CONTRIBUIÇÕES DOS MOVIMENTOS SOCIAIS PARA A DESPRIVATIZAÇÃO DA ÉTICA NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA POLÍTICA

June 8, 2017 | Autor: A. Soares da Silva | Categoria: Social Movements, Political Psychology
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2 CONTRIBUIÇÕES DOS MOVIMENTOS SOCIAIS PARA A DESPRIVATIZAÇÃO DA ÉTICA NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA POLÍTICA

Alessandro Soares da Silva

Introdução Ao iniciarmos este texto, nos deparamos com os limites que a tensão espaço–desejo nos impõe: queremos dizer tantas coisas acerca do tema, mas o espaço nos limita. Tratar de ética é algo desafiador, sobretudo quando a palavra “ética” é logo associada a outra: “moral”. Em nosso dia-a-dia, não é comum fazermos distinção entre ética e moral. Geralmente, usamos as duas palavras como sinônimas, ao passo que, como veremos, os estudiosos da questão fazem distinções entre elas. Mas, ainda que os dois termos não sejam sinônimos, não há como negar que suas significações estão estreitamente relacionadas, que seus sentido se mesclam no cotidiano de modo a se perderem de vista sentidos que são imprescindíveis para a produção de pesquisas que não estejam comprometidas nem ética nem moralmente, visto que entendemos serem esses termos não só intimamente ligados, mas inúmeras vezes sobrepostos.

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Na tradição grega, encontramos o termo ethos, que quer dizer o modo de ser, o caráter, e, na tradição latina, mos moris que significa costume, moral. Esta expressão foi amplamente utilizada como uma tradução adequada para ethos. Sendo assim, pode-se dizer que a civilização latina herdou do debate filosófico grego o conceito de ética e preservou seu sentido de reflexão teórica. Um elemento importante que deriva desse processo reflexivo é o fato de que tanto ethos (caráter) como mos moris (costume) constituem termos que designam e referem-se ao comportamento propriamente humano, o qual não é natural, mas resultado de uma produção social. Certamente, o homem não nasce com ele como se fosse um instinto. Tal comportamento é, então, adquirido ou conquistado por hábito e diz respeito a uma realidade humana que é construída histórica e socialmente a partir das relações coletivas nas quais homens e mulheres se encontram inseridos. Conceitualmente, podemos dizer que a moral (mos moris) é definida como o conjunto de normas, princípios, preceitos, costumes, valores que norteiam o comportamento do indivíduo no seu grupo social. A moral é normativa e refere-se principalmente aos hábitos, aos costumes, ao modo ou maneira de viver. Mediante padrões morais, podese qualificar certo hábito ou costume, certo modo de agir ou de viver, como virtuoso ou vicioso. Essa valoração que estabelece o que é moral ou imoral, aceitável ou inaceitável, passa pela atribuição de valores que transitam entre o bem e o mal, o bom e o ruim. A Ética, por sua vez, é a teoria, o conhecimento ou a ciência do comportamento moral. Pretende explicar, compreender, justificar e criticar a moral ou as morais existentes em uma sociedade. A ética é filosófica e científica. Assim, Ética é um ramo da Filosofia que se dedica à fundamentação científica e teórica da discussão a respeito de valores, escolhas, liberdade, consciência e responsabilidade. Relacionam-se também com essas valorações o bem e o mal, o bom e o ruim, mas a partir de um compromisso com a fundamentação filosófica da própria

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moral. Nesse sentido, a Ética geralmente não se qualifica como boa ou ruim, nem como má ou como um bem. Gramsci aponta que: Deve-se buscar a base científica da moral na afirmação de que a sociedade não se propõe problemas para cuja solução não existam as condições, no sentido de que, quando estas existem, a solução daqueles se torna ‘dever’ e a vontade de resolvê-los se torna ‘livre’. A ética, portanto, é uma investigação sobre as condições necessárias para a liberdade de querer algo num certo sentido, em direção de um determinado fim. (Gramsci, Caderno 7, 4ª. Anotação)

É, portanto, nesse entrecruzar que, tanto na linguagem cotidiana quanto na reflexão acadêmica, os termos se confundem ou, ao menos, se identificam por se referirem ao mundo dos valores, hábitos, deveres e obrigações, ao certo ou errado, ao bom ou mau, ao justo ou injusto. É essa relação existente entre moral e ética que as faz se confundirem no plano cotidiano ao mesmo tempo em que revela que é justamente na convivência, na vida social e comunitária, que o ser humano se descobre e se realiza como ser moral e ético. É na relação com o outro que surgem os problemas e as indagações morais. Nesse cenário emergem perguntas como “O que devo fazer?”, “Como agir em determinada situação?”, “Como me comportar perante o outro?” e “Como atuar diante da corrupção e das injustiças?”. Como nos lembra Morin (2003), “... a moral tem dois tipos de alinhamento: o sentimento de responsabilidade e o sentimento de solidariedade”. O problema é que esses alinhamentos enfrentam um desafio: superar leituras particularistas que escamoteiam o papel da ética e da moral na sociedade contemporânea. Em verdade, parece-me que não costumamos refletir e buscar os porquês de nossas escolhas, dos comportamentos, dos valores que internalizamos e defendemos de modo a, não poucas vezes, naturalizá-los. Certamente agimos por força do hábito, dos costumes e da tradição, tendendo a naturalizar a realidade social,

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política, econômica e cultural. Dessa prática desdobra-se uma situação bastante incômoda: a perda da capacidade crítica diante da realidade decorrente da prática reflexiva. Com isso, pretendemos dizer que a ausência de uma atividade reflexiva acerca de nossas práticas sociais que nos dirija a um fazer ético implica impossibilidade real de fazer a crítica. Fazer a ética é fazer a crítica, é buscarmos produzir saberes que nos permitam compreender e explicitar a nossa realidade moral. A filosofia grega acentuou no termo e no conceito ética a dimensão reflexiva acerca da conduta humana, enquanto a sociedade romanocristã enfatizou no termo e conceito de moral a dimensão pragmática da opção pessoal em favor do bem ou do mal, conforme normas e regras definidas em uma determinada organização social. Contudo, privilegiamos aqui o termo e conceito ética, mesmo sabedores de que ética e moral são interfaces semânticas de uma mesma problemática, em vista de um debate específico: o lugar da ética na análise de movimentos sociais. Em uma sociedade complexa como a atual, marcadamente pósindustrial, temos observado que, nas quatro últimas décadas (as três últimas do século XX e a década presente do século XXI), a evolução científico-tecnológica tem alcançado magnitude impressionante. Consequências dessa evolução são a diminuição do trabalho dependente da força bruta e, concomitantemente, a concentração da riqueza nas mãos de quem controla os meios de produção. Nesse quadro, a ética assume um lugar relevante por ser um elemento regulatório da ação humana. A cada momento histórico, o ser humano se propõe novos problemas, e a ética atua como elemento condicionante da liberdade na busca dos fins que esses novos problemas despertam. Importa lembrarmos aqui que, como apontou Gramsci, existindo as condições técnicas para sua solução, a possibilidade de resolvê-los torna-se uma opção, um dever, e, por conseguinte, uma questão ética. Em um mundo no qual a tecnologia deveria atuar na superação das desigualdades sociais, ainda hoje o principal problema social é deter-

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minado pela superconcentração de riqueza. Movimentos sociais têm despontado mundo afora denunciando esses paradoxos próprios da nova configuração societal na qual encontramos um pico no desenvolvimento tecnológico capaz de solucionar as desigualdades presentes, mas o que vemos é o aprofundamento dessas desigualdades em inúmeros setores da vida humana. O enfrentamento dessa situação passa pela tomada de decisões que devem afrontar os dilemas morais decorrentes desses paradoxos. A solução para essas desigualdades está potencialmente dada e entendemos ser nosso dever ético resolver científica e politicamente essas problemáticas atuais. E a resolubilidade delas passa, indubitavelmente, pela análise dos elementos psicossociais e políticos dos movimentos sociais que aqui chamaremos de elementos psicopolíticos.

Questões a respeito da privatização contemporânea da ética e da mobilização social Nem sempre agendas individuais e coletivas coincidem. Na verdade, em uma sociedade marcada pelo fim do sujeito único e racional, o que observamos é a emergência de um movimento privatista da esfera ética em prol da justificação da fragmentação desse sujeito contemporâneo. Parece-nos que, em nossa sociedade, neste início de século, só há lugar para a ética quando esta se confunde com códigos de conduta vigentes em corporações, ou com disciplinas domésticas e privadas. Essa confusão serve para ocultar a fragilidade do pacto social contemporâneo e, ao mesmo tempo, para fragilizar o reconhecimento de um fazer ético que dê conta de interesses coletivos que atendam a demandas que remetam a lutas contra as desigualdades sociais. Essa confusão se faz notar de maneira mais clara quando toma a forma de doutrinas religiosas, válidas nas práticas coletivas ritualizadas e nos comportamentos pessoais, na esfera privada. A tensão entre as esferas

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privada e pública faz com que os sentimentos de responsabilidade e solidariedade próprios do fazer ético colidam e se enfraqueçam diante do crescente empoderamento dos princípios do mercado e do autointeresse. Nesse cenário, impõem-se determinadas questões: como nos libertar do círculo vicioso e predatório do mercado? Como nos livrar da naturalização de sua lógica estabelecida firmemente no senso comum? Entendemos que, para que tal esforço logre algum sucesso, haveríamos de voltar nosso olhar e nosso ouvir para as vozes dos movimentos sociais. E, nesse contexto, parece-nos ser a ocasião para a emergência de uma psicologia política dos movimentos sociais capaz de abrir caminhos entre esses movimentos e o conjunto de uma sociedade cegada pela confusão derivada da imprecisão, mistura do que sejam as esferas pública e privada. Desta situação é que se culmina na privatização da ética. Falar em uma privatização da ética é algo fundamental quando se pretende pensar a dimensão ética da pesquisa. Como é possível fazer pesquisa sob a égide privativista que pretende dominar o campo da ética? Junta-se a isso o refluxo participativo nas sociedades complexas pós-industriais. O refluxo da participação ocorre em todos os âmbitos e torna-se um fenômeno significativo frente ao desaparecimento generalizado do mundo público de demandas coletivas e supracorporativas. Esse desaparecimento de demandas de caráter universalista e instituinte, proponentes de instituições ou de novas regras, aponta para a crescente fragmentação de sujeitos coletivos que se voltam sistematicamente para interesses corporativos e de fácil privatização. Como apontam alguns estudiosos, com o fim de elementos aglutinadores da coletividade em um passado recente há um movimento intimista e forçosamente privatista das emoções e dos interesses. Com a anistia promovida no fim do governo militar; como a emergência, nesse contexto de fim da ditadura, das liberdades democráticas; e com a convocação sistemática de eleições diretas que garantem o estado de direito, etc., temos o marco do fim de um período no qual a participação social e pública era o motor que conduzia a sociedade em busca de um fim: a

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retomada da liberdade e da felicidade, signos de uma sociedade eticamente orientada. Mas, nos perguntamos: de fato faltam demandas instituintes e universalizantes, ou nós é que não temos sabido propor tais demandas? Não seria um caminho importante no enfrentamento da privatização da ética pôr em andamento um movimento que retomasse a dinâmica simbólico-ética do processo de transição democrática vivido no Brasil da década de 1980? Por que não retomar o fio condutor do processo de transição, visto que vivemos em uma democracia incompleta, eivada de desigualdades sociais gravíssimas? E se esse for um caminho possível, como fazer para contagiar a sociedade com valores e bandeiras instituintes, que sejam capazes de superar discursos intimistas e de clara conotação fragilizante dos vínculos sociais? Como se pode facilmente perceber, com o alcance aparente do objetivo principal das lutas pela redemocratização, nos últimos anos, com raras exceções, temos convocado a população, com algum sucesso, a participar de ações coletivas. Atualmente, a população tem-se limitado a participar apenas para escolher entre candidatos a cargos eletivos ou para se manifestar em favor dos interesses de alguma categoria de trabalhadores. As manifestações populares de rua têm-se restringido quase sempre a ocasiões religiosas ou a rituais coletivos que não necessariamente logram sair dessa cena privatista da ética e da participação. O Movimento dos Sem-Terra, por exemplo, tem constituído uma exceção a essa lógica. Parece-nos que é dos movimentos sociais que vem a voz de resistência ao refluxo participativo e ao predomínio totalizante da lógica do mercado. Infelizmente, é essa lógica que vem imperando e transformando o oportunismo e o comportamento falso, e ardiloso, em virtudes políticas incontrastáveis. E disso decorre o que temos aqui tentado enfatizar: a privatização da ética. A privatização da ética, além de ir ao encontro da premissa gramsciana, contribui para pôr em movimento um processo de desertificação do espaço privado, provocando o isolamento individualizante, contraface da individualiza-

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ção nos moldes apontados por Heller (1998). Essa marcha sustentada na fantasia de uma ética privatista limita-se à retórica ensimesmada, calcada em uma espécie de autoinvenção subjetiva dissociada da experiência coletiva que rompe com os preceitos da lógica de mercado responsável pela difusão de uma ética do interesse. Retomando a idéia da ética como fundamento filosófico-científico do comportamento humano, encontramos para ela duas concepções orientadoras. A primeira é aquela que se considera a ciência do fim para o qual deve estar orientada a conduta da humanidade e dos meios para lograr tal fim. Nessa perspectiva, encontramos as leituras da ética que a fundamentam sob a ótica do ideal a que o ser humano se dirige em decorrência da própria natureza. A segunda considera a ética a ciência do impulso da conduta humana e procura determiná-la com o objetivo de discipliná-la. Para aqueles que entendem a ética nessa perspectiva, ela deve voltar-se para os motivos ou as causas que orientam a conduta humana; deve voltar-se para o estudo das forças que determinam esse comportamento, atentando para os fatos que sejam reconhecíveis. Estas duas perspectivas aparecem entrelaçadas tanto na Antiguidade quanto na Modernidade, mas guardam grandes diferenças, por serem linguagens distintas estabelecidas em torno da compreensão do que seja o bem e, por conseguinte, a própria ética. Entender em nossos dias o que seja a noção de bem pode ser imprescindível para que possamos entender o que é (e o porquê) esse processo privatizante da ética, assim como o processo de refluxo na participação social que temos apontado neste texto. O bem nessas duas correntes é entendido ou como algo que é, ou como algo que é em decorrência de um desejo, em decorrência de sua apetecibilidade. Seja como for, essa noção de bem está ligada de alguma maneira à busca da felicidade. A marca da felicidade como o fim da própria existência humana ou como um valor a ser medido e compreendido à luz da experiência intersubjetiva remonta ao pensamento grego sobre a relação entre ética e ciência. Nesse sentido, estamos convictos de que

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os termos fundamentais do debate sobre ética e pesquisa foram explicitados, exata e definitivamente, pelo pensamento grego. Todavia, em sociedades complexas como aquelas em que hoje vivemos, parece-nos que esses termos fundamentais sofrem uma deterioração sem precedentes e o que emerge é uma perigosa ética do interesse individualista, cujo único bem é o bem pessoal.

Em defesa da ética como elemento de formação da consciência política e participação Tendo isso presente, talvez não seja despropositado (re)propor a tematização da felicidade como núcleo ético criativo que permita um enfrentamento da ótica mercadológica e solipsista que produz uma desertificação isolacionista do fazer ético. A felicidade pode figurar como o elemento contagiante, reapresentando a ética por prismas coletivos solidaristas e responsáveis que apontem para a busca de um desejo: o bem comum, como fez, por exemplo, a campanha contra a fome lançada por Herbert de Souza. A desertificação isolacionista é a contrapartida da privatização da ética. Produz uma forma de subjetividade marcada por uma forma de narcisismo que desorienta e infelicita a experiência humana pautada pelo coletivo. Desestabiliza o sentido (primeiro e último) da vida. A desertificação isolacionista impossibilita a busca de um fim ou de um desejo para a existência humana em sociedade; ela faz do significado da vida uma matéria ainda mais volátil do que ela já é nas condições que marcam e orientam as sociedades pós-industriais. Na perspectiva da busca de um bem como valor desejável, a desertificação isolacionista torna tal procura um elemento imaginário e ficcional, opondo-se de maneira irreconciliável à experiência coletiva que é uma marca da ética. Enfrentar essa realidade que se apresenta atualmente é reconhecer que a ética e seus significados só existem na linguagem, que é prática de sociabilidade e exercício compartilhado.

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Focalizar a felicidade propiciaria resultados práticos, se pudéssemos produzir elementos, condições, que possibilitassem a produção de uma consciência política coletiva como temos proposto inspirados nos escritos gramscianos e em outros autores para quem essa é uma questão fundamental (Silva, 2006). Produzir uma consciência política coletiva poderia significar estimularmos adesões laicas a projetos de vida coletivos, sem com isso cairmos na negação do indivíduo e dos conflitos entre o indivíduo e o coletivo. Assim, mediante a promoção de conversões laicas, poderíamos gerar adesões à busca da felicidade por meio da militância cidadã como estilo de vida e de atuação ético-política. Essa possibilidade nos abriria espaço para enfrentarmos a desertificação isolacionista da ética. Não se trata aqui de eliminar as diferenças e as disputas que compõem a tessitura social, mas trata-se de eliminarmos os dogmatismos e substancializações fundamentalistas, ou ideologismos baratos que fazem da diferença um defeito a ser extirpado da sociedade. Entretanto, para isso é preciso que as lideranças tenham imaginação e saibam construir uma dinâmica inovadora e eficiente de comunicação social, pois há que se cultivar um deserto privado, no qual ética é uma mera recordação clássica. É mister pensarmos que, nesse cenário, impõe-se um paradoxo formado, de um lado, pela desertificação isolacionista e, de outro, por um saber que tende a saber tudo (ciência-pesquisa). Nessa lógica, entendemos ser a ética o elemento que dá o limite, a medida certa; o elemento que tem a real possibilidade de tornar a realidade cotidiana um projeto coletivo no qual o ser humano não se perde em solipsismos e nem em anulações dogmáticas, pois encontra nesse elemento o caminho justo e a medida do equilíbrio. A ética impõe-se como a medida necessária para se pensarem a participação e a gestão participativa no âmbito do sistema econômico capitalista, o qual opera no marco da heteronomia, mantendo-se clara a separação entre práticas solipsistas e um projeto coletivo. Na atual conformação social, em uma sociedade pós-industrial como a nossa, a

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organização do trabalho capitalista, mesmo em sua face mais contemporânea de caráter digital, não elimina as relações heterônomas de poder nem contribui para a superação das fragilidades da subjetividade domada pela lógica do controle. É devido a uma transição estrutural e histórica, na qual as relações autoritárias de poder, características da linha de montagem industrial, têm-se encaminhado para relações liberais de poder, que se fortalece o movimento privatizante da ética e aponta para a geração de indivíduos-ilhas, isolados, mesmo quando se encontram conectados por seus meios de trabalho digitais. Aqui vemos emergir o papel transformador dos movimentos sociais como espaços de resistência e de defesa de projetos coletivos em uma sociedade na qual a participação social vive inegáveis refluxos. Mas como podemos problematizar o lugar dos movimentos sociais como motor ético das relações sociais? Como identificar em que medida esses movimentos poderiam sinalizar e estabelecer parâmetros de justiça e de compromisso com um bem comum, seja como fim, seja com sentimento de desejo? Essa compreensão dos movimentos sociais como atores coletivos que apontam para uma justa medida das relações sociais faz deles elementos necessários para a transformação e regulação da sociedade. Nesse sentido, vale recordar o que diz Stompka (1998): Uma sociedade que reprime, bloqueia ou elimina os movimentos sociais destrói seu próprio mecanismo de auto-aperfeiçoamento e autotranscendência [...] ela se torna uma ‘sociedade passiva’, de pessoas ignorantes, indiferentes e impotentes, às quais não é dada nenhuma chance de cuidar de seu próprio destino e que, por conseguinte, deixarão de cuidar de tudo o mais. A única perspectiva de tal sociedade é a estagnação e a decadência.

Não se trata de fazer com que eles ocupem o lugar de arautos da ciência da ética nem de transformá-los nos novos filósofos que, por meio de uma razão teórico-prática, se tornam os portadores de uma sabedoria capaz de contemplar o bem supremo no exercício da atividade

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militante, ou da disciplina ou mesmo de uma pretensa ascese intelectual. A questão que aqui se apresenta é o reconhecimento de seu papel como agentes que questionam e denunciam um projeto personalista e de desertificação da ética orientada por uma lógica mercantilista e mercadológica. Em sua possibilidade de atuação, eles nos apontam a felicidade, nos mostram que um outro mundo é possível e nos recordam que nesse mundo a ética que pressupõem um projeto é um elemento sem o qual a existência humana não pode ser nem mesmo imaginada, ou quando o é, encontra-se marcada pela decadência. Aos movimentos sociais resta o lugar da transgressão do estabelecido em prol da ideia de projeto coletivo. Com efeito, a identidade ética do ser humano não se restringe ao horizonte do mero saber, à pura factualidade. Ela é uma síntese do que fomos e do que queremos ser, da ciência factual e da projetualidade livre. Resulta de uma atividade memorial, de rupturas na vida cotidiana, as quais podem se dar [...] a cada vez que percebemos que o futuro brota do passado, no qual tem suas raízes assentadas, mas também o passado procede do futuro. Ao ressignificarmos nossas memórias no presente, tendo nossos olhos no futuro, reescrevemos, reinterpretamos o fato passado e mudamos todos os fios da história e da vida. (Silva, 2006)

Nesse processo, também a ética é relida, ressignificada e reescrita. Em um universo de múltiplos conflitos de interesse e de inumeráveis antagonismos entre os atores sociais que compõem a cena das sociedades complexas e multiculturais, encontramos nos movimentos sociais características importantes para a mudança social e para o autoaperfeiçoamento e a autotranscendência da sociedade, sem com isso ignorarmos que neles também encontramos muitas das idiossincrasias que marcam a sociedade na qual estão historicamente inscritos. Traçar os limites éticos da ciência e da pesquisa é traçar os limites da ação humana em nossa sociedade. Na atualidade, basta darmos uma rápida olhada à nossa volta para constatarmos a necessidade de

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retomarmos, como fizera Aristóteles, a problemática do relacionamento entre a ciência e a virtude. Em nossos dias, entendo que não devamos dissociar a ética em uma porção intelectiva e em outra mais prática, ligada às virtudes que determinam os bons costumes e domina os impulsos sensíveis. Quem sabe esteja no momento de percebermos que a ética é produzida e transformada em contextos políticos historicamente dados e traz consigo todo um conjunto de significações políticas reguladoras da vida social!? A transgressão dessa ética de modo que não permita a decadência societal é garantida por atores coletivos como os movimentos sociais que estão seriamente comprometidos em proporcionar a felicidade dos cidadãos, pois, como também entendiam muitos filósofos gregos, a felicidade individual não existe fora da vida social. Certamente, muitos poderão acusar-nos de ingênuos em nossa leitura. Recordar-nos-ão que tal felicidade vinculada à vida social no contexto de movimentos sociais é, não poucas vezes, atrelada a interesses particulares de grupos que se chocam frontalmente com outros interesses que aparentemente poderiam beneficiar outras parcelas ainda maiores da sociedade. A isso diremos: é verdade, pelo menos em parte. Contudo, há que se lembrar que as disputas que marcam nossa sociedade revelam a impossibilidade de satisfazermos a todos. Mas isso não pode ser a justificativa da desigualdade. A ação dos movimentos sociais necessariamente nos remete ao passado que se manifesta no presente e aponta para um futuro incerto, pois ainda não passa de projeto. E é nesse projeto que começa no presente, onde a experiência passada é revisitada constantemente, que temos o dever de nos apropriarmos daquilo que os movimentos sociais fazem melhor: mostrar-nos os limites do nosso pacto social e as injustiças a serem enfrentadas para garantirmos a tão desejada felicidade social. Fica bem evidente, sob sua ação, a necessidade de se proporcionar e preservar o equilíbrio geral da sociedade e dos indivíduos. Fica ainda mais evidente o papel do Estado – e daqueles que governam – na produção de condições reais para que

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cidadãos e cidadãs possam ter uma existência material (e por que não espiritual?) feliz. A existência e a persistência de movimentos sociais de todas as ordens revelam esse limite do Estado e de quem o administra. Revela também de maneira nítida a dimensão política da prática ética. Parece-nos que os movimentos sociais denunciam, põem a olhos vistos as relações dialéticas existentes entre ciência e virtude; entre não ética e ética; entre público e privado; entre particular e universal. Na busca política do equilíbrio, essas realidades não podem nem devem desaparecer sob a tomada autoritária de uma lógica isolacionista que destitui o indivíduo de sua necessária condição social. O fim dessas relações dialéticas produziria um verdadeiro engessamento autoritário da relação entre ética e pesquisa. A justificativa para essa leitura autoritária do fazer ético sustentado na estagnação das forças produtivas e na necessidade de garantir o desenvolvimento não tem fundamento e revela um tom medieval de compreensão da realidade da sociedade. Se as pesquisas científicas permitem à humanidade a formulação de novos problemas sociais e lhe impõem a necessidade de amadurecer as condições técnicas para a superação desses problemas, também a ação dos movimentos sociais o faz e revela a necessidade de se fazerem pesquisas que enfrentem os múltiplos dilemas éticos vividos na sociedade. Desde que surgiram as universidades, discute-se a relação entre pesquisa e ética. Questões relativas a essa relação abrangem desde como seria possível criar uma faculdade de medicina sem que os mestres pudessem dissecar os cadáveres (ou sequer uma rã, nos primórdios da universidade) até questões de bioética ou acerca da conservação do planeta e do gênero humano em nosso tempo. Mas entendemos que, no caso aqui em questão, devemos nos perguntar como podemos contribuir para o progresso da humanidade sem deixarmos de lançar nossa atenção de maneira mais firme para as ações dos movimentos sociais que lutam para garantir sua autonomia e transformações reais frente à dialética da exclusão e da inclusão social.

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É um dever ético da atividade de pesquisa de quem procura trabalhar no âmbito das desigualdades sociais contribuir, dentro dos limites da própria pesquisa, para gerar reais condições materiais para a produção de uma revolução social que aponte para o bem comum. Fazê-lo torna-se um imperativo ético, torna-se um dever de um pesquisador que procure efetivamente enfrentar os problemas sociais que impedem o amadurecimento da sociedade. Essa postura torna-se, para aqueles e aquelas que encontram no movimentos sociais seu locus de investigação, uma livre opção, visto que consideram a felicidade de toda a humanidade a finalidade última de seus esforços. Infelizmente, porém, o ethos iluminista da Revolução Industrial rompeu definitivamente a clássica vinculação política entre a ciência e a virtude, e essa livre opção se esvai entre os múltiplos apelos ao isolamento, à insulação do indivíduo. A separação entre a razão teórica e a prática fez com que também se separasse o espaço político do acadêmico. Mas em Marx vemos a atribuição ao Estado das funções de árbitro dos limites éticos da pesquisa científica. São diversas as resoluções que buscam regular a ética na pesquisa, são diversos os conselhos de ética. O marxismo distinguiu o Estado burguês do Estado socialista e apontou para o proletariado que parece representar os valores de uma só classe, mas que na verdade é o embrião da futura humanidade universal marcada pela igualdade. Somente um Estado proletário teria as condições de determinar um limite ético para a pesquisa, em benefício de toda a humanidade. Se esta é uma posição sabidamente utópica, não seria a atenção aos movimentos sociais e outras manifestações populares uma meneira eficiente de resgatar um ethos que contribua para a superação das desigualdades e para a produção de um Estado realmente sensível a elas e comprometido em enfrentá-las de modo a estabelecer um equilíbrio justo na sociedade? Infelizmente, os Estados supostamente éticos, como se pretendem os Estados fascistas, nazistas, comunistas e, em geral, as ditaduras, se

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autodefinem como representantes dos interesses e da felicidade universais. Infelizmente, neles a diferença é um elemento a ser anulado. Não pretendemos aqui, como viemos enfatizando, cair em universalismos nem em formas solipsistas de leitura da realidade Mas gostaríamos de recordar a necessidade de, como já apontaram Rousseau, Marx, Gramsci, Brecht, Sartre, entre outros, se restabelecer a dialética existente entre virtude e ciência; entre ética e pesquisa; e entre autoridade política e consciência. Essas relações dão sentido ao fazer pesquisa; ao fazer ético, pois de modo algum se pode pesquisar sem saber para quê pesquisamos. No horizonte desse resgate dialético encontrase o ser humano e, com ele, suas múltiplas expressões, seus múltiplos jogos de interesse que colorem o limite ético da pesquisa. Esse limite resulta de um processo dialético no qual se produz em distintas configurações individuais e coletivas da consciência política. Nesse processo, movimentos sociais, sociedade civil e Estado se confrontam e disputam significados e significantes, de modo a influir na consciência do pesquisador e impor sua visão de mundo. É no jogo da política que se dará a real superação das diversas manifestações do individualismo nascido sob a égide do industrialismo dos séculos XVIII e XIX e do início do século XX. Enfrentar os problemas éticos decorrentes da pesquisa com processos coletivos, como aqueles que movimentos sociais põem em marcha, não pode ser considerado um estorvo, um resíduo do arcaísmo medieval, um atraso. O progresso científico não pode ser argumento para escamotear a complexidade da realidade, os desafios trazidos pelos movimentos sociais, a impossibilidade da harmonia e da neutralidade. Não pode também ser posto como meta última em detrimento da construção da dignidade humana talhada na diversidade, nem ser argumento para a imposição de uma única maneira de se alcançar a felicidade. O otimismo iluminista com relação à indústria que possibilitaria abundância e felicidade universais é hoje contestado por múltiplos mo-

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vimentos sociais, sejam selados como novos ou como velhos. A felicidade resultante do acesso a bens industrializados não chega a todos, e para aqueles a quem chega, não dá conta de atender às suas demandas societais. Na verdade, muitas vezes aceder a elas implica isolarse e ilhar-se em uma sociedade que produz novas formas de castas a partir do parâmetro possuidores e despossuídos. É nessa cena que a pesquisa que se constrói sem um direcionamento ético, sem clareza de objetivos e sem pensar em suas implicações na construção social da realidade acaba sendo um pião que gira cada vez mais veloz. Todavia, apesar de sua velocidade, não tem rumo, permanece sem nenhum direcionamento, segue, na verdade, a esmo. A pesquisa que assim se constrói é lamentavelmente nociva à humanidade, pois não contribui para a transformação social. Bem se poderia dizer que contribui para a manutenção das desigualdades sociais e do status quo que mantém a lógica das “castas” sociais e a alienação. Parece-nos que, na sociedade pós-industrial, a pesquisa e a ética têm por desafio entender e contribuir para uma normatização da vida social pautada no multiculturalismo, com o objetivo de subverter o uso dos meios de comunicação responsáveis por legitimar os atores sociais que ocupam lugares minoritários. Assim, a educação política de cada indivíduo que participa de ações coletivas, que constrói vínculos de pertencimento grupal como aqueles produzidos junto aos movimentos sociais, é fundamental para pôr em xeque formas autoritárias que insistem em ensinar como se deve viver na sociedade. Todavia, tais formas autoritárias esquecem-se de que a realidade atual é marcada pelo não-lugar, por novas formas de trabalho, por múltiplas maneiras de marginalizar. Em uma cena de violência, seja meio rural ou no urbano, o grito por justiça que emana dos movimentos sociais traz consigo um apelo ético; um clamor que denuncia a desertificação da ética e exige de nós, pesquisadores e pesquisadoras, avançar muito além dos espaços estruturados e organizados à luz das necessidades industriais dessa

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sociedade de “castas” na qual se instalou a desertificação isolacionista que produz indivíduos-ilhas. É das periferias que surgem as massas de despossuídos que não conseguiram se adequar às exigências das fábricas e dos escritórios, que não lograram se proletarizar e se subordinar a essa lógica perversa. É lá que pesquisadores que buscam contribuir para a mudança social encontrarão um forte apelo ético saído dessas bocas sistematicamente silenciadas, propositalamente invisibilizadas. Olhar para os movimentos sociais, analisar suas práticas, seus discursos, os jogos de poder e as formas de inserção peculiares a eles é buscar novos horizontes de compreensão das relações entre ética e pesquisa e encontrar novas (e, muitas vezes, nem tão novas) formas de se produzir um Estado interessado não na mera felicidade de cada indivíduo, mas na felicidade coletiva, no bem comum, sem a qual a felicidade individual sequer poderia ser pensada. Um pesquisador comprometido com a mudança social deve ter a sagacidade necessária para ver além do fato estanque, deve possuir as qualidades morais que lhe permitam usar os bens da vida de modo a contribuir para o aperfeiçoamento e para a autotrascendência da sociedade. Temos a impressão de que a sociedade pós-industrial vive hoje uma grave crise de caráter ético-político, a qual faz com que não mantenha o corpo do velho homem do industrialismo burguês nem o tal novo homem do pós-industrialismo. O primeiro está morto e o outro ainda está em gestação. Disso decorre a grave crise identitária que traz consigo um brutal sofrimento ético-político (Sawaia, 1999) para o ser humano. Tal sofrimento encontra-se inscrito a partir da contradição existente entre a superconcentração de riquezas e o aumento desmedido da pobreza; entre poucos centros de riquezas e enormes polos de miserabilidade, o que dá corpo a essa dialética da exclusão/inclusão e faz do estudo da consciência política um objeto central para a construção de novos padrões éticos e de enfrentamento dessa lógica perversa que aflige a sociedade contemporânea.

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Não há como, a nesta altura do texto, não retornarmos à citação inicial de Gramsci, segundo a qual a sociedade não proporia a si problemas para os quais não tivesse solução, não existissem as condições de resolubilidade. Voltamos a isso devido a fato de compreendermos que é nosso dever ético investir em pesquisa de modo a encontrarmos a solução para o problema da superconcentração; para a privatização da ética que esvazia a experiência coletiva e a busca da felicidade no bem comum. Urge encontrarmos alguma(s) solução(ões) para o sofrimento ético-político que vive o ser humano e para o processo de despolitização e de desmobilização da participação pública. Tudo isso determina nosso dever ético para com a resolubilidade desses desafios. Particularmente, essa é a nossa opção política, o desafio que temos abraçado até aqui.

Conclusão Certamente, a temática das ações coletivas sempre esteve, especialmente no século XX, em destaque em diferentes campos científicos. Desde o final do século XIX, as Ciências Sociais e Humanas têm-se dedicado a produzir um vasto material para a compreensão dos motivos e dos processos indutores dos sujeitos à participação em ações coletivas. Assim, nota-se que, de maneira similar, surgiram novos modos de pensar e entender fenômenos de ordem política, como a participação de indivíduos e grupos em ações coletivas, bem como as maneiras utilizadas para estes conduzirem suas vidas e suas relações sociais. A partir do instante em que as hierarquias sociais naturalizadas chegam ao fim, em virtude das mudanças provenientes do advento da Revolução Industrial, hoje, em pleno século XXI emergem novos modos de pensar essas questões e suas relações com a ética e a pesquisa. Com isso, os modos de ser, estar e intervir no mundo se diversificam e assumem novas características. Esse fenômeno decorre das mudanças na estrutura social e nos papéis vividos pelos novos e velhos atores sociais em um contexto de emergência dessa sociedade pós-industrial.

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Como já é sabido, movimentos coletivos buscaram estabelecer a construção de identidades coletivas na representação do nós, o que pode apontar para uma diferenciação do eu ou, muitas vezes, para uma afirmação individual, o que poderíamos entender como sendo a configuração de sujeitos políticos coletivos. Nesses movimentos emergem, seja na esfera do privado ou do público, oportunidades políticas que possibilitam a produção de demandas e discursos coletivos que podem ser entendidos como antagonismos sociais e contêm todo um apelo ético-político e resultam, não poucas vezes, de inúmeros processos de conscientização política. As atividades desses sujeitos coletivos precisam, na atual sociedade pós-industrial, de um concreto reconhecimento que culmina na real redistribuição de bens e riquezas, o que implica, de alguma maneira, algum modo de mediação eficaz ou mesmo de intervenção do Estado. Trata-se, portanto, de um novo patamar ético que, para ser efetivado, necessita da ação mediadora dos diversos entes federativos que compõem o Estado brasileiro, em nosso caso particular. A eles compete garantir e gerir a distribuição da riqueza. A questão é que, para que essa gestão seja eficaz, é necessário que se ouçam e compreendam os apelos de quem ocupa um lugar minoritário. Assim, as inúmeras e diferentes formas de distribuição de renda (p. ex., bolsa-família e assimilados) precisam ir além da política social compensatória que as criaram. Elas sinalizam indiscutivelmente para uma nova e orgânica necessidade histórica ético-política própria das sociedades pós-industriais. Mas sinalizar não basta: é necessário criar novas formas de distribuição da riqueza de modo a garantir a inclusão real (e não perversa) de enormes contingentes de despossuídos. Para fazê-lo, será necessário compreender os múltiplos apelos e as inúmeras denúncias que movimentos sociais têm feito a respeito das intermináveis formas de exclusão, silenciamento e marginalização em que vivem os grupos que fogem à lógica dominante. A contribuição para o debate acerca da ética e da pesquisa no âmbito dos movimentos sociais passa pela compreensão

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de que a relação do homem com ele próprio é fundamentalmente uma relação política. No que se refere aos movimentos sociais, recordamos aqui que estes não devem ser compreendidos como mero resultado de crises vividas pela sociedade ou como sintoma de uma sociedade agonizante. Com efeito, os movimentos sociais denotam as várias complexidades da realidade social, as quais nos levam a compreendê-los como uma forma de antecipação da sociedade vindoura (Stompka, 1998). Isto se dá porque os movimentos sociais, ao atuarem como críticos da estrutura social vigente, como atores coletivos que obrigam a sociedade a deixar a alienação própria da vida cotidiana (Heller, 1998 e 2001) e a assumir uma atitude reflexiva acerca de si mesma, forçando-a a permanentemente fugir da repetição e da acomodação; a enfrentar a mesmice que a impede de ir além; e a resolver os problemas que ela própria produz e se propõe, atuam como agentes proféticos (Melucci, 2004) que garantem à sociedade a oportunidade política de gerar instrumentos para alcançar um modo de existência socialmente justo.

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