Continuar Inovando. Novos paradigmas contemporâneos de renovação urbana

September 11, 2017 | Autor: A. Revista Interd... | Categoria: Arquitectura, Ciências Sociais, Arquitetura, Arquitetura e Urbanismo, Ciencias Sociales, Arquitectura y urbanismo
Share Embed


Descrição do Produto

Continuar Inovando. Novos paradigmas contemporâneos de renovação urbana Gonçalo Furtado Rosa Macedo Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto (Portugal)

As cidades contemporâneas apresentam-se na actualidade como plataformas estratificadas distintas. Aspecto que origina uma certa ambiguidade na dimensão interventiva em centros históricos. Desta forma detemos como objectivo apresentar um conjunto de posturas que estabelecem uma ruptura com a actual dicotomia entre o gesto de renovar e a memória do centro histórico, assim como determinar a importância da (re)localização do papel da arquitectura nestas propostas interventivas. Para tal, seleccionamos o Plano de Pormenor da Zona Central de Aveiro de 1963, do arquitecto Fernando Távora, por ser uma referência incontornável no panorama nacional da renovação urbana ao estabelecer a integração dos novos modelos arquitectónicos em espaços urbanos consolidados, e procedemos à análise de certas posturas e propostas atuais de intervenção nacionais, considerando nos dois casos a dimensão temporal e territorial em que estes se inserem. A confrontação destes dois momentos de intervenção permite-nos compreender e ressalvar em tom de conclusão, que operar no centro histórico contemporâneo significa que, se dê a passagem da escala do quarteirão/objecto para a de cidade. Perante a dualidade respeito/reposição ou demolição/nova construção, a intervenção arquitectónica deve a nosso ver, sustentar-se igualmente numa visão global, considerando aspectos como a escala de intervenção e, a eventual reposição ou reinterpretação da própria função do edifício, onde o resultado poderia ser um gesto que compreendesse a reposição de valores, não apenas pertencentes a um passado, mas a uma contemporaneidade e futuro. Contemporary cities have on the current platforms storied as distinct. Aspect that leads to ambiguity in the intervening dimension at historic centers. Thus we hold as objective to present a set of postures that break with the current dichotomy between the gesture of renew and the memory of the historic center, as well as determine the importance of (re) location the role of architecture in these interventional proposals. To this end, we select the Detailed Plan of the Central Zone of Aveiro, 1963, authored by architect Fernando Tavora, for being an essential reference in the national urban renewal by providing the integration of new architectural models in urban consolidated, and proceeded to the analysis of certain postures and current proposals for national intervention, where as in both cases the temporal and geographical scale at which they belong. The comparison of these two moments of intervention allows us to understand and caveat in conclusion, that operate in contemporary historical center means that must have the passage of block scale / object to the city. Given the duality respect / replacement or demolition / new construction, architectural intervention should in our view, support is also a wider view, considering aspects such as the scale of intervention and the possible replacement or reinterpretation of the function of the building where, the result could be a gesture of appreciation on the replacement values, not just belonging to a past but a contemporary and future. Palavras-chave: Cidade, Renovação, Fernando Távora, Memória Contemporaneidade. Keywords: City, Renewal, Fernando Távora, Memory, Contemporary. AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

Histórica,

171

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

0. O presente texto apresentado no “II Congresso Internacional sobre Cidades, Culturas e Sociabilidade”, e inserido no tema da Renovação Urbana e Memória Histórica, foca ao longo das duas partes que o conferem, um processo de mutação dos princípios operativos da renovação urbana e a sua evolução na proximidade com a componente da memória histórica. Pretendendo contribuir para essa reflexão, detém-se como objectivo do presente texto, contrariar um qualquer negativismo ainda presente no síndroma contemporâneo, que afasta a capacidade de unir as posturas de renovação, definidas numa sociedade instável e em constante mutação, com a necessária preservação de elementos constituintes de uma memória histórica, de forma a dar resposta às necessidades de habitabilidade do espaço urbano contemporâneo numa correspondência com as perspectivas futuras. Para tal, estruturamos o artigo em duas partes. Uma primeira parte que aborda a origem e a evolução das propostas de renovação urbana em território nacional, numa fase inicial relacionadas com a necessidade de fazer cidade nova segundo os paradigmas do Estado Novo, recorrendo para tal, à análise de dois casos de estudo, a intervenção na Alta de Coimbra (1943) e a intervenção na zona da Sé do Porto (1939), e numa segunda fase com a ampliação do conceito de património, do objecto singular para o conjunto edificado. Uma segunda parte que foca a evolução e mutação das propostas de renovação urbana, através da análise ao Plano de Pormenor da Zona Central de Aveiro (1964) da autoria do arquitecto Fernando Távora (1923-2005), considerado inovador no panorama das intervenções urbanas da época em que se inseriu, e da análise à reconstrução da zona do Chiado (1988) da autoria do arquitecto Álvaro Siza (1933-), considerada pelo facto de nos apresentar elementos que contribuem para a pretendida reflexão contemporânea do presente texto.

AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

172

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

1. Inicia-se o presente artigo com uma breve reflexão sobre a palavra renovação. A presença do prefixo (re) perfaz com que o gesto resultante da sua aplicação em propostas de intervenção urbana, nos apresente algo novo perante algo que já existe, (ou não) capaz de reflectir componentes que consigam formalizar um conjunto de aspectos que marcam um tempo presente. Numa primeira abordagem poderia-se dizer que renovação e memória histórica não se relacionam, nem encontram momentos de contacto, uma vez que a primeira aspira para algo novo entrando em conflito com uma certa nostalgia que a memória histórica confere. Porém, analisando etimológicamente ambas as palavras, acreditamos que para renovação urbana e memória histórica, as possamos considerar num gesto de “melhorar uma lembrança”1. Esta dicotomia ganhou presença nos tempos iniciais das propostas interventivas em espaços de cidade que compreendiam o centro histórico, porque a necessidade da população urbana assim o exigia. Porém, denota-se que com o avançar das propostas se foi verificando que o gesto de renovar extinguia consequentemente as memórias da sociedade urbana, eliminando a dimensão identitária das cidades. Esta necessária consciência social permitiu que a renovação adquirisse uma nova tónica, e compreendeu-se, como iremos verificar no decorrer do texto, que realmente se poderia intervir numa contemporaneidade sem que a memória histórica do local fosse eliminada. Ao analisarmos o momento em que a renovação urbana regeu as posturas de intervenção das cidades verificamos que, nem sempre esta postura foi aceite, principalmente por quem protegia a ideia de que num espaço repleto de memórias, como é um centro histórico, podia-se usufruir do legado de uma civilização e origem da cidade. Assim, a memória histórica conseguia, de certa forma, sobrevalorizar-se nos tempos áureos da renovação urbana, mesmo que numa fase inicial apenas se salvaguardassem os monumentos históricos, enquanto objectos singulares e não conjuntos urbanos. 1

Uma vez que da palavra renovação retiramos o sinónimo de “melhorar”, e de memória retiramos o sinónimo de “lembrança”. AAVV, Dicionário Língua Portuguesa, Porto: Porto Editora, 2011. AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

173

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

Em território nacional, a origem da dicotomia entre as posturas de renovação urbana e a importância da memória histórica local, esteve em grande medida pautada no regime do Estado Novo (1933-1974). Deste período de tempo, importa mencionar que inicialmente as intervenções urbanísticas que se faziam sentir ainda representavam uma certa continuidade com os aglomerados existentes, “procurando conciliar as necessidades de crescimento, do tráfego e localização de edifícios públicos com os alinhamentos de ruas e avenidas, e a altura média preexistente”2. No entanto, o sentimento transposto em “edificar um espírito Novo”3 estaria implicitamente ligado à vontade de construir Cidade Nova4 (idealizada por Duarte Pacheco (1900-1943)) de onde se verifica que, a importância confinada a elementos pertencentes ao poderio (ainda que fantasioso) de um passado, apenas se destacavam na preservação dos monumentos nacionais. Como refere Nuno Portas, “mais uma faceta do uso do passado”5, como espectáculo, uma cenografia imaginária, que implicava reconstruir o monumento, “limpando-o de tudo o que não é genuíno (como se os séculos se não tivessem nele sucedido) e destacá-lo demolindo anexos e casarios próximos” 6. O gesto de demolir para valorizar os edifícios singulares, representou a política que se fazia sentir neste período de tempo, desde Guimarães a Vila Viçosa, em espaços consolidados dos centros das cidades, precários, insalubres e em ruína, que não se adequavam à imagem de uma cidade Nova, símbolo de um Novo Estado. Desta forma, os princípios que entretanto surgiam, sustentados na ideia de “embelezamento urbano” 7, entendiam o centro histórico como “uma estrutura que se baseava na relação entre os elementos singulares (…) e o espaço público” 8. O espaço edificado que compunha a envolvente do monumento, veria desvalorizada a sua importância enquanto referencial de memória urbana, pela incapacidade de 2 PORTAS, Nuno. (coord. Manuel Mendes) Arquitectura(s). História e Crítica, Ensino e Profissão, Porto:FAUP, 2005, p.297. 3 GRANDE, Nuno, O Verdadeiro Mapa do Universo, Coimbra: Edarq, 2002, p. 121. 4 GRANDE, op. cit., p.126. 5 PORTAS, op. cit., p.296. 6 Ibidem. 7 TOMÉ, Miguel. Património e restauro em Portugal (1920-1995), Porto: FAUP, 2002, p.166. 8 Ibidem.

AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

174

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

conhecimento histórico do desenvolvimento do espaço urbano, e em certa medida desinteresse, dos que regiam as posturas de intervenção nas cidades portuguesas. As experiências urbanísticas que entretanto se realizavam por toda a Europa, resultantes das políticas fascistas, ajudavam a sedimentar as bases das novas propostas urbanas nacionais, determinadas em grande medida pela aplicação de princípios higienistas, anteriormente experimentados com o Marquês de Pombal na Baixa de Lisboa, e pela influência de exposições sobre a arquitectura Neoclássica Alemã, itinerantes pela Europa, estando em Lisboa, capazes de provocar nos arquitectos portugueses um certo fascínio9. Como resultado da aplicação destas influências, podemos salientar a acção na Alta de Coimbra (1943), como o exemplo maior de renovação urbana nacional, e o Plano de melhoramento da área envolvente à Sé do Porto (1939), como exemplo dos planos de melhoramento, que na época do Estado Novo se praticavam em centros históricos. A proposta de renovação da Alta Universitária de Coimbra, em 1943, afirmou-se pela sua dimensão e escala, na sobreposição de um novo tecido urbano em espaço consolidado, como símbolo do fortalecimento da interligação entre o panorama universitário e o Estado. Como refere Nuno Rosmaninho, “a Coimbra dos Doutores pretendia afinal ser a Coimbra dos futuros dirigentes da Nação”

10

. O Plano de

Renovação da Alta de Coimbra resultou de vários estudos prévios, numa fase inicial com o Ante-Plano De Groer (?) e um outro plano de Raul Lino (1879-1974), porém foi o plano de Continelli Telmo (1897-1948) (enquanto arquitecto chefe) e depois de Cristino da Silva (1896-1976), que se pôde concretizar e ensaiar uma arquitectura monumental, representativa de uma nova cidade universitária, digna da dimensão dos paradigmas do Estado Novo. Segundo o objectivo de construir melhores condições de ensino para os estudantes e professores, a opção “não teve felizmente outras consequências para além do seu desastroso protótipo (…) no entanto tratava-se da única experiência à moda “romana” com base na demolição do que não se considerava monumental e “aconchegar” os 9

GRANDE, op. cit., p.127. Cf. ROSMANINHO, Nuno, O princípio de uma revolução urbanística no Estado Novo, Coimbra: Minerva, 1996, pp. 31-36, in GRANDE, op. cit., p. 127. 10

AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

175

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

salvados históricos com novos edifícios monumentais”11. Apesar de não ter sido reproduzida em mais nenhuma parte do território nacional, na Alta de Coimbra pudemos assistir à máxima exaltação do que é o gesto de renovar um espaço de cidade consolidado, sem atender à sua memória histórica, ou à sua futura interligação com a restante malha urbana. Este protótipo, pensado de forma singular e desprendida do sistema urbano, remete-nos para a reflexão contemporânea relativa ao que actualmente se verifica nas propostas urbanas nacionais, ainda que de forma camuflada e segundo escalas de menor dimensão. No que respeita à intervenção no Terreiro da Sé do Porto, de 1939, o que fôra estabelecido “apresentava evidentes objectivos higienistas de salubrização física e reabilitação social, conduzindo ao desenvolvimento de propostas baseadas em amplas demolições de edifícios e quarteirões, para segundo outras lógicas de desenho construir novo tecido”

12

. Pelo facto de este bairro da Sé se apresentar, na altura, como um dos

principais focos de disseminação de tuberculose da cidade do Porto, as propostas determinadas para o local representavam-se segundo modelos que previam a total destruição do conjunto edificado antigo, apenas salvaguardando elementos singulares respeitáveis. Destacamos das variadas propostas a de Ezequiel de Campos, de 1932, por ser a mais radical de todas, mas a que ao mesmo tempo permitia ver um certo nível de atenção com o ambiente existente. No seu Prólogo ao Plano da Cidade do Porto (1932), Ezequiel de Campos defende a possibilidade de adaptar à cidade antiga a vida moderna sem o seu completo arrasamento, se bem que, na sua opinião, “só as igrejas e algum raro edifício respeitável”

13

deveria ser considerado com valor histórico. Desta forma

propõe a “definição de uma plataforma livre no topo da colina (…) [isolando] o conjunto monumental por demolição do edificado envolvente”14. A sua proposta viria a ser mais tarde reformulada pelo projecto de reordenamento da zona envolvente da Sé, desenvolvido pelos serviços de urbanização da Câmara, com equipa técnica orientada 11

Cf. Nuno Portas, Ibidem. P.296. TOMÉ, op. cit., p. 432. 13 AA VV, A Ponte e a Avenida. Contradições Urbanísticas no Centro Histórico do Porto, Porto: Artes e Edições, 2001, p.41. 14 Cf. CAMPOS, Ezequiel, in TOMÉ, op. cit., p. 433. 12

AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

176

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

pelo arquitecto Arménio Losa (1908-1988) em 1939, onde previram a demolição dos quarteirões envolventes à Sé e a criação de um jardim em socalcos que rematava com um miradouro sobre o Largo do Colégio. Apesar da proposta de renovação no Porto ter sido diferente da realizada em Coimbra, representou determinados aspectos do que viriam a ser as práticas de renovação urbana em Portugal até aos anos 70, marcadas pelo arrasamento de áreas degradadas dos centros das cidades, e consequente reposição de novo edificado, descaracterizado de toda a envolvente histórica. A morte do engenheiro Duarte Pacheco (1943) e a passagem do engenheiro Eduardo Arantes e Oliveira (1907-1982) pelo cargo de Ministro das Obras Públicas (em 1954), “representou um momento importante no domínio da salvaguarda e da intervenção patrimonial, assinalando um processo de viragem, com amplitude semelhante à “revolucionária” acção de Duarte Pacheco, na década de 30” 15. A década de 50, marcada pela acção dos arquitectos anti-fascistas, e a organização do I Congresso Internacional de Arquitectura, pela Organização dos Arquitectos Modernos (ODAM) e pelas Iniciativas Culturais Arte e Técnica (ICAT), declarando a ruptura com a arquitectura do Estado Novo e afirmação da apologia do Movimento Moderno europeu, marcava o início do que viria a ser o entendimento da aplicação de um “vocabulário Moderno na arquitectura portuguesa, não por via da ruptura ou da recusa da cidade existente, mas antes pela sua utilização como matriz do novo projecto, ou seja, pela aceitação da sua continuidade” 16. Os novos paradigmas das posturas urbanas, regidas pela Carta de Atenas

17

(1933), assentes na nova relação do habitante da cidade

com o espaço urbano histórico, numa necessária libertação do congestionamento e da sua complexidade funcional, de forma a “segregar as funções urbanas, garantir a circulação fluída, e dimensionar o habitat na sua relação harmoniosa com os espaços abertos e o sol”

18

, seriam sobretudo experimentados nas periferias urbanas, uma vez

15

TOMÉ, op. cit., p.168. GRANDE, op. cit., p.141. 17 Cf. MUMFORD, Eric, The CIAM discourse on Urbanism, 1928-1960, Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2002. 18 GRANDE, op. cit., p.139. 16

AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

177

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

que a própria Carta era algo contida no que respeitava às intervenções em centros históricos, no sentido em que se analisarmos o Art.º 65º da mesma, verificamos a necessidade de “(…) os valores arquitectónicos [serem] salvaguardados”; e no Art.º 67º apenas “(…) poderá ser encarado, em casos excepcionais, a transplantação total de elementos incómodos pela sua situação mas que merecem ser conservados, pelo seu alto significado estético ou histórico”. Esta dupla postura presente na Carta de Atenas, confirmava-se mais tarde no VIII CIAM (1951) com o tema de discussão The Heart of the City, na tentativa de reformular o Planeamento Funcionalista, que entretanto invadia os planos urbanos das cidades europeias. O existente torna-se peça fundamental para a criação das novas propostas arquitectónicas, num sentido de continuidade, aspecto representativo do que viria a ser o gesto de renovar um espaço urbano, continuando a inovar, numa valorização de elementos representativos da memória histórica do local, inserida nos novos paradigmas da sociedade contemporânea. A cidade ganhou uma nova dimensão. A influência da Teoria dos Lugares Centrais de Walter Christaller (1933)19 e da experiência das New Towns inglesas (1950)20, permitiu considerar a cidade como uma plataforma de elementos autónomos funcionalmente interligados. Porém verificava-se que estes elementos teóricos não correspondiam, de todo, ao sentimento de continuidade que nacionalmente se propagava, numa crítica ao radicalismo moderno que então se praticava. Procurava-se, acima de tudo, uma arquitectura autêntica nacional e formas de intervir que representassem essa continuidade processual através da ligação dos tempos. Neste sentido destaca-se a iniciativa proposta pelo arquitecto Keil do Amaral (1910-1975) em 1947 na “classificação de elementos peculiares à arquitectura portuguesa nas diferentes regiões do País, com vista à publicação de uma obra vasta e criteriosamente 19

Walter Christaller procurava explicar a “localização dos serviços e instituições urbanas a partir do conceito de centralização como princípio de ordem”. Em: http://www.civil.uminho.pt/files/ruiramos/PT/PTOrganização%20do%20Espaço.pdf. Acesso em 28-09-2009. 20 Os princípios das New Towns assentes na separação racionalista das funções, previa a continuidade da Cidade Jardim e da Cidade Racionalista. Em: http://professor.ucg.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/13798/material/INGLATERRA%20ANOS%2050.pdf. Acesso em 28-09-2009. AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

178

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

documentada que permitisse um debate sério e científico sobre o problema da arquitectura regional portuguesa como caminho de procura de uma arquitectura autêntica, afastada dos eclectismos e dos estilos, reclamando-se das próprias raízes”

21

.

Esta proposta, inicialmente não tendo obtido qualquer resultado, viria em 1955 no então Ministro das Obras Públicas o engenheiro Eduardo Arantes e Oliveira, os apoios do Governo que subsidiaram a iniciativa, dando lugar mais tarde à publicação do Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa (1961), experiência que influenciará muitos dos arquitectos nacionais. Esta iniciativa, em que Fernando Távora foi “o pai da ideia da ideia, ao propor, num ensaio de 194522, um “trabalho sério” sobre o tema”23, representava o momento em que se procurava um “sentido verdadeiro conciliando uma necessidade de modernidade com a mais profunda tradição rural”

24

, onde a apropriação do lugar edificado segundo

necessidades e entendimentos do que regia a possível organização habitacional, ganhava importância no panorama arquitectónico e na forma de intervir em ambientes urbanos consolidados. À semelhança das posturas do Neo-Realismo italiano, pretendia-se apresentar a sociedade nacional e as marcas identitárias de um país, e não representa-las de forma desvirtuada da realidade. Procurava-se estabelecer, antes de mais, uma reflexão em torno da arquitectura popular em Portugal, na tentativa de reforçar a “consciência do papel social da Arquitectura e dos arquitectos, na resolução dos problemas do habitat colectivo reclamado pelas populações mais desfavorecidas” 25. Se o Governo “esperava da operação um valor prático que contribuísse para o aportuguesamento da arquitectura moderna no nosso país, o “Inquérito” evidenciaria (…) que Portugal não carece de unidade em termos de arquitectura”

26

(…) [propondo]

“uma aproximação da arquitectura à paisagem, ao lugar (…) às formas de vida (…)” 27 num contributo fundamental para o debate relativo à construção arquitectónica 21

TOSTÕES, Ana. “Arquitectura Portuguesa do Século XX”, in História da Arte Portuguesa, Vol. 3 (dir. de Paulo Pereira), Lisboa: Círculo de Leitores, 1995, p.528. 22 Cf. TÁVORA, Fernando, O Problema da Casa Portuguesa, Lisboa: Cadernos de Arquitectura, 1947 (1945). 23 LEAL, João, “Arquitectos, Engenheiros, Antropólogos: Estudos sobre Arquitectura Popular no Século XX Português”, in Conferência Arquitecto Marques da Silva 2008, Porto: Fundação Marques da Silva, 2008, p.7. 24 TOSTÕES, Ana, Os Verdes Anos na Arquitectura Portuguesa dos Anos 50, Porto: FAUP, 1997, p.159. 25 GRANDE, op. cit., p.145. 26 TOSTÕES, op. cit., p. 161. 27 Cf. Manuel Mendes, in TOSTÕES, op. cit., p.164. AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

179

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

repensada entre “a fidelidade ao Movimento Moderno e o compromisso da realidade e da acção do tempo histórico”28. Já Fernando Távora transportaria para o debate as “conclusões do X CIAM de Dubrovnik em 1956 - a necessidade de reintegrar o Homem nas suas raízes históricas, e portanto, na relação com a cidade consolidada e com a sua arquitectura”29. A conciliação do gesto de ser “Moderno” com o que é tradicional, enquanto detentor de um grau de ancestrelidade necessária a ser mantida, permite-nos confirmar o momento em que se tornava presente o despertar para o necessário cuidado do gesto de intervir em espaços consolidados, onde pela primeira vez o gesto de autor, era substituído pelo trabalho comunitário em que “todos os homens (…) não só os arquitectos e os urbanistas têm o direito e o dever de participar e de colaborar na criação e no desenvolvimento do seu habitat”30.

2. Os interesses de arquitectos e urbanistas distanciavam-se. Uma distância “acentuada pela perda, por parte da arquitectura, do domínio disciplinar sobre a gestão da cidade” 31 no final dos anos 50. A transição para os anos 60, marcada pelo êxodo rural fundamentalmente para as cidades do Porto e Lisboa, caracterizou o momento em que as preocupações urbanas transitavam para o debate da habitação colectiva, com implementação nas periferias das duas grandes cidades nacionais, originando posteriormente o que viria a ser o fenómeno da suburbanização das periferias e esvaziamento das zonas urbanas centrais. Os centros das cidades, agora abandonados à população com menos capacidade monetária, e à terciarização funcional, tornavam-se espaços residuais e de difícil aplicabilidade estratégica e projectual, dependentes de uma periferia, que se apresentava

28

Ibidem. GRANDE, op. cit., p.150. 30 TOSTÕES, op. cit., p. 165. 31 GRANDE, op. cit., p.142. 29

AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

180

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

como palco dos novos investimentos imobiliários, regidos pelo debate no alojamento social e na resolução do habitat mínimo colectivo. Os anos 60 apresentam-se como o momento em que o debate e a consequente consciencialização de que se devia proceder a uma interligação dos tempos (o de intervenção e o da preexistência) se afirma de forma mais premente. O final desta década, representou o momento charneira da afirmação de obras especificamente centradas na “construção do espaço da cidade”32, onde publicações como, refere Nuno Portas, de Kevin Lynch: The Image of the City (1960), de Gordon Cullen: Townscape (1961), de Christopher Alexander: The city is not a tree (1965), de Aldo Rossi: L’Archittectura della Cittá (1966), de Gregotti: El Territorio de la Arquitectura (1966), Ludovico Quaroni: La Torre de Babele (1967), entre outros, iriam contribuir para a reflexão em torno do necessário confronto de “fazer cidade” repensando no papel da “arquitectura urbana” na sua “nova dimensão figurativa de intervenção no território” 33, uma vez que “sob o ponto de vista da arquitectura urbana não pode haver edifício que não faça cidade ou seja, não há tipologia que não esteja, por estrutura, penetrada por uma morfologia urbana”34. É neste ambiente de reflexão que surge uma certa diversidade conceptual dos Planos experimentais em território nacional, a que fazemos referência ao Plano de Pormenor da Zona Central de Aveiro de 1964, da autoria do arquitecto Fernando Távora. Referimos este Plano pelo facto de ele ser uma referência nacional incontornável no que respeita a propostas de renovação urbana, pelo facto de integrar novos modelos arquitectónicos em espaço urbano consolidado que compreende o centro histórico da cidade de Aveiro. O destaque do Plano de Távora, no contexto dos Planos urbanos nacionais que continuamente persistiam na ideia de afirmar zonamentos artificiais nas periferias (que cresciam de forma expontânea, flexível e descontrolada aos parâmetros determinados pelos próprios Planos), assumia-se não só por contrariar a adopção de visões 32

PORTAS, Nuno, A cidade como arquitectura, 3ªedição, Lisboa: Livros Horizonte, 2007 (1969), p.13. PORTAS, op. cit., p.14 34 PORTAS, op. cit., p.15. 33

AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

181

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

funcionalistas, como permitir desenvolver parâmetros para um novo debate nacional sobre o modus operandi da renovação urbana em espaços de cidade consolidados, exigindo para tal uma análise que ultrapassava os limites do físico e da mera organização funcional, considerarando o existente como elemento fundamental na nova proposta. Compreende-se aqui a necessária reintegração do Homem nas suas raízes históricas, na relação com a cidade consolidada e com a sua arquitectura, e a aplicação de uma modernidade projectual segundo os paradigmas contemporâneos (à semelhança do que se veio a concluir no Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal). Do Plano para Aveiro importa salientar o que fora escrito pelo arquitecto Fernando Távora, com o intuito de compreendermos o conjunto de opções por ele determinadas. Para tal transcrevemos o texto do autor que se insere no documento do Plano Director Municipal de Aveiro, realizado pelo Gabinete do Plano Director sob a direcção do arquitecto Robert Auzelle. “Estudo Prévio do Arranjo Urbanístico e Arquitectónico da Zona Central de Aveiro. O Estudo Prévio do Arranjo Urbanístico e Arquitectónico da Zona Central de Aveiro constitue um estudo de pormenor de previsões do Plano Director na parte referente ao centro da cidade. Porque se trata de um estudo prévio e não de um projecto definitivo há, consequentemente, aspectos e problemas não encarados em toda a sua profundidade e outros que um estudo mais desenvolvido virá, porventura, a solucionar de modo diferente, o que, por outro lado, não significa que, na sua essência, o presente Estudo possa vir a sofrer alterações fundamentais. Desenvolvendo um esquema elaborado pelo Gabinete do Plano Director, sob a direcção do Prof. Arq. Robert Auzelle, este arranjo tem objectivos vários; assim, encarando uma solução para os problemas de trânsito e de estacionamento de veículos, ele encara, paralelamente, problemas de ordem plástica e de conservação de valores existentes, podendo no entanto afirmar-se que é seu objectivo fundamental, para o qual todos os outros convergem, o de prever um centro para a cidade de Aveiro dotado da eficiência, da beleza e da dignidade próprias de uma Capital Regional.

AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

182

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

Em matéria de trânsito de veículos o estudo prevê a solução das dificuldades actuais através de um sistema de sentidos únicos, com a eliminação da actual Ponte Praça e sua substituição por duas novas pontes colocadas em pontos extremos do Canal Central. Para estacionamento de veículos prevêm-se dois parques, um no actual Rossio, outro junto da encosta do cemitério, com uma capacidade total de cerca de 550 veículos automóveis. O trânsito de peões, por outro lado, não foi descurado; sempre que possível alargaram-se os passeios existentes, estabeleceu-se uma ligação em vários níveis entre a Praça da República e o Canal Central, passando sob um edifício a situar em frente ao da Câmara, e garantiu-se uma ligação central para peões, sobre o Canal, para evitar longos percursos. Ao longo do Canal os passeios transformaram-se em agradáveis zonas de estar e de convívio. Da comparação do estudo prévio com o estado actual do centro da cidade ressaltam, para além dos aspectos de trânsito já referidos, alterações sensíveis em matéria de edifícios. E, dentre todos, destacar-se-à, certamente e em primeiro lugar, uma torre com cerca de 90 metros de alto, no total, destinada a escritórios e hotel, com restaurante num dos últimos pisos, tendo na sua base um centro comercial com amplas esplanadas sobre o Canal. Entre a Praça da República e o Canal outra alteração se notará: aí, dos edifícios existentes, apenas o Banco Regional de Aveiro será conservado, prevendo-se até a sua ampliação. Fronteiro à Câmara será construído um edifício destinado a Turismo, Tesouraria e Secção de Finanças, Serviços Culturais e Biblioteca. Ainda no mesmo conjunto, prevê-se um novo edifício para a Caixa Geral de Depósitos, ocupando posição semelhante à do actual, e um edifício para escritórios e comércio. Uma frente comercial, voltada sobre o Canal, completará este sector. Em relação aos restantes edifícios existentes, sugere-se, dum modo quási geral, o ajuste das suas cérceas e, num outro caso, edifícios novos substituirão outros existentes a demolir. Cremos que o objectivo fundamental já referido de dotar o centro da Cidade com eficiência, a beleza e dignidade próprias de uma Capital Regional foi atingido. É notória a intenção de reforçar o carácter e o interesse que a zona central já actualmente possui, AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

183

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

compondo-a em torno do seu canal, elemento único nas cidades portuguesas. E à horizontalidade dominante em toda a região, contrapor-se-à a verticalidade do edifíciotorre que ficará a marcar, como um sinal, o esforço de Aveiro na recuperação do seu centro. Arquitecto Fernando Távora, com a colaboração dos Arquitectos Alberto Neves e Joaquim Sampaio.”35 O texto acima transcrito, apresenta a necessária inserção do que significa projectar no “seu tempo” como dizia Fernando Távora, mas com a certeza da existência de uma construção urbana necessária de respeitar. Em Aveiro, Fernando Távora assumiu a conservação dos valores existentes, nunca descurando a atribuição de uma nova imagem para o centro da cidade de forma a dotálo de “eficiência, da beleza e da dignidade próprias de uma Capital Regional”. Observamos pela primeira vez em planos urbanos nacionais, a preocupação de conciliar aspectos representantes de uma renovação urbana, atenta aos valores locais, à memória histórica da cidade, que à imagem dos princípios Neo-Realistas Italianos e da Carta de Veneza (1964), vêm de encontro ao que Aldo Rossi mais tarde afirmava em L’Archittectura della Cittá (1966), relativamente à consideração da cidade como “(…) a memória colectiva dos povos (…)”36 onde a transformação do espaço urbano resultaria da reciprocidade entre o “tipo” edificado e a “morfologia urbana”37. A memória descritiva e justificativa do ante-projecto da renovação da zona central de Aveiro, permite-nos compreender que a opção que Fernando Távora adoptara, apesar de contrariar certas vontades locais que actualmente se pronunciam38, representava explicitamente o sentimento de continuar inovando sendo para a época, como refere Nuno Portas, “(…) um dos primeiros exemplos de renovação decidido em plano 35 TÁVORA, Fernando, “O Estudo Prévio do Arranjo Urbanístico e Arquitectónico da Zona Central de Aveiro”, in AUZELLE, Robert, Plano Director da cidade de Aveiro, Aveiro: Câmara Municipal de Aveiro, 1964, p.76. 36 ROSSI, Aldo, A Arquitectura da cidade, Lisboa: Cosmos, 2001, p.44. 37 Ibidem. 38 Está instaurado um inquérito para definir quem é a favor e contra a demolição do edifício de Fernando Távora em Aveiro. A opinião divide-se entre a bancada do CDS-PP que consideram o edifício de “duvidoso gosto e sentido estético”, considerando-o como um “barreira arquitectónica”. E a opinião da bancada do PSD, que além de defender a salvaguarda do edifício ainda o consideram como um “edifício de referência (…) reconhecido internacionalmente”. Jornal Diário de Aveiro, em: http:// www. diarioaveiro.pt/ main.php?id_page=3177 , acedido em: 17-05-2011. AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

184

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

director regional e definido em projecto de arquitectura;(…)”39, de onde se salienta a “clara atitude de Távora perante o ambiente histórico(…) [ao interpretar a] atmosfera comentando-a por uma obra em contraste figurativo”40. Em 1968, era publicado na revista Arquitectura41, a apresentação do Arranjo da Zona Central de Aveiro, pelo próprio Fernando Távora. Segundo o objectivo de resolver os problemas de maior dimensão apresentados na zona central da cidade, respectivamente os problemas de circulação automóvel, e a necessidade de redesenhar certos espaços da cidade, como é o exemplo do quarteirão localizado entre a Praça da República e o canal, de forma a eliminar todos os edifícios aí existentes, exceptuando o edifício da Caixa Geral de Depósitos e do Banco Regional de Aveiro. Para tal sugeriu-se, (previamente determinado pelo Gabinete da Câmara) a criação de duas novas pontes sobre o canal e de dois novos edifícios, um “anexo ao Banco para a extensão deste e outro anexo à Caixa para a instalação de escritórios. A Praça da República desceria assim, em níveis sucessivos e aberta a Norte, até ao canal.”42 Para além dos pressupostos mencionados, ainda era intenção desenvolver no terreno situado a nascente, (onde actualmente existe o Fórum de Aveiro) ocupado na altura por edifícios em mau estado de conservação, a implantação de um edifício-torre, com centro comercial anexo. Respectivamente a este edifício, o arquitecto Robert Auzelle refere que “deve ser concebido como um edifício único, constituindo um sinal”43. Desde as propostas determinadas pelo Gabinete do Plano Director, até ao que foi realizado, verificou-se que, quer em tema de novas propostas para acessos rodoviários, quer na situação da requalificação da Praça da República, foram determinadas alterações consideráveis. Abordando especificamente a solução adoptada para a Praça da República, verificou-se que seria necessário repensar o que tinha sido proposto para a Praça da República, uma vez que se concluiu a necessária reposição de um edifício situado a Norte, que a fechava 39

PORTAS, Nuno, op. cit., p.181. Ibidem. 41 TÁVORA, Fernando, “O Arranjo da Zona Central de Aveiro”, Arquitectura, Nº102, Março/Abril, 1968, pp.59-63. 42 Ibidem. 43 Ibidem. 40

AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

185

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

para o canal, (opção contrária à pretendida abertura total da praça) vazado à cota da Praça, respondendo de certa forma à necessidade municipal relativa à instalação de serviços de interesse público. Prolongou-se a praça até ao canal, “quer pela sua passagem sob o Edifício Municipal, fronteiro à Câmara, quer pelo aproveitamento da cobertura do Edifício Comercial, ligada por duas escadas ao passeio situado à cota da Rua.”44 Interessa-nos não tanto descrever a proposta na sua dimensão programática, mas antes na relação das opções assumidas com a consequente reposição e salvaguarda de valores locais, ou seja, representativos da memória histórica daquela precisa área urbana de Aveiro e de toda a sua população urbana. A resposta ao programa e às condicionantes económicas considerada pelo arquitecto Fernando Távora demonstra-nos que existe uma dimensão nas suas propostas projectuais, que ultrapassa o programa funcional, a dimensão temporal e a social, necessárias a integrar através de um gesto de reposição e de continuidade com a envolvente. O edifício proposto par a Praça da República apesar de não ter sido fácil na sua projecção, pelo facto de ser um edifício de função pública com uma variedade programática e “respectivas áreas para cada serviço, [e pelo] facto de o mesmo ser vazado no seu rés-do-chão para prolongamento da Praça da República”45, constituiu-se como peça fundamental na proposta de renovação do centro histórico de Aveiro, e no entendimento do que pode ser o gesto de renovar, sem estar interligado à destruição massiva de quarteirões antigos. Primeiramente, a opção tomada para a apropriação do terreno, permitiu o desenvolvimento do edifício em quatro pisos, sendo que o primeiro estaria situado ao nível das ruas Coimbra e Gustavo Ferreira P. Bastos e, o terceiro ao nível da Praça da República. A disposição dos diferentes núcleos programáticos, resultou de uma necessidade estratégica para a cidade de Aveiro, através de uma compreensão da envolvente, permitindo compreender a disposição das funções ao longo do edifício consoante a 44 45

TÁVORA, Fernando, “O Arranjo da Zona Central de Aveiro”, op. cit., p.61. Ibidem.

AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

186

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

proximidade e capacidade de se constituir como criador de uma referência mental para a população. Reflexo disso, foi a localização da repartição do Turismo no primeiro e segundo piso do lado da Rua Coimbra, seguindo o propósito “de estar quase em contacto com o Largo Engº Frederico Ulrich - centro da cidade - o que sem dúvida facilita ao turista a localização daqueles serviços”46. Quanto à diferença de cotas do terreno, estas desenvolvem-se pela compreensão de “dois pavimentos, ligados por uma escada suave (…) delineada de modo a permitir agradáveis perspectivas sobre os paramentos laterais e vista exterior quer na subida, quer na descida. (…)

47

cujo

revestimento das suas paredes laterais (das escadas) é realizado pela aplicação de “materiais da região associados a painéis decorativos [de forma a elucidar] o visitante”48. Salientamos aqui a afirmação de um gesto contemporâneo com exaltação dos materiais locais, ao assumirem uma postura estílistica de composição e não construtiva. Outro aspecto importante a referir, na medida em que poderia ser o mais previsível mediante a envolvente histórica, corresponde à opção do tipo de cobertura para o edifício, aqui segundo a forma de “terraço que sem dúvida oferece um funcionamento de modo a permitir que esta zona sirva de prolongamento às zonas turística e cultural (…) assim, os turistas poderão deliciar-se perante a bela panorâmica que lhes proporciona a linda Veneza de Portugal, com os seus canais sinuosos, que mais parecem querer abraçar aquela vasta planície.”49 A opção determinada permite-nos depreender a posição de respeito dos elementos contemporâneos (terraço) perante a exaltação histórica de uma cidade, ou seja não nos referimos só ao respeito e continuidade que as obras de Fernando Távora representam relativamente a intervenções contemporâneas em ambientes consolidados, como também ao próprio uso da arquitectura contemporânea como exaltação das memórias históricas locais. Relativamente à opção estética do edifício, Fernando Távora refere que o facto da construção se localizar numa praça determinada por edifícios “em que cada um só por si 46

TÀVORA, Fernando, “Memória descritiva e Justificativa do Ante-Projecto”, Aveiro: Arquivo Municipal de Aveiro, 10 de Setembro de 1959. 47 Ibidem. 48 Ibidem. 49 Ibidem. AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

187

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

marca uma época de estilos diferentes, faz surgir imediatamente o problema difícil do enquadramento. Assim, existiu a preocupação de obter uma solução sem brigar com a existente, não descurando o interesse em conseguir um sentido plástico, que se afirma em documentos de arquitectura contemporânea.”50 Do que anteriormente mencionamos, para esta aparente dicotomia entre o que é o gesto de Renovar e a preservação da Memória Histórica dos locais, verificamos que é possível continuar inovando51 mesmo tendo em consideração um conjunto de aspectos pertencentes ao passado de uma civilização urbana. De forma a resolver o “difícil enquadramento”, a opção passou por respeitar todo um conjunto edificado envolvente, como cérceas e até ritmos de vãos, aplicado segundo princípios contemporâneos, não esquecendo que, como diz o próprio Távora, “o passado (…) vale muito, porém é necessário observá-lo, não em si mesmo, mas em função de nós próprios (…) para acrescentar ao passado algo de presente e algumas possibilidades do futuro”52. Ao analisarmos o edifício e todo o arranjo exterior envolvente verificamos a opção contemporânea reflectida, na composição e tratamento das fachadas, no desenho de pormenor, e na opção do desenho do pavimento exterior ao edifício, da autoria do pintor Jorge Manuel Pinheiro Marques Pinto, que contrasta com os desenhos dos pavimentos das ruas históricas de Aveiro, quando se apresenta com motivos circulares de diferentes dimensões, num sinuoso movimento, que encaminha o visitante a percorrer a praça e o edifício, e se vê valorizado pela implementação de peças escultóricas da autoria da escultora Clara Menéres Semide. A integração ambiental e o prolongamento do discurso arquitectónico com as préexistências, apresenta o grande momento da obra de Fernando Távora em Aveiro, que nos faz reflectir, no presente, sobre a determinação dos aspectos que actualmente não nos permitem obter um gesto que consiga prever um qualquer cuidado, relativamente a um ambiente histórico consolidado, e que nem sempre está presente nas propostas de 50

Ibidem. Designação atribuída ao termos Renovar, no sentido de continuar inovando, pelo arquitecto Fernando Távora, aquando a realização do estudo para a zona da Ribeira-Barredo em 1969, de sua autoria. 52 ROCA, Javier (dir). Renovación, Restauración y Recuperación arquitectónica y urbana en Portugal, Granada: Universidade de Granada, 2003, p.104. 51

AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

188

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

intervenção em centros históricos das nossas cidades. O aparente conflito em ser-se contemporâneo e agir como tal, numa contínua valorização do que é memória histórica, invade uma linguagem que aparentemente resultaria de um gesto simples de continuidade projectual. O que depois do final dos anos 60 se verificou em território nacional, no que concerne às propostas e posturas de intervenção em centros históricos, representa um pouco do que ainda actualmente se realiza. O debate estava (e continua) incidido nas questões directamente ligadas ao conflituoso relacionamento entre a cidade histórica e as áreas periféricas das cidades, fazendo referência à necessária criação de planos que permitissem de forma integrada e permanente, solucionar e operar na cidade, entendendo esta enquanto unidade e não somatório de partes, sempre em constante expansão, prosseguindo a esperança de salvaguardar uma identidade histórica urbana diluindo consecutivamente as rupturas espaciais existentes, ou seja, um consequente ressalvo dos valores da cidade histórica enquanto conjunto urbano capaz de gerar uma nova cidade. Na tentativa de combater os perigos do apagamento da memória das cidades, os novos arquitectos modernos previram a necessária valorização e preservação de uma herança material, vivencial e memorial das cidades nacionais. Interessar-nos-ia referir que experiências como a do Plano de Pormenor da Zona Central de Aveiro (1964), o Estudo para a área da Ribeira-Barredo (1969), intervenção do GTL de Guimarães (1983), que mais se destacaram em território nacional, foram as três orientadas pelo arquitecto Fernando Távora, e todas elas seguiam o mesmo pressuposto, ainda que na certeza de que a opção arquitectónica varia consoante o local em que se inserem, o de considerar a arquitectura contemporânea como plataforma de valorização e afirmação do conjunto de elementos pertencentes ao passado e afirmados nas nossas cidades, num contínuo prolongamento temporal. Para tal, a opção do arquitecto não procedia a situações de congelamento de áreas urbanas, como se tornaria hábito até meados dos anos 70, pelo contrário, tornava-as activas e em constante actualização com a sociedade.

AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

189

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

A partir de 75, como refere a historiadora Françoise Choay (1925 - ) coloca-se a questão da integração dos conjuntos históricos, “na vida colectiva da nossa “época”53, com a publicação da Recomendação de Nairobi (1976) pela UNESCO, “que permanece [actualmente] como a exposição dos motivos e a defesa mais completa a favor de um tratamento não museológico dos tecidos urbanos antigos (…) sendo [este texto] o mais lúcido sobre os perigos inerentes a essa actitude”54, com a Carta de Washington (1987), respectiva à Conservação das Cidades Históricas e das Áreas Urbanas Históricas, onde se valoriza a integração das partes históricas da cidade nas políticas cerentes de desenvolviemnto económico e social, e de planeamento regional urbano a todos os níveis55, entre outras. Pela primeira vez “a conservação viva dos conjuntos antigos é apresentada como um meio de lutar não apenas pela protecção de particularismos étnicos e locais, mas também contra o processo planetário de banalização e de normalização das sociedades e do seu ambiente”56. Em grande medida interessa-nos referir que se encontrava, e eventualmente encontra-se, institucionalizado um certo modelo de intervenção em centros históricos, numa acção com o espaço edificado e a sua população, em que o protagonismo do arquitecto, enquanto criador de obra nova, é superado por uma acção preservadora das caracterísitcas físicas (ritmos, cores, aspectos construtivos do edificado, etc) do centro histórico, como postura de oposição ao descontrole da criação descaracterizada sentida nas periferias urbanas57. Porém esse modelo de intervenção não é mais designado por renovação urbana mas sim reabilitação urbana. Prevê-se que o gesto de reabilitar, compreende em si uma maior preservação da componente histórica, no sentido de reabilitação enquanto pressuposto de voltar a habilitar o edifício de algo que pode ser diferente da sua função inicial, enquanto que renovação induz a algo novo sobre o que 53

CHOAY, Françoise, A Alegoria do Património, Lisboa: Edições 70, 2008 (2000), p.238. Ibidem, 55 Cf. ICOMOS, Carta de Washington, [s.l.], 1986, em: http: //5cidade.files. wordpress.com/2008/03/carta-dewashington.pdf 56 Ibidem. 57 Cf. FURTADO, Gonçalo. MACEDO, Rosa, “Reabilitação urbana e intervenção em Centro Históricos: Alguns desafios e evolução de paradigmas em Portugal”, in Colóquio Internacional, Portugal entre Desassossegos e Desafios, Coimbra, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 17 de Fevereiro de 2011. 54

AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

190

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

existe, e é esse gesto de atribuir algo novo que entra em conflito com a dimensão histórica do edifício, conjunto urbano, conflito que o arquitecto Fernando Távora desvaneceu no tempo, quando considera o gesto de renovar no sentido de continuar inovando, num entendimento de preservação, de uma continuidade temporal e não reposição de algo distinto que invade a pré-existência. Cada vez mais, o debate contemporâneo incide envolta da reflexão sobre a dimensão “espacio-temporal”58 das operações de intervenção urbana, em prole de uma “participação alargada dos agentes sociais, enquanto motores das operações”59 de intervenção em centros históricos. Porém a relação entre espaço e tempo nas cidades contemporâneas, permite-nos compreender que à semelhança de uma sociedade global preconizada por uma rapidez do processamento e de fruição de informação, confronta a alteração de muitos princípios espaciais e organizativos dos espaços urbanos que compreendem os centro histórico. No seguimento do debate contemporâneo, determinado pela dimensão entre espaçotempo das posturas e propostas de intervenção urbana, interessa-nos fazer referência a um caso de estudo nacional, anteriormente já abordado num artigo publicado na revista Arq./a60, pelo facto de este compreender uma acção contemporânea face a um lugar histórico, numa dimensão espacial e temporal capaz de se afirmar num tempo sem recorrer a posturas de reposição descontroladas. Referimo-nos à reconstrução da zona do Chiado (1988), da autoria do arquitecto Álvaro Siza Vieira. Esta intervenção reflecte o que o arquitecto Fernando Távora continuamente referia, respectivamente ao facto de que, “qualquer reabilitação não deve limitar-se à manutenção física do edifício, terá obrigatóriamente de ser uma adaptação ao tempo, à época a que se procede essa reabilitação”61. Diríamos que a aplicação do termo renovar, também ele, neste contexto, seria apropriado uma vez que, o que se fez no Chiado foi 58

CALADO, Maria, “Os estudos históricos no contexto da reabilitação urbana”, in AAVV, Sociedade e Território, nº14/15, Dezembro, 1991, p.8. 59 RIBEIRO, Manuel, “Reabilitação Urbana: Estratégia e Organização”, in AAVV, Sociedade e Território, nº14/15, Dezembro, 1991, p. 57. 60 Cf. FURTADO, Gonçalo. MACEDO, Rosa, “Reabilitação Urbana em Portugal: Alguns desafios desde os anos 70”, in AAVV, Arq./a, Nº 92/93, Maio/Junho, 2011, pp. 102-107. 61 Cf. BASTOS, Baptista, “Reabilitar, talvez, os sonhos”, in AAVV, Arq./a, Nº92/93, Maio/Junho, 2011, pp. 125. AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

191

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

um continuar inovando num processo de transfiguração urbana, sem desconfigurar todo o sistema urbano da zona sinistrada do Chiado. Em certa medida, podemos dizer que o incêndio que esteve na base desta operação no Chiado inseriu-se e acelerou um estado de degradação que então demonstrava o espaço histórico da cidade de Lisboa. Interessa referir que a renovação do Chiado, apresenta-se idónea em nos demonstrar que é possível reinterpretar a história local remetendo-a para uma contemporaneidade e futuro, sem que esta perca identidade enquanto peça fundamental de um qualquer conjunto urbano. Como refere Nuno Portas, o que seria proposto para a Baixa, não deveria tratar-se de adaptar o seu património “às funções modernas, mas sim de procurar as funções antigas e modernas, que [fossem] compatíveis com os contentores existentes e as limitações urbanas que lhes são inerentes e que dificilmente poderão ser alteradas”62. O que o arquitecto Álvaro Siza propôs foi uma solução apoiada na conservação da atmosfera local, reconstituíndo, refazendo e reutilizando os edifícios existentes. Postura que em muito contrariou o que na precisa altura se ambicionava, a inserção de uma arquitectura moderna completamente diferente em tudo com as pré-existências. Esta posição foi encarada pelo arquitecto Siza como uma atitude que “isolaria o Chiado do centro da cidade e far-lhe-ia perder o seu papel de charneira, para o qual as suas qualidades principalmente topográficas - o destinam”63. Por isso a opção passou por actualizar o espaço de intervenção, num gesto de conservação das fachadas, utilizando materiais e técnicas modernas. Quanto à sua posição em conservar esta área sinistrada, o arquitecto afirma, “não me importo de passar por conservador, se isso significar que não tenho nenhuma ânsia por ser moderno (…) acredito que cada projecto tem uma vocação, nasce de uma necessidade interna que vai para além da vontade do arquitecto e do desenho (…) não farei uma reconstituição arqueológica, mas sim devo seguir a sua vocação [do edíficio] para evoluir”64 afirmando ainda que “estou convencido que estou

62

PORTAS, Nuno, “O Futuro da Baixa (Rescaldo de um incêndio)”, in Os tempos das formas, Guimarães:DAAUM, 2005, p.192. 63 VIEIRA, Álvaro Siza, “A reconstrução do Chiado, em Lisboa, I”, in MACHABERT, Dominique. BEAUDOUIN, Laurent, Álvaro Siza - uma questão de medida, Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2009, p.43. 64 VIEIRA, Álvaro Siza, op. cit., p.58. AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

192

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

a fazer no Chiado uma intervenção moderna”65. O desejo do arquitecto afirma-se pela vontade de conferir ao Chiado o seu papel de charneira entre os diferentes pontos da cidade, e isso passa por preservar um conjunto de elementos que lhe atribuem essa dimensão. Estes aspectos consistem numa notável inteligência e “humildade corajosa” que desde logo se verifica, pelo facto de ocorrer uma secundarização de um qualquer discurso linguístico em “benefício do discurso da cidade”66. Inteligência e humildade na coragem perante um centro histórico que, apesar do Plano Director ter definido as directrizes para qualquer acção, se notabilizou pela capacidade de resolver a transformação da herança, reinterpretando e recuperando espaços degradados numa atitude de “continuidade” urbana. Qualidades que Byrne valorizou como uma “espécie de poética da intemporalidade que resulta de privilegiar a forma edificada”67, uma poesia onde a liberdade de inovação consistiu e estabeleceu todo um distanciamento crítico relativamente à multiplicidade de discursos estilísticos existentes em redor. Em suma, tal como o caso prático anteriormente analisado em Aveiro, esta intervenção é única no seu momento, e insere-se num debate sequencial sobre o qual devemos reflectir quando apontamos o imperativo contemporâneo da renovação urbana e intervenção em centros históricos nacionais.

3. Como referido na abertura do presente texto, pretendemos ao longo das duas partes deste artigo, focar a possível existência de uma relação entre Renovação e Memória Histórica, contribuindo para essa reflexão, segundo o objectivo de contrariar um qualquer negativismo ainda presente no síndroma contemporâneo, que afasta a capacidade de unir as posturas de renovação, definidas numa sociedade instável e em constante mutação, com a necessária preservação de elementos constituintes de uma 65

Ibidem. 66 BYRNE, Gonçalo. “Pedra de Fecho de uma Arquitectura”, in CASTANHEIRA, Carlos. MENDES, Luís. Álvaro Siza. A Reconstrução do Chiado, Porto: ICEP, 1997. p.16. 67 Ibidem. AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

193

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

memória histórica, de forma a dar resposta às necessidades de habitabilidade do espaço urbano contemporâneo, correspondendo a perspectivas futuras. Para tal, estruturamos o artigo em duas partes. Uma primeira parte que aborda a origem e a evolução das propostas de renovação urbana em território nacional, numa fase inicial relacionadas com a necessidade de fazer cidade nova segundo os paradigmas do Estado Novo, recorrendo para tal, à análise de dois casos de estudo, a intervenção na Alta de Coimbra e a intervenção na zona da Sé do Porto, e numa segunda fase com a ampliação do conceito de património, do objecto singular para o conjunto edificado. Uma segunda parte que foca a evolução e mutação das propostas de renovação urbana, através da análise ao Plano de Pormenor da Zona Central de Aveiro, da autoria do arquitecto Fernando Távora, considerado inovador no panorama das intervenções urbanas da época em que se inseriu, e da análise à reconstrução da zona do Chiado, da autoria do arquitecto Álvaro Siza, considerada pelo facto de nos apresentar elementos que contribuem para a pretendida reflexão contemporânea do presente texto. A análise realizada permitiu entender que a cidade, apropriando as palavras do arquitecto Nuno Portas, “precisa cada vez mais de arquitectura”68, no sentido de uma “re-colocação da arquitectura no processo de transformação do território”69 contemporâneo. Relativamente aos casos de referência abordados, a intervenção de Fernando Távora na zona central de Aveiro e a intervenção na zona do Chiado de Álvaro Siza, podemos dizer que a sua afirmação e reconhecimento em território nacional, coincide com uma relativa oscilação comparativamente ao que até então se praticava, com capacidade de remeter o debate para a própria necessidade de reformulação legislativa do modus operandi em centros históricos assim como para a crítica à deturpação dos princípios herdados, numa reflexão que se estende na complexa indefinição do modo de injectar modernidade e determinar os critérios de renovação que deverão ser seguidos, em espaços urbanos que compreendem o centro histórico. Numa análise ao que anteriormente fora descrito, podemos acentuar que relativamente ao primeiro momento da primeira parte do artigo, havia um contexto majoritário de 68 69

PORTAS, Nuno. A cidade como arquitectura, op. cit., p.16. Ibidem.

AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

194

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

intervenções que determinavam acções de substituição urbana, dignas da imagem de uma cidade nova reflexo de um Estado Novo. Neste contexto a preservação da memória histórica das cidades apenas, se direccionava para a salvaguarda dos monumentos nacionais, e o gesto de renovação urbana estava implicitamente ligado à sobreposição de elementos novos em contextos urbanos consolidados. No segundo momento verificamos que, a reposição de novos valores em espaços históricos desenvolveu um sentimento de perda de identidade na sociedade urbana, originando uma necessária consciencialização da salvaguarda das cidades históricas, em todas as suas vertentes, constantemente dissipadas pela cidade moderna. Na segunda parte do documento, contextualizou-se um primeiro momento, inserido num contexto inicial de protecção dos centros históricos, em que aspectos como salvaguarda da autenticidade histórica, a diluição de rupturas espaciais e a oposição a práticas urbanas de sobreposição do “novo” ao “antigo”, ainda eram de alguma forma pouco implementadas. Verificou-se uma necessária mutação nas propostas de intervenção urbana, presente na proposta de Fernando Távora para a zona central de Aveiro, onde pela primeira vez, o conceito de renovação urbana era entendido como um gesto de continuar inovando, com respeito e reintegração no ambiente consolidado em que se inseria. Num segundo momento verificou-se, através da análise à intervenção na zona do Chiado de Álvaro Siza, que a renovação do espaço urbano consolidado da Baixa de Lisboa, actuava numa continuidade com a pré-existência, onde a presença de um gesto moderno não estava implicitamente ligado à substituição do que existia por algo de linguagem distinta. Dos dois momentos analisados salienta-se, que é através da compreensão da dimensão tempo(s), que estão incluídos princípios relacionados com a defesa, ou não, de um espaço histórico solidificado e de relacionamentos temporais com o passado. A cidade histórica, a qual deve ser compreendida como parte integrante de um sistema urbano, enquanto contentor de memórias da sociedade urbana, permite que a observemos não de forma isolada mas sim, de forma contínua com a restante malha urbana, onde a nosso entender, não deverá existir distinção competitiva entre as partes que constituem a cidade, mas sim um apoio contínuo. AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

195

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

Após a análise operada, interessa-nos salientar que, pela incapacidade de se compreender a cidade como unidade e o centro histórico enquanto estrutura dessa mesma unidade, continuará a persistir no tempo, a aparente dicotomia entre o que é o gesto de renovar a cidade histórica e as consequências que este mesmo gesto transporta para a memória histórica do local. Actualmente, há ainda uma ausência de zoom estratégico, sendo necessário que no geral, e não só em casos notáveis se dê a passagem da escala do quarteirão/objecto para a de cidade, fomentando uma compreensão global de um sistema urbano composto por âncoras territoriais, que se complementam e desenvolvem. É necessária a criação de verdadeiras estratégias urbanas de cidade, para que o centro histórico sobreviva na contemporaneidade. Relativamente aos objectos edificados, perante a dualidade respeito/reposição ou demolição/nova construção, a intervenção deve sustentar-se igualmente numa visão global, considerando aspectos como a escala de intervenção, e a eventual reposição ou reinterpretação da própria função do edifício, e esse mesmo gesto além de renovar, no sentido de melhorar, regenerar, conseguirá fazer-se parte integrante de um sistema de interrelações constituído no domínio da cidade. Em suma, o resultado será um gesto que compreenda a reposição de valores, não apenas pertencentes a um passado, mas a uma contemporaneidade e futuro, e que esse gesto possa estar inserido em posturas de renovação urbana, uma vez que anteriormente foi possível observar, em soluções como o Arranjo da Zona Central de Aveiro, do arquitecto Fernando Távora, e a intervenção na zona do Chiado, do arquitecto Álvaro Siza, que para renovar um ambiente urbano consolidado, e dizemos ainda, uma memória histórica local, não é necessário sobrepor novos elementos só porque nos inserimos numa dimensão temporal diferente da pré-existência, mas antes deve-se compreender a continuidade que esse mesmo gesto contemporâneo pode ter com o ambiente urbano existente, desde que se continue a inovar e que não se trave o processo natural da evolução das coisas, porque à semelhança dos elementos da natureza, também a cidade prossegue os ciclos normais de crescimento e desenvolvimento. Interessa também não esquecer, que cada vez mais se projecta segundo uma condição global, para uma população flutuante que acentua a necessidade de debate com o AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

196

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

repensar dos mecanismos, modelos interventivos, estratégias, dinâmicas, políticas, decretos de lei, determinados para cidades do país. Neste sentido será também importante levar o zoom de reflexão a território nacional, analisando o potencial de relação entre cidades, centro e periferia, assim como a própria condição das cidades de diferentes dimensões, actualmente abandonadas a uma mera lógica de competição urbana. O necessário renascimento da nossa urbanidade e qualidade de vida global futura depende da capacidade que tivermos em permitir a continuidade deste debate ao longo das próximas décadas.

AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

197

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

BIBLIOGRAFIA AAVV, A Ponte e a Avenida. Contradições Urbanísticas no Centro Histórico do Porto, Porto: Artes e Edições, 2001. ALMEIDA, Raul, “A cidade é sempre antiga”, in AAVV, Arquitectura e Vida, Nº11, Dezembro, 2000, pp.16-18. BASTOS, Baptista, “Reabilitar, talvez, os sonhos”, in AAVV, Arq./a, Nº92/93, Maio/Junho, 2011, p.125. BYRNE, Gonçalo. “Pedra de Fecho de uma Arquitectura”, in CASTANHEIRA, Carlos. MENDES, Luís, Álvaro Siza. A Reconstrução do Chiado, Porto: ICEP, 1997. CALADO, Maria, “Os estudos históricos no contexto da reabilitação urbana”, in AAVV, Sociedade e Território, Nº14/15, Dezembro, 1991, pp.8-15. CHOAY, Françoise, A Alegoria do Património, Lisboa: Edições 70, 2008 (2000). FERNANDEZ, Sérgio, Percurso: Arquitectura Portuguesa, 1930-1974, Porto: FAUP, 1988. FURTADO, Gonçalo. MACEDO, Rosa, “Reabilitação urbana e intervenção em Centro Históricos: Alguns desafios e evolução de paradigmas em Portugal”, in Colóquio Internacional, Portugal entre Desassossegos e Desafios, Coimbra, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 17 de Fevereiro de 2011. GESTA, Alexandra. “Política e Cidadania”, in AAVV. Arquitectura e Vida, Nº70, 2006, pp.30-37. GRANDE, Nuno, O Verdadeiro Mapa do Universo, Coimbra: Edarq, 2002. ICOMOS,

Carta

de

Washington,

[s.l.],

1986.

Acesso

em:

http:

//5cidade.files.

wordpress.com/2008/03/carta-de-washington.pdf. LEAL, João, Arquitectos, Engenheiros, Antropólogos: Estudos sobre Arquitectura Popular no Século XX Português, Porto: Fundação Marques da Silva, 2008. MUMFORD, Eric, The CIAM discourse on Urbanism, 1928-1960, Cambridge, Mass.: The MIT Press, 2002. PORTAS, Nuno. (coord. Manuel Mendes) Arquitectura(s). História e Crítica, Ensino e Profissão, Porto:FAUP, 2005. PORTAS, Nuno, A cidade como arquitectura, 3ªedição, Lisboa: Livros Horizonte, 2007 (1969). PORTAS, Nuno, “O Futuro da Baixa (Rescaldo de um incêndio)”, in PORTAS, Nuno, Os tempos das formas, Guimarães: DAAUM, 2005. RIBEIRO, Manuel. “Reabilitação urbana: estratégia e organização”, in AAVV, Sociedade e Território, Nº14/15, Dezembro, 1991. ROCA, Javier (dir). Renovación, Restauración y Recuperación arquitectónica y urbana en Portugal, Granada: Universidade de Granada, 2003.

AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

198

RENOVAÇÃO URBANA, MEMÓRIA E TEMÁTIZAÇÃO

ROSMANINHO, Nuno, O princípio de uma revolução urbanística no Estado Novo, Coimbra: Minerva, 1996. ROSSI, Aldo, A Arquitectura da cidade, Lisboa: Cosmos, 2001. TÀVORA, Fernando, “Memória descritiva e Justificativa do Ante-Projecto”, Aveiro: Arquivo Municipal de Aveiro, 10 de Setembro de 1959. TÁVORA, Fernando, O Problema da Casa Portuguesa, Lisboa: Cadernos de Arquitectura, 1947 (1945). TÁVORA, Fernando, “O Arranjo da Zona Central de Aveiro”, in AAVV, Arquitectura, Nº102, Março/Abril, 1968, pp.59-63. TÁVORA, Fernando, “O Estudo Prévio do Arranjo Urbanístico e Arquitectónico da Zona Central de Aveiro”, in AUZELLE, Robert, Plano Director da cidade de Aveiro, Aveiro: Câmara Municipal de Aveiro, 1964. TOMÉ, Miguel. Património e restauro em Portugal (1920-1995), Porto: FAUP, 2002. TOSTÕES, Ana. “Arquitectura Portuguesa do Século XX”, in PEREIRA, Paulo (dir.), História da Arte Portuguesa, Vol. 3, Lisboa: Círculo de Leitores, 1995. TOSTÕES, Ana, Os Verdes Anos na Arquitectura Portuguesa dos Anos 50, Porto: FAUP, 1997. VIEIRA, Álvaro Siza, “A reconstrução do Chiado, em Lisboa, I”, in MACHABERT, Dominique. BEAUDOUIN, Laurent, (CABRITA, Vera, tradução), Álvaro Siza - uma questão de medida, Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2009.

AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 5, nov 2013

199

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.