Contemporaneidade dos Conceitos de Paz e Violência em Johan Galtung e sua aplicabilidade para a América do Sul (Contemporaneity of Concepts of Peace and Violence in Johan Galtung and its applicability to South American case)

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SUMÁRIO 7

Apresentação Érica Winand, Thiago Rodrigues e Sérgio Aguilar

PARTE I – O Atlântico Sul: desafios estratégicos – 12

13 Defesa e Segurança no Atlântico Sul Celso Amorim

21 O Atlântico Sul: Segurança, Defesa e desafios

tecnológicos

William de Souza Moreira

32 Desafios para o nível operacional na defesa do Atlântico Sul Carlos Augusto de Fassio Morgero

50 Brasil e Palop no Atlântico Sul: Cooperação para o Desenvolvimento, Política E Defesa (1974-2014)

Kamilla R. Rizzi

63 A Cooperação Brasileira com Países Africanos Gerhard Seibert

PARTE II– Paz e Segurança na América do Sul: aspectos teóricos, conceituais e operacionais – 86

87 As atribuições das Forças Armadas nos países

sul-americanos

Héctor Luis Saint-Pierre e Laura Donadelli

105

Atajar la sudestada

Ernesto López

113 Misiones militares y roles multifuncionales: experiencias suramericanas Pablo Celi

126 Nubes de tormenta en horizonte y nuevas

misiones para las Fuerzas Armadas en América del Sur: Reflexiones desde Uruguay

Julián González Guyer

137 A contemporaneidade dos conceitos de paz e violência em Johan Galtung e sua aplicabilidade para a América do Sul Marcos Alan S. V. Ferreira

149 Ministerios de Defensa: Un Vistazo a la

America Latina Ernesto López

PARTE III– Brasil - capacidades, entorno estratégico e aspectos institucionais da defesa– 160

161 As demandas estratégicas que condicionam o preparo do poder naval brasileiro

Álvaro Augusto Dias Monteiro

186 Mercado Internacional de Aeronaves

Militares:Um Modelo dos Requisitos para a Inserção Brasileira Érico Duarte e Giordano Bruno Antoniazzi Ronconi

213 O direito à exploração em plataformas conti-

nentais estendidas André Panno Beirão

224 Era uma vez um Complexo Regional de Segurança: Entorno Estratégico brasileiro ou Vazio de Poder Sul-Americano? Augusto Wagner Menezes Teixeira Júnior

243 Os Militares e a Política

João Roberto Martins Filho, Paulo Ribeiro Cunha, Samuel Alves Soares e Sued Castro Lima

A CONTEMPORANEIDADE DOS CONCEITOS DE PAZ E VIOLÊNCIA EM JOHAN GALTUNG E SUA APLICABILIDADE PARA A AMÉRICA DO SUL M arcos A lan S. V. F erreira 1

Introdução

A

temática da paz e sua construção tem sido constantemente um dos tópicos centrais no histórico dos estudos de defesa e relações internacionais. Não obstante, o debate em torno do que significa a paz, dos caminhos para construí-la, das suas vertentes e complexidades, tem sido secundarizado em detrimento de uma abordagem estadocêntrica e focalizada na dinâmica dos interesses da guerra. Adicionalmente, no desenvolvimento dos estudos de defesa e das relações internacionais no Brasil, este tema de extrema relevância tem sido frequentemente relegado em suas publicações e eventos, em detrimento de perspectivas que preconizam a vertente realista ou liberal. Embora sejam hipóteses que necessitem ser melhor exploradas em futuros estudos, podem ser variáveis explicativas para tal priorização a forte reprodução do modelo norte-americano na Ciência Política e Relações Internacionais, assim como uma visão preconcebida de que a análise sobre a construção da paz é dotada

1

Professor Adjunto no Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba. Foi Pesquisador Visitante no Departamento de Estudos de Paz e Conflitos da Universidade de Uppsala (Suécia) Contato: [email protected]

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de ingenuidade e falta de noção da realidade por parte dos acadêmicos que a defendem. Uma grata e positiva surpresa foi quando no VIII Encontro Anual da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, ocorrido em Brasília-DF, alguns colegas e eu tivemos a notícia da aprovação da mesa-redonda que propusemos, intitulada “Estudos de Paz e suas vertentes”. A abertura acadêmica para compreender tal temática ainda incipiente no Brasil demonstrou maturidade da ABED em dialogar sobre novas temáticas e estar aberta a abordagens alternativas na compreensão dos fenômenos da guerra e da paz. Em conjunto com Paulo R. Kuhlmann (UEPB), Fernando Brancoli (PUC-Rio) e Tereza Cristina França (UFS), pudemos debater como a temática da paz se insere nos debates de segurança e defesa, oferecendo aos presentes uma introdução de um campo do conhecimento já consolidado nos Estados Unidos e países escandinavos. Este capítulo visa debater brevemente alguns dos temas discutidos naquela ocasião. Em especial, visa oferecer aos leitores uma introdução geral sobre a evolução dos estudos de paz sob ótica específica de um dos seus principais interlocutores, o norueguês Johan Galtung. Nas páginas subsequentes, comentarei brevemente sobre o papel de Galtung nos Estudos de Paz. Em seguida, comentarei os principais conceitos introduzidos pelo autor, para logo dar cabo às considerações finais às ideias aqui apresentadas à luz da problemática da violência sul-americana.

Breves comentários sobre vida e obra de Johan Galtung Ao falar de um autor de tal relevância nos estudos de paz como é Johan Galtung, incorre-se aqui no risco da incompletude e limitação na análise. Diante disso, como Johan Galtung continua produzindo proficuamente, os comentários nas páginas conseguintes trarão parcialmente aspectos de uma vasta obra de um importante pensador que proporcionou uma nova ótica em torno da paz, harmonizando diferentes campos do conhecimento em uma perspectiva multidisciplinar. O norueguês Johan Galtung, originalmente doutor em Matemática e Sociologia, contribuiu decisivamente para o campo das ciências humanas ao fundar em 1958 o Instituto de Pesquisas da Paz em Oslo (PRIO) e o Journal of Peace Research em 1964. Estas duas instituições até hoje são baluartes fundamentais na compreensão dos fenômenos em busca da paz. No caso

Os institutos de pesquisa da paz representam uma crença nos benefícios da análise racional e calculada, independente da influência dos governos nacionais. Os primeiros anos destas pesquisas, na década de 1950, foram auspiciosos e cresceram em centros na Escandinávia, Holanda e Estados Unidos, apresentando uma visão renovada sobre o conflito global. Ainda, os fundadores destes centros foram contemporâneos com o florescente movimento de desarmamento nuclear. Em contraste com as dominantes teorias de relações internacionais, pesquisadores como Johan Galtung na Noruega (um fundador do Peace Research Institute Oslo), Anatol Rapoport da Universidade de Michigan e Kenneth Boulding da Universidade de Stanford, ofereceram alternativas sãs para abordagem do “Dr. Fantástico” [de Stanley Kubrick] de destruição mútua assegurada de teóricos como Henry Kissinger e Herman Kahn, bem como outros apóstolos da dissuasão nuclear e da Guerra Fria (YOUNGS, 2013, p.168)2 .

Nos anos iniciais de sua formação, os pesquisadores do PRIO liderados por Galtung notaram que o estudo sistemático dos fenômenos transnacionais que vitimam direta ou indiretamente milhares de pessoas eram tratados sob um viés predominantemente estatocêntrico. Fatores sociais e econômicos eram relegados a segundo plano ou considerados variáveis secundárias. Por outro lado, quando a análise é focalizada somente no 2

Tradução do autor. Eventuais erros são de minha inteira responsabilidade.

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do periódico Journal of Peace Research, desde sua fundação este se destaca pela sua qualidade acadêmica, alto fator de impacto e profunda relevância científica nos estudos sobre conflitos, multilateralismo, cooperação, aspectos sociais e econômicos explicativos da violência, construção da paz, dentre outros temas correlatos. Além de atuar como consultor de várias agências da Organização das Nações Unidas – ONU, e como professor e palestrante, Galtung tem seguido também em sua trajetória o trabalho de experiente mediador. Suas centenas de artigos e livros publicados se somam ao fato de ser um mentor no campo de mediação e transformação de conflitos tanto no campo teórico quanto prático (UNESCO, 2013; TRANSCEND, 2013), juntando-se com outros nomes importantes que surgiram posteriormente na área como John Paul Lederach (Universidade de Notre Dame) e Edy Kaufmann (Universidade de Maryland). O início da trajetória de Galtung se insere em um movimento maior disseminado nos anos 1950 e 1960 que buscava compreender maneiras de evitar uma hecatombe nuclear e/ou os horrores de uma nova guerra mundial. De acordo com Nigel Young:

indivíduo que sofre com o flagelo da guerra, importantes elementos da sociedade geradores de conflito podem ser secundarizados. Diante deste contexto, Galtung inovou ao proporcionar uma visão singular sobre a temática da paz. Ao tratar de maneira interdisciplinar a relação entre violência, Estado, sociedade e indivíduos, ele criou um marco teórico que se consolidou através da disseminação de conceitos fundamentais para a compreensão da violência, utilizados amplamente até hoje. Dentre tais conceitos, destaca-se os de paz negativa, paz positiva, violência direta, violência estrutural e violência cultural. Nas próximas seções, será explicado os pormenores destes conceitos principais que são os alicerces da produção acadêmica de Johan Galtung. 140

O conceito de paz em Galtung

DEFESA E SEGURANÇA DO ATLÂNTICO SUL VIII ENABED

No campo das relações internacionais e de defesa, é comum que a paz seja definida como ausência de guerra. Desafiando este consolidado conceito, Galtung propõe em um artigo seminal em 1969 que paz não é só ausência de guerra. Paz é a ausência de violência (GALTUNG, 1969, p. 167). Posteriormente, o mesmo autor ampliaria essa definição afirmando que paz é a ausência/redução da violência de todos os tipos. É também a transformação criativa e não violenta de conflitos (GALTUNG, 1996, p. 18). A proposta acima explicada se tornaria inovadora ao trazer à tona uma definição de paz que ultrapassaria a questão das guerras interestatais ou entre entidades políticas. Para além da guerra tradicional regular entre exércitos – ou entre forças armadas e grupos beligerantes –, seria necessário compreender os desdobramentos do conceito de paz. Para isso, o autor entende que a paz pode se dividir em dois tipos: a positiva e a negativa (GALTUNG, 1969). A paz negativa consiste na ausência de violência direta. Por exemplo, o fim de uma guerra interestatal resultaria na paz negativa; um cessar-fogo entre dois grupos beligerantes dentro de um estado também se enquadraria neste conceito. Dado que a ausência de violência direta pode se dar de maneira imposta por determinado ator político ou por atores não-estatais através de formas de opressão econômica e política, torna-se importante a definição do conceito de paz positiva. Este último pressupõe a ausência de violência estrutural e uma busca constante por qualidade de vida, crescimento pessoal, liberdade, igualdade social, equidade econômica, solidariedade, autonomia e participação (GALTUNG, 1969; 1973). Além disso, para Galtung

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não se pode estudar as possibilidades de paz somente de um ponto de vista do conflito internacional ou entre dois Estados, abordagem comum nos estudos de segurança focalizados na paz negativa. Para o autor “há muitas linhas de fronteira cruzando e cortando a humanidade, criando níveis e graus de integração ou desejo de uso da violência. Somente algumas destas fronteiras são fronteiras nacionais” (GALTUNG, 1964). Neste sentido, como dito em um dos poucos estudos sobre a América Latina sob a ótica dos estudos de paz, “a paz não é só a ausência de guerra, senão também a ausência de outros tipos de violência que limitam ou impedem uma relação de proximidade entre a realidade e a potencialidade” (SERBIN, 2008, 18). Identificar os fenômenos violentos (diretos e estruturais) e propor sua resolução favorável seria uma das tarefas dos estudos de paz. Logo, concebe-se que a paz positiva vai muito além da simples cooperação entre os países no setor de segurança. No sentido tradicional do termo, paz positiva é um conceito que abarca inclusive a paz no nível comunitário de uma dada delimitação geográfica e vai além de uma perspectiva voltada só ao indivíduo. Um exemplo de paz positiva seria uma sociedade que superasse uma guerra e, adicionalmente, construísse elementos de promoção da igualdade social e autonomia dos diversos setores da população sem o uso de instrumentos de violência. Pode se conceber que alcançar a paz positiva em sua plenitude ainda é algo distante da humanidade. Isto é uma dedução lógica consistente quando notamos que o uso de ferramentas de coerção política, física e econômica ainda são uma constante na maioria das sociedades. Contudo, a conceituação de Galtung não é ingênua ao achar que seria fácil obter uma condição de paz positiva em dada sociedade. A força do seu construto teórico está em demonstrar que a paz vai além de um cessar-fogo ou o fim das hostilidades. Reduzir a violência direta e também estrutural – tal como será explicado adiante – é fundamental para uma aproximação de uma paz real. Ou seja, para compreender a paz não basta o fim do uso de instrumentos de violência. A meta da humanidade seria permitir que os indivíduos e as sociedades alcancem o máximo possível de suas potencialidades. Para isso é necessária uma compreensão mais ampla do que significa violência, dado que esse fenômeno guarda peculiaridades relevantes para a compreensão da estrutura social.

O conceito de violência em Galtung

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Dado que a paz só existe quando há ausência ou redução drástica da violência, não seria surpresa notar que outro conceito fundamental no pensamento galtungiano é o de violência. De acordo com Galtung, a violência estaria presente quando os seres humanos são persuadidos ou coagidos de tal modo que as suas realizações efetivas, somáticas e mentais se encontrariam debaixo de suas realizações potenciais (GALTUNG apud SERBÍN, 2008, p.17). Logo, a violência existe quando um indivíduo é incapaz de efetivar suas potencialidades devido a um impeditivo cristalizado em forma de violência. Tal violência é dividida em três tipos: direta, estrutural e cultural. A violência direta pressupõe a existência clara de um sujeito executor de ato que não só impeça um indivíduo ou sociedade de alcançar algo, mas também busca causar danos ou destruição aos mesmos (GALTUNG, 1969, passim). Os meios de violência direta são numerosos, e vão desde o ataque pessoal com armas brancas até a destruição coletiva com armas de guerra. Até mesmo os meios de violência direta utilizados comumente na história da humanidade são sistematizados por Galtung em uma de suas obras (GALTUNG, 1969, p. 174). Normalmente o entendimento de violência disseminado na sociedade é do tipo que o pensador norueguês chama de direta. Mas esta se refere apenas ao ato físico observável. O que dizer de ocorrências de violência que impedem uma sociedade de alcançar sua potencialidade, tal como o racismo ou desigualdade social? Ou mesmo a opressão gerada historicamente a bilhões de mulheres ao redor do mundo? Perante estas questões, é necessário reconhecer que há uma violência indireta que é construída na estrutura de instituições sociais, culturais e econômicas, guardadas as devidas peculiaridades de cada realidade social. Estas dão origem a outros dois tipos de violência, a estrutural e a cultural (BARASH; WEBEL, 2002). A violência estrutural nega a uma população – ou a parcela dela – direitos como o bem-estar econômico e a igualdade política e social. Assim, sob essas condições, um determinando grupo social se vê privado de suas potencialidades (BARASH; WEBEL, 2002). Quando seres humanos possuem tais direitos negados, eles acabam se tornando marginalizados e as condições para uma fragmentação social são criadas (JEONG, 2000). Consequentemente, potencializa-se a existência de conflitos sociais dos mais diversos, reproduzindo-se estruturas tensionadas que limitam a potencialidade de uma dada sociedade.

Conflito […] indica uma situação dentro do sistema social em que objetivos irreconciliáveis de cada um lutam pelo domínio do outro. Isto mostra que os conflitos se originam da oposição de interesses nos sistemas intra-societais e inter-societais. Há concretas razões entre indivíduos e grupos. Entre as causas está a distribuição desigual de bens materiais e chances educacionais (GROTTEN; JANSEN, 1981).

Por fim e não menos importante, Galtung desenvolve o conceito de violência cultural. Este conceito seria desenvolvido posteriormente, dado que o autor compreende que nem a conceituação de violência direta, nem a de violência estrutural, explicaria uma tipologia relacionada com símbolos culturais. Como definido pelo próprio autor: Por violência cultural nos referimos a aqueles aspectos da cultura, da esfera simbólica de nossa existência – exemplificada pela religião e ideologia, linguagem e arte, ciência empírica e ciência formal (lógica, matemática) – que pode ser usada para justificar ou legitimar a vio-

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A mensuração dessa injustiça social permite identificar essa forma de violência que muitas vezes passa despercebida, mas que vitima cotidianamente milhares de pessoas. Em um contexto de desigualdade, Galtung sugere que o pesquisador deve perguntar: que fatores, excluindo a violência direta ou ameaça da mesma, tende a apoiar uma condição de desigualdade? Diante desta pergunta, na mesma medida que os estudos militares e afins – como o realismo – estudam a violência direta, o pesquisador deve estar atento às ciências que explicam as estruturas sociais para compreender a violência estrutural (GALTUNG, 1969:175). Dentro desse contexto, não bastará mensurar a violência a partir do número de mortes, mas também a partir de outros indicadores importantes como o quanto a expectativa de vida diminui quando a violência estrutural está presente (GALTUNG; HÖIVIK, 1971). Enquanto a violência direta causa um dano mais rápido e visível às pessoas, a violência estrutural causa um dano mais lento e profundo. Outros exemplos deste segundo tipo de violência que podem ser citadas são a fome, a repressão política, injustiças sociais e a exploração econômica (BARASH & WEBEL, 2002). A ausência da violência direta não indica que as condições de uma decente vida humana estejam sendo mantidas. Logo, o conceito da violência estrutural ajuda a entender as causas mais profundas de um possível conflito (JEONG, 2000). É importante também reforçar que o próprio conceito de violência estrutural anda em conjunto com uma concepção de conflito. Como afirmado por Grotten e Jansen:

lência direta ou estrutural. Estrelas, cruzes e crescentes; bandeiras, hinos e paradas militares; onipresença do retrato do líder; discursos inflamados e pôsteres – tudo isso vem à mente [no conceito de violência estrutural] (GALTUNG ,1990, p. 291).

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Nos dias atuais, não é surpresa notar que a violência cultural está intimamente ligada a uma dinâmica da violência estrutural. Valores preconizados pelas elites econômicas são disseminados através de elementos objetivos ou subjetivos de uma cultura dita “superior”. Marcas, padrões de consumo e metodologias científicas, são disseminadas de cima para baixo e invalidam valores produzidos de maneira autônoma. No entanto, esta é uma discussão que sairia do âmbito deste breve trabalho. O importante de ressaltar neste debate é que a compreensão galtungiana de violência propicia um entendimento mais amplo e apurado deste complexo fenômeno. Na seção seguinte, faremos uma breve reflexão de como tais conceitos podem ser aplicados em pesquisas futuras sobre a realidade sul-americana.

Considerações finais: rumo a uma compreensão da América do Sul sob o viés dos estudos de paz Vários conceitos presentes no surgimento do campo dos estudos de paz podem ser úteis para uma compreensão em evolução da conflitividade na América do Sul. Tais conceptualizações propiciam uma perspectiva que supere uma análise no nível do Estado ou amplamente difusa no nível do indivíduo, trazendo também os problemas sociais desencadeadores de violência. Embora se reconheça que sejam estudos relevantes para as análises interestatais e sistêmicas, um olhar mais profundo nas raízes da sociedade sul-americana atual sob a ótica dos estudos de paz e para além do Estado-nação, nos fará notar que não temos uma zona de paz negativa ou híbrida como disseminado por alguns trabalhos (BATTAGLINO, 2012; HOLSTI, 1996; KACOWICZ, 1998, 1997). Também não são as possibilidades de tensões e disputas militares que são os principais focos de conflitos violentos (MARES, 2001; MARTIN, 2006). Nas periferias das grandes cidades assoladas por altos índices de homicídios e ações violentas, um problema de extrema relevância que se abre para a análise de pesquisadores em relações internacionais e defesa não é só a questão se um exército ameaça ou ataca outro, ou se essas forças armadas cooperam entre si. Igualmente de profunda importância é o fluxo transnacional de armas e drogas que alimenta uma rede que perpetua a violência

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direta entre milhares de pessoas em suas periferias todos os dias. As raízes desse problema passam pela compreensão da violência cultural e estrutural dessas sociedades. Tal problemática exige do analista uma visão multidisciplinar que não negligencie dados e fatores históricos, sociais e econômicos. A título de exemplo, a ideia de violência estrutural é de profunda relevância para uma adequada compreensão de sociedades em que se destacam latentes injustiças sociais e problemas relacionados a pobreza – como é o caso da América do Sul. Para além de questões securitárias como a criminalidade organizada, um acadêmico que focaliza sua análise inspirado nos conceitos dos estudos de paz deve olhar também para quais estruturas possibilitam a existência da organização desta violência direta. Uma compreensão da realidade social lhe permitirá reconhecer que por baixo da ponta do iceberg que é a violência direta vista em conflitos civis, guerra pelo controle do tráfico e violência policial estatal, há também aspectos estruturais relevantes na América do Sul. Dentre as quais, pode-se citar a construção de sociedades baseadas em relações coercitivas lideradas por forças armadas – tal como se viu na proclamação da república no Brasil –, a reprodução de modelos mentais e culturais que perpetuam o preconceito há grupos sociais – tal como se vê com relação aos negros e indígenas – e a presença aguda da desigualdade social e todas suas mazelas. Os quinhentos anos de normalização da violência trouxeram consigo uma indiferença à violência e brutalidade que assola a região. Enquanto em outros contextos alguns números seriam vistos como alarmantes, na América do Sul as estatísticas pouco recebem a atenção devida por parte de autoridades. Uma adequada explicação conceitual para esse fenômeno pode ser proporcionada pela retomada do conceito de violência cultural como ferramenta analítica, propiciando uma compreensão para além da repressão estatal e rumo a construção de realidades que preconizem os direitos humanos em sua plenitude. A gênese da sociedade sul-americana moderna e contemporânea nasceu dentro de um marco de violência direta que por séculos confrontou colonizadores, povos nativos e escravos trazidos da África. A luta de movimentos sociais minoritários como negros e indígenas são um exemplo de que esse padrão de conflito que dizimou populações inteiras manteve traumas até hoje não superados. Posteriormente, o próprio processo de legitimação da independência política frente às metrópoles espanhola e portuguesa se deram, em diferentes contextos, a partir de processos violentos que ampliaram a percepção no imaginário popular de heroísmo pessoal dos líderes deste processo de independência (SERBIN, 2008, p. 14). Adicional-

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mente, as ditaduras vividas em distintos países na região trouxeram consigo uma descrença em ações pacíficas para a resolução de problemas políticos e sociais, fortalecendo um imaginário de que a violência eventualmente é o principal caminho para atingir objetivos dentro destas sociedades. O debate acima abre uma questão relevante: é função do analista internacional ou de estudos de defesa compreender sociologia ou mesmo detalhes de determinada cultura relacionados com seu padrão de violência? Certamente a questão é válida e merece uma apurada reflexão. A fragmentação do conhecimento presente nos últimos séculos no Ocidente criou uma falsa imagem de que a precisão analítica de determinado objeto só pode ser obtida a partir de delimitação estrita das variáveis intervenientes no mesmo. A mensuração controlada de variáveis controladas estatisticamente permitiria uma visão realista do objeto que busco compreender. Porém, o estudo dos conflitos na América do Sul é um exemplo de como nas ciências humanas a mensuração pura e simples é insuficiente para uma adequada análise científica. Outros elementos interpretativos obtidos a partir da compreensão da realidade social são necessários, tais como os modelos que reproduzem a desigualdade, como eles funcionam e que impactos guardam para a população como um todo. A inexistência de guerras e conflitos pode significar a paz entre Estados, mas a paz interna dos Estados está seriamente comprometida. Mais do que isso, essa paz é afetada também por fenômenos transnacionais que exigem a cooperação entre países para a diminuição dos atos de violência no plano doméstico. Nesse sentido, a pergunta do parágrafo anterior pode ser pensada de uma diferente maneira: até que ponto é precisa a compreensão dos padrões de conflitividade e violência na América do Sul se eu negligencio ou secundarizo variáveis como violência estrutural, cultural e a busca da paz positiva? Ainda mais, de que maneira tais conceitos me proporcionam a possibilidade de me aproximar de um entendimento que mostre os reais motivos e indicadores do número de mortes e incidência de violência entre atores estatais e não-estatais na região? Tais perguntas não necessitam ser respondidas neste curto espaço. Mas podem ser refletidas profundamente para a execução de análises acadêmicas futuras em torno da conflitividade e violência na América do Sul sob a ótica dos estudos de paz. A abertura dada pela ABED ao permitir debater temas de segurança e defesa sob essa ótica foi um importante início nesta reflexão. Caberá agora aos pesquisadores envolvidos na temática uma postura firme na promoção de conceitos nem sempre amplamente aplicados, mas

de profunda relevância para a realidade sul-americana. E o grande desafio adiante é o de superar um debate limitado em variáveis estatocêntricas que muitas vezes pouco condizem com a mortalidade advinda de violências estruturais cristalizadas em violências diretas, refletidas nas periferias de cidades que vão da Venezuela à Argentina.

Referências BARASH, David & WEBEL, Charles. Peace and Conflict Studies. London: Sage, 2002 BATTAGLINO, J. M. ‘The coexistence of peace and conflict in South America: toward a new conceptualization of types of peace’, Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 55, n. 2, 2013, p. 131-151.

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