Consumindo o eu e o outro: o fenômeno do selfie nos sites de redes sociais e suas implicações psicológicas

July 3, 2017 | Autor: Jessica Carneiro | Categoria: Communication, Social Networks, Photography, Digital Media, Image Analysis, Selfies
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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015)

2º ENCONTRO BINACIONAL COMUNICON – BRASIL PORTUGAL

Consumindo o “eu” e o “outro: o fenômeno do #selfie nos sites de redes sociais e suas implicações psicológicas

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Jéssica de Souza Carneiro2 Fernanda Carvalho de Almeida3 Resumo No momento contemporâneo, mudanças sociais, culturais e políticas têm gerado novas formas de subjetivação, sobretudo por intermédio da mediação tecnológica. Novos hábitos de vida e consumo têm emergido juntamente à evolução da Publicidade e do crescente emprego de tecnologias no cotidiano dos indivíduos. Inseridas nestas confluências contemporâneas, estão os sites de redes sociais, plataformas cuja maneira de operacionalizar as relações sociais possuem regras, códigos e tendências que lhes são próprias. O objetivo deste estudo busca refletir sobre o "selfie" enquanto não apenas um gênero fotográfico, mas um fenômeno produtor de subjetividades, a partir de um referencial teórico crítico. Temos como marco a temática do consumo, da performance, da imagem, do corpo e da indústria cultural. Favoreceu-se um estudo ensaístico, buscando vestígios deixados pela materialidade das relações interpessoais nas plataformas digitais – mediadas pelas imagens. Palavras-chave: Selfie; Consumo; Indústria Cultural; Redes Sociais.

O uso de aparatos tecnológicos no cotidiano ganha cada vez mais peso na sociedade contemporânea ao ponto de pensar-se impossível a vida sem eles. Frente a esta relação, McLuhan (1977) propôs uma aldeia global na qual os meios de 1

Trabalho apresentado no 2º Encontro Binacional Comunicon – Brasil Portugal, realizado no dia 5 de outubro de 2015. 2 Graduada em Comunicação Social e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), vinculada à linha de pesquisa Sujeito, Cultura na Sociedade Contemporânea. Bolsista FUNCAP. 3 Graduada em Psicologia e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), vinculada à linha de pesquisa Sujeito, Cultura na Sociedade Contemporânea. Bolsista CAPES.

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comunicação convergiriam de tal forma que se tornariam uma extensão do homem. De fato, as tecnologias de comunicação se entrelaçam fortemente à construção da subjetividade do homem contemporâneo. A utilização de tais tecnologias integrase às atividades profissionais, aos relacionamentos interpessoais, ao fazer e ao ser do homem, conforme propôs Primo (2007). O homem contemporâneo tende a aderir às novas tecnologias como as redes digitais de comunicação divergente às tradicionais meios de comunicação tal a televisão, jornal, rádio etc, por estas prometerem interatividade e oportunidade aos indivíduos de “falar” e ser “ouvido” dentro de ambientes digitais, segundo Dizard Jr (2000). Atrelada às redes digitais de comunicação, está a fotografia, recurso fundamental na consolidação destas redes, e também modificada pela tecnologia em sua anexação a dispositivos tecnológicos como câmeras digitais e posteriormente smartphones. O surgimento dos sites de redes sociais (SRSs) corroborou para uma adesão ainda maior a estas recentes tecnologias. Estes SRSs permitem compartilhar e tornar público interesses, rede de amigos/contatos, fotos pessoais, trechos do cotidiano de cada participante, permitindo assim a publicização do que outrora era considerado particular e privado (RECUERO, 2009). Em suma, a grande diferença entre os sites de redes sociais e outras formas de comunicação mediada pelo computador é o modo como permitem a visibilidade e a articulação das redes sociais, a manutenção dos laços sociais estabelecidos no espaço offline. (RECUERO, 2009, p. 102) É importante também perceber que a inserção destas tecnologias de comunicação reconfigura não apenas a relação homem-tecnologia, mas a própria relação homem-homem. A partir desta perspectiva de mutações, nos debruçamos neste trabalho sobre uma maneira emergente e recorrente de retratar-se nos sites de redes sociais, o "selfie 4 ". O que parece ser um fenômeno inédito, na verdade,

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Expressão que mais a frente será devidamente explicada.

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inaugura novas formas de compreender esta fácil - e desejável - autoexposição que circunscreve a nossa sociedade contemporânea. O autorretrato, consagrado hoje como selfie, não nasceu com a explosão das redes sociais virtuais. A prática do autorretrato advém desde a pintura dos quadros, onde grandes artistas retratavam a si próprios entre óleos e canvas. Com o surgimento da fotografia e sua posterior massificação, pessoas que não detinham nenhuma técnica ou apuramento artístico poderiam experimentar ser um "artista" e assumir o dom de "'retratar fidedignamente" a realidade, incubência - e dom - que estava destinado apenas aos pintores. Esta cisão entre (obras de) arte e técnica (fotografia) levou Benjamin (1935) a discutir qual seria então o papel das artes plásticas daquele momento em diante e o que a fotografia representaria para aquela sociedade moderna, que caminha incessantemente em direção ao progresso. Nos ateremos nesta discussão a refletir como a fotografia e a prática fotográfica, bem como sua inserção e suas novas práticas dentro dos sites de redes sociais, delimitam os novos problemas que emergem em nossa sociedade.

1.

O papa é pop : breve histórico do selfie Uma nova palavra passou a figurar no Dicionário Oxford em novembro de 2004 :

“selfie”. Segundo Sbari (2013), a incorporação desta nova palavra ao dicionário mais extenso da língua inglesa ocorreu devido à recorrência da mesma em publicações variadas – citações da palavra selfie cresceram em 17.000% no ano de 2013. O significado do neologismo, segundo o dicionário citado, é "fotografia que alguém tira de si mesmo, em geral com smartphone ou webcam, e carrega em uma rede social." (OXFORD, 2014). Tal palavra, todavia, foi usada pela primeira vez em 2005, segundo o jornal The Guardian (2013), por Richard Krause em um tutorial de fotografia, como uma possiblidade de autorretrato repleta de surpresa e serendipidade.

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A palavra foi retomada por um usuário da rede de compartilhamento de imagens Flickr na criação de um grupo para compartilhar somente fotos de selfies. Apesar de inaugurar novas formas de compreender a autoexposição que circunscreve a sociedade contemporânea, o fenômeno investigado não é recente: o registro mais antigo reconhecido como um selfie data de 1830, produzido pelo fotógrafo Robert Cornelius (SBARI, 2013). Relaciona-se ainda o selfie ao gênero de autorretrato, ainda mais antigo - no século V a.C., Fídias deu a uma escultura do templo de Parthenon seu rosto. O autorretrato ganhou força no renascimento, pois tal gênero era visto como um caminho para o autoconhecimento. Todavia, apenas com o surgimento da fotografia e, posteriormente, com o surgimento da fotografia digital, pessoas desprovidas de técnica ou apuramento artístico puderam retratar a realidade ou a si mesmos, algo anteriormente restrito apenas a artistas. A imagem vem com este papel decisivo na nova organização do pensamento e do sujeito enquanto tal. A fotografia, por tanto, passa a ser o recurso máximo utilizado tanto na Publicidade quanto nos desdobramentos que alimentam a indústria cultural. A partir de sua popularização e massificação, e por conseguinte seu alcance nos sites de redes sociais, a fotografia passa a ganhar a função de life streaming, à medida que conta e narra as "banalidades" do cotidiano. Os grandes olimpianos da Publicidade e da mídia - as celebridades da TV e do cinema-, figuras importantes que ajudaram a manter arquétipos e representações sociais, outrora tinham um poder infalível de tornarem-se, para Morin (1997) modelos de cultura no sentido etnográfico do termo, isto é, modelos de vida. De acordo com o sociólogo, eram heróis modelos. Encarnam os mitos de autorrealização da vida privada. O que se percebe hoje, entretanto, é um culto às celebridades do cotidiano, do banal: O foco foi desviado das figuras ilustres: foram abandonadas as vidas exemplares ou heroicas que antes atraíam a atenção de biógrafos e leitores, para se debruçar sobre as pessoas comuns. (...) por outro lado, há um deslocamento em direção à intimidade: uma curiosidade crescente por aqueles âmbitos da existência que costumavam ser

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catalogados de maneira inequívoca como privados. (SIBILIA, 2008, p. 34) Essas microcelebridades do cotidiano - eu e você-, são cada vez mais incitadas a se autoveicularem e se exibirem - Broadcast Yourself5 - sem que ao menos haja uma reflexão e um questionamento prévio acerca deste processo. Os sites de redes sociais constituem-se como tecnologias da subjetividade que, ao invés de funcionar como uma ferramenta de democratização que revoluciona a libertação humana, opera como uma plataforma que transforma seus usuários em marketers e microcelebridades que se engajam sem fadiga em sua autopromoção e suas atividades de construção de status (MARWICK, 2013 Apud THAM, 2014). Ou seja, a revolução digital e tecnológica não apenas falhou em providenciar uma revolução e horizontalização cultural, como se propunha, como reforça o poder. O selfie, todavia, e sua intrínseca autoexposição, não nascem nos sites de redes sociais virtuais ou sRSs. O convite à autoexposição e o deslocamento de uma prática particular e privada para a esfera pública são gerados no ventre da Publicidade. E são destas relações e atravessamentos entre selfie, Publicidade e indústria cultural sobre as quais nos debruçaremos nos tópicos seguintes.

2.

Indústria Cultural e Selfie: corpo, imagem e consumo Ao refletirmos sobre o fenômeno do selfie, gostaríamos de destacar alguns

elementos como o corpo, o poder da imagem e o consumo. Segundo Costa (2005), a cultura somática propiciou uma migração da moral dos sentimentos, da profundidade emocional e da obscuridade do desejo a uma moral do corpo, das sensações, da firmeza de vontade. Tal deslocamento alijou o sujeito de um importante mecanismo estabilizador do sentimento e de sua identidade: a capacidade de ocultar sua intimidade do olhar do outro. Tal exposição é correlata à “experiência de 5

Slogan da marca Youtube, site agregador de vídeos cuja assinatura é gratuita, e cuja premissa é que os próprios assinantes produzam vídeos de si mesmo e veiculem em seus canais pessoais. Disponível em www.youtube.com

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transparência psíquica” proposta por Vertzman (2014) na qual o individuo sente-se em constante estado de alerta, sempre exposto ao olhar do outro – um olhar que enxerga o que há de mais íntimo para a cultura somática: o corpo. Costa (2005) afirma que há uma desconfiaça persecutória em relação ao olhar do outro, na qual o individuo ressente-se de um observador incômodo que escrutina seus possíveis desvios bioidentitários ou de um observador invejoso de seu corpo talhado de acordo com as especificações do fitness. Há uma hipersensibilidade a comentários relacionados à aparência corporal, pois estes equivaleriam a um juízo moral do próprio individuo. Paradoxalmente, os indivíduos desenvolveram a superexposição de si como forma de passar despercebido. A superficialidade e a uniformidade do que se exibe proporcionaria um escudo protetor de julgamentos: “não se presta atenção ao que é comum, repetitivo e sem nenhuma particularidade que atraia nossa inteligência ou afetividade” (COSTA, 2005) .Esta repetição de poses, de trejeitos ,de tipos de selfies, tendem a inserir-se na proposição de Adorno (1985): As particularidades do eu são mercadorias monopolizadas e socialmente condicionadas, que se fazem passar por algo de natural. Elas (...) são como impressões digitais em cédulas de identidade que, não fosse por elas , seriam rigorosamente iguais e nas quais a vida e a fisionomia de todos os indivíduos – da estrela de cinema ao encarcerador – se transformam , em face do poderio universal. (ADORNO, 1985, p.145) Logo, esta busca pela uniformidade, ou seja, esta identificação com o universal aponta para uma possível tentativa de conciliação do indivíduo com o universal. Por meio da abdicação de sua singularidade, procurar-se-ia aderir ao todo sob a promessa de aprovação do olhar do outro. Compreendendo este mecanismo a partir da cultura somática proposta por Costa (2005), o corpo será profundamente valorado como imagem de si. Ainda que se queira retratar emoções e lugares, estas passarão pelo "eucorpo". Não se retrata apenas um lugar, mas é preciso autorretratar-se nele – exibe-se até quando se deseja exibir outra coisa.

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Além do aspecto de autorretratar-se, o selfie é feito para ser compartilhado em redes sociais. Este mostrar-se ao outro parece tender ao dar-se ao consumo. Compreendendo a influência da economia na cultura, na qual a lógica da mercadoria é travestida de cultura e liberdade (SEVERIANO, 2013), gostaríamos de retomar o princípio da equivalência onde pessoas são equiparadas a mercadorias. Logo, situando o individuo contemporâneo a partir do conceito de personalidade somática de Costa (2005), entendemos que haveria uma tendência à própria imagem do corpo ser uma mercadoria a ser consumida, como um objeto de desejo. Segundo Moraes (2006), “na lógica da coisificação, a intenção final é transformar objetos de todos os tipos em mercadorias. Se esses objetos são estrelas de cinema, sentimentos ou experiência política não importa”. O retratar-se através de um selfie em uma rede social virtual (ou sRSs) para o olhar do outro poderia ser compreendido, assim , como um dar-se ao consumo. Vale ressaltar que o consumo é fortemente veiculado pelo discurso midiático, principalmente por meio da Publicidade que, segundo Adorno (1985), empresta seus ideais ao gosto dominante. Este último parece ser o veiculado nas fotos: corpos adequados ao fitness, belos rostos e peles, poses que procuram emular sensualidade e naturalidade. Em meio à reprodução do gosto dominante espelhada da própria repetição de bens culturais, é possível retomar a proposição na qual Adorno (1985) afirma que tudo que vem a público estaria profundamente marcado, de maneira que “nada pode surgir sem exibir de antemão os traços do jargão e sem se credenciar à aprovação ao primeiro olhar”(p.120). Outro aspecto interessante dos selfies é o ato de tornar o corpo em imagem. Infinitamente mais maleável que o corpo, as imagens permitem-se facilmente serem editoradas, conforme o retratado deseje. O site ““techtudo”” (2013) propõe, por exemplo, como mister ao selfie perfeito a editoração da imagem. Segundo Francis Wolf (2005), um dos mais perigosos poderes da imagem é sua transparência, ou seja, sua capacidade de nos fazer crer que enxergamos a própria coisa representada e não sua imagem. Por detrás da objetividade da imagem, há uma subjetividade empenhada

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em exibir determinados atributos e em ocultar outros. Há por detrás da imagem um jogo de fantasia: “dizemos mostrar a realidade tal qual ela é, nunca mostramos como a imagem da realidade é fabricada” (WOLF, 2005). A imagem, então, se apresenta como extensão da realidade e as técnicas que permitem sua editoração e manipulação tendem a fazer crer algo semelhante ao que Adorno (1985) captou em relação aos filmes: “a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no filme” (Ibid, 1985). A imagem exibe, mas o faz apenas pela afirmação – a imagem só apresenta, só afirma seus elementos e por ser incapaz de comportar em si a negação de seu próprio conteúdo acaba por se recusar ao debate, à dialética ou à oposição. A pureza de afirmação da imagem ocorre também baseada em sua ausência de conceito – ao reservar-se a apenas apresentar, a imagem não explica. Tal aspecto é retomado por Wolf (2005) como uma irracionalidade e como um contraponto, pois o que a imagem mostra, não pode ser dito. Há um impacto gerado pela imagem contemplada, um entendimento rápido do que ele apresenta. Ao desejar tocar, emocionar ou provocar uma reação imediata, não controlada, de admiração, de identificação, de atração, ou, ao contrário, de medo, de compaixão, de repulsa, nada vale tanto quanto a imagem (WOLF, 2005). Enquanto as palavras estão destinadas às mais altas especulações como a filosofia e ciência, as imagens são destinadas à velocidade na comunicação, ao consumo imediato e à perda instantânea. A rapidez da vivência e a escassez das experiências parece convergir a esta velocidade da imagem. Segundo Adorno (1985) tudo é percebido a partir da possibilidade de servir a outra coisa, por mais etérea que seja a percepção dessa coisa, ou seja, “ tudo só tem valor na medida em que se pode trocá-lo, não na medida que é algo em si mesmo” (Ibid, 1985). As fotos tendem a este movimento na medida em que se propõe ao souvenir de uma vivência, banindo a dimensão de experiência do momento. Compreendo aqui o experienciar da mesma maneira que Larrosa (2002): o deixar-se alcançar e tocar

por algo sem qualquer pretensão além do próprio

experienciar. Ao fotografar-se de maneira a exibir determinados traços a fim de captar

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o olhar do outro, dando-se ao consumo a dimensão de experiência parece esgotada do momento.

3.

Selfie e Publicidade: a performance da felicidade. Embora selfies sejam veiculados amplamente em redes sociais virtuais ou

sRSs, a gênese deste fenômeno é ainda anterior - como já mencionado. O convite à autoexposição e o deslocamento de uma prática particular e privada para a esfera pública estão interligados à Publicidade. Tomemos como exemplo Andy Warhol, em 1980 com sua campanha publicitária Expose Yourself, já evocava à exposição (DELORY-MOMBERGER, 2006). O convite à exposição assemelha-se à antiga confissão praticada pelo cristianismo ortodoxo, em que confessar significava expelir o que havia de ruim demoníaco - no indivíduo. A exposição, por sua vez, opera na mesma lógica do controle, porém um controle não mais exercido por um sacerdote ou uma entidade religiosa, que velava por seus fiéis, mas por uma sociedade que impinge o maior e mais velado controle: o autocontrole. O ver e o ser visto é a nova forma de vigilância. A mesma Publicidade que nos convida à exposição é a mesma que vende felicidade engarrafada e serializada, ocupando um papel cada vez mais fundamental na sociedade contemporânea, sendo considerada a mitologia da nossa época (MAFFESOLI, 2007 Apud DRIGO, 2008). O instigante convite à exposição e a promessa à felicidade ecoam nos autorretratos do selfie dos sRSs e atuam como um reflexo não somente desta nova "mitologia" - leia-se a Publicidade-, que nos impele ao dar-nos a ver. O narciso do século XXI, reinventado pelas tecnologias e pela era das redes sociais virtuais, não mais contenta-se em se enamorar de si mesmo, mas é preciso que seus pares compartilhem desta veneração de si. Na tentativa de se fazer conhecer, o indivíduo contemporâneo usa o recurso da autorrepresentação, uma espécie de ensaio performático de quem somos "por dentro". Para que saibamos de que forma os outros nos enxergam, precisamos de uma imagem virtual que reflita com exatidão nossa imagem. Assim como o espelho faz, o #selfie

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permite que tenhamos domínio sobre nossa imagem, que a administremos para termos controle da performance realizada perante a "audiência". O ensaio da pose, que beira uma encenação previamente pensada ao se deparar com a objetiva de uma câmera tende a uma performance e nela pode se encontrar "um desejo de convencer aquele que a fotografa ou que posteriormente terá contato com seu retrato" (CARNEIRO, 2013). Ao propiciar o advento do eu como outro, a fotografia cria uma cisão profunda entre o sujeito e a própria imagem, estimulada pelo mecanismo da pose. Para além da herança pictórica e da sujeição a alguns artifícios indispensáveis nos primórdios da imagem técnica, a pose é considerada por Barthes como um dispositivo dotado de um significado ulterior, visto proporcionar a fabricação instantânea de um outro corpo, a autotransformação do sujeito em imagem, num movimento interativo com a objetiva. (FABRIS, 2004, p. 115) Para Fausing (2013), olhar para si mesmo por um espelho ou enquadrar-se em um selfie pelas lentes de uma câmera nos separa de outros indivíduos, através da autorreflexão, na qual enxergamos nossa individualidade: "an action by which we become something in ourselves" (FAUSING, 2013). Todavia, é exatamente através desta possibilidade de refletir sobre si mesmo, de autocontrolar-se através do que se vê refletido em uma imagem virtual, em que reside o efeito panóptico de Foucault, de sermos observados a todo instante sem sabermos por quem. Isso nos faz nos autoobservar e autogovernar o tempo inteiro. O narciso reinventado, ou o neonarciso, presume a recíproca veneração de sua própria imagem pelos outros indivíduos do seu seio social: É nesse sentido, então, que se coloca a crítica de Slavin (2013) sobre a pressão de pares, em que o discurso “desviante” qualquer encontrado um determinado selfie seja paulatinamente removido do rol de possibilidades do indivíduo que gerou aquela imagem. (SOARES, 2014, p. 190) Assim como existem estereótipos representados e consumidos na Publicidade, a arte de autofotografar - nosso cotidianizado selfie - parece ensaiar um "eu" idealizado, ou como poderia nos dizer Baudrillard (1976), um eu socialmente desejável que

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estampa e transparece a felicidade incessantemente buscada, traduzida por sorrisos e situações aparentemente felizes. A felicidade emerge como o novo imperativo. A força ideológica desta felicidade, segundo Baudrillard (1976), não advém de uma inclinação natural de cada indivíduo para a realizar por si mesmo. E para que esta felicidade seja de fato materializada, ela precisa ser mensurável: importa que se trate do bem-estar mensurável por objectos e signos do "conforto (BAUDRILLARD, 1976). Entretanto, exclui-se na sociedade do consumo toda e qualquer possibilidade de felicidade compreendida como fruição total e interior, que independe de signos que possam se manifestar aos olhos dos outros e de nós mesmos. Esta mesma felicidade sugerida no contexto do consumo possui status de exigência de igualdade - se o outro é feliz, é preciso ser feliz também -, e deve curvarse "sempre a propósito de critérios visíveis (Ibid, 1976). Nos SRSs, é preciso negociar identidades, representações, convencer de que aquelas fotografias exprimem uma "essência" interior. Não basta ser feliz, é preciso "vender" a ilusão da própria felicidade. Nesse conjunto de práticas quotidianas, adoptadas pelos indivíduos para os seus modos de vida, está presente, agora como nunca antes, uma auto-expressão e uma consciência estilizada de si, e da vida, que o capital simbólico dos objectos de consumo ajuda a definir. (PINA, 2005, p. 7) O sorriso funciona como uma corporificação de uma felicidade que "existe" enquanto se materializa como ação; este mesmo sorriso é conteúdo imagético de grande parte dos selfie. É interessante perceber que, assim como na Publicidade, as fotografias autorrepresentativas parecem expugnar qualquer esboço de sentimentos ou emoções negativas. Cria-se uma imagem autoidealizada, que parece reproduzir os arquétipos de um "eu" perfeito e ideal.

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4.

Considerações Finais A Publicidade, as novas tecnologias e a lógica da indústria cultural estão

profundamente relacionadas ao fenômeno do selfie. Através do autorretrato, o individuo é convidado não apenas a mostrar-se, mas a dar-se ao consumo do outro por meio da exposição do que lhe é mais caro na perspectiva da cultura somática: o corpo. Ao olhar do outro estaria reservado o consumo e a apreciação do eu-corpo, sob a custa da angústia e da expectativa de quem se mostra. O fenômeno selfie é profundamente facilitado pelo aparato tecnológico. O olhar do outro parece onipresente enquanto potencializado pela tecnologia, que também serve de instrumento á lógica da indústria cultural e à Publicidade – indícios do ar de semelhança captado por Adorno. Ao “dar-se ao consumo” é propiciado o lugar das redes sociais por meio de fotos – embora o “dar-se ao consumo” não se esgote apenas nesta esfera. O produto-corpo exposto deve exibir aspectos veiculados pela cultura como o imperativo da felicidade, o consumo de bens materiais, o corpo talhado pelo fitness. As considerações sobre este devem ser expressas com rapidez, de maneira tão célere quanto permitido pela linguagem das imagens. Além disso, as imagens são privilegiadas enquanto linguagem deste “dar-se ao consumo” devido à facilidade de sua manipulação e à sua plasticidade, de maneira que o material que exibem pode ser facilmente adequado ao que se deseja mostrar. A insistência na captação de imagens para o jogo do “dar-se ao consumo” traz consigo uma maneira de subjetivação que tende a uma padronização e repetição. Consequentemente há um empobrecimento das experiências, pois frente à tendência de transformar momentos em imagens e apresentá-las como souvenir a outros, o individuo arrisca-se a não ser alcançado e transformado pela singularidade da experiência, limitando-se apenas ao vivenciar. Referências ADORNO,T. A Indústria Cultural: o iluminismo como mistificação das massas.(1947). In: ADORNO,T. Indústria cultural e sociedade.4 e.d.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

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