Contribuição à definição do conceito norma jurídica

July 3, 2017 | Autor: H. de Oliveira Sa... | Categoria: Legal Theory
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CONTRIBUIÇÃO À DEFINIÇÃO DO CONCEITO DE NORMA JURÍDICA CONTRIBUTION TO DEFINITION OF LEGAL NORM CONCEPT Hermano de Oliveira Santos1 Resumo: este trabalho procura caracterizar analiticamente o conceito de norma jurídica, abordandoo como um dos problemas centrais da Teoria do Direito, definindo-o a partir de diferentes classificações doutrinárias, compreendendo-o como um problema hermenêutico por excelência, e incorporando-o à categoria mais abrangente de ordenamento jurídico. Trata-se, pois, de uma tentativa de contribuir para uma maior precisão do conceito, abordado algo diferentemente pelas distintas e por vezes conflitantes teorias da norma jurídica. Durante a pesquisa, observou-se que essa relativa imprecisão conceitual procede mais de opções terminológicas do que da natureza mesma do objeto de estudo, o que, de qualquer modo, gera consequências didáticas negativas, a ensejar o esforço teórico pela depuração do conceito. Palavras-chave: norma jurídica; ordenamento jurídico. Abstract: this work aims to analytically characterize the legal norm concept, addressing it as one of the central problems of legal theory, defining it from different doctrinal classifications, including it as a substantial hermeneutical problem, and incorporating it into the broader category of legal order. It is, therefore, an attempt to contribute to greater precision of the concept, something approached differently by different and sometimes conflicting theories of the legal norm. During the research, it was observed that this relative conceptual vagueness of terminology carries more options than the similar nature of the object of study, which, at all, generates negative didatical consequences, the theoretical effort to impose the clearance concept. Keywords: legal norm; legal order. Sumário: Introdução. 1. Um conceito-problema. 2. A classificação como definição. 3. Conhecimento pela interpretação. 4. A ideia de ordenamento jurídico. Referências Bibliográficas. Introdução

Que são as normas jurídicas? É possível estabelecer um e somente um conceito para compreendê-las ontologicamente? Em caso afirmativo, quais seriam os aspectos da definição desse conceito? Tais aspectos poderiam ser reunidos coerentemente em categorias? Para que serve uma classificação das normas jurídicas? Dadas suas características linguístico-textuais e finalidade normativo-coercitiva, qual o objeto e objetivo da interpretação e aplicação das normas jurídicas? Objeto seria o texto normativo, a conduta nele descrita ou a consequência jurídica à ocorrência dessa conduta? E seu objetivo, ou objetivos, qual ou quais seriam? Ademais, que são as normas jurídicas consideradas em conjunto, tal como produzidas por um dado Estado de Direito? Haveria organicidade e sistematicidade nesse universo ôntico? Em que medida o ordenamento jurídico contribui para a definição do conceito em questão?

Essas e tantas outras perguntas possíveis dão apenas um panorama geral do problema que é, para a Teoria do Direito, a definição do conceito de norma jurídica. Partindo da premissa de que todo conceito é uma condensação de significado(s), e que não raro o que se alberga sob o(s) mesmo(s) significante(s) não logra constituir um signo comum, como parece ser o caso em questão, este trabalho se propõe esclarecer o que vem a ser o conceito de norma jurídica, ao menos em suas linhas gerais, e para fins notadamente didáticos. Não se trata de uma empreitada na área da Filosofia do Direito, pois não se pretende questionar os pressupostos gnosiológicos e axiológicos das normas jurídicas. Trata-se de um aprofundamento de estudo de cunho analítico-descritivo, na área da Teoria do Direito, compreendida aqui como disciplina na qual se estabelecem as categorias gerais, de forma abstrata, do discurso jurídico stricto sensu. Talvez seja desnecessário, mas não demasiado, dizer que, considerando a arbitrariedade do recorte epistemológico deste trabalho, natural a opção de adotar o positivismo analítico de Norberto Bobbio como marco teórico. Com efeito, suas teorias da norma jurídica e do ordenamento jurídico oferecem bases suficientemente seguras para o esforço teorético empreendido a seguir, considerados os limites e o propósito já apresentados.

1. Um conceito-problema

As normas jurídicas são dados importantes do fenômeno jurídico, razão pela qual a definição do seu conceito é fundamental para todo estudo de Ciência do Direito. Despiciendo dizer que elas não são todo o fenômeno jurídico, de modo que não convém sejam o único e exclusivo objeto de estudo da Ciência do Direito2. Inicialmente, faz-se necessário adotar um ponto de vista, como modo de abordagem. Desde já, pois, adota-se o ponto de vista formal, nos termos propostos por Bobbio, que considera “a norma jurídica independentemente do seu conteúdo, ou seja, na sua estrutura” 3 (BOBBIO, 2003, 69). Cumpre lembrar que essa foi a perspectiva inicial de Bobbio, posteriormente complementada, também por ele mesmo, pela noção de função, o que implica considerações sobre o conteúdo da norma jurídica4. Nada obstante, dados os seus limites e propósito, este trabalho limita-se, como já se disse, a uma análise formal-estrutural, deixando em suspenso uma possível análise materialfuncional, deveras mais abrangente do que a empreendida aqui. A partir desse ponto de vista, tem-se que “as normas jurídicas pertencem à categoria geral das proposições prescritivas” (BOBBIO, 2003, 72). Para que se compreenda perfeitamente essa afirmação, é necessário demonstrar o que se entende por proposição, suas formas, funções, usos e características5.

Uma proposição é um conjunto de palavras com unidade semântica, expressas numa dada forma linguística, que se chama enunciado. Um tipo comum de proposição, que remonta à Lógica clássica, é o juízo de realidade, cujo enunciado é composto de sujeito e predicado (A é pai de B / B é filho de A). Conhecem-se vários tipos de proposição e enunciado, assim como se sabe que uma mesma proposição pode ter enunciados diferentes (por exemplo: dizer “C quer a D” é o mesmo que dizer “D é querido por C”), e um mesmo enunciado pode representar proposições diferentes (por exemplo: considerando que E é um cliente, e F é um atendente, se E diz para F “Passe-me X”, então se trata de uma relação comercial; diferentemente, considerando que G aponta uma arma de fogo para H, se G diz para H “Passe-me X”, não se trata de uma relação comercial, mas de um roubo). Em termos linguísticos, uma proposição pode ter a forma declarativa, interrogativa, imperativa ou exclamativa, o que normalmente depende de sua função, isto é, do que se quer dizer, se afirmar, perguntar, comandar ou exclamar: “Eu tenho 1,88m de altura”; “Vamos dançar?”; “Hoje cozinhe ensopado de carneiro”; “Que dia bonito!”. Essa relação de dependência entre a forma e a função de uma proposição não é rígida: por exemplo, uma proposição declarativa pode ser usada para comandar, como ocorre quando uma dona-de-casa, ao dirigir-se à empregada doméstica declarando “Aqui em casa lavamos e passamos a roupa uma vez por semana”, expressa o comando “Lave e passe a roupa uma vez por semana”. Desse modo, os usos de uma proposição são descrever, expressar (interrogar ou exclamar) e prescrever, o que corresponde às funções descritiva, expressiva e prescritiva da linguagem. Voltando-se à ideia de que as normas jurídicas são proposições prescritivas, deve-se lembrar que elas se valem da linguagem prescritiva, não obstante fazerem uso das linguagens descritiva e expressiva, isso porque “A linguagem prescritiva é a que tem maiores pretensões, porque tende a modificar o comportamento alheio: nada estranho que se faça valer das outras duas para exercitar a sua própria função” (BOBBIO, 2003, 79). Além de se valerem da função prescritiva da linguagem, as proposições prescritivas apresentam outras duas importantes características: o comportamento do destinatário e o critério de valoração. Quanto ao comportamento do destinatário, Bobbio diz que “a prova da aceitação de uma prescrição é a execução” (BOBBIO, 2003, 81). Por “critério de valoração”, quer-se dizer que as proposições prescritivas são valoradas, não de modo empírico, em termos de verdade ou falsidade, mas de acordo “com os valores últimos (critério de justificação material) ou a derivação das fontes primárias de produção normativa [prescritiva] (critério de justificação formal)”, no sentido de justo ou injusto, oportuno ou inoportuno, conveniente ou inconveniente, válido ou inválido (Idem, 8182).

Apesar de seus inegáveis méritos, esse modo de abordagem não é à prova de testes. Demonstrar que as normas jurídicas são proposições prescritivas não é definição suficiente, dado que essa também é uma característica das outras normas éticas, as normas morais e as normas sociais ou de etiqueta. Aqui surge o problema de distingui-las, sob pena de não se encontrar um conceito satisfatório para nenhuma delas. Bobbio apresenta uma lista de critérios distintivos, para além do “critério puramente formal”, admitindo todavia não “ter indicado todos os critérios adotados para demarcar as normas jurídicas” (BOBBIO, 2003, 152). Mas um deles merece sua atenção especial, “sem a compreensão do qual o nosso horizonte seria incompleto. Trata-se do critério que se refere ao momento da resposta à violação, e que, portanto, acarreta a noção de sanção” (Idem, ibidem). Admitindo-se que as normas jurídicas são proposições prescritivas, é importante averiguar se há consequências, e quais seriam elas, no caso de violação das prescrições. Por violação entende-se a não-adequação da conduta real à conduta prescrita, se o que é não corresponde ao que deve ser conforme à norma6. À violação dá-se o nome de ilícito. O ilícito consiste em uma ação quando a norma é um imperativo negativo e em uma omissão quando a norma é um imperativo positivo. No primeiro caso, afirma-se que a norma não foi observada; no segundo, que não foi executada (BOBBIO, 2003, 152).

Se uma norma jurídica não é observada, ou não é executada, então essa mesma norma, ou o conjunto de normas por ela7, orienta-se no sentido de modificar a ação e salvar a norma (...), agindo sobre a ação não-conforme, e, assim, procurando fazer com que a ação não ocorra ou, pelo menos, tentando neutralizar as suas consequências (BOBBIO, 2003, 153).

Como conjunto de normas que é, o ordenamento jurídico externaliza e institucionaliza uma sanção à violação de uma norma considerada individualmente. A sanção externa e institucionalizada é, portanto, um traço distintivo das normas jurídicas. Diz-se externa porque é uma resposta dada pelo grupo social como um todo, e não pela consciência de alguém em particular, e institucionalizada porque emana de uma instituição social organizada, a mesma de que emana a norma violada. Por instituição social organizada entenda-se o Estado, pois as normas jurídicas “por excelência são as estatais, que se distinguem de todas as outras normas reguladoras da nossa vida porque têm o máximo de eficácia” (BOBBIO, 2003, 161). É o que Hans Kelsen chama de “coercibilidade”, que é um “elemento essencial do Direito”, e característica imanente do ordenamento jurídico (KELSEN, 2005, 62). Desse modo, vê-se que a coesão desse sistema normativo depende da natureza das normas que o compõem, visto que nele uma norma garante a observância ou execução de outra norma. É por essa razão que se diz que o ordenamento jurídico como um todo prescreve sanções à violação de uma norma jurídica considerada individualmente.

Nesse sentido, em última análise, pode-se dizer que o Estado é, a um só tempo, emissor e guardião das normas e do ordenamento jurídico: o Estado não apenas emite a sua vontade 8, mas também garante (coercitivamente, diga-se de passagem) que essa vontade seja obedecida, e o faz por intermédio de normas jurídicas. Outro modo de abordagem do problema, suplementar ao que se vem analisando, é apresentado por Tércio Sampaio Ferraz Jr. Trata-se da visão da norma jurídica “como comunicação, isto é, troca de mensagens entre seres humanos, modo de comunicar que permite a determinação entre os comunicadores: subordinação, coordenação” (FERRAZ JR., 2003, 101). Esse modo de abordar o problema, além de proporcionar uma definição para o conceito de norma jurídica, descortina uma série de outros problemas; um deles, em especial, será analisado neste trabalho, qual seja, o problema da “determinação dos sujeitos normativos (teoria dos direitos subjetivos, capacidade, competência, responsabilidade)” (Idem, ibidem). Por ora, é importante definir de que modo as normas jurídicas permitem a “determinação entre os comunicadores”, quando se trata de subordinação, quando se trata de coordenação etc. (Idem, ibidem). Como diz Ferraz Jr., pode-se conjecturar “que a comunicação humana ocorra em dois níveis: o nível cometimento e o nível relato” (FERRAZ JR, 2003, 102). Quando o homem expressa uma mensagem, esta é recepcionada tanto pelo que é (seu conteúdo) quanto pelo como é (a maneira como esse conteúdo é expresso): dá-se o nome de relato ao conteúdo da mensagem, entendendo-o como a “mensagem que emanamos”; e de cometimento à maneira como o expressamos, correspondendo à “mensagem que emana de nós”, “pelo tom da voz, pela expressão facial, pelo modo como estamos vestidos etc.” (Idem, ibidem). Ferraz Jr. ainda apresenta as características da troca de mensagens: expectativa, seletividade e contingência (FERRAZ JR., 2003, 102 e 103). Em toda troca de mensagens, há uma “expectativa mútua de comportamento”; dada a complexidade das situações comportamentais, há “uma compulsão para selecionar expectativas e possibilidades atualizáveis de interação”; e como sempre é possível que o conteúdo selecionado na mensagem não se atualize, isto é, como sempre há a possibilidade de desilusão do relato, tem-se que “a interação humana é sempre contingente” (Idem, ibidem). De um modo bastante simplificado, pode-se dizer que, no caso das normas jurídicas, no caso das “atitudes normativas”, “admitem-se as desilusões como um fato, mas estas são consideradas como irrelevantes para a expectativa generalizada”, isso porque o cometimento da mensagem normativa é reforçado (FERRAZ JR., 2003, 104). Nesse passo, cabe analisar por que se diz que o cometimento da mensagem normativa é reforçado, ao que se responde: porque a mensagem normativa é baseada na diferença entre os comunicadores, de um modo complementar, numa “relação autoridade/sujeito”, pois enquanto “um

manda, outro obedece; um recomenda, outro acata; um coordena, outro se enquadra etc.” (FERRAZ JR., 2003, 107). De posse desse aparato teórico apresentado por Ferraz Jr., pode-se entender melhor por que se diz que as normas jurídicas são proposições prescritivas, ou seja, pode-se entender melhor o caráter prescritivo das normas jurídicas. Diz-se que as normas jurídicas são proposições prescritivas porque a mensagem normativa, comparada a outros tipos de mensagem, é um relato com cometimento reforçado, com o qual o emissor impõe a sua vontade ao receptor, valendo-se de uma relação na qual uma autoridade submete um sujeito (FERRAZ JR., 2003, 107-109). Resta saber, então, o que faz dessa autoridade, autoridade. Para tanto, toma-se “como critério as reações e contra-reações possíveis entre emissores e receptores de uma comunicação” (FERRAZ JR., 2003, 107). Com “reação [à mensagem]” diz-se que “a relação ou é confirmada, ou é rejeitada, ou é desconfirmada”: por confirmação entende-se “uma reação de reconhecimento da relação”, quando o receptor entende, aceita e respeita a mensagem, comportando-se conforme a ela; por rejeição, “uma reação de negação da relação”, quando o receptor entende, mas não aceita plenamente, porque de alguma maneira desrespeita a mensagem, nem sempre se comportando conforme a ela; e por desconfirmação, “uma reação de desconhecimento da relação”, quando o receptor entende, não aceita, e por esse motivo não respeita a mensagem, nunca se comportando conforme a ela (Idem, 107). Ora, a relação de autoridade é aquela em que o emissor aceita a confirmação, rejeita a rejeição, isto é, reconhece-a para negá-la, e desconfirma a desconfirmação, isto é, não a reconhece como tal, mas a toma como mera negação. Ou seja, a relação de autoridade admite uma rejeição, mas não suporta uma desconfirmação. A autoridade rejeitada ainda é autoridade, sente-se como autoridade, pois a reação de rejeição, para negar, antes reconhece (só se nega o que antes se reconheceu). Contudo, a desconfirmação elimina a autoridade: uma autoridade ignorada não é mais autoridade (Idem, 107).

É desse modo que a mensagem normativa, como contra-reação a uma recepção desconfirmadora, e para reforçar seu cometimento, “instaura uma relação de autoridade, exigindo, pois, a desconfirmação da desconfirmação” (FERRAZ JR., 2003, 107). As partes dessa relação são o emissor e o receptor; mas não se trata de uma relação entre iguais, pois assim o conflito entre as partes, mais que a desconfirmação da mensagem, seria inevitável; é necessário um vetor vertical descendente; para que isso ocorra, como diz Ferraz Jr., é preciso que o emissor, em face do receptor, sinta-se respaldado pela confirmação de terceiros, isto é, dos outros, daqueles que não participam da relação. A confirmação de terceiros não precisa ser ostensiva, não precisa o emissor de sua manifestação concreta, bastando-lhe supô-la. A suposição bem-sucedida da confirmação de terceiros (podemos falar em consenso social) significa que a autoridade está institucionalizada. A institucionalização do emissor da norma em seu mais alto grau numa sociedade dada nos permite dizer que estamos diante de uma norma jurídica. Que uma institucionalização ocorre em seu mais alto grau significa que o presumido consenso social prevalece sobre qualquer outro consenso real ou suposto (Idem, 107 e 108).

Eis novamente a ideia de institucionalização ligada ao conceito de norma jurídica, porém não como característica da sanção, e que se lhe atribua num momento conceitual, e sim como característica da mensagem normativa, de base empírica, com teor sociológico. A diferença apontada representa um ganho real na definição do problema de que ora se ocupa: com efeito, já não é preciso dizer que o caráter prescritivo das normas jurídicas depende da previsão de uma sanção para o caso de ser violada, isto é, de um apêndice conceitual; pode-se afirmar com segurança que tal característica lhe é inerente, e tem a ver com a natureza de sua linguagem, a saber, o ser uma mensagem que disciplina uma conduta. A propósito, cite-se a seguinte conclusão a que chega Ferraz Jr.: Ora, o que vai dar caráter jurídico à norma é a institucionalização dessa relação de autoridade. O cometimento jurídico constrói-se por referência básica das relações entre as partes a um terceiro comunicador (...). Modernamente, a institucionalização de normas, isto é, a configuração do caráter jurídico de sua relação de autoridade, depende da inserção delas em grandes sistemas disciplinares, em termos desta poderosa instituição chamada de Estado (FERRAZ JR., 2003, 108 e 109).

Conhecidos os sujeitos da mensagem normativa jurídica, é importante ainda discorrer sobre como essa mensagem é expressa, para afinal conceituar as normas jurídicas com base em seus elementos estruturais. Viu-se que o cometimento da mensagem normativa é “uma relação metacomplementar ou institucionalizada entre autoridade e sujeito” (FERRAZ JR., 2003, 115). A forma linguística mais comum de se expressar essa mensagem é a verbal, como é o caso da mensagem normativa jurídica: as normas jurídicas são emitidas pelo Estado, na qualidade de autoridade da relação, por intermédio de textos escritos, os textos normativos 9; nesses textos, o relato é expresso “por descrições de ações, de suas condições e suas consequências”, enquanto o cometimento “expressase verbalmente por meio de operadores linguísticos” (Idem, ibidem). No tocante ao relato, quanto à descrição da ação, entende-se por ação “a interferência negativa ou positiva do homem no curso da natureza”, isto é, a omissão ou o ato; a descrição da ação é sempre condicionada a um “estado de coisas”, anterior à ação, ou seja, a descrição da ação é posterior à descrição de sua condição, que é feita explícita ou implicitamente; há, ainda, a descrição das consequências da ação, na qual se enquadra a ideia de sanção (Idem, ibidem). Já no que se refere ao cometimento, entendem-se por operadores linguísticos expressões como “é proibido”, “é permitido”, “é facultado”, “é obrigatório” e que tais, ou a previsão de uma sanção para uma ação violadora, previsão esta que expressa implicitamente uma proibição etc. (Idem, ibidem). Um exemplo para ilustrar o que foi dito: no relato “Matar alguém: Pena – reclusão, de 6 a 20 anos”10, descreve-se uma ação-ato (“Matar”), que pressupõe uma condição (“alguém” estar vivo), e à qual se imputa uma consequência (a proibição da ação descrita), cuja garantia é uma sanção (reclusão entre seis e 20 anos); depreende-se desse

relato um cometimento normativo, pelo qual se proíbe implicitamente a ação que viole definitivamente a vida humana, ação esta que enseja a aplicação de uma sanção prevista. Afinal, é o momento de apontar, resumidamente, os elementos estruturais das normas jurídicas. Segundo Ferraz Jr., “Do ponto de vista zetético, falamos em cometimento e relato, que corresponderiam, respectivamente, ao caráter vinculante e à hipótese normativa mais a consequência jurídica” (FERRAZ JR., 2003, 117). Por caráter vinculante entende-se o caráter impositivo das normas jurídicas, entende-se que uma norma jurídica é um “imperativo despisicologizado”, que leva em conta não “uma pessoa, mas um papel social”, sendo assim “um critério para a conduta humana, para qualificar agentes sociais (agente capaz, incapaz), para estabelecer condições de atos e omissões, para interpretar o sentido de outras normas etc.” (Idem, ibidem). Com os outros dois elementos, hipótese normativa e consequência jurídica, que são inseparáveis, refere-se à “situação de fato (um comportamento, uma ocorrência natural, uma qualidade) que vem prevista na norma e à qual se imputa uma consequência, um efeito jurídico” (Idem, ibidem). Aqui cabem algumas considerações acerca desses outros dois elementos estruturais citados. Primeiro, para mencionar que, na “terminologia dogmática”, hipótese normativa é o mesmo que “tipo legal”, “hipótese de incidência”, “fato gerador”, “Tatbestand”, “fattispecie” e “facti species”; todas essas expressões designam os chamados fatos e atos jurídicos, entendendo-se por fatos jurídicos “estados das coisas que entram para o mundo jurídico sem interferência da vontade humana (...): por exemplo, a idade de alguém, um terremoto, uma relação de parentesco”, e por atos jurídicos a “interferência [humana] voluntária no curso da natureza, conforme ou em desconformidade com o que diz a lei, aí incluída a interferência positiva (ato propriamente dito) ou negativa (a omissão)”, daí as expressões atos lícitos, para os atos conforme, e atos ilícitos, para os atos em desconformidade (FERRAZ JR., 2003, 118 e 119). Em segundo lugar, é importante considerar o que se chamou de consequência jurídica. Quando se fala em consequência ou efeito jurídico, logo se pensa na ideia de sanção. No entanto, como afirma Ferraz Jr., “a dogmática analítica contemporânea tende a excluir a sanção como elemento necessário da estrutura da norma” (FERRAZ JR., 2003, 121). É que existem normas jurídicas que não necessariamente têm como consequência uma sanção: é o caso das normas que prevêem como consequência ou efeito jurídico apenas, por exemplo, a instituição ou o reconhecimento de um direito subjetivo ou de um dever jurídico. O título deste item, a norma jurídica como um conceito-problema, pretende afirmar que esse conceito é ele mesmo um problema teórico. Não apenas o que se entende como norma jurídica é um problema, e por essa razão objeto de estudo da Ciência do Direito; o próprio conceito de norma jurídica é controverso, o que fica evidente quando se observa que toda definição desse

conceito tenta distinguir seu objeto de objetos similares, mas ao final só demonstra traços distintivos, sem alcançar um conceito pleno e irrefutável, sempre admitindo novas demonstrações e testes. Com os itens a seguir, tentar-se-á demonstrar que a definição do conceito pode ser depurada com a classificação dos vários tipos de normas jurídicas, com a necessária desvinculação entre os conceitos norma jurídica e texto normativo, e com o aporte da ideia de ordenamento das normas jurídicas.

2. A classificação como definição

No item 1, constatou-se que não é fácil definir o conceito de norma jurídica. Isso porque, como diz Ferraz Jr., só de uma forma muito genérica e imprecisa pode-se falar de uma definição. Na verdade, a doutrina possui alguns elementos que são destacados entre os muitos que aparecem, para permitir uma razoável identificação das normas como jurídicas. Por sua multiplicidade, obtemos, na realidade, uma enumeração de variados exemplos de proposições prescritivas reconhecidas como normas jurídicas (FERRAZ JR., 2003, 123).

De antemão, pois, já se sabe que não há um critério único e exclusivo para definir o que sejam normas jurídicas. Não é por outra razão que Ferraz Jr. afirma que “mais importante até do que a conceituação são as diversas classificações de tipos de normas” (FERRAZ JR., 2003, 123). Ocorre, porém, que não há um sistema classificatório no sentido lógico da expressão. Na verdade, os critérios são diversos e tópicos, surgindo em face das necessidades práticas, objetivando antes resolver problemas referentes à identificação de normas como jurídicas, dada sua imprecisão conceitual. (Idem, ibidem)

Ainda assim, pode-se afirmar que a classificação representa um avanço na definição do conceito. Embora tal classificação não atenda a uma sistematicidade lógica, admitir esta ou aquela proposição prescritiva como norma jurídica aparentemente demonstra a existência de uma identidade ontológica11. Se é possível agrupar uma dada proposição prescritiva junto a normas jurídicas, é porque elas apresentam as mesmas características, numa espécie de identificação conceitual. Há de se ter em vista, no entanto, que A necessidade vai obrigando, em situações complexas, a perceberem-se novas prescrições também como jurídicas, para efeitos decisórios, e como essas prescrições trazem novas características, a doutrina, para dominá-las teoricamente, abre classificações, sem contudo preocupar-se em reduzi-las (ou sem poder reduzi-las) a um sistema (FERRAZ JR., 2003, 123).

Diante da diversidade de critérios de classificação, e porque este trabalho não trata de uma disciplina jurídica em particular, limita-se a analisar dois critérios gerais12. O primeiro deles é apresentado por Bobbio, que afirma que, no domínio “de uma teoria geral do Direito, nos interessa, e logo nos importa, examinar apenas um critério, o formal”

(BOBBIO, 2003, 178). Por critério formal, entende-se “o que se relaciona exclusivamente à estrutura lógica das proposições prescritivas” (Idem, ibidem). O segundo é o apresentado por Ferraz Jr., para quem o critério semiótico “pode, senão sistematizar todos, pelo menos fornecer uma visão abrangente e compreensiva dos diferentes critérios tópicos” (FERRAZ JR., 2003, 123). Entende-se por critério semiótico o que engloba as noções de “relação sintática, semântica e pragmática” (Idem, ibidem). No tocante ao critério formal, apresentado por Bobbio, uma primeira classificação13, inicialmente de caráter subjetivo, distingue as proposições prescritivas em universais, “em que o sujeito representa uma classe composta por vários membros”, e singulares, “em que o sujeito representa um sujeito singular” (BOBBIO, 2003, 178). Para uma melhor compreensão dessa classificação, assevera ele, é necessário especificar dois elementos, “constitutivos e portanto imprescindíveis”, um deles de caráter subjetivo e outro de caráter objetivo (Idem, ibidem). Toda proposição prescritiva, e assim, toda norma jurídica, é dirigida a um sujeito, chamado destinatário, e apresenta um objeto, ou ação prescrita, de tal forma “que o primeiro passo para interpretar uma norma jurídica seria o de perceber a quem ela se dirige e qual comportamento estabelece”, o que leva à conclusão de que tanto o destinatário quanto a ação prescrita podem ser universais ou singulares, obtendo-se então quatro categorias de normas jurídicas: “com destinatário universal”, “com destinatário singular”, “com ação universal”, “com ação singular” 14 (Idem, 179). Uma segunda especificação reintroduz15 as características de generalidade e abstração das normas jurídicas, contrapondo-lhes as de individualidade e concretude, nos seguintes termos: “gerais as normas que são universais em relação aos destinatários, e abstratas aquelas que são universais em relação à ação”, individuais as que são singulares em relação aos destinatários, e concretas as que são singulares em relação à ação, obtendo-se a classificação “normas gerais e comandos [normas individuais], normas abstratas e ordens [normas singulares]” (Idem, 180-181). Quanto a essa classificação, a título de conclusão exemplificativa, tem-se que: Na realidade, combinando-se os quatro requisitos, o da generalidade, o da abstração, o da individualidade e o da concretude, as normas jurídicas podem ser de quatro tipos: normas gerais e abstratas (deste tipo são a maior parte das leis, por exemplo, as leis penais); normas gerais e concretas (uma lei que declara mobilização geral se volta a uma classe de cidadãos e ao mesmo tempo prescreve uma ação singular que, uma vez cumprida, exaure a eficácia da norma); normas individuais e abstratas (uma lei que atribui a uma determinada pessoa um ofício, por exemplo, o de um juiz da Corte constitucional, se dirige a um só indivíduo e lhe prescreve não uma ação singular, mas todas aquelas que são inerentes ao exercício da função); normas individuais e concretas (o exemplo mais característico é fornecido pelas sentenças do juiz) (BOBBIO, 2003, 183).

Uma segunda classificação, de compreensão relativamente difícil, mas de inegável valia teórica, pois que generalizante, e por isso mesmo aplicável topicamente, é a que distingue normas afirmativas de normas negativas. Segundo Bobbio, “Partindo-se de uma proposição qualquer, obtém-se outra com o uso variado do signo ‘não’” (BOBBIO, 2003, 184). No caso das proposições

prescritivas, negando-se uma “prescrição afirmativa universal” (“Todos devem fazer X”), obtêm-se outros três tipos de prescrições, a saber: “negação universal” (“Ninguém deve fazer X”), ou “prescrição negativa [universal]”, ou proibição; “negação da universalidade” (“Nem todos devem fazer X”), ou permissiva negativa, a qual, “enquanto isenta alguns do dever de fazer, permite a estes o de não fazer”; e “negação universal e da universalidade” (“Nem todos devem não fazer X”), ou permissiva positiva, a qual “enquanto isenta alguns do dever de não fazer, permite o de fazer” (Idem, 185-187). Numa terceira classificação16, “fundada exclusivamente na forma do discurso”, obtêmse as normas categóricas e as normas hipotéticas (BOBBIO, 2003, 187). Entende-se como categórica, ou “juízo apodítico”, a norma “que estabelece que uma determinada ação deve ser cumprida”, e como hipotética, ou “juízo hipotético”, a norma “que estabelece que uma determinada ação deve ser cumprida quando se verifica uma certa condição” (Idem, ibidem). Diz-se ainda que as categóricas são “normas cuja obediência não está submetida a qualquer condição, pelo menos com referência ao sujeito a quem é dirigida”, enquanto as hipotéticas são “normas reforçadas por sanções”, considerando-se “a admissão ou a recusa das consequências imputadas pela norma sancionadora [norma secundária] como uma condição para a realização da obrigação imposta pela norma primária”, de acordo com a fórmula “Se não quiser se sujeitar à sanção Y, deve cumprir a ação X” (Idem, 187 e 188). As normas hipotéticas podem ser especificadas, “segundo a sanção consista em não se alcançar o fim desejado ou se alcançar um fim diverso do desejado”, obtendo-se, respectivamente, os seguintes tipos de normas, nos quais a noção de sanção é implícita: normas instrumentais (“Se quiser Z, deve X”), assim chamadas porque “a ação por elas prescrita é tomada como um meio para se alcançar um objetivo”, e normas finais (“Se não quiser Z, deve X”), “porque prescrevem ações que têm um valor de fim” (Idem, 188). Já o critério semiótico, apresentado por Ferraz Jr., vale-se da “teoria dos signos”, no presente caso, dos signos linguísticos 17, considerados “em sua tríplice relação: signos entre si (sintaxe), em relação ao objeto (semântica) e a seus usuários (pragmática)” (FERRAZ JR., 2003, 123). Desse modo, as normas jurídicas são classificadas segundo “critérios sintáticos, semânticos e pragmáticos, ou seja, normas em relação a normas, normas em relação ao objeto normado e normas em relação a sua função” (Idem, ibidem). De acordo com o critério sintático, as normas jurídicas são classificadas pela relevância, pela subordinação e pela estrutura (FERRAZ JR., 2003, 124). Pela relevância18, as normas são primárias (as que têm “por objeto a própria ação”) ou secundárias (as que têm “por objeto outra norma”); depurando essa classificação, Ferraz Jr. cita Herbert Hart, que entende que, “ao lado das “normas primárias de obrigação”, existem as “normas secundárias, respectivamente, de câmbio, de adjudicação e de reconhecimento”, assim definidas: normas de câmbio são dinâmicas, uma vez que

conferem poderes e estabelecem procedimentos, adaptando-se a situações novas, como as “que conferem a certos órgãos o poder de legislar, de regular o procedimento legislativo”; normas de adjudicação são eficientes, pois tornam mais preciso “o caráter difuso da pressão social exercida pelas normas de obrigação, ao determinarem competências judicantes e seus procedimentos para efeito de aplicação das normas primárias, quando violadas”, a exemplo das “normas de direito processual”; e normas de reconhecimento conferem certeza, “estabelecendo critérios conclusivos para a identificação de qualquer norma como pertencente ou não ao conjunto”, que é o caso das normas constitucionais que “contêm direitos fundamentais”, dado que “qualquer norma inferior que as viole são excluídas do sistema” (Idem, ibidem). Em sequência, pela subordinação, distinguem-se normas-origem (“as primeiras de uma série”) de normas-derivadas (as demais, “que remontam à norma-origem”); nessa classificação19, “a norma que estabelece os poderes de um órgão para editar outras normas é norma-origem; as editadas conforme ela são derivadas”; tal distinção, como se pode perceber, “funda-se na subordinação e possibilita a hierarquia”, de modo que, num conflito de normas, entre normas constitucionais e legais, por exemplo, como “a constituição [norma-origem] subordina hierarquicamente as leis ordinárias [normas-derivadas]”, a primeira prevalece sobre as segundas (Idem, 125). Por fim, pela estrutura, as normas são autônomas (“as que esgotam a disciplina que estatuem”, como “uma norma que revoga outra norma”) ou dependentes (“qualquer norma que, não esgotando a disciplina, exige outra”, que lhe complete a normatividade, a exemplo de qualquer norma que prescreva certo procedimento para um ato jurídico, mas dependa de outra norma que o especifique)20. O critério semântico, por sua vez, tem a ver com “o âmbito de validade das normas”, reportando-se “aos destinatários, à matéria, ao espaço e ao tempo” (FERRAZ JR., 2003, 126). No que se refere aos destinatários, as normas se classificam em gerais e individuais, advertindo-se que, “para evitar confusão entre generalidade e abstração”, reconhece-se que tal distinção “não é absolutamente rigorosa”, preferindo designar tais normas de comuns (“as que se destinam à generalidade das pessoas” ou a uma “categoria orgânica”, como é o caso das que dispõem sobre o feixe de competências das autoridades públicas) e particulares (“que disciplinam o comportamento de uma ou de um grupo de pessoas”) (Idem, ibidem). No tocante à matéria, têm-se normas abstratas, “na forma de um tipo ou categoria genérica”, e normas singulares, “na forma de um conteúdo excepcionado”, admitindo-se as seguintes gradações: gerais-abstratas (“gerais pela matéria”), que têm “por facti species um tipo genérico”, a exemplo da “vedação constitucional da prisão civil por dívida” (ver art. 5º, LVII, da CF21); especiais, que é o caso de toda norma que “não excepciona, propriamente, o tipo genérico, mas apenas de forma diferente, adaptada às circunstâncias e a suas exigências”, a exemplo das normas comerciais específicas, em virtude da especificidade de alguma atividade comercial, ou das normas de proteção e defesa dos direitos do consumidor e das normas

trabalhistas, tendo em vista a hipossuficiência econômica dos sujeitos do direito, em face dos sujeitos do dever respectivo; e excepcionais, as que excepcionam um tipo genérico, como, no exemplo da “vedação constitucional da prisão civil por dívida”, a prisão civil por “inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia” ou a do “depositário infiel” (ver art. 5º, LVII, da CF22) (Idem, 126 e 127). Quanto ao espaço, ou “limite espacial de incidência”, as normas podem abranger todo o território, ou parte dele, sendo chamadas, num Estado que adota o regime federativo, de nacionais (as que “incidem em todo o território nacional”) ou locais (cuja incidência se restringe ao território, por exemplo, a depender da nomenclatura, dos Estados-membros, chamando-se estaduais, ou dos Municípios, chamando-se municipais)23 (Idem, 127-128). A classificação com base no fator tempo, que “afeta a vigência das normas”, comporta três ordens de distinção: a primeira, em normas permanentes (que “vigem indefinidamente, a partir de um certo momento”, ou seja, a “permanência diz respeito ao tempo de cessação da vigência e não ao tempo de início”, sendo possível que “o prazo inicial seja posposto à promulgação”, o que se chama vacatio legis) e provisórias ou temporárias (que “têm prazo”, isto é, cujo “prazo de cessação é estabelecido previamente”, o que confere “temporalidade provisória” à norma); a segunda, em normas irretroativas (por princípio, a maioria, todas que só valem para condutas futuras, como as que estatuem tributos) e retroativas (as que, também por princípio, retroagem para benefício do destinatário, isto é, in bonam partem, como as normas penais que beneficiam o agente, ou as interpretativas, “que fixam, desde o presente, o sentido de outras normas estatuídas no passado, obviamente respeitados o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido”); a terceira, em normas de incidência imediata (como as de direito processual, que “passam, promulgadas e publicadas, a reger todos os feitos judiciais ainda em curso”) e de incidência mediata (aquelas que passam por um período de vacatio legis ou as que requerem “o preenchimento de certos requisitos”) (Idem, 128). Pelo critério pragmático, consideram-se as normas jurídicas de acordo com “os efeitos sobre os sujeitos, sua função junto aos sujeitos normativos”, distinguindo-as pela força de incidência, pela finalidade e pelo funtor (FERRAZ JR., 2003, 129). Entende-se por força de incidência “o grau de impositividade da norma”, com o que as normas jurídicas se classificam em imperativas stricto sensu24, cogentes, injuntivas ou de ordem pública (as que subtraem qualquer autonomia dos sujeitos, como a que veda a doação total de bens ou a legação que ultrapasse os limites da legítima, assim fazendo prevalecer o interesse público sobre o privado”, como é o caso da chamada “lei de mercado”, que regula os preços para que “não variem conforme a vontade das partes”) e dispositivas ou de ordem privada (“as que só atuam se invocadas pelos interessados ou caso estes se omitam em disciplinar certas situações”, como aquelas que apresentam expressões do tipo “Não havendo estipulação em contrário” etc.) (Idem, ibidem). Pela finalidade, as normas são

classificadas em: de conduta ou de comportamento, cuja “finalidade é discipliná-lo diretamente, qualificando suas condições de exercício e os fatos com ela relacionados”; e programáticas, aquelas “que apenas expressam diretrizes, intenções, objetivos”, a exemplo da “norma constitucional que determina ser dever do Estado a educação” e das normas-objetivo, “como as que sancionam um plano de governo, com suas múltiplas disposições técnicas que indicam meios para se atingirem certos fins”, cabendo ainda a observação sobre o “caráter vinculante” desse tipo de norma, que “vincula de modo negativo, pois, se não obriga ao ato programado, pode impedir o ato que o inviabiliza” (Idem, 130). Por último, pelo funtor 25, as normas são preceptivas, as que obrigam, proibitivas, as que proíbem, ou permissivas, as que permitem certo comportamento; no caso dessas últimas, as permissivas, “há quem lhes negue o caráter autônomo de norma”, como Alf Ross, que entende que “a permissão é uma forma deôntica de que se utiliza o legislador para abrir exceções às normas preceptivas e proibitivas”, tanto que, “quando o legislador deseja considerar permitida uma conduta, simplesmente se omite, isto é, nem obriga nem proíbe”, valendo-se da “permissão pelo silêncio do legislador, conforme a chamada regra geral de liberdade” 26; por outro lado, há quem reconheça a existência de “normas permissivas autônomas”, não apenas “meras exceções de proibições ou obrigações”, embora as distinga em permissões fortes (“prescrições autônomas, como as que conferem competências, faculdades”) e permissões fracas (“situações dependentes, que resultam da regulação negativa da conduta”) (Idem, 130-132).

3. Conhecimento pela interpretação

De acordo com os critérios gerais, formal e semiótico, vistos no item 2, as normas jurídicas são classificadas com base em elementos constitutivos, os quais, no entanto, não apresentam unidade lógica. Tendo em vista a análise feita no mencionado item, ainda que não se proceda à de outros critérios, é possível afirmar que toda classificação de normas jurídicas é aleatória. Por conseguinte, também a classificação não é capaz de definir plenamente o conceito de norma jurídica, visto que dependente de elementos variáveis. Até aqui, tentou-se uma definição intrínseca, isto é, voltada para elementos internos da norma jurídica. A seguir, propõe-se depurar tal definição de modo empírico, tendo em vista a interpretação/aplicação da norma jurídica. Espera-se ampliar a definição desse conceito, não abandonando o que se obteve ao se analisarem sua forma linguística e sua forma comunicacional (item 1), nem seus vários e diversos tipos teoricamente possíveis (item 2), mas observando como ela se exterioriza. Faz-se a ressalva de que, desse modo, não se buscará uma definição empirista, mas uma definição que inclua o que a práxis entende por norma jurídica.

Ferraz Jr. lembra que, até o séc. XIX, identificou-se “a norma jurídica com a lei”, visão esta baseada no “preconceito” de que apenas a lei teria “caráter normativo autônomo” (FERRAZ JR., 2003, 121). Preconceito a serviço da ideologia dominante27, tal identificação empobrecia o entendimento sobre as normas jurídicas, porque deixava de considerar como tais, por exemplo, as sentenças prolatadas pelos juízes, que seriam apenas “derivação lógica da norma geral, donde seu caráter normativo ser apenas derivado e não autônomo” (Idem, ibidem). Nesse passo, então, entende-se necessário desvincular os conceitos norma jurídica (como proposição prescritiva de uma dada conduta humana) e texto normativo (artigos, parágrafos, incisos, alíneas da Constituição, das leis, de resoluções, parte dispositiva de uma sentença etc.). Fundamentalmente, tentar-se-á entender a seguinte afirmação de Eros Roberto Grau: a norma jurídica encontra-se em estado de potência, “involucrada”, no texto normativo; por meio da interpretação, retira-se esse “invólucro”, atualizando-a (GRAU, 2005, 28). Como se pode perceber, para a definição do conceito de norma jurídica, torna-se imprescindível analisar o que se entende por interpretação no âmbito do Direito. Para tanto, é de fundamental importância esclarecer o que, de fato, é interpretado; quem interpreta; por que, para que e como é feita tal interpretação; e em que medida as ideologias a afetam. Para saber o que se interpreta, toma-se a norma jurídica como uma espécie de signo linguístico, conforme brevemente delineado nos itens 1 e 2. Nesse sentido, mister saber o que é o significante e o que é o significado que o compõem. Vale-se aqui da terminologia usada para designar, respectivamente, a forma ou expressão e a substância ou conteúdo da linguagem 28. A seguir, tentar-se-á uma especificação, de responsabilidade do autor deste trabalho. Grosso modo, não é exatamente o signo o que se exterioriza num primeiro momento, mas seu significante, o qual expressa um determinado conteúdo, seu significado, daí se dizer que o signo é a junção do significante e do significado; por conseguinte, pode-se dizer que a base de interpretação do signo é seu significante, e que é a partir dessa forma ou expressão própria que se conhece, por meio de um procedimento interpretativo, a substância ou conteúdo que lhe é imanente, donde se depreende que o significado é o significante interpretado e que o signo é o conhecimento do significado pela interpretação do significante. Assim, quando se apresenta o enunciado de dada proposição prescritiva como uma norma jurídica (signo), apresenta-se, exteriormente, seu texto normativo (significante), a partir do qual se apreende, por meio de interpretação, seu conteúdo normativo (significado). Desse modo, conclui-se que o signo linguístico norma jurídica tem como significante próprio o texto normativo e como significado imanente o respectivo conteúdo normativo. Aqui, aponta-se uma tênue imprecisão na segunda parte desta afirmação de Grau: “O que em verdade se interpreta são os textos normativos; da interpretação dos textos resultam as

normas” (GRAU, 2005, 23). Tomando como verdadeira a especificação apresentada, essa afirmação confunde o signo e o significado, ao dizer que da interpretação do texto normativo (significante) extrai-se a norma jurídica (signo), quando deveria dizer conteúdo normativo (significado); ela leva a crer, em última análise, que a interpretação no âmbito do Direito tem um fim estático, isto é, que ela se encerra quando se conhece a norma jurídica, e assim não comportaria outras interpretações, ou seja, o conhecimento de outras normas jurídicas a partir daquela; ao invés, quando se diz que, mediante a interpretação do texto normativo (significante), extrai-se o conteúdo normativo (significado) de uma norma jurídica (signo originário), conhecendo-a, está se admitindo a possibilidade de transformação desse significado num signo derivado, passível de outras interpretações, por vezes indispensáveis. À guisa de exemplo, a partir do texto normativo (significante) “Art. 66. Entre 2 (duas) jornadas de trabalho haverá um período mínimo de 11 (onze) horas consecutivas para descanso”29, obtém-se o seguinte conteúdo normativo (significado): Todo trabalhador tem direito de descansar no mínimo onze horas consecutivas entre uma jornada de trabalho e outra; donde a seguinte norma jurídica (signo): Entre duas jornadas de trabalho deve ser observado o período mínimo de descanso de 11 horas consecutivas. Nesse exemplo, o texto normativo expressa como conteúdo normativo o reconhecimento de um direito subjetivo em favor dos trabalhadores, do que se depreende que a respectiva norma jurídica obriga erga omnes ao dever jurídico de respeitar aquele direito subjetivo. Seguindo o entendimento de Grau, a partir da interpretação de um texto normativo, temse o conhecimento da respectiva norma jurídica, e ponto. Entendendo que a interpretação de um texto normativo revela o conteúdo normativo da norma jurídica, e não a própria norma, admite-se a possibilidade de aproveitar aquele conteúdo normativo como signo derivado, e, a partir deste, fazer outras interpretações, indispensáveis à concretização30 do disposto pelo signo originário; no exemplo citado, são essas outras interpretações que levam a conhecer o que se deve entender por jornadas de trabalho, a quem cabe o direito de descanso, quem tem o dever de fazer observar o gozo desse direito etc., e a partir daí, então, pôr em prática todo o conteúdo normativo da norma interpretanda. Um tipo particular de norma jurídica, a que se dá especial atenção quando se fala em interpretação no âmbito do Direito, são os chamados princípios jurídicos31. Tal se dá porque a doutrina os considera “cânones ou pautas para a interpretação” 32, referindo-se assim a seu uso na atividade interpretativa (GRAU, 2005, 39). Por essa razão, mister defini-los aqui, ao menos em suas características mais gerais: (a) inicialmente, cumpre distinguir que o gênero norma jurídica comporta duas espécies, as regras e os princípios; (b) as regras são concreções ou aplicações dos princípios, portanto não pode haver antinomia entre eles, isto é, “quando em confronto dois princípios, um prevalecendo sobre o outro, as regras que dão concreção ao que foi desprezado são

afastadas”33; (c) os princípios são explícitos (no Direito posto, por exemplo, no texto normativo da Constituição ou de uma lei em particular) ou implícitos (no Direito pressuposto, isto é, “inferidos como resultado da análise de um ou mais preceitos constitucionais ou de uma lei ou conjunto de textos normativos da legislação infraconstitucional”); (d) deve-se observar a “não-transcendência dos princípios implícitos”, que são princípios gerais de determinado Direito, ou seja, encontradiços pelo intérprete dentro de um ordenamento jurídico particular; (e) esses princípios não são positivados pelo aplicador do Direito, mas por ele descobertos no interior de determinado ordenamento jurídico, ou seja, como os princípios implícitos estão latentes em dado ordenamento jurídico, o intérprete apenas os declara, e não os constitui; e (f) os princípios jurídicos “conferem coerência ao sistema”, no sentido de que estabelecem o ordenamento jurídico como sistema formal, dispensando assim “o recurso à metáfora da ‘ordem de valores’ como via para a realização de ‘justiça material’” (GRAU, 2005, 39-51)34. Pode-se afirmar que a interpretação no âmbito do Direito é feita por todos aqueles que figuram como destinatários das normas jurídicas35, e que a questão de saber quem faz tal interpretação passa pela identificação do tipo de norma jurídica que se interpreta. Valendo-se de uma classificação das normas jurídicas36, pode-se dizer que a figura do intérprete é definida de dois modos: quando se trata de uma norma de organização ou competência, o intérprete é aquele que deve se desincumbir de um poder-dever (poder porque uma norma superior, por delegação, conferelhe competência para emitir uma norma inferior; dever porque a emissão dessa norma inferior é uma obrigação, tendo em vista a delegação feita pela norma superior) 37; quando se trata de uma norma de conduta ou comportamento, há um primeiro intérprete que deve se comportar de acordo com o disposto nessa norma (evitando o comportamento proibido, comportando-se ou não como permitido, ou comportando-se como obrigado), e um segundo intérprete que deve garantir tais comportamentos (punindo o comportamento proibido, estabelecendo condições para o comportamento permitido, ou exigindo o comportamento obrigado). Nesse sentido, são intérpretes tanto os emissores de normas jurídicas (legislador, administrador e julgador) quanto os que têm um dever jurídico ou um direito subjetivo nelas expressos. Se normalmente se fala em legislador como emissor por excelência, e em julgador como intérprete por excelência, é por motivos didáticos, tendo em vista a facilidade de identificá-los, em sua função legislativa (o primeiro), e em sua função jurisdicional (o segundo)38. Agora é necessário saber por que, para que e como se interpreta no âmbito do Direito. Negando-lhe valia teórica, Grau lembra “a concepção tradicional”, que entende a interpretação como técnica dedutiva, numa simples “reconstrução do pensamento do legislador” (GRAU, 2005, 61). Superando esse “positivismo legalista”, ele discorre sobre um “positivismo adequado aos particularismos da realidade social”, afirmando que “a interpretação do Direito envolve não apenas

a declaração do sentido veiculado pelo texto normativo, mas a constituição da norma, a partir dos textos e dos fatos” (Idem, 62 e 63). Aqui cabe uma especificação. Como diz Grau, em sentido amplo, interpretar é compreender, isto é, atribuir um significado específico a determinado signo linguístico, a partir de seu significante; já em sentido estrito, interpreta-se para compreender, ou seja, havendo dismorfia do signo linguístico, situação em que este não é expresso de forma precisa (isomorficamente, pois), a interpretação “antecede, porque a viabiliza, a plenitude da compreensão”, do significado, a partir da determinação do sentido do significante, do sentido em que foram usadas as expressões constantes do signo linguístico (GRAU, 2005, 69-70). A situação de dismorfia, ou de falta de precisão, é predominante na linguagem jurídica, de modo que no âmbito do Direito, quase sempre, a interpretação é feita em sentido estrito (GRAU, 2005, 70). De fato, em Direito, os signos linguísticos não raro são imprecisos, de tal modo “que a clareza de uma lei não é uma premissa, mas o resultado da interpretação, na medida em que apenas se pode afirmar que a lei é clara após ter sido ela interpretada” (Idem, 70 e 71). Citando Vittorio Frosini, Grau diz que O aforismo latino [in claris non fit interpretatio], em seu significado original, tinha uma função específica: a de fazer prevalecer a vontade do legislador sobre a do comentarista. Mas no seu uso habitual foi adquirindo o sentido irreflexivo e enganoso de que pode prescindir da interpretação da mensagem legislativa quando esta é clara em si mesma (Idem, 71);

diz também que, “tanto a situação de dúvida (situação de interpretação) quanto a de isomorfia dependem de atos concretos de comunicação, não podendo ser consideradas in abstracto: o mesmo texto é claro ou dúbio segundo os contextos concretos do seu uso”; e, por fim, que “O texto claro torna-se obscuro em função da tensão de interesses que se põem em torno dele” (Idem, ibidem). Grau ainda se refere ao que chama de contextos da interpretação, em verdade presentes nas normas jurídicas, e que reclamam interpretação em sentido estrito, o que será de grande valia quando se discutir de que maneira as ideologias afetam a interpretação no âmbito do Direito. Segundo ele, no contexto linguístico, “as situações de dúvida decorrem da circunstância de a linguagem jurídica apresentar ambiguidades e zonas de penumbra e ser potencialmente vaga e imprecisa”39; no contexto sistêmico, as dúvidas “se manifestam quando o significado prima facie de uma norma resulta inconsistente ou incoerente em presença de outra ou outras normas do sistema jurídico”; e no contexto funcional, “as situações de dúvida consistem, basicamente, na coexistência prima facie de múltiplas funções, conflitivas e mesmo excludentes entre si, atribuíveis a uma mesma norma” (GRAU, 2005, 75-76). O próximo passo é entender por que a interpretação no âmbito do Direito se impõe. Segundo Grau, tal não se dá apenas porque a linguagem jurídica, empregada nas normas jurídicas, é

imprecisa, mas também porque “interpretação e aplicação do Direito são uma só operação, de modo que interpretamos para aplicar o Direito” (GRAU, 2005, 71). Ou seja, a interpretação no âmbito do Direito se impõe porque ela é indispensável para a aplicação do Direito, fenômeno mais abrangente do que a só interpretação das normas jurídicas. Para compreender melhor os termos interpretação e aplicação, é importante lembrar a seguinte distinção, feita originalmente por Kelsen40: interpretação autêntica é a “realizada pelo órgão que o aplica [o Direito]”, a exemplo do legislador e do juiz, e por isso mesmo “é dotada de obrigatoriedade e é criadora de direito, sendo, portanto, fonte formal do Direito”; interpretação nãoautêntica é a “realizada não por um órgão jurídico, mas sim por um cidadão, e, especialmente, pela ciência jurídica”, e assim, pois, não é obrigatória e não cria direito, sendo fonte material do Direito” (apud KOEHLER, 2007, 99). Nesse sentido, diz-se que O intérprete autêntico procede à interpretação dos textos normativos e, concomitantemente, dos fatos, de sorte que o modo sob o qual os acontecimentos que compõem o caso se apresentam vai também pesar de maneira incisiva na produção da(s) norma(s) aplicável(veis) ao caso. (...) Como e enquanto interpretação/aplicação, ela parte da compreensão dos textos normativos e dos fatos, passa pela produção das normas que devem ser ponderadas para a solução do caso e finda com a escolha de uma determinada solução para ele, consignada na norma de decisão41 (GRAU, 2005, 71-72).

Mais abrangente que as ideias de interpretação e aplicação é a do chamado “processo de concretização do Direito”, introduzida por Friedrich Müller: A concretização implica um caminhar do texto da norma para a norma concreta (a norma jurídica), que não é ainda, todavia, o destino a ser alcançado; a concretização somente se realiza no passo seguinte, quando é descoberta a norma de decisão, apta a dar solução ao conflito que consubstancia o caso concreto (GRAU, 2005, 75).

Grau fala ainda da atualização do Direito, referindo-se assim ao fato de que a interpretação no âmbito do Direito se dá no quadro de uma situação determinada e, por isso, deve expor o enunciado semântico do texto no contexto histórico presente (não no contexto da redação do texto). Todo texto pretende ser compreendido em cada momento e em cada situação concreta de uma maneira nova e independente (GRAU, 2005, 115-117).

Então se fala em historicidade do Direito, lembrando que a norma jurídica existe em estado de potência, atualizável em cada momento histórico, de acordo com a ordem social e valorativa desse dado momento42. Cumpre lembrar ainda que não apenas as normas jurídicas são interpretadas, mas também os fatos. Vale citar a seguinte passagem: sendo a interpretação, concomitantemente, aplicação do Direito, deve ser entendida como produção prática do Direito, precisamente como a toma Friedrich Müller, para quem inexiste tensão entre Direito e realidade; não existe um terreno composto de elementos normativos, de um lado, e de elementos reais ou empíricos, do outro. Por isso a articulação ser e dever-ser (a relação norma-fato) é mais do que uma questão da Filosofia do Direito; é uma questão da estrutura da norma jurídica tomada na sua transposição prática, e, por consequência, ao mesmo tempo uma questão da estrutura deste processo de transposição (GRAU, 2005, 9293).

Assim, pode-se concluir que a interpretação no âmbito do Direito é feita para que ele se concretize, atualizando-se historicamente, “não apenas a partir de elementos colhidos no texto normativo”, “mas também a partir de elementos do caso ao qual será ela [a norma jurídica] aplicada” (GRAU, 2005, 93). Nesse sentido, quando se diz que a norma jurídica é uma moldura interpretativa43, diz-se que “ela é, concomitantemente, moldura do texto e moldura do caso”, servindo à interpretação tanto do texto quanto do caso concreto que a suscita, “no momento histórico no qual se opera” (Idem, ibidem). Cumpre destacar que com essa formulação Grau se contrapõe ao positivismo legalista44, pois o que chamou de “moldura do caso” serve, em última análise, para flexibilizar a moldura da norma; em outras palavras, ele diz que o que se interpreta no âmbito do Direito não são apenas as normas jurídicas, mas também os fatos, não como uma representação, mas como um relato, não como um reflexo ou projeção da realidade, mas como narrativa de fatos que nela ocorreram45 (Idem, 93). Cumpre destacar que Grau propõe que a interpretação no âmbito no Direito é feita como nas “artes alográficas”, a exemplo do que ocorre na música e no teatro, onde “a obra apenas se completa com o concurso de dois personagens: o autor e o intérprete”, ou intérpretes, ao contrário das “artes autográficas”, como a pintura e o romance, em que “o autor contribui sozinho para a realização da obra” (GRAU, 2005, 77). Enquanto nestas a interpretação é apenas compreensão, naquelas é compreensão e reprodução: a só compreensão “visa à contemplação estética, independentemente da mediação de um intérprete”; a compreensão carece de reprodução quando “a obra, objeto da interpretação, para que possa ser compreendida, tendo em vista a contemplação estética, reclama um intérprete”, um primeiro intérprete, que compreende e reproduz a obra, e um segundo intérprete, que a compreende a partir dessa compreensão/reprodução (Idem, 77 e 78). Para fundamentar sua ideia, Grau alega que o texto normativo é alográfico, no sentido de que todo texto normativo “reclama um intérprete (primeiro intérprete) que compreenda e reproduza, não para que um segundo intérprete possa compreender, mas a fim de que um determinado conflito seja decidido” (Idem, 79). Nesse ponto, Grau pergunta se a interpretação no âmbito do Direito é uma prudência ou uma ciência46. E responde que é prudência, não ciência, entendendo como tal o “saber prático”, ou phronésis, como diz Aristóteles; que não é “saber puro, separado do ser”, mas “razão intuitiva, que não discerne o exato, porém o correto” (GRAU, 2005, 100). Citando Karl Larenz, diz que “Interpretar um texto normativo significa escolher uma entre várias interpretações possíveis, de modo que a escolha seja apresentada como adequada”, e que “A norma não é objeto de demonstração, mas de justificação. Por isso, a alternativa verdadeiro/falso é estranha ao Direito; no Direito há apenas o aceitável (justificável)” (Idem, 101). Nesse particular, é inevitável não acoimar a ideia de Grau de redutora, por identificar toda interpretação no âmbito do Direito com a

interpretação autêntica; que tal interpretação é uma prudência, ou também uma prudência, é fato que não se pode contestar; mas essa afirmação não elide a atividade científica no âmbito do Direito, a exemplo do que ocorre com a chamada interpretação não-autêntica, pela qual se procura verificar, confirmando ou refutando, evidências acerca do fenômeno jurídico47. Aqui vale mencionar outra adequada distinção, acerca do que Grau chama de discursos jurídicos (lato sensu). Trata-se da distinção entre discurso do Direito, como “o discurso prescritivo produzido pelos juízes e tribunais”, e discurso jurídico (stricto sensu), como “o conjunto dos discursos que usam ou falam do discurso do Direito”, a exemplo do que fazem os advogados, os professores de Direito, os cidadãos, e mesmo os juízes, “quando fundamentam e explicam o Direito” (GRAU, 2005, 96). Essa distinção decorre da seguinte constatação: a interpretação no âmbito do Direito comporta um sentido deôntico, que considera “as normas extraídas dos enunciados”, e um sentido ideológico, que considera “as demais mensagens que circulam quando o discurso jurídico [lato sensu] é utilizado” (Idem, ibidem). E é por meio daquela primeira distinção que se pode vislumbrar a presença da ideologia, ou de ideologias, na práxis jurídica: uma ideologia do Direito, “portada pelos textos, pelos enunciados dos quais se extrai o sentido deôntico do Direito”, e uma ideologia jurídica, “produzida por quem usa ou fala do Direito” (Idem, ibidem). Ele ainda se refere ao seguinte problema: “A ideologia pelos discursos que falam do Direito (discursos jurídicos [stricto sensu]) inúmeras vezes subverte a ideologia do Direito (isto, é, dos enunciados interpretados)” (Idem, 96-97). E pergunta: “Se a ideologia do Direito e a norma são produzidas pelo intérprete autêntico (em razão do que inexiste a possibilidade lógica de subversão de uma e de outra), quando, e em quais circunstâncias, dá-se a subversão do texto?” (Idem, 97). Pode-se objetar que, uma vez inserta a noção de ideologia, não cabe falar numa lógica da interpretação, nem de uma norma jurídica como produto lógico48; nesse sentido, essa pergunta não parece adequada; mas ela tem uma virtude, que é a de suscitar a discussão a respeito dos limites da interpretação no âmbito do Direito49. A propósito da interferência da ideologia na atividade interpretativa no âmbito do Direito, Grau diz o seguinte: A existência de diversos cânones de interpretação, agravada pela inexistência de regras que ordenem, hierarquicamente, o seu uso, importa que esse uso, em verdade, resulte arbitrário. Esses cânones funcionam como justificativas a legitimar resultados que o intérprete se predeterminara a alcançar, cujo alcance não é, porém, determinado mediante o seu uso. Funcionam como reserva de recursos de argumentação em poder dos intérpretes 50 (GRAU, 2005, 104).

Em sequência, Grau admite a variabilidade de interpretações, a possibilidade de “inúmeras soluções corretas”, e não de apenas uma, afirmando que as decisões interpretativas são tomadas em função e em razão de um problema. E as soluções atribuíveis aos problemas jurídicos não são definíveis, exclusivamente, a partir da atribuição de um ou outro significado a determinado texto, porém desde a ponderação de variáveis múltiplas51 (GRAU, 2005, 104).

O que é dizer que, para um mesmo texto normativo, com seu respectivo conteúdo normativo, por meio da interpretação, há possibilidade de produção de várias normas jurídicas. Daí se dizer que a norma jurídica não é um dado, mas um construído, e que tanto é verdadeira a ideia de que a norma jurídica é um signo linguístico, que ela não precede a, mas procede da interpretação, visto que, a partir do texto normativo (significante), obtém-se o conteúdo normativo (significado), conhecendo-se então, e só então, a norma jurídica (signo). Assim faz mais sentido a diferenciação que Grau apresenta entre ideologias de interpretação no âmbito do Direito. Note-se bem: aqui não se trata das ideologias (do Direito e jurídica) de que se falou acima, aquelas que influenciam a atividade interpretativa, mas de ideologias como métodos de interpretação, ou, mais precisamente, como metodologia de interpretação. Segundo Grau, citando Jerzy Wróblewski, há dois tipos principais de ideologia de interpretação52: a estática, baseada nos valores de certeza, estabilidade e predizibilidade, que entende que “o significado de qualquer norma jurídica é função da vontade do legislador”, que considera preferencialmente os contextos sistêmico e linguístico da norma jurídica, que mesmo quando considera o funcional é para descobrir “o contexto histórico do ato legislativo” ou “a ratio legis do legislador histórico”, e que não admite que a interpretação “conduza à mudança ou transformação da norma”; e a dinâmica, que “considera a interpretação como atividade que adapta o Direito às necessidades presentes e futuras da vida social”, que esta “corresponde ao contexto funcional das normas jurídicas e leva em consideração o atual contexto sistêmico e linguístico”, e que entende que a interpretação “é uma atividade criadora ex definitione, na medida em que cria o Direito em ato, ou seja, aquele cujas normas são determinadas na interpretação” 53 (GRAU, 2005, 118-119). Argumentos contundentes contra a ideologia estática são apresentados por Carlos Maximiliano: “A lei não brota do cérebro do seu elaborador completa, perfeita, como um ato de vontade independente, espontâneo”; “O legislador não tira do nada, como se fora um Deus; é apenas o órgão da consciência nacional”; considerando a estrutura do Poder Legislativo, como descobrir, num “labirinto de ideias contraditórias e todas parcialmente vencedoras, a vontade, o pensamento, a intenção diretora e triunfante?; “A vontade do legislador não será a da maioria dos que tomam parte na votação da norma positiva (...); a vontade do legislador é a da minoria; talvez de uma elite intelectual”; “Por outro lado, não só é difícil determinar aquela intenção volitiva, como, também, distingui-la do sentido da lei, ou ao menos demonstrar quanto influi no significado de uma norma jurídica”; “O legislador não tem personalidade física individual, cujo pensamento, pendores e vontades se apreendam sem custo. A lei é obra de numerosos espíritos, cujas ideias se fundam em um conglomerado difícil de decompor”; “Além de retrógrada, afigura-se-nos temerária

empresa a de descobrir em um todo heterogêneo o fator psicológico da intenção” 54 (apud GRAU, 2005, 121-122). Grau vai mais longe, asseverando que é necessário aderir “à ideologia dinâmica da interpretação e à visualização do Direito como instrumento de mudança social” (GRAU, 2005, 126). Contextualizando essa afirmação, vale seguir o seu raciocínio: ele diz que “Nem a vontade do legislador, nem o espírito da lei, vinculam o intérprete”; que “quem interpreta/aplica não é o mesmo sujeito que escreveu o texto”; e que “A interpretação do Direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos”; portanto, “O Direito é um dinamismo”; assim sendo, vislumbra-se “a emergência de um sentido nãoconservador (transformador) do Direito” 55 (Idem, 125 e 126). Nesse passo, convém analisar os chamados métodos e tipos dogmáticos de interpretação, como diz Ferraz Jr. Antes, proveitoso acompanhar o seguinte raciocínio: (a) ao lado da teoria zetética da interpretação, para a qual importa descrever “o sentido do Direito”, existe a teoria dogmática da interpretação56, que expressa como o Direito deve ser interpretado; (b) a partir da teoria dogmática, formulam-se “orientações sobre os objetivos e propósitos da interpretação”, dos quais se deduzem as chamadas “regras hermenêuticas”; (c) tais regras hermenêuticas são estabelecidas com base em três critérios, quais sejam, correção ou coerência (segundo o qual se diz que “a busca do sentido correto exige um sistema hierárquico de normas e conteúdos normativos”), consenso (segundo o qual se diz que “a busca do sentido funcional exige respaldo social”) e justiça (segundo o qual se diz que “a busca do sentido do justo exige que se atinjam os objetivos axiológicos do Direito”); (d) como realização desses critérios hermenêuticos é que se vislumbram os métodos de interpretação, lógico-sistemático, histórico-sociológico e teleológico-axiológico; e (e) tendo em vista a intenção do intérprete, distinguem-se os tipos de interpretação, especificadora, restritiva e extensiva (FERRAZ JR., 2003, 286). Por método de interpretação lógico-sistemático entende-se o modo de interpretar que leva em conta os problemas sintáticos presentes nas normas jurídicas, problemas estes que envolvem três questões: questões léxicas, referentes à “conexão das palavras nas sentenças [enunciados]”; questões lógicas, referentes “à conexão de uma expressão com outras expressões dentro de um contexto”; e questões sistemáticas, referentes “à conexão das sentenças num todo orgânico” (FERRAZ JR., 2003, 286 e 287). Quando se enfrentam questões léxicas, faz-se interpretação gramatical, pela qual se parte “do pressuposto de que a ordem das palavras e o modo como elas estão conectadas [no enunciado] são importantes para obter-se o correto significado da norma”, o que é “apenas um instrumento para mostrar e demonstrar o problema, não para resolvêlo” (Idem, 287). Quando se enfrentam questões lógicas, faz-se interpretação lógica, também um “instrumento técnico, inicialmente a serviço da identificação de inconsistências”, partindo-se “do

pressuposto de que a conexão de uma expressão normativa com as demais do contexto é importante para a obtenção do significado correto”; esse modo de interpretação tem em vista assegurar a “compatibilidade lógica”, em resposta à situação em que, num “mesmo diploma legal, usa-se o mesmo termo em normas distintas com consequências diferentes”, o que viola o “princípio lógico da identidade (A = A)”57 (Idem, 287-288). Quando se enfrentam questões sistemáticas, faz-se interpretação sistemática, que tem como pressuposto a “unidade do sistema jurídico do ordenamento”, e recomenda que “qualquer preceito isolado deve ser interpretado em harmonia com os princípios gerais do sistema, para que se preserve a coerência do todo” 58 (Idem, 288-289). Além dos problemas sintáticos, as normas jurídicas apresentam problemas semânticos, que dizem respeito ao significado normativo em sua “conexão fática ou existencial” (FERRAZ JR., 2003, 289). Tais problemas são observados a partir do que a doutrina chama de conceitos vagos ou ambíguos, de três espécies: conceitos indeterminados, conceitos valorativos e conceitos discricionários (Idem, ibidem). Cumpre ao intérprete conferir a esses conceitos “um contorno genérico” (Idem, ibidem). Quanto aos conceitos indeterminados, que admitem determinação, por serem presumivelmente determináveis (como força maior, perigo iminente etc.), a tarefa é generalizá-los “pela constituição de standards”, delimitando “seu campo de referência objetiva, ou seja, quais os objetos abarcados (denotados) pelo conceito” (Idem, 290). Quanto aos conceitos valorativos, que apresentam “imprecisão quanto aos atributos que os definem” (como dignidade da pessoa humana, decoro parlamentar etc.), a tarefa é “a busca de certa objetividade neles presentes, o que ocorre pela referência ao contexto social em que são utilizados” (Idem, ibidem). Quanto aos conceitos discricionários, “que manifestam uma imprecisão que nunca se fecha genericamente, mas que se renova em cada uso concreto” (como conveniência, oportunidade etc.), desincumbe-se da tarefa valendo-se da “razoabilidade ou proporcionalidade da opção, em cada caso” (Idem, ibidem). Para tanto, o intérprete utiliza o método de interpretação histórico-sociológico, considerando a norma jurídica segundo “sua gênese no tempo” ou “a estrutura momentânea da situação [do caso concreto]”, situações essas que às vezes “se interpenetram”, daí porque se falar numa “interpretação histórico-evolutiva”, tendo em vista tanto “as condições em que ocorreu sua gênese”, quanto “as condições específicas do tempo em que a norma incide”; aqui se fala num levantamento histórico, quando se recomenda “ao intérprete o recurso aos precedentes normativos, isto é, de normas que vigoraram no passado e que antecederam à nova disciplina para, por comparação, entender os motivos condicionantes de sua gênese”, e num levantamento sociológico, que “deve levar o intérprete a verificar as funções do comportamento e das instituições sociais no contexto existencial em que ocorrem” (Idem, 290-291). A interpretação no âmbito do Direito depara-se ainda com problemas pragmáticos, visto que as normas jurídicas estabelecem uma “relação de comunicação entre emissores e receptores da

mensagem normativa”, relações essas permeadas de “carga emocional”, as quais por isso mesmo geram problemas quanto a suas finalidades e aos valores que refletem (FERRAZ JR., 2003, 292). Aqui se fala em “neutralizar os conteúdos, o que não quer dizer [desconsiderar a finalidade da norma, nem] eliminar a carga valorativa, mas [especificá-la] e controlá-la”, generalizando “de tal modo [essas finalidades] e valores que eles passem a expressar ‘universais do sistema’” (Idem, ibidem). Esses problemas podem ser resolvidos pelo método de interpretação teleológicoaxiológico, o que “ativa a participação do intérprete na configuração do sentido” das normas jurídicas, tendo em vista que estas têm “sempre um objetivo que serve para controlar até as consequências da previsão legal (a lei sempre visa aos fins sociais do Direito e às exigências do bem comum, ainda que, de fato, possa parecer que eles não estejam sendo atendidos)” (Idem, 294). Para tanto, o intérprete vale-se da “regra básica” segundo a qual “sempre é possível atribuir um propósito às normas”, seja invocando princípios “imanentes da ordem jurídica e social e reguladores teleológicos da atividade interpretativa”, como os princípios da igualdade, da boa-fé etc., seja invocando regras gerais, cuja generalidade restringe-se a uma “série definida de casos”, como a oralidade e a imediatidade no Direito Processual (Idem, 292). Como se disse acima, tendo em vista a intenção do intérprete, de especificar, restringir ou estender o conteúdo normativo, distinguem-se os tipos de interpretação, a saber: (a) interpretação especificadora, aquela que “parte do pressuposto de que o sentido da norma cabe na letra de seu enunciado”, postulando que “para elucidar o conteúdo da norma não é necessário sempre ir até o fim de suas possibilidades significativas, mas até o ponto em que os problemas pareçam razoavelmente decidíveis”, daí o aforismo in claris cessat interpretatio, ou, de acordo com a teoria dogmática, que “a letra da lei está em harmonia com a mens legis ou o espírito da lei, cabendo ao intérprete apenas constatar a coincidência” (FERRAZ JR., 2003, 294 e 295); (b) interpretação restritiva, aquela que “ocorre toda vez que se limita o sentido da norma, não obstante a amplitude de sua expressão literal”, valendo-se o intérprete “de considerações teleológicas e axiológicas para fundar o raciocínio”, toda vez que “a interpretação meramente especificadora não atinge os objetivos da norma, pois lhe confere uma amplitude que prejudica os interesses, ao invés de protegê-los”, como quando se recomenda “que toda norma que restrinja os direitos e garantias fundamentais

reconhecidos

e

estabelecidos

constitucionalmente

deva

ser

interpretada

restritivamente”, ou quando se interpretam normas excepcionais, pois que “uma exceção é, por si, uma restrição que só deve valer para os casos excepcionais”, casos em que a teoria dogmática afirma “que a restritividade decorre da teleologia imanente ao ordenamento, sendo uma exigência de valores que constituem a voluntas legislatoris ou a mens legis” (Idem, 296); e (c) interpretação extensiva, aquela que “amplia o sentido da norma para além do contido em sua letra”, argumentando-se para tanto que o legislador “não poderia deixar de prever casos que,

aparentemente, por uma interpretação meramente especificadora, não seriam alcançados”, o que significa respeitar a ratio legis, devendo o intérprete “demonstrar que a extensão do sentido está contida no espírito da lei”59 (Idem, 297). Por fim, cabe referência ao que se pode chamar de interpretação sistêmica, de certa forma similar ao método de interpretação lógico-sitemático. A chamada interpretação sistêmica tem em vista que “Não se interpreta o Direito em tiras, aos pedaços”, isto é, “Não se interpretam textos de Direito isoladamente, mas sim o Direito, no seu todo” (GRAU, 2005, 127). Grau ainda lembra Santi Romano, que “insiste em que a interpretação da lei é sempre interpretação não de uma lei, mas de uma lei ou de uma norma que é considerada em relação à posição que ocupa no todo do ordenamento jurídico”, e Bobbio, para quem as normas jurídicas “só têm existência em um contexto de normas, isto é, no sistema normativo” (Idem, 127-128). A ideia de ordenamento jurídico será abordada no item a seguir.

4. A ideia de ordenamento jurídico

No item anterior, sobre o conhecimento da norma jurídica por meio da interpretação, foi dito afinal que a interpretação no âmbito do Direito há de ser feita sistemicamente (GRAU, 2005, 127-128). No presente item, tentar-se-á especificar esse entendimento, que aponta para a existência de sistema ou sistemas jurídicos, ao remontar a uma visão em conjunto das normas jurídicas, isto é, à ideia de ordenamento jurídico. É de se indagar, no entanto, de que maneira essa ideia contribui para a definição do conceito de norma jurídica60. Ao que se responde que, à semelhança do que se disse quanto à interpretação no âmbito do Direito, tal definição não pode ser alcançada apenas com base em elementos internos da norma jurídica. Como diz Ferraz Jr., Não é suficiente, pois, uma definição de norma jurídica no que se refere a sua estrutura, seus componentes essenciais. Ainda que eles estejam presentes em uma norma, isto ainda não quer dizer que estejamos diante de uma norma jurídica atualmente existente (FERRAZ JR., 2003, 74).

E que é que confere existência jurídica a uma norma? Aqui se introduz o conceito validade jurídica, que neste item será abordado quanto a sua função, não ao que é. Nesse sentido, diz Ferraz Jr.: A validade da norma não é uma qualidade intrínseca, isto é, normas não são válidas em si: dependem do contexto, isto é, dependem da relação da norma com as demais normas do contexto. O contexto, como um todo, tem que ser reconhecido como uma relação ou conjunto de relações globais de autoridade. Tecnicamente diríamos, então, que a validade de uma norma depende do ordenamento no qual está inserta (FERRAZ JR., 2003, 175).

Nesse passo, convém definir o que vem a ser, exatamente, um ordenamento jurídico. Nas palavras de Ferraz Jr.,

Um ordenamento, em relação ao qual a pertinência de uma norma a ele é importante para identificá-la como norma válida, além de ser um conjunto de elementos normativos (normas) e não-normativos [a exemplo das definições e classificações legais], é também uma estrutura, isto é, um conjunto de regras que determinam as relações entre os elementos. (...). Nesse sentido, ordenamento é sistema (FERRAZ JR., 2003, 176).

Por conseguinte, lembrando que todo sistema é um conjunto de elementos (repertório) organizados segundo regras de relacionamento (estrutura), pode-se afirmar que ordenamento jurídico é um sistema em que fundamentalmente normas jurídicas, mas também elementos nãonormativos (repertório), estabelecem relações mútuas entre si (estrutura) (FERRAZ JR., 2003, 176)61. Ferraz Jr. apresenta os seguintes exemplo de regras de relacionamento (estrutura) do ordenamento jurídico, baseadas na divisão hierárquica das normas em superiores e inferiores: o princípio da lex superior (regra segundo a qual a norma que dispõe, formal e materialmente, sobre a edição de outras normas prevalece sobre estas em caso de contradição: as normas constitucionais prevalecem sobre as leis ordinárias), ou o da lex posterior (havendo normas do mesmo escalão em contradição, prevalece a que, no tempo, apareceu por último)62 (FERRAZ JR., 2003, 177).

E adverte que, “Para a dogmática analítica, ordenamento é um conceito operacional que permite a integração das normas num conjunto, dentro do qual é possível identificá-las como normas jurídicas válidas” (Idem, ibidem). Do ponto de vista zetético, podem-se considerar “elementos do ordenamento apenas normas”63 ou reconhecer “nele normas, fatos, valores” 64, por exemplo (Idem, ibidem). Do mesmo modo quanto à estrutura, que pode manifestar regras empíricas, como “o princípio da soberania e a preeminência das normas estatais”, regras lógicas, como “a exigência de coerência entre as normas”, e expressões de valoração, como o princípio da lex superior etc. (Idem, 178). Em ambas as situações, incluir esse ou aquele elemento, essa ou aquela regra de relacionamento, é “uma opção teórica de fundamento zetético” (Idem, ibidem). Ferraz Jr. ainda aponta o caráter dinâmico do ordenamento jurídico, por captar “as normas dentro de um processo de contínua transformação”, no que volta a identificá-lo como sistema, um sistema dinâmico65, salientando que É preciso dizer, como vimos, se estamos ou não diante de uma norma jurídica, se a prescrição é válida, mas para isso é preciso integrá-la no conjunto, e este conjunto tem de apresentar contornos razoavelmente precisos: a ideia de sistema permite traçar esses contornos, posto que [sic] sistema implica a noção de limite, esta linha diferencial abstrata que nos autoriza a identificar o que está dentro, o que entra, o que sai e o que permanece fora (FERRAZ JR., 2003, 178).

Analisando aprofundadamente a teoria do ordenamento jurídico, Bobbio diz: “Se um ordenamento jurídico é composto de mais de uma norma, disso advém que os principais problemas conexos com a existência de um ordenamento são os que nascem das relações das diversas normas entre si” (BOBBIO, 1999, 34). Nesse sentido, ele identifica o que chama de “problemas do ordenamento jurídico”, o que serve para analisar suas caraterísticas: o problema da hierarquia

normativa, ou se as “normas constituem uma unidade”; o problema da antinomia entre normas, ou se há coerência no ordenamento jurídico; o problema da lacuna jurídica, ou se o ordenamento jurídico é completo; e o problema da unicidade ou pluralidade de ordenamentos, ou se há apenas um ou mais de um ordenamento jurídico (Idem, 34 e 35). Neste trabalho, importa saber como uma norma jurídica se integra a um ordenamento, se há coesão entre ela e as outras, se há coerência entre elas, se elas se completam, e a que ordenamento, afinal, ela pertence. Segundo Bobbio, “A dificuldade de rastrear todas as normas que constituem um ordenamento depende do fato de geralmente essas normas não derivarem de uma única fonte”, pelo que se conclui que os ordenamentos jurídicos são complexos (BOBBIO, 1999, 37). Explicando essa afirmação, diz que “A complexidade de um ordenamento jurídico deriva do fato de que a necessidade de regras de conduta numa sociedade é tão grande que não existe nenhum poder (ou órgão) em condições de satisfazê-la sozinho” (Idem, 38), e também que “o ordenamento jurídico, além de regular o comportamento das pessoas, regula também o modo pelo qual se devem produzir as regras” (Idem, 45), características essas que demonstram haver variedade de fontes e de produção normativas, e, consequentemente, de normas jurídicas. É nesse ponto que a ideia de ordenamento jurídico contribui para a definição do conceito de norma jurídica. Bobbio diz que “A complexidade do ordenamento (...) não exclui sua unidade”, e que, a partir da “teoria da construção escalonada do ordenamento jurídico, elaborada por Kelsen”, pode-se “dar uma explicação da unidade de um ordenamento jurídico complexo” (Bobbio, 1999, 48 e 49). Segundo essa teoria, “as normas de um ordenamento não estão num mesmo plano”, havendo normas superiores e inferiores, estas dependentes daquelas (Idem, ibidem). Eis aqui o problema da hierarquia normativa, ou da fundamentação que uma norma superior confere a uma norma inferior (a exemplo do que ocorre da Constituição para uma lei ordinária, e desta para uma decisão judicial), o que é correlato à derivação da norma inferior a partir da norma superior (KELSEN, 2005, 181199). Tal relação de fundamentação/derivação é o que determina a coesão entre as normas, se uma norma inferior é conforme, em termos formais e materiais, a uma norma superior, isto é, se tanto a forma de produção quanto o conteúdo normativo da norma inferior observa o disposto na norma superior (BOBBIO, 1999: 53-58). Toda essa operação, assim como a unidade do ordenamento, são garantidas pela existência de uma “norma suprema”, ou “norma fundamental”, “que não depende de nenhuma norma superior, e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento” (Idem, 49). A propósito, afirma-se: a norma suprema, ou fundamental, “é o termo unificador das normas que compõem um ordenamento jurídico”; estas sem aquela “constituiriam um amontoado, não um ordenamento”; tal não ocorre porque “As normas de um ordenamento são dispostas em ordem hierárquica”, tendo a norma suprema, ou fundamental, como ordenadora, em última instância (Idem, ibidem). Um outro problema é saber qual o conteúdo dessa norma suprema ou fundamental,

problema para o qual há possivelmente várias respostas diferentes, como atesta Ferraz Jr.: pressuposto racional vinculante, cuja validade não é relacional, como ocorre com as demais, mas “uma condição transcendental do pensar” (Kelsen) 66; norma de reconhecimento das demais normas como pertencentes ao ordenamento, que não é válida nem inválida, em sentido jurídico, mas que existe (Hart); ato de poder, norma posta pelo poder fundante ou constituinte, garantida pela força do Direito (Bobbio)67; norma imperativa, com força impositiva, que não está sujeita à validade, como as demais normas, mas a “regras de calibração” do ordenamento, como diz o próprio Ferraz Jr. (FERRAZ JR., 2003, 188 e 189). Aqui não serão feitas maiores considerações acerca desse problema, por serem elas afeitas mais à teoria do ordenamento jurídico do que à teoria da norma jurídica, sendo esta a mais imediatamente necessária a este trabalho. Em sequência, tem-se que uma norma, para se integrar a um ordenamento jurídico, não apenas deve obedecer a certa ordem hierárquica, em cujo ápice se encontra a norma suprema, ou fundamental; ela também deve ser compatível com as demais normas, de igual ou diferente hierarquia, devendo haver coerência entre elas, em resposta ao problema da antinomia 68. O adequado delineamento desse problema passa pela verificação de sistematicidade do ordenamento jurídico, investigando-se basicamente se ele é um sistema consistente. Acerca da sistematicidade do ordenamento jurídico, assim se manifesta Bobbio: Diz-se que um ordenamento jurídico constitui um sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis. Aqui, “sistema” equivale à validade do princípio que exclui a incompatibilidade das normas. Se num ordenamento vêm a existir normas incompatíveis, uma das duas ou ambas devem ser eliminadas. Se isso é verdade, quer dizer que as normas de um ordenamento têm um certo relacionamento entre si, e esse relacionamento é o relacionamento de compatibilidade, que implica a exclusão da incompatibilidade. (...). Portanto, não é exato falar, como se faz frequentemente, de coerência do ordenamento jurídico, no seu conjunto; pode-se falar de exigência de coerência somente entre suas partes simples (BOBBIO, 1999, 80).

A respeito da consistência desse sistema, Ferraz Jr. aduz que “Por consistência deve ser entendida a inocorrência ou a extirpação de antinomias, isto é, da presença simultânea de normas válidas que se excluem mutuamente” (FERRAZ JR., 2003, 206). Aqui não convém definir nem especificar o que vem a ser antinomia, tema deveras amplo e possivelmente inconcludente, ademais não oferecer maiores subsídios para este trabalho; mas é oportuno mencionar como elas são eliminadas, isto é, na hipótese de ocorrer uma antinomia, qual das normas envolvidas deve prevalecer, se é que isso é sempre possível. Nesse sentido, trata-se de um problema hermenêutico, pois sua solução passa pela interpretação/aplicação das normas antinômicas, o que é feito por meio de critérios (BOBBIO, 1999, 91-110), ou regras de relacionamento ou de estrutura (FERRAZ JR., 2003, 211). Os principais critérios ou regras de relacionamento ou de estrutura foram mencionados um pouco acima, quando se falou dos princípios da lex superior, da lex posterior e da lex specialis (FERRAZ JR., 2003, 177; ver também BOBBIO, 1999, 91-97). Um quarto critério é “aquele tirado

da forma da norma”, “por estabelecer uma graduação de prevalência entre as três formas da norma jurídica”: “se de duas normas incompatíveis uma é imperativa ou proibitiva e a outra é permissiva, prevalece a permissiva”, preponderando a “interpretação favorabilis sobre a odiosa”, uma vez que se trata de “duas normas contraditórias, com respeito às quais tertium non datur (ou se aplica uma ou se aplica a outra)”; se “uma das duas normas é imperativa e a outra proibitiva”, a conduta ordenada ou proibida é considerada permitida, entendendo-se que as primeiras se excluem, “mas não excluem uma terceira solução”, uma vez que se trata de “normas contrárias”, que “não podem ser ambas verdadeiras, mas podem ser ambas falsas” (BOBBIO, 1999, 99-100). Ocorre que esses critérios, como diz Bobbio, são insuficientes, pois o caso mais frequente de antinomia envolve normas de mesma hierarquia, contemporâneas e ambas gerais, e, a propósito do quarto critério, falta “legitimidade” às “regras deduzidas da forma da norma” (Idem, 97-100). Segundo ele, diante dessa situação, resta que a solução do conflito deve ser confiada à liberdade do intérprete; poderíamos quase falar de um autêntico poder discricionário do intérprete, ao qual cabe resolver o conflito segundo a oportunidade, valendo-se de todas as regras hermenêuticas usadas pelos juristas por uma longa e consolidada tradição e não se limitando a aplicar uma só regra (...), [no que] tem a sua frente três possibilidades: 1) eliminar uma; 2) eliminar as duas; 3) conservar as duas [normas] (Idem, 100).

Ele tem em vista o que chama de “dever da coerência”, e uma respectiva “regra de coerência”, que pode ser assim formulada: “Num ordenamento jurídico não devem existir antinomias” (Idem, 110). Essa seria uma regra de relacionamento ou de estrutura do ordenamento jurídico como sistema, e serviria para evitar a violação a duas exigências fundamentais em que se inspiram ou tendem a inspirar-se os ordenamentos jurídicos: a exigência da certeza (que corresponde ao valor da paz ou da ordem), e a exigência da justiça (que corresponde ao valor da igualdade) (Idem, 113).

Pode acontecer ainda de uma norma ser invocada para completar o ordenamento jurídico, admitindo-se que ele não seria completo, como dado, mas completável, como construído (BOBBIO, 1999, 146). Aqui também se vislumbra a atividade interpretativa no âmbito do Direito, a fim de solucionar o problema da lacuna jurídica69. Trata-se de saber se o ordenamento jurídico “tem a propriedade peculiar de qualificar normativamente todos os comportamentos possíveis ou se, eventualmente, podem ocorrer condutas para as quais o ordenamento não oferece qualificação” (FERRAZ JR., 2003, 218). Bobbio lembra que a completude do ordenamento jurídico é um dogma, elaborado e prestigiado pelo positivismo jurídico, desde a “tradição românica medieval”, com o Corpus iuris, passando pela “concepção estatal do Direito, “que faz da produção jurídica um monopólio estatal”, até culminar com as grandes codificações do séc. XIX, e o que chama de “fetichismo da lei” (BOBBIO, 1999, 119-122). Ferraz Jr., por sua vez, fala em termos de “ficção doutrinária de ordem prática, que permite ao jurista enfrentar os problemas de decidibilidade com um máximo de segurança”, reconhecendo-se o ordenamento como de fato lacunoso; ou, pelo

contrário, em termos de “ficção prática, que permite ao juiz criar Direito quando o ordenamento, que, por princípio, é completo, parece-lhe insatisfatório no caso em questão” (FERRAZ JR., 2003, 218-219). De qualquer modo, dogma ou ficção, a completude “é uma condição necessária para o funcionamento do sistema”, o que não quer dizer que tal ideia não é passível de ou é imune a críticas70 (BOBBIO, 1999, 118). Sendo assim, lacunoso por natureza ou não, cumpre saber de que modo o ordenamento jurídico é completo, ou completado. Em resposta àquelas possíveis críticas, surgiram algumas ideias, filiadas ao positivismo jurídico, com o intento de defender a completude do ordenamento: uma delas refere-se a um “espaço jurídico vazio”, esfera das “condutas juridicamente irrelevantes”, tomando por base que a atividade do homem é dividida, do ponto de vista do Direito, em dois compartimentos, “aquele no qual é regulado por normas jurídicas, e que poderemos chamar de espaço jurídico pleno, e aquele no qual é livre, e que poderemos chamar de espaço jurídico vazio”, de tal modo que, “um caso ou está regulado pelo Direito, e então é um caso jurídico ou juridicamente relevante, ou não está regulado pelo Direito, e então pertence àquela esfera de livre desenvolvimento da atividade humana, que é a esfera do juridicamente irrelevante” (Idem, 127-132); uma segunda ideia, que entende haver apenas “espaço jurídico pleno”, distingue dois tipos de normas gerais, uma exclusiva e outra inclusiva, propondo, respectivamente, que os comportamentos não-regulados por uma norma particular “são regulados por uma norma geral exclusiva, isto é, pela regra que exclui (por isso é exclusiva) todos os comportamentos (por isso é geral) que não sejam aqueles previstos pela norma particular”, e que “o caso não-regulamentado será resolvido de maneira idêntica ao que está regulamentado”, sendo que “a aplicação de uma ou outra norma depende do resultado da indagação sobre se o caso não-regulamentado é ou não semelhante ao regulamentado” (Idem, 132-139). Posto assim, o problema da lacuna jurídica não significa ausência de norma que regule determinado caso, mas de critério para decidir que norma aplicar a esse caso, se a geral exclusiva ou a geral inclusiva. Como critério, ou critérios, recorre-se normalmente a dois métodos de integração do Direito, que, nas palavras de Francesco Carnelutti, são chamados de heterointegração e auto-integração; pode-se dizer que esses métodos de integração são métodos hermenêuticos, cuja finalidade é fornecer recursos para completar o ordenamento jurídico por meio da interpretação/aplicação; o intérprete/aplicador pode fazer o seguinte: (a) heterointegrar o ordenamento, recorrendo (a) a ordenamentos diversos, sejam eles positivos, extemporâneos (como o Direito romano, por exemplo) ou contemporâneos (o de outros Estados), ou não-positivos, quando se recorre ao chamado Direito natural, e (b) a fontes distintas da dominante, que são as normas jurídicas, invocando assim os costumes, a jurisprudência e a doutrina; e (b) autointegrar o ordenamento, recorrendo a elementos normativos dele mesmo, por analogia ou com base nos princípios gerais do Direito (Idem, 146-160). Como se pode ver, a falta de uma norma jurídica nunca infirma o ordenamento jurídico como um todo, dado que a partir dele mesmo, por meio de

critérios ou de regras de relacionamento ou de estrutura, é possível encontrar ou produzir uma norma jurídica que preencha a falta daquela, e desse modo o complete. Um quarto problema é o da unicidade ou pluralidade de ordenamentos jurídicos. Admitindo-se a ideia de haver mais de um, importa saber a qual deles dada norma jurídica pertence. Segundo Bobbio, “O ideal do ordenamento jurídico único persistiu no pensamento jurídico ocidental”, primeiro com o “prestígio do Direito romano”, depois com o chamado Direito natural, e por fim com a “ideologia de um único Direito universal, do qual os Direitos particulares não eram outra coisa senão especificações históricas”; a essa ideia de um ordenamento jurídico universal dáse o nome de monismo jurídico, que volta a carga de tempos em tempos, como após a II Guerra Mundial ocorreu com a “vontade de constituir um Direito positivo único”, e um “Estado mundial único”; a ela se contrapõe o pluralismo jurídico, abordado sobretudo no âmbito do Direito internacional público, em duas vertentes: historicismo jurídico, que “afirma a nacionalidade dos Direitos que emanam direta ou indiretamente da consciência popular”, e de acordo com a qual “Há não apenas um, mas muitos ordenamentos jurídicos, porque há muitas nações, que tendem a exprimir cada uma num ordenamento unitário (o ordenamento estatal) a sua personalidade”; e a institucional, para a qual “há ordenamentos jurídicos de muitos e variados tipos”, e cuja “tese principal é a de que existe um ordenamento jurídico onde existe uma instituição, ou seja, um grupo social organizado”, dando ao problema outra dimensão, por considerar relacionamentos não apenas entre ordenamentos estatais, mas também entre estes e ordenamentos não-estatais, acima do Estado (“como o ordenamento internacional e, segundo algumas doutrinas, o da Igreja Católica”), abaixo do Estado (“como os ordenamentos propriamente sociais”), ao lado do Estado (“como o da Igreja Católica, segundo outras concepções, ou, também, o internacional, segundo a concepção chamada ‘dualística’”) e contra o Estado (“como as associações de malandros, as seitas secretas, etc.”) (BOBBIO, 1999, 161-165). Quanto aos “tipos de relação entre ordenamentos”, Bobbio diz o seguinte: (a) quanto ao grau de validade que eles têm um em relação ao outro, os relacionamentos podem ser de coordenação (“aqueles que têm lugar entre Estados soberanos e dão origem àquele particular regime jurídico (...) no qual as regras de coexistência são o produto de uma autolimitação recíproca”) ou de subordinação (“os verificados entre o ordenamento estatal e os ordenamentos sociais (...), que têm estatutos próprios, cuja validade deriva do reconhecimento do Estado”, a exemplo das associações, sindicatos, partidos, igrejas etc.); (b) quanto à extensão dos âmbitos de validade, as relações podem ser de exclusão total (quando “dois ordenamentos são delimitados de maneira a não se sobreporem em nenhuma das suas partes”), de inclusão total (quando “um dos dois ordenamentos tem um âmbito de validade compreendido totalmente no do outro”), e de exclusão ou inclusão parcial (quando “dois ordenamentos têm uma parte em comum e uma parte não-comum”); e (c) quanto à validade atribuída às regras de outros ordenamentos, situação em que pode ocorrer

indiferença (por exemplo, quando “um ordenamento considera lícito [no sentido de facultado] aquilo que num outro ordenamento é obrigatório”), recusa (quando “um ordenamento considera proibido aquilo que num outro ordenamento é obrigatório”, vice-versa), ou absorção (por reenvio, quando “um ordenamento deixa de regular uma dada matéria e acolhe a regulamentação estabelecida por fontes normativas pertencentes a outro ordenamento”, ou por recepção, quando “um ordenamento incorpora no próprio sistema a disciplina normativa de uma dada matéria assim como foi estabelecida num outro ordenamento”) (Idem, 165-169). Bobbio diz também que tais relações são espaciais, materiais e temporais, destacando essas três situações diferentes: 1) dois ordenamentos têm em comum o âmbito espacial e material, mas não o temporal. Trata-se de caso de dois ordenamentos estatais que se sucedem no tempo no mesmo território; 2) dois ordenamentos têm em comum o âmbito temporal e o material, mas não o espacial. Trata-se do relacionamento entre dois Estados contemporâneos, que vigem ao mesmo tempo e, grosso modo, regulam as mesmas matérias, mas em dois territórios diferentes; 3) dois ordenamentos têm em comum o âmbito temporal e espacial, mas não o material. Trata-se do relacionamento estatal e o ordenamento da Igreja (com particular atenção à Igrejas cristãs, sobretudo à Igreja Católica): Estado e Igreja estendem sua jurisdição no mesmo território e ao mesmo tempo, mas as matérias reguladas por um e por outro são diferentes (Idem, 174).

Transportando essa análise para um ordenamento jurídico específico, Renata Benedet apresenta algumas especificações dentro do ordenamento jurídico brasileiro, as quais convém mencionar aqui, pela importância do tema para a compreensão que se tentará a seguir, no capítulo 2, no tocante aos conceitos validade e eficácia jurídica, e no capítulo 3, no tocante ao conhecimento da norma objeto de estudo específico deste trabalho. Seguindo sua exposição, tem-se o seguinte: (a) diferentemente do que ocorreu na formação dos Estados Unidos da América, em que a federação foi realizada por vontade política das 13 ex-colônias britânicas em 1776, e não pelo ente político central que é a União, lá União federada, no Brasil a União é federadora, porque de sua vontade política, quando da Proclamação da República em 1889, partiu a federação dos Estados-membros, e porque aqui ela é um ente político central centralizador; (b) por força dos arts. 1º e 18 da CF71, a federação brasileira, ou a República Federativa do Brasil, é composta por quatro entes políticos autônomos, que são a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios; (c) “pode-se afirmar que [no Brasil] a autonomia da União, dos Estados[-membros], do Distrito Federal e dos Municípios pressupõe uma tríplice capacidade: auto-organização e normatização própria, autogoverno e auto-administração”; (d) no que se refere à auto-organização, na CF72 a repartição das competências normativas foi feita tanto horizontalmente (quando são elencadas as competências do ente central, deixando-se aos locais as remanescentes) quanto verticalmente (quando ao ente central “cabe a produção de normas gerais”, e aos locais, “a possibilidade de individualizá-la”, atendendo a suas necessidades e peculiaridades); (e) na federação brasileira há competências exclusivas (nãodelegáveis), privativas (delegáveis), comuns (pelas quais “todos os entes federados possuem a mesma competência simultaneamente”) e concorrentes (“que não pressupõe simultaneidade, [que]

não está no plano horizontal, paralelo”)73; (f) O Poder Legislativo da União é central, enquanto o dos outros entes políticos é local, o que quer dizer que o Congresso Nacional produz normas gerais, enquanto as Assembléias Legislativas, a Câmara Distrital e as Câmaras Municipais produzem normas parciais; (g) o Congresso Nacional produz normas gerais nacionais (com “força vinculante” em todo o território do Estado brasileiro, aplicando-se indistintamente no territórios de todos os entes políticos) e normas parciais federais (válidas apenas para a União, como pessoa jurídica de Direito público interno, com a finalidade de se auto-organizar); (h) não há hierarquia entre os ordenamentos jurídicos parciais; (i) há hierarquia, em ordem decrescente, do ordenamento jurídico geral (CF e normas gerais nacionais) para os parciais (Constituições Estaduais, Leis Orgânicas Distrital e Municipais e demais normas jurídicas parciais) (BENEDET, 2007: 302-304).

Referências Biblográficas

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Currículo: lattes.cnpq.br/8900052310138642. E-mail: [email protected]. Nesse sentido, pode-se dizer que o normativismo da “teoria pura do Direito”, de Hans Kelsen, está superado. Como diz Tércio Sampaio Ferraz Jr. (2003, 99), “Por seu caráter restritivo, a teoria de Kelsen recebe a objeção de empobrecer o universo jurídico”. Já Miguel Reale (1981, 93) inverte o foco, propondo que o objeto da Ciência do Direito é “a experiência social na medida em que esta é disciplinada por certos esquemas ou modelos de organização e de conduta que denominamos normas ou regras jurídicas”. 3 Obviamente esse ponto de vista é passível de objeção. Com efeito, não é adequado “ignorar o problema dos conteúdos, isto é, do relato normativo” (FERRAZ JR., 2003, 110). Atendo-se aos limites deste trabalho, cumpre dizer que, na medida em que se adota o ponto de vista formal, admite-se que “não é qualquer conteúdo que pode constituir o relato das chamadas normas jurídicas, mas apenas os que podem ser generalizados socialmente, isto é, que manifestam núcleos significativos vigentes numa sociedade, nomeadamente por força da ideologia prevalecente e, com base nela, dos valores, dos papéis sociais e das pessoas com ela conformes” (FERRAZ JR., 2003, 113). 4 Ver Norberto Bobbio (2007). 5 Seguem-se as lições de Bobbio (2003, 75-89), que, por sua vez, faz referência especial a J. M. Copi (Introduction to Logic, 1953). 6 As noções de ser e dever-ser valem para todos os tipos de normas éticas. Como diz Kelsen (2005, 51), “A afirmação de que um indivíduo ‘deve’ se conduzir de certo modo significa que essa conduta está prescrita por uma norma – ela pode ser uma norma moral, jurídica ou de qualquer outro tipo [como as normas sociais, de convenção social ou 2

etiqueta]”. A diferença entre essas noções é assim resumida: “A norma é a expressão da ideia de que algo deve ocorrer e, em especial, de que um indivíduo deve se conduzir de certa maneira. Nada é dito sobre o comportamento efetivo do indivíduo em questão” (KELSEN, 2005, 51). 7 Aqui se faz menção à ideia de ordenamento jurídico, mais bem explorada no item 4. 8 Kelsen (2005, 49) adverte que qualquer referência à vontade do Estado, por intermédio de normas jurídicas, “deve ser entendida de modo figurado”, pois se baseia na seguinte analogia: uma norma jurídica, ao disciplinar uma conduta, faz o mesmo que um indivíduo que “quer que outro se comporte de tal e tal modo, e expressa sua vontade na forma de um comando”; ocorre, porém, que a norma jurídica “é, por assim dizer, um comando despsicologizado, um comando que não implica uma ‘vontade’ no sentido psicológico do termo”, pois a conduta disciplinada por uma norma jurídica “é ‘exigida’ sem que nenhum ser humano tenha de ‘querê-la’ num sentido psicológico”. A respeito da ideia da norma jurídica como comando ou imperativo despsicologizado, ver também Ferraz Jr. (2003, 117). 9 Ver o desdobramento dessa ideia no item 3. 10 Art. 121, caput, do CP (BRASIL, 2008b). 11 Valendo-se de uma distinção extrema, Kelsen (2005, 52) diz que se deve “enfatizar que as regras jurídicas diferem fundamentalmente de outras regras, e, em particular, das apresentadas como leis da natureza (na acepção da Física) (...). As leis da natureza são regras que descrevem como os eventos naturais efetivamente ocorrem, ou seja, quais são suas causas. As regras de Direito referem-se apenas à conduta humana; elas especificam como o homem deve se conduzir e não dizem nada sobre o comportamento efetivo do homem e suas causas”. Sendo assim, tal distinção delimita o âmbito conceitual das proposições prescritivas tidas como normas jurídicas, admitindo o que nele pode constar, por identificação, e impedindo ou excluindo o que a ele não pode pertencer, por diferenciação. Acrescente-se, entretanto, que esse critério não é satisfatório para distinguir as normas jurídicas das demais normas éticas (morais e sociais ou de etiqueta), já que todas elas se destinam a prescrever como o comportamento humano deve ser. 12 Aqui se deixa de analisar, por exemplo, as classificações propostas pela doutrina constitucionalista, por se valerem de critério específico, qual seja, a eficácia jurídica das normas constitucionais, classificações estas que dizem respeito mais à teoria da eficácia jurídica do que à teoria das normas jurídicas. 13 Com pequenas variações, Kelsen (2005, 52-54) apresenta essa classificação com a mesma terminologia. 14 No ordenamento jurídico brasileiro, exemplo de norma com destinatário universal é a que resulta dos arts. 1º e 2º, initio, do CC: “Art. 1º Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”, “Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”, isto é, qualquer pessoa, desde que nasça com vida, não uma pessoa específica; de norma com destinatário singular, a que resulta do art. 22 do CC: “Art. 22. Desaparecendo uma pessoa (...)”, não qualquer pessoa, mas aquela que desapareça; de norma com ação universal, a que resulta do art. 186 do CC: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária (...)”, ou seja, qualquer ação ou omissão voluntária, não esta ou aquela; e de norma com ação singular, a que resulta do art. 243 do CC: “Art. 243. A obrigação de dar coisa certa (...)”, não qualquer obrigação, mas a de dar coisa certa (BRASIL, 2008e). 15 Diz-se “reintroduz” porque Bobbio (2003, 180) alerta que a “velha doutrina” foi que introduziu as noções de generalidade e abstração das normas jurídicas, mas de modo impreciso (“porque não esclarece com frequência se os dois termos, ‘geral’ e ‘abstrato’, são sinônimos” ou “como tendo dois significados diferentes”) e insuficiente (pois, “colocando em evidência os requisitos da generalidade e da abstração, faz crer que não haja normas jurídicas individuais e concretas”). 16 Essa terceira classificação coincide com outra, descrita por Kelsen, que chama as normas categóricas de “incondicionais” e as normas hipotéticas de “condicionais” (KELSEN, 2005, 54). A diferença, porém, é que para Kelsen toda norma jurídica, individualmente considerada, ou considerado o ordenamento jurídico no qual está inserta, inclui, explícita ou implicitamente, uma sanção, a que chamou, numa última versão de sua “teoria pura do Direito”, de “norma secundária” (Idem, 71-72). 17 Lembre-se o que se disse no item 1 acerca da natureza linguística das normas jurídicas, que seriam proposições, observando, como foi dito, que uma proposição é um conjunto de palavras com unidade semântica, expressas numa dada forma linguística, que se chama enunciado. Ou seja, a norma jurídica é um conjunto de signos linguísticos, ou melhor, ela mesma é um signo linguístico. 18 Em outra terminologia, essas normas são chamadas, respectivamente, de normas de conduta e normas de organização ou competência, como diz Reale (1981, 97-98). A propósito, ver essa mesma classificação mais adiante. Aqui cabe observar certa incoerência: com efeito, Ferraz Jr. diz que, segundo o critério sintático, consideram-se “normas em relação a normas”, enquanto segundo o critério semântico, consideram-se “normas em relação ao objeto normado” (FERRAZ JR., 2003, 123); incoerentemente, na classificação das normas pela relevância, alegadamente de acordo com o critério sintático, as normas são consideradas de acordo com o objeto normado (Idem, 124). 19 Como afirma Ferraz Jr. (2003, 125), é aqui que aparece “o problema da estrutura do ordenamento jurídico como um sistema hierárquico e unitário”, abrindo-se a discussão “se, em última instância, todo o conjunto das normas remontaria a uma última e primeira norma-origem”, aquela que Kelsen (2005, 161-163 e 168-178) chama de “norma fundamental” (Grundnorm). 20 Ferraz Jr. lembra, como concepção a superar, que, para Kelsen, normas autônomas são as que “prescrevem uma sanção a um comportamento estatuído”, enquanto as dependentes estatuem “o comportamento e por isso se liga a outra, que lhe confere a sanção” (FERRAZ JR., 2003, 125). Nesse sentido, “uma antiga classificação que remonta ao Direito romano”: “lex perfecta, que cominava a invalidade dos atos praticados em violação do mandamento, lex imperfecta, que

era destituída de sanção, lex minus, quam perfecta, que estabelecia sanção para os violadores, cujos atos, porém, eram válidos, e lex maius quam perfecta, que simultaneamente invalidava o ato e estabelecia uma sanção, sendo esta última noção de origem medieval” (Idem, 125-126). 21 BRASIL, 2008a. 22 BRASIL, 2008a. Aqui vale fazer referência a uma importante observação de Ferraz Jr (2003, 127): “Uma conhecida regra hermenêutica exige que a excepcionalidade seja interpretada restritivamente, quando se refere a um direito genericamente garantido”. 23 Essa classificação envolve o seguinte problema, a ser resolvido pela “dogmática analítica”, como diz Ferraz Jr. (2003, 127-128): usando-se a expressão normas gerais para designar as normas nacionais, há de se especificar, por meio de interpretação, se o termo está sendo empregado “no sentido do destinatário, da facti species ou do espaço de incidência”. Outro problema é o da caracterização, num Estado de regime federativo (Estado federado ou federador), de uma norma geral quanto ao espaço de incidência como norma nacional ou norma federal; a propósito, Benedet (2003, 301) oferece a seguinte explicação: as normas nacionais são válidas para a “União [na qualidade de ente federativo (federado ou federador), isto é, central] como um conjunto, agregando os outros entes políticos autônomos [estaduais, distritais, territoriais ou municipais]”, enquanto as normas federais são válidas “apenas e exclusivamente” para a “União como pessoa jurídica de Direito Público interno e autônomo, equiparada às demais”. 24 Diz-se imperativas stricto sensu porque “há quem entenda que toda norma [lato sensu] é imperativa” (FERRAZ JR., 2003, 129). 25 No item 1, a ideia de funtor foi expressa quando se falou em operadores linguísticos (FERRAZ JR., 2003, 115); outra expressão que a designa é modais deônticos (de deontos, ou dever-ser), como diz Reale (1986, 97ss.). Funtores, operadores linguísticos ou modais deônticos são o “é proibido”, “é permitido”, “é obrigatório” constantes das normas jurídicas. 26 A “regra geral de liberdade” pode ser expressa deste modo: “se uma conduta não está juridicamente proibida ou não é juridicamente obrigatória, então é permitida” (FERRAZ JR., 2003, 131). Convém anotar que essa regra só é aplicável no caso de particulares (o cidadão, em geral), não no caso do agente público, no exercício de sua função pública; para este, a regra se inverte, podendo ser assim enunciada: “se uma conduta não está juridicamente permitida, ainda que não seja juridicamente obrigatória, então é proibida”, de acordo com o princípio da legalidade na administração pública, como diz Hely Lopes Meirelles: “Na administração pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na administração pública só é permitido fazer o que a lei autoriza” (apud MELLO, 2005, 67). 27 O exemplo que Ferraz Jr. oferece é o do Antigo Regime na França, antes da Revolução de 1789; mas serve também o do Império Bonapartista, sobretudo quando da adoção do Código Civil de Napoleão Bonaparte, em 1804. Em ambos os exemplos, a ideologia dominante é refratária a qualquer ideia de interpretação que não represente uma exegese literal do Direito positivo. Parafraseando uma parêmia antiga, diz-se que todo ímpeto revolucionário é liberal, até tomar o poder, e se tornar tão conservador quanto o regime deposto, ou ainda mais. 28 Refere-se aqui ao Cours de Linguistique Générale de Ferdinand de Saussure, lido e relido, entre outros, por Rudolf Carnap, que chama o significante de “indicador” e o significado de “indicado” (apud Koehler, 2007, 102). 29 Art. 66 da CLT (BRASIL, 2008c). 30 Em outro momento, neste mesmo item, o que aqui se chama concretização será chamado aplicação da norma jurídica (ver Grau, 2005, 71-75). 31 Eros Roberto Grau adverte que não se devem confundir os princípios jurídicos e os chamados princípios gerais do Direito, que “pertencem à linguagem dos juristas” e são “proposições descritiva (e não normativa) através das quais os juristas referem, de maneira sintética, o conteúdo e as grandes tendências do Direito positivo” (GRAU, 2005, 138-139). Exemplo de princípio geral do Direito é o chamado “princípio de efetividade” (KELSEN, 2003, 173-174). 32 Falando em “reflexão hermenêutica”, em contraposição aos conhecidos “métodos tradicionais de interpretação”, Grau enumera o que chama de “cânones ou pautas para a interpretação”: “(i) a[o] primeira[o] relacionada[o] à interpretação do Direito no seu todo; (ii) a[o] segunda[o], à finalidade do Direito; (iii) a[o] terceira[o], aos princípios” (GRAU, 2003, 39). 33 Nesse caso, “As regras que dão concreção ao princípio desprezado, embora permaneçam plenas de validade, perdem a eficácia – isto é, a efetividade – em relação à situação diante da qual o conflito entre princípios manifestou-se” (GRAU, 2003, 49). Grau adverte que “inexiste no sistema qualquer regra ou princípio a orientar o intérprete a propósito de qual dos princípios, no conflito entre eles estabelecido, deve ser privilegiado, qual deve ser desprezado. Isso somente se pode saber no contexto do caso, de cada caso, no âmbito do qual se verifique o conflito” (Idem, ibidem). 34 Para uma discussão mais aprofundada, ver Grau (2005, 136-199) 35 No tocante especificamente à Hermenêutica Constitucional, Peter Häberle propõe a tese de que, “no processo de interpretação constitucional, estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição”; diz também que “Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade”; daí seu conceito de interpretação constitucional, assim formulado: “quem vive a norma acaba por interpretá-la ou pelo menos por co-interpretá-la”, ou, em outras palavras, que “Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma, e que vive este contexto, é, indireta ou até mesmo diretamente, um intérprete

dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico” (HÄBERLE, 2002, 13-15). 36 Rever item 2, sobretudo certos tipos de normas jurídicas lembrados por Ferraz Jr., (2003, 124-125) que correspondem aos propostos por Reale (1981, 93-116). 37 A propósito da ideia de delegação normativa, ver Kelsen (2005, 165), que a aponta como prova de que o ordenamento jurídico é uma espécie de “sistema dinâmico de normas”. 38 Em outros termos, mas de maneira semelhante, a distinção que Kelsen faz entre interpretação autêntica e interpretação não-autênica, distinção essa que será analisada mais adiante. 39 Afirmando que a linguagem jurídica é “o que mais contribui para transformar as normas em terreno propício ao ataque ideológico”, Frederico Koehler assim resume os problemas inerentes a esse “contexto”: “Quando o significante não tem um significado bem definido, ocorre a chamada vaguidade; quando o significante possui vários significados, ocorre o caso de ambiguidade” (KOEHLER, 2007, 102). 40 Ver também Ferraz Jr. (2003, 261-263). 41 Vale ressaltar que esse procedimento não é tão simples quanto a conclusão de Grau sugere. Ferraz Jr. (2003, 310-347) demonstra que o “problema da decidibilidade” é bastante amplo. Reale (1981, 273-289) diz ainda que, além de normas e de fatos, a interpretação/aplicação do Direito leva em conta os “valores sociais”. Diante dessa ordem de problemas, Kelsen (apud KOEHLER, 2007, 99-101) propugna pela neutralidade axiológica do intérprete do Direito, ao menos na interpretação não-autêntica, “ato meramente cognoscitivo”, e, num primeiro momento, também na autêntica, pois que nesta há um momento, segundo ele inafastável, em que o intérprete/aplicador do Direito, num “ato de vontade”, “efetua uma escolha entre as possibilidades reveladas através da mesma interpretação cognoscitiva” (KOEHLER, 2007, 100). 42 Mais adiante será abordado um tema relativo ao assunto da historicidade do Direito, que merece atenção por sua recorrência na doutrina, e também porque ajuda a esclarecer se a interpretação no âmbito do Direito é feita com o fito de saber qual a vontade do legislador, ou se há, mais objetivamente, uma vontade da lei. 43 Aqui se faz referência à metáfora utilizada por Kelsen, para quem “o Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro desse quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível” (apud KOEHLER, 2007, 100). 44 Essa formulação se coaduna com uma das críticas que Frederico Koehler tece à rigidez da ideia de Kelsen, ao dizer que “A moldura interpretativa (ou o significado da norma) é mutável e é dotada de um certo grau de flexibilidade” (KOEHLER, 2007, 105). 45 Especificando essa ideia, tem-se o seguinte: (a) toda norma jurídica fornece uma moldura interpretativa ao intérprete; (b) como signo linguístico, ela mesma é essa moldura; (c) in abstracto, tal como elaborada, é certo conteúdo (significado) num dado texto normativo (significante); (d) in concreto, tal como reelaborada, em sua concretização e atualização, é limitada em parte pelo texto normativo (como significante), em parte pelos fatos do caso concreto (como significado). A esse respeito, Grau afirma também que “Interpretação e aplicação não se realizam autonomamente”, e que “Interpretação e aplicação consubstanciam um processo unitário”, lembrando aqui o que diz Hans-Georg Gadamer (GRAU, 2005, 86). Esquivando-se de possíveis críticas a essa ideia, a qual não reconheceria outra interpretação que não a autêntica, Grau propõe “a distinção entre interpretação in abstracto e interpretação in concreto”: enquanto a primeira se refere ao texto normativo, a segunda se refere aos fatos (dir-se-ia: ao texto normativo e aos fatos), chamando-se aquela de interpretação e esta de aplicação (dir-se-ia: interpretação/aplicação) (Idem, 88). 46 Kelsen afirma que a interpretação não é um problema da teoria do Direito, portanto, não é um problema científico, mas um problema de “política jurídica” (apud GRAU, 2005, 99). 47 Trata-se da ideia do “uso de hipóteses na pesquisa jurídica”, tal como proposta por Prado (2007), seguindo o pensamento de Karl Popper. 48 Aliás, essa é uma das críticas que Koehler faz à ideia de interpretação de Kelsen, argumentando que em todo ato de interpretação no âmbito do Direito o intérprete “interpreta a norma de acordo com sua ideologia e suas crenças. É importante perceber que mesmo que não faça isso intencionalmente, o intérprete sempre usa suas ideias quando julga [interpreta]. Até no caso do intérprete ser partidário da imparcialidade do aplicador do Direito, ele já estará aí usando de sua própria ideologia para julgar [interpretar]” (KOEHLER, 2007, 105). 49 A esse respeito, mesmo criticando a pretensa neutralidade axiológica do intérprete, de que fala Kelsen, Frederico Koehler observa que não é prudente “acreditar que não há limites à influência da vontade do intérprete”, e conclui: “a moldura interpretativa tem um grau médio de fluidez, que permite ao Direito uma evolução permanente no significado (real sentido da lei) das normas, sem precisar ocorrer a modificação a todo o instante do significante (por exemplo: letra da lei), observando-se sempre os limites impostos pelo ordenamento jurídico” (KOEHLER, 2007, 105). 50 Em outras palavras, trata-se do problema do poder de influência da doutrina: na produção do discurso jurídico (stricto sensu), fazendo interpretação não-autêntica, a doutrina influencia o intérprete que, ao produzir o discurso do Direito, faz interpretação autêntica. Assim, pois, pode-se observar de que maneira a ideologia jurídica afeta a ideologia do Direito. Ferraz Jr. (2003, 310-347) chama essa doutrina de “dogmática da decisão ou teoria dogmática da argumentação jurídica”, abordando, entre outros temas, o que chama de “programação da decisão”, noção que vem a calhar ao quanto discutido neste item. 51 A propósito, ver ideia da “interpretação verdadeira” (FERRAZ JR., 2003, 283-284). 52 Ver também Ferraz Jr. (2003, 264-268).

53

Um uso particular dessa diferenciação é feito por J. J. Gomes Canotilho, a respeito das normas e interpretação constitucionais. Parafraseando-o, Grau diz: a ideologia estática será “adotada por aqueles que optarem por concepções ideológicas e políticas substancialmente diferentes das mensagens ideológicas consagradas na Constituição”, e assim vulneram, “direta ou indiretamente, a estrutura normativa constitucional”; já a ideologia dinâmica é “adotada por aqueles que guardam sintonia com os princípios fundamentais atinentes à conformação política e jurídica da sociedade, que a Constituição contempla”, num exercício de “prudente positivismo, indispensável à manutenção da obrigatoriedade normativa do texto constitucional” (GRAU, 2005, 119). Condenando a primeira e valorizando a segunda, J. J. Gomes Canotilho diz “que uma postura unilateralmente positivista poderá conduzir a um indesejável divórcio entre norma e realidade, ou seja, entre o estatuto jurídico que a Constituição é e o político que a Constituição deve normativamente captar” (apud GRAU, 2005, 119). 54 Na nota 14 acima, essa ideia foi apresentada como sendo a norma jurídica um comando ou imperativo despsicologizado. 55 Ferraz Jr., por seu turno, faz várias considerações acerca da interpretação no âmbito do Direito, chamando-as de “observações zetéticas da hermenêutica”, e assim falando numa “função racionalizadora da hermenêutica”; ele se vale de conceitos como aspectos “onomasiológico” e “semasiológico” da palavra, “função simbólica da língua”, “interpretação como tradução”, “interpretação como exercício do poder de violência simbólica”, “noção de uso competente da língua”, “língua hermenêutica”, “legislador racional”, “interpretação verdadeira”, “interpretação divergente” etc. (FERRAZ JR., 2003, 255-285). Tais conceitos sustentam o entendimento de que o problema do Direito é o “problema da decidibilidade de conflitos”; por conduzir inevitavelmente a um aprofundamento na análise desse entendimento, aqui não convém detalhá-los, sob pena de se afastar dos objetivos deste trabalho. 56 Segundo Ferraz Jr. (2003, 263), vale lembrar que, para Kelsen, “é possível denunciar, de um ângulo filosófico (zetético), os limites da hermenêutica, mas não é possível fundar uma teoria dogmática da interpretação”. 57 Ferraz Jr. (2003, 288) afirma ainda que, com base no princípio lógico da identidade, apenas se mostra o problema, sem resolvê-lo, como na interpretação gramatical; esse outro modo de interpretar, a interpretação lógica, todavia, representa avanço em relação ao anterior, pois fornece “regras de interpretação lógica”, ou “fórmulas quase-lógicas como ‘o legislador nunca é redundante’,’se duas expressões estão usadas em sentidos diversos, é porque uma deve disciplinar a generalidade, outra abre uma exceção, ou ‘deve-se ater aos diferentes contextos em que a expressão ocorre e classificá-los conforme a sua especificidade’ etc.”; fornece ademais alguns “procedimentos retóricos”, que representam: (a) uma “atitude formal”, como o “princípio da prevalência do especial sobre o geral”, “o princípio de que a lei não tem expressões supérfluas”, “o princípio de que, se o legislador não distingue, não cabe ao intérprete distinguir” etc.; (b) uma “atitude prática”, “como o procedimento das classificações e reclassificações, definições e redefinições” etc.; e (c) uma “atitude diplomática”, a qual “exige certa inventividade do intérprete, como é a proposta de ficções”. 58 Ver mais detalhes sobre a ideia ou dogma da unidade do ordenamento jurídico no item 4. 59 Ferraz Jr. (2003, 297-298) fala ainda da distinção entre interpretação extensiva e interpretação por analogia (a esse respeito, ver item 4), afirmando que a primeira “se limita a incluir no conteúdo da norma um sentido que já estava lá, [o qual] apenas não havia sido explicitado pelo legislador”, enquanto na segunda “o intérprete toma de uma norma e aplica-a [a] um caso para o qual não havia preceito nenhum, pressupondo uma semelhança entre os casos [para o qual há e para o qual não há norma específica]”. 60 Analisando a teoria da norma jurídica, Bobbio (2003, 37) chega a afirmar que “a teoria geral do Direito veio evoluindo cada vez mais da teoria das normas jurídicas à teoria do ordenamento jurídico, e os problemas que vêm se apresentando aos teóricos do Direito são cada vez mais conexos à formação, à coordenação e à integração de um sistema normativo”, para além de considerar a norma isoladamente. 61 A propósito dos elementos (repertório), e consequentemente das relações entre eles (estrutura), do ordenamento jurídico como sistema, Flávia Piovesan diz o seguinte, o que segundo ela vale também para o ordenamento jurídico brasileiro, por força do disposto na CF: “Adotando-se a concepção de Ronald Dworkin, acredita-se que o ordenamento jurídico é um sistema no qual, ao lado das normas legais, existem princípios que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos. Estes princípios constituem o suporte axiológico que confere coerência interna e estrutura harmônica a todo o sistema jurídico. O sistema jurídico define-se, pois, como uma ordem axiológica ou teleológica de princípios jurídicos que apresentam verdadeira função ordenadora, na medida em que salvaguardam valores fundamentais” (PIOVESAN, 2003, 42-43). 62 Há ainda um terceiro exemplo, baseado na distinção entre lei geral e lei especial: “o da lex specialis (a norma especial revoga a geral no que esta dispõe especificamente)” (FERRAZ JR., 2003, 177). 63 É o caso de Kelsen (2005, 161-180). 64 É o caso de Reale (1981, 183-196). 65 A propósito do caráter dinâmico do ordenamento jurídico, assim se manifesta Kelsen (2005, 165 e 166): “O sistema de normas que chamamos de ordem jurídica é um sistema do tipo dinâmico. As normas jurídicas não são válidas por terem, elas próprias, ou a norma básica, um conteúdo cuja força de obrigatoriedade seja auto-evidente. Elas não são válidas por causa de um atrativo que lhes é inerente. (...) Uma norma é uma norma jurídica válida em virtude de ter sido criada segundo uma regra definida, e apenas em virtude disso. A norma fundamental de uma ordem jurídica é a regra postulada como definitiva, de acordo com a qual as normas dessa ordem são estabelecidas e anuladas, de acordo com a

qual elas recebem e perdem sua validade”; diz também que, num “sistema de caráter dinâmico”, as “várias normas não podem ser obtidas por meio de qualquer operação intelectual. (...). As normas de um sistema dinâmico têm de ser criadas através de atos de vontade pelos indivíduos que foram autorizados a criar normas por alguma norma superior. (...). Uma norma faz parte de um sistema dinâmico se houver sido criada de uma maneira que é – em última análise – determinada pela norma fundamental”. Com base nessas passagens, depreende-se que Kelsen identifica o caráter dinâmico do ordenamento jurídico com a produção normativa, regressível até uma norma fundamental, hierarquicamente superior a todas as outras, e que por essa razão lhes confere validade jurídica. 66 Nas palavras de Kelsen, “A norma fundamental apenas estabelece certa autoridade, a qual, por sua vez, tende a conferir poder de criar normas a outras autoridades. (...). A norma fundamental de um sistema dinâmico é a regra básica de acordo com a qual devem ser criadas as normas do sistema”; “Ela qualifica certo evento como o evento inicial na criação das várias normas jurídicas. É o ponto de partida de um processo criador de normas e, desse modo, possui um caráter inteiramente dinâmico”; é “o postulado final”, que diz “que devemos nos conduzir como o indivíduo ou os indivíduos que estabeleceram a primeira constituição prescreveram” (KELSEN, 2005, 165, 167 e 168). Muito simplificadamente, aponta-se que, em termos filosóficos, também nesse ponto o pensamento de Kelsen parece ser tributário do pensamento de Immanuel Kant, pois que confere à norma fundamental do ordenamento jurídico um conteúdo que, ampliado o significado da moral individual kantiana para o de uma ordem social juridicizada, assemelhase ao imperativo categórico, expresso neste postulado: “age só, segundo uma máxima tal, que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei universal” (KANT apud BITTAR, 2007, 347). Reale chega mesmo a falar num fundamento, segundo “postulado da razão prática jurídica, assim enunciado: “o ordenamento jurídico vale, no seu todo, como uma exigência da razão, em função da experiência histórica” (REALE, 1981, 195-196). 67 Ver Bobbio (1999, 58-70). 68 Ver também Kelsen (2005, 222-233). 69 Ver também Kelsen (2005, 212-215). 70 Bobbio (1999, 122-127) apresenta, em pormenores, as críticas que as escolas do Direito livre e da livre pesquisa científica tecem ao dogma da completude. 71 BRASIL, 2008a. 72 Arts. 18 a 43 (BRASIL, 2008a). 73 Renata Benedet (2007, 306) faz referência aos §§ 1º a 4º do art. 24 da CF (BRASIL, 2008a), assim resumindo as “regras da concorrência legislativa” no Brasil: a) à União cabe estabelecer regras gerais; b) aos Estados e Distrito Federal cabe a competência complementar atendendo aos interesses regionais; c) se inexistir [sic] normas gerais da União, os Estados e Distrito Federal exercerão a competência legislativa plena (aqui caba a palavra ‘suplementar’, no sentido de suprir, preencher a deficiência), atendendo aos interesses regionais; d) se, posteriormente, a União produzir normas gerais sobre as matérias das quais os Estados ou Distrito Federal legislaram plenamente, a eficácia da lei estadual ou distrital, no que for contrário [sic] à lei federal superveniente, ficará suspensa”. Ver também José Afonso da Silva (2002, 471-472 e 589-598).

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