CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS E REINTEGRAÇÃO SOCIAL: Execução Penal e Tutela Coletiva dos direitos dos presos.

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UNIVERSIDADE DE RIBEIRÃO PRETO MESTRADO EM DIREITO

DENIS ORTIZ JORDANI

CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS E REINTEGRAÇÃO SOCIAL: Execução Penal e Tutela Coletiva dos direitos dos presos.

RIBEIRÃO PRETO 2012

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DENIS ORTIZ JORDANI

CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS E REINTEGRAÇÃO SOCIAL: Execução Penal e Tutela Coletiva dos direitos dos presos.

Dissertação apresentada à Universidade de Ribeirão Preto, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direitos Coletivos e Função Social do Direito.

Orientador: Prof. Dr. Lucas de Souza Lehfeld

RIBEIRÃO PRETO 2012

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Ficha catalográfica preparada pelo Centro de Processamento Técnico da Biblioteca Central da UNAERP - Universidade de Ribeirão Preto -

J82c

Jordani, Denis Ortiz, 1980 -. Controle jurisdicional de políticas públicas e reintegração social: execução penal e tutela coletiva dos direitos dos presos / Denis Ortiz Jordani. - - Ribeirão Preto, 2011. 167 f. Orientador: Prof. Dr. Lucas de Souza Lehfeld. Dissertação (mestrado) - Universidade de Ribeirão Preto, UNAERP, Direito, 2011.

1. Direitos fundamentais. 2. Política pública. 3. Prisioneiros – Direitos civis. 4. Controle jurisdicional. I. Título. CDD: 340

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Dedico esse trabalho aos meus amados pais, Luiz Carlos e Solange, por todo amor, carinho e dedicação ao longo de toda a minha vida. Exemplos máximos de uma vida sã e correta. Se me tornei a pessoa que sou, devo invariavelmente à vocês!; À Antonio Lopes Ortiz, in memoriam; À minha esposa, eterna namorada e amor da minha vida, Mileny, por toda a paciência na horas (e foram muitas) em que estive longe, física ou mentalmente para poder concluir este trabalho.

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AGRADECIMENTOS À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes, pela bolsa de pesquisa concedida, sem a qual este trabalho jamais lograria êxito; Aos meus alunos, que sempre acreditaram na conclusão deste trabalho e que diariamente depositam sua confianças e expectativas no conhecimento passado em sala; À Rodrigo e Andrea Atili, amigos especiais e em todas as horas, pelos bons fluídos e pela paciência nos tempos de desespero; Ao professor e padrinho Paulo Eduardo Lépore, que com sua sutileza e perspicácia teve o zelo de sentar-se no sofá da sala de pósgraduação, na última hora, do último dia do prazo para entrega do projeto de bolsa da Capes e que com suas ideias, possibilitou tal concretização; Ao amigo Rogério, meu livreiro por mais de 10 anos, pelos seus constantes préstimos e por encontrar obras de valor inestimável. Aos amigos e colegas de mestrado, em especial Márcio Germinari, Renata Follone, Rúbia Spirandelli, Leonardo Junqueira, Ricardo Sobral, Leopoldo Rocha e Sarah Chaves, Djalma Pizzaro e Paulo Duarte pelas horas de convívio e pela experiência de vida; Aos professores e corpo administrativo do programa de mestrado da Unaerp; Ao sempre brilhante professor e amigo Cláudio Antonio de Paiva Simon, por todos os conselhos, orientações e observações que fez, tornando o labor mais fácil e menos problemático; À minha chefa querida do coração, Professora Cristina Veloso de Castro, ilustre coordenadora do curso de direito da Universidade do Estado de Minas Gerais (minha sempre casa) por confiar nas palavras vãs e inconscientes de um jovem que tinha apenas ânsia de se tornar professor e confiar em seu trabalho, quando ninguém mais o faria!; Ao meu orientador, coordenador e amigo, Professor Dr. Lucas de Souza Lehfeld, pelo empenho e credibilidade depositada desde o primeiro dia, sempre interessado, incentivando e indicando a posição segura a ser seguida.

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A pena deveria ser de educação. A pessoa deveria ser condenada mas é a ler livros, se educar, a se internar em colégios punitivas, hoje chamadas de casas de reeducação, sejam escolas de trabalho e instrução. Isto porque toda criatura está sentenciada à morte pelas leis de Deus, porque a morte tem o seu curso natural. Por isso, acho que a pena de morte é desumana, porque ao invés de estabelecê-la devíamos coletivamente criar organismos que incentivassem a cultura, a responsabilidade de viver, o amor ao trabalho. O problema de periculosidade da criatura, quando ela é exagerada, esse problema deve ser corrigido com educação e isso há de se dar no futuro. Porque nós não podemos corrigir um crime com outro, um crime individual com um crime coletivo. Chico Xavier – Mandato de Amor, editado pela União Espírita Mineira – Belo Horizonte, Minas Gerais.

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RESUMO

O presente trabalho busca estabelecer elo de ligação entre os direitos assegurados às pessoas privadas de liberdade, entendidas como direitos individuais manejados coletivamente e os direitos fundamentais estabelecidos pelo legislador Constitucional. Para tanto, estuda-se uma forma de efetivação desses direitos através de políticas públicas elaboradas, a princípio, pelo administrador e em segundo momento, quando este falha em sua missão de efetivação de direitos fundamentais, pelo Judiciário, ante a manifesta possibilidade de controle jurisdicional das políticas públicas. Para tanto, desvendam-se os contornos e principais aspectos dos três institutos envolvidos: direitos fundamentais, políticas públicas e controle jurisdicional. Quanto aos direitos fundamentais, abordam-se conceitos, classificações e principais características. Já no que tange às políticas públicas, esclarece-se quais são seus aspectos estruturantes e também se aclara a respeito dos principais institutos de direito financeiro e orçamentário afetos a ela. Por fim, no que diz respeito ao controle jurisdicional, se faz uma abordagem densa e pontual dos seus fundamentos e de suas especificidades.

Palavras-chave: Direitos Fundamentais, Políticas Públicas, Controle Jurisdicional, Presos.

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ABSTRACT

The presente study was to established a link between the rights secured to persons deprived of freedom, understood as individual rights collectively maneged and the fundamental rights established by constitutional legislature. To ths end, we study a form of realization of these rights through public policies designed at first by the administrator and the second time, when it fails in its mission of effecting fundamental rights, the judiciary, against de clear possibility of judicial review public policy. To do so, to reveal the outlines and main features of the tree institutes involved: fundamental rights, public policy and jurisdictional control. As for the fundamental rights approuch, concepts, classifications and key features. Already in regard to public policies, it clarifies what are their srtuctural aspects and also becomes clear about the major financial institutions of law and affection to her budget. Finally, with regard to judicial review, an approuch is made dense and off their foundations and their specificities.

Keywords: Fundamental rights, Public Policy, Constitutional Control, Prisioners

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LISTA DE SIGLAS a.C – Antes de Cristo ADPF – Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental BVerfG – Tribunal Constitucional Alemão CNJ – Conselho Nacional de Justiça CNPCP – Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária CONPEDI – Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito d.C – Depois de Cristo DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional FUNPEN – Fundo Penitenciário Nacional HC – Habeas Corpus IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística LACP – Lei de Ação Civil Pública LEP – Lei de Execução Penal LOA – Lei Orçamentária Anual ONU – Organização das Nações Unidas RE – Recurso Extraordinário SENAI – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça UNESCO – United Nations, Educational, Scientific and Cultural Organization

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................................

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1. DIREITOS FUNDAMENTAIS COLETIVOS DOS PRESOS......................

17

1.1 Direitos fundamentais da pessoa humana..........................................................

17

1.1.1 Direitos fundamentais a partir de Jellinek.......................................................

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1.2 Dignidade da pessoa humana.............................................................................

27

1.3 Direitos Coletivos...............................................................................................

34

1.3.1 Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos sob a ótica dos privados de liberdade................................................................................................

37

1.4 Eficácia e aplicabilidade dos direitos de proteção aos presos............................

46

2. DIREITO PENAL E FUNÇÃO DA PENA......................................................

50

2.1 A natureza do crime na história e nas sociedades contemporâneas...................

50

2.1.1 Direito penal na Idade Antiga.........................................................................

51

2.1.2 Direito penal na Idade Média..........................................................................

55

2.1.3 Direito penal na Idade Moderna......................................................................

61

2.2 Teorias penais e função da pena.........................................................................

69

2.2.1 A resposta negativa: os sistemas abolicionistas..............................................

71

2.2.2 A resposta positiva: os sistemas justificacionistas..........................................

73

2.2.2.1 Teorias absolutas ou retributivas da pena.....................................................

74

2.2.2.2 Teorias relativas ou preventivas da pena......................................................

77

2.2.2.2.1 Teoria da prevenção geral da pena............................................................

78

2.2.2.2.2Teoria da prevenção especial da pena........................................................

81

2.2.2.3 Teoria mista ou unificadora da pena............................................................

84

3. EXECUÇÃO PENAL E DIREITOS DOS PRIVADOS DE LIBERDADE..

91

3.1 Reintegração social.............................................................................................

91

3.2 Direitos dos presos no curso da execução da pena.............................................

102

3.3 Sistema Penitenciário nacional...........................................................................

114

3.3.1 Fundo Penitenciário Nacional e a execução orçamentária e de recursos do

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sistema penitenciário................................................................................................

120

4. EXECUÇÃO PENAL E POLÍTICAS PÚBLICAS: EFETIVIDADE DOS DIREITOS DOS PRESOS.....................................................................................

127

4.1 Judicialização das políticas públicas e efetivação dos direitos coletivos dos presos........................................................................................................................

127

4.1.1 Discricionariedade administrativa e controle jurisdicional.............................

130

4.2 Limites à intervenção jurisdicional no campo de políticas públicas e críticas pontuais quanto aos limites......................................................................................

136

4.2.1 Reserva do possível como restrição orçamentária..........................................

136

4.2.2 O mínimo existencial – Limite ao administrador e ao Poder Jurisdicional.....

141

4.2.3 Proporcionalidade e o dever de proteção do Estado........................................

144

4.3 Políticas Públicas e o processo reintegrativo por meio da Execução Penal.........................................................................................................................

148

CONCLUSÃO........................................................................................................

156

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................

160

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INTRODUÇÃO

O estudo dos direitos coletivos é objeto de profundas reflexões cotidianas frente as mais variadas manifestações da sociedade. Tem-se observado de forma veemente que diversas correntes doutrinárias discorrem sobre todos os aspectos que permeiam esses direitos, desde a sua concepção genérica de direito que diz respeito à sociedade, até as suas espécies hoje definidas como direitos coletivos, direitos difusos e direitos individuais homogêneos. No que se refere aos direitos dos presos, pode-se notar que rol expressivo desses direitos se encontra, no ordenamento pátrio, estipulados na Lei de Execução Penal, com o intuito de proporcionar aos seus destinatários instrumentos de reintegração social e, à sociedade, segurança. O Estado moderno, no seu processo histórico de desenvolvimento, evoluiu a partir de um modelo de Estado absoluto, em que o poder estava concentrado no rei e era exercido de forma ilimitada, para um novo modelo denominado de Estado constitucional, de separação de poderes, submetido ao direito, regido por leis e conformado por uma Constituição que regula tanto sua organização, como a relação com os cidadãos, de modo a impedir o arbítrio. Em sua origem, o Estado constitucional assentava-se sobre a ideia de liberdade formal, que importava apenas na abstenção do Estado e no respeito às liberdades fundamentais do indivíduo. Os atos de governo, desde que estivessem em conformidade com a lei, reputavam-se legítimos. As Constituições nascidas sob esse modelo eram como meros manifestos políticos impregnados de declarações de direitos e de promessas de concretização futura. O grave quadro de desigualdade social e a pressão das classes oprimidas força o Estado constitucional a intervir no campo social, assegurando direitos sociais mínimos. A superação desse modelo de Estado fez nascer o Estado democrático de direito, no qual, para além do respeito às liberdades negativas, também é preciso proporcionar condições materiais necessárias ao gozo e à promoção ativa da liberdade e de outros bens constitucionalmente valiosos. A Constituição deixa de ser uma mera carta de intenções e assume uma posição de supremacia, dotada de um elevado grau de normatividade determinante de todas as relações jurídico-sociais e da ação de todos os órgãos do Estado. A democracia, como princípio, torna-se impulso dirigente da sociedade, de maneira a oferecer a todos a possibilidade de desenvolvimento integral e condições de igualdade econômica, política e social.

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O Estado moderno surge e se justifica como meio para dar segurança ao homem, garantindo sua vida, liberdade e sua propriedade diante de agressões partidas de seus semelhantes. A noção de segurança, sob a inspiração do princípio democrático, estende seu âmbito de proteção também à segurança dos direitos fundamentais, impondo ao Estado que encontre caminhos que possibilitem a efetivação de todos os direitos garantidos na Constituição. A democracia pressupõe segurança, pois a insegurança pode levar a soluções contrárias ao ideal democrático e até mesmo à falência da democracia, fragilizando o próprio Estado e suas instituições. Opera-se uma mudança do foco do Estado em direção ao indivíduo como ser humano e cidadão, expandindo a concepção dos direitos fundamentais, tornando-se mais complexa e abrangente e dotando-se de múltiplas dimensões. Para conhecer esse poder estatal e suas dificuldades de efetivar direitos como os direitos dos privados da liberdade, na preservação da ordem e integridade física das pessoas, imprescindível a análise do desenvolvimento histórico dos direitos fundamentais. Formada essa base indispensável, concentra-se em situar a reintegração social do preso entre os fins e tarefas do Estado constitucional e delimitar genericamente o seu âmbito de proteção no Estado democrático de direito. Nessa concepção de Estado democrático de direito, a ordem social é pressuposto para a sobrevivência das instituições e valores conquistados ao longo do tempo. A dignidade humana, por conseguinte, tem relação intrínseca com a necessidade de efetivação das previsões constitucionais, em suas diversas dimensões. Seu estudo axiológico, portanto, se faz necessário no presente trabalho, para compreensão de sua fundamentalidade como direito de todos. Em verdade, os critérios preventivos da pena ainda poderão ser úteis à sociedade, bem como ao agente que cometeu a infração, principalmente no que diz respeito à prevenção especial ou à reintegração do condenado. Deve-se entender que, mais que um problema de Direito Penal, a ausência de reintegração social daquele que teve sua liberdade suprimida pela pena, antes de tudo, é um problema coletivo, é um problema que ataca os interesses públicos, é um problema político-social do Estado. A reintegração é verdadeiro serviço público que deve ser prestado pelo Estado, e responsabilidade também da sociedade em oferecer ao egresso do sistema penitenciário oportunidades de inserção social. Razão pela qual o trabalho também não se furta de construir uma concepção atualizada e dinâmica de política pública, sob o

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manto dos ideais democráticos e princípios constitucionais. Temática que, a partir do momento em que as constituições ultrapassaram os limites da estruturação do poder e das liberdades públicas e passaram a tratar dos direitos fundamentais e de sua concretização, não pode ser olvidada quando se pretende dissertar sobre o controle jurisdicional de ações na área da direitos fundamentais, ainda que sem a pretensão de esgotar o tema. Em um Estado democrático de direito quem governa é a Constituição, impondo-se aos poderes constituídos nela buscar as balizas para a sua atuação na escolha do que atender e de quanto disponibilizar, sem descurar dos mínimos e das prioridades já fixados constitucionalmente. O orçamento deve ser entendido como um instrumento de implementação das imposições constitucionais e expressão do planejamento das políticas públicas a serem realizadas pelo Estado. A noção de escassez é uma noção artificial que não pode ser tida como irrefutável, muitas vezes não passando de uma opção política de não se gastar dinheiro com um determinado direito. A reserva do possível não é um óbice absoluto à realização de políticas públicas voltadas para a concretização do direito fundamental à reintegração social, impondo apenas que essa concretização seja feita à luz do contexto fático e normativo e mediante um juízo de ponderação, fazendo prevalecer, na medida do necessário, as imposições constitucionalmente mais relevantes. Esse modelo de ponderação deve ser empregado, inicialmente, pelo Executivo e pelo Legislativo, no momento de pautar o planejamento, as escolhas alocativas e a execução das políticas públicas. Num segundo momento, então, acaso desrespeitada pelos outros Poderes a ordem axiológica de gastos públicos imposta pela Constituição Federal, poderá Poder Judiciário exercer o controle judicial das leis orçamentárias, privilegiando as prioridades nela estabelecidas. A proteção e a promoção dos direitos fundamentais, entre eles o da reintegração social, constitui uma atividade ponderativa em sua essência, pois as escolhas sobre o que será atendido e em quanto será atendido implicam numa definição ou eleição de prioridades. O juízo de ponderação permitirá sindicar as escolhas dos Poderes públicos, de modo a eleger aquela que estiver conforme ao conjunto de valores e princípios constitucionais. Essa operação, entretanto, exige critérios racionais, que não só pautem o controle judicial da liberdade do administrador e do legislador e permitam o controle das próprias decisões judiciais, mas também que leve em consideração a

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vontade expressa por meio dos órgãos de participação social na gestão das políticas públicas. Portanto, o exame do controle jurisdicional das políticas de segurança pública, para que se possibilite a efetivação dos direitos previstos na Lei de Execução Penal, garantindo de forma imediata a dignidade da pessoa humana do preso, visando principalmente a reintegração social e de forma mediata, alcançar a segurança pública entendida como um direito coletivo é a pedra de toque do presente trabalho.

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CAPÍTULO 1 DIREITOS FUNDAMENTAIS COLETIVOS DOS PRESOS

1.1 Direitos Fundamentais da pessoa humana

Os direitos fundamentais da pessoa humana assumem, com a nova ordem constitucional de 1988, novas características e funções perante os demais direitos e notadamente, perante aos seus destinatários ou titulares. Sobre a terminologia adotada direitos fundamentais revela-se a opção por sua adoção frente a direitos humanos e direitos do homem, direitos subjetivos públicos, ainda que pesem as variadas posições, todas com peso teórico relevante1, a própria Constituição utilizou-se de variadas semânticas para expressar direitos fundamentais. As expressões direitos humanos e direitos fundamentais são comumente utilizadas como sinônimas necessitando, porém, de distinção quanto à sua justificação terminológica, visto que para Sarlet2, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para diferenciação dos termos é que direitos fundamentais se aplica para os direitos humanos reconhecidos e positivados dentro do ordenamento constitucional positivo de um Estado, enquanto que direitos humanos teria relação com documentos de ordem internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional). É importante que se registre a diferença entre direitos humanos e direitos do homem, não se equiparando mais as duas expressões, desprendendo-se os conceitos, até porque Bobbio os referenciou de forma inconteste. Quando os direitos do homem eram considerados unicamente como direitos naturais, a única defesa possível contra a sua violação pelo Estado era um direito igualmente natural, o chamado direito de resistência, Mais tarde, nas Constituições que 1

Cf. LUÑO, Antonio enrique Pérez. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constituición. 5 ed., Madrid: Tecnos, 1995. p. 21. 2 SARLET, Ingo Wolgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10 ed., rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 29.

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reconheceram a proteção jurídica de alguns desses direitos, o direito natural de resistência transformou-se no direito positivo de promover uma ação judicial contra os próprios órgãos do Estado. [...] Quando se diz que a Declaração Universal representou apenas o momento inicial da fase final de um processo, o da conversão universal em direito positivo dos direitos do homem, pensa-se habitualmente na dificuldade de implementar medidas eficientes para sua garantia [...]3. Desta forma, direitos humanos referem-se aos direitos positivados nas Declarações e em documentos internacionais, possuindo alta carga valorativa, constituindo-se em um sistema de valores4, já que, pela primeira vez na história, o consenso sobre a validade e capacidade de reger os destinos da comunidade futura foi expressamente declarado, constituindo-se de um universalismo valorativo. Já a expressão direitos do homem indica a relação aos direitos naturais, não de um homem em abstrato, subtraído ao fluxo da história e sim de um homem essencial e histórico, evolutivo, transformável, até pela visão dos jusnaturalistas onde em Hobbes se verificava o reconhecimento apenas do direito à vida e em Locke o direito à liberdade, demonstrando a impossibilidade de dissociação do homem com a história e, por conseguinte, de seu processo evolutivo enquanto homem social. O cerne nessa inicial discussão é a diferenciação entre direitos do homem, direitos humanos e direitos fundamentais. Desta feita, a distinção entre as expressões se da em “‘direitos do homem’ (no sentido de direitos naturais não, ou ainda não positivados), ‘direitos humanos’ (positivados na esfera do direito internacional) e ‘direitos fundamentais’ (direitos reconhecidos pelo direito constitucional de casa Estado)5”. Nesse contexto, de acordo com o ensinamento de Pérez Luño, o critério mais adequado para determinar a diferenciação entre ambas revelou conceito de contornos mais amplos e imprecisos que a noção de direitos fundamentais, de tal sorte que estes possuem sentido mais preciso e restrito, na medida em que constituem o conjunto de direitos e liberdades institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo direito positivo de determinado Estado, tratando-se, portanto, de direitos delimitados

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BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de Celso Lafer. Nova ed., Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 31. 4 Ibidem. p. 28. 5 SARLET. Ibidem. p. 30.

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espacial e temporalmente, cuja denominação se deve ao seu caráter básico e fundamentador do sistema jurídico do Estado de Direito.6 Isso revela um aspecto importante da diferenciação entre direitos fundamentais e direitos humanos. Estes guardam uma concepção jusnaturalista, visto que são formados de alta carga valorativa, porém sem cunho obrigacional de adoção e efetivação, ao passo que os direitos fundamentais têm matiz constitucional ante sua positivação e com isso gera obrigações de respeito e efetivação, tanto por parte do Estado que o incorpora ao seu ordenamento constitucional como pelo destinatário ou titular desse direito. A positivação de direitos fundamentais significa a incorporação da ordem jurídica positiva dos direitos considerados naturais. Porém, não basta apenas a positivação, é importante a positivação na Constituição (constitucionalização) e um lugar de destaque e que mereça especial proteção, assinalando-lhes a dimensão de Fundamental Rights7 (fundamentalização). Sem essa positivação, os direitos fundamentais são apenas aspirações, valores, esperanças, mas não são direitos protegidos.

Os direitos fundamentais, como resultado da personalização e positivação constitucional de determinados valores (daí seu conteúdo axiológico), integram, ao lado dos princípios estruturais e organizacionais (a assim denominada parte orgânica ou organizatória da Constituição), a substância propriamente dita, o núcleo substancial, formado pelas decisões fundamentais, da ordem normativa, revelando que mesmo num Estado constitucional democrático se tornam necessárias (necessidade que se fez sentir de forma mais contundente no período que sucedeu à Segunda Grande Guerra) certas vinculações de cunho material para fazer frente aos espectros da ditadura e do totalitarismo. 8

O reconhecimento destas diferenças não significa desconsiderar a relação existente entre direitos humanos e direitos fundamentais, uma vez que, segundo Sarlet9, a maior parte das Constituições do segundo pós-guerra se inspirou tanto na Declaração Universal de 1948, quanto nos diversos documentos internacionais e regionais que as sucederam, ocorrendo assim, um processo de aproximação e harmonização.

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Idem. Ibidem. p. 31. Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. 8 reimp. Coimbra: Edições Almedina, 2000. p. 377. 8 SARLET. Ibidem. p. 61. 9 CANOTILHO. Ibidem. p. 32. 7

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Essa diferenciação e conceituação têm hoje apenas caráter didático já que o problema que os direitos fundamentais enfrentam hoje, não é mais sua fundamentação, mas sim sua defesa e efetivação. “Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que sejam continuamente violados”10. A fundamentalidade de um direito, segundo Alexy, passa por duas categorias de definição. Uma de sentido formal e outra de sentido material. “A fundamentalidade formal decorre da sua posição no ápice da estrutura escalonada do ordenamento jurídico, como direitos que vinculam diretamente o legislador, o Poder Executivo e o Judiciário”11 (grifo nosso). É, pois, o fato de incorporar dentro do texto constitucional, categoria especial de direitos carecedores de proteção, sendo colocadas num patamar superior da ordem jurídica. Dessa forma, por estarem presentes positivamente no texto constitucional, muitas vezes constituem limites materiais de revisão constitucional. “Sempre que alguém tem um direito fundamental, há uma norma que garante esse direito”12. O ponto mais importante, porém, é a vinculação dos poderes públicos aos direitos assegurados como fundamentais. Do momento de sua fundamentalização formal, a vinculação dos poderes é inescusável, devendo seguir todos os parâmetros possíveis para sua efetivação. A fundamentalização material, conforme ensina Canotilho13, é constitutivo das estruturas básicas do Estado e da sociedade. Somente a ideia de fundamentalização material justifica a abertura da Constituição para outros direitos, também fundamentais, mas não constitucionalizados e abertura a novos direitos, podendo então falar-se em clausulas abertas e em bloco de constitucionalidade. Colocadas essas premissas iniciais, se faz oportuno apresentar uma definição dogmática sobre o conceito de direitos fundamentais, baseada no

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BOBBIO. Ibidem. p. 25. No mesmo sentido v. CANOTILHO, Ibidem. p. 378. ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros. 2008, p. 520. 12 Idem. Ibidem. p. 50. 13 CANOTILHO. Ibidem. p. 379. Cf. ainda ALEXY. Ibidem. p. 522. 11

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posicionamento de Dimoulis e Martins: “Direitos fundamentais são direitos públicos14subjetivos15 de pessoas (naturais ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual”16. “A primeira função dos direitos fundamentais – sobretudo dos direitos, liberdades e garantias – é a defesa da pessoa humana e da sua dignidade perante os poderes do Estado (e de outros esquemas políticos coactivos)”.17 Assim, para que possamos entender o impacto da fundamentalidade formal e material dos direitos fundamentais, é mister que se faça uma digressão histórica sobre estes direitos. Posta essa premissa, enfocar-se-á no presente trabalho a marcha dos direitos fundamentais após a Revolução Francesa de 1789, por ser interessante conhecer o contexto político-jurídico da evolução de tais direitos para bem situar a gênese dos direitos de dimensão coletiva e dos instrumentos processuais especialmente criados para sua tutela. Os direitos fundamentais são frutos de um processo histórico, levando-se em consideração as necessidades dos seres humanos, o que, por si só, justifica a necessidade de sua constante redefinição, surgindo, nesse passo, o que a doutrina denomina de dimensões dos direitos fundamentais, visto que sua trajetória inicial deu-se com o reconhecimento nas primeiras Constituições escritas, encontrando-se ainda em

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Sarlet denuncia a questão semântica da adoção do adjetivo público aos direitos subjetivos, justificando a não adoção desde conceito e sim que direitos fundamentais são direitos subjetivos e não direitos públicos-subjetivos, pois o mesmo se revela anacrônico e superado, não estando afinado com a realidade constitucional, uma vez que atrelada a uma concepção positivista e essencialmente estatista dos direitos fundamentais na qualidade de direitos de defesa do indivíduo contra o Estado, típica do liberalismo. Assim, quando se fala no contexto da perspectiva subjetiva dos direitos fundamentais, está se referindo à possibilidade que tem o titular (considerada como a pessoa individual ou ente coletivo a quem é atribuído) de fazer valer judicialmente os poderes, as liberdades ou mesmo o direito à ação ou às ações negativas ou positivas que lhe foram outorgadas pela norma consagradora do direito fundamental em questão. Cf. Ibidem. p. 152-154. 15 De outro lado, segundo Gilmar Mendes, a perspectiva objetiva “resulta do significado dos direitos fundamentais como princípios básicos da ordem constitucional. Os direitos fundamentais participam da essência do Estado de Direito democrático, operando como limite do poder e como diretriz para a sua ação. As constituições democráticas assumem um sistema de valores que os direitos fundamentais revelam e positivam. Esse fenômeno faz com que os direitos fundamentais influam sobre todo o ordenamento jurídico, servindo de norte para a ação de todos os poderes constituídos. Os direitos fundamentais, assim, transcendem a perspectiva da garantia de posições individuais, para alcançar a estatura de normas que filtram valores básicos da sociedade política, expandindo-os para todo o direito positivo. Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 300. 16 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 3 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 49. 17 CANOTILHO. p. 407.

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“processo de transformação e que culmina com a recepção nos catálogos constitucionais e na seara do Direito Internacional, de múltiplas e diferenciadas posições jurídicas”18. Alguns autores, contudo, preferem a terminologia gerações de direitos fundamentais à utilizada neste trabalho, mas, como bem pondera André Ramos Tavares, “a ideia de ‘gerações’, contudo, é equívoca, na medida em que dela se reduz que uma geração se substitui, naturalmente, à outra, e assim, sucessivamente, o que não ocorre, contudo, com as ‘gerações’ ou ‘dimensões’ dos direitos humanos”.19 Dessa forma, como os direitos fundamentais alicerçam-se nas necessidades dos seres-humanos inseridos na sociedade, suas dimensões20 não excluem umas às outras, mas sim interpenetram-se, ou seja, ocorre entre elas a relação de complementariedade.

Com efeito, não há como negar que o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o caráter de um processo cumulativo, de complementariedade, e não de alternância, de tal sorte que o uso da expressão “gerações” pode ensejar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual há quem prefira o termo “dimensões” dos direitos fundamentais, posição esta que aqui optamos por perfilhar, na esteira da mais moderna doutrina. 21

1.1.1 Direitos fundamentais a partir de Jellinek

A finalidade principal dos direitos fundamentais se revela em conferir aos indivíduos uma postura jurídica de direito subjetivo, na maioria das vezes de natureza material, mas em outras de natureza processual, limitando a liberdade de atuação estatal. Por isso, cada direito fundamental constitui, na definição do constitucionalista alemão

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SARLET, Ibidem. p. 46. TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 7 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 468. 20 Cabe ressaltar que essa denominação “gerações”, pela doutrina constitucional moderna, não se mostra mais adequada, pois manifesta a impressão de que os direitos humanos vão se tornando obsoletos ao passar do tempo, com o surgimento de novas gerações. Portanto, mais adequada a utilização de “dimensões de direitos humanos”, não obstante adotarmos a classificação tradicional de Norberto Bobbio. Na realidade, são direitos que transpassam o tempo e permanecem inseridos no patrimônio de cada pessoa, razão pela qual devem ser observados e protegidos. Por outro lado, importante ainda revelar que, frente às novas relações sociais e evolução tecnológica, em especial da engenharia genética, hodiernamente, fala-se em uma quarta geração ou dimensão de direitos humanos, qual seja, a relativa à integridade do patrimônio genético. 21 SARLET. Ibidem. p. 45. 19

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Georg Jellinek, um direito público subjetivo, isto é, um direito individual que vincula o Estado.22 A depender da matéria tratada, o Estado pode estar obrigado a fazer algo ou abster-se de atuar. Portanto, do ponto de vista do indivíduo um direito fundamental representa, visto pela perspectiva do Estado, uma norma de competência negativa23 que restringe sua atuação. Jellinek desenvolveu parte de seu trabalho observando as formas de interação entre o indivíduo e o Estado e a depender dessa interação ou status é que se fixam direitos e deveres. Assumindo a divisão feita por Jellinek, têm-se algumas divisões dessas relações e que ao final assumem a posição de cada uma das dimensões de direitos fundamentais propaladas pelos teóricos. Primeiramente cumpre falar sobre os direitos de status negativus ou de pretensão de resistência à intervenção estatal. Trata-se de direitos que permitem aos indivíduos resistir a uma possível atuação do Estado. Nessa hipótese, o Estado não deve interferir na esfera do indivíduo, sendo que este pode repelir eventual interferência estatal, resistindo com vários meios que o ordenamento lhe confere, protegendo a liberdade individual contra uma possível atuação estatal, limitando-as.24 A essência de tal direito está na proibição de interferência imposta ao Estado, tratando-se de um direito negativo, pois gerador da obrigação negativa endereçada ao Estado, a obrigação de deixar de fazer algo. “Afirmaram-se os direitos de liberdade, isto é, todos aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado”.25

A constatação de que o status negativo de Jellinek é formado exclusivamente por faculdades, ou seja, por liberdades jurídicas não protegidas, é confirmada por manifestações do próprio Jellinek acerca de sua proteção por meio de 22

DIMITRI; MARTINS. Ibidem. p. 57. Cf. DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 87-88. A expressão “competência negativa” indica simplesmente a impossibilidade de atuação do Estado em determinadas hipóteses. Trata-se da “outra face” do direito fundamental, ou seja, se de um lado, ele significa outorga de uma esfera de liberdade ao seu titular, de outro, significa desistência pelo Estado, que monopoliza a força politicamente organizada de uma competência específica [...]. 24 DIMITRI; MARTINS. Ibidem. p. 58. 25 BOBBIO. Ibidem. p. 32. 23

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direitos ao não-embaraço em face do Estado, isto é, acerca daquilo que comumente é chamado de ‘direito de defesa’. Segundo Jellinek, o status negativo está ‘protegido pela pretensão do indivíduo ao seu reconhecimento e pela proibição de que as autoridades estatais o perturbem, ou seja, pela proibição em relação a qualquer imposição de ordem ou de coação não legalmente fundamentada’. 26

Além disso, insta reconhecer que alguns dos clássicos direitos fundamentais de primeira dimensão ou de status negativus estão sendo revitalizados e até mesmo ganhando em importância na atualidade, de modo especial em face das novas formas de agressão aos valores tradicionais incorporados ao patrimônio jurídico da humanidade, nomeadamente da liberdade, igualdade e da dignidade da pessoa humana.27 Resultado da reação do indivíduo contra a opressão do Estado absolutista, a Revolução Francesa de 1789 inaugurou a idade contemporânea, sendo que no mesmo ano seus valores foram lapidados da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, que pode ser considerada um marco na evolução dos direitos fundamentais.

[...] os direitos fundamentais de defesa se dirigem a uma obrigação de abstenção por parte dos poderes públicos, implicando ara estes um dever de respeito a determinados interesses individuais, por meio da omissão de ingerências ou pela intervenção na esfera de liberdade pessoal apenas em determinadas hipóteses e sob certas condições. Na esteira destas considerações, importa consignar, que esta “função defensiva” dos direitos fundamentais não implica, na verdade, a exclusão total do Estado, mas, sim, a formalização e limitação de sua intervenção, no sentido de uma vinculação da inerência por parte dos poderes públicos a determinadas condições e pressupostos de natureza material e procedimental, de tal sorte que a intervenção no âmbito de liberdade pessoal não é vedada de per si, mas, sim, de modo que apenas a ingerência em desconformidade com a Constituição caracteriza uma efetiva agressão.28

Os direitos fundamentais de primeira dimensão incluem em seu catálogo a dignidade da pessoa humana, sobre a qual retomaremos a discussão no item 1.2.

Os direitos fundamentais cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídicoobjectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjetivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões 26

ALEXY. Ibidem. p. 259-260. SARLET. Ibidem. p. 53. 28 SARLET. Ibidem. p. 168. 27

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dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).29

Em sequência se faz importante referenciar os direitos de status positivus ou a prestações. Também chamados de direitos sociais, a prestações ou de segunda dimensão, engloba os direitos que permitem aos indivíduos exigir determinada atuação do Estado, no intuito de melhorar suas condições de vida, garantindo os pressupostos materiais necessários para o exercício da liberdade, incluindo as liberdades de status negativus. Dessa forma, o Estado deve agir no sentido indicado pela Constituição, tendo o indivíduo o direito de receber algo, que pode ser material ou imaterial. O termo direitos sociais se justifica porque seu objetivo é a melhoria de vida de vastas categorias da população, mediante políticas públicas e medidas concretas de política social.30 Dentro do cenário jurídico, é possível identificar como marcos dos direitos sociais ou de segunda dimensão, as Constituição do México e de Weimar, de 1917 e 1919, respectivamente. Referidos instrumentos político-jurídicos trouxeram melhorias nas condições de vida da população, garantindo-lhes, direito à moradia, à educação, à saúde, à previdência, etc. Nesse prisma, ao Estado que antes era imposta obrigação de não fazer, com o dever de abstenção de interferência na vida privada dos seres humanos, nesta segunda dimensão, ao Estado passa a ser imposta a obrigação de fazer, ou seja, de garantir ao seu povo condições de uma vida digna, proporcionando a cada um de seus membros, ao menos, o mínimo necessário para a sobrevivência, passando-se a exigir do Estado uma postura mais ativista.

Vinculados à concepção de que ao Estado incumbe, além da não-intervenção na esfera de liberdade pessoal dos indivíduos, garantida pelos direitos de defesa, a tarefa de colocar à disposição os meios materiais e implementar as condições fáticas que possibilitem o efetivo exercício das liberdades fundamentais, os direitos fundamentais a prestações objetivam, em última análise, a garantia não apenas da liberdade-autonomia (liberdade perante o Estado), mas também da liberdade por intermédio do Estado, partindo da premissa de que o indivíduo, no que concerne à conquista e manutenção de sua liberdade, depende em muito de uma postura ativa dos poderes públicos. Assim, enquanto os direitos de defesa (status libertatis e status negativus) se dirigem, em princípio, a uma posição de respeito e abstenção por parte dos poderes públicos, os direitos a prestações, que, de modo geral, e ressalvados 29 30

CANOTILHO. Ibidem. p. 408. DIMITRI; MARTINS. Ibidem. p. 60.

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os avanços registrados ao longo do tempo, podem ser reconduzidos ao status positivus de Lellinek, implicam uma postura ativa do Estado, no sentido de que este se encontra obrigado a colocar à disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material (fática).31

Tais prestações estatais que tornam apta a realização dos direitos sociais podem ser de duas espécies, as prestações materiais que “traduzem-se em prestações que alcançam a emancipação social, pois impõem ao Estado o manejo de políticas públicas de cunho social, que tem o mister de reduzir as desigualdades substanciais”32 e “prestações normativas que consistem na criação de normas jurídicas que tutelam interesses individuais”33. Já os direitos de status activus ou de participação oferecem a possibilidade de participar na determinação política estatal de forma ativa. Trata-se de direitos ativos porque possibilitam uma intromissão do indivíduo na esfera política decidida pelas autoridades do Estado34. Há ainda que se falar da terceira dimensão35 de direitos fundamentais a qual não foi discutida por Jellinek e que segundo o teórico predominante Karel Vasak36, surgiu a partir de ideias discutidas em reuniões da ONU e da UNESCO em 1979. Ela engloba os chamados direitos de solidariedade ou fraternidade ou de novíssima dimensão. Está consubstanciada nos direitos transindividuais, como o meio ambiente equilibrado, a autodeterminação dos povos e a paz entre as nações.

Por fim, ressalte-se que, devido ao fato de emergirem de lutas sociais, e representarem as necessidades básicas dos cidadãos, independentemente da geração a que pertençam, os direitos humanos gozam das seguintes características: a) imprescritibilidade (são direitos perenes, que não perdem a 31

SARLET. Ibidem. p. 184-185. LÉPORE. Paulo Eduardo. Direitos fundamentais e processo coletivo: A tutela processual coletiva como instrumento de efetivação de políticas públicas. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade de Ribeirão Preto, 2010. p. 39 33 DIMITRI; MARTINS. Ibidem. p. 61 34 Idem. Ibidem. p. 61. 35 Importante ressaltar que, nas últimas edições de sua obra, Paulo Bonavides vem sustentando a existência de mais duas gerações de direitos, entretanto, seu posicionamento doutrinário é isolado. (Cf. Curso de Direito Constitucional. 24. ed. São Paulo. Malheiros, 2009). 36 Segundo afirmação de Antônio Augusto Cançado Trindade, no ano de 1979, proferindo a aula inaugural no Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estraburgo, o jurista Karel Vasak utilizou, pela primeira vez, a expressão "gerações de direitos do homem", buscando, metaforicamente, demonstrar a evolução dos direitos humanos com base no lema da revolução francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. (Disponível em: . Acesso em 21 julho 2011). 32

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exigibilidade pelo não exercício); b) irrenunciabilidade: (podem até não ser exercidos, mas jamais renunciados); c) Inalienabilidade: são direitos intransferíveis e inegociáveis porque não são dotados de conteúdo econômico-patrimonial e d) unitariedade/indissociabilidade/cumulatividade: devem ser exercidos em conjunto porque somente a garantia de todos, confere garantia ao princípio da dignidade na pessoa humana, epicentro dos direitos humanos.37

Nesse sentido, reforça-se a ideia de que todos os direitos fundamentais são fruto das necessidades humanas básicas, representando corolários do princípio da dignidade da pessoa humana.

1.2 Dignidade da pessoa humana

A construção do conceito de dignidade como um atributo da pessoa38, tal como entendido atualmente somente se iniciou a partir do século XVIII. Não existe necessariamente uma conexão entre direitos fundamentais e dignidade da pessoa humana. Esse sistema protetivo e constitucionalizado de direitos não se assentava na dignidade da pessoa humana, conteúdo por vezes de matriz religiosa ou filosófica até o final do século XVIII. A ligação positivista entre direitos fundamentais e dignidade da pessoa humana só começa com o Estado social de Direito, e mais rigorosamente, com as Constituições e os grandes textos internacionais, notadamente as declarações, subsequentes à segunda guerra mundial, não por acaso. Assim, a ideia de dignidade passou por um processo de generalização, que paulatinamente, alterou também seu conteúdo semântico, vinculando-se ao conceito de liberdade ou não impedimento. Contudo, tal generalização ocorrida no século XVIII com fundamento na liberdade não foi completa39, uma vez que tais declarações de 37

LÉPORE, Ibidem. p. 26. [...] essa igualdade universal dos filhos de Deus só valia, efetivamente, no plano sobrenatural, pois o Cristianismo continuou admitindo, durante muitos séculos, a legitimidade da escravidão, a submissão doméstica da mulher ao homem e a inferioridade dos indígenas americanos. (Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 17.) 39 Roberto Martins lembra que: “Nos Estados Unidos, a Suprema Corte americana, no caso Dred Scott, em 1857, defendeu a escravidão e o direito de matar o escravo negro, à luz dos seguintes argumentos: 1) negro não é uma pessoa humana e pertence a seu dono; 2) não é pessoa perante a lei, mesmo que seja tido por ser humano; 3) só adquire personalidade perante a lei ao nascer, não havendo qualquer preocupação com sua vida; 4) quem julgar a escravidão um mau, que não tenha escravos, mas não deve impor esta maneira de pensar aos outros, pois a escravidão é legal; 5) o homem tem o direito de fazer o que quiser com o que lhe pertence, inclusive com seu escravo; 6) a escravidão é melhor do que deixar o negro 38

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direitos foram fruto de um movimento histórico empreendido pela classe burguesa que não expandiu o conceito de dignidade a todas as pessoas.40 Surge em resposta aos regimes que tentaram sujeitar e degradar a pessoa humana. Hannah Arendt descreve este processo em As origens do totalitarismo dizendo: Os campos destinam-se não apenas a exterminar pessoas e degradar seres humanos, mas também servem à chocante experiência da eliminação, em condições cientificamente controladas da própria espontaneidade como expressão da conduta humana, e da transformação da personalidade humana numa simples coisa, em algo que nem mesmo os animais são; pois o cão de Pavlov que, como sabemos, era treinado para comer quando tocava um sino, mesmo que não tivesse fome, era um animal degenerado.41

Após o fim da segunda guerra mundial, o conceito de dignidade humana ressurge com vigor e é utilizado para demonstrar absoluto repúdio aos horrores nela constitucionalização ganha impulso, podendo-se citar a Constituição italiana de 1947 e a Lei Fundamental alemã de 1949.42 No processo de constitucionalização dos direitos humanos e sua consequente fundamentalidade, a Constituição conferiu uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais. E essa concordância repousa na dignidade da pessoa humana, ou seja, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado.

[...] ao afirmar-se que o “desconhecimento e o desprezo dos direitos do homem” tinham conduzido “a actos de barbárie que revoltaram a consciência da Humanidade” e que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (preâmbulo da Declaração Universal). 43

enfrentar o mundo. (MARTINS, Ives Gandra da Silva. A dignidade da pessoa humana desde a concepção. In MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (Org.). Tratado Luso-Brasileiro da dignidade humana. 2 ed. atual. e ampl. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p.150). 40 COSTA, Helena Regina Lobo da. Dignidade humana. Teorias de prevenção geral positiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 23. 41 ARENDT, Hannah. apud COSTA. Ibidem. p. 26. 42 COSTA. Ibidem. p. 26-27. 43 MIRANDA, Jorge. A dignidade da pessoa humana e a unidade valorativa do sistema de direitos fundamentais. In MIRANDA; SILVA. Ibidem. p.169.

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Nessa perspectiva, como característica essencial da pessoa tida como sujeito e não como objeto, a dignidade é um princípio que co-envolve todos princípios relativos aos direitos e também aos deveres das pessoas e à posição do Estado perante elas. Diria Jorge Miranda que a dignidade da pessoa humana é um “princípio axiológico fundamental”44 e “limite transcendente do poder constituinte”45, ou seja, um metaprincípio ou postulado normativo.46 É a consideração desta imagem da pessoa na interpretação das normas jurídicas, determinada pelo postulado da dignidade humana, que permite o ingresso de novos conteúdos nas normas jurídicas, sobretudo no âmbito dos direitos fundamentais, estabelecendo limites à interpretação e o consequente ganho de sua força normativa. Sendo encarada essa vertente da dignidade da pessoa humana como postulado normativo, esta indica como devem ser aplicadas e interpretadas outras normas, sendo que o principal âmbito de aplicação da dignidade como postulado são efetivamente os direitos fundamentais. Contudo, essa função de postulado normativo não deve ser confundida com aquelas desempenhadas pela dignidade da pessoa humana como princípio. O postulado estrutura a intepretação e aplicação de outras normas. Sobre isso, Ávila adverte que os postulados não

[...] funcionam como qualquer norma que fundamenta a aplicação de outras normas, a exemplo do que ocorre no caso de sobreprincípios como o princípio do Estado de Direito e do devido processo legal. Isso porque esses sobreprincípios situam-se no próprio nível das normas que são objeto de aplicação, e não no nível das normas que estruturam a aplicação de outras. Além disso, os sobreprincípios funcionam como fundamento, formal e material, para a instituição e atribuição de sentido às normas hierarquicamente inferiores, ao passo que os postulados normativos funcionam como estrutura para aplicação de outras normas.47

O postulado normativo da dignidade da pessoa humana faz com que os direitos fundamentais possam se atualizar em face dos perigos hodiernos, adquirindo configurações novas e se adequando às mudanças da realidade social, já que a dignidade humana adquire feições mais amplas do que aquelas referentes ao princípio da 44

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. T. II. 6 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. p. 270. 45 Idem. Ibidem. p. 135. 46 Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003. 47 Idem. Ibidem. p 80.

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dignidade, podendo-se falar em dignidade em sentido amplo – como postulado normativo – e dignidade em sentido estrito – como princípio. Por esta razão, o postulado da dignidade da pessoa humana funciona como uma chave interpretativa que abre o sistema jurídico, permitindo a produção de resposta a novas questões, delimitando o alcance de certas normas e resolvendo antinomias.48 Há que se ressaltar que quando se refere à dignidade da pessoa humana, está a se referir à pessoa concreta, na sua vida real e não se um ser abstrato e ideal. É o homem ou a mulher tal como existe, que a ordem jurídica considera irredutível, insubstituível e irrepetível49 e cujos direitos fundamentais a Constituição enuncia e protege50. Canotilho também assume esse papel de centro histórico e valorativo principal da dignidade da pessoa humana, afirmando que esta se refere à ideia prémoderna e moderna da dignitas-hominis de Pico della Mirandola no Discurso sobre a dignidade humana de 1496, ou seja, do indivíduo conformador de si próprio e de sua vida segundo o seu próprio projeto espiritual, assumindo após as experiências históricas de aniquilação do ser humano o reconhecimento de limite e fundamento da atuação estatal e principalmente, de domínio político da República.51

48

COSTA. Ibidem. passim. MIRANDA. Ibidem. p. 170. 50 "(...) a dignidade da pessoa humana precede a Constituição de 1988 e esta não poderia ter sido contrariada, em seu art. 1º, III, anteriormente a sua vigência. A arguente desqualifica fatos históricos que antecederam a aprovação, pelo Congresso Nacional, da Lei 6.683/1979. (...) A inicial ignora o momento talvez mais importante da luta pela redemocratização do país, o da batalha da anistia, autêntica batalha. Toda a gente que conhece nossa História sabe que esse acordo político existiu, resultando no texto da Lei 6.683/1979. (...) Tem razão a arguente ao afirmar que a dignidade não tem preço. As coisas têm preço, as pessoas têm dignidade. A dignidade não tem preço, vale para todos quantos participam do humano. Estamos, todavia, em perigo quando alguém se arroga o direito de tomar o que pertence à dignidade da pessoa humana como um seu valor (valor de quem se arrogue a tanto). É que, então, o valor do humano assume forma na substância e medida de quem o afirme e o pretende impor na qualidade e quantidade em que o mensure. Então o valor da dignidade da pessoa humana já não será mais valor do humano, de todos quantos pertencem à humanidade, porém de quem o proclame conforme o seu critério particular. Estamos então em perigo, submissos à tirania dos valores. (...) Sem de qualquer modo negar o que diz a arguente ao proclamar que a dignidade não tem preço (o que subscrevo), tenho que a indignidade que o cometimento de qualquer crime expressa não pode ser retribuída com a proclamação de que o instituto da anistia viola a dignidade humana. (...) O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afirmar a invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o regime militar, esse argumento não prospera." (ADPF 153, voto do Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 29-4-2010, Plenário, DJE de 6-82010.) 51 Cf. CANOTILHO. Ibidem. p. 225. 49

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Não foram poucas as limitações aos direitos e às garantias individuais em nossa história política que, gerando longos períodos de autoritarismo52 e de obscurantismo, privaram o ser humano do tratamento compatível com a sua natureza. Sob a égide das normas gerais editadas por esses governos ditatoriais foram aprovadas as principais leis criminais que ainda vigoram entre nós e que, nada obstante as novas interpretações iluminadas pela atual Constituição, nem sempre se libertam da estrutura orgânica incompatível com as liberdades democráticas. Inspirando-se nas Constituições dos países que fizeram uma decidida opção pelo estado de direito democrático, especialmente nos textos constitucionais português e espanhol, nossa Constituição abre um título para cuidar dos princípios fundamentais, especificando que nas suas relações internacionais, a República Brasileira reger-se-á pela prevalência dos direitos humanos, pela defesa da paz, pela solução pacífica dos conflitos e pela cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.53 Colima, fundamentalmente, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais, e a promoção do bem de todos.54 Nesse passo, a República Federativa do Brasil se constitui em Estado Democrático de Direito, alçando a título de fundamento desta a dignidade da pessoa humana.55 Vários de nossos constitucionalistas disseram que a República Federativa do Brasil reconhece que a “pessoa humana tem uma dignidade própria e constitui um valor em si mesmo, que não pode ser sacrificado a qualquer interesse coletivo”56, que “tanto a qualidade de vida desumana quanto a prática de medidas de tortura, sob todas as 52

A problematização da liberdade individual na sociedade contemporânea não pode prescindir, em consequência, de um dado axiológico essencial: o do valor da dignidade da pessoa humana. Por isso mesmo, acentua Celso Lafer (“A reconstrução dos direitos humanos”, p. 118, 1998, Companhia das Letras, S. Paulo): “O valor da pessoa humana, enquanto conquista histórico-axiológica, encontra sua expressão jurídica nos direitos fundamentais do homem. É por essa razão que a análise da ruptura – o hiato entre o passado e o futuro, produzido pelo esfacelamento dos padrões da tradição ocidental – passa por uma análise da crise dos direitos humanos, que permitiu o estado totalitário de natureza”. (RE 466.343 – Voto do Min. Celso de Mello). 53 Cf. BRASIL. Constituição Federal. Art. 4º, II, VI, VII, IX. 54 Cf. Idem. Art. 3º, I a IV. 55 Idem. Art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana; 56 FERREIRA FILHO. Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988.v. I. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p.19.

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modalidades, podem impedir que o ser humano cumpra na terra a sua missão, conferindo-lhe um sentido”57, e revelando aquela inspiração lusa, enfatizam,

Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. “Concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não qualquer ideia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da dignidade humana à defesa dos direitos tradicionais, esquecendo-se nos casos de direitos sociais, ou invocá-la para construir ‘teoria do núcleo da personalidade’ individual, ignorando-a quando se trate de garantir as bases da existência humana”. Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 170), a ordem social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 205) etc., não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana.(grifos no original)58

Outorga-se à dignidade da pessoa humana um valor espiritual e moral que se projeta na realização da própria vida e traz consigo a pretensão ao respeito por parte das pessoas e do Estado, de forma que o “homem como pessoa merece respeito à sua dignidade, que deve ser atendida pelo Estado, que não deve ofender os direitos fundamentais”59. Em síntese,

Esse princípio não é apenas uma arma de argumentação, ou tábua de salvação para a complementação de interpretações possíveis de normas postas. Ele é a razão de ser do Direito. Ele se bastaria sozinho para estruturar o sistema jurídico. Uma ciência que não se presta para prover a sociedade de tudo quanto é necessário para permitir o desenvolvimento integral do homem, que não se presta para colocar o sistema a favor da dignidade humana, que não se presta para servir ao homem, permitindo-lhe atingir seus anseios mais secretos, não se pode dizer Ciência do Direito.60

O mandado de respeitar a dignidade humana significa especialmente que se proíbam as penas cruéis, desumanas e degradantes. O delinquente não pode converter-se 57

BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Grandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. v. I. São Paulo: Saraiva. 1988, p. 425. 58 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 105. 59 PINTO FERREIRA. Manual de Direito Constitucional. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1992. p 47. 60 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 118.

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em simples objeto da luta contra o crime com violação de seus direitos ao respeito e a proteção de seus valores sociais. Os pressupostos básicos da existência individual e social do ser humano devem ser conservados. Diante da importância que se confere ao princípio da dignidade humana, enquadrado como princípio essencial da ordem constitucional (art. 1º, III da Constituição), na sua acepção originária, este princípio proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações. Não se pode perder de vista que a boa aplicação dessas garantias configura elemento essencial de realização do princípio da dignidade humana na ordem jurídica. No exercício da função jurisdicional, o Estado aplica ou deveria aplicar o princípio da dignidade da pessoa humana como centro de convergência de suas decisões, principalmente no que toca à concretização do Direito Penal, a pena. Tendo que a presente dignidade da pessoa humana é o fundamento do Estado Democrático de Direito, informados pelos direitos e garantias individuais, deveriam gerar uma intervenção sancionadora mínima, a resolução da causa penal com a harmônica aplicação do garantismo e da adequada reintegração social do réu.

Aliás, ainda que no âmbito dos direitos de primeira dimensão o déficit de efetivação seja reduzido (pelo menos se considerarmos a possibilidade amplamente reconhecida de sua exigibilidade judicial), é preciso reconhecer que também nesta esfera longe nos encontramos, mesmo entre nós, de um patamar que possa considerar tendencialmente satisfatório. A vida, a dignidade da pessoa humana, as liberdades mais elementares continuam sendo espezinhadas, mesmo que disponhamos, ao menos no direito pátrio, de todo o arcabouço de instrumentos jurídicos-processuais e garantias constitucionais. O problema da efetividade é, portanto, algo comum a todos os direitos de todas as dimensões [...]. Não é à toa que se rememore constantemente que ao mesmo tempo em boa parte dos direitos fundamentais já largamente consagrados encontram-se longe de uma implementação universal e satisfatória, novas e complexas situações e desafios reclamam um enfrentamento adequado, sem que sejam abandonados os esteios do Estado Democrático de Direito.61

Esse direito positivo deve respeitar a dignidade humana, mantendo o ser humano como princípio, sujeito e fim, de todas as instituições sociais, concebendo 61

SARLET. Ibidem. p. 55.

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regras que tratem o indivíduo em consonância com os atributos inerentes à transcendência do mesmo, não importunando o inocente e, nunca olvidando, que o autor de um fato criminoso, pode ter a sua conduta reprovada, mas conserva integralmente aquela mesma dignidade que é um atributo do homem.

1.3 Direitos Coletivos

O estudo dos direitos coletivos é objeto de profundas reflexões cotidianas frente às mais variadas manifestações da sociedade. Tem-se observado de forma veemente que diversas correntes doutrinárias discorrem sobre essa categoria de direitos, desde a sua concepção genérica até as suas espécies hoje definidas como direitos coletivos, direitos difusos e direitos individuais homogêneos. Na evolução por qual passaram os direitos humanos fundamentais, os primeiros

universalmente

consagrados

foram

os

direitos

civis

e

políticos,

denominados direitos de liberdade ou de primeira dimensão. Depois, vieram os direitos sociais, econômicos e culturais, denominados direitos de igualdade, ou de segunda dimensão. Por fim, eclodiram os direitos à autodeterminação, ao desenvolvimento e ao meio ambiente saudável, denominados direitos de solidariedade ou voltados à coletividade, nominados direitos de terceira dimensão. É nesse contexto que adquirem especial relevância os direitos sociais das minorias, os direitos econômicos, os direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, convivendo com outros de notória importância e envergadura, como o direito à vida, à liberdade e à segurança, aos quais se aplicam, em face do Estado de direito, os mesmos instrumentos de garantia constitucionalmente previstos para assegurar a sua eficácia62. Antes de tratarmos da definição sobre direitos coletivos, é importante que se deixe consignado uma importante distinção, em nosso entender mais doutrinária do que prática, mas que é ressaltada pela quase totalidade dos estudiosos.

62

ALVIM, J. E. Carreira. Ação civil pública e direito difuso à segurança pública. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 65, maio 2003. Disponível em . Acesso em 17 fev. 2010.

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Reside a distinção na diferenciação ou proximidade entre os vocábulos interesse e direito subjetivo. Primeiramente, tem-se por interesse qualquer pretensão em geral, ou seja, o desejo de obter qualquer valor ou bem da vida, ou ainda satisfazer alguma necessidade, podendo ou não encontrar respaldo no ordenamento jurídico. Em segundo lugar, direito subjetivo segundo Reale é a “possibilidade de exigir-se, de maneira garantida, aquilo que as normas de direito atribuem a alguém como próprio”63. Os direitos de dimensão coletiva já que foram progressivamente sendo amparados pelo ordenamento jurídico passaram da categoria de interesses para o de direitos, já que assentados no ordenamento sob a égide de exigibilidade e coerção.

Sem embargo, a doutrina mais conservadora, ainda movida pelos valores individualistas herdados dos ideais liberais, somente reconhece como direitos subjetivos, passiveis de tutela jurisdicional, aqueles cujos titulares sejam perfeitamente individualizáveis (requisito de difícil ou impossível consecução no que toca aos interesses de dimensão coletiva)64

Posiciona-se no sentido em que não há diferença substancial entre os institutos observáveis de forma prática já que o próprio legislador constitucional, talvez por evitar maiores questionamentos ou por impropriedade e ainda o legislador infraconstitucional consumerista empregaram ambos os termos de forma ambivalente, representando a inequívoca possibilidade de tutela judicial de uns ou outros. 65 Nesse diapasão, Mazzilli diferencia interesse público de interesse privado no sentido em que interesse público, num primeiro momento é utilizado para alcançar o interesse de proveito social ou geral, isto é, o interesse da coletividade, haja vista que quando o legislador edita a lei, e o administrador ou juiz a aplicam, colima-se alcançar o interesse da sociedade e a satisfação do interesse de todos, consubstanciado na

63

REALE, Miguel. Noções preliminares de direito. 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 260. ANDRADE, Adriano; MASSON, Cléber Rogério; ANDRADE, Landolfo. Interesses difusos e coletivos esquematizado. São Paulo: Editora Método, 2011. p. 15. 65 Cf. BRASIL, Constituição Federal. Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: III - ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas. BRASIL, Lei n. 8.072/90. Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. 64

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contraposição do interesse do Estado ao indivíduo.66 Essa acepção também é nominada de interesse público primário e conceituada por Bandeira de Mello “como o interesse resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato de o serem”. 67 Já num segundo momento, tem-se que interesse público assume o caráter secundário quando o Estado, na prática, atua por meio de suas pessoas jurídicas, concretizando o Estado-Administração. Tem-se por interesse privado aquele que consiste na contraposição entre os indivíduos, em seu inter-relacionamento e para satisfações exclusivamente particulares. Contudo, reticências devem ser arguidas contra essa separação de público e privado, já que em deveras vezes a expressão interesse público passou a ser utilizada pelo legislador como sinônimo de interesses sociais, interesses indisponíveis do indivíduo e da coletividade e até de interesses difusos, como por exemplo, quando o art. 82, III, CPC, limita a atuação do Ministério Público às causas em que haja interesse público, relacionado pela qualidade da parte ou pela natureza da lide. Disso derivou as considerações feitas por Assagra68 relativas à superação de visão tradicionalista dado pelos teóricos relativos à superação da “summa divisio público x privado”, onde até meados da década de 70, tanto os direitos subjetivos quanto as normas que os asseguravam eram classificados dessa forma, ou seja, eram tidos como ou direitos públicos, quando o interesse fosse predominantemente público ou privados, quando havia prevalência de interesses privados discutidos. Porém, novos direitos ou interesses foram sendo inseridos ora no ordenamento constitucional e por consequência ao rol de direitos fundamentais, ora na legislação infraconstitucional, também achando seu fundamento naqueles. Acontece que estes não encontravam precisamente um enquadramento na separação concebida até então entre público x privado. Veremos em item posterior (3.1) que a reintegração social se encaixa perfeitamente nesse aspecto. 66

MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 22 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 47. 67 BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26 ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 61. 68 Cf. ALMEIDA, Gregório de Assagra de. Direito Processual Coletivo – Um novo ramo do Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 2003.p. 26.

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Tais direitos assumiram uma dimensão coletiva ao passo que transpassavam o modelo segundo o qual as partes envolvidas são sempre determinadas e estão em pé de igualdade nas relações jurídicas. Ainda, esses novos direitos não se encaixam com perfeição no direito público, pois suas regras não se baseiam em relações onde o poder estatal surge como uma relação de superioridade com os administrados. Assim, de forma ampla, direitos coletivos não são propriamente interesse público nem tampouco interesse privado. Encontram-se nesse limiar, em posição intermediária entre essas duas categorias. Assim, pode-se dizer que os direitos coletivos ou interesses coletivos lato sensu são aqueles “compartilhados por grupos, classes ou categorias de uma empresa, os membros de uma equipe esportiva, os empregados de um mesmo patrão. São interesses que excedem o âmbito estritamente individual, mas não chegam a constituir interesse público”69. Tais direitos podem ser denominados como transindividuais, supraindividuais, metaindividuais, ou simplesmente direitos coletivos lato sensu.

1.3.1 Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos sob a ótica dos privados de liberdade

O momento atual do direito revela a necessidade de efetiva tutela de posições jurídicas que fogem à antiga fórmula individual público/privado. Pelo fato de grupos de pessoas compartilharem os mesmos interesses, o que caracteriza sua transindividualidade, já que supera a esfera do privado e pessoal, o ordenamento jurídico fornece a possibilidade de substituição processual do indivíduo ao coletivo ensejando a resolução da lide, priorizando a economia processual e evitando decisões conflitantes. Ao enfrentar o tema, os teóricos encontraram dificuldades no momento da conceituação dessa nova categoria. Denominaram direitos coletivos lato sensu os direitos coletivos entendidos como gênero, tendo como espécies: direitos difusos, direitos coletivos strictu sensu e os direitos individuais homogêneos. Barbosa Moreira70 em obra pioneira relata a sistematização que seria necessária, sendo os direitos difusos e 69

MAZZILLI. Ibidem. p. 50. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Tutela jurisdicional dos interesses coletivos ou difusos. Temas de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1984, 3 série. p. 195-197 70

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coletivos strictu sensu direitos essencialmente coletivos enquanto os direitos individuais homogêneos direitos acidentalmente coletivos. Dessa forma, o legislador diferenciou as várias categorias de interesses, e o fez no Código de Defesa do Consumidor, instituído pela Lei 8.078/90, quando do Título III, Capítulo I, art. 81. Passemos à definição e distinção entre tais direitos ou interesses. Antes, porém, é preciso deixar registrado que o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 81 faz menção aos direitos dos consumidores e das vítimas, o que a primeira vista para o leitor incauto levaria a conclusão de que as definições seguintes não se prestariam a tutela de outros direitos constantes fora do âmbito de proteção consumerista. Mas não é isso que acontece. O art. 21 da Lei n. 7.347/1985 – Lei da Ação Civil Pública – LACP – traz a seguinte redação: “Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, as disposições do Título III da Lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor”. Logo, os conceitos do art. 81 são aplicáveis à Lei da Ação Civil Pública, criando o que os teóricos chamam de microssistema de tutela coletiva. Iniciando a análise dos conceitos do art. 81, deve ser observado que a legislação utilizou-se de três critérios ou características identificadoras para classificar os direitos relacionados. O primeiro critério é o objetivo e relaciona-se com o objeto do direito tratado, identificando se este é divisível ou indivisível. O segundo e o terceiro critério são subjetivos e relacionam-se com os titulares do direito discutido. O segundo leva em conta a relação de união entre os sujeitos, sendo ora uma situação de fato e ora uma relação jurídica em comum. O terceiro assume a possibilidade que há de identificar ou não seus titulares. Assim, para o referido diploma legal, há três categorias de interesses coletivos lato sensu71: a) interesses ou direitos difusos, assim entendidos, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato. Estes direitos pertencem a um só tempo, a cada um e a todos que estão numa mesma situação de fato, considerando a transindividualidade e a coletividade. 71

Cf. BRASIL. art. 81, Parágrafo Único, da Lei n. 8.078/90.

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Há direitos difusos que se espraiam por um universo tão significativo da coletividade que beiram o consenso social, confundindo-se com o interesse público primário (como exemplo teríamos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado ou direito à segurança pública), ao passo que outros são menos difundidos, não chegando a confundir-se como o interesse geral da coletividade72 (como exemplo o caso dos direitos difusos dos potenciais consumidores). Como uma de suas características importantes está a indivisibilidade do seu objeto, ou seja, quando há ofensa ao direito de um indivíduo, todos os demais titulares também estão sendo ofendidos. Isso possibilita que o afastamento da ameaça ou reparação do dano causado a um dos titulares beneficia igualmente e a um só tempo todos os demais titulares. Exemplificando é de se imaginar a situação de publicidade enganosa realizada por meio da televisão. Sua veiculação pode lesar, de uma só vez, uma infinidade de consumidores que tem o direito de não serem submetidos a tal espécie de publicidade. Uma vez cessada essa publicidade, todos os consumidores em potencial alcançados pela propaganda estão sendo beneficiados ao mesmo tempo e igualmente. Derivado da indivisibilidade do objeto e como nota distintiva, a coisa julgada nas ações coletivas que versem sobre direitos difusos é erga omnes73, já que a sentença proferirá efeitos para partes além do processo, beneficiando a todos que, mesmo não tendo participado dos polos do processo restarão beneficiados. A segunda característica reside na situação de fato comum, já que nos direitos difusos todos os titulares são titulares do mesmo direito por se encontrarem numa determinada situação fática homogênea. Basta que as pessoas se encontrem na mesma situação prevista na norma de direito material que positivou o direito, não sendo necessária a existência de um vínculo comum de natureza jurídica, exemplificando o direito à segurança pública ou ainda a segurança coletiva das pessoas que moram nas imediações de um estabelecimento prisional que não possui qualquer amparo estatal em sua conservação e que, por consequência, coloca em perigo a harmonia social. A última característica dos direitos difusos reside na indeterminabilidade de seus titulares, posto que estes sejam indeterminados e indetermináveis não sendo possível a individualização, já que ligados estão por situações fáticas e não jurídicas 72 73

MAZZILLI, Ibidem. p. 53. Cf. art. 103, I da Lei n. 8.078/90.

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imprecisas. A lesão, no caso dos direitos difusos não decorrerá diretamente da relação jurídica em si, mas sim da situação fática relevante.74 Como exemplo de direitos difusos temos, além dos já expostos,

[...] o caso da poluição atmosférica causada por uma indústria química, afetando o meio ambiente (destruição da vegetação que recobre a encosta de uma montanha da vizinhança) e a qualidade da vida de todos os moradores da região, das pessoas que trabalham nas empresas da localidade ou simplesmente transitam pelo local. Valem para este exemplo os mesmos comentários feitos em relação aos exemplos anteriores: indivisibilidade do bem jurídico e indeterminação das pessoas atingidas pela poluição. 75

b) interesses ou direitos coletivos strictu sensu assim entendidos, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. O que os diferencia dos últimos é a vinculação de seus titulares e a divisibilidade de seu objeto. Nos interesses coletivos, os titulares são determinados, por um vínculo jurídico definido e não por situação de fato comum, bem como há a indivisibilidade de seu objeto, não havendo a possibilidade de mensuração entre os titulares. Da mesma forma que nos direitos difusos, nos direitos coletivos a indivisibilidade do objeto é característica distintiva. Neles, a lesão ou ameaça ao direito de um dos seus titulares significará a lesão ou ameaça ao direito de todos, ao passo que a cessação da lesão ou ameaça beneficiará concomitantemente a todos. Tomemos por exemplo o caso de aumento ilegal das mensalidades de um determinado plano de saúde. Esse aumento ilegal atingiria a todos os titulares do plano, já que não haveria como ser ilegal para uns e não para outros e uma sentença que declarasse tal ilegalidade numa ação coletiva também beneficiaria a todos esses titulares. Característica importante dos direitos coletivos se reúne no elo de ligação entre os titulares do direito, que diferentemente dos direitos difusos não se dá por uma situação fática e sim por uma relação jurídica que possuem entre si ou com a parte contrária.

74

MAZZILI, Ibidem. p. 53. WATANABE, Kazuo. Do objeto litigioso das ações coletivas: cuidados necessários para sua correta fixação. In A Ação Civil Pública após 25 anos. Coord. Édis Milaré. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 503. 75

41

Essa relação jurídica base, segundo Watanabe76, é a preexistente à lesão ou ameaça de lesão do interesse ou direito do grupo, categoria ou classe de pessoas. Não há relação jurídica nascida da própria lesão ou da ameaça de lesão. Assim,

Os interesses ou direitos dos contribuintes, por exemplo, do imposto de renda constituem um bom exemplo. Entre o fisco e os contribuintes já existe uma relação jurídica base, de modo que, à adoção de alguma medida ilegal ou abusiva, será perfeitamente factível a determinação das pessoas atingidas pela medida. Não se pode confundir essa relação jurídica base preexistente coma relação nascida da lesão ou ameaça de lesão.

Em decorrência desta relação jurídica base existente entre os titulares do direito coletivo, ou deles com a parte contrária, torna-se possível a determinação destes titulares. Serão todos aqueles que fizerem parte da relação jurídica base em comum. Ressalte-se por isso, que o elemento diferenciador entre os direitos difusos e direitos coletivos é a determinabilidade77 dos titulares e a decorrente coesão com o grupo, categoria ou classe anterior à lesão, fenômeno que se verifica nos direitos coletivos strictu sensu e não ocorre nos direitos difusos.78 A coisa julgada na sentença da ação coletiva que versar sobre a proteção de direitos coletivos será ultra partes, nos termos do art. 103, II do Código de Defesa do Consumidor, ou seja, em razão da determinabilidade dos titulares e indivisibilidade do objeto, a coisa julgada alcançará além das partes da relação processual, contudo, limitada ao grupo, categoria ou classe de pessoas unidas por essa relação jurídica. c) interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum. Estes são ligados pela origem comum, mas permanecem essencialmente individuais. O que os diferencia é que podem ser objeto de tutela coletiva.

76

Idem. Ibidem. p. 504. O critério diferenciador para Watanabe é a determinabilidade das pessoas titulares, seja através da relação jurídica-base que as une entre si (membros de uma associação de classe ou ainda acionistas de uma mesma sociedade), seja por meio do vínculo jurídico que as liga à parte contrária (contribuintes de um mesmo tributo, contratantes de um segurador com um mesmo tipo de seguro, estudantes de uma mesma escola etc.). In GRINOVER, Ada Pellegrini. et al. Código brasileiro de defesa do consumidor. Comentados pelos autores do anteprojeto. 5ª ed. rev. e atual. São Paulo: Forense Universitária, 1997. p. 625. 78 DIDDIER; ZANETI. Ibidem. p. 75. 77

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Da definição dada pela legislação consumerista pode-se afirmar que direitos individuais homogêneos nada mais são do que direitos subjetivos individuais com um traço de identidade, de homogeneidade, na sua origem79. A homogeneidade e a origem comum são, portanto, os requisitos para o tratamento coletivo dos direitos individuais. Dessa forma, em sendo apenas direitos individuais, nada obsta que seus titulares, caso prefiram, demandem individualmente sua tutela judicial. Contudo, ante as dificuldades encontradas nas tutelas individuais, nas suas limitações e ineficácia na prestação jurisdicional, o Código de Defesa do Consumidor não apenas viabilizou como também estimulou sua tutela por meio de ações coletivas. No intuito de apontar as diferenças e proximidades com as outras categorias acima tratadas, tem-se como característica inicial a divisibilidade do objeto. Direitos individuais homogêneos são divisíveis, isto é, a lesão sofrida por cada titular pode ser reparada na proporção da respectiva ofensa, o que permite ao lesado optar pelo ressarcimento do seu prejuízo via ação individual, afigurando-se como o principal traço distintivo dessa categoria de direitos. No que tange a origem comum desses direitos, sendo considerada sua segunda característica, o que possibilita denominar os direitos individuais como homogêneos é a identidade de sua origem, baseando-se esta tanto na situação fática como na jurídica em comum. Entretanto, Mazzilli80 pondera que normalmente a origem em comum é oriunda das mesmas circunstâncias de fato e conclui,

Como exemplo de interesses individuais homogêneos, suponhamos os compradores de veículos produzidos com o mesmo defeito de série. Sem dúvida, há uma relação jurídica comum subjacente entre esses consumidores, mas o que os liga no prejuízo sofrido não é a relação jurídica em si (diversamente, pois, do que ocorreria quando se tratasse de interesses coletivos, como numa ação civil pública que visasse a combater uma cláusula abusiva em contrato de adesão), mas sim é antes o fato de que compraram carros do mesmo lote produzido com defeito em série (interesses individuais homogêneos). Assim, o consumidor que adquiriu dois carros terá indenização dobrada em relação ao que adquiriu um só.

79 80

GRINOVER. Ibidem. p. 883. Ibidem. p. 56.

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No mesmo sentido, Watanabe ressalta que a origem comum pode ser de fato ou de direito, e a expressão não significa, necessariamente, uma unidade factual e temporal, não sendo necessário que o fato se dê em um só lugar ou momento histórico, mas que dele decorra a homogeneidade entre os direitos dos diversos titulares de pretensões individuais.81 Direitos individuais homogêneos pela sua natureza individual possuem como final critério diferenciador a determinabilidade de seus titulares. Estes são determinados ou determináveis, podendo a lesão ou ameaça de lesão ser mensurada entre os integrantes do grupo, retirando-se como exemplo os presos dentro de uma penitenciária. Atente-se para o fato de que direitos individuais homogêneos não se enquadram na categoria da transindividualidade, isso porque, não emergem como direitos que pertencem a vários titulares, mas surgem a partir da união de vários interesses individuais que são tutelados coletivamente a partir de uma lesão. Nesse sentido, Gregório Assagra de Almeida:

Trata-se de direitos individuais que são considerados coletivos somente no plano processual e recebem esse tratamento justamente em decorrência da origem comum que detém e do interesse social que justifica a sua tutela processual por intermédio de uma única ação, de forma que se possam evitar decisões contraditórias e o acúmulo de muitas demandas individuais com a mesma causa de pedir e pedido, além de garantir a efetividade desses direitos 82 mesmo diante da dispersão das vítimas.

É importante que se deixe consignado, a oposição que fazem alguns teóricos sobre a correta conceituação e divisão de tutela coletiva e direito coletivo. O principal ponto da crítica reside na confusão essencial entre direitos coletivos, assim os materialmente considerados com a defesa coletiva de direitos individuais, portanto de índole processual. Zavascki pondera,

81

WATANABE In GRINOVER. Ibidem. p. 806. ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Processual Coletivo Brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 481-482. 82

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Uma das principais causas, senão a principal, dos equívocos nesse novo domínio processual foi a de confundir direito coletivo com defesa coletiva de direitos, que trouxe a consequência, a toda evidência distorcida, de se imaginar possível conferir aos direitos subjetivos individuais, quando tutelados coletivamente, o mesmo tratamento que se dá aos direitos de natureza transindividual. A origem contemporânea e comum dos mecanismos de tutela de um e outro desses direitos, acima referida, explica, talvez, a confusão que ainda persiste em larga escala, inclusive na lei e na jurisprudência.83

Notoriamente acrescentada por Nery Júnior84 está a posição segundo a qual o que determina a classificação de um direito como difuso, coletivo ou individual homogêneo é o tipo de tutela jurisdicional que se pretende quando se propõe a competente ação judicial, ou seja, o tipo de pretensão de direito material que se deduz em juízo. Tendo em vista uma importante característica que envolve o processo, a instrumentalidade, que se faz presente de forma a inviabilizar tal pretensão, o processo deve servir como instrumento para a tutela de direitos materiais ou subjetivos e não com o fim em si mesmo, caracterizando ou definindo o tipo de direito que se busca defender. No mesmo sentido Watanabe85 asseverar não assistir razão, sob este aspecto, para a doutrina que entende correta a distinção baseada no pedido e na causa de pedir formulados na demanda, sendo que ela produziria um resultado absurdo, o de negar que o direito tenha alguma natureza antes de ser objeto de litígio em juízo. Bedaque explica pontualmente,

[...] o interesse ou direito é difuso, coletivo ou individual homogêneo independentemente da existência de um processo. Basta que determinado acontecimento da vida o faça surgir. De resto, é o que ocorre com qualquer categoria de direito. Caso não se dê a satisfação espontânea, irá o legitimado bater às portas do Judiciário para pleitear a tutela jurisdicional, ou seja, aquele interesse metaindividual, preexistente ao processo. 86

Aponta-se que o Código de Defesa do Consumidor caminhou em sentido parecido, já que ao disciplinar a tutela coletiva dos direitos difusos, coletivos e 83

ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo – Tutela de direitos coletivos e Tutela coletiva de direitos. 4 ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 32. 84 Cf. NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 9 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 196. 85 WATANABE In GRINOVER. Ibidem. p. 747. 86 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo: Influência do direito material sobre o processo. 5 ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 35.

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individuais homogêneos chama de transindividuais apenas os difusos e os coletivos, não se referindo do mesmo modo aos individuais homogêneos. Logo, é de se aferir que a legislação atribuiu um caráter material aos direitos tutelados e não processual como preferem alguns.

É preciso, pois, que não se confunda defesa de direitos coletivos com defesa coletiva de direitos (individuais). Direitos coletivos são direitos subjetivamente transindividuais (= sem titular individualmente determinado) e materialmente indivisíveis. Os direitos coletivos comportam sua acepção no singular, inclusive para fins de tutela jurisdicional. [...] Já os direitos individuais homogêneos são, simplesmente, direitos subjetivos individuais.87

Presos de uma penitenciária que resolvam litigar contra o Estado, ante a falta de instalações higiênicas, espaço mínimo à sobrevivência, alimentação adequada, valendo-se de ação coletiva estarão manejando direitos individuais homogêneos. Como bem assevera Antônio Gidi:

Percebe-se, nitidamente, ser a homogeneidade dos direitos individuais um conceito que bem poderia designar-se como “relacional”: um direito individual é homogêneo apenas “em relação” a um outro direito individual derivado da mesma origem (origem comum). Não há “um” direito individual homogêneo, mas direitos individuais homogeneamente considerados (...) Acertadamente Kazuo Watanabe alerta que a origem comum não significa, necessariamente, uma “unidade factual e temporal”, quer dizer, não é preciso que o fato gerador seja um único e o mesmo para todos os direitos individuais. O fundamental, acrescenta Arruda Alvim, é que sejam situações “juridicamente iguais”, ainda que se constituam como fatos diferenciados no plano empírico, tendo em vista a esfera pessoal de cada uma das vítimas ou sucessores.88

Como alude Elton Venturi, “direitos individuais homogêneos (...), em verdade, não passam de um artifício legislativo destinado à facilitação da tutela processual”,89 isso porque, nas palavras de Rodolfo de Camargo Mancuso, “um feixe de interesses individuais não se transforma em interesse coletivo pelo só fato de o exercício

87

ZAVASCKI. Ibidem. p. 33-34. GIDI, Antônio. Coisa Julgada e Litispendência nas Ações Coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 3033. 89 VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 61. 88

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ser coletivo. A essência permanece individual”.90 Em matéria de direitos individuais homogêneos não há tutela de direitos coletivos, mas sim, tutela coletiva de direitos. Arremata Elton Venturi:

(...) diante da reconhecida insatisfatoriedade do sistema de tutela individual, em função dos multifacetários obstáculos (econômicos, sociais, políticos e técnicos) ao acesso à justiça, e da percepção do legislador acerca da existência de direitos subjetivos que, não obstante serem qualificáveis como individuais, têm uma origem comum, providenciou-se uma verdadeira abertura no sistema de tutela jurisdicional coletiva para o fim de se autorizar também a proteção desta categoria especial de direitos individuais, à qual se 91 denominou direitos individuais homogêneos. (grifo nosso)

1.4 Eficácia e aplicabilidade dos direitos de proteção aos presos

Como observado, os direitos assegurados às pessoas privadas de sua liberdade são entendidos, na grande maioria dos casos, como direitos individuais que podem ser coletivamente tutelados. Isso não faz com que percam a natureza da individualidade.

Outrossim,

segundo

nossa

Constituição,

direitos

individuais

fundamentais, como os aqui relacionados (vida, liberdade, saúde, dignidade humana, p. ex.) são tidos como possuidores de aplicação imediata com a produção de plenos efeitos. Assim, o art. 5°, §1° da Constituição Federal: As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Essa disposição constitucional expressa, por mais clara que seja, causou e continua causando uma discussão acalorada nos teóricos sobre a eficácia dos direitos fundamentais. É de se observar que todos os preceitos da Constituição possuem certo grau de eficácia jurídica e aplicabilidade, consoante a normatividade que lhe tenha sido outorgada pelo Constituinte.92 Sem adentrar aqui a ampla gama da posições que poderiam ser consideradas no tocante às técnicas de positivação e às funções das normas constitucionais, já que tal problemática é ela mesma merecedora de investigação científica mais profunda, apontar-se-á a questão da eficácia quanto s normas definidoras 90

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 6 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004. p. 53. 91 VENTURI. Ibidem. p. 64. 92 SARLET. Ibidem. p. 257.

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de direitos fundamentais de primeira dimensão ou direitos de defesa, já que estes são o objeto principal da discussão. A razão de o texto constitucional de 1988 ser dotado de um grande número de direitos fundamentais possui bases históricas, já que este sucedeu o período ditatorial, induzindo o legislador constituinte a elencar de forma contundente toda uma gama de direitos. É importante que se pontue a diferenciação terminológica existente entre eficácia e aplicabilidade, determinando com isso o alcance das expressões e as consequências de sua adoção. Para traçar diferenças, utiliza-se da semelhança: eficácia e aplicabilidade referem-se aos qualificativos de uma determinada norma. Somam-se a eles outros termos que também designam qualidades como, por exemplo, existência, vigência, validade e efetividade.

Será existente a norma regularmente formada, como, por exemplo, uma lei, que após passar pelos trâmites legislativos, termina por ser promulgada. Após a promulgação, uma lei será publicada, situação em que poderá estar ou não vigente. A vigência de uma lei, segundo determinação do art. 1° da Lei de Introdução ao Código Civil, se dá após quarenta e cinco dias de sua publicação, se não for outro o prazo estabelecido. Considerando uma norma vigente, analisar-se-á a sua validade. Será válida aquela que se conformar com o seu paradigma de validade, ou seja, com aquela hierarquicamente superior, em relação à qual não poderá divergir. Uma lei para ser válida deve respeitar à constituição. Não respeitando à Constituição, uma norma infraconstitucional será inválida, o que se chama de inconstitucionalidade. Por sua vez, a aplicabilidade é a possibilidade de uma lei gerar efeitos práticos, em um âmbito eminentemente abstrato: a simples existência formal de uma norma completa já lhe confere aplicabilidade. Já a eficácia está relacionada ao nível de aplicabilidade que uma norma pode ter, o que no âmbito constitucional, se especializa nas normas de eficácia plena, contida e 93 limitada. (grifos no original)

Tem-se por efetividade a geração concreta de efeitos, possibilitando que se irradie sobre as relações de uma determinada sociedade94. Nesse sentido doutrina Luís Roberto Barroso: 93

LÉPORE. Ibidem. p. 43. “[...] a norma é eficaz quando irradia efeito, quando produz resultados. A eficácia é um pressuposto da efetividade, porque somente se estabiliza a norma que, apta a gerar conseqüência, tem um relato capaz de ser recebido pelo destinatário de modo a que não ocorra desconfirmação e, em havendo esta, ocorra sanção”. BRITO, Edvaldo. Limites da Revisão Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993. p. 49. 94

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A efetividade significa, portanto, a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação tão íntima quanto 95 possível, entre o dever ser normativo e o ser da realidade social.

Apontando as contradições terminológicas, Sarlet afirma que,

(...) podemos definir a eficácia jurídica como a possibilidade (no sentido de aptidão) de a norma vigente (juridicamente existente) ser aplicada aos casos concretos e de – na medida de sua aplicabilidade – gerar efeitos jurídicos, ao passo que a eficácia social (ou efetividade) pode ser considerada como englobando tanto a decisão pela efetiva aplicação da norma (juridicamente eficaz), quanto o resultado concreto decorrente – ou não – desta aplicação. (...) Na verdade, o que não se pode esquecer é que o problema da eficácia do Direito engloba tanto a eficácia jurídica, quanto a social. Ambas – a exemplo do que ocorre com a eficácia e aplicabilidade – constituem aspectos diversos do mesmo fenômeno, já que situados em planos distintos (o do dever-ser e o do ser), mas que se encontram intimamente ligados entre si, na medida em 96 que ambos servem e são indispensáveis à realização integral do Direito.

No que toca aos direitos dos privados de liberdade, na maioria das vezes, em relação às políticas públicas, para que se possa ter eficácia social, garantindo e aplicando-os, é necessário que, antes, haja eficácia jurídica. Contudo, como estes direitos estão alocados no campo dos direitos de defesa, sua eficácia jurídica é sempre imediata e incontestável. Se os direitos de defesa, como dirigidos, em regra, a uma abstenção por parte do Estado, assumem habitualmente a feição de direitos subjetivos, inexistindo maior controvérsia em torno de sua aplicabilidade imediata e justiciabilidade.97 Os diferentes posicionamentos trafegam entre os que, sustentam que a norma não pode atentar contra a natureza das coisas, e portanto, que boa parte dos direitos fundamentais alcança sua eficácia nos termos e na medida da lei98, e os que, indicam que inclusive as normas de conteúdo programático podem ensejar, em virtude

95

BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas. 7 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 83. 96 SARLET. Ibidem. p. 240. 97 SARLET. Ibidem. p. 260. 98 FERREIRA FILHO. Manuel Gonçalves. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. n. 29. 1988. p. 35.

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de sua aplicabilidade imediata, o gozo de direito subjetivo individual, independe de concretização legislativa.99

[...] pode-se afirmar que aos poderes públicos incumbem a tarefa e o dever de extrair das normas que os consagram (os direitos fundamentais) a maior eficácia possível, outorgando-lhes, neste sentido, efeitos reforçados relativamente às demais normas constitucionais, já que não há como considerar a circunstância de que a presunção da aplicabilidade imediata e plena eficácia que milita em favor dos direitos fundamentais constitui, em verdade, um dos esteios de sua fundamentalidade formal no âmbito da Constituição, na condição de ordem jurídica-normativa [...] Negar aos direitos fundamentais esta condição privilegiada significaria, em última análise, negar-lhes a própria fundamentalidade.100 (grifo nosso)

Com isso, pode-se afirmar que, em se tratando de direitos de defesa ou direitos de primeira dimensão, os direitos assegurados aos presos tanto pela Constituição Federal como pela legislação infraconstitucional101, a lei não se revela absolutamente indispensável à fruição do direito. Neste contexto, inexiste qualquer razão para não fazer prevalecer o mandado contido no art. 5°, §1°, da Constituição.102

99

SARLET. Ibidem. p. 264. Idem. Ibidem. p. 271-272. 101 Conforme se noticiará no Capítulo 3. 102 SARLET. Ibidem. p. 277. 100

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CAPÍTULO 2 DIREITO PENAL E FUNÇÃO DA PENA

2.1 A natureza do crime na história e nas sociedades contemporâneas

Quando se fala em crime, irremediavelmente extrai-se o direito penal como instrumento de realização de tal ato, esquecendo que isso se deu apenas em fases mais recentes da história humana, notadamente após o século XVI. Antes disso, e por óbvio durante toda história da humanidade, o crime esteve presente na civilização humana, ora considerado como violação a alguma divindade ora considerado como violação à sociedade. Tobias Barreto afirmou que,

[...] o Direito Penal é o rosto do Direito, no qual se manifesta toda a individualidade de um povo, seu pensar e seu sentir, seu coração e suas paixões, sua cultura e sua rudeza. Nele se espelha a sua alma. O Direito Penal dos povos é um pedaço da história da humanidade.103

Portanto, sempre que o ser humano reuniu-se em grupo, a sanção pelo descumprimento de determinada norma esteve presente, como punição e limitação a futuros descumprimentos, seja por parte do violador, seja por parte do grupo. Daí a máxima dita por Liszt extraída do Digesto, ubi societas ibi crimen, “o ponto de partida da história da pena coincide com o ponto de partida da história da humanidade” 104. Embora não se possa falar de uma continuidade histórica no direito penal, pode reconhecer-se na sua história uma luta da qual vai surgindo a concepção do homem como pessoa. A origem das penas é tão remota e antiga como a humanidade que se torna difícil localizá-la quanto sua origem e modo de aplicação. Noutros tempos a pena privativa de liberdade considerada como sanção penal não era reconhecida para este fim, apenas como contenção e guarda dos

103

BARRETO, Tobias apud LYRA, Roberto. Direito penal científico: criminologia. 2 ed. Rio de Janeiro: Konfino, 1977. p. 37. 104 LISZT, Franz von. Tratado de direito penal alemão. Trad. José Higino Duarte Pereira. Atualização e notas de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russel, 2003. T. I. p. 74.

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criminosos para preservá-los fisicamente até o momento capital do julgamento e provável execução. “Por isso, a prisão era uma espécie de antessala de suplícios”105.

2.1.1 Direito penal na Idade Antiga

Esse primeiro momento de existência do Direito Penal, entendido como sanção, advém mesmo antes do nascimento do Estado, existindo em sociedades tribais como meio de vingança, pelos atos que provocavam a não manutenção da paz daquela sociedade. “Nas sociedades primitivas, os fenômenos naturais maléficos eram recebidos como manifestações divinas (totem) revoltadas com a prática de certos atos que exigiam reparação”106. Em contrapartida, a punição ao infrator era realizada como reparação pelo desagrado provocado à divindade, através da morte deste, já que o agente não podia habitare intra homines, da mutilação, tortura e trabalhos forçados, ou quando a sorte lhe ajudasse, procedia a fuga, vivendo no ostracismo, afeito à própria sorte ficando à mercê de outros grupos, o que irremediavelmente levava à morte. Freud assinala que totem,

Via de regra, é um animal (comível e inofensivo, ou perigoso e temido) e mais raramente um vegetal ou um fenômeno natural (como a chuva e a água), que mantém relação peculiar com todo o clã. Em primeiro lugar, o totem é o passado comum do clã; ao mesmo tempo, é o espírito guardião e auxiliar, que lhe envia oráculos, e embora perigoso para os outros, reconhece e poupa seus próprios filhos107.

A tal fase da experiência humana com a sanção, convencionou-se chamar de fase da vingança divina, através da satisfação da divindade ofendida, resultante da influência exercida pela religião na vida dos povos antigos. A pena imposta revelava um caráter sacro, na medida em que, na consciência dos povos, a paz encontrava-se sob proteção dos deuses, de modo que a vingança fundamentava-se no preceito divino108. Se a agressão fosse praticada por outros grupos ou pessoas estranhas ao grupo, havia a 105

BITENCOURT. Cezar Roberto. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 28. 106 BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de direito pena1 1. Parte Geral. 15ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva. 2010, p. 59. 107 FREUD, Sigmund. Totem e tabu. Trad. Órizon Carneiro Muniz. 2ªed. Rio de Janeiro: Imago, 1995, v. 13. p. 22. 108 LISZT, Franz. Ibidem. p. 75.

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vingança de sangue, verdadeiras guerras grupais. “Pune-se com rigor, antes com notória crueldade, pois o castigo deve estar em relação com a grandeza do deus ofendido”109.

Deste modo, em sua origem, a pena nada mais foi do que vindita (vingança), pois é mais que compreensível que naquela criatura primitiva dominada pelos instintos, o revide à agressão sofrida devia ser fatal, não havendo preocupações com a proporção, nem mesmo com sua justiça.110

O castigo era aplicado, por delegação divina, pelos sacerdotes, com penas cruéis, desumanas e degradantes, cuja finalidade maior era a intimidação, bem como a purificação da alma do criminoso, através do castigo. É o direito penal religioso, teocrático, sacerdotal. Pode-se destacar como legislação típica dessa fase o Código de Manu, embora legislações com essas características tenham sido adotadas no Egito (cinco Livros), na China (Livro das Cinco Penas), na Pérsia (Avesta), em Israel (Pentateuco) e na Babilônia111. Com o passar do tempo e a evolução social, a sanção passa a assumir um caráter de maior proporcionalidade, abandonando-se paulatinamente a ideia de retaliação mortal, dando lugar a sanções mais comedidas e a fase denominada vingança privada. Segundo Magalhães Noronha,

Surge, então, como primeira conquista no terreno repressivo, o talião. Por ele, delimita-se o castigo; a vingança não será mais arbitrária e desproporcionada. Tal pena aparece nas leis mais antigas, como o código de Hamurabi, rei da Babilônia, século XXIII a.C., gravado em caracteres cuneiformes e encontrado nas ruínas de Susa. Por ele, se alguém tira um olho a outrem, perderá também um olho; se um osso, se lhe quebrará igualmente um osso etc. A preocupação com a justa retribuição era tal que, se um construtor construísse uma casa e esta desabasse sobre o proprietário, matando-o, aquele morreria, mas, se ruísse sobre o filho do dono do prédio, o filho do construtor perderia a vida. São prescrições que se encontram nos § § 196, 197, 229 e 230.112

Aparece o princípio do Talião como primeira forma de humanização e organização da sanção criminal, expondo um tratamento mais igualitário entre as partes 109

MAGALHÃES NORONHA, E. Direito penal. Parte Geral. 33ª ed. São Paulo: Saraiva. 1998, v. 1, p. 21. 110 Idem. Ibidem. p 20. 111 BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de direito pena1 1. Parte Geral. p. 60. 112 MAGALHÃES NORONHA, E. Ibidem. p. 27

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da contenda, esculpido em um cilindro de pedra negra de mais ou menos dois metros de altura, em aproximadamente 3.500 linhas. Tal princípio foi adotado no Código de Hammurabi, o mais antigo direito penal conhecido (entre 2285 e 2242 a.C.), no Êxodo e na Lei das XII Tábuas. Os escravos e as crianças eram considerados coisas, podendo ser objeto de furto. Eram estabelecidas penas drásticas e de aplicação imediata. Contudo, a utilização de métodos mutiladores acabou por deformando as populações que adoravam tal prática. Evolui-se, então, para a fase da composição, eminentemente de cunho pecuniário, como forma de reparação do mal causado, como preço pago à vítima ou família vitimada, pela liberdade do infrator.

Colhe-se a impressão de que o homem tem-se reconhecido, em um permanente conflito consigo mesmo, com aqueles que querem que o processo de reconhecimento seja detido ou revertido. Não falaremos aqui em uma tentativa de estabelecer leis nesse processo, já que isso seria fazer filosofia da história, mas é bom advertir e salientar que o desdobramento que nos mostra o panorama histórico da lei penal, é um dos aspectos mais sangrentos da história. Ele, muito provavelmente, tem custado à humanidade mais vidas que todas as guerras e é suscetível de ferir nossa sensibilidade atual mais profundamente do que o próprio fenômeno da guerra, se por tal entendemos a guerra tradicional, posto que esta, em geral, não supera a tremenda frieza, premeditação e racionalização que caracterizam as crueldades e aberrações registradas na história da legislação penal.113

Por derradeiro, a superação das fases da vingança divina e vingança privada se deram pela fase chamada vingança pública. Nela, o objetivo da repressão penal é a segurança do soberano ou monarca, pela sanção, que mantém as características da crueldade e da severidade, com o mesmo objetivo intimidatório.

Na Grécia Antiga, em seus primórdios, o crime e a pena continuaram a se inspirar no sentimento religioso. Essa concepção foi superada com a contribuição dos filósofos, tendo Aristóteles antecipado a necessidade do livre-arbítrio, verdadeiro embrião da ideia de culpabilidade, firmado primeiro no campo filosófico para depois ser transportado para o jurídico. Platão, com as Leis, antecipou a finalidade da pena como meio de defesa social, que deveria intimidar pelo rigorismo, advertindo os indivíduos para não delinqüir. Ao lado da vingança pública, os gregos mantiveram por longo tempo as vinganças divina e privada, formas de vingança que ainda não mereciam ser denominadas Direito Penal. 114

113

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro v.1. Parte Geral. 7ª ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 158-159. 114 BITENCOURT. Tratado de direito pena1 1. Parte Geral. p. 61.

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Da legislação penal grega, conservam-se apenas fragmentos em obras relacionadas a outras áreas. Através desses fragmentos filosóficos e literários, sabe-se que em Atenas a pena havia perdido a crueldade que era característica das penas antigas, devido à ausência de base teocrática como consequência da base política da pólis. Resultado disso é que os gregos não julgavam em nome dos deuses, desconhecendo a privação da liberdade como pena, tendo caráter apenes de custódia e suplício.

Platão, contudo, propunha no livro nono de As leis, o estabelecimento de três tipos de prisão: uma na praça do mercado, que servia de custódia, outra, denominada fonisterium, que servia de correção, e uma terceira destinada ao suplício, que, com o fim de amedrontar, deveria constituir-se em lugar deserto e sombrio, o mais distante possível da cidade.115

Em que pesem os estudos democráticos e filosóficos então reinantes, os gregos pouco se preocupavam com os direitos fundamentais. De fato, todas as questões da vida, seja no campo social ou político, giravam em torno da polis.116 Em Roma, de início e como em todos os povos antigos, o direito penal teve origem sacra. Mas a partir da Lei das XII tábuas (século V a.C.), em toda sua existência, o Império Romano teve como prioridade a busca pelo poder e pela prosperidade. Por tal motivo, não se ateve à proteção dos direitos fundamentais em face ao arbítrio estatal. O que se garantia eram os direitos das classes privilegiadas, como imperadores e patrícios. O direito penal romano já se encontrava laicizado, estabelecendo-se diferenças entre infrações públicas e privadas.

Os delitos públicos eram perseguidos pelos representantes do Estado, no interesse deste, enquanto os delitos privados eram perseguidos pelos particulares em seu próprio interesse. Não obstante, não se deve pensar que nos delitos públicos incorporam-se apenas delitos contra o Estado. Os delitos públicos se formavam em torno de dois grandes grupos: delitos contra o Estado e delitos contra os particulares. 117

Ao final da República foram publicadas as leges corneliae e juliae, as quais criavam uma verdadeira tipologia de crimes para a época, catalogando os comportamentos criminosos. É inegável que então, que, apesar de não haverem os 115

BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. p. 29. ZAFFARONI; PIERANGELI. Ibidem. p.163. 117 Idem. Ibidem. p. 165-166. 116

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romanos atingido, no direito penal, as alturas a que se elevaram no civil, se avantajaram a outros povos. O fundamento da pena pode-se afirmar, era essencialmente retributivo. Daí o famoso texto de Ulpiano: Carcer enin ad continendos homines non ad puniendos haberit debit (a prisão serve não para o castigo dos homens, mas para a sua custódia)118.

Distinguiram, no crime, o propósito, o ímpeto, o acaso, o erro, a culpa leve, a lata, o simples dolo e o dolus malus. Não esqueceram também o fim de correção da pena: poena constituitur in emendationem hominum (Digesto, tít. XLVIII, Paulo- XIX, 20). Como acentuam os autores, revelou o direito penal em Roma, sobretudo, caráter social.119

2.1.2 Direito penal na Idade Média

No direito penal medieval e moderno sobressaiu-se o direito dos povos germânicos estendendo-se do século V até XI d.C, com caráter privatista e individualista proveniente da natureza de povo guerreiro em que a paz era vista como o direito e a ordem. “A pena mais grave conhecida pelo direito penal germânico foi a ‘perda da paz’ (Frieldlosigkeit), que consistia em retirar-se a tutela social ao apenado, com o que qualquer pessoa podia matá-lo impunemente”,120 ficando fora da tutela jurídica do clã ou grupo. Já nos delitos de ordem privada se produzia a Faida onde o infrator era entregue à vítima ou a seus familiares para que exercessem o direito de vingança. Contudo, em decorrência da instituição do poder público, as penas corporais, na maioria das vezes, capitais, deram espaço a um preço da paz, onde o infrator pagava um valor de ordem pecuniária em troca de sua liberdade. “A porção penal das leis germânicas, tornou-se, na maior parte, um minucioso tabelamento de taxas penais, variáveis segundo a gravidade das lesões e também da categoria do indivíduo”.121 Era o sistema da composição pecuniária Wertgeld, que substituiu de forma bastante positiva a vingança privada. Em verdade, as penas determinadas no período medieval tinham como ideal provocar o medo coletivo frente às barbáries praticadas em sua execução. As pessoas 118

Digesto, 48, cap. 9º. MAGALHÃES NORONHA, E. Ibidem. p. 33. 120 ZAFFARONI; PIERANGELI. Ibidem. p. 167. 121 BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967. t. I, p. 70. 119

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ficavam afeitas ao arbítrio dos detentores do poder e governantes e eram punidas em função do status social ao qual pertenciam. A passagem da vingança privada à pena como retribuição evidencia que a pena medieval assume um caráter de equivalente, mesmo quando o conceito de retribuição não é mais diretamente ligado ao dano sofrido pela vítima, mas sim com a ofensa a Deus. A prisão eclesiástica ou o direito penal canônico serviu como o primeiro divisor de águas na forma pela qual as penas eram aplicadas e como justificação para estas. “A Igreja implementou as primeiras e embrionárias formas de sanção em relação aos clérigos que, desta ou daquela maneira, haviam cometido alguma falta”.122 Tal prisão destinava-se aos membros da igreja que mantivesses atitudes rebeldes, assim consideradas frente às determinações episcopais. Os infratores eram recolhidos em alas separadas dos mosteiros para que, por meio da penitência e da oração, se arrependessem do mal causado. “A principal pena do direito canônico denominava-se detrusio in monasterium e consistia na reclusão em um mosteiro de sacerdotes e religiosos infratores de normas eclesiásticas”.123 O pensamento cristão foi um incentivo e serviu como base ideológica para a pena privativa de liberdade. A prisão nos mosteiros irradiou reflexos que até hoje perduram.

A cela monacal cumpria a totalidade de propósitos que a clausura perseguia, embora não se deva esquecer que, na prisão monacal, misturavam-se antigos métodos mágicos com a separação do espaço e a purificação mediante as regras de fustigação corporal, a escuridão e o jejum, juntamente com o isolamento, que protege do contágio moral. 124

Dessa forma, o direito penal canônico contribuiu de forma inexorável para o surgimento da prisão moderna, notadamente no que se refere aos ideais de reforma dos infratores. A pena medicinal (da alma) é a base das penas canônicas onde a colocação do infrator em separado dos demais e recluso em suas ideias, ajudava, segundo o pensamento da época, que este tivesse consciência de suas faltas com o consequente arrependimento dos males causados. Essa finalidade devia ser entendida como correção 122

MELOSSI, Dário; PAVARINI, Massimo. Cárcere e Fábrica. As origens do sistema penitenciário (séculos XVI – XIX). Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006. p. 23. 123 BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. p. 33. 124 Idem. Ibidem. p. 35-36.

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ou possibilidade de correção, diante de Deus, e não como regeneração ética e social do condenado. Deve ser apontado, contudo, que o regime penitenciário canônico ignorou completamente o trabalho carcerário como forma possível de execução da pena.

O regime penitenciário canônico conheceu formas diversas. Além de diferenciar-se pelo de que a pena podia ser cumprida mediante a simples reclusão no mosteiro, mas também pela reclusão na cela ou mesmo na prisão episcopal, ele se caracterizou pela diversidade de modalidades de execução: à privação da liberdade se acrescentaram sofrimentos de ordem física, outras vezes o isolamento celular (cella, carcer, ergastulum) e sobretudo a obrigação do silêncio125.

Durante os séculos XVI e XVII a pobreza se abate na Europa em decorrência da crise do sistema feudal e da economia agrícola, ocasionando um enorme aumento da população das cidades, que já representavam com o desenvolvimento derivado atividade econômica, transformando-as no foco das atenções da população expropriada de seu trabalho e que começaram a migrar do campo, tendo como conseqüência o aumento da criminalidade, já que essa massa populacional não possuía emprego, renda ou qualquer meio de sobrevivência, não restando, na maioria das vezes, outra forma que senão a pratica delituosa. Marx informa com precisão a forma através da qual esse fato social foi encarado pelo poderio estatal,

Não era possível que os homens expulsos da terra pela dissolução dos laços feudais e pela expropriação violenta e intermitente se tornassem fora da lei, fossem absorvidos pela manufatura no seu nascedouro com a mesma rapidez com a qual aquele proletariado era posto no mundo. Pro outro lado, tão pouco aqueles homens, lançados subitamente para fora da órbita habitual de suas vidas, podiam adaptar-se, de maneira tão repentina, à disciplina da nova situação. Eles se transformaram, por isso, em massa, em mendigos, bandidos, vagabundos, em parte por inclinação, mas na maior parte dos casos premidos pelas circunstâncias. Foi por isso que, no final do século XV e durante todo o século XVI, proliferou por toda Europa Ocidental uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os pais da atual classe operária foram punidos, num primeiro tempo, pela transformação forçada em vagabundos e miseráveis. A legislação os tratou como delinqüentes voluntários e partiu do pressuposto que dependia da boa vontade deles continuar a trabalhar sob as velhas condições não mais existentes. 126

125 126

MELOSSI; PAVARINI. Ibidem. p. 24. MARX, Karl apud MELOSSI; PAVARINI. Ibidem. p. 35.

58

A partir de 1530 um estatuto inglês obriga o registro de pessoas consideradas vagabundas, iniciando uma rudimentar divisão entre aqueles que eram incapacitados para o trabalho, os que podiam receber alguma caridade, mendigando assim, e aqueles que não podiam receber nenhum tipo de caridade, sob pena de serem açoitados até sangrar. Por solicitação de alguns membros do clero inglês, consternados pelo aumento incontrolável dos mendigos em Londres, o rei autorizou o uso do castelo de Bridewell para acolher os vagabundos, ociosos, ladrões e autores de delitos pequenos. “O objetivo da instituição, que era dirigida com mão de ferro, era reformar os internos através do trabalho obrigatório e da disciplina. Além disso, ela deveria desencorajar outras pessoas a seguirem o mesmo caminho da vagabundagem [...]”127 Essa instituição e o ideal pelo qual foi elaborada deve ter apresentado bons resultados, visto que em pouco tempo as houses of correction, chamadas aleatoriamente de bridewells surgiram por toda a Inglaterra, especialmente em locais com maior concentração industrial manufatureira da época, como Worcester, Norwich, Bristol. 128 Essas casas de correção forneciam trabalho aos desempregados ou obrigar a trabalhar que se recusasse. Tal fato foi derivado da imposição da Poor Law pela rainha Elizabeth em 1572.

Tratava-se de instituições que, calcadas no modelo da primitiva Bridewell, atendiam a uma população bastante heterogênea: filhos de pobres ‘com a intenção de que a juventude se acostume a ser educada para o trabalho’, desempregados em busca de trabalho e aquelas categorias que, como já foi visto, povoaram as primeiras Bridewells, ou seja, petty offenders, vagabundos, ladrõezinhos, prostitutas e pobres rebeldes que não queriam trabalhar. 129

O trabalho forçado nestas casas tinha como objetivo aumentar a resistência do trabalhador e fazê-lo aceitar as condições impostas pela burguesia como condição necessária à extração do máximo de lucro possível. Evitava-se com isso, o desperdício de mão de obra e ao mesmo tempo, controlava-a evitando manifestações ou insurgências, demonstrando o nível que havia alcançado a luta de classes. 127

MELOSSI; PAVARINI. Ibidem. p. 37. FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Editora Perspectiva. 1978, p. 60. 129 MELOSSI; PAVARINI. Ibidem. p. 37. 128

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Melossi e Pavarini fazem menção que a real recusa ao trabalho feita pelo proletariado funda-se na oposição a uma série de estatutos promulgados entre os séculos XIV e XVI que estabeleciam um valor máximo de salário acima do qual não era lícito ir, chegando inclusive a se determinar que o trabalhador era obrigado a aceitar a primeira oferta de trabalho que lhe fizessem, ou seja, aceitar a trabalhar sob qualquer condição sob pena de ser enviado às casas de correção. A Holanda vivenciou, juntamente com a Inglaterra, a utilização das casas de correção, ou no mais das vezes, de locais de domesticação do trabalhador para o enquadramento no sistema produtivo capitalista. O auge de desenvolvimento dessas casas está localizado nas Rasp-huis holandesas, onde os detentos eram obrigados ao modelo produtivo dominante, a manufatura. “A atividade consistia em raspar, com uma serra de várias lâminas, um certo tipo de madeira (Pau Brasil) até transformá-la em pó, do qual os tintureiros retiravam o pigmento utilizado para tingir os fios”. 130 O trabalho era considerado adequado àqueles que não tinham ocupação e aos preguiçosos, justificando-se a escolha do método de trabalho mais cansativo e que literalmente e por consequência dessa atividade, às vezes quebravam a espinha dorsal durante a lavração da madeira. Esse processo de domesticação se baseou na necessidade de mão de obra barata e disponível, pois,

[...] impetuoso desenvolvimento do tráfico mercantil veio a incrementar a demanda de trabalho num mercado no qual não havia uma oferta tão grande como na Inglaterra, e num momento em que toda a Europa estava atravessando um grave declínio demográfico. Isso representa, para o nascente capital holandês, o perigo de encontrar-se diante de um alto custo do trabalho e de um proletariado que fosse capaz de, apesar das medidas repressivas, contratar a venda de sua própria força de trabalho. 131

É certo que a pena de morte encontrava-se em declínio tanto pelo número incrivelmente alto de desocupados o que tornaria inviável a execução de tantos, quanto pela necessidade de mão de obra trabalhadora, que suportasse as formas impostas. Esse conjunto de situações, vinculando o materialismo e as condições econômicas históricas condicionaram a situação para a criação das penas privativas de liberdade, num primeiro momento, através da utilização do trabalho forçado. Ou seja, não foi um propósito humanitário ou idealista de reabilitação de delinquentes que foi fator preponderante para 130 131

Idem. Ibidem. p. 43. Idem. Ibidem. p. 40.

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sua criação. Serviu antes de tudo para controle de massas populacionais, disponibilidade de mão de obra barata, controle de salários e como condição de prevenção geral, já que as condições de vida nas casas de correção eram mais duras do que a vida na fábrica. “Na realidade, o objetivo fundamental das instituições de trabalho holandesas e inglesas era que o trabalhador aprendesse a disciplina capitalista de produção”.132 Nessa fase, não interessava a reabilitação do delinquente, o importante e objetivo primordial era que o recluso aprendesse a disciplina de produção, que possuía a visão ideológica da classe dominante. Assumindo esse caráter de instrumento de dominação de classes, Melossi e Pavarini sustentam que a criação das penas privativas de liberdade e os locais de seu cumprimento foram motivados fundamentalmente por esse desiderato. “Mas ao lado desta lógica econômica, existem provavelmente outras que não simplesmente coberturas ideológicas ou justificações éticas”. 133 Acredita-se, conduto, que não se deve aplicar uma visão unilateral para a busca da justificativa da criação da pena privativa de liberdade e das penitenciárias. Por óbvio que o fator econômico, como justificado historicamente foi fator importante na criação, mas ao lado deste, outros134 devem ser considerados. Primeiramente, a pena de morte caíra em desprestígio e não respondia mais pelos anseios de justiça dado o aumento significativo das populações urbanas que vindas do campo devido à crise socioeconômica feudal, sofriam com uma pobreza extrema levando estas à mendicância e práticas de atos delituosos. Não era, portanto, recomendável a morte de tantas pessoas. Do ponto de vista ideológico, a partir do século XVI valora-se mais a liberdade e se impõe progressivamente o racionalismo. O pelourinho fracassa

132

BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. p.45. Comentário feito na apresentação de Cárcere e fábrica por Guido Neppi Modona. p. 10. 134 Ferrajoli refuta de forma expressa e radical a associação entre o direito penal e o direito civil das relações econômicas afirmando ser essa relação insensata e onde a relação entre pena e delito não é uma relação de troca como a que se dá entre mercadoria e moeda, senão uma relação pública e determinada pela autoridade na qual não há trocas e muito menos se contrata algo e as penas privativas de liberdade ou pecuniárias, ainda que concebíveis como equivalentes gerais, não se impõe em razão de uma troca de equivalentes, senão contra a vontade do condenado para prevenir os males maiores que adviriam das repressões informais e da repetição de delitos análogos In FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. 3ª ed. rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 361. 133

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frequentemente em se tratando de delitos leves ou casos dignos de graça, uma vez que a publicidade da execução dava lugar mais à compaixão e à simpatia do que ao horror.135 Foucault nos explica que fora das épocas de crise, o confinamento assume outro sentido, além da função de repressão, dar trabalho a massa em geral e fazê-los úteis à prosperidade geral.

Na realidade, parece que as casas de confinamento não puderam realizar eficazmente a obra que delas se esperava. Se absorviam os desempregados era sobretudo para dissimular a miséria e evitar inconvenientes políticos ou sociais de uma possível agitação, mas ao mesmo tempo que eram colocados em oficinas obrigatórias, o desemprego aumentava nas regiões vizinhas e nos setores similares136

O trabalho sempre esteve atrelado à prisão. Em muitas oportunidades137, dependendo da situação de oferta de mão de obra, seguindo a análise de Foucault, empregou-se o trabalho como sentido utilitário, visando alcançar a maior produtividade possível, quer em benefício do Estado quer de particulares. A prisão foi, pois, uma necessidade amarga, mas indispensável, sendo modernamente tratada com um mal necessário, sem esquecer que deposita em si mesma, contradições insuperáveis.

2.1.3 Direito penal na Idade Moderna

A sistemática jurídica do século XVII derivava de uma pluralidade de fontes de extrema complexidade em face da variedade de sujeitos e bens determinados, até pelo momento histórico de criação ou consolidação de vários Estados na Europa continental. Isto gerava antinomia e incoerência dessa sistemática, ao passo que, no exercício de sua prática, a presença de conflitos entre normas e jurisdições era uma constante. Entre os países de direito escrito e de direito consuetudinários, que eram considerados como direito comum, restavam, a título de direito particular, o direito 135

BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. Ibidem. p. 49. FOUCAULT. Ibidem. p. 59. 137 BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. Ibidem. p. 51. 136

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feudal e o direito canônico ora já exposto, que devido à suas características, em relação aos sujeitos e coisas a eles submetidos, constituíam um elemento de diferenciação dos regimes jurídicos. Tanto o direito penal comum como os direitos particulares faziam ampla referência ao status substantivo do réu ou da parte lesada (nobre, funcionário, vagabundo, protestante, hebreu, por exemplo). As penas eram variadas e desumanas, caracterizando verdadeiros suplícios. A de morte era cominada a um grande número de crimes, não constituindo um tipo genérico de sanção penal. Além da pena de morte, havia outros tipos de penas como a reclusão, trabalhos forçados, galés, deportação para colônias, confisco, que podiam ser infligidas a título exclusivo ou cumulativamente. Nesse contexto, a legislação passa a ser progressivamente concebida como expressão da vontade do monarca.138 A unificação dessa sistemática jurídica, como sistema coerente, passava pela centralização da jurisdição, que correspondia à prevalência de um grupo particular de normas, cuja criação era proveniente da vontade do monarca, sobre todas as demais.

Jurisdição, antes do século XVIII, corresponde a iurisdictio, indicando a titularidade e extensão de um poder jurídico de aplicar e de produzir o direito, anterior ou concomitantemente com sua aplicação. O que hoje chamamos de competência jurisdicional e de competência administrativa estava ligado a essa noção de jurisdição. A diferenciação entre essas duas competências somente se dará quando Montesquieu, em meados do século XVIII, formular sua teoria da separação de poderes.139

Do que se afere da idade média, o direito penal era fragmentário e as normas não disciplinavam os tipos penais e sim variadas formas de condutas, as quais não se identificavam com a ação praticada ou a natureza do evento e sim com relação à pessoa que cometia a conduta criminosa. Dessa forma, tem-se a punição como forma de expiação dos pecados.

Na França, a ordenação de 1670, que teve vigência até a Revolução, previa como castigos a morte, as galeras, o açoite, a confissão pública, o banimento. A pena de morte natural compreendia todos os tipos de morte, como a forca, o esquartejamento, o estrangulamento, por queimaduras.

138 139

BICUDO, Tatiana Viggiani. Por que punir? Teoria geral da pena. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 32. Idem. Ibidem. p. 33.

63

A pena aplicada nessa época era vista como suplício pelos reformadores e definida como pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz, bárbara e cruel.

140

É nesse contexto que se estabelece o discurso dos iluministas, como Beccaria, que propõem reformas no sistema penal, como objeção à barbárie dos suplícios, ao definir limites ao direito do suspeito e ao poder de punir. Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, nascido em Milão em 1738 e graduado na Universidade de Parma advêm de uma família de marqueses bastante rica. As observações que faz durante seu período de estudos, no âmbito da Accademia141, o faz se rebelar contra o mundo de seus pais, produzindo, a partir de suas reflexões sobre as legislações e práticas penais vigentes na Europa sua mais profícua obra Dei delitti e delle pene, considerado por muitos como o pequeno grande livro, publicado em 1763, primeiramente de forma anônima.142 Para justificar a punição feita pelo direito penal, Beccaria pressupõe que os homens viviam inicialmente em estado de natureza, onde havia a guerra de cada um contra todos, em forte alusão às ideias de Hobbes e, como garantia do máximo de liberdade possível, estes homens reúnem-se em sociedade por meio de um pacto ou contrato social, em que cada um abre mão de uma parcela de sua liberdade. Assim, a ideia de delito é fundamentada tendo em vista a organização dos homens ligados pelos ideais contratualistas, marcantes em seu tempo, buscando viver em paz e almejando o bem comum.

As leis foram as condições que reuniram os homens, a princípio independentes e isolados, sobre a superfície da terra. Cansados de só viver no meio de temores e de encontrar inimigos por toda parte, fatigados de uma liberdade que a certeza de conservá-la tornava inútil, sacrificam uma parte dela para gozar do resto com mais segurança. O conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir. Todo exercício do poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça, é um poder de fato e não de direito, é uma usurpação e não mais um poder legítimo. 143 140

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. História de violência nas prisões. 38 ed. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 33, 35. 141 Accademia dei Pugni representava a intenção de luta de seus componentes contra a época bárbara, que deveria desaparecer. As reuniões dessa academia ocorriam no Palácio dos Verri e delas participava um grupo de jovens nobres, entre os quais, os Condes Giuseppe Visconti de Saliceto, Giambaitista Biffi, Luigi Lambertenghi, os Marqueses Afonso Longo, Antonini Mena Foglio, além dos irmãos Verri e o Marquês de Beccaria. 142 BICUDO. Ibidem. p. 42-43. 143 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Paulo M. Oliveira. Bauru: Edipro, 1ª ed. 2003, p. 22-23.

64

Por essa noção de delito, tem-se que este significa a ruptura do vínculo social de solidariedade, na medida em que ofende a coletividade, demandando, portanto, uma reação. Esta se caracteriza como pena sendo o instrumento hábil a restabelecer os vínculos sociais fragilizados. O direito de punir então pertence a todos os cidadãos, representados pelo soberano.

Qual será, pois, o legítimo interprete das leis? O soberano, isto é, o depositário das vontades atuais de todos; e não o juiz, cujo dever consiste exclusivamente em examinar se tal homem praticou ou não um ato contrário às leis. O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A (premissa) maior deve ser a lei geral; a (premissa) menor, a ação conforme ou não a lei; a conseqüência, a liberdade ou a pena. 144 (parênteses nosso).

Talvez a mais importante contribuição foi sobre a legalidade, que até hoje é o principal fundamento do direito penal e da punição. Afirma Beccaria, “Quereis prevenir os crimes? Fazei leis simples e claras. [...] A primeira conseqüência desses princípios e que só as leis podem fixar as penas de cada delito [...]”.145 Toda a aplicação da lei e de suas sanções deveria respeitar esse princípio da legalidade, caso contrário representaria funestas injustiças. A laicização do direito penal levantada por Beccaria, a partir da aplicação da legalidade, pode ser interpretada como um ataque ao fanatismo religioso, à superstição e à arbitrariedade, produtos da convergência entre direito e religião, claramente expostos em sua época. Essa separação entre pecado e delito é marcante para o direito penal como meio de evitar a turbação da paz social, trazendo a necessidade de uma utilidade social do castigo. A pena, conforme já exposto, era encarada apenas como retribuição ao mal causado pela prática da infração, onde a pena tinha o poder de apagar o mal causado. O iluminismo de Beccaria tinha uma concepção retributiva de pena, já que os indivíduos abriam mão de parte de sua liberdade para viver em sociedade, porém possuíam uma forte concepção utilitarista da pena. Ao desenvolver o fundamento da pena, ele elege a segurança dos indivíduos em sociedade, com base no princípio da máxima utilidade ou máxima felicidade.

144 145

Idem. Ibidem. p. 25. Idem. Ibidem. p. 23.

65

O fim da pena não é outro que impedir o réu de praticar novos danos aos cidadãos e remover outros de fazê-lo. [...] Qual o fim político dos castigos? O terror que imprimem nos corações inclinados ao crime.146

O respeito à liberdade, à dignidade da pessoa e ao interesse dos particulares são meios legítimos para atingir a busca da felicidade, e, portanto, da boa vida em sociedade. A dupla função do direito penal, a de punir o autor do delito e através dessa punição, demonstrar aos demais indivíduos que não venham a cometer novos delitos, colocando em risco a paz e a segurança social são características expressas da utilidade da pena, assumindo o que hoje se denomina prevenção geral e prevenção especial. Tais objetivos são, irrefutavelmente, antecedentes dos anseios reabilitadores e reintegrativos da pena privativa de liberdade.

O sentido útil, nessa concepção, coincide com o que é moralmente bom. O homem é moralmente bom se não for ignorante ou voltado para o vício. Assim, como a natureza possui uma série de mecanismos que, se não forem obstaculizados por erros e se forem reforçados por leis, conduzirão à sua harmonia e ao seu equilíbrio, a ordem social, que é aspecto e cópia da ordem natural, também deve ser harmoniosa e voltada para o bem. É, portanto, função da boa legislação a busca da boa vida em sociedade. 147

A finalidade da pena, pois, não é de atormentar e afligir um ser sensível, nem desfazer um delito já cometido, mas a de impedir que o infrator cause novos danos aos seus concidadãos, e ao mesmo tempo, impedir que outras pessoas venham a cometer delitos. O resultado desse utilitarismo é o início da humanização das penas, com a consequente proporcionalidade em sua aplicação. As penas deixariam de ser apenas suplícios corporais em resposta ao ataque divino e tornar-se-iam reabilitadoras do condenado. John Howard, por volta 1777 quando publicou The state of prisions in England na Wales with na account of some goregn, inspirou uma corrente penitenciarista preocupada em construir estabelecimentos apropriados para o cumprimento da pena privativa de liberdade. Nascido em Hackney em 1726 foi nomeado xerife de Bedford onde iniciou o gosto e estudo pelos problemas carcerários ingleses, notadamente as casas de correção.148 146

Idem. Ibidem. p. 38 BICUDO. Ibidem. p. 64. 148 BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. p. 58 – 59. 147

66

Seu

ideal

teve

importância

considerável

adotando

o

conceito

predominantemente vindicativo e retributivo que se tinha da pena. Isso foi resultado de sua não aceitação das condições deploráveis em que se encontravam as prisões inglesas, onde o sofrimento desumano era consequência implícita da pena privativa de liberdade. Howard faz uma análise sobre a função da prisão, onde as péssimas condições não se faziam mais necessárias, pois o desenvolvimento econômico que já havia alcançado a Inglaterra era deslegitimante da forma pela qual a pena era aplicada, onde cumpria uma finalidade econômica, devendo circunscrever-se apenas a uma função punitiva e terrorífica149. Aspecto relevante de sua obra foi encarar o papel que a penitenciária cumpria com o detento, insistindo na necessidade de construir estabelecimentos adequados para o cumprimento da pena privativa de liberdade, proporcionando ao condenado regime higiênico, alimentar e médico que cobrisse as necessidades básicas. Ainda, o trabalho obrigatório, segundo seu enfoque, era primordial para que o detento alcançasse a regeneração moral. Segundo Bitencourt150, propôs ainda o isolamento dos detentos com o objetivo de favorecer a reforma ou reabilitação mediante a utilização de conceitos religiosos e combater os inúmeros males da promiscuidade prisional. O isolamento noturno foi a mais notória contribuição de sua obra e se mantém em vigor até os dias atuais nas Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos (Genebra, 1955). Jeremy Bentham, nascido na Inglaterra em 1748, proveniente de família de juristas, dedica-se ao estudo do Direito, ingressando na Universidade de Oxford aos dezesseis anos, onde assiste às aulas de Blackstone, primeiro professor de Direito Inglês da universidade. “Quanto mais estuda o direito, mais cresce seu descontentamento com os absurdos e anomalias das leis e instituições inglesas, sobre as quais Blackstone afirmava que tudo era como deveria ser”.151 Esse pano de fundo foi fundamental para que Bentham desenvolvesse sua teoria do Panótico, obra de alto teor arquitetônico penitenciário.

Considerava que o fim principal da pena era prevenir delitos semelhantes: ‘o negócio passado não é mais problema, mas o futuro é infinito: o delito 149

MELOSSI; PAVARINI. Ibidem. p. 69. BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. p. 61. 151 BICUDO. Ibidem. p. 79. 150

67

passado não afeta mais que a um indivíduo, mas os delitos futuros podem afetar a todos. Em muitos casos é impossível remediar o mal cometido, mas sempre se pode tirar a vontade de fazer o mal, porque por maior que seja o proveito de um delito sempre pode ser maior o mal da pena’. O efeito preventivo geral era preponderante, embora admitisse o fim correcional da pena. 152

O trabalho de Bentham sempre procurou um sistema de controle social, na medida de um controle do comportamento humano, mas baseado nos princípios do utilitarismo em que a ética é preponderante. Traduz-se na procura da maior felicidade possível para a maioria, servindo também para prevenir a dor. Assim, um ato possui utilidade se visa a produzir o benéfico, bem estar, prazer. Nesse ponto, a pena assume um caráter preventivo geral, sendo o foco a proteção da sociedade. Não via Bentham crueldade na pena como um fim em si mesmo, apontando para um abandono progressivo do conceito tradicional que considerava a pena como dor e sofrimento. Considerava sim, que a pena é um mal que não deve exceder o dano produzido pelo delito, devendo haver proporcionalidade entre o dano e a sanção. Dessa forma, admitia a necessidade de que o castigo seja um mal, mas como meio de prevenir danos maiores à sociedade. As condições prisionais inglesas à época serviriam para estimular o mal e a reincidência no condenado, podendo considerar-se como início das teorias das subculturas carcerárias, as quais propõem de maneira genérica que o condenado segue a cultura à qual está submetido e se tal cultura se traduz em violência, criminalidade, mal, mesmo que o condenado não esteja enquadrado nessas particularidades anteriormente à prisão, invariavelmente acabará se adequando a essa nova cultura quando no cárcere. Sua contribuição mais importante se deu com o Panótico, o qual definiu como

Estabelecimento proposto para guardas os presos com mais segurança e economia, e para trabalhar ao mesmo tempo sua reforma moral, com novos meios de assegurar sua boa conduta e prover sua subsistência após a soltura. (tradução livre). 153

152

BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. p. 65. BENTHAM, Jeremias. El panótico. El ojo del poder. Genealogía del poder. Madrid: Las Ediciones de La Piqueta. s.d. p. 33. 153

68

Segundo Foucault154, o Panótico de Bentham é a figura arquitetural que se estabelece na periferia uma construção em anel, no centro uma torre: esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, casa uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra para o exterior, que permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado. O dispositivo panótico organiza as unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes, de suas três funções – trancar, privar de luz e esconder – só se conserva a primeira e suprimem-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha. Daí o efeito mais importante, induzir o condenado a um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Mas não se pode dizer que o desenho panótico só haja a preocupação com a segurança ou tecnologia de dominação. Preocupa-se também em estimular a reabilitação do condenado através do trabalho, porém devendo este ser produtivo e atrativo, evitando os penosos e inúteis já que não estimula uma existência honrada do condenado quando retornar ao convívio social. Melossi e Pavarini155 afirmam que o desenho de Bentham adapta-se bem ao objetivo de controle, mas impede a introdução do trabalho produtivo na prisão, uma vez que não permite a utilização massiva de mão de obra, produção em série e utilização eficaz dessa máquina. Bentham esforçou-se para que seu projeto se materializasse, mas quase sempre sem sucesso. Essa circunstância não diminui, contudo a importância de suas ideias, pois muitas delas continuam atuais, tanto do ponto de vista penitenciário como arquitetônico. Nos Estados Unidos suas ideias tiveram a maior acolhida onde várias penitenciárias adotam, mesmo que de forma parcial, o desenho panótico.156

154

FOUCAULT. Vigiar e punir. História de violência nas prisões. p. 190. MELOSSI; PAVARINI. Ibidem. p. 67. 156 BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. p. 73. 155

69

2.2 Teorias penais e função da pena – Por uma análise crítica.

A pergunta sobre o sentido da pena surge como nova em todas as épocas. Com efeito, não se trata de um problema apenas teórico, mas de um tema de enorme utilidade prática. Roxin157, já em 1976 perguntava, com base em que pressupostos se justifica que o grupo de homens associados no Estado prive de liberdade algum de seus membros ou intervenha de outro modo, conformando sua vida? Esta é uma pergunta sobre a legitimação e limites do poder estatal que não pode mais ficar presa em respostas passadas, colocadas em outras realidades históricas, culturais e regionais. Para se compreender o fundamento e fins da sanção penal há que se partir de uma consideração estática ou dinâmica da mesma. O que se tentará nesse tópico além de relacionar de forma histórica e lógica as teorias mais importantes sobre a pena, é realizar uma análise crítica e das mesmas teorias enquadrando-as no atual cenário nacional, para nos capítulos seguintes, justificar a necessidade de utilização de determinada teoria a fim de alcançar alguma solução prática para o sistema penitenciário. O direito tem como pressuposto básico como norma de conduta sua coercitividade, já que reprova de forma simbólica ou fática os atos contrários aos seus pressupostos normativos. Segundo Kelsen158, a coação tem como característica fundamental a aplicação de um mal ao destinatário, mesmo contra sua vontade, empregando força física, se necessário for. O direito se diferencia dos demais sistemas de controle como o informal pelo estabelecimento deontológico da sanção, leia-se, coação institucional operada através do Estado moderno, estruturado no exercício legítimo dos poderes constitucionalmente estabelecidos. Para Weber, o Estado moderno constitui-se numa “comunidade humana, que dentro dos limites de determinado território reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física. Logo, o Estado se transforma na única fonte do ‘direito’ à violência.”159 Assim, o uso da força numa ordem jurídico-constitucional será sempre 157

ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 3ª ed. Trad. Ana Paula dos Santos e Luís Natscheradetz. Lisboa: Ed. Vega, 1998 p. 15. Cf. ainda a edição espanhola Problemas básicos de derecho penal. Trad. Diego Manuel Luzón Pena. Madrid: Ed. Reus, 1976. 158 KELSEN, Hanz. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Matins Fontes, 1987. p. 60. 159 WEBER, Max. Ciência e Política. Duas vocações. São Paulo: Cultrix, 2000. p. 56.

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limitado por regras e centralizado em órgãos determinados, pois como forma de sanção, sempre haverá a violência como resultado da coação. Ferrajoli conclui que o problema da “legitimidade política e moral do direito penal como técnica de controle social mediante constrições da liberdade dos cidadãos é, em boa parte, o próprio problema da legitimidade do Estado como monopólio organizado pela força”. 160 Do ponto de vista estático, a pena seria a consequência primária do delito, a modo de retribuição do mesmo, sendo este um pressuposto necessário àquela. Nesse sentido, somente as chamadas teorias absolutas poderiam proporcionar uma explicação à pena, fundamentando-o no delito cometido. Do ponto de vista dinâmico, a sanção penal teria os mesmos fins que o direito penal, ou seja, evitar condutas lesivas a bens jurídicos que a lei proíbe. Esta finalidade se alcança por intermédio da ameaça legal e geral da imposição e execução concreta das sanções penais, tanto com o efeito da prevenção geral como com o da prevenção especial, típico das teorias relativas. Além disso, cabe registrar a necessidade de análise da pena frente à utilização que o Estado faz do direito penal, isto é, a pena para facilitar e regulamentar a convivência humana em sociedade organizada. Assim, o Estado utiliza a pena para proteger determinados bens jurídicos, assim considerados em uma organização socioeconômica específica, o que, diga-se de passagem, não é considerado como ideal, visto que não é papel do Direito Penal, utilizando-se de seu instrumento sancionador, regulamentar ou socializar qualquer tipo de conduta. Deve sim, ser este utilizado como última barreira de contenção contra desvios sociais. As teorias retribucionistas partidárias da pena se fixam mais nos aspectos lógicos, elucidando o significado da palavra. Trata-se de uma consideração estática do direito, que busca o porquê da sanção, a justificativa do direito de castigar e da existência da pena. Estas considerações se incorporam no plano normativo, do dever ser. Castiga-se porque há um ilícito prévio.

A pena se justifica como categoria necessária para reestruturar o Direito violado, necessária enquanto se produziu seu antecedente lógico, o delito, numa relação lógica imperativa entre um antecedente e sua conseqüência. Nas teorias absolutas, a pena se reduz a uma categoria lógica derivada de sua existência num tipo penal. Como se tratasse de uma relação de causalidade, a pena está unida necessariamente ao delito, que se constitui, assim, como sua 160

FERRAJOLI. Ibidem. p. 234.

71

causa e fundamento. Produzido o delito, como infração a ordem jurídica, produz-se como efeito necessário a pena, que trata de compensar e restituir ao estado anterior à infração. Nas teorias relativas, o que importa é o futuro e a oportunidade da sanção olhando a realidade social a qual se aplicará, com seus efeitos práticos, de benefício ou prejuízo. Nas primeiras, a pena é um fim em si mesma. Nas segundas, é um meio a serviço de um fim. Neste último caso, os tipos penais se concebem não apenas como estruturas causais nas quais se dão um antecedente e um conseqüente necessário, mas como tipificações de conflitos de interesses, conflitos de fato que se avaliam juridicamente. De tal maneira, a resposta a um conflito dependerá não somente do antecedente do mesmo, mas também da capacidade da resposta para evitar o conflito, de sua utilidade social diante de novos conflitos. 161

Quando se fala em justificação da pena, alude-se a sua necessidade para a manutenção da ordem jurídica e condição indispensável para a convivência na comunidade. Porém, mesmo que a sanção penal seja necessária, ela deve ser encarada como a ultima ratio, o último recurso quando os demais sistemas de controle social, tanto o informal (família, escola, trabalho, religião, por exemplo) quanto o formal (direito constitucional, civil, administrativo, por exemplo) falham. A intervenção do direito penal somente tem lugar perante as infrações jurídicas insuportáveis, devendo a sanção proteger suficientemente a ordem social, como recurso diante de uma maior necessidade de proteção da sociedade. Nesse contexto, é premente perguntar-se se ante a violação da ordem jurídica ou de bens jurídicos protegidos por essa ordem, há que castigar? Essa questão admite dois tipos de respostas, as negativas ou abolicionistas, que não reconhecem justificação alguma ao direito penal e ao jus puniendi do Estado, acusando

o

direito

penal de ilegítimo, ou porque moralmente não admitem nenhum tipo de objetivo capaz de justificar as aflições que o mesmo impõe162 e as positivas, que se podem nomear como justificacionistas, aos quais reconhecendo uma necessidade de castigar, enfocam problemas ulteriores sobre o porquê, o quando e o como castigar.

163

Respondem-se

assim as indagações de Ferrajoli do se e por que punir, proibir e julgar.

2.2.1 A resposta negativa: os sistemas abolicionistas

161

Ignacio Muñagorri Laguía apud TELLA, María José Falcón y; TELLA, Fernando Falcón y. Fundamento e finalidade da sanção. Existe um direito de castigar? São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 140. 162 FERRAJOLI. Ibdiem. p. 231. 163 TELLA; TELLA. Ibidem. p. 142.

72

O movimento abolicionista encontra sua origem na Holanda, nos estudos de Louk Hulsman e na Noruega, nos pensamentos de Nils Christie e Thomas Mathiesen. Consiste em uma nova forma de pensar o direito penal, mediante o debate crítico do fundamento das penas e das instituições responsáveis pela aplicação do direito penal. O abolicionismo afirma que a sanção penal não é uma instituição tão transparente e auto-evidente de controle dos delitos como se poderia acreditar. Antes de se questionar a forma pela qual a sanção deve ser aplicada, estabelecendo-se políticas penitenciárias

dessa

ou

daquela

forma,

deve-se

questionar,

segundo

esse

posicionamento, se a prisão é necessária e se é possível existir ordem social organizada sem ela. Essa corrente doutrinária parte da seguinte reflexão, se a forma atual escolhida pelo direito penal é falha, já que a reincidência aumenta diariamente, além daqueles crimes que não chegam ao conhecimento do Estado, chamados cifras negras e dentre os conhecidos e apurados somente alguns restam em condenações e dentre esses, poucos cumprem a pena em sua totalidade, a sociedade teria condições de suportar a maioria das infrações, sem se submeter a prejuízos irreparáveis auferidos com a imposição e cumprimento da sanção.

A época contemporânea se caracteriza por um passo do otimismo e confiança no direito penal a um persistente pessimismo e ceticismo sobre a lógica e eficácia das instituições penais modernas. Essa mudança de atitude começou a emergir ao final dos anos 60 do século XX. Os métodos contemporâneos, particularmente a prisão, apresentam-se como noções casa vez mais irracionais, disfuncionais e contraproducentes. A mais conhecida crítica e discussão sobre as falhas da sanção penal se encontram na obra de Michel Foucault. 164

Durante a maior parte do século XX, o termo reabilitação foi a clave de bóveda165 da ideologia imperante no sistema penal. Hoje em dia, entretanto, este termo já não é mais a base do edifício penal. Palavras tão usadas no século XIX, como correção, tratamento, reabilitação prevenção, mostram-se frustradas frente ao panorama carcerário atual.

164

Idem. Ibidem. p. 144. Clave de bóveda é um sentido metafórico para significar a parte mais importante que sustenta toda uma estrutura. A locução é utilizada para se referir à pedra que sustenta a abóbada, que é uma construção semi-esférica, econtrada em grande parte das igrejas espanholas. A clave de bóveda seria a pedra central, a mais alta de todas, que sustenta toda a estrutura. In TELLA; TELLA. 165

73

Dentro das respostas negativas ou abolicionistas destaca-se o abolicionismo radical de Stirner e o abolicionismo holístico anárquico pós-marxista. Os pressupostos filosóficos de tais propostas partem do mito criado no século XVIII do bom selvagem e da ultrapassada e feliz sociedade primitiva sem direito, até as configurações anárquicas e marxistas-leninistas do “homem-novo” e da perfeita sociedade sem Estado. Para Stirner as regras não têm valor, manifestando-se partidário da rebelião e a transgressão das mesmas, que não seve ser prevenida, nem castigada, nem julgadas. “Partindo da desvalorização de quaisquer ordens ou regras, não apenas jurídicas, mas inclusive morais, Stirner chega à valorização da transgressão e da rebelião, enquanto livres e autênticas manifestações do egoísmo amoral do ego”.166 As doutrinas abolicionistas menos radicais são as que não se opõem a qualquer forma de controle social, mas somente às penas e, inclusive, ao direito penal. Contrariamente à postura radical de Stirner, estas além de serem marcadamente moralistas e de solidariedade, são influenciadas pelo jusnaturalismo ao qual a moral superior é que deveria regulamentar diretamente a futura sociedade. Ferrajoli167 pondera que “escritores liberais e anárquicos como Godwin, Bakunin, Kropotkin, Molinari e Malatesta não valorizam, como Stirner, a transgressão enquanto expressão normal e fisiológica do homem” justificam, quando muito, como “momento de rebelião e como sinal e efeito de causas sociais patológicas, razão pela qual contestam a pena”.

[...] referidas doutrinas, sejam elas radicais ou holísticas, evitam todas as questões mais específicas da justificação e da deslegitimação do direito penal – da qualidade e quantidade das penas, da qualidade e quantidade das proibições, das técnicas de controle processual – desvalorizando toda e qualquer orientação garantista, confundindo em uma rejeição única modelos penais autoritários e modelos penais liberais, e, portanto não oferecendo nenhuma contribuição à solução dos difíceis problemas ligados à limitação e ao controle do poder punitivo. 168

2.2.2 A resposta positiva: os sistemas justificacionistas

Em contraposição às doutrinas abolicionistas da pena e do direito penal, chamamos de justificacionistas àquelas que até por decorrência do abolicionismo 166

FERRAJOLI, Ibidem. p. 232. Idem. Ibidem. p. 232. 168 Idem. Ibidem. p. 234. 167

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carregam o ônus da justificação do direito penal, da pena e dos fins aos quais se buscam. Estas podem ser divididas em duas categorias: as teorias chamadas absolutas ou da retribuição e as denominadas teorias relativas ou da prevenção. São teorias absolutas todas aquelas que concebem a pena como um fim em si mesmo, ou seja, como a retribuição do mal causado com o próprio mal, “justificada por seu intrínseco valor axiológico, vale dizer, não um meio, e tampouco um custo, mas, sim, um dever metajurídico que possui em si seu próprio fundamento”169 São, contudo, relativas todas as doutrinas baseadas no utilitarismo da pena, que consideram e justificam-na como meio para a realização do fim utilitário da prevenção de futuros delitos. Cada uma dessas duas grandes vertentes doutrinárias foi subdividida. As doutrinas absolutas ou retributivas foram divididas tendo como parâmetro o valor moral ou jurídico conferido à retribuição estatal pela direito penal e, as doutrinas relativas ou utilitaristas são divididas por sua vez entre teorias da prevenção especial, que atribuem o fim preventivo à pessoa do delinquente e que será amiúde tratada com maior cautela, visto os fins que este trabalho almeja e as teorias da prevenção geral que têm como foco os cidadãos em geral e a manutenção social da paz.

2.2.2.1. Teorias absolutas ou retributivas da pena

Para que se possa chegar a um entendimento melhor sobre os fins retributivos da pena, deve-se analisar o tipo de Estado que lhe dá vida. Nesse ínterim, o Estado absolutista possui as características mais importantes no delimitador das teorias retributivas. A identidade entre o Estado e o soberano, a união entre direito e moral além da afirmação que o soberano era representante de Deus na terra e por isso o poder lhe era concedido de forma ilimitada dão a tônica a essa corrente. A pena no Estado absolutista era de certa forma, como acentua 170

Bitencourt , imposta a quem, agindo contra o soberano, rebelava-se também, em sentido mais que figurado, contra o próprio Deus. Ocorre nesse período uma transição da sociedade da baixa idade média e a sociedade liberal, sendo causa do aumento da 169 170

TELLA; TELLA. Ibidem. p. 150. BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. p. 117.

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burguesia e do acúmulo de capital. Obviamente, essa nova classe dominante necessitava de algo para proteger o capital. A pena então, não podia ter outras características senão a de constituir mais um instrumento de realização desse objetivo. Rusche e Kirchheimer171 constatam que o fim da pena era a exploração da mão de obra proletária, por meio do internamento dos indivíduos em cárceres, casas de correção, casas de trabalho. Assim, para o sujeito que descumprisse uma norma jurídica, deveria incidir expropriação de algo de valor que pudesse ser quantificável. Nesse sistema de controle social, as massas criminalizadas nada possuíam, além de seus corpos, conforme outrora exposto, recaindo o trabalho da mão de obra proletária e o tempo, como únicos objetos idôneos de conversão da dívida pelo descumprimento normativo. Quando do surgimento do estado burguês, este apóia-se na teoria do contrato social.

O Estado é uma expressão soberana do povo, e com isso aparece a divisão de Poderes. Com essa concepção liberal de Estado, a pena não pode mais continuar mantendo seu fundamento baseado na já dissolvida identidade entre Deus e soberano, religião e Estado. A pena passa então a ser concebida como “a retribuição à perturbação da ordem (jurídica) adotada pelos homens e consagrada pelas leis. A pena é a necessidade de restaurar a ordem jurídica interrompida. À expiação sucede a retribuição, a razão divina é substituída pela razão de Estado, a lei divina pela lei dos homens”. 172

Assim, com a assunção do liberalismo, o indivíduo que contrariava esse contrato social era qualificado como traidor, pois não seguia o compromisso de preservação da organização social, passando a ser considerado como rebelde e a pena assumindo o papel de realização da justiça, nada mais. Tradicionalmente, Kant e Hegel são tidos como os principais representantes dessa nova teoria da retribuição. O primeiro fundamenta a pena na ética, o segundo na ordem jurídica. A retribuição da pena em Kant encontra-se tratada principalmente em Princípios metafísicos na doutrina do direito, especialmente na segunda parte, referente

171

RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan: ICC, 2004. p 39-42. 172 BITENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativas. p. 118.

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ao direito público. Ele define o direito a castigar como direito que tem o soberano de afetar dolorosamente ao súdito como consequência de sua transgressão da lei. A lei penal é um imperativo categórico173 em Kant, devendo ser aplicada somente quando houver infringência à lei, chegando a afirmar, no caso extremo de dissolução de uma sociedade civil por consentimento de seus membros, como por exemplo, se os habitantes de uma ilha decidissem abandoná-la e dispersar-se, o último assassino mantido na prisão deveria ser executado antes da dissolução, a fim de que cada um sofresse a pena de seu crime, sob o risco de se converter, se não, todo o povo em cúmplice de uma violação da justiça174. Para Kant, a pena é a retribuição justa desprovida de todo o fim e representa a imposição de um mal como compensação da infração jurídica culpavelmente cometida. Isto é, o conteúdo da pena é o talião e a função da pena é a realização da justiça. Portanto, a pena obriga incondicionalmente, é um imperativo categórico, pois apenas pode ser aplicada como causa do delito e somente porque se infringiu a lei.

A pena jurídica, poena forensis não pode nunca ser aplicada como simples meio de procurar outro vem, nem em benefício do culpado ou da sociedade, mas deve sempre ser contra o culpado pela simples razão de haver delinqüido: porque jamais um homem pode ser tomado como instrumento de desígnios de outro, nem ser contado no número das coisas como objetivo de direito real.175

Kant considera que o réu deve ser castigado pela razão única de haver delinquido, sem considerar em momento algum a utilidade da pena para este ou para a sociedade, negando assim, qualquer função preventiva da pena. Hegel, também partidário da teoria retributiva afirma que a pena é a negação da negação do Direito. Para Santiago Mir Puig176, a fundamentação hegeliana da pena é mais jurídica, ao contrário da kantiana, baseada na ética, na medida em que para Hegel a pena encontra sua justificação na necessidade de restabelecer a vigência da vontade

173

KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes parte I. Princípios metafísicos da doutrina do direito. Lisboa:Edições 70, 2004. p. 61. “Todos os imperativos mandam, seja hipoteticamente, seja categoricamente. Os hipotéticos são aqueles que representam a necessidade prática de uma ação possível, como meio de conseguir outra coisa que se queira”. 174 Idem. Ibidem. p. 167. 175 Idem. Ibidem. p. 167. 176 MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal. Concepto y método. 2ª ed. Reimpresión. Montevideo: Editorial BdeF, 2003. p. 50.

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geral, simbolizada na ordem jurídica e que foi negada pela vontade do delinquente. A imposição da pena implica no restabelecimento da ordem jurídica violada.

De acordo com o método dialético hegeliano: a posição é a vontade geral (ordem jurídica), a negação da mesma é o delito e, por último, a negação da negação se consegue com a pena. Neste planejamento a pena se concebe só como reação que visa ao passado (ao delito) e não como instrumento de fins posteriores177. (tradução livre).

Dessas concepções expostas, a teoria da retribuição falha no sentido que ela já pressupõe a necessidade da pena, que deveria fundamentar, já que seu significado se baseia na compensação da culpa humana, não podendo por isso pretender que o Estado tenha que retribuir com pena toda a culpa humana. Roxin, criticando o posicionamento das teorias retribucionistas afirma,

A teoria da retribuição, portanto, não explica em absoluto quando se tem de punir, mas apenas refere: >. Fica por resolver a questão decisiva de saber sob que pressupostos a culpa humana autoriza o Estado a castigar. Deste modo, a teoria da retribuição fracassa perante a tarefa de estabelecer um limite, quanto ao conteúdo, ao poder punitivo do Estado. Ela não impede que se inclua no Código Penal qualquer conduta, e que, caso se verifiquem os critérios gerais de imputação, tal conduta seja efetivamente punida; concede, de certo modo, um cheque em branco ao legislador. 178

Ao direito penal então, compete apenas a proteção dos bens jurídicos mais importantes, admitindo-se assim seu caráter fragmentário, e não a realização de justiça. “A realização da justiça é uma função praticamente incompatível com aquela atribuída ao direito penal, que consiste em castigar, parcialmente, os ataques que tenham por objeto os bens jurídicos protegidos pela ordem legal”.179

2.2.2.2 Teorias relativas ou preventivas da pena

177

Idem. Ibidem. p. 50-51. ROXIN. Ibidem. p. 17-18. 179 MIR PUIG. Ibidem. p. 92. 178

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Em oposição às teorias absolutistas da pena, as teorias relativas ou preventivas buscam a prevenção de delitos, fundamentando-se na necessidade de continuidade do grupo social, ora centralizando esforços na sociedade, ora no indivíduo praticante do delito. A origem destas conotações preventivas elege-se a Sêneca (65 d.C.), onde baseado na ideia de Protágoras (aprox. 485-415 a.C.) que foi transmitida por Platão (427-347 a.C.) afirmou Nam ut Plato ait: nemo prudens punit, quia peccatum est, sed ne peccetur. (Pois, como disse Platão: ‘nenhum homem sensato castiga porque se pecou, só para que não se peque’)180.

2.2.2.2.1 Teoria da prevenção geral da pena

Para os adeptos desta corrente teórica, o fim da pena não é a retribuição do mal causado pelo autor do delito e sim a influência que a pena causa sobre a sociedade através de ameaças penais e da execução dessas medidas, a qual deve ser instruída sobre as proibições legais. Esta teoria tende a prevenção dos delitos onde a ameaça de sanção deve atuar não especialmente sobre o autor e sim geralmente, sobre a sociedade. Por isso é tratada como prevenção geral. A discussão em torno da prevenção geral iniciou-se com Paul Johann Anselm v. Feuerbach, considerado fundador da moderna ciência do direito penal alemão. Seus estudos basearam-se na teoria da coação psicológica, onde se imaginava que o pretenso delinquente, quando exposto à tentação delitiva, faria uma análise se a prática do delito compensaria ou não, visto que se o praticasse estaria sujeito às penas cabíveis e à sua execução, ou seja, a ameaça de pena estaria sendo sopesada em seu psicológico. Segundo Roxin, Feuerbach fundamenta exatamente essa concepção,

Todas as infrações tem o fundamento psicológico de sua origem na sensualidade, até o ponto de que a faculdade de desejo dos homens é incitada pelo prazer da ação de cometer o fato. Este impulso sensitivo pode suprimirse a saber cada qual que com toda segurança seu feito será seguido de um

180 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. 1ª ed. 8ª reimpresión. Madrid: Civitas Ediciones. 2008. p. 85.

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mal inevitável, que será maior que o descontentamento que surge do impulso não satisfeito pela comissão 181 (tradução livre).

Assume-se, portanto, que a pena é uma ameaça da lei aos cidadãos para que estes se abstenham de cometer delitos, apoiando a razão do sujeito na luta contra os impulsos ou motivos que o pressionam a favor do delito e exerce uma coação psicológica perante os motivos contrários à exigência legal. A intimidação ou a utilização do medo, bem como a racionalidade humana na avaliação de suas ações e as consequências destas dão a base teórica desta teoria. Contudo, aparecem críticos assinalando aspectos negativos e positivos relativos à prevenção geral. Dessa forma, como aspectos negativos, Roxin esclarece que somente parte das pessoas com tendências à criminalidade comete crimes com tanto cuidado na avaliação das consequências e dificilmente para estes a pena poderia causar alguma intimidação. Para ele, estes indivíduos se preocupariam mais com o risco de serem atrapalhados do que com a ameaça penal. Assim, é possível que para o homem comum, em situações normais, a influência da ameaça penal surta efeito. Contudo, aos criminosos habituais, profissionais ou os impulsivos ocasionais, isso não acontece.

Todavia, prescindindo de que, pelas causas apontadas, este êxito seja duvidoso em muitos crimes, para além do mais seria de certa forma paradoxal que o direito penal não possuísse significação alguma precisamente para os delinquentes, isto é, os não intimidativos – e, porventura, os puta e simplesmente não intimidáveis – e que não devesse prevalecer e legitimar-se face a eles também.182

Essa barreira é efetivamente constatada em relação aos traficantes de drogas, que não reconhecem critério algum de adequação social e postura diante da sociedade e do ordenamento legal, não surtindo a ameaça penal qualquer efeito intimidatório. Outra crítica negativa aos critérios preventivos gerais baseia-se na ausência de estabelecimento de parâmetros a fundamentar a necessidade da pena, possuindo, portanto, uma tendência ao terror estatal, visto que quem pretende intimidar mediante 181

FEUERBACH, Anselm v. apud ROXIN. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. p. 90. 182 ROXIN. Problemas fundamentais de direito penal. p. 24.

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pena, tenderá a reforçar esse efeito. Atualmente é o parâmetro mais visível no Congresso Nacional, ora baseado em midiatismo, ora baseado em interesses de grupos específicos. O que se percebe é o caráter repressivo adotado em últimas alterações legislativas com o grito de que se faria necessário a inclusão de novos tipos penais ou o aumento de sanções correspondentes visando intimidar determinados ramos sociais. Como última crítica negativa ponderável e nos dizeres de Roxin a mais importante183, diz respeito a justificação necessária ao castigo de um indivíduo, não em consideração à ele próprio, mas em consideração a outros. Ainda que a intimidação surta os efeitos desejados, é duvidoso, para se dizer o mínimo, que seja justo impor um mal a alguém para que outros se omitam em cometer um mal. Baseando-se nas concepções de Kant que afirmava que o indivíduo não pode nunca ser utilizado como meio para as intenções de outrem sob pena de violação da dignidade humana, Roxin pondera,

E, efectivamente, para um ordenamento jurídico que não considere o indivíduo como objecto à mercê do poder do Estado nem como material humano que possa ser utilizado, mas sim como portador, plenamente equiparão a todos os outros, de um valor como pessoa, valor esse que é prévio ao Estado e que deve ser protegido por este, tem de ser inadmissível tal instrumentalização do homem.184

Como aspecto positivo da prevenção geral da pena tem-se que essa ideologia busca a conservação e o reforço da confiança no direito já que a pena tem a missão de demonstrar a inviolabilidade do ordenamento jurídico frente à comunidade e reforçar a confiança jurídica do povo. Diz-se ainda185, que a prevenção geral da pena pode assumir três fins e destinos ligados entre si: o efeito de aprendizagem, motivado social-pedagogicamente; o exercício da confiança do Direito que se origina na população pela atividade da justiça penal e o efeito de confiança que surge quando o cidadão vê que o Direito se aplica; e o efeito de pacificação, que se produz quando a consciência jurídica geral se tranquiliza em virtude da sanção ao autor que desrespeitou a lei.

183

Idem. Ibidem. p. 24. Idem. Ibidem. p. 25. 185 ROXIN. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. p. 91-92. 184

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Faz-se necessário dizer que a prevenção geral tem como escopo principal evitar a ocorrência do delito sob a ameaça de pena. Isso pode parecer insuficiente frente às altas taxas186 de reincidência vividas no país. Contudo é de se asseverar que bem ou mal, ela produz resultados, haja vista somente pequena parcela da população187 ser responsável pelo cometimento de delitos. A objeção de que todo delito demonstra a ineficácia da prevenção geral pode se contrapor sempre à sua efetividade demonstrada pela maioria da população que não pratica delitos e segue o ordenamento jurídico.

2.2.2.2.2 Teoria da prevenção especial da pena

A diferença da prevenção geral, que se dirige à coletividade, a prevenção especial tende a prevenir os delitos que possam proceder do delinquente, ou seja, busca evitar que quem sofra a sanção possa voltar a delinquir. Frente a este, a imposição da pena tem que servir como lição e como caminho para a readaptação social. Busca a prevenção especial da pena a (re)socialização do autor do delito condenado a algum tipo de pena. A prevenção especial, assim, não pode operar no mesmo instante da prevenção geral, no momento da cominação penal e sim no momento da execução da pena. Diversas correntes teóricas baseiam suas posições na prevenção especial. A partir do século XIX, tomou corpo o correcionalismo de Dorado Montero na Espanha188, o movimento de defesa social, de Marc Ancel na França, mas foi, sobretudo, com Franz von Liszt na Alemanha que a concepção preventivo-especial se solidificou. Partindo da ideia do fim como motriz da ciência do direito, Von Liszt considerou que a pena só podia se justificar por sua finalidade preventiva. Em seu famoso Programa de Marburgo de 1882, assentou alguns pontos politico-criminais que deveriam ser seguidos. Assim, a pena correta seria a pena justa, necessária; a finalidade da prevenção especial se cumpriria de forma distinta, segundo três categorias de 186

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, de 30.03.2011, a taxa de reincidência para presos submetidos a penas privativas de liberdade é de 80%. 187 Há um total de 496.251 presos no Brasil, segundo dados do Ministério da Justiça. Somem-se a isso 544.795 condenados sujeitos a medidas despenalizadoras e 126.273 condenados submetidos a penas alternativas, segundo dados do CNJ, totalizando 1.167.319 pessoas que efetivamente cometeram delitos e que foram punidas. Isto corresponde aproximadamente 0,5% da população brasileira (190.755.799 – IBGE 2010). 188 MIR PUIG. Ibidem. p. 55.

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delinquentes demonstrados pela criminologia: a) frente aos delinquentes de ocasião, necessitado de correção, a pena constituiria uma recordação para que se iniba futuros delitos; b) frente ao delinquente de estado corrigível, o qual deve perseguir a correção e reintegração social por meio de uma adequada execução da pena; c) frente ao delinquente habitual incorrigível, onde a pena serviria para incapacita-lo através da segregação que pode chegar a ser perpétua. Dessa forma, a prevenção especial, segundo Von Liszt189 pode atuar de três formas, assegurando a comunidade frente aos delinquentes, mediante o encarceramento destes, intimidando o autor, mediante a pena para que não cometa futuros delitos e preservando-o da reincidência mediante sua correção. Serve a pena, portanto, para intimidar, corrigir e segregar190 o delinquente, como forma última de proteção de bens jurídicos mediante a incidência da pena na personalidade do delinquente como forma de evitar futuros delitos, cumprindo muito bem o papel destinado ao Direito Penal, quando se obriga exclusivamente à proteção do indivíduo e da sociedade e que ao mesmo tempo quer ajudar o autor do delito, integrando-o novamente ao convívio social.

Em relação a estes três fins, diversos e alternativos entre si, Liszt propôs uma diferenciação dos “instrumentos punitivos singularmente considerados” a fim de “adaptar a pena segundo o seu tipo e a sua extensão, na conquista do objeto possível e necessário em cada caso concreto”, que se extrai não do “tipo penal” “in abstrato”, mas sim “deste delito em si”, ou seja, da “ação concreta”, a qual e inseparável da pessoa do autor”, vale dizer, “este ladrão”, “este assassino”, “esta testemunha mentirosa”, “este estuprador”. 191

Assim, já se manifestava o Tribunal Constitucional alemão,

Como portador de direitos fundamentais resultantes da dignidade humana e que garantem sua proteção, o delinquente condenado deve ter a oportunidade de integrar-se outra vez na sociedade depois do cumprimento de sua pena.192 (Tradução livre).

189

ROXIN. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. p. 85-86. 190 Roxin utiliza o termo inocuização do delinquente, da locução tornar inócuo ou sem ação. Preferimos o termo segregação visto que é o efeito sentido diretamente quando da aplicação da pena restritiva de liberdade. 191 FERRAJOLI. Ibidem. p. 249-250. 192 BVerfG (E 35, 202, 235 s) In: ROXIN. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. p. 87.

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Há, contudo, manifestações críticas quanto à prevenção especial. Para Roxin193 um primeiro problema aparece no sentido de delimitação do poder punitivo do Estado. O esforço terapêutico do Estado deve dirigir-se somente contra os inadaptados ao convívio social, mas o limite disto continua a ser perigoso no ponto em que se pode dar margem à eleição destes inadaptados, podendo entrar na esfera do direito penal, grupos de pessoas cujo tratamento como criminosos dificilmente pode se fundamentar com base numa ordem jurídico-penal como a que possuímos, ou seja, o direito penal do fato. Assim o foi na ditadura e hoje na escolha dos clientes preferenciais do direito penal, numa clara assunção ao labbeling aprouch ou etiquetamento. Ferrajoli também criticando o poder punitivo estatal delimita a crítica quanto à possibilidade reintegradora derivada da intervenção do Estado,

Uma rica literatura, confortada por uma secular e dolorosa experiência, demonstrou, com efeito, que não existem penas corretivas ou que tenham caráter terapêutico, e que o cárcere, em particular, é um lugar criminógeno de educação e solicitação ao crime. Repressão e educação são, em resumo, incompatíveis, como também o são a privação da liberdade e a liberdade em si, que da educação constitui a essência e o pressuposto, razão pela qual a única coisa que se pode pretender do cárcere é que seja o mínimo possível repressivo e, portanto, o menos possível dessocializante e deseducativo.194

Ainda segundo a crítica, a prevenção especial impossibilita a delimitação temporal da pena, através de penas fixas, na medida em que para ser efetiva, a pena deveria prosseguir até que o delinquente tenha a estabelecida correção ou se não for possível, que seja indefinida. Outra objeção ainda é alegada, consistente no fato de que, nos crimes mais graves não seria necessária a pena caso não existisse perigo de repetição. Tome como exemplo os criminosos nazistas que assassinaram milhões nos campos de concentração e que hoje não oferecem perigo algum ante a queda do sistema. Ainda exemplificando, nos crimes passionais contra a vida, onde o criminoso, após eliminar a vida do cônjuge traidor, não lhe resta razão alguma a voltar a delinquir. Como última e mais considerável crítica, reside a pergunta do limite de intervenção que o Estado, ou na melhor doutrina, a maioria das pessoas pode causar na vida da minoria. Até onde é legítimo a maioria da população obrigar a minoria a 193 194

ROXIN. Problemas fundamentais de direito penal. p. 21. FERRAJOLI. Ibidem. p. 253.

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comportar-se e adaptar-se ao seu modo de vida? De onde vem o direito de poder educar e submeter a tratamento contra a sua vontade pessoas adultas195?

2.2.2.3 Teoria mista ou unificadora da pena

As teorias mistas ou unificadoras da pena se constituem numa combinação das concepções discutidas até agora. Consideram a retribuição, a prevenção geral e a prevenção especial como fins que a pena busca simultaneamente. A pena não se justifica só porque seria retribuição ao delito cometido, nem porque seria meio de prevenção de futuros delitos. A pena é retribuição proporcional ao mal culpável do delito, mas também se destina a outros fins de prevenção geral assim como de prevenção especial. Em outras palavras, a pena deve servir para prevenção de futuros delitos bem como à reintegração social do autor. As teorias ecléticas de união são o resultado da luta de escolas, fruto de uma atitude de compromisso, conciliadora, que trata de harmonizar as contribuições das teorias absolutas bem como das relativas. Assim, o importante seria oferecer uma visão totalizadora de tais funções, do modo como operam, bem como da interdependência entre elas. Roxin adverte tal orientação, denominando tais teorias de monistas ou possuidoras da pureza de modelo,

As teorias monistas, quer atendam à culpa, à prevenção geral ou à especial, são necessariamente falsas, porque, quando se trata da relação do particular com a comunidade e o Estado, a realização estrita de um só princípio ordenador tem forçosamente como consequência a arbitrariedade e a falta de verdade. [...] A pureza do modelo constitui, aliás, uma consideração fundamental em toda problemática social, satisfazendo certamente os partidários de doutrinas formalistas, mas nunca conseguindo abarcar toda a complexidade dos fenómenos. 196

As teorias unitárias buscam fórmulas que sirvam de ponte entre umas e outras teorias se constituindo em posições dominantes na atualidade. Mas no seio das teorias de união existem numerosas configurações ou combinações. Na doutrina 195 196

Idem. Ibidem. p. 22. ROXIN. Problemas fundamentais de direito penal. p. 43.

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espanhola, Cerezo Mir observa que existem diferenças importantes entre os vários pontos de vista dos autores partidários delas: enquanto uns fundamentam a pena exclusivamente na retribuição, outros o fazem na necessidade social, isto é, os primeiros, no fundo sustentariam uma fundamentação absoluta da pena, enquanto os segundos uma teoria relativa da mesma. 197 Maurach, na doutrina alemã distingue dentro das teorias de união as que propriamente devem ser consideradas como tais, das que, não merecem a referida conceituação. Aquelas teorias que, no caso concreto, subordinam a retribuição à prevenção, não seriam teorias de união em sentido estrito, pois a nota privativa destas não residiria numa soma de funções, senão, antes de tudo, no claro reconhecimento do caráter retributivo da pena, que pode perseguir, também, fins preventivos, mas dentro do marco traçado pela medida da culpabilidade e em proporção desta.198 Outra diferenciação ainda é cabível dentro das teorias de união, a posição conservadora, expressa pelos idealizadores do Projeto Oficial do Código Penal alemão de 1962 e posição progressista do Projeto Alternativo de 1966. Ambas posições de aproximam no sentido de que reconhecem que o fim básico do direito penal não é fazer justiça, cabendo possível orientação à política, e sim proteger a sociedade, por consequência seus bens jurídicos mais importantes e prevenir futuros delitos. Convergem ainda na admissão de que a culpabilidade há que se operar como limite da pena, sem que referido limite possa ser ultrapassado por razões de prevenção geral ou especial.199 A principal diferença, contudo, entre as duas posições fica na função que a culpabilidade do agente assume. Para a posição conservadora a pena tem sentido enquanto retribuição da culpabilidade do autor e reafirmação da ordem jurídica, sem prejuízo de outros fins que possa assumir, como o de prevenção de futuros delitos, mediante intimidação geral ou mediante a recuperação do delinquente, servindo a culpabilidade como fundamento da pena, numa clara prevalência da prevenção geral, como finalidade inerente à retribuição e por considerar que só por meio da pena justa podem ser alcançados os resultados intimidatórios desejados.

197

GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal. Parte Geral. v. 2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 693. 198 Idem. Ibidem. p. 693. 199 Idem. Ibidem. p. 694.

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Já a para a posição progressista a pena se fundamenta na necessária defesa da sociedade, na proteção de bens jurídicos, operando a retribuição e a culpabilidade como limite das metas de prevenção. Afirma Roxin no projeto que a pena “é uma amarga necessidade em uma comunidade de seres imperfeitos como são os homens”, e não um “processo metafísico” para realizar a justiça sobre a terra.200

Assim, a orientação progressista prioriza a prevenção especial, como exigência de um Direito Penal mais humanitário que persegue a reincorporação do apenado à comunidade jurídica assim como sua voluntária ressocialização como consequência derivada da “função tutelar” e não meramente “defensista” do Direito Penal.201

Fundada nessa perspectiva progressista do Projeto Alternativo de 1966, Roxin desenvolveu sua teoria unificadora preventiva dialética da pena a qual considera os fins em cada fase existencial da pena e que entendemos como a mais acertada dentre todas as teorias. O ponto de partida da teoria é o âmbito de atuação do Direito Penal, sendo este balizado de três maneiras: ameaçando o indivíduo com a pena, impondo e executando essa pena. Essas três esferas de atividade estatal necessitam de justificação, cada uma em separado. É preciso que se observem os distintos estágios de atuação do direito penal e que estes se estruturam não em separado, mas sim uns sobre os outros e que, portanto, cada etapa seguinte deve acolher em si os princípios precedentes.

Cada uma das teorias da pena dirige sua visão unilateralmente para determinados aspectos do direito penal – a teoria da prevenção especial para a execução, a ideia da retribuição para a sentença e a concepção da prevenção geral para o fim das cominações penais – e descura as restantes formas de aparecimento do poder estatal, embora cada uma delas implique intervenções específicas na liberdade do indivíduo. 202

Desta forma, as cominações penais, como primeira esfera de incidência penal, só estão justificadas se tiverem em conta uma dupla restrição: a proteção subsidiária do direito penal sobre os bens jurídicos e a necessidade de lesão destes bens jurídicos, não se ocupando o direito penal de meras imoralidades. Essa primeira premissa direciona a cominação à prevenção geral. 200

Idem. Ibidem. p. 694. Idem. Ibidem. p. 695. 202 ROXIN. Problemas fundamentais de direito penal. p. 26. 201

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Isso significa que em cada situação histórica e social um grupo humano estabelece os pressupostos imprescindíveis para uma existência em comum, os chamados bens jurídicos.

No Estado moderno, junto a esta proteção de bens jurídicos previamente dados, surge a necessidade de assegurar, se necessário através dos meios do direito penal, o cumprimento das prestações de caráter público de que depende o indivíduo no quadro da assistência social por parte do Estado. Com essa dupla função, o direito penal realiza uma das mais importantes das numerosas tarefas do Estado, na medida em que apenas a proteção dos bens jurídicos constitutivos da sociedade e a garantia das prestações públicas necessárias para a existência possibilitam ao cidadão o livre desenvolvimento da sua personalidade, que a nossa Constituição considera como pressuposto de uma condição digna. 203

O direito penal, portanto, assume uma natureza subsidiária, ou seja, somente se podem punir lesões ou ameaças concretas de lesões aos bens jurídicos tutelados quando o restante do ordenamento não for capaz de gerar tal proteção. Nesse sentido, o termo prevenção geral deve ser entendido em sentido amplo, encerrando a ideia de que o Estado, por meio do Direito Penal estabelece um marco de proteção a todo cidadão, garantindo-lhe as condições essenciais da sua existência e advertindo-lhe, sob a ameaça de uma pena, quais as condutas deve se abster, atrelando a prevenção geral ao Estado social de direito, estabelecendo limites à sua atuação: a lesão a bens jurídicos.204 Um segundo momento da atuação do Direito Penal diz respeito à aplicação da pena pelo Judiciário, onde a pena operaria respaldando a seriedade da cominação legal típica, tendo a culpabilidade do autor como limite de retribuição. A imposição da pena serve para a proteção subsidiária e preventiva dos bens jurídicos e demais prestações estatais, por meio de um mecanismo respeitoso com a autonomia da personalidade, limitando-se à medida da culpabilidade do autor. 205 A retribuição do mal causado dado pela aplicação da pena deve ser limitada pela culpabilidade, não confundindo-se com a mesma. A pena não pode sobrepassar a medida da culpabilidade, pode ficar abaixo dela, contrariando assim os teóricos retribucionistas, mas não pode ultrapassá-la, pois só assim se respeita a máxima kantina de que o homem não deve servir como instrumento para se alcançar fins preventivos. A 203

Idem. Ibidem. p. 28. GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES. Direito Penal. Parte Geral. p. 697. 205 Idem. Ibidem. p. 698. 204

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culpabilidade faculta ao Estado a retribuição mas também é o modo de manter dentro de certos limites as demandas da coletividade frente à liberdade individual.206 Essas concepções roxinianas levam a entender que a pena, seja na cominação, seja na aplicação possui fim exclusivamente preventivo, abandonando-se por final a ideia hermética de retribuição.

O ponto de partida de toda a teoria hoje defendida deve basear-se no entendimento de que o fim da pena só pode ser do tipo preventivo. Pois as normas penais só estão justificadas quando tendem a proteção da liberdade individual e a uma ordem social que está a seu serviço (cfr. §2, nm. 9 ss.), também a pena concreta só pode perseguir isso, é dizer, um fim preventivo do delito (cfr. nm. 15, 28). Disso resulta ademais que a prevenção especial e a prevenção geral devem figurar conjuntamente como fins da pena207 (Tradução livre)

O último momento de atuação do Direito Penal refere-se à principal preocupação desse trabalho, dado à mazela em que se encontra em nosso país, a execução da pena. A execução pressupõe uma pena ditada em conformidade com as exigências da prevenção geral e de caráter intimidatório no momento da cominação, e, ainda, limitada dentro da esfera de culpabilidade do agente quando da sua aplicação. Porém, a fase executiva encampa uma terceira e preponderante função, a prevenção especial, notadamente no campo da reintegração social do delinquente. A pena deveria servir para fins exclusivamente racionais208, possibilitando a vida humana em comum e sem perigos, justificando apenas dessa forma o prosseguimento da ideia ressocializadora e de reintegração do delinquente. Contudo, os esforços de reintegração social apenas terão sucesso se os pressupostos anteriormente tratados forem seguidos com exatidão, além de que,

[...] como naturalmente sucede com a maioria dos presos, a primeira coisa que se deve fazer é conduzir a personalidade do sujeito ao caminho recto, o modo de o fazer não é moralizar em tom magistral, mas sim espiritual e intelectualmente, despertar a consciência da responsabilidade e ativar e desenvolver todas as forças do delinquente, e muito em particular as suas

206

Idem. Ibidem. p. 698. ROXIN. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. p. 95. 208 ROXIN. Problemas fundamentais de direito penal. p. 40. 207

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especiais aptidões pessoais. A personalidade do delinquente não deve, pois, ser humilhada nem ofendida, mas desenvolvida. 209

Qualquer tentativa de reintegradora certamente fracassará se o delinquente não estiver disposto a isso. Assim, devem os esforços reintegradores se constituir de ofertas para que o delinquente ajude a si próprio.

Uma teoria da pena que não pretenda manter-se na abstracção ou em propostas isoladas, mas que tenha como objetivo corresponder à realidade, tem de reconhecer estas antíteses inerentes a toda a existência social para, de acordo com o princípio dialéctico, poder superá-las numa fase superior; ou seja, tem de criar uma ordem que demonstre que, na realidade, um direito penal só pode fortalecer a consciência jurídica da generalidade no sentido da prevenção geral se ao mesmo tempo preservar a individualidade de quem a ele está sujeito; que o que a sociedade faz pelo delinquente também é afinal o mais proveitoso para ela; e que só se pode ajudar o criminoso a superar a sua inidoneidade social de uma forma igualmente frutífera para ele e para a comunidade se, a par da consideração da sua debilidade e da sua necessidade de tratamento, não se perder de vista a imagem da personalidade responsável para a qual ele aponta.210

Torna-se particularmente importante a situação em que o delinquente se opõe ao processo reintegrador. Isto não desvincula a sociedade da obrigação que possui em face ao mesmo. Uma pena que pretende compensar os defeitos de socialização do autor só pode ser pedagógica e terapeuticamente eficaz quando se estabelece uma relação de cooperação com o condenado. Se o delinquente recusa sua colaboração para a reintegração social, mesmo assim, deve ser executada a sentença até pela característica da prevenção geral, mas quando possível, a qualquer momento da execução da pena pode o delinquente optar pelo processo reintegrador. Roxin conclui com precisão a necessidade preventivo especial da pena,

Deste modo se invalidam ao mesmo tempo todas as objeções que se alegam contra o fim da ressocialização com o argumento de que este conduz a uma adaptação forçada que viola a personalidade (cfr. nm. 17 s.). Pois quando o condenado, por iniciativa própria, colabora com o desenvolvimento da execução, isso não contribui à violação de sua personalidade, mas precisamente ao desenvolvimento da mesma. Se ressocialização pressupõe voluntariedade, está claro também porque não há contradição irresolúvel quando o BVerfG211, por uma parte, estatui um direito fundamental à ressocialização (nm. 14), mas por outra parte, nega ao Estado a faculdade «de 209

Idem. Ibidem. p. 42. Idem. Ibidem. p. 45. 211 Tribunal Constitucional alemão. 210

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corrigir seus cidadãos» (nm.17). O proibido é unicamente a educação forçada de adultos; não obstante, o condenado tem direito a que o Estado lhe ajude à reinserção social que ele aspira212 (Tradução livre).

212

ROXIN. Derecho Penal. Parte General. Tomo I. Fundamentos. La Estructura de la Teoría del Delito. p. 96.

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CAPÍTULO 3 EXECUÇÃO PENAL E DIREITOS COLETIVOS DOS PRESOS

3.1 Reintegração social

Ressocialização e tratamento são conceitos que receberam todo tipo de censura e de desqualificação, nem sempre justificadas. A suposta ineficácia do tratamento, amplamente divulgada pelas teorias retributivas e abolicionistas da pena, só alimentam a incredulidade da proposta ressocializadora, baseados apenas num malgrado pessimismo, olhando apenas os casos de insucesso, esquecendo-se, porém, dos casos bem sucedidos. Ao falar em ressocialização de cara encontramos dificuldades, iniciadas pelo conceito relativo ao vocábulo ante a falta de rigor metodológico utilizado até hoje. Assim, reabilitação, reinserção social, reeducação, ressocialização, tratamento penitenciário, são tratados da mesma forma como sinônimos, o que assim não entendemos. A rigor, só se pode falar em reabilitação para quem já foi primeiramente habilitado; em reinserção social a quem já foi anteriormente inserido, etc. Contudo, quando se fala na prática de uma infração, nem sempre estamos de frente ao mesmo tipo de situação. É cediço que hoje a maior parte dos clientes do Direito Penal e de suas instituições são aqueles que possuem baixa renda e pouca escolaridade, conforme atestam dados do Departamento Penitenciário Nacional - DEPEN213, mas isso não retrata que apenas a ausência de recursos financeiros e educação são as causas de criminalidade e portanto, de pessoas que não teriam sido inseridas no seio social, até porque a diversidade de bens jurídicos tutelados e nos referimos precisamente a bens difusos e que são tutelados pelos tipos dos crimes de colarinho branco fogem a regra do sistema.

213

43% dos presos possui ensino fundamental incompleto, 12% são apenas alfabetizados e 6% analfabetos. Disponível em: Acesso em: 09 jul. 2011.

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Tal fato não retira a problemática da questão conceitual.

Ao falar

primeiramente em ressocialização, tende-se a entender que o delinquente foi socializado, o que nem sempre é verdade. Dizer que o delinquente deve ser tratado também nos parece equivocado já que pressupõe que este é doente. Se assim fosse, necessitaria de medidas de segurança e não pena. Acreditamos, desse modo, que razão assiste a Baratta quando discute o paradigma de compreensão do crime, segundo o modelo que vincula o crime a anormalidades de conduta, pois termos como ressocialização, reabilitação e tratamentos terapêuticos buscam corrigir desvios e desajustes do indivíduo, sendo o foco da atenção terapêutica no sentenciado. A partir, no entanto, da compreensão do crime como expressão de conflito, o foco da atenção deve mudar para o cenário do conflito, deve se deslocar da pessoa do apenado para o complexo de relações entre ele e a sociedade e todo seu contexto familiar, tendo-se em vista a história de segregação e exclusão de que o preso é submetido. Propõe-se assim, em substituição a termos como tratamento, reabilitação e ressocialização, já que centrados na pessoa do sentenciado o termo reintegração social, que seria um processo de abertura do cárcere para a sociedade e de abertura da sociedade para o cárcere, de tornar o cárcere cada vez menos cárcere, processo no qual a sociedade tem um compromisso, um papel ativo e fundamental.214

Ressaltamos a necessidade da opção pela abertura da prisão à sociedade e, reciprocamente, da sociedade à prisão. Um dos elementos mais negativos das instituições carcerárias, de fato, é o isolamento do microcosmo prisional do macrocosmo social, simbolizado pelos muros e grades. [...] Não se pode segregar pessoas e, ao mesmo tempo, pretender a sua reintegração. Todavia, a questão é mais ampla e se relaciona com a concepção de “reintegração social”, conceito que decididamente preferimos aos de “ressocialização” e “tratamento”. “Tratamento” e “ressocialização” pressupõem uma postura passiva do detento e ativa das instituições: são heranças anacrônicas da velha criminologia positivista que tinha o condenado como indivíduo anormal e inferior que precisava ser (re)adaptado à sociedade, considerando acriticamente esta como “boa” e aquele como “mau”. Já o entendimento da reintegração social requer a abertura de um processo de comunicação e interação entre a prisão e a sociedade, no qual os cidadãos reclusos se reconheçam na sociedade e esta, por sua vez, se reconheça na prisão. 215 (grifos no original)

214

SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia clínica e psicologia criminal. 2 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 58. 215 BARATTA, Alessandro. Ressocialização ou controle social. Uma abordagem crítica da “reintegração social” do sentenciado. Tradução: Escola Penitenciária DEPEN. Disponível em: Acesso em: 05 dez. 2011.

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Assentando este primeiro ponto, cumpre a tarefa de excursionar sobre o conteúdo da reintegração social, seus parâmetros, necessidades, limitações, haja vista a função preventiva especial da pena. Partindo deste pressuposto de adoção da prevenção especial em sua vertente positiva, qual seja, a reintegração social do condenado, a função primordial assumida pela pena é possibilitar o reencontro do delinquente com a sociedade que outrora lhe foi inimiga e, principalmente, que este não volte a delinquir. A questão da reincidência é o principal paradigma da reintegração social. Quando da prática da infração, o delinquente vai sofrer os aspectos preventivos gerais da pena aposta pela sua punição e consequente colocação no cárcere. Mas isso apenas não basta. Não basta segregar uma pessoa, privando-a normalmente de direitos fundamentais, fazendo-a dispor de seu tempo em favor do Estado sem que nada seja feito para que este delinquente não volte a praticar novas infrações. O papel da reintegração social pode parecer um tanto quanto ingrato, ainda mais hoje diante do atual panorama ao qual estão expostos os condenados. Contudo, algo necessita ser feito para mudar essa perspectiva caótica. Munõz Conde e Hassemer asseveram sobre o papel da reintegração social do condenado,

O mais razoável que se pode oferecer ao delinquente numa sociedade orientada output, interessada em conhecer as consequências de suas instituições, é ajuda para a sua (re)inserção e para levar, no futuro, uma vida sem delitos. Isto, além de justo e humano, é útil para ambas as partes. É útil para a sociedade, que pode reduzir as taxas de reincidência e com ela a de criminalidade a longo e médio prazos. E é útil para o delinquente, que pode voltar a viver em liberdade sem que o delito cometido e a pena que acaba de cumprir o separem definitivamente de uma convivência social normal, em condições de igualdade com os demais cidadãos.216 (grifos no original)

Recordando rapidamente a temática da evolução das penas, boa parte da doutrina, notadamente àquelas de conteúdo marxista como Melossi e Pavarini, bem como na criminologia, as teorias ecológicas, atribuem a maior incidência de crimes à socialização deficiente. Independentemente das opiniões sobre as teorias biológicas, que tentam explicar o crime a partir de indivíduo, o certo é que nem o gênero, raça, 216

MUÑOZ CONDE. Francisco; HASSEMER, Winfried. Introdução à criminologia. Trad. Cintia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. p. 180.

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constituição física (como diria Lombroso), nem herança genética são por si sós fatores suficientes para explicar, de modo geral, as causas da criminalidade. Desde sempre se sabe que a conduta humana é, além de resultado de condicionamentos físicos, biológicos e psicológicos com os quais o ser humano vem ao mundo, sobretudo, consequência de um processo de socialização que começa desde o nascimento e continua com a educação no seio familiar e com outros processos de socialização e aprendizagem cultural através de distintas instâncias e contatos sociais, que vão configurando a personalidade do indivíduo. Portanto, na análise empírica das causas da criminalidade, devem-se levar em consideração também fatores de caráter social, externos ao indivíduo, que fazem compreensível sua conduta e permitem sua valoração num contexto mais amplo do que sua própria individualidade.217 A socialização do indivíduo passa por processos familiares, escolares, por círculos de trabalho, religiosidade as quais são instâncias de controle que levam a cabo o processo de socialização e que se sofrerem de problemas crônicos serão o germe para o desvio delitivo. A falha nos ambientes sociais, provocadas, normalmente, pela ausência do Estado, são causas patentes da delinquência, atribuindo à sociedade e não ao indivíduo, somente, a etiologia criminal. Normalmente, o tipo de criminalidade e de marginalização social, objeto de investigação e de preocupação por parte das teorias ecológicas, são os setores mais desfavorecidos da população que habitam os bairros marginais das grandes cidades, contribuindo, assim, para que também a polícia intensifique o controle de referidas regiões. Paradoxalmente, outras formas de criminalidade reconhecidas como tais em qualquer Estado moderno, como os grandes delitos econômicos financeiros, as grandes catástrofes ambientais produzidas por importantes empresas e indústrias, o narcotráfico em grande escala, a corrupção política e administrativa não são analisadas com critérios ecológicos.218 Todavia, a maior clientela do Direito Penal ainda se localiza em zonas suburbanas carentes da presença estatal em todos os aspectos preconizados pela Constituição Federal. Não é objeto deste estudo explicar a gênese do crime, bem como acreditamos, na maioria das vezes, atribuí-lo à co-responsabilidade do Estado quando 217 218

Idem. Ibidem. p. 47. Idem. Ibidem. p. 54.

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não cumpre seus misteres. Mas é preciso que se ressalte que se o Estado não cumpre seu papel na implementação de direitos, fundamentais, sociais, antes da prática do crime e com isso acaba gerando um plano fático existencial, é seu papel reduzir essa ausência de direitos no momento do cárcere, possibilitando de alguma forma, que as pessoas envolvidas com a criminalidade, estejam aptas a retornar ao convívio social com maior consciência do que quando adentraram a selva metalizada. O resultado desta crise de direitos, muito característico das atuais sociedades de consumo, nas quais reinam a competitividade e a luta por conseguir o máximo de poder e bem estar, é muitas vezes a prática delituosa, numa resposta do sujeito que não vê outra saída a esta contradição imposta pela própria estrutura social. Com isso, não se quer diminuir a culpa do delinquente, mas atribuí-la também à sociedade, numa coculpabilidade ou responsabilidade mútua.

Todo sujeito age numa circunstância determinada e com um âmbito de autodeterminação também determinado. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade – por melhor organizada que seja – nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em consequência, há sujeitos que têm um menor âmbito de determinação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não é possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação da culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma “co-culpabilidade”, com a qual a própria sociedade deve arcar. 219

Juarez Cirino dos Santos foi um dos primeiros estudiosos brasileiros a fomentar a ideia de co-culpabilidade. Chamando-a de co-culpabilidade da sociedade organizada, ele a entende como uma valoração compensatória da carga de responsabilidade atribuída a certos membros da sociedade que se encontram, em razão de condições sociais a eles desfavoráveis, acuados socialmente.220 Assim, segundo a teoria da co-culpabilidade, membros de determinadas classes sociais, ao cometerem certos tipos de delitos, devem ver mitigado o juízo de reprovação a eles dirigido, visto que uma gama diversa de fatores que lhes são alheios, mas adstritos às funções do Estado se aliam de modo a oportunizar a prática delituosa de maneira a justificar, em certa medida, a sua ocorrência. 219

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro v.1. p. 525. 220 SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 231.

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Segundo esta noção, o Estado parece deter uma inegável parcela de culpa diante do fenômeno criminal, principalmente quando o delito apresenta elementos de natureza social, tendo por fator desencadeador a ausência de condições mínimas que possibilitem a concretização da dignidade humana a cada cidadão. A co-culpabilidade, pois, vem temperar o juízo de reprovação que recai sobre o sujeito ativo do delito, repartindo-a com o Estado, uma vez que o delinquente, notadamente nos casos de delito patrimonial, é compelido à criminalidade por condições de vida desfavoráveis, pela descrença nas instituições oficiais, bem como pelo menosprezo a sociedade enquanto reduto excludente, reflexos diretos da ausência do Estado dos campos sociais. No cenário de diferenças sociais marcantes, descrença na figura do Estado e de um direito penal seletivo, a omissão estatal potencializa o sentimento de exclusão e revolta naqueles menos favorecidos. De maneira similar, a marginalização escolar e profissional concorre para um subdesenvolvimento intelectual capaz de comprometer a unidade acerca dos valores sociais e mais aceitos pelas classes medianamente escolarizadas e empregadas.221 Nesse contexto, a vida criminosa é antes mais uma opção, do que a expressão de uma personalidade intrinsecamente criminosa. Por certo, para se admitir a incidência da co-culpabilidade no caso concreto, é necessário aceitar que a exclusão social decorrente da omissão estatal é, de fato, capaz de alterar negativa e significativamente a relação do individuo para com o crime e a sociedade. Em que pese a obviedade de urna resposta positiva, tal questionamento se revela importante quando observados dados fáticos, por exemplo, apenas pequena parcela das pessoas que habitam as favelas é que se dedicam ao tráfico ilícito de entorpecentes ou a criminalidade em geral. Caso a pobreza fosse um fator tão determinante, a fatia de criminosos seria infinitamente maior, e a criminalidade se expandiria a ponto de fazer eclodir uma situação insustentável.

221

ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI, XIX, 2010, Fortaleza. Anais do XIX Encontro Nacional do Conpedi. 2010. p. 982-983.

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Todavia, não é isso o que ocorre. A despeito da existência de milhares de pessoas em situação de vida precária, nem todos se direcionam para o ilícito, razão pela qual não há que se vincular, causalmente, a pobreza a criminalidade.

Não obstante, atentando-se a determinismos econômicos, parece correto admitir que a situação de inferioridade experimentada pelos menos favorecidos, comparativamente aos integrantes das classes altas (piores empregos, piores salários, piores moradias, assistência médica hospitalar precária, pouco ou nenhum lazer) ocasiona naqueles certa indignação, donde decorre um desprezo pelos valores sociais vigentes - oriundos principalmente das camadas altas. Assim, a unidade e harmonia social restam prejudicadas.222

No âmbito socioeconômico também é possível concluir que, em face do déficit social experimentado pelas camadas populares, caminhos alternativos para o sucesso, tais como a atividade ilícita e o subemprego tornam-se realidades cada vez mais atraentes. Tudo leva a crer que o abalo ao principio da igualdade tem importantíssimas repercussões para a liberdade individual. Os espaços de mobilidade e decisão do individuo no interior da sociedade se reduzem na medida em que diminutas as suas possibilidades econômicas e culturais. Para Juarez Cirino, status social superior se traduz em maior liberdade, ao passo que status social inferior, maior determinação.223 Não é a desigualdade, em si, que afeta o pleno desenvolvimento humano e compromete a liberdade individual. Mas a existência de diferenças entre os indivíduos em uma sociedade torna uns mais ou menos livres do que outros, criando um desnivelamento social com repercussão no direito. Isto nos revela a importância da discussão sobre qual o tratamento que se deve dar a estas pessoas que foram submetidas a uma socialização deficiente e que com isso tiverem uma maior disponibilidade ao cometimento de ilícitos. Aqui é que se fecham as fundamentações das teorias da pena, principalmente a função preventiva especial e os direitos assegurados no bojo da Constituição Federal, e como decorrência de sua aplicabilidade imediata, dos direitos assegurados na Lei de Execução Penal.

222 223

Ibidem. p. 982-983. SANTOS. Ibidem. p. 231.

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Isso aponta para a premente necessidade de redimensionarmos conceitos e, sobretudo, uma prática há muito incrustrada nos operadores jurídicos, superando a noção de que o Direito Penal, esteja onde estiver, será sempre um mal: um mal que iniciaria pela obra do legislador penal e que alcançaria sua plenitude pela caneta do juiz criminal. Essa postura já não se sustenta ou apenas se sustenta em uma mentalidade ainda presa às matrizes do medievo ou, se tanto, do liberalismo do início do século XIX, onde a emancipação da sociedade se construía a partir da perene luta pela neutralização de um poder absoluto. 224

Para isso, o sistema prisional deve ser apto a proporcionar aos presos uma série de benefícios que vão desde a instrução225, inclusive profissional, até assistência médica e psicológica para proporcionar-lhes uma oportunidade de reintegração226 e não mais como um aspecto do rigor segregativo comum ao cárcere, compensando de alguma forma, a carência e privação a que são dispostos os encarcerados.227

224

FELDENS, Luciano. Direitos fundamentais e direito penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2008. p. 52. 225 As Leis n. 12.245/2010 que determinou a instalação de salas de aula em unidades prisionais e 12.433/2011 que alterou a remição de pena, incluindo a possibilidade do preso remir a pena pelo estudo, reforçam esse posicionamento. 226 “A Lei de Execução Penal – LEP é de ser interpretada com os olhos postos em seu art. 1º. Artigo que institui a lógica da prevalência de mecanismos de reinclusão social (e não de exclusão do sujeito apenado) no exame dos direitos e deveres dos sentenciados. Isso para favorecer, sempre que possível, a redução de distância entre a população intramuros penitenciários e a comunidade extramuros. Essa particular forma de parametrar a interpretação da lei (no caso, a LEP) é a que mais se aproxima da CF, que faz da cidadania e da dignidade da pessoa humana dois de seus fundamentos (incisos II e III do art. 1º). A reintegração social dos apenados é, justamente, pontual densificação de ambos os fundamentos constitucionais." (HC 99.652, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 3-11-2009, Primeira Turma, DJE de 4-12-2009.) A expressão cidadania está hoje arraigada por toda parte, com sentidos e intenções diferentes. Dentro desse aspecto temos pontos positivos e negativos, de um lado, porque indica que a expressão ganhou espaço na sociedade, por outro lado, face à velocidade e voracidade das várias apropriações dessa noção, nos coloca a necessidade de precisar e delimitar o seu significado. Além do que em razão das constantes alterações dos modelos econômicos, políticos e sociais, essa expressão consagrada ainda passa por alterações em relação aos direitos. Diante do processo de internacionalização dos direitos humanos, que teve por inicio com a Declaração Universal de 1948, confirmado na segunda Conferência de Viena, em 1993, a expressão cidadãos, se consolida, como sendo todos aqueles que habitam o âmbito da soberania de um Estado e deste Estado têm assegurados, constitucionalmente, direitos fundamentais mínimos e a cidadania como sendo um conjunto de direitos e liberdades políticas sociais e econômicas, já estabelecidos ou não pela legislação. Então se entende que o cidadão passa a ser aquele indivíduo a quem a Constituição do Estado confere direitos e garantias individuais, políticos, sociais, econômicos e culturais, e lhe dá o poder de seu efetivo exercício, que é a forma de fazer valer os direitos garantidos, exigindo a sua observância e zelando para que não sejam desrespeitados. Então se entende de forma geral por cidadão, aquele que possui e exerce todos estes Direitos Humanos, constitucional e legalmente garantidos. É aquele que não apenas vota, mas participa da construção de seu futuro, com a detenção dos instrumentos de que precisa para se autodeterminar, governar, exercer de forma absoluta os seus direitos. A Constituição Federal de 1988, consagrada no regime democrático deu abertura à normatividade internacional, e instituiu esta nova concepção de cidadania, estando hoje superada a antiga doutrina, do tempo do constitucionalismo do império, da cidadania ativa e passiva que significava a prerrogativa de quem podia participar da vida política do país, ou seja, de quem detinha os direitos políticos e daqueles a quem faltava este atributo. 227 BARATTA, Ibidem.

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A adoção do paradigma da reintegração social objetiva a orientação humanística a ser dada à execução penal, alterando o centro de gravidade do debate sobre as funções do sistema, incluindo o homem no centro de reflexão, deixando de lado apenas o efeito preventivo da pena. Já não mais é possível dizer que o objetivo restaria apenas ao castigo implacável do delinquente, apenas por crueldade ou como retribuição ao mal causado, senão orientar a execução do castigo de maneira que alguma utilidade lhe possa auferir. Dessa forma, o modelo reintegrativo proposto assume a natureza social do problema criminal, com todas as suas consequências. A característica do Estado Social de Direito, tão bem enfatizado na Constituição Federal se perfaz em suporte teórico importante para a intervenção do Estado no delinquente, a fim de proporcionar-lhe condições mínimas de retorno ao convívio social. “O castigo deve ser útil, também, para o próprio infrator”. 228

O paradigma ressocializador propugna, portanto, pela neutralização, na medida do possível, dos efeitos nocivos inerentes ao castigo, por meio de uma melhora substancial do seu regime de cumprimento e de execução e, sobretudo, sugere uma intervenção positiva no condenado que, longe de estigmatiza-lo com uma marca indelével, o habilite para se integrar e participar da sociedade, de forma digna e ativa, sem traumas, limitações ou condicionamentos especiais. Não se trata, evidentemente, de alcançar objetivos sublimes, conversões milagrosas, muito menos mudanças qualitativas de personalidade [...] Cuida-se, isso sim, de algo pensado no interesse exclusivo e real do condenado. Contando com sua colaboração efetiva, não somente com o seu consentimento formal, adotam-se técnicas e terapias cientificamente valoradas que facilitam a posterior reintegração social do infrator, que não lhe limitam, mas que incrementam suas expectativas e possibilidades de participação social. 229

Para que se obtenha um efeito reintegrador duradouro, não podem as expectativas se basear apenas no medo à pena, nem à conformidade formal do comportamento externo com a lei (prevenção geral). É preciso, pois, a interiorização moral da norma, que pressupõe uma atitude quase axiológica, referente a valores. Sem um supedâneo moral continuará a existir contradições inafastáveis entre a realidade anterior, ensejadora do delito e a nova realidade reabilitadora proposta pela sanção.

228

GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. v. 2. 6 ed. refor. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 421. 229 Idem. Ibidem. p. 421.

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Se se prescinde do fundamento moral da ressocialização, se se nega o direito do Estado de corrigir o cidadão ou se se questiona a legitimidade da execução da pena, orientada para a modificação da personalidade ou convicções do condenado, só cabe então uma vazia e inútil correspondência ao respeito formal da legalidade.230

Não restam dúvidas da importância do respeito ao princípio da legalidade, principalmente no âmbito do direito penal já que está a se tratar da restrição à liberdade, contudo, buscar a formatação do indivíduo às normas mínimas de convívio social não se caracteriza pela exclusão da pressuposta autodeterminação do indivíduo. Isso ajuda a afastar a máxima kantiana do homem como objeto da sanção. O objeto da sanção, nesse interim execucional, passa a ser a redução de conflitos, através da participação estatal, fomentando o indivíduo a desenvolver suas próprias habilidades e convicções pessoais, porém pautadas em condições mínimas de convivência coletiva. Assim, o paradigma reintegrador ressalta que o objetivo último do sistema penal é a reintegração do delinquente ao convívio social, baseado numa intervenção positiva no recluso com o fim de facilitar seu retorno, de forma digna à comunidade. Com esta perspectiva, é preciso que algumas questões sejam levantadas quanto à reintegração do condenado. Seria possível a reintegração social? Haveria interesse, efetivamente, por parte do Estado em promover a reinserção do egresso ao convívio social? Como o Estado quer levar a efeito o programa de reintegração do condenado se não cumpre as funções penológicas adotadas pela Lei de Execução Penal e não observa as limitações constitucionais quanto à aplicação da pena? A sociedade está preparada para recebê-lo?231 A resposta a estas indagações reside no pressuposto da dignidade da pessoa humana. Conforma já noticiado no capítulo 1, a dignidade da pessoa humana se constitui num predicado axiológico de todo o ordenamento jurídico, posto que a todo homem, desde sua concepção, lhe é assegurado o respeito à sua dignidade, o que invariavelmente levará à proteção da vida, da integridade física, psicológica e moral. Baseado nisto e acobertado pelo manto protetor dos direitos fundamentais, por consequência, não cabe mais se falar se é possível ou não a reintegração social. Esta é

230

Idem. Ibidem. p. 425. GRECO, Rogério. Direitos humanos, sistema prisional e alternativas à privação da liberdade. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 443-444. 231

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consequência necessária do tratamento dado pelo Estado aos condenados postos sob sua tutela. O que se observa no dia a dia da execução penal é o oposto. O Estado cada vez mais está se distanciando do problema carcerário, haja vista as condições em que se encontram a maioria dos estabelecimentos prisional. Os problemas encontrados na execução da pena aumentam cotidianamente, derivados da superlotação carcerária, corrupção de agentes penitenciários, maus-tratos, desrespeito aos direitos humanos fundamentais, gerando com isso superlotação, rebeliões, fugas e um aculturamento carcerário extremamente deletério ao caráter de convivência social pacífica. Com isso, falar em reintegração social necessita de uma urgente revisão do discurso, do discurso que é previsto pela Lei de Execução Penal (discurso oficial) com o discurso aplicado pelo Estado (interesse do Estado em promover a reintegração social). Caso o discurso proposto pela lei execucional fosse cumprido, a reintegração social do preso seria uma realidade muito mais crível do que se realiza atualmente232. E para isso ocorrer a solução passa necessariamente pela questão das políticas públicas (discurso praticado pelo Estado) e a sua possibilidade de controle pelos órgãos judiciais, o que será tratado especificamente no capítulo 4.

No Brasil, contudo, e de forma que se maximiza no decorrer do século XX, o debate “público” em torno da questão penitenciária é contaminado sobremodo pelos interesses oportunistas do campo político, bem como pelos interesses sensacionalistas da imprensa, produzindo-se, assim, uma lacuna científica, em especial nas necessárias interfaces disciplinares que extrapolam a abordagem jurídico-dogmática. Tal quadro se pode caracterizar (...) numa “miséria acadêmica”.233 (grifos no original)

232

Raúl Cervini observa com clarividência os resultados entre o discurso oficial e o executado. [...] O fenômeno da prisionização ou aculturação do detento, a potencialidade criminalizante do meio carcerário que condiciona futuras carreiras criminais (fenômeno do contágio), os efeitos da estigmatização, a transferência da pena e outras características próprias de toda a instituição penal inibem qualquer possibilidade de tratamento eficaz e as próprias cifras de reincidência são por si só eloquentes. Ademais, a carência de meios, instalações e pessoal capacitado agrava esse terrível panorama. apud GRECO, Rogério. Ibidem. p. 444. 233 SALLA, Fernando apud ROCHA, Alexandre Pereira da. O Estado e o Direito de Punir: a superlotação no sistema penitenciário brasileiro. 194 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política). Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. Brasília, 2006. p. 14.

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Desta feita, a força imperativa do princípio da dignidade da pessoa humana se converge em verdadeira barreira limitadora234 ao poder punitivo estatal, determinando a forma através da qual o processo reintegrativo deve ser implementado pelo Estado, sendo impossível (infelizmente, apenas teoricamente) que qualquer ordem jurídico-social possa contrariá-lo. A dignidade humana é a base de todos os demais princípios constitucionais penais, sendo certo que qualquer violação a outro princípio penal afeta igualmente a dignidade humana. Assim, quando um sujeito é colocado em uma cela superlotada235 sendo obrigado a se revezar para que possa dormir (deitado e não de pé) ou que tenha local para suas necessidades fisiológicas; quando não lhe é respeitado o seu direito à educação ante a falta de salas adequadas; quando não lhe é franqueado a possibilidade de trabalho (interno ou externo a depender do regime penitenciário a que faz jus e às suas habilidades pessoais); quando sua integridade física é violada236, seja por maustratos dos agentes, seja pelos outros detentos; quando a sua dignidade sexual é corrompida com estupros e outros atos incomensuráveis; os princípios constitucionais referentes à pena (proibição da pena indigna, legalidade da pena, proporcionalidade da pena, individualização da pena e humanização da pena237) são violados de alguma forma, e por conseguinte o princípio da dignidade da pessoa humana também é violado e a possibilidade da ideal reintegração social do preso torna-se ainda mais distante.

3.2 Direitos dos presos no curso da execução da pena

A execução penal se consubstancia no ápice da atuação do Direito Penal e Processual quando a pena determinada na sentença penal condenatória é efetivamente aplicada ou ainda, quando durante o curso de uma prisão cautelar, fazendo o Estado 234

BIANCHINI, Alice, GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio, GOMES, Luiz Flávio. Direito penal: introdução e princípios fundamentais. 2 ed. São Paulo: RT, 2009. 235 Cf. CNJ. Relatório do Mutirão Carcerário do Estado do Espírito Santo, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: Acesso em: 10.12.2011 236 Cf. CNJ. Relatório do Mutirão Carcerário do Estado do Maranhão, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: Acesso em: 14.12.2011 237 BRASIL, Constituição Federal, Artigo 5º, inciso XLIX - “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”, Artigo 5º incisos III e XLVIII (proibição de penas cruéis e intervenções degradantes da pessoa humana); LEP artigo 3º “Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei.”.

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valer-se de seu jus puniendi, incidindo os aspectos retributivo, neutralizador e reintegrativo da função penal. A esse processo executivo, por muito tempo foi atribuído a natureza de atividade meramente administrativa, realizada pelo Estado, através do Executivo. Isso gerou o distanciamento do respeito à dignidade humana pelo administrador prisional, já que este se regulava pela discricionariedade administrativa. Contudo, não é o que hoje prevalece no seio dos teóricos haja vista que a execução penal guarda uma íntima ligação com o Direito Penal e Processual Penal, constituindo-se numa atividade complexa e jurisdicional, desenvolvida entrosadamente entre os planos jurisdicional e administrativo restando a cada qual sua atividade, cabendo ao executivo e ao direito administrativo a aplicação correta da pena, e ao judiciário e ao direito processual a efetivação da sanção penal.238 Isso se dá pelo fato do órgão jurisdicional estar imbuído de proferir as determinações sobre a execução da pena, restando ao órgão administrativo o efetivo cumprimento da mesma, observados os comandos determinados pela sentença e ainda, respeitados os direitos assegurados pelo legislador. Nucci esclarece ser “impossível dissociar-se o Direito de Execução Penal do Direito Penal e do Processo Penal, pois o primeiro regula vários institutos de individualização da pena, enquanto o segundo estabelece os princípios e formas fundamentais de se regular o procedimento de execução”239, restando ao Estado-Administração a aplicação efetiva da sanção observados tais parâmetros. Consta do art. 1º da Lei de Execução Penal – Lei n. 7.210/84 que seu objetivo é efetivar as disposições da sentença e proporcionar condições harmônicas para a reeducação do preso e sua reinserção social, adotando claramente o legislador, o parâmetro das teorias preventivas especiais da pena. Assim, o primeiro objetivo da execução penal é fazer com que a pena seja cumprida de modo eficaz. Pena eficaz é aquela que cumpre seu papel social, seja em relação à sociedade, num aspecto preventivo geral, seja no aspecto preventivo especial, direcionado ao delinquente. Somente será possível falar na visão preventiva especial da pena aplicada de forma eficaz se os direitos assegurados aos presos forem cumpridos 238

GRINOVER, Ada Pellegrini. Natureza jurídica da execução penal. In Execução penal. Coord. Ada Pellegrini Grinover e Dante Busana. São Paulo: Max Limonad, 1987. p. 7. 239 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo e execução penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 918.

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pelos órgãos responsáveis pela sua execução. O descumprimento contumaz desses direitos afeta de forma direta o segundo e principal objetivo da execução penal que é a reintegração social do preso. Leia-se, a reintegração somente será possível se os direitos assegurados forem efetivamente cumpridos e respeitados. Conforme será visto no item 3.3.1 o grande mal da falta de efetividade no cumprimento desses direitos reside na questão orçamentária. No bojo da Lei de Execução Penal foram estabelecidos dois capítulos de extrema importância no que tange às necessidades de concretização do processo de reintegração social. Para tanto, o legislador atribuiu ao Estado no Capítulo II deveres de assistência à pessoa que foi por este privada de sua liberdade. Tais deveres assumem a característica de direitos com status positivus possibilitando aos reclusos exigir do ente estatal o seu cumprimento e observância para melhores condições de vida, sob pena de violação ao princípio maior da dignidade humana, constituindo-se assim um rol de obrigações ao Estado.

Quando o Estado-juiz determina a custódia de uma pessoa, surge a obrigação de fornecer a ela os elementos mínimos para a manutenção de suas necessidades diárias quanto à alimentação, ao vestuário, acomodação, ensino, profissionalização, religiosidade e quaisquer outras que não confrontem com a natureza da execução da pena. A reclusão somente poderá reeducar para a liberdade enquanto o modo de vida do recluso esteja prudentemente disposto para esta finalidade. 240

Através desses deveres de assistência é que o legislador fundamentou as bases do processo de reintegração social do condenado.241 É pela assistência dada ao preso que o processo vislumbra sua materialização e que somente será possível desde que se tenha observância e cumprimento estrito. Se tais deveres forem cumpridos pelo Estado, as condições almejadas de uma possível reintegração tornam-se mais factíveis e menos utópicas. Portanto, para que ocorra êxito no processo de reintegração social, a assistência será material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa242.

240

BRITO, Alexis Couto de. Execução Penal. 2 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 91. 241 BRASIL. Lei n. 7.210/84. Art. 10. A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade. 242 Cf. BRASIL. Lei n. 7.210/84. Art. 11.

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Como assistência material é de se entender que o Estado fornecerá alimentação, vestuário e instalações higiênicas ao preso. A bem da verdade registre-se que nesse aspecto os órgãos responsáveis pela execução penal tem procurado minimizar as mazelas do sistema. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, órgão ligado ao Ministério da Justiça editou, em atendimento à sua resolução n. 3, as Diretrizes Básicas para Arquitetura Penal,243 devendo tais orientações ser seguidas pelas unidades federativas para a construção, ampliação, reforma ou aquisição de equipamentos dos estabelecimentos penais. A problematização da superpopulação carcerária, bem como a depreciação das carceragens das cadeias públicas e das penitenciárias é o maior problema encontrado para que se alcance a reintegração social do condenado. Diz-se isso em razão de que a inobservância dos demais direitos assegurados aos reclusos iniciam-se quase que exclusivamente pela falência do Estado em disponibilizar vagas suficientes e disso decorre a desconstrução do caráter que restava ao delinquente244, que será obrigado a conviver com outros detentos, por vezes mais perigosos ou experientes na arte criminosa, além de ter que se subjugar à subcultura carcerária, criada pelos próprios detentos e com regras próprias com soluções mais drásticas que as dadas pelo próprio Estado. Já que vivemos a era do direito penal midiático, endurecendo a cada dia o rigor como resposta a violação dos bens jurídicos protegidos pela norma penal é de se esperar no mínimo que este mesmo Estado vingativo forneça condições materiais mínimas para o cumprimento de seus próprios mandamentos. Heleno Fragoso já em 1980 antes mesmo da edição da LEP questionava “como fica a dignidade quando o homem é preso numa jaula com mais de 30 ou 40 pessoas, sem lugar para repousar, usando, para satisfazer as próprias necessidades, um vaso turco, à vista de todos?”245 243

BRASIL. Ministério da Justiça. Disponível em: Acesso em: 05 jan. 2012. 244 Segundo Cuello Calón, é contraproducente a imposição de conviver incessantemente com uma massa humana na que abundam os sujeitos perversos, tendenciosos e agressivos, e não poucas vezes dominados por vícios repugnantes, não é aconselhável; todo recluso deve ter sua cela individual, não só para o repouso noturno, senão para isolar-se em certas ocasiões, todo homem precisa de momentos de solidão; obrigar o condenado a passar todas as horas do dia em companhia dos demais presos é uma tortura. apud BRITO, Ibidem. p. 93. 245 FRAGOSO, Heleno et al. apud BRITO. Ibidem. p. 93.

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O artigo 88 da LEP traz parâmetros mínimos necessários de atendimento à assistência material, determinando as características da cela nos estabelecimentos penitenciários destinados aos presos do regime fechado,

Art. 88. O condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório. Parágrafo único. São requisitos básicos da unidade celular: a) salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana; b) área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados).

Em atendimento aos reclames internacionais, notadamente aos tratados assinados pelo Brasil e incorporados ao ordenamento jurídico nacional, as Regras Mínimas para tratamento de reclusos da Organização das Nações Unidas, adotadas em 1955, pelo Primeiro Congresso das Nações Unidas para a Prevenção e Tratamento dos Delinquentes, apresentam com detalhes as condições que seriam ideais para um individuo recluso. Outrossim, o CNPCP também editou em 1994 a sua resolução de n. 14, determinando as Regras Mínimas para tratamento do recluso no Brasil. Como órgão responsável pela política criminal a ser adotada no território nacional, sua resolução deveria ter o condão de observância obrigatória pelas unidades federativas, mas não é isso que acontece. O que ocorre é que os Estados, locupletando-se com escusas orçamentárias insiste em não atender tais determinações, violando tratados internacionais de direitos humanos e violando a própria legislação. Segundo a Resolução n. 14 de 1994, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, os estabelecimentos penais, atendidos os pressupostos de assistência material prevista pela LEP devem observar:

Art. 8º. Salvo razões especiais, os presos deverão ser alojados individualmente. § 1º. Quando da utilização de dormitórios coletivos, estes deverão ser ocupados por presos cuidadosamente selecionados e reconhecidos como aptos a serem alojados nessas condições. § 2º. O preso disporá de cama individual provida de roupas, mantidas e mudadas correta e regularmente, a fim de assegurar condições básicas de limpeza e conforto. Art. 9º. Os locais destinados aos presos deverão satisfazer as exigências de higiene, de acordo com o clima, particularmente no que ser refere à superfície mínima, volume de ar, calefação e ventilação. Art. 10º O local onde os presos desenvolvam suas atividades deverá apresentar:

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I – janelas amplas, dispostas de maneira a possibilitar circulação de ar fresco, haja ou não ventilação artificial, para que o preso possa ler e trabalhar com luz natural; II – quando necessário, luz artificial suficiente, para que o preso possa trabalhar sem prejuízo da sua visão; III – instalações sanitárias adequadas, para que o preso possa satisfazer suas necessidades naturais de forma higiênica e decente, preservada a sua privacidade. IV – instalações condizentes, para que o preso possa tomar banho à temperatura adequada ao clima e com a freqüência que exigem os princípios básicos de higiene.

O fornecimento de estruturas dotadas de padrões mínimos de espaço, temperatura, higiene, vestuário são condições essenciais de sobrevivência e de respeito a dignidade humana e sendo o Estado garantidor dessas condições, não há desculpa aceitável ao seu não atendimento. Não é demais lembrar que segundo a LEP, ao preso permanecem garantidos todos os direitos que não atingidos pela execução da pena. Não há e tampouco poderia haver qualquer disposição em sentido contrário já que a pena deixou de ter característica apenas aflitiva para assumir, também, o caráter reintegrador. Ainda como assistência, ao Estado é determinado assegurar a saúde do preso, devendo os estabelecimentos penais contar com atendimento médico, odontológico e farmacêutico. Ainda, as Regras Mínimas de tratamentos de recluso da ONU orientam para que haja visita diária do médico e que o estabelecimento penal disponha dos materiais e equipamentos necessários para o atendimento médico. A realidade carcerária demonstra que mais esse dever de assistência por parte do Estado e um direito que assiste ao preso não é observado. Para tentar remediar tal situação, os tribunais246 vêm determinando a prisão domiciliar dos reclusos que necessitem de maiores cuidados e que estejam detidos em unidades que não apresentem as condições necessárias de atendimento. No que tange a assistência jurídica, esta é reservada aos reclusos que não possuem recursos financeiros para arcar com a constituição de advogados. Tal papel é muito bem desempenhado, dentro de suas limitações, pela Defensoria Pública, a qual alcançou em 2010 pela edição da Lei n. 12.313 a natureza de órgão responsável pela execução penal, devendo zelar pela execução da pena oficiando, no processo executivo e nos incidentes da execução, para a defesa dos necessitados em todos os graus e instâncias, de forma individual e coletiva, devendo todas as Unidades da Federação 246

Cf. HC 95.03.062424/0-SP – TRF- 3º Região; HC 28588/RS – STJ.

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prestar auxílio estrutural, pessoal e material à Defensoria Pública, no exercício de suas funções, dentro e fora dos estabelecimentos penais. Segundo Alexis Couto de Brito247, um dos pilares básicos para a disciplina carcerária é a assistência jurídica, já que nenhum preso se conforma com a privação da liberdade e caso o fizesse, jamais deixaria de ansiar por ela, sendo que a falta desta perspectiva ou a sensação de indefinição da pena retira sua tranquilidade refletindo na disciplina interna do estabelecimento. Em relação à assistência educacional prevista no art. 17 da LEP, buscam-se o desenvolvimento intelectual e o aprimoramento na formação profissional dos presos, sendo um dos elementos básicos, associado ao trabalho, da reintegração social, visto que o estudo fornece maiores condições de enfrentar o final da pena com sustento lícito. Esta visão foi adotada inclusive pela Constituição Federal, quando em seu art. 205 aponta a educação como condição para o desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. A educação é uma importante viga para a edificação e concretização do valor da dignidade humana. Por certo, “é muito comum que encontremos, na população carcerária, indivíduos que não receberam ou não completaram seus estudos, sejam eles fundamentais, médios ou superiores”248 e a inclusão destes em programas educacionais, é capaz de fomentar uma inclusão social e auto sustento, surgindo como um dos melhores sistemas de controle. E tanto isso é verdade que a população carcerária, em que pese seus mais de 500.000 membros ainda representa pequena parcela da população brasileira e isto se deve às instituições de controle social informal onde a educação escolar se apresenta como verdadeiro freio para a incidência da criminalidade e para que o Direito Penal não faça mais clientes. Desta feita, a assistência educacional compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do preso prevendo a LEP que o ensino fundamental será obrigatório àqueles que ainda não o tenham completado ou frequentado, fato importante tendo em vista que 61% do universo populacional do sistema é constituído por analfabetos e alfabetizados que não concluíram o ensino fundamental, segundo dados do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes.249 247

BRITO, Ibidem. p. 96. BRITO, Ibidem. p. 97. 249 Disponível em: < http://www.ipclfg.com.br/category/sistema-penitenciario/> Acesso em: 12 jan. 2012. 248

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Não é demais lembrar que para que os objetivos sejam alcançados, necessita-se de um esforço sobremaneira maior que o empregado para a educação de pessoas em liberdade, pois o cárcere, por si só, já se constitui num ambiente antipedagógico, ensejando a legislação250 que os estabelecimentos penais devem buscar convênios com entidades públicas ou particulares possibilitando o efetivo ingresso e estruturação da assistência educacional. Além desses deveres citados, cumpre consignar que outros ainda foram elencados pela LEP, são eles a assistência social, assistência religiosa e assistência ao egresso. A primeira consiste na ligação do recluso com a sociedade que o aguarda, tendo por finalidade, segundo disposto no art. 22 da LEP, amparar o preso e prepará-lo para o retorno à liberdade, sendo a “atuação do assistente social fundamental para desenvolver o fortalecimento das relações entre os condenados e a sociedade, promovendo a inclusão social dos apenados e a desmistificação da identidade socialmente construída.”251 Para que isto se realize, diversas ações devem ser tomadas pelo serviço social da unidade prisional: conhecer os resultados dos diagnósticos ou exames; relatar, por escrito, ao Diretor do estabelecimento, os problemas e as dificuldades enfrentadas pelo assistido; acompanhar o resultado das permissões de saídas e das saídas temporárias; promover, no estabelecimento, pelos meios disponíveis, a recreação; promover a orientação do assistido, na fase final do cumprimento da pena, e do liberando, de modo a facilitar o seu retorno à liberdade; providenciar a obtenção de documentos, dos benefícios da Previdência Social e do seguro por acidente no trabalho; orientar e amparar, quando necessário, a família do preso, do internado e da vítima.252 A assistência religiosa será autorizada nos estabelecimentos penitenciários como corolário à liberdade constitucional de culto. A religião, seja ela qual for, permite que novos valores sejam insertos na vida do recluso, levando-o à interiorização de novas perspectivas e esperanças para a vida pós-cárcere, encorajando-o a suportar as mais diversas barreiras e superar as dificuldades e tentações morais e criminosas. A assistência será prestada ao preso, conforme suas convicções religiosas, e garantida a realização e participação em seus cultos, com os objetos e livros necessários, 250

BRASIL. Lei de Execução Penal. Art. 20. As atividades educacionais podem ser objeto de convênio com entidades públicas ou particulares, que instalem escolas ou ofereçam cursos especializados. 251 BRITO. Ibidem. p. 100. 252 Cf. Art. 23 da Lei de Execução Penal.

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ressalta Brito253, afirmando que as Regras Mínimas de tratamento de reclusos da ONU preconizam que havendo um número suficiente de reclusos pertencentes a uma mesma religião poderá ser nomeado, ou admitir-se, um representante oficial do culto. Esse papel tem sido muito bem desempenhado por organizações da sociedade civil, como a Pastoral Carcerária, que possui forte atuação no Estado de São Paulo. A última assistência prevista na LEP diz respeito ao egresso, sendo este a pessoa que deixa o estabelecimento penal pelo cumprimento total da pena ou com os benefícios penais a que faça jus, pelo prazo de um ano e o liberado em livramento condicional enquanto durar o período de prova. Tem-se que com a ausência de recursos já consignada, a assistência ao egresso se torna cada vez mais fluídica por parte Estatal, visto que por si só, a pena privativa de liberdade vem se mostrando insuficiente para a reintegração social e tal modalidade de assistência, associada ao trabalho e ao estudo formam os principais elementos que deveriam ser observados com o maior cuidado possível pelos responsáveis pela reintegração. Por isso, José Pastore afirma que,

A maioria dos egressos das prisões enfrenta situações muito aflitivas. Poucos são os que contam com recursos econômicos para suas necessidades imediatas. Muitos não têm onde se abrigar e se alimentar nos primeiros dias de liberdade. Há casos em que falta dinheiro para tomar um ônibus e chegar às eventuais oportunidades de emprego. Estudos baseados em metodologias rigorosas mostram que o não atendimento dessas necessidades imediatas constitui um dos principais desencadeantes da reincidência e da nova prisão.254

O momento da quebra do vínculo Estado-recluso é por demais importante para a reintegração. Este quebra somente logrará êxito se fundamentada na assistência que o egresso e sua família receberam quando ainda intra-muros, por parte do serviço social, ajudando a diminuir a quebra de vínculos pessoais do preso com os familiares, fato bastante comum no cárcere, seja pelo desestímulo à visitação, como p.ex. quando as mulheres, mães, irmãs e companheiras são obrigadas a se agachar nuas sobre espelhos a fim de que se afira se transportam aparelhos celulares ou outros objetos dentro de seus corpos, bem como quando as mesmas servem como moeda de troca de 253 254

BRITO. Ibidem. p. 101 PASTORE, José. Trabalho para ex-infratores. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 26.

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favores sexuais ou mesmo segurança contra outros detentos, normalmente pertencentes a facções criminosas. Este é o papel da assistência ao egresso, aliada à assistência social e ao trabalho como objeto garantidor da dignidade humana. Nesse campo, o trabalho como uma das formas de assistência ao egresso se revela como elemento importantíssimo na reinserção, ajudando a recolocação no mercado de trabalho, possibilitando sustento lícito e servindo como freio à reincidência criminal.

A estratégia de combater a reincidência pela inserção no trabalho tem fundamentos. O trabalho tem-se revelado como um dos fatores mais efetivos para reconstruir a dignidade da pessoa e para sua reintegração na família e na sociedade. Isso vale tanto para o período do cumprimento da pena como para os tempos de liberdade. 255

Nesse passo, o Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle externo do Judiciário iniciou projeto inovador, estimulando a assistência ao egresso através do trabalho pelo Projeto Começar de Novo, através de sua resolução n. 96/2009, no âmbito do Poder Judiciário. Pelo projeto, os Tribunais de Justiça devem celebrar parcerias com entidades públicas e privadas, incluindo os Patronatos, Conselhos da Comunidade, universidades e instituições de ensino fundamental, médio e técnico-profissionalizante, objetivando a contratação de presos, egressos e cumpridores de medidas e penas alternativas. Com isso, empresas e órgãos públicos disponibilizam vagas de trabalho, estágio e contatos com entidades cadastradas nas unidades federais.256 Por esta resolução do Conselho Nacional de Justiça recomendou-se aos Tribunais de Justiça a celebração de termos de cooperação técnica, como o realizado entre o mesmo conselho e o SENAI, visando a qualificação profissional de presos e egressos do sistema prisional.257 No capítulo IV, seção II da Lei de Execução Penal encontra-se a previsão de um rol de direitos258 assegurados aos indivíduos privados da liberdade. Esse rol assume 255

Idem. Ibidem. p. 31. Idem. Ibidem. p. 54. 257 Idem. Ibidem. p. 55. 258 BRASIL. Lei de Execução Penal. Art. 41 - Constituem direitos do preso: I - alimentação suficiente e vestuário; II - atribuição de trabalho e sua remuneração; III - Previdência Social; IV - constituição de pecúlio; V - proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; VI exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; VII - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e 256

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o tom de uma reafirmação de direitos não procurando o legislador o exaurimento taxativo. Essa reafirmação se dá em decorrência do disposto no art. 3º da LEP que por certo afirma que o preso terá restringido apenas os direitos atingidos pela sentença ou pela lei. Afora disso, o preso por se configurar como ser humano é carecedor de todos os demais direitos afeitos a este e para tanto deve o Estado garantir sua integral aplicação, sob pena de responsabilização e violação à dignidade humana. Seria inútil, segundo Mirabete259, a luta pelos efeitos nocivos da prisionalização, sem que se estabelecesse a garantia jurídica dos direitos dos presos, configurando o reconhecimento dos direitos da pessoa presa uma exigência fundamental nos métodos e meios da execução penal. Isso se dá principalmente para que se evitem as incertezas dos textos legislativos e dessa forma tornar mais factível a real observância e respeito pelos órgãos da Administração Penitenciária. Estes direitos e deveres de assistência assegurados no bojo da lei execucional, bem como em sede constitucional, configuram-se como direitos individuais que cada recluso possui ante a atuação do Estado. Normalmente, frente à violação de tais direitos nasce aos detentos a possibilidade de demandar individualmente contra o Estado nos casos de violação. Contudo, tem-se mostrado insuficiente, para não se dizer inexistente a resposta dada pelo Judiciário a continua violação dos direitos dos reclusos pelo Estado, seja não fornecendo condições materiais mínimas, seja violando o próprio corpo do recluso com a violência de seus agentes e ainda o desrespeito à duração razoável do processo pelo Judiciário, levando ao total descrédito o respeito aos direitos fundamentais dos presos. Nesse panorama, a tutela coletiva desses direitos individuais se mostra como opção possível à redução das complexidades, reforçando a atenção dada pelo Judiciário

religiosa; VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; IX - entrevista pessoal e reservada com o advogado; X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; XI chamamento nominal; XII - igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena; XIII - audiência especial com o diretor do estabelecimento; XIV - representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito; XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes. XVI – atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente. 259 MIRABETE. Julio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. rev. e atual. por Renato N. Fabbrini. São Paulo: Atlas, 2007. p. 118.

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à questão carcerária, ensejando uma atuação mais efetiva e garantidora da assistência estatal. Desta forma, pode-se considerar que os reclusos numa penitenciária possuem direitos individuais homogêneos, caracterizados pela individualidade das lesões às quais são expostos, pela unidade fática oriunda da violação perpetrada pelo Estado na inaplicabilidade de seus deveres, configurando a homogeneidade de sua origem e pela possibilidade da determinação de seus titulares lesionados entre os membros de uma unidade prisional. Assim, quando o Estado não garante os padrões assistenciais mínimos, p. ex. inserindo o indivíduo numa cela superlotada, ainda que constatada o excesso populacional ou quando de uma incursão policialesca e agressiva que em nada agrega ao já deteriorado ambiente penitenciário, será possível identificar quais foram os indivíduos expostos a estas lesões tornando-as mensuráveis. Isto faz com que estes direitos não se tornem transindividuais, pois não são pertencentes a vários titulares, mas sim a indivíduos bem especificados possibilitando a demanda individual de cada um lesionado em seus direitos, e com isso, encarando a lesão de forma macro, dando azo à tutela coletiva pela união destes vários direitos individuais.

Ocorre que, os direitos assegurados ao preso, ainda que observados pela Lei de Execução Penal, têm sede constitucional260, dentro do capítulo de direitos e garantias fundamentais possuindo auto-aplicação, não ensejando a edição de normas que tornem esses direitos exercitáveis261. Além disso, descumprimento de direitos e garantias fundamentais enseja a punição pelos responsáveis, nos termos do art. 5º, XLI, da Constituição Federal de 1988. Ou seja, há completa inversão de valores e total desrespeito aos preceitos constitucionais. Não obstante insinuar um modelo de direito penal pouco afeito à idéia minimalista, a Constituição da República projetou efeitos restritivos aos direitos para além da criminalização e da imposição de penas. Ao dispor sobre os direitos políticos, a Constituição de 1988 é novamente maculada pela tendência autoritária. A ação política através da participação nas decisões da vida pública é um dos fatores que caracterizam a cidadania formal. Dado o fato da impossibilidade de reunião na ‘Ágora’, o instrumento de exercício da cidadania nas democracias representativas é o voto popular. No entanto, o art. 15, inc. III, da CR determina a suspensão dos direitos políticos decorrente de condenação criminal transitada em julgado. Salutar indagação é qual a relação possível entre a condenação criminal e a perda, ainda que temporária, dos direitos 260

“Art. 5º. [...] XLVII - não haverá penas: [...] e) cruéis; XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral. Constituição Federal”. 261 “Art. 5º. [...] § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Constituição Federal”.

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políticos, senão excluir o condenado da vida pública, destituindo-lhe formalmente a cidadania e consolidando aquele estigma de apátrida. A edificação, em sede constitucional, da destituição da cidadania do preso capacita diagnosticar o não-reconhecimento dos seus direitos pelo Poder Público. Se a própria Constituição, norma fundante da ordem jurídica, do regime democrático e do modelo republicano, retira o status civitas! do condenado no plano das relações e decisões políticas, inevitável que o Estado-administração e o Estado-jurisdição pulverizem esta máxima, legitimando o desrespeito cotidiano aos direitos fundamentais nas relações intra-muros. O resíduo autoritário da negativa do voto ao preso, aliado às cláusulas de criminalização, leva ao questionamento do imaginário que perfaz a condição de condenado, pois, ao mesmo tempo que a norma positiva fundamental preza a manutenção de sua dignidade, acaba negando sua posição de sujeito político, retirando-lhe instrumento de exercício da cidadania.!262

Invocando a posição de Lassalle263, a Constituição, se aceita essa posição e eterno costume, deixou de ser a soma dos fatores reais de poder para se apenas uma folha de papel (ein Stück Papier) ante ao seu descumprimento rotineiro, sem que haja qualquer manifestação do Judiciário e, pior, do povo, como titular do poder e que cada vez mais tem se escondido exercendo o fatídico papel que Dahrendorf chama de cidadão-total264, ou seja, o cidadão permanece inerte esperando que o seu representante faça tudo o que necessário para sua felicidade, depositando todas suas pretensões e aspirações num totem estigmatizado no papel do político.

3.3 Sistema Penitenciário Nacional

Em 1769, a Carta Régia do Brasil determinou no Rio de Janeiro a construção da Casa de Detenção, a primeira prisão brasileira. Naquela prisão, já naquela época, não havia separação de presos por tipo de crime. Ficavam juntos primários e reincidentes, os que praticaram crimes leves e os criminosos mais perigosos. Somente em 1824, a Constituição determinou que as cadeias tivessem os apenados separados por tipo de crime ou pena e que fossem adaptadas para que os detentos pudessem trabalhar.

262

CARVALHO, Salo. Penas e Garantias. 3 ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 161162. 263 LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição Política. [S. l.]: Global Editora: 1987. p. 35. 264 DAHRENDORF apud BOBBIO. Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 6 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. p. 26.

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A determinação foi cumprida, mas por pouco tempo: no início do século XIX, surgiu um dos mais graves problemas do sistema carcerário atual: a superlotação, quando as cadeias do Rio de Janeiro já tinham presos acima do número de vagas. Em 1890, o Código Penal previa que presos com bom comportamento, após cumprirem parte da pena, poderiam ser transferidos para presídios agrícolas. Transcorridos 122 anos, o país possui apenas 37 dessas unidades destinadas aos presos do regime semiaberto, apesar do crescimento assustador no número de apenados. Em 1935 o Código Penitenciário da República estabeleceu, além do direito do estado punir, o dever de recuperar o detento. Em 11 de Julho de 1984, foi sancionada Lei de Execução Penal, ampla, de excelentes qualidades, considerada um dos melhores instrumentos jurídicos do mundo. Apesar de normas constitucionais transparentes, da excelência da Lei de Execução Penal e após 28 anos de sua vigência e da existência de novos atos normativos, o sistema carcerário nacional se constitui num verdadeiro inferno, por responsabilidade pura e nua da federação brasileira através da ação e omissão dos seus mais diversos agentes. O sistema prisional brasileiro é o quarto do mundo em número de pessoas, ficando atrás apenas dos Estados Unidos (2,2 milhões de presos), China (1,5 milhão de presos) e Rússia (870 mil presos). De acordo com a última contagem da população, recenseada e estimada pelo IBGE em 2011, a população total do Brasil é de 190.732.694 habitantes. Pelo relatório do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) de junho/2011, a população carcerária brasileira é estimada em 513.802265 presos, assim distribuídos: cerca de 464.440 presos nos sistemas penitenciários estaduais, 49.362 presos na carceragem das Polícias Civis. Os presos mantidos pelos sistemas penitenciários estaduais assim se subdividem: 158.389 são presos provisórios; 188.652 presos sob o regime fechado; 67.520 presos sob o regime semiaberto; 16.724 presos sob o regime aberto; 3.112

265

BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Disponível em: Acesso em: 05 jan. 2012.

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presos em medida de segurança sob a forma de internação; e 534 presos em medida de segurança sob a forma de tratamento ambulatorial. Em relação à capacidade de ocupação, verifica-se que o número de vagas do sistema penitenciário brasileiro totaliza 289.481 vagas, assim distribuídas: 16.724 vagas nos estabelecimentos policiais e 272.757 vagas no sistema prisional. O número de estabelecimentos penais no país é de 1.639 unidades prisionais, assim caracterizadas: 439 penitenciárias ou similares; 66 colônias agrícolas, industriais ou similares; 52 casas do albergado ou similares; 14 centros de observações ou similares; 1.040 cadeias públicas ou similares; 28 hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico; e 14 patronatos. Esses números configuram o sistema penitenciário brasileiro como o maior da América Latina e que possui conjunto estrutural exorbitante e que exige recursos suficientes para sua manutenção, bem como políticas públicas adequadas a uma gestão satisfatória. Ao falar em sistema penitenciário, deve-se ter em mente que este se constitui de vários microssistemas haja vista que o direito penitenciário é de legitimação concorrente entre a União, Estados e Distrito Federal, segundo art. 24, I da Constituição Federal, ficando a competência para o estabelecimentos de normas gerais afeitos à União e aos Estados reservada a competência para legislar sobre normas específicas. Isso faz com que cada unidade federada possua suas próprias regras atinentes ao sistema, tendo como supedâneo a Lei de Execução Penal, ocasionando estrutura organizacional distinta, polícias independentes e principalmente, políticas públicas diferenciadas. Nesse compartilhamento de funções e responsabilidades entre Poderes da República e dos Estados, nem sempre há harmonia no enfrentamento do combate à criminalidade e nas soluções dos graves problemas carcerários, havendo um descompasso entre o legislador que produz a lei, o julgador que condena e o gestor que cuida do preso. Com relação ao financiamento do sistema carcerário, os problemas, as lacunas e as deficiências também são complexos. A condução de cada sistema estadual dá-se, em geral, pelo chefe do executivo local através das secretarias de segurança pública, defesa social ou assuntos penitenciários, como no Estado de São Paulo. De um lado, isso facilita a gestão do

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sistema, considerando seu tamanho e estrutura, porém, dificulta quando o assunto é a homogeneidade dos ideais de reintegração e as políticas utilizadas para alcançar esse mister. A execução penal constitui-se em distintos órgãos como consta no art. 61 da Lei de Execução Penal: Art. 61. São órgãos da execução penal: I - o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária; II - o Juízo da Execução; III - o Ministério Público; IV - o Conselho Penitenciário; V - os Departamentos Penitenciários; VI - o Patronato; VII - o Conselho da Comunidade. VIII - a Defensoria Pública. (grifo nosso).

Releva-se que uma análise pormenorizada de cada unidade federativa e de sua respectiva secretaria seria importante para totalizar a problemática do sistema. Dada essa impossibilidade fática, destinemos os esforços nos dois principais órgãos atinentes ao objeto do trabalho que são aqueles onde se manejam as políticas penitenciárias nacionais. Outrossim, a título de reforço da opção adotada, ainda que se analise tão somente os dois órgão acima destacados, segundo o relatório final da CPI do sistema carcerário266, observa-se que os problemas encontrados e relatados pelos detentos são os mesmos em todo o país, o que nos revela o caráter nacional do problema enfrentado. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP é órgão subordinado ao Ministério da Justiça responsável pela elaboração da política criminal e penitenciária, dispondo as diretrizes a serem seguidas pelos Estados e pela União. Esse papel de estabelecimento e definição da política criminal e penitenciária torna-se complexo quando analisados os diferentes interesses e necessidades dos sistemas penitenciários dos diferentes Estados da federação. Desse modo, o art. 64 da LEP estipula as funções afeitas ao CNPCP:

I - propor diretrizes da política criminal quanto à prevenção do delito, administração da Justiça Criminal e execução das penas e das medidas de segurança; 266

BRASIL. Câmara dos Deputados. CPI do Sistema Carcerário. Disponível em: http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/2701/cpi_sistema_carcerario.pdf?sequence=1> Acesso em: 07 jan. 2012.

<

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II - contribuir na elaboração de planos nacionais de desenvolvimento, sugerindo as metas e prioridades da política criminal e penitenciária; III - promover a avaliação periódica do sistema criminal para a sua adequação às necessidades do País; IV - estimular e promover a pesquisa criminológica; V - elaborar programa nacional penitenciário de formação e aperfeiçoamento do servidor; VI - estabelecer regras sobre a arquitetura e construção de estabelecimentos penais e casas de albergados; VII - estabelecer os critérios para a elaboração da estatística criminal; VIII - inspecionar e fiscalizar os estabelecimentos penais, bem assim informar-se, mediante relatórios do Conselho Penitenciário, requisições, visitas ou outros meios, acerca do desenvolvimento da execução penal nos Estados, Territórios e Distrito Federal, propondo às autoridades dela incumbida as medidas necessárias ao seu aprimoramento; IX - representar ao Juiz da execução ou à autoridade administrativa para instauração de sindicância ou procedimento administrativo, em caso de violação das normas referentes à execução penal; X - representar à autoridade competente para a interdição, no todo ou em parte, de estabelecimento penal.

É de se observar que a abrangência do CNPCP não se restringe ao sistema penitenciário, já que ainda objetiva formular propostas de prevenção ao delito. Sua postura tem sido bastante elogiável, já que adota posicionamento baseado no princípio da humanização da pena267 com vistas à reintegração social do condenado. Isso se dá, principalmente, pela sua composição, sendo esta de 13 membros escolhidos pelo Ministério da Justiça dentre professores e profissionais de direito penal, processual penal, penitenciário, criminólogos e representantes da comunidade. Essas atribuições fazem com que o CNPCP possua incumbência de apontar as principais necessidades do sistema penitenciário a fim de que as políticas públicas elaboradas pelos gestores dos sistemas, especialmente pelo Executivo, visem uma melhoria da gestão dos recursos destinados pela Lei Orçamentária Anual (LOA) e pelos convênios de repasse da União aos Estados. O Departamento Penitenciário Nacional - DEPEN é o órgão executivo que acompanha e controla a aplicação da Lei de Execução Penal e das diretrizes da Política Penitenciária Nacional, emanadas, principalmente, pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP.

267

Cf. Res. n. 16 do CNPCP, de Dezembro de 2003, Art. 2: I – respeito à vida e à dignidade da pessoa humana; V – absoluto respeito à legalidade e aos direitos humanos na atuação do aparato repressivo do Estado; VI – humanização do sistema de justiça criminal. Disponível em: < http://portal.mj.gov.br/depen/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?DocumentID= {F51019E6-EE1F-45CF-B51E-96992B4B2816}&ServiceInstUID={4AB01622-7C49-420B-9F7615A4137F1CCD} > Acesso em: 07 jan. 2012.

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As principais atribuições do DEPEN são as expressas no artigo 72 da Lei de Execução Penal.

Art. 72. São atribuições do Departamento Penitenciário Nacional: I - acompanhar a fiel aplicação das normas de execução penal em todo o Território Nacional; II - inspecionar e fiscalizar periodicamente os estabelecimentos e serviços penais; III - assistir tecnicamente as Unidades Federativas na implementação dos princípios e regras estabelecidos nesta Lei; IV - colaborar com as Unidades Federativas mediante convênios, na implantação de estabelecimentos e serviços penais; V - colaborar com as Unidades Federativas para a realização de cursos de formação de pessoal penitenciário e de ensino profissionalizante do condenado e do internado. VI – estabelecer, mediante convênios com as unidades federativas, o cadastro nacional das vagas existentes em estabelecimentos locais destinadas ao cumprimento de penas privativas de liberdade aplicadas pela justiça de outra unidade federativa, em especial para presos sujeitos a regime disciplinar. Parágrafo único. Incumbem também ao Departamento a coordenação e supervisão dos estabelecimentos penais e de internamento federais.

Além disso, o Departamento é o gestor do Fundo Penitenciário Nacional – FUNPEN, criado pela Lei Complementar n° 79, de 07 de janeiro de 1994 e regulamentado pelo Decreto n° 1.093, de 23 de março de 1994. O Departamento Penitenciário Nacional tem sob sua responsabilidade a execução do Programa 0661 – Aprimoramento da Execução Penal, previsto no Plano Plurianual 2007/2011. Este Programa é composto por ações que buscam a geração de vagas; o aprimoramento tecnológico dos estabelecimentos penais; o tratamento penitenciário adequado e digno ao apenado, internado e egresso do sistema com a sua posterior reintegração à sociedade. 268 O Programa, em 2010, foi composto pelas seguintes ações orçamentárias: • 8916 – Aparelhamento e Reaparelhamento de Estabelecimentos Penais; • 8914 – Apoio à Construção e Ampliação de Estabelecimentos Penais Estaduais; • 8912 – Apoio a Implantação e ao Reaparelhamento de Escolas Penitenciárias; • 8913 – Apoio à Implantação e ao Reaparelhamento de Ouvidorias; • 8915 – Apoio à Reforma de Estabelecimentos Penais Estaduais; • 2272 – Gestão e Administração do Programa; 268

BRASIL. Ministério da Justiça. Fundo Penitenciário Nacional em números – 2009 – 2010. Disponível em: Acesso em: 23 dez. 2011.

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• 2730 - Apoio a Serviços de Acompanhamento da Execução de Penas e Medidas Alternativas; • 2526 - Capacitação em Serviços Penais; • 2720 – Ações de Caráter Sigiloso na Área de Segurança Pública; • 116S – Adequação Física de Penitenciárias Federais; • 10M1 – Construção da Quinta Penitenciária Federal; • 1A18 - Construção da Escola Penitenciária Nacional; • 10D3 – Implantação do Sistema de Inteligência Penitenciária Federal; • 3908 - Integração dos Sistemas de Informações Penitenciárias em Base Nacional; • 8130 – Pesquisa e Produção de Dados sobre a Execução Penal; • 2314 - Reintegração Social do Preso, Internado e Egresso; • 2316 – Serviço Penitenciário Federal.

O crescimento vertiginoso da população prisional e do déficit de vagas, em confronto com o histórico de esforços do Poder Público para a geração de novas delas, é um dado revelador de que esse não pode ser o único componente fundamental das políticas penitenciárias, senão apenas mais um, dentro de um mosaico bem mais amplo e diferenciado.

A prática da política penitenciária, ou seja, fazer vingar as diretrizes oriundas do CNPCP, tem por finalidade instalar um sistema penitenciário que seja eficaz. Por conta disso, o DEPEN almeja transformar propostas em ações. Entretanto, para que isso ocorra necessita buscar convênios com unidades federativas. Salienta-se que a LEP preceitua a constituição de departamentos penitenciários locais. Todavia muitas unidades federativas não têm estes departamentos instituídos. Por este motivo, o DEPEN esbarra em diversas dificuldades estruturais, as quais são decorrentes da multiplicidade de sistemas penitenciários. Em virtude disso, o próprio DEPEN vem estimulando a unificação da política penitenciária em termos de procedimento, ação e informação. 269

Existem dados que revelam, por exemplo, que elevada parcela da população prisional é composta por presos reincidentes, o que aponta, dentre outras coisas, para o papel deficitário que vem sendo desempenhado nos sistemas penitenciários locais. Daí a importância do Programa de Aprimoramento da Execução Penal, que pretende somar esforços aos entes federados no sentido de implementar boas políticas de reintegração social e apoio ao egresso, bem como uma boa política de qualificação dos recursos humanos atuantes no sistema.

269

ROCHA. Ibidem. p. 63.

121

3.3.1 Fundo Penitenciário Nacional e a execução orçamentária e de recursos do sistema penitenciário

O Fundo Penitenciário Nacional – FUNPEN foi criado pela Lei Complementar nº 79 de 1994 e regulamentado pelo Decreto nº 1093 de 1994, sendo idealizado pelo então Ministro da Justiça e posteriormente Ministro do Supremo Tribunal Federal Maurício Corrêa. Note-se que os problemas vividos pelo sistema penitenciário (superlotação, rebeliões, reincidência, corrupção de agentes, instalações inumanas, trafico de drogas, atuação de organizações criminosas, apenas para citar alguns) advêm das dificuldades que os governos encontram em arcar com a necessidade constante de recursos e que normalmente sobressaem em muito seu limite orçamentário. Os recursos destinados ao Fundo têm por finalidade a aplicação em construção,

reforma

e

ampliação

de

estabelecimentos

penais;

formação,

aperfeiçoamento e especialização do serviço penitenciário; aquisição de material permanente, equipamentos e veículos especializados imprescindíveis ao funcionamento dos estabelecimentos penais; formação educacional e cultural do preso e do internado; programas de assistência jurídica aos presos e internados carentes; manutenção dos serviços dos estabelecimentos penais federais e demais ações que visam o aprimoramento do sistema penitenciário em âmbito nacional. Ademais, seus recursos também custeiam seu próprio funcionamento.270 Em razão dos altos custos com a manutenção do sistema penitenciário, as Unidades da Federação possuem orçamento escasso para arcar integralmente com a conservação e aprimoramento de seus sistemas prisionais, sendo, portanto, compelidas a fazer uso dos recursos do Fundo quando o assunto é financiamento de vagas, equipamentos de segurança e assistência ao preso e ao egresso, principalmente. Os investimentos alocados junto ao FUNPEN, realizados em favor dos estados brasileiros, a partir do ano 2000, situaram-se sistematicamente em níveis medianos de R$ 200.000.000,00. Não há, tanto em relação à União, quanto em decorrência da iniciativa dos governos estaduais, um comprometimento maior em relação às demais despesas orçamentárias em favor dos estabelecimentos penais. A 270

BRASIL. Ministério da Justiça. Fundo Penitenciário Nacional em números – 2009 – 2010. p. 6.

122

considerar o nível de reincidência dos detentos em relação ao crime, estimado entre 70% ou de 80%, é crível supor que a atenção do Poder Público em favor das políticas públicas voltadas à segurança pública, não vêm correspondendo ao mínimo necessário para uma administração regular e cumpridora dos mandamentos constitucionais.271 Da mesma forma, vê-se que, especificamente, ao longo dos anos, os recursos têm se mostrado insuficientes ao cumprimento satisfatório da missão institucional do Departamento Penitenciário Nacional em atendimento ao prescrito pela Lei de Execução Penal. Enquanto a população prisional tem crescido a uma variação, em valores absolutos, de 42.000 presos/ano, a capacidade de financiamento anual de vagas, viabilizada por meio de convênios celebrados com os estados, não superou a casa dos 5.000 presos/ano, conforme dados do DEPEN. A considerar o déficit carcerário existente, estimado em valores superiores a 270.000 vagas, dependendo do período, abrangência e método empregados, e os mais de 550.000 mandados judiciais ainda por cumprir, conforme é noticiado, pode-se avaliar a real dimensão do déficit carcerário.272 O resultado dessa ausência financeira por parte estatal é completa inobservância dos preceitos que ao final, poderiam criar condições adequadas à reintegração social do preso. É cediço que nem todos, e talvez a maioria, não deseje ser reintegrado ou tenha a ideia de que já é integrado e conhecedor do pacto social e por isso mesmo optou livremente por ingressar no universo criminoso. Isso não dá direito ao Estado brasileiro desobedecer a Constituição no que tange ao respeito dos direitos humanos fundamentais. A observância de tais direitos é fundamental para que as condições reintegradoras sejam criadas, haja vista que se o Estado continuar com estabelecimentos penais superlotados, violência por parte dos agentes execucionais, falta de separação de presos reincidentes e primários, inexistência de planos de reintegração justificados por medidas multidisciplinares, ausência de exame criminológico, falta de programas de assistência ao egresso e a sua família deficitários, a perspectiva reintegradora jamais passará da esfera do mítico e utópico para a realidade prática. A base legal da receita do FUNPEN localiza-se na Lei Complementar nº 79: Art. 2º Constituirão recursos do FUNPEN: 271 272

BRASIL. Câmara dos Deputados. CPI do Sistema Carcerário. p. 330. Idem. Ibidem. p. 331.

123

I - dotações orçamentárias da União; II - doações, contribuições em dinheiro, valores, bens móveis e imóveis, que venha a receber de organismos ou entidades nacionais, internacionais ou estrangeiras, bem como de pessoas físicas e jurídicas, nacionais ou estrangeiras; III - recursos provenientes de convênios, contratos ou acordos firmados com entidades públicas ou privadas, nacionais, internacionais ou estrangeiras; IV - recursos confiscados ou provenientes da alienação dos bens perdidos em favor da União Federal, nos termos da legislação penal ou processual penal, excluindo-se aqueles já destinados ao Fundo de que trata a Lei nº 7.560, de 19 de dezembro de 1986; V - multas decorrentes de sentenças penais condenatórias com trânsito em julgado; VI - fianças quebradas ou perdidas, em conformidade com o disposto na lei processual penal; VII - cinquenta por cento do montante total das custas judiciais recolhidas em favor da União Federal, relativas aos seus serviços forenses; VIII - três por cento do montante arrecadado dos concursos de prognósticos, sorteios e loterias, no âmbito do Governo Federal; IX - rendimentos de qualquer natureza, auferidos como remuneração, decorrentes de aplicação do patrimônio do FUNPEN; X - outros recursos que lhe forem destinados por lei.

Para que se aponte com clareza os problemas verificados na gestão orçamentária, aos quais atribuímos como causa de grande parte dos problemas já expostos, é preciso que se conceituem algum elementos importantes da desta específica categoria. Por vezes, a conceituação de gestão ou execução orçamentária e financeira é causadora de interpretações equivocadas. Ambas ocorrem concomitantemente e estão atreladas. De uma forma genérica, não se pode gastar recursos financeiros caso não haja a disponibilidade orçamentária correspondente. De outro turno, pode-se ter disponibilidade orçamentária e não possuir financeiro para incorrer na despesa pretendida. Assim, a realização da despesa depende da existência de orçamento e de financeiro. É através da previsão orçamentária de recursos que se realiza a programação de gastos públicos, de arrecadação de receitas e definição das estratégias econômicosociais do Estado para que as escolhas de prioridades ganhem maior relevância A realização das despesas públicas se dá por fases sendo a primeira a legislativa onde a despesa deve ser autorizada por lei, prevista preliminarmente no Projeto da Lei Orçamentária Anual e posteriormente concretizada na Lei Orçamentária Anual, sob pena de restar configurado o crime previsto no 359-D do Código Penal (ordenação de despesa não autorizada).

124

Posteriormente, a segunda fase é a administrativa, composta pela licitação, empenho, liquidação e ordem de pagamento. A licitação é necessária já que para a efetivação de uma despesa é primordial o prévio procedimento licitatório, conforme previsão constitucional. Já o empenho se configura como ato administrativo que antecede a despesa e confirma as obrigações da administração em relação ao contratado.273 É através do ato de empenho que se faz a dotação orçamentária do montante necessário ao custeio de determinado setor. A liquidação é o procedimento pelo qual se verifica o direito adquirido pelo credor, que tem por base os títulos e documentos comprobatórios do implemento de sua obrigação e a ordem de pagamento o ato de efetivo pagamento pelo contratado. Pode-se definir execução orçamentária como sendo a utilização dos créditos consignados na Lei Orçamentária Anual. Já a execução financeira é a utilização de recursos financeiros para atender as ações atribuídas a um determinado Órgão ou Fundo pelo Orçamento. Em outras palavras, o orçamento representa o direito de gastar e o financeiro representa o meio de exercer tal direito.274 A tabela seguinte275 demonstra a utilização dos créditos orçamentários e dos recursos financeiros em milhões de reais do FUNPEN entre 1995 e 2010.

Período 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

273

Orçamento Autorizado 78.365.041 129.128.010 172.035.697 295.107.209 109.982.582 204.728.125 288.295.914 308.757.559 216.032.429 166.157.349 224.098.871 364.252.144 430.939.081 574.766.381 218.991.984 252.848.591

Orçamento Utilizado 38.162.047 43.984.935 83.586.047 122.201.952 27.094.231 144.995.971 265.241.208 132.924.494 121.436.104 146.236.958 159.074.050 303.490.675 201.107.529 226.682.622 101.278.954 90.439.164

MACHADO JÚNIOR, José Teixeira; REIS, Heraldo da Costa. A lei 4.320 comentada. 31. ed. Rio de Janeiro: IBAM, 2003. p. 144. 274 BRASIL. Ministério da Justiça. Fundo Penitenciário Nacional em números – 2009 – 2010. p. 15 275 BRASIL. Ministério da Justiça. Fundo Penitenciário Nacional em números – 2009 – 2010. p. 16.

125

Nesta tabela, a coluna orçamento autorizado representa a disponibilidade orçamentária dada pela Lei Orçamentária Anual para que o FUNPEN possa realizar gastos atendendo aos reclames de sua lei criadora. O orçamento autorizado pela LOA de 2012 ficou em de R$ 435.267.845,00. A coluna do orçamento utilizado representa a parcela da dotação orçamentária que foi liquidada dentro do exercício financeiro. É de se observar que em todos os exercícios (salvo o de 2001), a maior parte da dotação orçamentária não foi objeto de utilização, possuindo como razão para tanto dois fatores a saber, o contingenciamento de orçamento e a diferença entre os limites orçamentários e financeiros. No primeiro caso, todos os anos são realizados por meio do Decreto de Contingenciamento bloqueios no orçamento a fim de limitar a execução orçamentária de forma que não se comprometa a obtenção de superávit primário. Esse decreto dispõe sobre a programação orçamentária e financeira e estabelece o cronograma mensal de desembolso do Poder Executivo.

Nas recentes administrações do Governo Federal, a política de superávit primário tornou-se contumaz. Trata-se de uma espécie de poupança do governo, em que se busca reduzir a proporção da dívida pública em relação ao PIB (Produto Interno Bruto). Essa economia de receitas tem sido usada para pagar os juros desses débitos de modo a impedir seu maior crescimento e sinalizar ao mercado que haverá recursos suficientes para honrá-los. [...] A maioria dos recursos têm sito destinada ao pagamento dos juros escorchantes de uma questionável dívida pública, impossibilitando a realização de investimentos promotores de crescimento econômico ou o desenvolvimento das políticas sociais. As consequências são tão graves para toda a sociedade, comprometendo todos os serviços essenciais de saúde, educação, segurança, moradia, saneamento, reforma agrária, infra-estrutura e demais serviços públicos.276

O segundo caso ocorre quando o limite financeiro é bem inferior ao limite orçamentário. Isso ocorre quando existe um descompasso entre o orçamentário e financeiro, ou seja, quando os recursos financeiros suficientes com os créditos orçamentários consignados na LOA.277 Devido a isto, os pagamentos devidos são feitos no exercício subsequente ao da possibilidade de utilização do crédito, constituindo-se os chamados Restos a Pagar.278 Os recursos financeiros auferidos no exercício são 276

ROCHA. Ibidem. p. 126-127. BRASIL. Câmara dos Deputados. CPI do Sistema Carcerário. p. 341. 278 BRASIL. Lei n. 4.320/64. Art. 36. Consideram-se Restos a Pagar as despesas empenhadas mas não pagas até o dia 31 de dezembro distinguindo-se as processadas das não processadas. 277

126

empregados para honrar tanto os compromissos assumidos no corrente como aqueles assumidos em anos anteriores. Assim, um valor elevado de Restos a Pagar tende a provocar um patamar elevado de Restos a Pagar também para o exercício seguinte, e assim sucessivamente.279

A utilização de todo o limite orçamentário geraria um volume elevado de inscrição em Restos a Pagar, o que comprometeria a execução orçamentaria do exercício seguinte. Nesse caso, o gestor pode optar pela utilização parcial do limite orçamentário que, em situações criticas, pode se situar em um patamar muito inferior ao da dotação orçamentaria (para que não haja duvida entre os conceitos, dotação orçamentaria e o valor constante da Lei Orçamentaria Anual, e limite orçamentário e o valor determinado pelo Decreto de Programação Financeira, o chamado Decreto de Contingenciamento).280

Dessa forma, o contingenciamento realizado pelo Executivo e no caso específico da execução penal pelo Ministério da Justiça e a adoção do estratagema dos restos a pagar, vinculam a receita do FUNPEN de tal forma que torna-se impossível pensar num processo de reinserção social adequado e suficiente, digno de respeito aos direitos fundamentais.

Em verdade, para que o orçamento seja viável e atinja aos objetivos de uma nação, é necessário que os governantes planejem a política governamental detectando e elegendo as prioridades da sociedade, dentro das reais possibilidades financeiras do Estado, plano esse que é referendado pela mesma sociedade no momento em que o Parlamento aprova o orçamento, que outra coisa não deve ser senão o espelho das atividades que o governo deseja implementar.281

As mazelas do cumprimento da pena privativa de liberdade no Brasil não são exclusivamente afeitas a ausência financeira, mas é de se destacar que grande parte do problema deve-se a ausência de recursos capazes de efetivamente tornar aplicáveis os direitos previstos em sede da Lei de Execução Penal, bem como na Constituição e em tratados internacionais como as regras mínimas de tratamento de reclusos da Organização das Nações Unidas.

279

BRASIL. Ministério da Justiça. Fundo Penitenciário Nacional em números – 2009 – 2010. p 17. BRASIL. Câmara dos Deputados. CPI do Sistema Carcerário. p. 342. 281 LÉPORE. Ibidem. p. 95. 280

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CAPÍTULO 4 EXECUÇÃO PENAL E POLÍTICAS PÚBLICAS: EFETIVIDADE DOS DIREITOS DOS PRESOS 4.1 Judicialização282 das políticas públicas e efetivação dos direitos coletivos dos presos

Compreende-se políticas públicas como atos coordenados pelo Estado na consecução de fins objetivados pela sociedade, utilizando os veículos normativos do direito como requisito de observância e obrigatoriedade em seu cumprimento. Para Maria Paula Dallari Bucci,

Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados – processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial – visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. 283 (grifos nossos)

Dessa forma, se política pública figura-se como programas governamentais e a racionalização dos processos envolvidos em sua definição, busca-se com ela a coordenação da atuação do Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como contando com a participação popular para que os objetivos vislumbrados sejam efetivamente alcançados. Para tanto, a utilização do direito como critério de exigibilidade da atuação estatal na formação das políticas públicas apresenta a lei como veículo de exteriorização dessa plêiade de ações políticas no objetivo último de tornar socialmente efetivos os direitos fundamentais.

282

No sentido constitucional, a judicialização refere-se ao novo estatuto dos direitos fundamentais e à superação do modelo da separação dos poderes do Estado, que levaria à ampliação dos poderes de intervenção dos tribunais na política, significando a expansão da jurisdição das Cortes ou dos juízes ao âmbito dos políticos e administradores. "[...] é uma resposta do Supremo a provocações formais da sociedade a partir de mecanismos criados "pela Constituição para neutralizar o caráter lesivo das omissões do Congresso ou do Executivo. Nesses casos, não há interferência indevida do Supremo: oTribunal está apenas cumprindo sua função". (MENDES, Gilmar Ferreira. Anuário da Justiça de 2010. Consultor Jurídico, 2010. p. 77. 283 BUCCI, Maria Paula Dallari. In BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 39.

128

As atividades legislativa e jurisdicional envolvem, por natural, a aplicação da Constituição e o cumprimento de suas normas. O legislador cuida de disciplinar os temas mais variados de acordo com os princípios constitucionais. Ao magistrado, por seu turno, cabe aplicar a Constituição, direta ou indiretamente, já que a incidência de qualquer norma jurídica será precedida do exame de sua própria constitucionalidade e deve se dar da maneira que melhor realize os fins constitucionais. [...] Nesse contexto, compete à Administração Pública efetivar os comandos gerais contidos na ordem jurídica e, em particular, garantir e promover os direitos fundamentais em caráter geral. Para isso, será necessário implementar ações e programas dos mais diferentes tipos e garantir a prestação de determinados serviços.284

Isso ajuda na confirmação dos objetivos assumidos pelo Estado como garantidor de direitos de seus integrantes, fundando-se todas as suas ações na garantia de proteção a esses direitos, tomando a forma de “organização dada pela sociedade política nacional para que os direitos sejam promovidos e protegidos”.285 O exercício de controle feito pelo Judiciário nas políticas públicas tem se tornado um dos assuntos mais debatidos no meio acadêmico-constitucional. Posições das mais variadas existem, ora pela impossibilidade deste controle, ora pela possibilidade, tendo o último demonstrado ser mais crescente até por alguns posicionamentos de tribunais superiores. Desta feita, impossível apurar todos os argumentos utilizados. O que se fará nesta seção é abordar o posicionamento que entendemos como o mais acertado, justificando os pontos relevantes, mas sem desprezar o que de outra forma discordam.286 A primeira vista, falar da possibilidade de controle de políticas públicas, em regra realizadas sob o manto da discricionariedade administrativa parece impróprio, já que realizados inicialmente no âmbito do Poder Executivo. Entretanto, para que se alcance uma conclusão preliminar, é importante observar qual o momento de atuação 284

BARCELLOS. Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. Revista de Direito do Estado. nº 3. 2006. 17-54, 2006. p. 23. 285 AITH, Fernando. Políticas públicas de Estado e de governo: instrumentos de consolidação do Estado Democrático de Direito e de promoção e proteção dos direitos humanos. In BUCCI. Ibidem. p. 218. 286 J. J. Gomes Canotilho informa que a política é feita por cidadãos que questionam, criticam e apontam problemas e que os juízes nunca fizeram revoluções. Eles aprofundaram aplicações de princípios, contribuíram para a estabilidade do Estado de Direito, da ordem democrática, mas nunca promoveram revoluções. Portanto, pedir ao Judiciário que exerça alguma função de ordem econômica, cultural, social, e assim por diante, é pedir ao órgão que exerça uma função para a qual não está funcionalmente adequado. Assim, as políticas públicas não poderiam ser decididas pelos tribunais, mas pelos órgãos socialmente conformadores da Constituição. (Disponível em: Acesso em: 02.04.2012.

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deste controle realizado pelo Judiciário, se feito na fase administrativa da formação da política pública ou se feito em sua execução. Na formulação de políticas públicas o controle é realizado observando-se a compatibilidade dessas políticas com os princípios (assumindo claramente a função de regras, nesse caso) constitucionais e com as regras, assentados sob o manto da dignidade da pessoa humana. Nos casos do direito à educação escolar, previsto no art. 227, §1º, I287, e direito à saúde, previsto no art. 198, §2º288, ambos da Constituição Federal, existe uma vinculação obrigatória de receitas, dada por lei e determinada pela própria Constituição para que se executem as políticas públicas relacionadas. Nestes dois casos, o administrador encontra-se vinculado no momento da formação da política, não cabendo se falar em discricionariedade administrativa, já que possui imposição legal de aplicação mínima de orçamento em cada uma dessas áreas e somente depois da aplicação mínima é que o administrador possuirá discricionariedade para optar por aplicar ou não mais recursos, salvaguardando ainda mais esses direitos.289 Em caso de descumprimento dessa obrigação de aplicação de percentual mínimo previsto em lei, é tranquila a possibilidade de controle realizado pelo Poder Judiciário, já que existe uma violação primária da constituição e da legislação infraconstitucional, utilizando-se os entes legitimados do controle concentrado de constitucionalidade, bem como do controle difuso e ainda da ação de descumprimento de preceito fundamental. Ainda quanto ao momento da formação de políticas públicas, é importante consignar a possibilidade de controle nas políticas não previstas expressamente no texto constitucional, bem como na legislação correlacionada. Aqui, o administrador justifica sua opção adotando os critérios da discricionariedade administrativa, relacionando-se 287

§ 1º - O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais e obedecendo os seguintes preceitos: I aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil; 288 § 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: I – no caso da União, na forma definida nos termos da lei complementar prevista no § 3º; II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º. 289 GUIMARÃES. Renata Catacci. Controle judicial das políticas públicas e a atuação do Ministério Público na efetivação dos direitos fundamentais. Conteúdo Jurídico. Disponível em: . Acesso em: 22 fev. 2012.

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como mérito do ato administrativo que destina determinada receita prevista no orçamento, materializando a política pública especificada. Nesses outros casos, assumem importância na discussão acadêmica e prática os direitos sociais ou de segunda dimensão, relacionados a normas programáticas. Contudo, nosso foco de atuação reside nos direitos de primeira dimensão relativos à liberdade e condições dignas de vida da pessoa encarcerada, possuindo, conforme dito, aplicabilidade imediata, não podendo olvidar-se que possuem maior efeito vinculante do que àquelas, já que tratam do direito à vida ou integridade física.290 Nessa esteira, na formação de políticas públicas não especificadas na Constituição mas que devem ser implementadas objetivando tornar efetivo os direitos fundamentais, a justificativa do administrador para a aplicação de receita em determinada área, quando da execução ou realização das políticas públicas estaria na malfadada discricionariedade administrativa. O administrador também se utiliza da discricionariedade quando o assunto se trata da execução de políticas públicas, notadamente àquelas não determinadas especificamente pela Constituição e por legislação infraconstitucional. Nesse passo, utiliza-se do campo político e da preponderância de certos interesses, normalmente de caráter eleitoreiro, para destinar maior aplicação de receitas em áreas específicas, em detrimento de muitas outras também carentes de investimento estatal, incluído especialmente nesta parcela deixada de lado, a execução penal. Como visto, quando a tredestinação orçamentária se der em razão de competência vinculada do administrador, caberá sem maiores delongas o controle realizado pelo Judiciário. Porém, a vendeta se instala quando o assunto é a possibilidade de controle da discricionariedade administrativa.

4.1.1 Discricionariedade administrativa e controle jurisdicional

De início é importante consignar a inafastável possibilidade de submeter uma política pública ao controle jurisdicional, decorrente do princípio da inafastabilidade da jurisdição, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal. 290

SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais. Uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. p. 372.

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A materialização dos direitos fundamentais previstos no bojo da execução penal necessita como todos os outros de financeiro para que sejam atendidos. Isso faz com que o administrador atenda determinados interesses públicos quando da formação da política pública ou de sua execução. Essa opção de atendimento ao interesse fica configurada no rol discricionário do administrador, através do ato administrativo, podendo este optar por investir em determinado setor. A base desse paradigma reside ainda na tripartição de poderes proposta por Montesquieu. Hoje, contudo, ela não deve ser levada ao extremo a pensar que o Executivo é livre para optar pelo que entender mais relevante e o Judiciário caracterizar-se apenas como a boca da lei. “Frise-se, porém, que a preocupação inicial de Montesquieu era, antes, impedir que a mesma pessoa ou o mesmo grupo ocupasse mais de um poder, e não, propriamente, a pretensão contemporânea de que uma separação entre as diversas funções estatais”.291 A separação absoluta dos poderes ou funções estatais vem sendo relativizada pelos teóricos, incluindo nessa discussão como forma de amenizar a separação o sistema de check and balances292, o qual não estabelece funções puras e típicas a cada um dos poderes estatais mas confere, também, funções atípicas, de modo que um controlasse os outros já que estes são órgãos representativos da sociedade possibilitando um controle sobre os excessos que cada um possa vir a cometer.

Por óbvio, o modelo clássico de separação de poderes, na esteira das propostas originárias de Montesquieu e Madison, alicerçou-se em um paradigma liberal do direito, pelo qual ao judiciário caberia apenas revelar o direito. Com a proliferação de direitos fundamentais nas modernas Constituições e a assunção de que eles são princípios que podem colidir em casos específicos, sendo uma exigência social a máxima aplicação de cada um dos direitos fundamentais, uma nova concepção de separação de poderes é necessária. Não mais se entende que direito e política são campos totalmente separados e cuja conexão deve ser reprimida para o bom funcionamento do Estado.293

Quando o administrador não cumpre as determinações da lei orçamentária, por meio de ato administrativo, não aplicando os recursos onde previstos, viola a característica da finalidade, elemento vinculado do ato, o qual possui, sempre, como 291

DE PAULA, Daniel Giotti. Ainda existe separação de poderes? A invasão da política pelo Direito no contexto do ativismo judicial e da judicialização da política. In FELLET, André Luiz Fernandes et al. As novas faces do ativismo judicial. Salvador: Jus Podivm. 2011. p. 275. 292 Idem. Ibidem. p. 275. 293 Idem. Ibidem. p. 273.

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finalidade geral a satisfação do interesse público e como finalidade específica, o resultado previsto pela lei. Não é demais lembrar, que o orçamento é lei e como tal possui o requisito de exigibilidade e vinculatividade, em que pese construção doutrinária afirmar o caráter autorizativo do orçamento.294 Este ato administrativo de aplicação de receita em setor diverso ao proscrito pela lei orçamentária estará eivado de desvio de finalidade, violando a legalidade, sujeito ao controle jurisdicional tendo como consequência a retirada do ordenamento. 295

É pois, precisamente em casos que comportam discrição administrativa que o socorro do Judiciário ganha foros de remédio mais valioso, mais ambicionado e mais necessário para os jurisdicionados, já que a pronúncia representa a garantia última para a contenção do administrador dentro dos 296 limites da liberdade efetivamente conferidos pelo sistema normativo

Quanto ao momento da formação da política pública, é que residem os maiores problemas do controle jurisdicional, pois em regra, esta fase é dominada pela discricionariedade ou mérito do ato administrativo, aonde não vem sendo admitido, na maioria das vezes, tal controle. O mérito administrativo é a valoração feita pelo administrador quando da indicação de qual setor necessitará mais receita, analisando-se a conveniência e oportunidade, presentes nos elementos motivo e objeto do ato administrativo. Vale lembrar, que não há que se confundir mérito administrativo com motivo e objeto, apesar de estar presente neles. O motivo é o pressuposto de fato, enquanto conjunto de circunstâncias fáticas que levaram à prática do ato e o pressuposto jurídico, que é a norma do ordenamento que justifica a realização do ato, enquanto objeto é o resultado prático do ato.297 Transpondo isso para o campo das políticas públicas penitenciárias, o motivo do ato representa as razões que justificam a edição do ato, sendo a situação de fato e de direito que gera a vontade do agente, ou seja, a necessidade de solucionar a manutenção do sistema penitenciário, bem como o atendimento dos proclames da Lei de Execução Penal e da Constituição Federal. Já o objeto do ato é o efeito jurídico 294

BARCELLOS. Ibidem. p. 36. MARINELA. Fernanda. Direito Administrativo.4 ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Jus Podivm, 2010. p. 253 296 MELLO. Ibidem. p. 850. 297 MARINELA. Ibidem. p. 245 – 257. 295

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imediato na esfera de direitos dos presos, alterando a realidade fática vivida, possibilitando o adequado respeito por parte do Estado e como fim último a possibilidade de alcance da reintegração social. Contudo, quando estas opções do administrador relacionarem-se a direitos fundamentais e principalmente com a dignidade da pessoa humana, a discricionariedade estará vinculada ao atendimento destes pressupostos, limitando a atuação do administrador ao que a Constituição Federal prevê.

No que diz com relação entre os órgãos da administração e os direitos fundamentais, no qual vigora o princípio da constitucionalidade imediata da administração, a vinculação aos direitos fundamentais significa que os órgãos administrativos devem executar as leis que àqueles sejam conformes, bem como executar estas leis de forma constitucional, isto é, aplicando-as e interpretando-as em conformidade com os direitos fundamentais. A nãoobservância destes postulados poderá, por outro lado, levar à invalidação judicial dos atos administrativos contrários aos direitos fundamentais, problema que diz com o controle jurisdicional dos atos administrativos [...].

298

O administrador não pode e jamais poderá comprometer com opções políticas ou discricionárias a efetivação de direitos fundamentais de primeira dimensão, dada a característica da aplicabilidade imediata, sob pena de violação positiva (quando aplicam as receitas em setores distintos) ou negativa, (quando não as aplicam, impossibilitando a efetivação da Constituição Federal), pelo Poder Público, comprometendo de modo inaceitável a própria ordem constitucional.299 Difere nesse ponto, das normas programáticas ou dos direitos sociais, que em sua maioria necessitaram de efetiva disposição orçamentária, salvo em casos já colmatados pelo Supremo. Segundo o Min. Celso de Mello no julgado citado, o alto significado social e o irrecusável valor constitucional de que se revestem tais direitos, ainda mais se considerado em face do dever que incumbe, ao poder Público, de torná-lo real, mediante a efetivação da garantia da reintegração social, não podem ser menosprezadas pelo Estado, sob pena de grave e injusta frustração de um inafastável compromisso

298

SARLET. A eficácia dos direitos fundamentais. Uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. p. 370. 299 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 482.611/SC, RTJ 164/158.161

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constitucional, a dignidade da pessoa humana, que tem no aparelho estatal, um de seus precípuos destinatários. Tratando-se de típico direito de prestação positiva por parte estatal, asseverou STF, que se subsume ao conceito de liberdade real ou concreta, a proteção à dignidade da pessoa humana, que compreende todas as prerrogativas, individuais ou coletivas, referidas na Constituição e tem por fundamento regra constitucional cuja densidade normativa não permite que, em torno da efetiva realização de tal comando, o administrador disponha de um amplo espaço de discricionariedade que lhe enseje maior grau de liberdade de conformação, e de cujo exercício possa resultar, paradoxalmente, com base em simples alegação de mera conveniência ou oportunidade, a nulificação mesma dessa prerrogativa essencial.300 No

mesmo

sentido,

o

julgamento

paradigmático

da

Ação

de

Descumprimento de Preceito Fundamental, nº 45301,

O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere, gera a inconstitucionalidade por ação. - Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exequíveis, abstendo-se, em consequência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público.

O Poder Judiciário não deve ter por objeto rotineiro o controle de políticas públicas, fato tradicionalmente atribuído ao Poder Executivo. Contudo, não se justifica o descumprimento da Constituição, principalmente em relação a direitos de primeira dimensão baseados em opções discricionárias do administrador. “É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito de funções institucionais do Poder Judiciário a

300

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 482.611/SC. AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL n° 45, de 29/04/2004, Rel. Min. Celso de Mello. Disponível em: Acesso em: 30 nov. 2011. 301

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atribuição de formular e de implementar políticas públicas, pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo”. 302

Assim, os direitos, liberdades e garantias constituem, desde logo, medidas de valoração decisivas quando a administração tem de densificar conceitos indeterminados (, , , ). Da mesma forma, quando a administração pratica actos no exercício de um poder discricionário, ela está obrigada a actuar em conformidade com os direitos, liberdades e garantias. Aqui, dada a frouxa pré-determinação da lei, estes direitos surgem como parâmetros imediatos de vinculação do poder discricionário da administração. 303

Esse encargo de controlar as políticas públicas restará possível ao Poder Judiciário, porém, em casos excepcionais, que se configuram quando os órgãos estatais competentes, descumprindo encargos jurídicos decorrentes de direitos fundamentais de primeira dimensão, comprometem com tal comportamento, a eficácia e integridade de direitos individuais e coletivos. 304

Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou políticoadministrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (contingenciamento orçamentário). 305 (grifo nosso)

Quando o Executivo realiza o contingenciamento de verbas destinadas a Execução Penal na Lei Orçamentária Anual para que se atinja o superávit primário, entende-se como violação primária do direito à reintegração social do condenado, tornando impossível a manutenção de um sistema penitenciário hígido e garantidor de direitos fundamentais.

302

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 45. Voto Relator Celso de Mello. CANOTILHO. Ibidem. p. 446. 304 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 45. Voto Relator Celso de Mello. 305 Idem. Ibidem. 303

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4.2 Limites à intervenção jurisdicional no campo de políticas públicas e críticas pontuais quanto aos limites

Da forma como exposto o problema, cabe indagar até onde o Judiciário, no exercício da jurisdição constitucional, está habilitado a efetuar o controle de políticas públicas, evitando-se com isso que a exceção venha a se tornar uma regra, locupletandose, assim, indevidamente, das funções executiva e legislativa. Conforme exposto por Eduardo Appio306, as consequências da adoção de um modelo ilimitado de jurisdição e de implementação das políticas públicas pelo Poder Judiciário, além de inconstitucional por usurpação de funções, traria consequências políticas importantes. Desta feita e por coerência ao que foi até aqui tratado, deve o Judiciário também encontrar limites à este controle, incluídos neste limite o respeito a outros direitos fundamentais trazidos pela Constituição.

4.2.1 Reserva do possível como restrição orçamentária

A reserva do possível é a escusa mais comum alegada pelo Poder Executivo para a falta de efetivação de direitos fundamentais. Segunda Ana Paula de Barcellos, estas “procuram identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas por eles supridas”.307

No que importa ao estudo aqui compreendido, a reserva do possível significa que, para além das discussões jurídicas sobre o que se pode exigir judicialmente do Estado – e em última análise da sociedade, já que é esta que o sustenta – é importante lembrar que há um limite de possibilidades materiais para esses direitos. 308

Essa colocação traz a baila a contradição existente entre os custos que os direitos possuem ante a sua competente efetivação e a limitação orçamentária estatal. 306

APPIO, Eduardo. Controle Judicial de Políticas Públicas no Brasil. Curitiba: Juruá. 2008. p. 150. BARCELLOS. Ana Paula. A eficácia juridica dos princípios constitucionais. Rio de Janeiro: Renovar. 2002. p. 245. 308 Idem. Ibidem. p. 245. 307

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Por óbvio, o orçamento estatal não é infinito e também por isso, nem todos os objetivos a serem cumpridos pelo Estado podem ser alcançados e tornados plenos. A teoria da reserva do possível utiliza-se exatamente deste ponto, do montante disponível de recursos, dispostos no orçamento estatal, através da Lei Orçamentária Anual, para o que o Estado atue na consecução dos vários fins determinados pelo texto constitucional. A base desta teoria reside na Alemanha, onde o Tribunal Constitucional alemão asseverou que ao administrado, cabe reclamar apenas o que o indivíduo pode exigir de forma razoável da sociedade, existindo um limite fático ao exercício de direitos fundamentais, justificando na disponibilidade material dos recursos.309 Isso seria muito razoável se analisado o contexto em qual foi proposta. Na Europa, a estabilidade econômica e a presença estatal são muito mais efetivas do que em nosso contexto tupiniquim. Andréas Krell310 aponta que a realidade social alemã torna menos exigível por parte do cidadão, as prestações estatais na realização do wellfare state, diametralmente oposto de nossas condições, onde nossa carta política elenca dentre os objetivos fundamentais da República, a erradicação da pobreza e da marginalização e a promoção o bem estar de todos, mas não cumpre, de forma ostensiva, seus próprios objetivos. Critica-se311 a atuação de juízes no exercício do controle de políticas públicas, impondo uma conjectura que estes não possuiriam capacidade técnica para apurar as necessidades sociais para a efetivação destas e assim restaria insuficiente a atuação jurisdicional. Contudo, essa crítica perde força quando se analisa que o Poder com conhecimento técnico e material sobre a necessidade de implementação e estruturação de políticas, visando dar efetividade aos direitos fundamentais, o Executivo, por natureza, não realiza um adequado planejamento administrativo, não reservando de antemão o financeiro suficiente ou quando reservado, tredestinando esses recursos sem fins plausíveis e justificáveis sob a ótica constitucional. 309

KRELL, Andréas Joachin. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional ‘comparado’. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. p. 52. 310 Idem. Ibidem. p. 52. 311 “A título de controlar a execução de política pública, os juízes não somente anulam os atos administrativos praticados, mas alteram seu conteúdo, através de uma atividade substitutiva, promovendo medidas de cunho prático a partir de direitos previstos de modo genérico na Constituição. A intervenção judicial deixa de ter uma natureza exclusivamente invalidatória, passando a assumir uma função substitutiva, com o que se pode falar em atividade administrativa do Poder Judiciário”. APPIO, Ibidem. p. 138.

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Não se torna aceitável, desta forma, que o responsável pela efetivação dos direitos fundamentais priorize outras despesas ou aloque os recursos em outras áreas que não sejam relacionadas com o cumprimento de mandamentos constitucionais. Para isso, a discricionariedade encontra-se vinculada, não podendo argumentar-se na reserva do possível como saída justificativa da ausência de recursos capazes de tornar efetivos os direitos fundamentais.

A argumentação dos governos consiste em afirmar que o Poder Judiciário não pode atuar de forma positiva, considerando que a definição dos valores a serem destinados a um determinado programa social depende da vontade do Poder Executivo, o qual encaminha a lei orçamentária anual, e ao Congresso Nacional que tem a incumbência de aprova-la e mesmo de emenda-la. Ademais, o Poder Judiciário teria de indicar as fontes dos recursos destas novas despesas, o que esbarra na chamada reserva do possível, quando então os gastos dos governos estão previamente limitados por suas receitas. 312

O que dizer quando o Executivo contingencia anualmente a média de R$ 200.000.000,00 do orçamento penitenciário e gasta cerca de R$ 1.179.048.087,86313 com publicidade, à pretexto de informação sobre suas atividades aos seus cidadãos? Seria possível a argumentação contrária, admitindo-se como correta o gasto em publicidade, secundário e supérfluo, frente aos direitos fundamentais? De forma muito objetiva aponta-se para a inconstitucionalidade destas políticas, já que violadoras cabais da dignidade humana, liberdade e integridade física do indivíduo preso. Em decorrência disto, Dirley da Cunha aduz o reconhecimento de um direito fundamental à efetivação da Constituição entendendo que o princípio da aplicabilidade direta e imediata das normas constitucionais definidoras dos direitos fundamentais se estende a todas as normas da Constituição, acarretando um superlativo reforço jurídico da eficácia dessas normas.314 Tal princípio procura aprimorar a idéia de que a sociedade tem direito a fruir de todos os direitos assegurados na Constituição, sem que se possam colocar barreiras de índole interpretativa a limitar essa garantia. 312

Idem. Ibidem. p. 175. Cf. Dados da Secretaria de Comunicação da Presidência da República. De 2000 a 2009, gastou-se mais de dez bilhões de reais em publicidade governamental. Disponível em Acesso em 16/03/2012. 314 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle Judicial das Omissões do Poder Público. 2 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva. 2008. p. 150. 313

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Nas palavras de Dirley da Cunha Júnior:

Uma teoria geral dos direitos fundamentais só logrará cumprir a sua vocação de construir uma dogmática moderna, transformadora e emancipatória, liberta, portanto, de ideologias velhas, ortodoxas e ultrapassadas, caso reconheça um direito fundamental à efetivação da Constituição, revelando e despertando esse direito que se encontra em estado latente em nossa Carta Magna e que pode ser deduzido, como um direito fundamental implícito, diretamente do regime (democracia social semidireta) nela consagrado e dos princípios fundamentais que informam a ordem jurídico-constitucional (Título I), com destaque para aquele que proclama a soberania popular (Art. 1°, parágrafo único), em decorrência da força expansiva desses princípios políticos constitucionalmente conformadores de um Estado Constitucional 315 Democrático de Direito.

Pelo exposto, note-se que a afirmação desse novo direito fundamental decorre de um desvelar de seu conteúdo a partir de princípios expressos na Constituição, como os princípios democrático e da dignidade da pessoa humana, este último, o epicentro dos direitos fundamentais.316 Prossegue Dirley da Cunha Júnior desenvolvendo seu pensamento no sentido que, a partir dessa constatação, seria possível concluir que todas as normas definidoras de direitos fundamentais, sem exceção, têm aplicabilidade imediata, independentemente de concretização legislativa, o que permite que o titular do direito desfrute imediatamente da posição jurídica por ele consagrada, podendo e devendo qualquer órgão do Poder Judiciário, quando provocado por qualquer meio processual adequado, em caso de lacuna legislativa, removê-la completando o preceito consignador de direitos diante do caso concreto. Ademais, em relação às normas que contemplam direitos dependentes de prestações normativas ou fáticas do poder público, que careçam da interpositio legislatoris ou de providências materiais, implicam na obrigação de atuação legislativa e administrativa.317 Ademais, continua Dirley:

O direito fundamental à efetivação da Constituição apresenta-se – como todo direito fundamental – com dupla dimensão. Pela dimensão subjetiva, ele investe o cidadão da posição jurídica subjetiva (a) de exigir, até judicialmente, o desfrute imediato de todos os direitos e garantias 315

CUNHA JUNIOR. p. 265. LEPORE. Ibidem. p. 62. 317 CUNHA JÚNIOR. Ibidem. p. 150-151. 316

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fundamentais, sendo desnecessária, neste caso, a interpositio legislatoris, e (b) de exigir a emanação de normas ou atos materiais de concretização da Constituição, relativamente às normas não definidoras de direitos e garantias. Pela dimensão objetiva, ele irradia uma eficácia dirigente, impondo ao Estado o dever jurídico permanente de concretizar e realizar todas as normas constitucionais, incumbindo a todos os órgãos e a todas as entidades estatais 318 o dever-poder de efetivá-las.

Argumente-se ainda o impacto social causado, haja vista que a sociedade como ente difuso, acaba sendo diretamente atingida por essa ausência de efetivação, pois quando o recluso não é exposto ao processo reintegrativo, certamente sairá do zoológico humano mais animalesco do que outrora. Isso demonstra a resposta a uma questão quase irrefutável. Quando o preso está recluso, ele está contido. A grande pergunta é: e quando esse preso, não exposto a qualquer processo reintegrativo, violentado em seus direitos mais básicos e fundamentais conforme exaustivamente narrado, estiver novamente em liberdade, como será o encontro com a sociedade que lhe privara disso? Normalmente, esse encontro acontece no sinal de trânsito e nessa hora, o preso não estará mais contido e sim, estará contigo!319 Aí é que ocorre a prestação de contas sociais. Observe-se ainda, que inclusive a escassez de recursos públicos deve ser reconhecida pelo Judiciário, a fim de que exista a diferenciação entre o que não é possível ser efetivado, ante a falta de recursos, porém derivado da efetivação de outros direitos fundamentais e o que não é possível ser efetivado, ante a falta de recursos, mas dessa vez devido aos recursos estarem sendo distribuídos a outros setores de somenos importância, que não direitos fundamentais. Portanto, “impõe-se distinguir um argumento relacionado com a inexistência de recursos necessários a concretização de um dever constitucional, em relação à alocação de recursos procedida contrariamente às disposições constitucionais”.320

Assim, a partir do paradigma do novo Estado Social e, consequentemente, do reconhecimento de um conjunto de tarefas a serem desenvolvidas e 318

Idem. Ibidem. p. 265. Palestra de Luiz Flávio Gomes, proferida em 02/09/2011 na Universidade do Estado de Minas Gerais. Sistema penitenciário brasileiro. Bomba relógio anunciada. 320 BREUS, Thiago Lima. Políticas Públicas no Estado Constitucional: problemática dos Direitos Fundamentais pela Administração Pública brasileira contemporânea. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 241. 319

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cumpridas por esse Estado, por imperativos da justiça social, resulta evidente que a satisfação destes “deveres” estatais condiciona a legitimidade do desempenho das funções do poder público, em especial de suas funções normativas (incluindo as legislativas), cujo controle de legitimidade cumpre, inevitavelmente, ao Poder Judiciário.321

Ainda como amor ao argumento, os defensores da reserva do possível alegam que quando não há orçamento suficiente disponível para a consecução de alguma política pública, se faz necessário abrir créditos extraordinários para que se atenda a situações não previstas e que isto macularia a possibilidade de concretização de outras áreas.322 Ainda que esse argumento tenha certa coerência, no caso da execução penal não pode lograr êxito, já que conforme noticiado, o orçamento mínimo necessário já vem previsto na LOA. Contudo, ano a ano, contingenciamento a contingenciamento, este orçamento é dilapidado, restando muito pouco do previsto para a melhora do sistema penitenciário, principalmente a partir dos recursos oriundos do FUNPEN. Como lembrado por Krell, “onde o processo político (Legislativo, Executivo) falha ou se omite na implementação de políticas públicas e dos objetos sociais nela implicados, cabe ao Poder Judiciário tomar uma atitude mais ativa na realização desses fins sociais [...]”.323 Assim, a teoria da reserva do possível não encontra guarida frente ao nosso modelo constitucional de proteção aos direitos fundamentais como forma de impedir e justificar a ineficácia do administrador na concepção e realização de políticas públicas que visem dar cumprimento e tornar efetivos os direitos mais básicos dos privados em liberdade.

4.2.2 O mínimo existencial – Limite ao administrador e ao Poder Jurisdicional

A dificuldade financeira encontrada pelo Estado para implementar políticas públicas encontra como paradigma orientador o direito ao mínimo existencial de cada ser humano. Esse mínimo serve ainda como parâmetro para que se estabeleçam quais

321

CUNHA JUNIOR. Ibidem. p. 371. APPIO. Ibidem. p. 175. 323 KRELL. Ibidem. p. 99. 322

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direitos fundamentais, todos exigíveis prima facie, devem ser priorizados quando há escassez de recursos. O fundamento da teoria ao mínimo existencial está em proteger a dignidade da pessoa humana a qual, segundo Bachof324, não reclama apenas a garantia da liberdade, mas também um mínimo de segurança social já que, sem os recursos materiais para uma existência digna, a própria dignidade da pessoa humana restaria sacrificada. Canotilho observa que a teoria ao mínimo existencial se associa à necessária efetivação dos direitos prestacionais ou direitos de segunda dimensão que segundo aporte teórico respeitável, aponta-os como direitos que possuem eficácia limitada. Assim,

Das várias normas sociais, económicas e culturais é possível deduzir-se um princípio jurídico estruturante de toda a ordem económica-social portuguesa: todos (princípio da universalidade) têm um direito fundamental a um núcleo básico de direitos sociais (minimum core of economics and social rights), na ausência do qual o estado português se deve considerar infractor das obrigações jurídico-sociais constitucional e internacionalmente impostas.325

Com a devida vênia, além da aplicabilidade aos direitos prestacionais a teoria ao mínimo existencial também se aplica, com maior relevância, aos direitos de primeira dimensão, de status negativus, como forma de balizamento a atuação do administrador na implementação de políticas públicas, limitando a discricionariedade administrativa e portanto, determinando a aplicação mínima de recursos a tornar plenos estes direitos, mas também, constitui-se como cláusula limitadora à atuação do Judiciário, no sentido de direcioná-lo a determinar que o administrador aplique o mínimo necessário à realização desses direitos, quando no momento excepcional do controle da política pública. Clémerson Clevé pontua de forma muito precisa,

O conceito de mínimo existencial, de mínimo necessário e indispensável, de mínimo último, aponta para uma obrigação mínima do poder público, desde 324

BACHOF, Otto apud BRAUNER, Arcênio. O ativismo judicial e sua relevância na tutela da vida. In: FELLET. Ibidem. p. 601. 325 CANOTILHO. Ibidem. p. 518.

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logo sindicável, tudo para evitar que o ser humano perca sua condição de humanidade, possibilidade sempre presente quando o cidadão, por falta de emprego, de saúde, de lazer, de assistência, vê confiscados seus desejos, vê combalida sua vontade, vê destruída a sua autonomia, resultando num ente perdido no cipoal das contingências, que fica à mercê das forças terríveis do destino. Os direitos sociais, o princípio da dignidade humana, o princípio da socialidade (dedutível da Constituição que quer erigir um Estado democrático) autorizam a compreensão do mínimo existencial como obrigação estatal a cumprir e, pois, como responsabilidade dos poderes públicos.326

Desta forma, quando o administrador desenvolve políticas públicas que versem sobre direitos fundamentais, cabe à ele interpretar327 também a Constituição, efetivando de forma máxima os direitos fundamentais e na questão principal deste trabalho, tornar auferível o direito à reintegração social. De outra sorte, este mesmo administrador insiste na utilização de escusas orçamentárias, baseando seu discurso na ausência de recursos suficientes, viabilizando ao Judiciário exercer seu controle, garantindo aos privados de liberdade o respeito ã dignidade humana, entendida nesse ponto como o núcleo básico ou essencial dos direitos humanos fundamentais e que tornam assegurável a própria sobrevivência humana. Esse núcleo básico dos direitos humanos, é pra Krell “o referido ‘padrão mínimo social’ para a sobrevivência incluirá sempre um atendimento básico e eficiente de saúde, o acesso à uma alimentação básica e vestimentas, à educação de primeiro grau e a garantia de uma moradia”,328 o que não se distancia das prestações e dos direitos asseguradas na lei execucional. No mesmo sentido, Ana Paula de Barcellos define a questão,

Em resumo: a limitação de recursos existe e é uma contingência que não se pode ignorar. O intérprete deverá leva-la em conta ao afirmar que algum bem pode ser exigido judicialmente, assim como o magistrado, ao determinar o seu fornecimento pelo Estado. Por outro lado, não se pode esquecer que a finalidade do Estado ao obter recursos, para, em seguida, gastá-los sob a forma de obras, prestação de serviços, ou qualquer outra política, é exatamente realizar os objetivos fundamentais da Constituição. A meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode 326

CLÈVE, Clèmerson Merlin . A eficácia dos direitos fundamentais sociais. Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, v. 8, p. 151-161, 2003. p. 160. 327 Cf. HÄBERLE. Peter. Hermenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. 328 KRELL. Ibidem. p. 63.

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ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-se-ão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.329 (grifos nossos)

4.2.3 Proporcionalidade e o dever de proteção do Estado

Num dito Estado democrático, está-se sob o regime direto da força normativa da Constituição, tanto para o processo legislativo infraconstitucional, como para a administração dos interesses estatais. A força normativa da Constituição expõe o papel da constituição não sendo este, apenas, a mera expressão da realidade de seu tempo, mas, graças ao seu caráter normativo, ordena e conforma a realidade social e política. “A constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia”.330 Nessa esteira, o Estado democrático de direito se torna um novo paradigma protetivo quando assume para si a política integral de proteção dos direitos fundamentais. Assim, muito além da proteção negativa que se faz sobre os atos do Estado, estipulando garantias como as de primeira dimensão, hoje deve ser erguida a bandeira da proteção positiva de direitos fundamentais, agora por parte do Estado. Tal fato é decorrente da evolução do Estado e da missão assumida pelo Direito.

O Estado – como bem lembra Dietlein – passa, de tal modo, a assumir uma função de amigo e guardião – e não de principal detrator – dos direitos fundamentais. Esta incumbência, por sua vez, desemboca na obrigação de o Estado adotar medidas positivas da mais diversa natureza (por exemplo, por meio de proibições, autorizações, medidas legislativas de natureza penal, etc), com o objetivo precípuo de proteger de forma efetiva o exercício dos direitos fundamentais.331

329

BARCELLOS. A eficácia juridica dos princípios constitucionais. p. 245-246. HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Die normative kraft der verfassung. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p. 16. 331 SARLET. Ingo. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e de insuficiência. Revista de Estudos Criminais. n. 12. Ano 2003. p. 104. 330

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Hoje, essa concepção de Direitos fundamentais apenas como protetivos contra o abuso estatal necessitam ser revisitadas em uma análise não apenas das garantias negativas contra o poder do Estado, mas também, contra a agressão proveniente de outros indivíduos. É função do Direito, portanto, a proteção contra atos estatais e contra atos individuais. Cabe falar-se num rol positivo de garantias que visem proteger o indivíduo e a comunidade contra violações perpetradas por outros indivíduos.

O direito penal serve simultaneamente para limitar o poder de intervenção do Estado e para combater o crime. Protege, portanto, o indivíduo de uma repressão desmedurada do Estado, mas protege igualmente a sociedade e os membros dos abusos do indivíduo.332

A função dos direitos fundamentais, lembra Feldens333, manifesta-se na dedução de deveres de proteção, consistente na intervenção ativa do Estado na realização dos direitos fundamentais. Assim, temos a dupla proteção dos direitos fundamentais. A proteção positiva e a proteção negativa. “Na verdade, a tarefa do Estado é defender a sociedade, a partir da agregação das três dimensões de direitos – protegendo-a contra os diversos tipos de agressões. Ou seja, o agressor não é somente o Estado. O Estado não é o único inimigo”.334

O dever de proteção corresponderá a um dever de legislação apenas quando a proteção do direito exigir imperativamente um ato legislativo. Assim, o dever de proteção como tarefa de proteção é aquele imposto por toda norma constitucional que defina direitos fundamentais (ex.: o Estado tem a tarefa de proteger a vida, a integridade física, a propriedade, etc.). Já o dever de proteção como dever de atuação consiste num dever concreto de proteção que decorre da tarefa de proteção, que nele se converte em determinadas situações concretas. Finalmente, o dever de proteção como dever de legislar surge quando o dever concreto de proteção reclama definitivamente a emanação da legislação, porque só por esta via é possível, efetivamente, a proteção demandada pelo direito em questão. Desse modo, percebe-se que "o cerne da questão consiste em saber quando e como a tarefa de proteção se transmuta em dever de proteção e este em dever de legislação.335

332

ROXIN. Problemas fundamentais de direito penal. p. 76. FELDENS. Ibidem. p. 73. 334 STRECK, Lenio. Bem jurídico e Constituição: da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2010. p. 13. 335 CUNHA JÚNIOR. Ibidem. p. 377. 333

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Para que se torne possível uma nova releitura de proteção de direitos de forma adequada com base na Constituição, se faz necessário que o modelo clássico de proteção negativa há muito superado, revelava apenas uma posição unilateral do princípio da proporcionalidade, onde se direcionava para a proteção contra os excessos estatais ou o que o Tribunal Constitucional Alemão chama de Übermassverbot, ou seja, a proibição do excesso.

Na doutrina e jurisprudência alemãs, a proporcionalidade é concebida como princípio inerente ao Estado de Direito, figurando como uma das garantias básicas que devem ser observadas em todo caso onde possam ver-se lesionados direitos e liberdades fundamentais, qualificando-se, assim, como máxima constitucional. No Brasil, o STF inclina-se por vislumbrar a proporcionalidade como postulado constitucional que tem a sua sedes materiae na disposição constitucional que disciplina o devido processo legal, em sua perspectiva substancial (art. 5, inc. LIV, da CF).336 (grifos no original)

Streck afirma337 que o princípio da proporcionalidade dever ser visto apenas como um modo de explicar que cada interpretação deve ser razoável para evitar interpretações discricionárias e arbitrárias. Visto pela lente do positivismo resulta que os maiores problemas de choque de valores eram colocados para que o juiz resolvesse de forma discricionária. Visto sobre a lente do neoconstitucionalismo ou pós-positivismo esses mesmos problemas passam a ser encarados pela ponderação principiológica, conforme argumentou Alexy. Essa questão interpretativa é importante no sentido de que se estabeleçam parâmetros ao critério de ponderação quando da aplicação do princípio da proporcionalidade. Desta feita, não cabe ampla discricionariedade ao administrador nem ao juiz na determinabilidade, quando do julgamento de possíveis violações aos direitos fundamentais ou aos bens jurídicos protegidos. Essa discricionariedade desaparece quando a Constituição elegeu determinados bens como carentes de proteção. Disto resulta inequívoca vinculação entre os deveres de proteção de direitos fundamentais, legitimando a intervenção do Judiciário, quando necessário, para que se restabeleça o equilíbrio da situação.

336 337

FELDENS. Ibidem. p. 82. Idem. Ibidem.

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O Estado, por meio de seus órgãos ou agentes, pode acabar por afetar de modo desproporcional um direito fundamental. Estas hipóteses correspondem às aplicações correntes do princípio da proporcionalidade como critério de controle de constitucionalidade das medidas restritivas de direitos fundamentais.

Por outro lado, o Estado - também na esfera penal - poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar, hipótese, por sua vez, vinculada (pelo menos em boa parte) à problemática das omissões inconstitucionais. É neste sentido que como contraponto a assim designada proibição de excesso - expressiva doutrina e inclusive jurisprudência tem admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição de insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado e como tradução livre do alemão Untermassverbot). 338

A própria Constituição revela esta dupla face de proteção dos direitos fundamentais, quando num Estado Democrático de Direito, visualizados pela proibição do excesso (Übermassverbot) e pela proibição da deficiência (Untermassverbot). Essa nova divisão paradigmática, nem sempre observada, deveria ter produzido profundas alterações nos critérios utilizados pelo legislador infraconstitucional quando da proteção de direitos eleitos constitucionalmente.

A efetiva utilização da Untermassverbot (proibição de proteção deficiente ou insuficiente) na Alemanha deu-se com o julgamento da descriminalização do aborto (BverfGE 88, 203, 1993), com o seguinte teor: “O Estado, para cumprir com o seu dever de proteção, deve empregar medidas suficientes de caráter normativo e material, que permitam alcançar – atendendo à contraposição de bens jurídicos – uma proteção adequada, e como tal, efetiva (Untermassverbot). (...) É tarefa do legislador determinar, detalhadamente, o tipo e a extensão da proteção. A Constituição fixa a proteção como meta, não detalhando, porém, sua configuração. No entanto, o legislador deve observar a proibição de insuficiência (...). Considerando-se bens jurídicos contrapostos, necessária se faz uma proteção adequada. Decisivo é que a proteção seja eficiente como tal. As medidas tomadas pelo legislador devem ser suficientes para uma proteção adequada e eficiente e, além disso, basear-se em cuidadosas averiguações de fatos e avaliações racionalmente sustentáveis. (...)”339 (grifos no original).

338

SARLET. Constituição e proporcionalidade: o direito penal e os direitos fundamentais entre a proibição de excesso e de insuficiência. p. 107. 339 STRECK, Lenio. O dever de proteção do Estado (Schutzpflicht): o lado esquecido dos direitos fundamentais ou “Qual a semelhança entre os crimes de furto privilegiado e o tráfico de entorpecentes”? Disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2010. p 7.

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Entendido nessas duas perspectivas, a proporcionalidade aponta a exigência de adequação entre o meio e o fim causando a menor restrição possível de direitos fundamentais. Isto possibilita ao Judiciário o controle da atividade administrativa e legislativa de políticas públicas quando estas desrespeitam uma atuação proporcional na efetivação constitucional.

Esta nova face do Estado e do Direito decorre também – e fundamentalmente – do fato de que a constituição, na era do Estado Democrático de Direito (e Social) também apresenta uma dupla face, do mesmo modo que os princípio da proibição de excesso (Übermassverbot) e proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). Ela contém, ensina Ferreira da Cunha, os princípios fundamentais de defesa do indivíduo face ao poder estadual – os limites ao exercício do poder em ordem a eliminar o arbítrio e a defender a segurança e a justiça nas relações cidadão-Estado (herança, desenvolvida e aprofundada, da época liberal – da própria origem do constitucionalismo), em especial em relação ao poder penal. Mas, por outro lado, preocupada com a defesa ativa do indivíduo e da sociedade em geral, e tendo em conta que os direitos individuais e os bens sociais para serem efetivamente tutelados, podem não bastar com a mera omissão estadual, não devendo ser apenas protegidos face a ataques estaduais, mas também em face a ataques de terceiros, ela pressupõe (e impõe) uma atuação estadual no sentido protetor dos valores fundamentais (os valores que ela própria, por essência, consagra) (grifos no original). 340

O Judiciário deve guiar-se, assim, pelo princípio da proporcionalidade com o fim de observar se os meios empregados são eficientes para a realização de políticas públicas, garantindo a máxima eficácia dos direitos fundamentais.

4.2 Políticas Públicas e o processo reintegrativo por meio da Execução Penal

A execução penal bem efetivada torna possível a criação de um ambiente capaz de levar o infrator a repensar seus atos criminosos ensejando a possibilidade de uma vida pós-cárcere ambientada no respeito às normas sociais de conduta. Para isso, as políticas públicas direcionadas à execução penal assumem um papel preponderante nessa perspectiva reintegrativa. Essa intersecção entre direito e a política ou direito e a moral foi bem delimitada por Kelsen outrora quando apontou a separação de ambos. Hoje o que se vê é

340

STRECK. Bem jurídico e Constituição. p. 17

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a necessária releitura deste panorama valorativo341 com o intuito de tornar efetivos os direitos fundamentais da pessoa encarcerada.342 A política deve observar os interesses da coletividade, distribuindo o poder e orientando para a formação de um modelo de atuação estatal, ao passo que “ao direito cabe conferir expressão formal e vinculativa a esse propósito, transformando-o em leis, normas de execução, dispositivos fiscais, enfim, conformando o conjunto institucional por meio do qual opera a política”.343 Canotilho ensina que uma das principais funções da Constituição de um Estado é a de ser a revelação normativa do consenso fundamental de uma comunidade política, relativamente a princípios, valores e ideias que servem de padrões de conduta política e jurídica nessa comunidade. Por isso, a Constituição confere legitimidade a uma ordem política no sentido de constituí-la segundo princípios justos com uma indispensável bondade material e conferir ainda legitimação aos respectivos titulares do poder político, vinculando juridicamente os responsáveis pelo poder assevera que a articulação destas duas dimensões, da legitimidade e legitimação, implicam que a Constituição não seja considerada como uma simples carta ou folha de papel, conforme afirmado por Lassale, resultante de relações de poder ou da pressão de forças sociais.344 Desta legitimidade observada por Canotilho é que se justificam as ações governamentais endereçadas a certas finalidades, as políticas públicas, que devem sempre observar a promoção e proteção dos direitos humanos fundamentais pelo Estado.

A elaboração dessas políticas deve estar em consonância com os ditames da Constituição e dos demais instrumentos normativos do ordenamento jurídico, bem como deve sempre ter como finalidade o interesse público, e a promoção e proteção de direitos, em especial aqueles reconhecidos como direitos humanos. 345

341

Cf. os trabalhos paradigmáticos de ALEXY. Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008; DWORKING. Ronald. Taking rights seriously. Harvard University Press. 1978. 342 Ana Paula de Barcellos afirma com total propriedade que “Os Poderes Públicos estão submetidos à Constituição, como uma decorrência direta da noção de Estado de Direito, por força da qual o exercício do poder político encontra limites em normas jurídicas. À Constituição, é certo, não cabe invadir os espaços próprios da deliberação majoritária, a ser levada a cabo pelas maiorias democraticamente eleitas em cada momento histórico. Umas das funções de um texto constitucional, porém, é justamente estabelecer vinculações mínimas aos agentes políticos, sobretudo no que diz respeito à promoção dos direitos fundamentais.” Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. p. 22 343 BUCCI, ibidem. p. 37. 344 CANOTILHO. p. 1438-1439. 345 AITH. Ibidem. p. 219.

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O Estado, ao positivar os direitos fundamentais de primeira dimensão, especialmente, o fez como razão das arbitrariedades ocorridas durante o Estado Absolutista elevando a categoria de direitos fundamentais as liberdades. Neste processo, o legislador se ocupou de definir alguns bens existenciais como bens jurídicos que eram constantemente atacados pelo Príncipe.

É evidente que a perspectiva liberal-clássica, própria do Estado em formação no longínquo século XIX, fundava-se na contraposição Estado-Sociedade, sendo a função da lei meramente ordenadora (o que não é proibido é permitido), a partir da tarefa-função de defender o débil cidadão contra a “maldade” do Leviatã. Afinal, a revolução francesa – berço do Estado Liberal – representava o triunfo do privado. A burguesia destronara o velho regime exatamente para recuperar o poder político do qual abrira mão para o fortalecimento do seu poder econômico, no nascedouro do Estado ModernoAbsolutista.346

Assim, os direitos humanos para serem protegidos exigem um ambiente social dotados de regras garantidoras da convivência e, sem exceção, do respeito à dignidade.347 Esse respeito será de observância obrigatória ao Estado quando da organização das políticas públicas necessárias a esta concretização, tornando-se vinculativa, além de orientadora.

[...] a pretensão de eficácia de uma norma constitucional não se confunde com as condições de sua realização; a pretensão de eficácia associa-se a essas condições com o elemento autônomo. A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. 348

Esta organização estatal na busca de modelos garantidores dos direitos é fundamentada pela Constituição, a qual organiza o exercício do poder, num claro papel de legitimação dos entes responsáveis pelo exercício deste. “É a Constituição que funda o poder, é a Constituição que regula o poder, é a Constituição que limita o poder”. 349

346

STRECK, Lenio. O princípio da proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista-clássico. Disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2010. p. 15. 347 AITH. Ibidem. p. 226. 348 HESSE. Ibidem. p. 15 349 CANOTILHO. Ibidem. p. 1440.

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Partindo dessa premissa, a Constituição será sem dúvida a fonte de observância obrigatória de qualquer política pública perpetrada pelo Estado, seja legitimando uma política, seja limitando outra, sendo considerada por Canotilho como uma ordem fundamental,

[...] no sentido de constituir a pirâmide de um sistema normativo que nela encontra fundamento. Nesse sentido, a constituição aspira, como se viu, à natureza de normas das normas (cfr. art. 112.º), pois é ela que fixa o valor, a força e a eficácia das restantes normas do ordenamento jurídico (das leis, dos tratados, dos regulamentos, das convenções colectivas de trabalho, etc.).350 (grifos no original)

Nesse sentido, a atuação do Estado no planejamento e execução de políticas públicas será realizada através de diversos veículos normativos sempre fundados nessa ordem superior alçada pela Constituição e com isso pelos direitos humanos fundamentais limitando o “Estado a elaborar e planejar as políticas públicas de acordo com as diretrizes constitucionais e dentro dos critérios definidos pelas regras de reconhecimento traçadas pela própria Constituição”. 351

Onde quer que a lei termine, a tirania começa, se a lei for transgredida para dano de outrem. E aquele que exceda em autoridade o poder que a lei lhe conferiu, e lance mão da força de que dispõe para fazer ao súdito o que a lei não lhe permite, deixa de ser magistrado e, já sem autoridade, poderá sofrer oposição como qualquer um que viole o direito de outrem.352 (grifo nosso)

As políticas públicas tornam-se, com isso, um instrumento de realização, de adequação da constituição jurídica à constituição real onde, nos dizeres de Hesse as relações fáticas resultantes da conjugação desses fatores constituem a força ativa determinante das leis e das instituições da sociedade, fazendo com que estas expressem, tão-somente, a correlação de forças que resulta dos fatores reais de poder, formando a Constituição real do país. Isto fará que a Constituição adquira força normativa, na

350

Idem. Ibidem. p. 1441. AITH. Ibidem. p. 226. 352 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São Paulo: Martin Claret, 2006. p.139. 351

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medida em que logra realizar esta pretensão de eficácia, também através de políticas públicas. 353

Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral – particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional - , não só a vontade de poder (Wille zur Match), mas também a vontade de Constituição (Wille zur Verssung).354 (grifos no original)

As políticas públicas se tornam, com a observância da vinculação constitucional, instrumentos destinados a alterar as relações sociais existentes. Inevitável por isso, desvincular o tratamento destas com o orçamento, inferindo Ricardo Lobo Torres que “o relacionamento entre políticas públicas e orçamento é dialético: o orçamento prevê e autoriza as despesas para a implementação das políticas públicas; mas estas ficam limitadas pelas possibilidades financeiras e por valores e princípios como o do equilíbrio financeiro”355, o que com a devida venia não se apresenta como o mais correto. O que já se observou em capitulo supra é a completa tredestinação orçamentária relativa à execução penal praticada pelo Estado. No orçamento penitenciário, em especial aquele previsto no sistema arrecadatório do FUNPEN, integram-no todas as despesas que deverão ser realizadas, conforme previsto pela Lei n. 4.320/1964 a qual estatuiu as normas gerais de direito financeiro, bem como as receitas públicas correspondentes ao ingresso procedentes da arrecadação de tributos e outras fontes. Segundo Aliomar Baleeiro, orçamento se constitui como a autorização dada ao Executivo, pelo Legislativo para que se realizem gastos das receitas no cumprimento dos programas, serviços e encargos governamentais, devendo o mesmo prever as

353

HESSE, Ibidem. passim. HESSE. Ibidem. p. 19 355 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. O orçamento na Constituição. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. Vol. 5, p. 110. 354

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políticas públicas pensadas e elaboradas para o atendimento das exigências da Constituição.356

As leis orçamentárias, como os próprios julgados reconhecem, são leis. E, como tais, possuem força de lei para todos os efeitos. É pelo orçamento que o poder Legislativo prevê e autoriza ao Poder Executivo a execução das despesas públicas e outros fins dotados na política econômica adotada no país, assim como a arrecadação das receitas já criadas. Assim como, através de uma lei ou ato normativo, pode-se definir uma política habitacional, por exemplo[...] (grifo nosso). As leis orçamentárias, por exemplo, tratam de definir a destinação dos recursos públicos para a execução de programas governamentais, baseados em políticas públicas definidas em atos normativos ou em leis e voltados à promoção do desenvolvimento econômico e social do país. 357

Nesse sentido, quando o Executivo se utiliza do contingenciamento de receitas da Execução Penal para que o superávit primário seja alcançado, expõe-se uma violação frontal à lei orçamentária, bem como ao processo de efetivação dos direitos fundamentais dos encarcerados, especialmente a reintegração social. Será possível imaginar um processo de reintegração hígido, suficiente e satisfatório, que apresente resultados positivos quando se analisam os orçamentos destinados à execução de pena e se nota que metade, pelo menos, da previsão orçamentária não é integralmente investida pelo Executivo. Num universo médio de R$ 400.000.000,00 anuais cerca de R$ 200.000.000,00358 são desviados para que se componham interesses escusos e pouco justificados.

Desperdício e ineficiência, precariedade de serviços indispensáveis à promoção de direitos fundamentais básicos e sua convivência com vultuosos gastos em rubricas como publicidade governamental e comunicação social não são propriamente fenômenos pontuais e isolados na Administração Pública brasileira. 359

O retórico discurso oficial praticado pelo Executivo quando se analisa o montante de recursos execucionais é direcionado sempre à falácia da insuficiência.

356

BALEEIRO. Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 16 ed. atual. Dejalma de Campos. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 411. 357 AITH. Ibidem. p. 243. 358 Cf. Capítulo 3. Item 3.3.1. 359 BARCELLOS. Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático. Ibidem. p. 20.

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Mesmo os teóricos360 das ciências criminais vêm de encontro com esse entendimento afirmando que a solução para o excesso da população carcerária seria a adoção de um rol maior de alternativas penais. Isso não passa de um grande engodo midiático autorizado e estimulado por aqueles que não possuem interesse (leia-se, preso não vota, políticas penitenciárias não estimulam votos, falar de preso não aumenta a votação) em ver as mazelas sociais penitenciárias resolvidas. Nota-se que o orçamento penitenciário é mal utilizado, mal direcionado e na maioria das vezes desviado para que se atinjam outros interesses. Isso faz com que a superpopulação carcerária e com ela as constantes violações de direitos humanos fundamentais continuem a ser diuturnamente vilipendiadas. A boa utilização do orçamento penitenciário, em especial o proveniente do FUNPEN, o qual possui como destinação implementar a reforma e modernização do sistema carcerário, é de suma importância para a que a reintegração social do preso deixe a utopia dos teóricos e se realize no plano existencial. Para isso, a adoção de políticas públicas voltadas a essa finalidade se mostra como a principal alternativa já que noticiamos que o maior problema na incompletude da reintegração adequada se dá, prima facie, por problemas financeiros. E diz-se prima facie, pois outros ainda são integrantes desse complexo processo, como a falha em outras instancias sociais de controle, a co-responsabilidade estatal por exemplo, mas que fogem à pesquisa proposta. Se as políticas públicas assumem esse papel primário de solução dos conflitos, se faz necessário que sejam eficazmente direcionadas ao cumprimento dos ditames da lei execucional e por fim, respeitando a dignidade humana. Contudo, questiona-se: Por que, existindo orçamento disponível ocorre o contingenciamento? Por que, o sistema penitenciário está cada vez mais superlotado e ineficaz? Por que, o respeito aos direitos humanos fundamentais se tornam cada vez mais meros discursos sem força suficiente de coerção estatal? A resposta a essas perguntas parecem muito claras quando se analisam os interesses colocados em conflito, em geral, a manutenção do poder, tendo por principal instrumento para tanto, o voto popular. Quando o desinteresse social por determinada temática ganha relevância, o Estado (ou aqueles que se encontram legitimados para atuarem em seu nome) deixa de 360

BINTENCOURT. Falência da pena de prisão. Causas e alternativa; DOTTI. René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 1998.

155

dar importância necessária a esta temática e o resultado disso, quando se fala em reintegração social do preso é o desrespeito aos seus direitos mais básicos. Bobbio analisando o interesse do poder num estado democrático pontua, “Joseph Schumpter, acertou em cheio quando sustentou que a característica de um governo democrático não é a ausência de elites mas a presença de muitas elites em concorrência entre si para a conquista do voto popular”.361 Se o Estado, expresso pelo Poder Executivo não se preocupa em efetivar os direitos humanos fundamentais dos presos expressos tanto na Lei de Execução Penal, bem como na Constituição Federal através de suas próprias atribuições, cabe este papel, então, ao Judiciário, como um dos processos regulados de eleição e realização de políticas públicas visto que quando determinada política pública envolver a efetivação de direitos fundamentais, notoriamente ligados à dignidade humana, estar-se-á diante de uma norma que vincula este Poder.

Cabe salientar que a arrecadação de receitas deve estar diretamente relacionada à previsão de gastos públicos, esta arrecadação além de prever os gastos dos próprios órgãos da Administração Pública deve se voltar para concretização das políticas públicas – visto que ao ser delegado poderes ao Estado espera-se uma contraprestação que é a satisfação das necessidades da coletividade – mas é claro respeitando o princípio da não-vinculação da receita proveniente de impostos, pois poderia limitar o Poder Executivo na sua função administrativa (mas a própria Constituição nos traz exceções no que diz respeito a gastos em educação e saúde). A elaboração e a execução do orçamento-programa a fim de traçar as políticas públicas é função precípua do Poder Executivo com aprovação do Legislativo, mas quando estes se mostram ineficientes outros instrumentos devem ser disponibilizados e entre eles encontra-se o controle judicial das políticas públicas realizado pelo Poder Judiciário.362

Esta almejada efetividade dos direitos fundamentais dos presos, somente será alcançada através de políticas públicas adequadas caso haja disponibilidade orçamentária para tanto. Como observado, previsão de disponibilidade há, mas estratagemas técnicos são utilizados a fim de impossibilitar tal realização. Esse processo de destinação orçamentária é identificada através da realização de cálculos acerca dos possíveis

resultados

de

uma

decisão

para

atender

determinadas

consequentemente a satisfação de uma necessidade coletiva.

361 362

BOBBIO, O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. p. 27. GUIMARÃES, ibidem.

metas

e

156

CONCLUSÃO

Os direitos do homem, naturais e indissociáveis de seu ser foram, paulatinamente, ganhando positivação na ordem constitucional de cada Estado, notoriamente após as grandes declarações do século XVIII, mas principalmente, após a segunda guerra mundial, onde o homem vivenciou o período mais negro de sua história moderna. As violações ocorridas desse fato se tornaram tão insuportáveis a ponto de forçar a inclusão de um rol protetista dos direitos mais básicos do ser humano dando à estes o caráter de fundamentalidade, ou seja, elencando-os como os mais importantes e carecedores de proteção, bem como fornecendo instrumentos legais para sua proteção e ainda, vinculando o seu principal violador, o próprio Estado, a criar reais possibilidades para esta proteção. Como anteparo fundamental de toda essa proteção ficou, principalmente no cenário nacional, a dignidade da pessoa humana, entendida como um princípio, expondo os valores fundamentais de orientação à atuação estatal e também dos indivíduos, mas também entendida como regra, determinando em várias situações, atuação efetiva do ente protetor para que se atinja a efetividade desta proteção, tornando este direito real, deixando de figurar apenas no plano teórico. A dignidade humana pressupõe, portanto, um valor supremo do homem, entendido como o fim último objetivado pelo Estado, tornando-se o principal componente desta estrutura valorativa. Assim, primeiramente foram protegidos os direitos de liberdade ou individuais, contra a violência estatal, posteriormente os direitos prestacionais, onde o deve buscar soluções para auxiliar materialmente a consecução desses direitos e por último, protegeu-se a própria espécie humana contra si própria, nos direitos de solidariedade, bem como floresceu a busca pela solução mais rápida e pacífica dos conflitos, expostos pelos direitos coletivos. Os últimos, concebidos como forma de solução célere dos litígios e a fim de tonar a aplicação da lei mais homogênea, frente ao número incomensurável de demandas individuais, possibilitou as demandas de massa preferencialmente às demandas individuais, por natureza, mais demoradas e diversas em seus resultados.

157

Desta

possibilidade

de

se

demandar

coletivamente,

nascida

preponderantemente da proteção material coletiva de determinado direito, deu-se início uma forma particular de busca da tutela jurisdicional. Como forma de facilitar a solução dos conflitos e violações a direitos individuais, mas que coletivamente foram violados, é possível que se fale em tutela coletiva de direitos individuais, uma forma célere e objetiva, com base no interesse social em sua resolução e de tratar conflitos que antes, poderiam ser protegidos apenas caso a caso, violação a violação, indivíduo a indivíduo. A pena privativa de liberdade, passou ao longa da história por profundas alterações, tanto em sua filosofia de necessidade, como na forma em que é aplicada. Nasceu como violação ao corpo do homem e hoje se consubstancia na segregação expiatória, na demonstração social da força estatal, mas principalmente, e como característica mais importante, assume o papel de preparar o agressor para o retorno ao convívio social após o período de segregação. Este retorno ao convívio social tem se mostrado muito dificultoso, por variadas razões apresentadas, mas notoriamente pela ausência de interesse estatal em cumprir a determinação do legislador infraconstitucional que determina as formas pelas quais as penas devem ser cumpridas, demonstrado ao indivíduo, as possibilidades que estão a sua frente, permitindo uma vida digna e não violadora dos direitos de outrem. Tal desinteresse reflete necessariamente no valor destinado pelo Estado no cumprimento das determinações legais e faz com que, sem dinheiro suficiente, a reintegração social se torne quase mítica. A demanda pela atuação da sanção estatal pela violação dos bens assegurados vem aumentando a cada dia. Isto está exposto pelo grande número de indivíduos submetidos às amarras do sistema penitenciário, levando o país ao quarto lugar no número de presos no mundo. Esse resultado não pode ser interpretado, exclusivamente, com base na pobreza da população e na má distribuição de renda. Mas é de se levar em conta que a grande maioria dos clientes deste sistema punitivo são indivíduos expostos a graves problemas socializatórios, incluídos nesse panorama a ausência de recursos financeiros, a deficiência na formação educacional, a desestruturação familiar, fazendo com que o mínimo de sua dignidade, não seja respeitada pelo ente estatal.

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O reflexo disso recai sobre a população, violada diariamente em seus direitos e recai ainda, sobre o infrator, exposto à mão forte do Estado representada pela grade de ferro. Nesse passo, é possível a atribuição também ao Estado e à sociedade da responsabilidade, na maioria das vezes, pela atitude criminosa. Contudo, vem o Estado lavando as mãos para os problemas advindos de sua própria punição. Se o Estado é o responsável pela sanção aos infratores; se o Estado é, também, responsável pela socialização deficiente pela qual estes foram expostos; é de se exigir deste mesmo Estado que tome as atitudes necessárias para restabelecer a ordem retirada pela prática do crime, punindo o infrator, mas punindo-o de um forma útil, à ele e à sociedade. O discurso apresentado pelo Estado não tem demonstrado essa preocupação. Isso pode ser aferido pelas condições às quais as unidades prisionais estão afeitas. A prisão é sempre o último local a ser lembrado, quando se fala em aplicação de recursos e cumprimento de deveres. Tem-se a prisão como um tapete, onde a sujeira (social) é lançada, esquecendo-se que a qualquer dia, esta sujeira retornará ao convívio dos demais socializados. Se ao Estado é imposto, pela Constituição, o processo reintegratório, já que à ele apenas cabe o jus puniendi, deve o mesmo respeito aos direitos assegurados constitucionalmente e por isso, também, ao indivíduo privado de sua liberdade. A Lei de Execução Penal não traz, em momento algum, bem como nem os direitos do indivíduo preso, assegurados como cláusula pétrea pela Constituição, que este deve ser privado de outros direitos, excetuados a liberdade. Se ao preso é assegurado todos os direitos, quiçá a sua dignidade. A prisão no Brasil é um dos principais violadores da dignidade humana e assim não pode continuar. Os direitos humanos fundamentais, guiados pelo seu mais notório princípio – a dignidade humana – estão aptos a vincular o ente estatal a que cumpra e proteja estes direitos. Não pode o Estado se utilizar de desculpas orçamentárias para tornar inoperante a dignidade humana. Não pode o Estado, mesmo com previsão orçamentária,

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vilipendiar seu próprio orçamento sem motivo concreto algum, violando de forma obtusa a dignidade das pessoas privadas de liberdade. E se este Estado, mesmo vinculado por esse ideal, em suas opções de aplicação orçamentária não cumprir tais determinações, passa a ter o Judiciário, numa clara missão de contrapeso, determinar que se faça, que se cumpra, que se efetivem os direitos fundamentais. Não é mais aceitável, em pleno século XXI, que o Estado continua a ser violador da liberdade e existência do ser humano. E quando essa violação se der contra indivíduos colocados sob seus cuidados, mister que se cumpra as determinações maiores dos direitos fundamentais, possibilitando ao preso, opções que outrora foram lhe subtraídas, tornando-o útil e de forma difusa aumentando a segurança social.

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