimento são passíveis de serem identificados, contabilizados, classificados e, finalmente, mitigados ou compensados. Este conjunto de pressupostos encerra uma racionalidade no trato com elementos humanos e não-humanos, que costuma diferir da maneira pela qual as populações obrigadas a lidar com a implantação dos empreendimentos se relacionam com os mesmos elementos. Ong & Collier, na introdução da coletânea de textos que tratam dos problemas antropológicos diante de transformações associadas à “globalização”, propõem pensar em formas globais (global forms) para entender o modo específico pelo qual o fenômeno global se relaciona a problemas sociais e culturais – por meio de uma capacidade de descontextualização e recontextualização, habilidade abstrata e movimento, perpassando diversas situações sociais e culturais e diversas esferas da vida. Assim, as formas globais são assimiláveis em novos ambientes, são capazes de codificar contextos e objetos heterogêneos tornando-os passíveis de controle e avaliação, apesar de serem limitadas ou delimitadas por infraestruturas técnicas específicas, aparatos administrativos ou regimes de valor (2005: 11). projeto e de suas alternativas, através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes; (3) definição das medidas mitigadoras dos impactos negativos, avaliada a eficiência de cada uma destas; (4) elaboração do programa de e monitoramento dos impactos”. É na atividade de número 1, o “diagnóstico ambiental”, que a maior parte dos profissionais das Ciências Sociais envolvidos na realização de EIAs costuma atuar. O diagnóstico ambiental é subdivido em: meio físico, meio biótico e meio socioeconômico. “Esta divisão supõe a existência de três tipos de saberes distintos sobre o meio ambiente, que seguem interpretações epistemológicas diferenciadas” (BRONZ 2011: 37).

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Neste sentido, considerando a sua difusão internacional a partir de padrões inicialmente estabelecidos pelo Ato da Política Nacional para o Meio Ambiente (The National Environmental Policy Act – NEPA), aprovado pelo congresso estadunidense em finais de 1969 com vistas a estabelecer as linhas gerais da política nacional de meio ambiente norte-americana, é possível pensar as avaliações de impacto ambiental como formas globais, aplicáveis à implantação de qualquer empreendimento ou atividade em qualquer ambiente, reunindo diferentes elementos tornados controláveis, calculáveis e avaliáveis. Com este trabalho, procuro demonstrar como e porque avaliações de impacto ambiental realizadas no âmbito de estudos para licenciamento ambiental de grandes empreendimentos no Brasil contribuem para afirmar a viabilidade ambiental destas grandes obras, a despeito de seus efeitos socioambientais negativos. Argumento que é na etapa de “Avaliação de Impacto Ambiental” que se processa grande parte do subdimensionamento dos efeitos negativos do empreendimento/atividade, através da sua identificação, classificação e hierarquização segundo critérios padronizados, que frequentemente parecem se sobrepor e obliterar. Neste contexto, defendo que as informações sobre a população humana das regiões afetadas pesquisadas por profissionais das Ciências Humanas, ao serem apropriadas pelas metodologias criadas para analisar conjuntamente os diagnósticos dos “meios” “físico”, “biótico” e “socioeconômico” e, a partir daí, identificar e caracterizar os ditos “impactos”, perdem parte da sua eficácia ao serem submetidas a uma racionalidade quantitativa e econômica que negligencia valores intangíveis. Para tanto, analiso o caso do Estudo de Impacto Ambiental da Linha de Transmissão 500kV Miracema-Sapeaçu e Subestações Associadas, recorrendo à comparação com outros estudos do mesmo gênero quando necessário. Trata-se de uma linha de transmissão de energia elétrica que percorrerá os estados brasileiros do Tocantins, Maranhão, Piauí e Bahia, transportando energia gerada na Usina Hidrelétrica de Belo Monte. A seleção deste caso se deve principalmente a dois fatores. Em primeiro lugar, pelo meu acesso ao conhecimento da maneira pela qual o estudo foi produzido - durante o período em que foi elaborado, trabalhei na empresa de consultoria responsável pelo estudo, tendo elaborado alguns capítulos baseados em dados secundários e

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acompanhado a movimentação e o empenho dos colegas da equipe responsável pelo projeto4. Em segundo lugar, por tratar-se de um caso exemplar para analisar os efeitos da reunião das informações coletadas por profissionais de Ciências Humanas, chamadas de “socioeconômicas”, às informações levantadas por outras equipes com objetivos distintos – nos “diagnósticos” dos diferentes “meios” - na Avaliação de Impacto Ambiental. A despeito de, neste estudo, o “diagnóstico socioeconômico” apresentar notável qualidade e amplitude, no momento de sua submissão ao equacionamento dos “impactos” de todos a “meios” estudados, os efeitos da implantação da linha de transmissão sobre a vida da população da região permanecem subdimensionados, como acontece em outros estudos do mesmo gênero. A opção por analisar o caso de um EIA procura levar em conta a percepção de tratar-se de um documento que dialoga com outros documentos5 – seja seguindo uma padronização de outros estudos da mesma empresa, seja seguindo estilos convencionados em outros estudos do mesmo gênero, seja obedecendo a critérios normativos estabelecidos pelos órgãos governamentais competentes e pela legislação sobre o tema. Morawska Vianna, estudiosa da cooperação internacional, analisa a forma pela qual documentos e programas de uma organização internacional refletem o estabelecido em outros documentos formulados em níveis hierárquicos superiores ou em outras organizações financiadoras, permitindo perceber “os princípios da engenharia social que marcam o trabalho de agências internacionais, em especial a elaboração de composições do social das quais depende a execução de seus projetos” (2014: 90). De forma semelhante, cada Estudo de Impacto Ambiental que é elaborado reforça – repetindo, adaptando ou inovando - padrões, critérios e conceitos contidos em outros documentos da mesma natureza, contribuindo para consolidar e tornar cada vez mais

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Este trabalho figura entre os meus esforços no sentido de sistematizar e analisar parte das minhas experiências em empresas de consultoria ambiental no Brasil, sob diferentes vínculos de trabalho, entre 2006 e 2014. Estive envolvida na realização de estudos e atividades do licenciamento ambiental de empreendimentos como rodovias, linhas de transmissão e subestações de energia elétrica, portos e atividades petrolíferas – ora como “consultora externa” de diferentes empresas, geralmente contratada para uma tarefa específica dentro de um estudo maior; ora como funcionária “técnica em socioeconomia”, atuando em diferentes “projetos” simultaneamente, nas suas variadas etapas, tanto em empresas grandes quanto em pequenas empresas. Neste ínterim, compartilhei também experiências e impressões de outros profissionais que atuam no mesmo campo. O primeiro esforço neste sentido foi apresentado na V Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (Porto Alegre, maio de 2015) e se encontra disponível em: http://ocs.ige.unicamp.br/ojs/react/article/view/1384 5 Agradeço aos comentários da Profª Catarina Morawska Vianna (UFSCar) durante a V Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia – React, em maio de 2015 em Porto Alegre.

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estável a avaliação de impacto ambiental como ferramenta técnica para que empreendimentos que trazem efeitos negativos possam ser pensados como viáveis.

A Avaliação de Impacto Ambiental como ferramenta para viabilizar grandes empreendimentos As Avaliações de Impacto Ambiental (AIA) são hoje aplicadas em diversas áreas do mundo. Segundo Bronz, “o licenciamento ambiental, tal como é desenvolvido no Brasil, é uma adaptação dos modelos desenvolvidos internacionalmente, que se tornaram requisitos para os investimentos de capitais estrangeiros e nacionais mobilizados para a construção de grandes empreendimentos no país” (2011: 23). Egler associa o surgimento destes instrumentos ao Ato da Política Nacional para o Meio Ambiente (The National Environmental Policy Act – NEPA), aprovado pelo congresso estadunidense em finais de 1969 e que estabelece as linhas gerais da política nacional de meio ambiente norte-americana (2001 apud Bronz 2011). Basso & Verdum associam este surgimento também à Loi relative à la Protection de la Nature, desenvolvida na França em 1976 (2006). No caso brasileiro, os autores relacionam a implantação destes instrumentos principalmente à pressão do Banco Mundial, mais importante financiador de empreendimentos tais como projetos rodoviários e assentamentos rurais nas décadas de 1970 e 1980. No Brasil, o licenciamento ambiental e a avaliação de impacto ambiental situam-se entre os instrumentos preventivos desenvolvidos com vistas à implantação dos objetivos da Política Nacional de Meio Ambiente, institucionalizada em 31 de agosto de 1981. Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, onde é a agência governamental encarregada da tomada de decisões que deve proceder a avaliação de impactos, aplicada tanto a propostas públicas federais quanto a decisões do governo sobre iniciativas privadas (SÁNCHEZ 2008: 51), no Brasil as avaliações de impacto são realizadas por empresas privadas especializadas, contratadas pelo “empreendedor”, e os estudos são submetidos à avaliação do órgão ambiental governamental. A literatura supracitada está considerando como AIA todo o processo de elaboração do EIA. Em um segundo sentido mais estrito, que pretendo explorar aqui, a Avaliação de Impacto Ambiental é uma parte do Estudo de Impacto Ambiental, apresentada

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posteriormente aos diagnósticos dos diferentes “meios” estudados, reunindo toda a informação exposta até então a fim de oferecer uma relação completa dos “impactos” e suas causas, classificando-os e hierarquizando-os. É também chamada, no estudo, de “Análise de Impacto propriamente dita” (Ecology Brasil 2013: “Identificação e Avaliação de Impactos”, p. 5). Diferentes metodologias são utilizadas na busca de analisar conjuntamente os dados dos “meios” biótico, físico e socioeconômico que compõem a etapa de “diagnóstico” dos EIAs6. Geralmente, o levantamento e a sistematização destas informações são realizados por equipes distintas, que trabalham em separado. A junção destas informações em um mesmo instrumento, na etapa de análise de impacto, normalmente é realizada por um outro profissional ou equipe, com alguma formação em gestão. Realizo aqui uma análise de parte do Estudo de Impacto Ambiental da Linha de Transmissão 500kV Miracema-Sapeaçu e Subestações Associadas7, tomando como eixo a comparação entre os capítulos de “Avaliação de Impacto Ambiental” e “Diagnóstico do Meio Socioeconômico”, procurando identificar as transformações sofridas pelos “dados” “diagnosticados” pela “socioeconomia” na sua passagem para a etapa de “Avaliação de Impacto”. O objetivo é elucidar quais elementos, entre os muitos descritos pelo “diagnóstico socioeconômico”, são retidos e considerados quando da valoração e hierarquização dos “impactos”.8 Ao mesmo tempo, descrevo a maneira pela qual foram produzidas as informações que compõem a sessão baseada em dados primários do “Diagnóstico do Meio Socioeconômico”, denominada “Uso e Ocupação do Solo na Área de Influência Direta - AID”, levando em conta as condições de realização deste tipo de trabalho de 6

Em trabalho anterior, analiso um dos métodos mais utilizados para identificação, classificação e análise de “impactos”, o Modelo de Avaliação e Gestão de Impactos Ambientais (MAGIA), também utilizado pelo EIA em análise neste artigo. Ver GASPAR 2015, pp. 8.17. 7 O EIA aqui analisado foi elaborado pela empresa de consultoria ambiental Ecology and Environment do Brasil, cujo escritório brasileiro foi fundado em 1997, e é filial da Ecology and Environment Inc., fundada nos Estados Unidos em 1975. Esta empresa foi contratada pela proprietária do empreendimento, a transmissora ATE XVI Transmissora de Energia S.A., que tem como acionista controladora a Abengoa Concessões Brasil Holding S.A. 8 Esta reflexão foi livremente inspirada na experiência de Bruno Latour ao acompanhar uma expedição de cientistas à Amazônia, durante a qual ele reúne elementos para explicar a noção de “referência circulante”, fundamental para o tratamento de elementos humanos e não-humanos pela ciência. Latour observa, por exemplo, como um torrão de terra extraído do solo em condições específicas de pesquisa passa por uma série de transformações (em que sempre algo é retido e algo se perde) até se tornar um ponto em um diagrama que circulará pelo mundo em um artigo científico (2001: cap. 2).

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campo. A análise destas condições é perpassada por considerações sobre o formato das relações de trabalho entre os diferentes profissionais envolvidos na realização do estudo e sobre o modo de funcionamento da empresa de consultoria ambiental – na medida em que estes elementos surgem dos dados etnográficos e parecem significativos para compreender o caso em questão. A primeira constatação que salta aos olhos a partir da leitura do “diagnóstico” é a grande quantidade de informações reunidas a respeito das diferentes regiões e localidades a serem atravessadas por uma linha de transmissão de 1.854 km de extensão que atravessa quatro unidades da federação. O item denominado “Uso do Solo na Área de Influência Direta - AID9” baseia-se em trabalho de campo realizado por duplas de pesquisadores que percorreram trechos desta área entre maio e junho de 2013 e em imagens do programa de computador Google Earth. Consegue identificar 146 povoados e localidades, 9 assentamentos e 41 fazendas, dividindo a área em dez trechos nos quais são agrupados estes locais identificados segundo características em comum, mas também por serem contíguos ao longo de um traçado linear: por exemplo, as áreas de agricultura familiar da Bahia e do Tocantins não se encontram no mesmo trecho por não serem contíguas. O tipo de informação que a empresa de consultoria espera que o profissional traga de campo varia segundo o tipo de empreendimento a ser licenciado. Em todos os casos, é preciso registrar “evidências” da presença dos profissionais nos locais percorridos – o mínimo é que sejam feitas fotografias dos lugares e pessoas visitados; cada lugar fotografado e descrito também costuma ser registrado com uma marcação no aparelho de GPS. Estas “evidências” poderão ser usadas posteriormente para provar a realização de estudos in loco, em caso, por exemplo, de questionamento do EIA em uma situação de Audiência Pública. Nos diagnósticos para empreendimentos como linhas de transmissão de energia (LTs), para a equipe de trabalho de campo, trata-se de percorrer – dirigindo - o “corredor” que constitui a “área de influência” do empreendimento – 2,5 km de distância do eixo da linha de transmissão, para ambos os lados, perfazendo uma largura de 5km. Como o “corredor” é extenso, atravessa diversos municípios, a equipe não 9

“Considerou-se, para a Área de Influência Direta (AID) da LT do meio socioeconômico, um corredor de 5 km de largura (2,5 para cada lado do eixo central do traçado) que atravessa trechos de 47 municípios nos estados do Tocantins, Maranhão, Piauí e Bahia.” (Ecology Brasil/ATEXVI 2013: item 6.4.2.8.2, p. 1).

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permanece mais de uma noite em uma mesma cidade. Os trabalhos de campo são, portanto, extenuantes. Quanto menos tempo as equipes passarem em campo, percorrendo todos os municípios pré-determinados, menores serão os custos para a empresa de consultoria. Outra justificativa são os estreitos prazos para apresentação dos estudos – o que incorre também na pressa dos técnicos-pesquisadores, quando chegam de campo já cansados, para produzir e entregar seus relatórios. O principal objetivo é verificar o tipo de ocupação nos locais onde será instalado o empreendimento, para avaliar se as atividades ali desenvolvidas interferem com a presença da LT – por exemplo, os cultivos na chamada “faixa de servidão” podem ser apenas forrageiros, ou seja, plantas rasteiras; se houver uma roça de mandioca (muito comum, aliás, no meio rural brasileiro), o produtor será “orientado” a modificar seu cultivo. Na etapa do diagnóstico, são apenas constatados os usos da área de influência. Em áreas rurais, por exemplo, as equipes (geralmente duplas) percorrem o “corredor”, entrando em algumas estadas vicinais e aplicando um breve questionário aberto aos moradores e produtores. O tempo que o pesquisador passa com o entrevistado não costuma ultrapassar uma hora, mas geralmente é bem menor que isso. É presumida a semelhança entre o perfil dos moradores e produtores entrevistados, e todos os demais da mesma região, em uma espécie de amostragem aleatória não calculada, com apoio também das imagens de satélite. Frequentemente, as informações colhidas nos trabalhos de campo para “diagnósticos socioeconômicos” de linhas de transmissão alimentam diferentes trechos do EIA, mas contribuem mais maciçamente para a composição do capítulo “Uso do Solo na Área de Influência Direta - AID”. De uma maneira geral, este capítulo traz uma descrição de cada um dos pontos identificados e georreferenciados, frequentemente também fotografados. No caso dos locais identificados como “povoados”, o mínimo de informações apresentado contém os seguintes itens: número de famílias, recepção de benefícios como o Bolsa Família, acesso a serviços de saúde e educação, padrão construtivo das residências, recepção de sinais de TV, rádio e telefonia e estrutura de saneamento. Já ouvi queixas de antropólogos contratados para realizar este tipo de trabalho no seguinte sentido: além do já reduzidíssimo tempo dispensado a dialogar com cada um dos entrevistados, que permite no máximo algumas inferências vagas sobre o “modo

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de vida” local (baseado, em grande medida, da experiência do próprio pesquisador), parte deste tempo deve ser gasta explicando o empreendimento, dada a inevitável curiosidade dos moradores a respeito de algo que provavelmente terá efeito sobre suas vidas, e outra parte é gasta procurando atender aos requisitos de um questionário padronizado que pouco contribui para dimensionar esses efeitos – “eu ainda tenho que perguntar se o cara tem fossa séptica!”. Cabe observar, ainda, que os trabalhos de campo para “diagnóstico de AID” são frequentemente realizados por profissionais free lancer, contratados especificamente para aquele trabalho. Quando muito, algumas das duplas para percorrer o “corredor” são integradas por um pesquisador funcionário da empresa de consultoria. Estes profissionais externos recebem geralmente um treinamento de um dia: metade destinada a normas de segurança, especialmente nas estradas, e às vezes primeiros socorros; e metade destinada a receber uma explicação sobre o empreendimento (uma exposição em powerpoint) e sobre o tipo de informações que devem ser coletadas, principalmente aquelas contidas no questionário10. A princípio, graças ao empenho de profissionais realizando este trabalho nas condições adversas descritas anteriormente, mas cientes de suas responsabilidades, o “diagnóstico” dá conta de identificar os trechos nos quais determinados “impactos” serão mais prejudiciais e de que forma isso acontece. Por exemplo, a Avaliação de Impacto arrola o “impacto” denominado “perda de áreas produtivas e benfeitorias”, cuja dimensão e intensidade, admite-se, varia “em função da relação entre o tamanho da propriedade e a extensão da Faixa de Servidão determinada” (Ecology Brasil 2013: item 9, p. 123). Ou seja, sabe-se que o efeito das “restrições se uso” será pior para pequenos produtores, pois a área ocupada pela Faixa de Servidão pode tomar uma proporção maior de sua área produtiva. Além disso, a situação é agravada pelo fato de que qualquer tipo de ressarcimento ou indenização é destinado ao proprietário –

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Cabe observar aqui, para chamar a atenção para pontos a serem explorados em trabalhos futuros a respeito de minhas experiências no licenciamento ambiental, que os trabalhos de campo para “diagnóstico” de Área de Influência Direta de diferentes empreendimentos constituem um importante “bico” para estudantes de graduação e pós-graduação em Ciências Sociais, em meio às incertezas de processos seletivos, acesso a bolsas de pesquisa e outros percalços da dita vida acadêmica. Trata-se de um perfil diferente daqueles profissionais de Ciências Humanas e Sociais que se tornam funcionários efetivos das empresas de consultoria, geralmente marcados por trajetórias menos privilegiadas e pela necessidade de se fixar no “mercado de trabalho”. Entre estes, são frequentes as aspirações de retomar seus estudos, embora nem sempre concretizadas.

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deixando desassistidos posseiros, meeiros, parceiros, agregados, ou trabalhadores em condições semelhantes a estas. Para subsidiar a análise deste “impacto”, encontram-se muitas informações no capítulo elaborado pela equipe de “socioeconomia”. O “diagnóstico” identifica várias áreas onde predomina a pequena produção: sobre o trecho inicial da LT, no estado do Tocantins – “As relações familiares são significativas na organização territorial da ocupação, uma vez que as terras de pequenos proprietários rurais são divididas entre as famílias, que acabam por configurar pequenos núcleos de povoamento rural.” (Ecology Brasil 2013: item 6.4.2.8.2.3, p. 4); sobre o trecho 2 - no “povoado Calaboca [município de Monte Alegre do Piauí], distante 1.429 metros do traçado, residem 40 famílias que vivem da agricultura de subsistência” (Ecology Brasil 2013: item 6.4.2.8.2.3, p. 25); e assim por diante. O estudo traz ainda, em algumas passagens, um nível de detalhamento que permite obter informações sobre pequenos povoados e localidades que dificilmente seriam obtidas de outro modo, a não ser que houvesse trabalhos acadêmicos sobre cada um destes lugares. Por exemplo, a partir deste estudo, sabe-se que, do povoado de Raizinha, localizado no município de Gilbués (PI), há emigração para Goiás e para o Distrito Federal (idem.: 48); do povoado de Cabeceira, no município de Baianópolis (BA), partem emigrantes sazonais para o município baiano de Luís Eduardo Magalhães e para os estados de São Paulo e Goiás (idem: 64). Antes de passar à avaliação deste “impacto” no capítulo correspondente, é necessário esclarecer alguns conceitos básicos através dos quais opera esta avaliação de impacto e como se encontra estruturada a exposição da avaliação no texto do EIA. A AIA é apresentada para três diferentes situações, chamadas de “cenários temporais”, abordados sucessivamente no texto do estudo e neste texto. O “cenário tendencial” apresenta uma sucinta análise da região considerando a hipótese de que o empreendimento não seja implantado. Esta análise é exposta sob a forma de dez “tendências locais, considerando os impactos em curso na região” (por exemplo, “Propensão à presença de processos erosivos” ou “Oferta escassa de educação

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escolar”), identificadas para a “Área de Influência do empreendimento de forma global”11. O “cenário sucessional” apresenta as transformações previstas a partir da implantação do empreendimento, organizadas nas etapas de “planejamento”, “instalação” (obras) e “operação”. Neste cenário e no “cenário alvo”, exposto em seguida, são apresentadas as ações relacionadas à implantação da LT que serão realizadas em cada uma destas etapas (Intervenções Ambientais – INAs), os seus desdobramentos (Processos Indutores – PINs) e, finalmente, as consequências a eles associadas – os “Impactos” (IMP). Por exemplo, “aberturas de acessos às frentes de serviço” é uma INA, que se desdobra em “aumento do tráfego de veículos pesados” (PIN), que por sua vez “induz ao aumento de incidentes rodoviários – IMP”12. O terceiro cenário apresentado é o “cenário alvo”, que trata dos mesmos processos abordados no “cenário” anterior, considerando, porém, o sucesso de medidas mitigadoras propostas neste capítulo e melhor detalhadas mais adiante no próprio EIA (no capítulo dos “Programas Ambientais”). Tem-se, ao final desta parte, uma lista dos “impactos” do empreendimento. Segue-se a “Análise de Impacto Ambiental propriamente dita”, que “constitui uma inter-relação de atributos qualitativos dos impactos. A conjugação dos critérios entre si virão a expressar o grau de efeito do impacto, nesta análise representando a Relevância relativa de cada um.” (idem, p. 5). Os “impactos” são, portanto, analisados segundo uma variedade de critérios (apresentados na tabela a seguir), chamados de “qualitativos”, mas que todavia resultarão em uma “relevância” numérica. Cada um destes atributos é dividido em categorias opostas (por exemplo, critério “cumulatividade”: não cumulativo/cumulativo) ou gradativas (critério “magnitude”:

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Embora o texto sobre cada uma das tendências considere heterogeneidades das localidades atravessadas pela LT, a “área de influência” aqui é claramente tratada em seu conjunto, como uma “região”. Em artigo anterior, discuto as implicações de tratar como “região” o conjunto de municípios reunidos pelo fato de constituírem a área considerada “impactada” por um “empreendimento”. No caso da criação da região do “Leste Fluminense” com a reunião dos municípios “impactados” pela instalação do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), identifiquei “forças que convergem no sentido de adequar a ação de diferentes agentes, vinculados em diferentes escalas, ao projeto hegemônico em processo de implantação na região. Desse modo, governos, populações e organizações locais devem adotar novos procedimentos – como o empreendedorismo, a capacitação, ou o realinhamento e a articulação com outros atores – tanto para colher os benefícios prometidos pelo progresso quanto para denunciar e contestar seus princípios” (GASPAR 2012: 19). 12 Para uma explicação mais detalhada deste método, ver GASPAR 2015, pp. 10-15.

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baixa, média ou alta). Os últimos três critérios apresentados na tabela são combinações dos critérios anteriores (exceto o primeiro, “natureza”) que resultarão em valores numéricos inteiros ou percentuais. Assim, a “significância” é uma combinação de “Forma de Incidência, Abrangência, Tempo de Incidência, Prazo de Permanência e Probabilidade de Ocorrência” e será valorada de 05 a 15 e ainda classificada como “Muito Pequena, Pequena, Média, Grande ou Muito Grande”. A “importância” combina os demais critérios, não utilizados no cálculo da “significância”: “Cumulatividade, Reversibilidade, Sinergia, Indução e Magnitude”; é valorada de 1 a 7 e classificada nas mesmas gradações da “significância”. Tabela 1 – Critérios de classificação dos Impactos Ambientais

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Fonte: Estudo de Impacto Ambiental da Linha de Transmissão 500kV Miracema-Sapeaçu e Subestações Associadas – Ecology Brasil / ATE XVI 2013

O último critério, “relevância”, é aquele que determina a necessidade de aplicação de medidas “preventivas, mitigadoras ou compensatórias”. Sua valoração será apresentada em porcentagens associadas a gradações (Muito Pequena – até 20%, Pequena –40%, Média – 60%, Grande – 80%, ou Muito Grande – 100%). Trata-se de uma combinação de todos os critérios anteriores, uma vez que leva em conta em seu cálculo os valores da “importância” e da “significância”, e considera também o primeiro critério – se a “natureza” do “impacto” é negativa ou positiva, determinando o sinal (+ ou -) do valor da “relevância”. Como os critérios “importância” e “significância” são valorados em grades diferentes (de 5 a 15 e de 1 a 7, respectivamente) – sem que haja uma justificativa para isso, introduz-se na fórmula para o cálculo da “relevância” uma variável K, que representa a “intensidade”, definida como “a sua potencial ação [do impacto] diante do quadro ambiental geral verificado na Área de Influência. (...) Assim, a partir desta ponderação, por menor que seja a Significância de um impacto analisado, seu valor absoluto existirá”. Cabe notar que, por mais que se leia detalhadamente a distinção entre cada um destes “atributos” dos “impactos” e as justificativas para suas valorações, quando se passa da descrição dos fenômenos à sua valoração numérica, salta aos olhos o caráter sempre arbitrário, e por vezes aleatório, desta atribuição. Este caráter aleatório da valoração numérica torna-se ainda mais evidente na comparação entre as avaliações de impacto ambiental de diferentes EIAs, que dão a impressão de apresentar cada uma o seu critério, como fruto da formulação de cada técnico que a elaborou. Duas situações vividas por mim na consultoria lançam luz sobre este aspecto. A primeira vez que tive contato com os critérios para valoração de impactos foi também a primeira vez que tive de elaborar uma AIA. Trabalhava como funcionária fixa em uma empresa pequena, quando me caiu nas mãos um estudo realizado um ano antes para

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licenciamento de atividade de exploração (pesquisa sobre localização e viabilidade) de petróleo. O trabalho de campo já havia sido realizado e também o levantamento de dados secundários – minha tarefa era atualizar estes últimos e fazer uma revisão, ou seja, dar uma “recauchutada” em um EIA que havia sido deixado de lado e voltara a ser importante, mas neste pacote incluía-se também a revisão da AIA. Como é frequente, não havia tempo para pesquisar ou refletir, a AIA deveria ficar pronta em uma tarde. A metodologia já estava estabelecida, bem como os “atributos” dos “impactos” e suas escalas de valoração. O que pude fazer foi ler atentamente a definição de cada um dos critérios, e, a partir dos dados disponíveis, imputar a cada característica pré-determinada dos “impactos” um valor, dentro da escala prevista. É evidente que realizei esta tarefa com extrema insegurança e ao mesmo tempo surpresa em “descobrir” o pequeno grau de “objetividade” que integra o processo de atribuir valores a “impactos”13. A segunda situação ocorreu em uma empresa grande – uma reunião entre representantes das equipes responsáveis pelos diagnósticos dos “meios” “físico”, “biótico” e “socioeconômico” com o gerente do projeto de implantação de uma linha de transmissão, que havia elaborado a AIA e convocado aquela reunião para apresentá-la às equipes para que propusessem ajustes – um louvável esforço no sentido de compartilhamento das tomadas de decisão sobre a valoração de “impactos”, mesmo considerando que a maioria dos profissionais ali presentes não haviam ido a campo. Na reunião, era patente a insegurança dos diferentes técnicos em fazer inferências a partir das informações de que se dispunha – por exemplo, havia dúvidas quanto à localização ou não da subestação de energia dentro de um distrito industrial. Causava confusão, também, a utilização de termos que, na linguagem corrente, são praticamente sinônimos, mas que na linguagem da AIA são tratados como passíveis de serem sempre claramente discerníveis e mensuráveis: importância/significância/relevância; prazo de permanência ou duração/ tempo de incidência ou temporalidade; e assim por diante. Na reunião havia também um representante da equipe de Educação Ambiental, responsável pela elaboração de medidas de “mitigação” dos “impactos” (chamadas de “programas ambientais”). Após a reunião, um comentário informal deste técnico recobrou-me da sensação que tivera quando revisei aquela AIA de exploração de petróleo – ele estava

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Cerca de três anos depois, quando não mais trabalhava naquela empresa, foi enorme minha alegria ao ler uma pequena notícia em um jornal diário, de que não havia sido encontrado petróleo em quantidade significativa naquele bloco.

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estupefato ao constatar que a valoração dos impactos se apoiava “basicamente em chute”, ao contrário da impressão de “cálculo objetivo” transmitida pelos discursos técnicos dos estudos. Retorno, então, à avaliação do impacto “perda de áreas produtivas e benfeitorias”, ao qual é atribuída uma “relevância” de -31%. A avaliação deste impacto, no capítulo correspondente, na fase de operação do empreendimento e considerando o “Cenário de Sucessão”, é a seguinte: “Adversidade de caráter Negativo, este impacto tem forma e tempo de incidência Direta e Curto. Se estendendo pela abrangência Local, apresenta caráter Permanente e Probabilidade Certa, o que compõe um quadro de Grande Significância. Para a composição da Importância, classificada em Média, apresenta-se como Não Cumulativo, Reversível e Indutor, tendo ainda Presença de sinergia, e Média Magnitude. Em resumo, sua Relevância no Cenário de Sucessão é Pequena, conferido por um valor de -31%.” (Ecology Brasil 2013: “Identificação e Avaliação de Impactos”, p. 124). Já no “cenário alvo”, que considera a implantação do empreendimento conjugada ao sucesso das “medidas mitigadoras”, na fase de operação, a “relevância” deste “impacto” cai para -23%. A queda de 8 pontos percentuais na “relevância” se explicaria pelo sucesso de medidas classificadas como “compensatórias”, que consistem em: “Plano de Atendimento à População Atingida, Programa de Negociação e Indenização para o Estabelecimento da Faixa de Servidão e Acessos e Plano de Comunicação Social”. A avaliação do “impacto”, neste cenário, é a seguinte: “Considerando a correta aplicação das medidas, que se agrupam, principalmente, em Programas de caráter Compensatório, sua Relevância no Cenário Alvo cai para -28%, sendo classificado como impacto Pequeno. Já para a fase de operação, cai para -23%, também considerado de Pequena Relevância” (idem: 165). Primeiramente, é possível observar que a decomposição do “impacto” em tantos “atributos” termina por relativizar sua importância. Apesar de grande “significância” e média “importância”, é atribuída a este “impacto” “relevância” pequena. Isto acontece devido à variável K – a “intensidade”. O que um cálculo como este torna possível? Entre outras coisas, que um estudo pormenorizado atente para os efeitos da perda de áreas produtivas para pequenos produtores, inclusive mencionando a difícil situação dos produtores que não são proprietários das terras que cultivam, sem no entanto conferir-

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lhe valor compatível com os efeitos da “perda de áreas produtivas” sob o ponto de vista de pequenos produtores. Não se trata, aqui, de questionar fórmulas ou o peso numérico atribuído a cada um dos “atributos” do “impacto” considerados. Defendo que o tratamento numérico e “objetivo” dos efeitos das transformações associadas à implantação de um empreendimento confere um caráter técnico e uma aparência de “objetividade” a tomadas de decisão – sobre a realização ou não do empreendimento, sobre a sua localização entre outras possíveis, sobre a forma como será implantado – que são de ordem política. No caso do “impacto” considerado, trata-se de optar entre implantar ou não uma linha de transmissão que inviabilizará ou prejudicará pequenos produtores, muitos deles em condições de posse da terra que não darão margem a qualquer tipo de ressarcimento; entre, optando-se por construir a LT naquele local, criar ou não um critério de indenização que considere as especificidades da pequena produção ou que prime por salvaguardar os direitos dos mais pobres; e assim por diante. Ao analisar os efeitos da implantação de projetos de “desenvolvimento” em Lesotho, país africano, Ferguson demonstra como, entre outros efeitos, esses projetos esmagam ameaças políticas ao sistema ao tratar de questões agrárias, de recursos ou empregos como problemas técnicos, passíveis de sofrer intervenções técnicas – como uma espécie de máquina “anti-política”, que suspende a “política” até mesmo das mais sensíveis operações políticas (1994: 180). As avaliações de impacto ambiental parecem operar do mesmo modo, transformando decisões políticas em problemas técnicos, em estudos que assimilam os efeitos negativos de um empreendimento e tratam das populações prejudicadas pela sua instalação como fatores em um cálculo que torna tudo equacionável e gerenciável. Finalmente, outro fator importante a ser considerado no cálculo da “relevância” dos “impactos” é a subtração de alguns pontos percentuais na sua valoração final no “cenário alvo” – ou seja, considerando-se a eficácia das “medidas mitigadoras”. Cabem mais algumas notas etnográficas. O detalhamento e a execução das “medidas mitigadoras” é realizado em uma etapa posterior do licenciamento ambiental – não faz parte, portanto, do escopo de um

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EIA14. Isto significa, entre outras coisas, que as medidas previstas na AIA poderão inclusive ser detalhadas e executadas por outra empresa de consultoria, que não aquela que elaborou o estudo. No processo de elaboração de um EIA, são pequenos a importância e o tempo destinados à elaboração do capítulo que enumera e descreve sumariamente as “medidas mitigadoras” recomendadas para aquele empreendimento. Com prazos apertados para finalização dos estudos, frequentemente os “programas” ficam para a última hora e são amplamente copiados e adaptados de estudos anteriores. No entanto, nada disso é levado em conta ao considerar a plena eficácia dessas ações no “cenário alvo” da AIA. A avaliação do “impacto” “aumento da violência sexual” no EIA em análise neste artigo fornece elementos para pensar tanto aspectos negligenciados pela valoração numérica e objetivista do “impacto” quanto das “medidas mitigadoras” conforme delineadas nesta etapa do licenciamento. No capítulo da AIA que trata da fase de instalação do empreendimento (construção), no âmbito do “cenário sucessional”, este “impacto” é assim descrito: “A instalação de prostíbulos e a indução da prostituição avulsa é efeito frequentemente observado próximo aos canteiros de obras. A geração de expectativas em torno da possibilidade de maior circulação de capitais, inserida em um quadro regional de desemprego formal, tende a atrair para o entorno dos canteiros, a oferta de serviços ligados ao sexo. Em áreas remotas, quando associada à fixação de grandes contingentes populacionais masculinos, a exemplo de outros empreendimentos similares, é comumente registrada a indução a prostituição adolescente e forçada, agravando as características do impacto.” (Ecology & Environment do Brasil 2013: 9-Identificação e Avaliação de Impactos, p. 122). Figura como associado aos processos indutores “Geração de postos de serviço” e “Alteração da dinâmica social”, por sua vez associados às INAs “Mobilização de equipamentos e mão de obra” e “instalação e operação dos canteiros de obras”. Ora, a “indução a prostituição adolescente e forçada”, tratada como um “agravante” do “impacto”, é crime15, diferente do aumento da prostituição, que embora 14 Em um processo de licenciamento ambiental padrão, o EIA é um pré-requisito para concessão da Licença Prévia (LP) de um empreendimento. O detalhamento das “medidas mitigadoras” faz parte do documento chamado de Programas Básicos Ambientais (PBA), exigido para a concessão da licença ambiental seguinte – a Licença de Intalação (LI), que permitirá o início das obras.

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possa ser considerado um efeito negativo, não infringe a lei. A atribuição de valor numérico a um “impacto” como este, mesmo que com probabilidade de ocorrência “acidental” (e não “probabilidade certa”), admite que crimes poderão ser praticados, o que é inaceitável, mesmo considerando-se que apenas um caso aconteça. No cálculo final da AIA, a “relevância” acaba sendo muito pequena, porque o “impacto” é previsto apenas para a fase de obras. E, assim como no “impacto” “perda de áreas produtivas e benfeitorias”, considerado anteriormente, a ferramenta da análise de impacto permite que tal efeito negativo, previsto e descrito no estudo com razoável acuidade, seja subdimensionado no equacionamento final. Este subdimensionamento não ocorre por erro na atribuição de valor a qualquer um dos critérios analisados, mas pela perspectiva de que seja aceitável a sua ocorrência, em qualquer proporção. Para “mitigar” este “impacto”, o EIA recomenda: “Programa de Apoio à Infraestrutura dos Serviços Públicos, Programa de Educação Ambiental para os Trabalhadores e Plano de Comunicação Social”. Com o sucesso destas medidas, a “relevância” do “impacto” passaria de -15%, no “cenário sucessional”, para -8%, no “cenário alvo”. Tamanha eficácia atribuída a ações de comunicação social e educação ambiental (7 pontos percentuais), ainda que venham a ser exemplarmente executadas, parece desconsiderar problemas estruturais verificados nas grandes obras, relacionados ao fato de tratar-se de contingentes enormes de trabalhadores, em sua grande maioria do sexo masculino, distantes de suas famílias e de outros laços sociais por longos períodos de tempo, em regiões onde predomina a pobreza e a falta de perspectivas. Mas, mais do que isso, a proposição de medidas mitigadoras e o cálculo da sua eficácia contribuem para endossar a ideia de que problemas desta ordem possam ser tratados como questões técnicas, passíveis de ser solucionadas por ações racionais e planejadas por especialistas. Como corolário desta lógica, de conferir tratamento técnico a questões políticas, é exemplar a avaliação do impacto positivo “aumento da confiabilidade do sistema elétrico” – basicamente a justificativa para a implantação do empreendimento. Com “relevância” positiva de 42%, e “intensidade” “forte”, relativo a toda a fase de operação do empreendimento, contempla todos os usuários do Sistema Interligado Nacional 15

Em maio de 2014, o crime de exploração sexual de menores passou inclusive a ser considerado crime hediondo. Ver: http://www12.senado.gov.br/jornal/edicoes/2014/05/26/exploracao-sexual-de-menoragora-e-crime-hediondo

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(SIN) – ou seja, quase toda a população brasileira que consome energia elétrica -, particularmente reforçando a ligação das regiões Norte e Nordeste com o SIN. Ora, quando exposto deste modo, a AIA praticamente força a opção pela positividade tão abrangente deste “impacto” face a “impactos” mais locais, como a perda de área produtiva dos pequenos produtores não proprietários ou a perda da infância das vítimas da violência sexual. Tabela 2 - Relevância dos impactos no cenário de sucessão e alvo na etapa de operação

Fonte: Estudo de Impacto Ambiental da Linha de Transmissão 500kV Miracema-Sapeaçu e Subestações Associadas – Ecology Brasil / ATE XVI 2013

A busca por conferir uma roupagem de “objetividade” ao tratamento dos efeitos da linha de transmissão também contribui para obliterar todas as dificuldades imprevistas que surgem durante a construção e operação de grandes empreendimentos, incluindo todas as transações entre elementos humanos e não-humanos envolvidos na construção e operação de uma linha de transmissão que percorre quatro estados brasileiros, no mínimo três diferentes ecossistemas, mais de uma centena de povoados, alguns núcleos urbanos e comunidades quilombolas. Uma das principais contribuições de cada EIA que é elaborado para a consolidação da avaliação de impacto ambiental como ferramenta para comprovar tecnicamente a “viabilidade ambiental” de empreendimentos que trazem consigo efeitos nocivos é o caráter de previsibilidade que o estudo confere às transformações que serão promovidas. Previsões que, frequentemente, não se verificam, dada a vasta gama de queixas organizadas ou não por parte das populações atingidas e os desastres ambientais como vazamentos de petróleo,

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enchentes em bacias hidrográficas alteradas por projetos de barragens, e assim por diante. Esse caráter de previsibilidade que as avaliações de impacto ambiental conferem às transformações promovidas por grandes empreendimentos tampouco se verifica nos estudos sobre a mediação técnica empreendidos por Bruno Latour, nos quais o autor demonstra por que a noção de “eficiência técnica sobre a matéria” não explica a sutileza do trabalho dos engenheiros, que precisam lidar com a impossibilidade de exercer qualquer espécie de domínio na relação com não-humanos (2001: 203). Para Latour, a noção de “objetividade” não supõe situar-se acima da batalha ou suprimir a subjetividade, mas maximizar a capacidade dos atores de contestar o que é dito sobre eles (2000 apud MOSSE 2006: 939). Ademais, se assim como os projetos de “desenvolvimento” analisados por Ferguson (1994) e Mosse (2006) falham em combater a pobreza, as avaliações de impacto ambiental falham em prever a importância da totalidade dos efeitos negativos dos grandes empreendimentos, o que mais estes estudos fazem? Para além de prever e “mitigar” “impactos”, os estudos contribuem para a consolidação e a estabilidade das avaliações de impacto ambiental como ferramenta que permite conferir um tratamento técnico a questões como o aumento da prostituição próximo a canteiros de obras, o prejuízo ou inviabilização de pequenos produtores, os incômodos à população, a remoção de famílias, assim por diante. Estes problemas associados à implantação de um empreendimento passam a ser considerados como passíveis de serem previstos e calculados por avaliações de impacto ambiental e passíveis de serem amenizados por medidas “mitigadoras”, deixando de estar relacionados a decisões políticas que dizem respeito à seleção de quem será beneficiado e quem pode ser prejudicado em um modelo de desenvolvimento.

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BIBLIOGRAFIA BASSO, Luis Alberto & VERDUM, Ricardo. “Avaliação de Impacto Ambiental: Eia e Rima como instrumentos técnicos e de gestão ambiental”. In: VERDUM, R. & MEDEIROS, R.M.V. (org.) Relatório de impacto ambiental: legislação, elaboração e resultados. Porto Alegre: Editora da Universidade UFRGS, 2006 BRONZ, Deborah. Empreendimentos e empreendedores: formas de gestão, classificações e conflitos a partir do licenciamento ambiental, Brasil, século XXI. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGAS/UFRJ. Rio de Janeiro, 2011. FERGUSON, James. “The Anti-Politics Machine – “Development” and Bureaucratic Power in Lesotho”. In: The Ecologist, Vol. 25, Nº 5, September/October 1994. GASPAR, Natália Morais. “Como nasce uma região: a construção do Leste Fluminense a partir da implantação do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – Comperj”. Trabalho apresentado na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de julho de 2012, em São Paulo, SP, Brasil. ____________________. “Cientistas Humanos, Trabalho de Campo e Licenciamento Ambiental – impressões e impactos”. In: V React – Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia. Porto Alegre, maio, 2015. ONG, A.; COLLIER, S. (Ed.). Global assemblages: technology, politics, and ethics as anthropological problems. Malden: Blackwell, 2005. LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora. Bauru: Edusc, 2001. MORAWSKA VIANNA, Catarina. “Lições em Engenharia Social: a lógica da matriz de projeto na cooperação internacional”. In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 20, n. 41, jan./jun. de 2014. MOSSE, David. “Anti-social anthropology? Objectivity, objection, and the ethnography of public policy and professional commmunities”. In: Journal of the Royal Anthropological Institute (N.S.)12, 935-956. 2006. SÁNCHEZ, Luis Enrique. Avaliação de Impacto Ambiental – Conceitos e Métodos. São Paulo: Oficina de Textos, 2008.

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DOCUMENTO CONSULTADO Ecology and Environment do Brasil/ATE XVI Transmissora de Energia S. A. – Estudo de Impacto Ambiental da Linha de Transmissão 500kV Miracema-Sapeaçu e Subestações

Associadas.

2013.

Disponível

em:

http://licenciamento.ibama.gov.br/Linha%20de%20Transmissao/LT%20500%20kV%2 0Miracema-Sapea%C3%A7u/Estudo%20de%20Impacto%20Ambiental%20-%20EIA

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