Cooperação para o desenvolvimento e cooperação Sul-Sul: a perspectiva do Brasil

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Haroldo Ramanzini Júnior Luis Fernando Ayerbe (Orgs.)

POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA, COOPERAÇÃO SUL-SUL E NEGOCIAÇÕES INTERNACIONAIS Haroldo Ramanzini Júnior Luis Fernando Ayerbe (Orgs.)

Organizadores Haroldo Ramanzini Júnior Luis Fernando Ayerbe Capa e Diagramação Gianfrancesco Afonso Cervelin Revisão Adalton Oliveira

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ P829
 Política externa brasileira, cooperação sul-sul e negociações internacionais / organização Haroldo Ramanzini Júnior , Luis Fernando Ayerbe. - 1. ed. - São Paulo : Cultura Acadêmica, 2015. 178 p. ; 23 cm. ISBN 978-85-7983-642-8 1. Relações internacionais 2. Política internacional 3. Brasil - Relações exteriores. I. Ramanzini Júnior, Haroldo. II. Ayerbe, Luis Fernando.
 15-23218 28/05/2015

CDD: 327.81 CDU: 327(81) 05/06/2015

SUMÁRIO •

APRESENTAÇÃO Haroldo Ramanzini Júnior e Luis Fernando Ayerbe.............................7



As diferentes dimensões da cooperação Sul-Sul na política externa brasileira Haroldo Ramanzini Júnior, Marcelo Passini Mariano e Rafael Augusto Ribeiro de Almeida ������������������������������������������������������������������������15



Cooperação para o desenvolvimento e cooperação Sul-Sul: a perspectiva do Brasil Carlos R. S. Milani e Rubens de S. Duarte��������������������������������������53



A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada Adriana Erthal Abdenur e João Marcos Rampini������������������������������83



Política externa brasileira e a coalizão IBAS: comércio e inserção internacional Adriana Schor e Janina Onuki����������������������������������������������������� 115



Brasil, China e a cooperação Sul-Sul Marcos Cordeiro Pires, Luís Antonio Paulino e Aline Tedeschi da Cunha������������������������������������������������������������������ 141



O Brasil, a Turquia e o Irã: dimensões de cooperação estratégica Cristina Soreanu Pecequilo����������������������������������������������������������� 181



O Brasil, a América do Sul e a cooperação Sul-Sul Walter Antonio Desiderá Neto������������������������������������������������������ 213

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Expertise, disputa política ou solidariedade? Variações sobre o engajamento da sociedade civil brasileira na cooperação Sul-Sul Gonzalo Berrón e Maria Brant����������������������������������������������������� 253



Comércio, investimentos e negociações internacionais: uma breve análise das relações econômicas entre o Brasil e os países em desenvolvimento nas últimas décadas José Luiz Pimenta Junior������������������������������������������������������������� 287



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Agricultura, comércio internacional e cooperação Sul-Sul: o contencioso do algodão Brasil-EUA Carlos Henrique Canesin e Adriana Mesquita Corrêa Bueno��������� 317

APRESENTAÇÃO O livro Política Externa Brasileira, Cooperação Sul-Sul e Negociações Internacionais aborda, a partir de uma perspectivada temática focada no Brasil, suas características, motivações, desafios e possibilidades. A publicação é um dos frutos das atividades do Programa de Negociações Internacionais (Pronint) do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Universidade Estadual Paulista (IEEI-Unesp) e pretende contribuir para o debate sobre as novas dimensões assumidas pela cooperação Sul-Sul nos anos 2000 em um sistema internacional em transformação. No Brasil, trata-se de um dos assuntos de política externa que mais tem sido debatido e uma das razões para o renovado interesse é que envolve aspectos pragmáticos e normativos da ação internacional do Estado. O questionamento da centralidade dos Estados Unidos, a situação política e econômica da União Europeia (e também dos Estados Unidos), principalmente depois da crise financeira de 2008, a emergência da China como um país capaz de alterar equilíbrios no sistema internacional, as mudanças no eixo dinâmico da economia internacional, a percepção, em vários países, de que os resultados sociais das políticas econômicas ortodoxas e liberalizantes foram negativos, são alguns dos elementos que recolocam, em um contexto aparentemente mais favorável, se comparado com os anos 1980 e 1990, a necessidade de mudanças nas formas e modalidades de governança internacional. No período de 1950 a 1970, sendo a Conferência Afro-Asiática de Bandung de 1955 (que neste ano de 2015 comemora 60 anos) um marco relevante, a cooperação Sul-Sul tinha uma dimensão de resistência à forma como o mundo estava organizado. Nos anos 2000, o elemento de crítica à ordem internacional estabelecida 7

pelas potências ocidentais continua presente em alguns dos movimentos e instituições e o fortalecimento político e econômico de países em desenvolvimento, entre eles o Brasil, traz substratos mais sólidos para ampliação das iniciativas de cooperação Sul-Sul. Nesse contexto, ressaltamos alguns dos questionamentos que motivaram o presente livro: Qual o papel da cooperação Sul-Sul na política externa brasileira? Como os atores domésticos veem a cooperação Sul-Sul? Como os processos de integração e cooperação regional na América do Sul se articulam com as relações Sul-Sul? Como definir a cooperação Sul-Sul em um sistema internacional em transformação, em que dinâmicas de diferenciação entre os países em desenvolvimento se fazem presentes? Existe hoje uma agenda Sul-Sul propositiva e qual o papel do Brasil na sua conformação? Quais são os temas e questões em que um encaminhamento Sul-Sul pode trazer perspectivas inovadoras para o desenvolvimento econômico e social? Em termos de relações com países e regiões específicas, quais são as interações centrais na estratégia de cooperação Sul-Sul da política externa brasileira? Considerando essas questões, o livro está organizado em dez capítulos. O primeiro, intitulado “As diferentes dimensões da cooperação Sul-Sul na política externa brasileira”, de autoria de Haroldo Ramanzini Júnior, Marcelo Passini Mariano e Rafael Augusto Ribeiro de Almeida, busca apresentar as características distintivas da cooperação Sul-Sul da política externa brasileira nos anos 2000. Os autores consideram que a partir de 2003, inicia-se um processo de redefinição da concepção de cooperação Sul-Sul sustentada por novas ações e práticas. O segundo capítulo, intitulado “Cooperação para o desenvolvimento e cooperação Sul-Sul: a perspectiva do Brasil”, de autoria de Carlos Milani e Rubens Duarte, apresenta sofisticada avaliação sobre a cooperação Sul-Sul na política externa brasileira considerando a sua distribuição geográfica, os ministérios envolvidos, as áreas de atuação, bem como aspectos relativos ao aparato regulatório doméstico, particularmente sobre as possíveis consequências da falta de um marco jurídico ou de um órgão capaz de promover a coordenação dos atores que atuam na agenda de cooperação internacional para o desenvolvimento. 8

O terceiro capítulo, intitulado “A cooperação para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada”, de autoria de Adriana Erthal Abdenur e João Marcos Rampini, aborda as iniciativas de cooperação para o desenvolvimento no contexto das relações entre o Brasil e os dois países africanos. A partir da análise dos casos, inclusive na dimensão das suas diferenças, os autores chamam atenção para aspectos relevantes constitutivos da cooperação para o desenvolvimento na política externa brasileira, além de identificar as demandas dos países na cooperação com o Brasil em áreas como agricultura, educação, saúde e os projetos introduzidos. O quarto capítulo, intitulado “Política externa brasileira e a coalizão IBAS: comércio e inserção internacional”, de autoria de Adriana Schor e Janina Onuki, apresenta pertinente estudo sobre essa coalizão, considerando o seu potencial de comércio. Partindo da evolução comercial no interior do grupo, questionam-se visões que colocam essa dimensão em segundo plano, demonstrando que de fato existe complementaridade entre as economias do Brasil, Índia e África do Sul, concluindo que a cooperação no interior do grupo ganharia substantivamente com o aprofundamento do comércio. O quinto capítulo, intitulado “Brasil, China e a cooperação Sul-Sul”, de autoria de Marcos Cordeiro Pires, Luís Antonio Paulino e Aline Tedeschi da Cunha, aborda de modo sistemático os elementos da relação entre o Brasil e a China e sua articulação com posições e agendas Sul-Sul. Paralelamente ao crescente peso mundial dos dois países como global players, o status de parceria estratégica global estabelecido a partir de 2012 acrescenta à relação bilateral especial significado no âmbito da cooperação Sul-Sul. O sexto capítulo, intitulado “O Brasil, a Turquia e o Irã: dimensões de cooperação estratégica”, de autoria de Cristina Soreanu Pecequilo, aborda os fundamentos da política externa brasileira em relação a países do Oriente Médio e o novo foco dos anos 2000, em que o país retoma uma projeção nessa região iniciada na década de 1970, com componentes geopolíticos e geoeconômicos. A partir dessa retrospectiva, o capítulo faz uma análise sistemática sobre o acordo de Teerã de 2010 e suas consequências, inclusive, do ponto de vista das relações Sul-Sul. 9

O sétimo capítulo, intitulado “O Brasil, América do Sul e a cooperação Sul-Sul”, de autoria de Walter Antonio Desiderá Neto, discute de modo original a atuação do Mercosul como coalizão internacional, com uma agenda Sul-Sul em questões substantivas de política internacional e de cooperação para o desenvolvimento. Articuladamente com a inserção externa do bloco, a análise incorpora a atuação do Brasil junto aos seus parceiros no interior do Mercosul, numa dimensão intrarregional da cooperação para o desenvolvimento. O oitavo capítulo, intitulado “Expertise, disputa política ou solidariedade? Variações sobre o engajamento da sociedade civil brasileira na cooperação Sul-Sul”, de autoria de Gonzalo Berrón e Maria Brant, traz relevante contribuição para o entendimento das formas e motivações do engajamento da sociedade civil e movimentos sociais na cooperação Sul-Sul. Em termos de envolvimento de atores sociais na cooperação internacional para o desenvolvimento promovida pelo Brasil, destacam-se a atuação do MST-Via Campesina e do Instituto de Cooperação da CUT. O nono capítulo, intitulado “Comércio, investimentos e negociações internacionais: uma breve análise das relações econômicas entre o Brasil e países em desenvolvimento nas últimas décadas”, de autoria de José Luiz Pimenta Junior, trata de pesquisa cuidadosa sobre a relação comercial do Brasil a partir dos eixos associados ao comércio, aos investimentos e às negociações internacionais. Nessa perspectiva, dá-se destaque às iniciativas governamentais e de setores empresariais. O décimo capítulo, intitulado “Agricultura, comércio internacional e cooperação Sul-Sul: o contencioso do algodão BrasilEUA”, de autoria de Carlos Henrique Canesin e Adriana Mesquita Corrêa Bueno, demonstra de modo instigante como o Brasil utilizou o contencioso do algodão da OMC contra os Estados Unidos para estabelecer ligações entre o sistema multilateral de comércio e o sistema de cooperação internacional para o desenvolvimento, especificamente em sua vertente de cooperação técnica Sul-Sul. Como é possível observar, as temáticas abordadas nos capítulos envolvem questões de relevância acadêmica e política. Gostaríamos 10

de agradecer o apoio fundamental da Fundação Friedrich Ebert (FES) e do selo Cultura Acadêmica, que tornaram possível a publicação do livro. Agradecemos também Adalton Oliveira, assessor de Projetos do IEEI-UNESP, pelo apoio no trabalho de edição e revisão. O livro tem como fundamento intelectual a colaboração dos autores que escreveram os dez capítulos que o compõem. Nesse momento, com a sua publicação, gostaríamos de uma vez mais agradecer o apoio e a confiança no projeto. Haroldo Ramanzini Júnior e Luis Fernando Ayerbe

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AS DIFERENTES DIMENSÕES DA COOPERAÇÃO SUL-SUL NA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA Haroldo Ramanzini Júnior* Marcelo Passini Mariano** Rafael Augusto Ribeiro de Almeida***

Introdução O objetivo deste capítulo é compreender a cooperação Sul-Sul na política externa brasileira a partir dos anos 2000, tendo em conta a nova dimensão que o fenômeno assumiu em razão das novas condições do sistema internacional e das modificações políticas internas. Para isso, serão também considerados os antecedentes históricos, desde os anos 1960 até o final de 1990, de modo a edificar e melhor identificar o sentido de transformação ocorrido nos tempos atuais. O argumento central deste capítulo é que com a mudança na composição das elites políticas no núcleo do poder * Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Membro do Programa de Negociações Internacionais (Pronint) do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Unesp (IEEI-Unesp). ** Professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e Coordenador do Laboratório de Novas Tecnologias de Pesquisa em Relações Internacionais (Lantri – FCHS / Unesp). *** Bacharel em Relações Internacionais pela Unesp e Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp/ Unicamp/PUC-SP).

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decisório brasileiro, a partir de 2003, inicia-se um processo de redefinição da concepção de cooperação Sul-Sul, sustentada por novas práticas políticas, que tem por finalidade redefinir as linhas gerais de condução da política externa e justificar as decisões tomadas. O fortalecimento político e econômico dos países em desenvolvimento nos anos 2000 traz substratos mais sólidos para ampliação das iniciativas de cooperação Sul-Sul1. Para o Brasil, contar com apoio de outros países e criar mecanismos de diálogo e cooperação são questões relevantes para melhorar sua projeção relativa no sistema internacional. Os esforços para compatibilizar os interesses do país no mundo com as necessidades de desenvolvimento nacional passam a ter na relação Sul-Sul um eixo de articulação central. Por isso, uma das questões que buscaremos abordar é se, a partir do início do governo de Lula da Silva, em 2003, a cooperação Sul-Sul se torna um elemento estruturante da política externa brasileira contemporânea. Nesse período, o Brasil se colocou como ator capaz de contribuir para o desenvolvimento dos países do Sul e como país interessado em influenciar a dinâmica do sistema internacional. A inserção do país na agenda de cooperação para o desenvolvimento internacional é sintomática desse processo. Ainda que se possa debater a questão da escala e do resultado das ações empreendidas, em termos de projeção internacional é um aspecto inovador, ao menos na dimensão adquirida (Menezes; Ribeiro, 2011; Inoue; Vaz, 2012). O fortalecimento da inserção no eixo da cooperação Sul-Sul é um elemento argumentativo importante na definição das preferências nacionais e de reafirmação da identidade brasileira no mundo, tornando a ideia de Sul um fator central para a formulação da política exterior do Brasil. Além dos elementos discursivos há, também, uma dimensão importante de pragmatismo na forma como o Brasil visualiza a relação Sul-Sul, fruto de determinadas fragilidades estruturais do país. Como há interesse em aumentar a capacidade de influência e diminuir a vulnerabilidade no âmbito externo,

é importante ter o apoio de outros países para que esses objetivos sejam alcançados. A participação e a construção de mecanismos de diálogo e colaboração buscam criar ou fortalecer laços de solidariedade entre os países. Como consequência há um maior incentivo para aprofundar as relações de interdependência entre as partes. Ao mesmo tempo, esses espaços de interação mais intensa podem criar incentivos sociais que alimentem a cooperação e influenciem os padrões de comportamento dos parceiros. Trata-se, portanto, de uma perspectiva de fortalecimento nacional, de suas empresas, de aumento do papel do Brasil no mundo, que busca benefícios gerais para os países em desenvolvimento, mas, também fortalece a sua própria posição, a fim de melhorar sua capacidade de negociação com os países desenvolvidos, qualificar-se como um exportador de capital, tecnologia, serviços, práticas de políticas públicas, além de importante exportador de commodities agrícolas e minerais. Do ponto de vista da sua construção, a cooperação Sul-Sul se processa a partir das condições objetivas da economia e da política internacional, além de uma intensa atividade discursiva. Sua realização se dá por meio do estímulo a novas práticas políticas em torno de ideias, arranjos institucionais, normas, regras e estabelecimento de padrões de comportamento. Seu significado é socialmente construído e produto da experimentação de ações específicas dos Estados e de outros atores internacionais em interação. A cooperação Sul-Sul, enquanto ideia que orienta a inserção internacional do Brasil busca reforçar elementos formadores de uma identidade coletiva que possam: a) promover valores, como o direito ao desenvolvimento com justiça social ou a necessidade de resistir às pressões dos países desenvolvidos; b) resgatar o passado de dificuldades impostas pelo sistema internacional aos Estados menos desenvolvidos e as consequentes limitações para diminuição da pobreza e melhoria da qualidade de vida de suas populações; c) influenciar na definição de normas internacionais que indiquem melhores condições para participação dos Estados menos poderosos; d) aumentar a capacidade de negociação e promoção dos interesses dos países do Sul em relação aos do Norte por intermédio de estratégias variadas de cooperação. Está nessa

Como afirmam Najam e Thrasher (2012, p.3) “os acontecimentos recentes e tendências globais começaram a mudar a forma como os países vêem o papel do Sul em seu próprio desenvolvimento”. 1

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concepção a tentativa de construção de expectativas coletivas de comportamento que possam levar, no curto prazo, ao atendimento de interesses de setores domésticos importantes e, no médio e longo prazo, possam ampliar a capacidade do Estado brasileiro de influenciar o funcionamento do sistema internacional.

fato de a noção de Sul servir como uma estratégia de mobilização baseada na crítica ao sistema internacional contemporâneo. Com isso, a noção de Sul informa tanto uma crítica à ordem internacional vigente, às desigualdades, à forma como foram desenhados, aos objetivos e prioridades dos regimes internacionais, quanto um ponto de encontro para o ativismo e certa solidariedade entre os países em desenvolvimento. O Sul é uma categoria que tem certa capacidade de atração entre os países em desenvolvimento, sem que implique necessariamente uma unidade absoluta entre eles. Alguns esforços de cooperação, de construção de confiança e de criação de instituições servem de base para formas de interação que visam contornar determinadas pressões estruturais dos países desenvolvidos, além de espelhar novas dinâmicas de cooperação na perspectiva de países que têm importantes desafios domésticos de redução da pobreza e inclusão social a serem superados. Fenômenos e instituições distintas como as formas de cooperação para o desenvolvimento Sul-Sul, a cooperação no âmbito da saúde infantil representada pelo programa brasileiro de Bancos de Leite Materno, o Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem), o Fundo de Desenvolvimento China-África, a atuação da Petrocaribe, a formação do Banco de Desenvolvimento dos BRICS e a constituição do Arranjo Contingente de Reservas podem ser pensados nessa perspectiva. São ações que tendem a ter como uma de suas consequências o fortalecimento de normas internacionais associadas ao desenvolvimento e às questões sociais. Trazem também novos desafios, normativos e empíricos, não apenas quanto às possibilidades de adensar relações entre nações geograficamente distantes e por vezes com visões de mundo atreladas a universos histórico-culturais distintos, mas também de estruturar modalidades de interação que não reproduzam assimetrias de poder. A noção de cooperação Sul-Sul apresenta relação com a dimensão da ação estatal. Assim, os Estados são agentes importantes para impulsionar e manter as instituições criadas para esse diálogo. Apesar disso, há hoje análises que, a partir da ideia de “Sul Global” redefinem o foco do âmbito interestatal para o transnacional. Com

A noção de cooperação Sul-Sul O significado da cooperação Sul-Sul é controverso, tanto do ponto de vista político, quanto do ponto de vista acadêmico. O seu objetivo, a periodização histórica do seu surgimento, a sua funcionalidade e os atores constitutivos são questões que se apresentam no debate. Mesmo assim é razoavelmente consensual a percepção que a noção de Sul não se restringe a uma posição geográfica ou hemisférica. O termo envolve a caracterização, a cooperação ou a relação entre países que têm desafios sociais, políticos e econômicos mais ou menos similares, além de trajetórias históricas de passados coloniais e de exploração. A noção é utilizada de modo relacional, a fim de diferenciar os países em desenvolvimento, do Sul, dos países desenvolvidos do Norte. Funciona para os países em desenvolvimento como símbolo de mobilização e expressão ideológica do leque de desafios comuns relacionados ao desenvolvimento (Alden; Morphet; Vieira, 2010). Alden, Morphet e Vieira (2010) sumarizam seis aspectos que formariam a identidade do Sul. O primeiro se refere à dimensão relacional, já que a existência de um Sul presume a existência de um Norte, em relação ao qual o Sul tem uma relação de dependência. O segundo elemento é que essa identidade é constantemente reafirmada mediante a realização de encontros regulares ou formação de coalizões e agrupamentos políticos entre os países do Sul, como, por exemplo, o Movimento dos Não Alinhados, o G-77, entre outros. O terceiro, é que essa identidade tem na sua matriz a experiência compartilhada do colonialismo e do imperialismo entre os países do Sul. O quarto é que essa identidade envolve dilemas em torno da questão da soberania. O quinto são os dilemas do desenvolvimento econômico. Por fim, o sexto aspecto, envolve o 16

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isso, ganha destaque a ação de movimentos sociais transnacionais, de grupos da sociedade civil e de redes de ativistas. A relação que Hardt (2002) estabelece entre o Fórum Social Mundial, cuja primeira reunião ocorreu em Porto Alegre, em 2001, e a Conferência de Bandung de 1955, capta essa mudança de perspectiva presente em algumas análises sobre o Sul: “enquanto Bandung foi conduzida por um pequeno grupo de líderes políticos nacionais, Porto Alegre foi povoada por uma multidão e uma rede de movimentos. Essa multiplicidade de protagonistas é a grande novidade do Fórum Social Mundial e a esperança para o futuro”. O horizonte transformador do Sul continua presente, mesmo na dimensão representada pela noção de “Sul Global”. A ampliação dos atores constitutivos do Sul modificou-se em função das transformações produtivas, tecnológicas, ambientais, sociais, demográficas, além das mudanças nas capacidades políticas e econômicas dos principais Estados em ascensão. No entanto, o núcleo da cooperação Sul-Sul permanece o mesmo, ou seja, a permanência da necessidade de se alcançar o desenvolvimento em um mundo organizado de forma a privilegiar a manutenção do padrão de vida dos países que já são desenvolvidos. Como afirma Hurrell (2013, p.217) “especialmente após a crise financeira (de 2008) e a criação do G-20 Financeiro, estamos vendo uma série de dinâmicas e negociações entre o Norte e o Sul sobre a natureza e a agenda da governança global”. É possível afirmar que o argumento que sustenta a necessidade de cooperação entre os países do Sul é a possibilidade de estabelecer um sistema internacional que seja menos excludente, no qual a melhoria das condições de vida de um grupo de países não implique necessariamente no agravamento dos indicadores econômicos e sociais de outros. Portanto, a relação de causalidade do argumento é de que o sistema internacional historicamente se organiza de forma a manter a desigualdade entre os Estados em favor dos mais ricos e poderosos e a limitar as condições materiais de grande parte da população mundial. Desta forma, a cooperação entre os países do Sul surge como um importante vetor para o encaminhamento desse dilema. 18

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Antecedentes históricos da cooperação Sul-Sul A partir da Guerra Fria (1945-1989) observamos a emergência de formas mais articuladas e de espaços institucionais para a cooperação Sul-Sul. O movimento de descolonização asiático e africano, o intervencionismo das grandes potências do período, a disputa ideológica entre Estados Unidos e União Soviética e a forma de organização dos regimes internacionais estabeleciam o ambiente normativo no qual se formaram boa parte dos movimentos e organizações de cooperação Sul-Sul. Por isso, o peso de temas como o anticolonialismo, o não alinhamento e o anti-imperialismo nos movimentos do período ganharam força na agenda coletiva dos países, apesar das suas diferenças. A Conferência Afro-Asiática de Bandung2 (1955) é considerada um marco do ponto de vista da organização da cooperação Sul-Sul. Um dos objetivos era constituir um novo eixo estratégico no ambiente internacional, Norte-Sul, para além do eixo ideológico Leste-Oeste e encorajar maior cooperação entre os países da África e da Ásia. De acordo com Leite (2011, p.57) “a Conferência de Bandung foi responsável pela formação de uma primeira identidade própria dos povos do Terceiro Mundo, que não se confundia com a plataforma ideológica quer do bloco capitalista quer do bloco socialista”. Assim, marca o início da aproximação política dos países do Sul, que teve como importantes referências institucionais, nas décadas seguintes, a criação do Movimento dos NãoAlinhados, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), a formação do Grupo dos 77, a proposta de estabelecimento de uma Nova Ordem Econômica Internacional, entre outras. Essas instituições tiveram papel de reforço do ponto de vista da afirmação de uma agenda e identidade coletiva entre os países em desenvolvimento. Particularmente nas Participaram da Conferência, 29 países africanos e asiáticos: Afeganistão, Arábia Saudita, Mianmar, Camboja, Ceilão (futuro Sri Lanka), China, Costa de Ouro (futura Gana), Egito, Etiópia, Filipinas, Índia, Indonésia, Iraque, Irã, Japão, Jordânia, Laos, Líbano, Libéria, Líbia, Nepal, Paquistão, Síria, Sudão, Tailândia, Turquia, Vietnã do Norte, Vietnã do Sul, Iêmen. 2

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reuniões da Unctad, do GATT, e do G-77, houve esforço significativo no sentido de demonstrar que a questão do desenvolvimento constituía problema internacional vinculado com os padrões de relacionamento Norte-Sul. A discussão em torno de uma Nova Ordem Econômica Internacional, puxada pelos países do Sul e parcialmente incorporada pelas Nações Unidas por meio de resoluções específicas nos anos 1970, operou em perspectiva similar. Embora esse movimento tenha arrefecido nas décadas seguintes, tinha uma dimensão reformista e contribuiu para o surgimento do Sistema Geral de Preferências e para a possibilidade de tratamento especial e diferenciado para os países em desenvolvimento nas negociações econômicas com países desenvolvidos. É interessante observar a relação paradoxal do Brasil com esses movimentos e instituições do Sul. Afinal, o país está englobado nesse conceito, porém não deixa de reafirmar constantemente em sua ação externa o vínculo que possui com o Ocidente. O próprio fato de estar no continente americano, sob o guarda-chuva institucional de instituições como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar), lideradas pelos Estados Unidos, evidenciam esse elemento de ambigüidade. Apesar disso, o Brasil se identifica fortemente com o Sul, por causa de sua determinação de alcançar o desenvolvimento nacional e de adquirir maior autonomia em relação aos países centrais. Além disso, seus elementos norteadores, tais como, autodeterminação, não intervenção (remodelado para não indiferença nos anos 2000), pacifismo e multilateralismo, são funcionais para uma aproximação com o Sul. A descolonização da Ásia e da África foi fundamental para impulsionar esse tipo de cooperação, pois houve um grande aumento do número de países enquadrados no conceito de Sul. Ademais, o ocidentalismo, apontado acima, que caracteriza não só o Brasil, mas também os demais países latino-americanos, e as contingências internas e externas advindas da Guerra Fria contribuíram para que a América Latina tivesse uma participação inicial muito tímida nesses concertos do Sul, sobretudo, naqueles com conotação política mais expressiva, como é o caso do Movimento dos Não Alinhados.

É a partir da formação da Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento e Comércio (Unctad), em 1964, que a América Latina inicia uma participação mais efetiva nesse tipo de diálogo. Na I Unctad temos a formação do chamado G-77 focado na promoção e cooperação Sul-Sul. A criação da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Unido), em 1966, também contribuiu para impulsionar esse relacionamento (Leite, 2011). Ou seja, o foco maior do Brasil e da maior parte dos países da América Latina nesse período concentrava-se na questão da industrialização e do comércio internacional. Dos esforços de cooperação iniciados nos anos 1950 houve a revitalização da ideia de autonomia no sistema internacional, intensificada nos anos seguintes em função do processo de descolonização em curso na Ásia e na África. A autonomia relacionava-se com a ideia de independência nacional e de não enquadramento às diretrizes ideológicas da Guerra Fria. Permanece até hoje como elemento formador da identidade de política externa e princípio regulador da cooperação Sul-Sul, ainda que, como vimos anteriormente, a posição do Brasil e dos países da América Latina, em relação às diretrizes ideológicas da Guerra Fria e da descolonização é ambígua durante parte do período, fruto da diferente modalidade de descolonização se comparada com a maior parte dos países da África e da Ásia. Por isso, do ponto de vista da ação concreta dos países não havia e não há convergência absoluta do ponto de vista operacional da autonomia. Alguns países tendem a operacionalizá-la a partir da diversificação de parceiros internacionais, de balanceamento ou até de alinhamento aos países desenvolvidos. Isso também ocorre em relação à cooperação Sul-Sul. De todo modo, para os países em desenvolvimento, a autonomia na ação internacional é algo a ser reafirmado constantemente tanto no discurso quanto na prática. Isso difere da situação dos países desenvolvidos, onde o peso econômico, político ou militar já garante, por si, elevado grau de autonomia. A partir dos anos 1980, se intensifica o processo, que se estende até a atualidade, de diferenciação entre os países do Sul. Ao mesmo tempo em que alguns países passam por melhoras significati-

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vas do ponto de vista do crescimento econômico e da industrialização, outros continuam a enfrentar quadro de pobreza extrema e instabilidade política. As crises de dívida externa em muitos países em desenvolvimento nos anos 1980 e 1990 e situações de instabilidade financeira e cambial geraram em muitos países a necessidade de condicionar a política externa a partir de questões ou necessidades econômicas de curto prazo. Nisso, foi priorizada a relação com os países desenvolvidos e com instituições financeiras internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI). A emergência dos chamados Tigres Asiáticos nos anos 1980, com aparentes ganhos relacionados com políticas de abertura de mercados e liberalização comercial, contribuiu para a adoção de políticas neoliberais em outros países em desenvolvimento que se intensificou nos anos 1990, ainda que de forma desigual, já que a intensidade da adoção de políticas neoliberais variou de modo significativo (Velasco e Cruz, 2007). Mesmo assim, nesse contexto, a coordenação política entre esses países perdeu centralidade, devido à importância atribuída às agendas econômicas e de estabilidade doméstica, inclusive, institucional, já que muitos passavam também por processos de redemocratização. Esse é também um período de transformações no sistema internacional acarretadas pelo fim da Guerra Fria. A cooperação Sul-Sul perdeu densidade, muito em função de contextos internacionais e domésticos limitadores do ponto de vista normativo e material, situação que permaneceu até o início dos anos 2000.

de afirmação de sua autonomia. Para o Brasil, a lógica da cooperação Sul-Sul está presente em dois sentidos principais: 1) do fortalecimento do poder de barganha e da projeção internacional do país, 2) da reafirmação da sua identidade e da identidade coletiva do Sul. No período de 1960 a 1990, em determinados momentos ou situações, há predominância de um dos aspectos. Isso ajuda a entender as razões de o Brasil nunca ter aderido ao Movimento dos Países Não Alinhados (MNA), apesar das suas posições assertivas no G-77, nas reuniões da Unctad e do GATT que envolviam questões relativas à cooperação Sul-Sul ou a crítica ao ordenamento do sistema internacional. Nos anos 2000, os dois sentidos parecem se conectar gerando nova forma de inserção internacional, a partir do eixo Sul-Sul, incentivada por mudanças no equilíbrio do poder político e econômico internacional e por mudanças na política doméstica do país. A temática da cooperação Sul-Sul surge de modo mais evidente na política externa brasileira a partir dos anos 1960, com a Política Externa Independente dos governos de Jânio Quadros e João Goulart. Desde o início, a ideia de cooperação Sul-Sul está relacionada com a intenção de melhorar a capacidade de influência do país no sistema internacional e vincula-se com as noções de universalismo e globalismo da política externa brasileira (Pinheiro, 2004). No início dos anos 1960, com a tentativa de intensificação da cooperação Sul-Sul, a questão da disputa Leste-Oeste cede lugar ao conflito Norte-Sul como eixo condutor da política externa brasileira. Vale lembrar que a Operação Panamericana (OPA), marco da política externa do governo Kubitschek, ainda tinha nos Estados Unidos o eixo central de gravitação da ação internacional do país e seus limitados resultados tiveram papel importante no sentido de comprovar que os interesses da política externa dos Estados Unidos não coincidiam com parte das expectativas do Brasil. Com isso, fortaleceu-se a concepção, presente a partir da Política Externa Independente, de que a diversificação da ação internacional do país mediante o eixo Sul-Sul aumentaria o poder de barganha do país, inclusive na relação com os Estados Unidos.

O sentido da cooperação Sul-Sul na Política Externa Brasileira De Jânio Quadros a José Sarney (1960-1990) O sentido da cooperação Sul-Sul na política externa brasileira não pode ser entendido sem levar em consideração a situação do Brasil no mundo e sua condição de país em desenvolvimento, tendo relação com a noção de desenvolvimento nacional predominante em determinado período histórico ou governo e com o objetivo 22

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De acordo com Spektor (2014, p. 39), a partir de meados dos anos 1960, o Brasil passou de uma postura distante em relação a coalizões terceiro-mundistas como o Movimento dos Países Não Alinhados em direção a uma postura mais assertiva com o G-77, o Diálogo Norte-Sul, a Unctad e outras coalizões em foros multilaterais. De acordo com o autor “a operação tinha o objetivo de criar mecanismos para resistir ou ao menos mitigar a proliferação de normas tipicamente liberais de comércio, direitos humanos, meio-ambiente e não proliferação nuclear”. A partir do governo Jânio Quadros (1961), o Brasil viveu três anos de mudanças significativas nas prioridades, na efetivação e no quadro conceitual orientador de suas relações externas, que foram relativamente interrompidos a partir do golpe militar de 1964, e posteriormente retomados, já no fim dos anos 1960, e, principalmente, a partir dos anos 1970. De 1960 até 1964, foi intensa, nos marcos da Política Externa Independente, a participação brasileira em iniciativas internacionais que tinham como tema a superação do subdesenvolvimento. Fonseca Jr. (1998, p.363) considerou que:

Moçambique como representantes autênticos das populações desses territórios e, do mesmo modo, votou contra o apoio à independência de Guiné-Bissau na 28ª Assembleia Geral, de novembro de 1973. A aliança com Portugal era um passivo para a política do Brasil em relação aos países do Sul. Um exemplo concreto das consequências disso foi a disputa entre o Brasil e a Argentina, levada às Nações Unidas, sobre o desenvolvimento da usina hidrelétrica de Itaipu (Oliveira, 2005). A tese argentina obteve maioria dos votos, vencendo a brasileira. Mas o que chamou a atenção nessa votação foi o fato de os países africanos terem votado desfavoravelmente ao Brasil em decorrência da falta de apoio explícito brasileiro à independência das colônias portuguesas na África. De acordo com Oliveira (2005, p.153) nessa votação, “os países árabes também se posicionaram contrariamente ao Brasil por suas posições dúbias na questão palestina. E mais do que isso, os árabes e os africanos estavam orquestrando impor um embargo ao fornecimento de petróleo ao Brasil”. A partir de 1974, no âmbito da política externa do governo Geisel, intitulada de Pragmatismo Ecumênico e Responsável, o Brasil mudou sua posição sobre as colônias portuguesas na África. O país reconheceu a independência de Angola e o Movimento Popular para a Libertação de Angola como o representante do povo angolano, condenou Israel pela ocupação de territórios árabes por intermédio do uso da força e reconheceu a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) como representante do povo palestino. Além disso, reconheceu a República da Guiné-Bissau, estabeleceu relações com Angola e Moçambique e firmou o reconhecimento diplomático com a República Popular da China. Todos esses movimentos, inclusive a aproximação com a China, eram fundamentais no sentido de imprimir credibilidade e conectar mais efetivamente a atuação do país com agendas dos principais movimentos e instituições do Sul. Nos marcos da Política Externa Independente, sobretudo na visão de San Tiago Dantas e de Araújo Castro, havia um forte componente terceiro-mundista e de crítica às políticas das potências dominantes, ao “congelamento do poder mundial”. O objetivo

o período é de abertura universalista da política externa e de coleção de um acervo de relações bilaterais de amplo alcance [...] são estabelecidos ou renovados vínculos com os países africanos, amplia-se a presença no Oriente Médio e, mais importante, os laços com a América Latina ganham nova densidade.

A matriz dessa política incluía uma crítica ao status quo internacional e à forma como o tema do desenvolvimento era tratado. Do mesmo modo, enfatizava a relevância da cooperação Sul-Sul, como evidenciado nas posições do Brasil na Assembleia Geral das Nações Unidas em 1961 e 1962. Nos anos 1960 e parte dos anos 1970, o esforço de adensamento do diálogo e da cooperação com os países em desenvolvimento encontrava limites no apoio que o Brasil dava a Portugal, não condenando a recusa portuguesa em acatar o direito à independência de suas colônias. Nesse sentido, o Brasil votou contra a resolução da 27ª Assembleia Geral da ONU, em novembro de 1972, que proclamou os movimentos de libertação de Angola, Guiné-Bissau e 24

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principal era se posicionar de modo contrário às exigências de alinhamento e atingir certo grau de autonomia frente aos dois polos de poder da Guerra Fria, os Estados Unidos e a União Soviética. Buscava-se afirmar os interesses dos países em desenvolvimento como essencialmente diferentes daqueles das potências, explorar áreas de convergência com países que partilhavam com o Brasil a condição de subdesenvolvimento e intervir com posição própria no debate a respeito das grandes questões internacionais. Essa concepção esteve presente na atuação do Brasil na 2ª Conferência da Unctad, de 1968. Também na rejeição do argumento da irresponsabilidade dos países do Sul como razão para lhes negar acesso à tecnologia de ponta, levando a que o Brasil se recusasse, em 1968, a assinar o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) (Pinheiro, 2004). Nesse momento, o discurso terceiro-mundista da política externa é intenso, mas a capacidade de efetivação é reduzida, em parte, em função da situação de instabilidade doméstica. Isso é particularmente válido para o período da Política Externa Independente. Do ponto de vista do sistema internacional, havia possibilidades de novas práticas, como representada pela Unctad e pelo Movimento dos Não Alinhados. Desde o início dos anos 1960, a preocupação com o Terceiro Mundo na política externa brasileira era forte e o interesse pela América Latina derivou disso. Houve defesa do fortalecimento da relação do Brasil com os países subdesenvolvidos, principalmente os africanos, apesar do passivo da posição em relação às colônias portuguesas, e era forte o argumento de que a independência e a autodeterminação deveriam ser os princípios condutores do ordenamento internacional e constantemente reafirmados na participação do país nas instituições de cooperação Sul-Sul. No documento de instrução para a delegação do Brasil à Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento de 1964, afirma-se que para que se garanta a coerência com as atitudes anteriores do Brasil e com os princípios que vem defendendo, a delegação: deverá levar sempre suas iniciativas à consideração prévia do Grupo Informal Latino-Americano e, subsequentemente, do Grupo de países em desenvolvimento. Por meio desse duplo 26

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processo de decantação e confronto, estará a delegação melhor capacitada para apresentar recomendações e propostas consentâneas com a linha geral de pensamento dos países subdesenvolvidos, sem cujo apoio ou assentimento não teriam qualquer condição de êxito (Franco, 2008, p.301).

Nos anos 1970, a cooperação Sul-Sul adquire uma dimensão mais pragmática se comparada com os anos 1960, pois o forte crescimento econômico brasileiro e a necessidade do regime político ditatorial em manter o processo acelerado de industrialização estimulavam a articulação da sua política exterior com o modelo de desenvolvimento econômico que estava sendo colocado em prática. Assim, as ações externas brasileiras ganham maior funcionalidade às demandas domésticas e a diversificação de parcerias surgia como facilitação para atração de recursos econômicos e financeiros, assim como expansão de mercados para os produtos brasileiros. De acordo com Souto Maior (1996, p.340), o Pragmatismo Responsável impunha uma necessidade e uma consequência para a política externa brasileira. Em primeiro lugar, a indispensabilidade de uma aproximação política com os demais países em desenvolvimento – surgida no início da década de 1960 com a Política Externa Independente, mas desgastada após 1964. Por outro lado, o resultado seria a “aceitação de um certo grau de fricção com as grandes potências econômicas, principais beneficiárias da ordem internacional que se desejava modificar”. A aproximação política com os países em desenvolvimento ganhava nova dimensão em função do Brasil não ter mais o passivo do apoio ao colonialismo de Portugal no continente africano. Estamos sublinhando o peso atribuído pela Política Externa Independente e pelo Pragmatismo Responsável às relações SulSul. Mas, há diferenças importantes entre os dois projetos, principalmente no que se refere à relação com a Argentina e à América Latina. No período 1974-1978 há um acirramento significativo das divergências entre Buenos Aires e Brasília, muito em função das ideias de Geisel e de Silveira e do peso dos geopolíticos brasileiros. Já no período anterior, em torno do pensamento de San 27

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Tiago Dantas e de Araújo Castro, o universalismo brasileiro não se contrapunha à busca por aproximação e cooperação com o entorno geográfico. Quando a aproximação não acontece, deve-se a razões específicas, concretas, principalmente à instabilidade interna dos países. A região é considerada parte dos países subdesenvolvidos, portanto daqueles com os quais haveria uma comunidade de destino. O Pragmatismo Responsável coincide com a Política Externa Independente ao colocar o universalismo e o combate ao congelamento de poder no centro das preocupações, visando a projeção de poder, mas se diferencia exatamente na questão da relação com os vizinhos. Silveira situa essas relações como, ao menos em parte, contrapostas à busca pelo universalismo (Vigevani; Ramanzini Júnior, 2010). Contudo, do ponto de vista da cooperação Sul-Sul, tanto nos anos 1960, quanto nos anos 1970, a América Latina estava alinhada aos Estados Unidos do ponto de vista ideológico e político. Todo o movimento em relação à cooperação Sul-Sul está focado na ação nacional desarticulada de compromissos ou acordos regionais. A grande diferença que ocorre a partir de meados dos anos 2000 é que a região passa a ser mobilizada nos esforços do Brasil em relação à cooperação Sul-Sul. Na política externa brasileira, embora a cooperação Sul-Sul tenha um elemento de crítica à ordem internacional vigente, são limitadas as ações de deslegitimação da ordem. O foco principal nesse período é ampliar o espaço de manobra nacional, contribuir para o processo de industrialização e para a o fortalecimento de normas internacionais associadas ao desenvolvimento. De acordo com Saraiva Guerreiro (1981, p. 551), Ministro das Relações Exteriores do governo João Batista Figueiredo (1979-1985):

A cooperação Sul-Sul na década de 1980 sofre as influências das fortes transformações políticas do momento. No âmbito doméstico brasileiro, o período era de transição de um regime autoritário para um democrático e, no âmbito internacional, o mundo assistiu o acirramento das tensões da Guerra Fria, passando pelas modificações políticas do sistema soviético e pela queda do muro de Berlim em 1989, tendo início um novo ordenamento mundial marcado por fortes incertezas quanto ao seu futuro. Nesse sentido, o período é peculiar, tanto para entender as influências do ambiente interno quanto do externo sobre os elementos formadores das relações entre os países do Sul e as reações brasileiras diante de tantas mudanças. Ainda sob o regime militar, durante o governo de João Batista Figueiredo, as relações Sul-Sul apresentavam-se como fundamentais na orientação da sua inserção internacional. A perda gradativa da capacidade econômica, o forte endividamento externo e a maior atenção despendida para as questões internas, diante do processo de abertura política, tinham impacto sobre a condução da política externa e, em relação aos países do Sul, a condução externa se pautou em dar continuidade ao que já se havia alcançado durante o governo anterior, como as negociações com a China, iniciadas em 1974 e a intensificação das relações com os países africanos e do Oriente Médio. Apesar das fortes restrições domésticas, permanecia a tarefa de procurar manter as ligações do setor externo às necessidades econômicas nacionais, na tentativa de garantir mercados para os produtos brasileiros advindos do intenso processo de industrialização pelo qual o país havia passado. O ministro Saraiva Guerreiro (1979-1985) demonstra essas intenções brasileiras e as limitações nas quais o país se encontrava ao afirmar:

os países do Sul têm o maior interesse em preservar a estabilidade e credibilidade das instituições de Bretton Woods. O que delas se deseja é tão somente maior sensibilidade às condições e necessidades específicas do mundo em desenvolvimento, objetivo que nos parece perfeitamente alcançável em bases consensuais e em termos realistas, e sem qualquer prejuízo  – antes pelo contrário – para o bom e sadio funcionamento de tais organizações (Guerreiro, 1981, p. 551). 28

as formas de cooperação na linha Sul-Sul, de sua parte, têm sido das mais profícuas para a expansão das exportações brasileiras, em particular para a colocação de manufaturados. Apesar das dificuldades de hoje, não podemos perder o espaço conquistado nessa área. Há caminhos a explorar na armação de esquemas multilaterais entre países em desenvolvimento, na 29

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formação de empresas conjuntas, fórmulas de preferência, cooperação na área da tecnologia, modalidades de intercâmbio de produção, esquemas triangulares etc3.

Assim, na medida em que o regime militar vai chegando ao seu final, a capacidade de atuação externa também diminui, ajustando-se ao processo de transformação política nacional na expectativa das novas orientações que virão. A política externa durante o governo de José Sarney (19851990) buscou retomar a ideia de cooperação Sul-Sul enquanto elemento de orientação da ação externa do Brasil, principalmente, em relação às ações que extrapolam sua vizinhança. A gestão do Ministro de Relações Exteriores Abreu Sodré (1986-1990) foi importante nesse período, procurando recuperar os argumentos em torno das relações com os países do Sul, a fim de tentar estabelecer melhores condições de inserção internacional do país, agravada pela crise da dívida externa e pelo descontrole macroeconômico. Se por um lado, os anos 1980 ficaram marcados pela diminuição da importância internacional do Brasil, tendo em vista todos os elementos domésticos de instabilidade já mencionados, por outro lado, com a redemocratização do país, iniciou-se um período de redirecionamento de sua política externa, tanto para buscar apoio e legitimidade às mudanças políticas que estavam sendo executadas, quanto para melhorar as bases de sua atuação externa. A incorporação da integração regional e a parceria estratégica com a Argentina se firmavam como eixo central desse processo e, em relação às negociações extra-hemisféricas, a condução dos assuntos externos procurava maneiras de melhor resistir às pressões externas, apesar da baixa capacidade de influência no sistema internacional nesse período. Assim, intensifica-se a atividade discursiva em torno das relações Sul-Sul diante de um sistema internacional que não dava indí Palestra do Ministro de Estado das Relações Exteriores, Ramiro Saraiva Guerreiro, na Associação Comercial do Rio de Janeiro, em agosto de 1983, por ocasião da reunião da Confederação das Associações Comerciais. Resenha de Política Exterior do Brasil. no. 38, jul-ago-set de 1983. 3

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cios de fornecer condições apropriadas para o desenvolvimento nacional e que se encontrava diante do esgotamento do modelo de industrialização por substituição de importações. Apesar da maior liberdade para incorporar novos argumentos e explorar novas ideias, tendo em vista a democratização, havia uma situação de baixo poder de barganha por parte do Brasil e, consequentemente, sua capacidade de persuasão na cena internacional estava comprometida. A cooperação Sul-Sul assumia, portanto, papel importante para estabelecer uma estratégia de resistência às dificuldades da época, apesar da crescente deterioração das condições para sua operacionalização, tanto domésticas, quanto em virtude do encaminhamento do final da Guerra Fria e a emergência do ideário representado pelo Consenso de Washington. Desde os anos 1960 até meados dos 1980 o sistema internacional esteve claramente dividido em dois polos opostos e suas regras de funcionamento podiam ser vistas como muito rígidas e injustas às necessidades de desenvolvimento dos países mais pobres, o que fortalecia o argumento de necessidade de união desses países. Essa relação de oposição de interesses e visões de mundo com os países mais ricos facilitava o processo de autoidentificação dos países do Sul. No entanto, já a partir da segunda metade dos anos 1980, essa situação começa a se inverter, dificultando a construção discursiva em torno das relações Sul-Sul, na medida em que as referências de oposição vão se transformando e a incerteza vai tomando conta do funcionamento do sistema internacional. Alguns dos temas sensíveis para a atuação externa brasileira, como a questão do endividamento externo, as negociações comerciais multilaterais e o acesso às novas tecnologias, estimulavam reações diplomáticas que se pautavam na construção discursiva da cooperação Sul-Sul. O processo de diferenciação entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento parecia entrar em uma fase crítica em virtude de transformações estruturais que o sistema mundial vinha passando, principalmente, em relação à mudança de paradigma tecnológico que se tornava cada vez mais evidente. Em consequência, essa questão se incluía no corolário de medidas que deveriam pautar as relações com os países do Sul. O então ministro de Relações Exteriores Abreu Sodré apresenta essa preocupação ao declarar que: 31

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o mundo em desenvolvimento não pode ficar a margem da revolução tecnológica, sob pena de ver consolidado, em definitivo, e ampliado, o já tão largo fosso que o separa do mundo desenvolvido. Não nos resignaremos a ser espectadores passivos de uma nova divisão internacional do trabalho, com base na discriminação do acesso a tecnologia, e que cinda o mundo em dois universos distintos – o das sociedades pós-industriais e o das sociedades atrasadas e caudatárias4.

Nesse sentido, os acordos de cooperação em ciência e tecnologia com a China, assinados no ano de 1988, abarcaram desde a construção conjunta de dois satélites de identificação de recursos naturais, passando por colaboração em pesquisas de desenvolvimento tecnológico nas áreas de energia hidrelétrica e transportes, até a colaboração na produção de fármacos para controle de endemias5. Cabe lembrar que nesse período o Brasil também alcançou avanços em importantes tecnologias relacionadas ao enriquecimento de urânio, fibra ótica e semicondutores. Assim, esses acordos podem ser vistos como um dos elementos de maior continuidade da cooperação Sul-Sul na política externa brasileira, perpassando diversos governos, desde Geisel até os dias atuais. As negociações com a China, ao longo dos anos, não se limitaram às questões de trocas comerciais, mas também apresentaram um histórico de acordos envolvendo setores sensíveis e colaboração em projetos que, em geral, demandam muito tempo para apresentarem seus resultados, ligando um período governamental a outro. Isso nos permite concluir que a cooperação Sul-Sul mantém-se enquanto elemento formador do comportamento externo do Brasil na sua matriz universalista, mesmo nos anos 1990, com a eleição de Collor de Mello para ocupar a presidência da República, que dá início a uma década de baixa atividade discursiva no que se refere às relações com os países do Sul. Discurso pronunciado pelo Ministro Roberto de Abreu Sodré. no dia 10 de junho de 1987. Resenha de Política Exterior do Brasil, no. 53, abr-mai-jun de 1987. 4

O Estado de São Paulo. “Sarney assina oito acordos com a China”. 7 de julho de 1988. 5

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A Década de 1990 A cooperação Sul-Sul na política externa brasileira dos anos 1990 sofreu os impactos das fortes transformações no plano doméstico e internacional. Foi um período marcado por sua quase inexistência enquanto elemento relevante na orientação das ações externas do país. Internamente, o Brasil iniciou a década com a primeira eleição direta para presidente desde o fim do período militar. O governo Collor de Mello inicia seu mandato tendo como principais urgências a necessidade de reorganizar e estabilizar o sistema político, além de propiciar condições para o controle da inflação e enfrentar os problemas estruturais da economia nacional. Em relação ao sistema internacional, o país apresentava-se em uma situação de crescente fragilidade diante de um cenário marcado por fortes transformações e crescente expectativa de um reordenamento internacional centrado no poderio norte-americano. A convergência ideológica do governo com o receituário neoliberal orientou as escolhas em relação à inserção internacional do país, que se daria por meio da revisão do modelo de desenvolvimento brasileiro, pautando-se por menor influência do Estado nas relações econômicas, privatizações e abertura ao comércio mundial. A ideia geral nesse momento era de que o desenvolvimento nacional passaria pela maior interligação com o processo de globalização que se acentuava e, dessa forma, a clivagem entre Norte-Sul tornava-se cada vez menos importante. O trecho a seguir, do então Secretário Geral de Política Exterior, Embaixador Marcos Castrioto de Azambuja, em 1991, resume bem o entendimento em relação à cooperação Sul-Sul: A crise do endividamento, a crise financeira do Estado brasileiro e a estagnação na maioria dos países em desenvolvimento tomaram mais remota a cooperação Sul-Sul e a possibilidade de lançamento de novos projetos de aceleração do crescimento baseados em um intercâmbio crescente com os países em desenvolvimento. O investimento direto e o avan33

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ço tecnológico concentrados nas economias industrializadas passaram a ser os grandes determinantes do dinamismo do comércio internacional6.

O governo Collor de Mello partia do diagnóstico de que as escolhas eram limitadas e diante das mudanças mundiais o país deveria alinhar-se com o campo vitorioso da Guerra Fria, priorizando as relações com os países do chamado Primeiro Mundo em detrimento dos países não desenvolvidos. Inicialmente, a intenção da ação presidencial era de aprofundar os acordos com os EUA, no entanto esse projeto foi prejudicado tanto em razão de falta de apoio interno no Itamaraty e de setores domésticos, assim como a falta de condições políticas domésticas em razão do agravamento da crise política e econômica que levou ao processo de Impeachment e ao fim do seu governo (Oliveira, 2005). Essa nova orientação fez com que o relacionamento com a China, que vinha sendo um dos setores mais dinâmicos no campo da cooperação Sul-Sul da política exterior do Brasil, entrasse em um período de paralisia, sendo retomado com muita intensidade somente a partir de 1993, já durante a gestão do Presidente Itamar Franco e tendo à frente Celso Amorim, que assumia a pasta do Ministério das Relações Exteriores em substituição a Fernando Henrique Cardoso, que foi para o Ministério da Fazenda. Com isso, retomam-se os acordos nas áreas espacial, de energia, de mineração, científica e tecnológica com a China. Em alguns momentos desse breve período é possível verificar a retomada de referências explicitas à cooperação Sul-Sul, principalmente em relação aos acordos com os chineses, mas de forma geral, a década de 1990 foi marcada pela quase ausência de manifestações oficiais no discurso brasileiro em relação ao tema. Enquanto ideia, a cooperação entre os países em desenvolvimento parecia esvaziar-se de sentido, perdendo a capacidade de orientar as escolhas dos formuladores em relação ao processo de inserção internacional. O que resta neste momento são os resultados práticos dos relaciona O Novo Quadro da Economia Mundial. Palestra proferida no XI ENAEX. O Estado de São Paulo. 24 de dezembro de 1991. 6

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mentos criados e efetivados nas décadas anteriores. O momento era favorável ao estabelecimento de novas práticas políticas, mas agora guiadas por um forte consenso em torno dos ideais defendidos pelos países desenvolvidos, fazendo com que as expectativas de grande parte da sociedade se voltassem para uma maior aceitação dos termos nos quais o sistema internacional estava sendo reorganizado. As condições internacionais da época acabavam por desarticular um dos principais pilares da ideia de cooperação SulSul, que se fundamentava na necessidade de resistência à forma como o mundo estava organizado. Pelo contrário, as tendências eram de integração aos fluxos globais, sejam estes econômicos ou até mesmo culturais. Destacam-se como exemplos dessas dificuldades o encerramento da Rodada Uruguai e a criação da OMC, o processo de negociação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), as limitações institucionais do Mercosul, as negociações com a Europa, entre outros.

A nova dimensão nos anos 2000 O novo milênio trouxe consigo a percepção em vários países de que os resultados sociais das políticas econômicas ortodoxas e liberalizantes foram negativos, com crescimento da desigualdade e dificuldades para a defesa dos interesses dos países do Sul em um mundo ordenado por regras que ainda privilegiavam assimetricamente os países ricos. Diante disso, abre-se um cenário mais promissor para o resgate das principais noções que embasavam a ideia de cooperação Sul-Sul. As manifestações de rua de diversos setores da sociedade civil na cidade de Seattle, em 1999, como reação ao encontro da Organização Mundial do Comércio, e o agravamento da crise econômica na Argentina, entre os anos de 1999 e 2002, e suas consequências sociais, políticas e institucionais, podem ser vistos como exemplos de movimentos por mudanças. Junte-se a isso a emergência da China como um país capaz de alterar equilíbrios no sistema internacional e o questionamento da centralidade norte-americana. 35

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Diante desse novo contexto, a política externa brasileira inicia gradualmente o resgate de elementos do discurso da cooperação Sul-Sul, mesmo evitando, nesse momento, o argumento que ressaltaria as diferenças de interesses entre os países do Norte e do Sul. De qualquer forma, a simples referência às relações Sul-Sul vinha sendo evitada durante grande parte dos dois governos de Fernando Henrique Cardoso. O trecho a seguir, proferido pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em dezembro de 2000, demonstra esse início de mudança no discurso oficial:

Em discurso no encontro de Ministros de Relações Exteriores do G-15, em 20 de junho de 2000, o Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa, afirmou que: devemos prosseguir nos esforços de cooperação Sul-Sul. Nesse campo poderemos encontrar melhores oportunidades de crescimento das economias nacionais e dos fluxos de comércio dos países do G-15 do que a continuada dependência do mundo desenvolvido, onde as taxas de crescimento tendem a estagnar ou a aumentar marginalmente. Fala-se muito do tema da globalização. Globalização representa muitas coisas diferentes, segundo o ponto de vista e os interesses de quem analisa o fenômeno. Na realidade, nada mais é do que o novo nome pelo qual os países que sempre dominaram o conteúdo e as prioridades da agenda internacional continuam a fazer prevalecer as suas visões e os seus interesses9 [...].

a semelhança de aspirações torna Brasil e África do Sul parceiros naturais, dentro do espírito da cooperação Sul-Sul. Coincidimos no esforço de integração à economia global, ao procurarmos promover o aprimoramento do comércio e dos fluxos internacionais de capital7.

Com o início da gestão de Celso Lafer, que substituiu o Embaixador Luiz Felipe Lampreia à frente do Ministério de Relações Exteriores, juntamente com o Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa na Secretaria-Geral do Itamaraty, ao final do segundo governo Cardoso, intensifica-se o movimento de aumento da importância das relações Sul-Sul na formulação da política exterior do país. De acordo com Lafer8, os países em desenvolvimento: podem e precisam cooperar o máximo possível. Alguns têm feito isso, demonstrando que a cooperação Sul-Sul é possível e promissora […]. O Brasil se orgulha de seu desempenho, tanto como um país ativamente engajado na cooperação Sul-Sul quanto em iniciativas voltadas para a redução da dívida. 7

Discurso do Senhor Presidente da República no almoço em homenagem ao presidente da África do Sul Thabo Mbeki. Brasília, 13 de Dezembro de 2000. Resenha de Política Exterior do Brasil, número 87, 2o. Semestre de 2000, ano 27. Brasília, 2000. Pronunciamento do Professor Celso Lafer, Ministro de Estado das Relações Exteriores do Brasil, na III Conferência das Nações Unidas sobre Países Menos Desenvolvidos. Bruxelas, 14 de maio de 2001. Resenha de Política Exterior, No. 88, 1o. Semestre de 2001. Brasília, 2001. 8

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Em 2001, a articulação do Brasil com a Índia e a África do Sul em torno do contencioso das patentes farmacêuticas contra os Estado Unidos na OMC foi um ensaio importante de aproximação entre os três países que ganharia maior fôlego nos anos seguintes com o Ibas e o G-20 comercial. A partir de 2003 a cooperação Sul-Sul adquire novas dimensões e funcionalidades para a política externa brasileira (Pecequilo, 2008). De certa forma, é possível considerar que a partir de então, torna-se possível concretizar determinadas ações e objetivos que antes estavam concentrados fundamentalmente no nível do discurso. Nesse período há possibilidade de novas práticas e experiências no âmbito internacional, fruto de mudanças na distribuição de poder, do questionamento de determinados consensos normativos liberais e, também, da transformação na situação econômica e social do país. Nesse contexto, o discurso e a prática da cooperação Sul-Sul se tornam mais proativos e as ações mais amplas. X Reunião de Ministros de Relações Exteriores do G-15. Intervenção do Secretário-Geral do Ministério das Relações Exteriores, Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa. Cairo, 20 de junho de 2000. Resenha de Política Exterior do Brasil. No. 86, 1o. Semestre de 2000, Ano 27. Brasília, 2000. 9

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De acordo com Desiderá Neto (2014, p.111) a nova proposta de inserção internacional efetivada pelo Brasil a partir de 2003 “se diferenciou das anteriores por se basear em uma estratégia de cooperação Sul-Sul”. A principal diferença em relação aos períodos anteriores reside no fato de que a cooperação Sul-Sul ganhou maiores condições de operacionalização e se tornou o pano de fundo da ação brasileira nas esferas das relações bilaterais, inclusive com os Estados Unidos, e também no âmbito do regionalismo e do multilateralismo, assim como em ações específicas do Brasil na área de comércio internacional, defesa, meio-ambiente entre outras. A nova dimensão que a relação Sul-Sul assume na política externa brasileira pode ser dividida em duas fases: uma de 2003 a 2008 e a outra de 2009 a 2014. Na primeira fase, há transformações significativas na política doméstica com a retomada do crescimento econômico, controle do endividamento externo, ampliação do mercado doméstico, das reservas internacionais do país e dos fluxos comerciais. A valorização das commodities agrícolas e minerais no mercado internacional, muito em função do aumenta da demanda chinesa é algo que contribui para a manutenção dessa situação do ponto de vista econômico. Lima (2005, p. 5) considera que “padrões de desenvolvimento criam novas idéias, interesses e instituições e uma vez iniciado um deles é muito difícil mudar as instituições e os interesses”. Nessa primeira fase há redefinição das alianças e dos objetivos nacionais na arena internacional. É uma fase concentrada na atividade discursiva, na resistência às pressões internacionais e na negociação de novos acordos e coalizões internacionais a partir de uma perspectiva Sul-Sul. A formação do acordo Ibas, em junho de 2003, a contribuição decisiva do Brasil para a formação e para a manutenção do G-20 agrícola na Rodada Doha da OMC, da reunião Ministerial de Cancun de setembro de 2003 até a reunião ministerial de Genebra de julho de 2008, a resistência do Brasil às negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), a reativação da Rodada Sul-Sul no âmbito da Unctad em 2004 são, entre outros, episódios significativos dessa perspectiva. Na segunda fase, de 2009 a 2014, observa-se a consolidação da linha Sul-Sul da política externa, a partir da estrutura de ações

construídas anteriormente e dos efeitos da crise financeira internacional. Esta, por um lado, dificultou o crescimento interno, prejudicando as ações voltadas para o desenvolvimento do país. Por outro lado, imprimiu maior funcionalidade às ações brasileiras na esfera da política externa e abriu caminho para o fortalecimento de alianças com os principais países emergentes, onde a materialidade assumida pelos Brics, a partir de 2008, é um dos efeitos. A partir da crise mundial de 2008, segundo informação do Ministério das Relações Exteriores, “o Brasil percebeu, durante a crise financeira, o surgimento de uma oportunidade para a mudança na estrutura do sistema financeiro e econômico internacional” (MRE, 2010). O contexto pós – crise econômica mundial de 2008 colaborou para a consolidação do Sul na agenda prioritária brasileira. Comunicado do Itamaraty, de dezembro de 2010, sobre a conclusão da Rodada São Paulo10 (2004-2010) auxilia a entender melhor esse aspecto:

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O acordo deverá criar novas oportunidades de acesso a mercados para ampla gama de produtos comercializados entre países da África, Ásia e América Latina. Em 2009, quando as exportações totais brasileiras sofreram queda de quase 23% em relação ao ano anterior, como reflexo da crise financeira internacional, as exportações brasileiras para esses países (excluindo-se o Mercosul) cresceram mais de 18%. As importações totais desses países (também excluído o Mercosul) somaram, em 2009, quase US$ 1 trilhão. O Acordo da Rodada São Paulo potencializa as relações econômicas Sul-Sul e reafirma o interesse dos países em desenvolvimento em buscar oportunidades de liberalização comercial, especialmente na conjuntura de virtual paralisia da Rodada Doha na OMC em 2009 e 201011. 10

Enquanto a Rodada Doha ocorre na OMC e envolve tanto os países em desenvolvimento como os desenvolvidos; a Rodada São Paulo ocorreu na Unctad e envolveu somente países do Sul. Na Rodada da Unctad se buscou a criação de um Sistema Geral de Preferências Comerciais que facilitasse o fluxo de mercadorias entre os países em desenvolvimento. Os países que concluíram essa Rodada Sul-Sul da Unctad foram: Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai), Coreia do Sul, Cuba, Egito, Índia, Indonésia, Malásia e Marrocos. Comunicado do Itamaraty sobre a Conferência Ministerial da Rodada São Paulo ocorrida em 13 de dezembro de 2010. 11

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Mesmo sendo controversas a abrangência e a ambição dessa Rodada comercial Sul-Sul, que se iniciou em 2004 e foi concluída em 2010, não deixa de ser uma negociação relevante se considerarmos que a liberalização do comércio Sul-Sul por meio do Sistema Geral de Preferências Comerciais, no âmbito da Unctad, tem sido discutida desde o final dos anos de 1980. Essa segunda fase é concentrada na tentativa de obter ganhos concretos e de consolidação das preferências nacionais articuladas com a cooperação Sul-Sul. A consolidação do processo de internacionalização das empresas brasileiras, principalmente na América do Sul e na África, a participação ativa no G-20 financeiro (apesar do discurso contrário à falta de transparência de grupos informais de governança global), a atuação no âmbito dos Brics, o lançamento da ideia de “responsabilidade ao proteger”, a defesa de reformas institucionais e a crítica às políticas do FMI, a conclusão da Rodada Sul-Sul no âmbito da Unctad, a eleição do embaixador Roberto Azevedo para diretor-geral da OMC, a criação da Unasul e dos seus Conselhos Setoriais, com destaque para o Conselho de Defesa Sul-Americano, a atuação do Brasil na questão do programa nuclear iraniano são elementos constitutivos dessa fase. Nesse período fortalece-se também a ideia, relativamente nova, de articular a segurança nacional com a cooperação Sul-Sul, inclusive na área de defesa. De acordo com Abdenur e Souza Neto (2014, p.217) “o Ministério da Defesa passa a adotar o discurso da cooperação SulSul, enfatizando os laços com outros países em desenvolvimento”. O estreitamento de relações com os países do Atlântico Sul (principalmente após o anúncio de descoberta de reservas no pré-sal em 2007) e reativação da Zopacas, além da formação do Conselho de Defesa Sul-Americano evidenciam modalidades de conexão da cooperação Sul-Sul com a estratégia de defesa nacional. A partir da ênfase atribuída às relações Sul-Sul e das novas condições para a implementação da política externa, o Brasil passa a intervir com posição mais consistente no debate a respeito das grandes questões internacionais, inclusive, com ações no sentido de deslegitimação de aspectos da ordem internacional vigente, visível nas críticas feitas ao G-8 e ao FMI no período pós-crise de 2008,

nas ações em prol da reforma no Conselho de Segurança da ONU e no voto contrário às sanções ao Irã no Conselho de Segurança. Essa linha de atuação também está presente nas noções de “responsabilidade ao proteger”, “cooperação humanitária” e “não indiferença” que inseriram o país na agenda sobre os princípios normativos da ordem internacional. O Ex-Ministro de Relações Exteriores do governo Lula da Silva e Ex-Ministro da Defesa do governo Rousseff, Celso Amorim, revela os principais elementos dos argumentos governamentais em defesa do aprofundamento das relações Sul-Sul. Observe-se que não se trata de ações exclusivamente baseadas no altruísmo: “ninguém é ingênuo de achar que pode fazer política externa só na base da solidariedade (...) ao aprofundarmos o diálogo Sul-Sul, fizemos algo que não estava ocorrendo. Isso até fortaleceu o nosso diálogo com o Norte12”. A partir do governo Lula da Silva a relação com o continente africano assumiu centralidade na política externa brasileira. Embora haja diferenças importantes em relação a países específicos do continente, de modo geral, é possível considerar que a política externa brasileira para a África se estrutura em torno de quatro objetivos: apoio para suas iniciativas de política externa, internacionalização das empresas nacionais, mercados para a exportação e cooperação técnica. De acordo com White (2013, p.118):

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além do papel crescente do Brasil na África, fica cada vez mais evidente que o continente pode constituir parte crucial da próxima fase do desenvolvimento industrial do país, em setores como mineração, energia e agricultura, e mais amplamente nas suas aspirações políticas e econômicas globais.

Segundo Celso Amorim: há um elemento de solidariedade e tem que haver. Com a África tem que haver. Se não tivéssemos nenhuma razão comercial, mesmo assim devíamos ir lá. Mas temos razões Entrevista concedida pelo Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, ao jornal O Estado de São Paulo – Brasília. 11/02/2007. 12

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comerciais, e boas. Nossas exportações para lá estão crescendo e outro dia o presidente da Companhia Vale do Rio Doce, Roger Agnelli, concordou em como era importante investir na aproximação com a África13 [...].

Mendonça Júnior (2013, p.143) considera que no governo Lula da Silva, ao lado da ativa diplomacia presidencial, responsável pelo expressivo número de 23 países africanos visitados durante os oito anos de governo, “constatou-se também considerável número de acordos de cooperação técnica firmados, principalmente com países sem vínculo tradicional com o Brasil”. De acordo com estudo do Ipea (Ipea, 2010, p.36) entre 2003 e 2009, o governo brasileiro perdoou dívidas de Angola, Moçambique e doou 300 milhões de dólares em cooperação alimentar para Somália, Sudão, África do Sul, Saara Ocidental e membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Ainda de acordo com o estudo, a “África Subsaariana, bem como a América Latina e o Caribe, receberam 62% do volume total de recursos federais destinados à cooperação técnica, científica e tecnológica de 2005 a 2009, correspondendo a R$ 154,9 milhões” (Ipea, 2010, p.36). O chamado perdão de dívidas é um aspecto concreto que dá vazão ao discurso da cooperação Sul-Sul e está presente na ação brasileira no continente africano. Segundo o embaixador do Brasil no Gabão, Bruno Cobuccio, “vários países sérios já fizeram isso para alavancar novos negócios: você zera o passado para abrir novas perspectivas. Se o Brasil não fizer isso, está dando um tiro no pé, porque outros países vêm e fazem negócios14”. Observe-se que, mesmo nesse caso, o elemento de pragmatismo da política externa também está presente. O fato de as regras de financiamento do BNDES impedirem empréstimos a países que têm dívidas com o Brasil impõe a necessidade de lidar com a questão, de modo a viabilizar novos projetos. Entrevista concedida pelo Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, ao jornal O Estado de São Paulo – Brasília. 11/02/2007. 13

“Perdão a africanos impulsiona empresas”. Folha de S. Paulo, 11 de agosto de 2013, p. A22. 14

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A experiência e conhecimento que o Brasil dispõe no campo da agricultura desenvolvida nos trópicos, em condições de clima e de solo semelhantes às de outros países do hemisfério Sul é um ativo importante para os projetos de cooperação técnica do país. De acordo com Vimlendran Sharan, representante indiano nas Nações Unidas, “em sua busca para acabar com a fome, a Índia tornou o acesso à alimentação um direito legal, e vê o Brasil como um modelo a ser seguido15”. A internacionalização de programas sociais dos governos brasileiros e de modalidades de gestão pública democrática originárias no país, como o orçamento participativo, são aspectos simbólicos e normativos que subsidiam o discurso da cooperação Sul-Sul. Apenas no ano de 2012, a Embrapa teria recebido mais de 140 pedidos de financiamento de projetos para desenvolver a agricultura no continente africano16. Esse tipo de cooperação permite também a experimentação nas áreas que se ligam diretamente às questões de comércio internacional como a transferência de tecnologia na agricultura, saúde e medicamentos, práticas que reforçam os argumentos trabalhados nas organizações internacionais como na OMC. Exemplo disso foi a cooperação do Brasil com os países africanos produtores de algodão do grupo denominado Cotton-4: Benin, Burkina Faso, Chade e Mali e sua relação com os argumentos mobilizados no contencioso do algodão contra os Estados Unidos no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. A dimensão relativamente nova da cooperação descentralizada Sul-Sul é operacionalizada na política externa brasileira considerando também o objetivo de articulação e apoio político nas instâncias de cooperação multilateral como a ONU e a OMC. Como afirma Celso Amorim (2010, p.231): “a cooperação Sul-Sul é um instrumento diplomático que surge de um desejo autêntico por prestar solidariedade aos países mais pobres. Ao mesmo tempo, ela ajuda a expandir a participação do Brasil nas relações internacionais”. O “India sees Brazil as a “role model” in beating hunger”. Reuters 23/10/2014. Disponível em: http://in.reuters.com/article/2014/10/22/foundation-food-indiabrazil-idINKCN0IB2BR20141022. Acesso em: 23 out.2014. 15

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http://www.jornal.ceiri.com.br/internacionalizacao-da-embrapa/

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apoio decisivo dos países africanos para a eleição de José Graziano da Silva para a direção geral da FAO e de Roberto Azevedo para a direção geral da OMC são expressões concretas da dimensão de “expandir a participação do Brasil nas relações internacionais” orientadora da política brasileira em relação à cooperação Sul-Sul. As reuniões de Cúpula América do Sul – Países Árabes (Aspa), América do Sul – África (ASA), apesar das suas diferenças, demonstram esforço em conectar a América do Sul com as agendas de cooperação Sul-Sul, fato também observável na reunião dos países dos Brics com os chefes de Estado da América do Sul, em julho de 2014. Desiderá Neto (2014) identificou coordenação de posições sobre temas centrais da política internacional na ocasião das cúpulas semestrais do Mercosul, também nas reuniões de Cúpula do Ibas, da ASA e da Aspa. Em comparação com os períodos anteriores, atualmente há maior envolvimento da sociedade civil, seja de atores ligados ao agronegócio, ao setor de serviços, movimentos sociais, diferentes instâncias governamentais que passam a visualizar a relação SulSul como uma instância apta a promover interesses, ainda que por motivos diferentes. O volume organizado por Pinheiro e Milani (2012) que analisa a inserção de temáticas como educação, saúde e cultura na política externa brasileira evidencia que é na cooperação Sul-Sul que boa parte dessas agendas é colocada em prática. Podese pensar também que a cooperação Sul-Sul e os acordos realizados contribuem para a descentralização da política externa brasileira na medida em que a viabilização dos acordos firmados pela chancelaria em determinados temas necessariamente leva a um maior envolvimento dos atores domésticos setoriais.

e Celso Amorim (2003-2010), assim como de quase total irrelevância durante os anos 1990. Diante disso, este texto buscou compreender melhor o seu significado e capacidade de orientar o comportamento brasileiro no cenário internacional, visto que permanece forte debate a respeito da sua funcionalidade e alcance, sendo um dos assuntos relacionados à política externa mais discutidos no âmbito nacional, com visões muito variadas, havendo opiniões que vão em direção de um maior aprofundamento das relações Sul-Sul e outras que defendem a tese de que esse tipo de orientação política é equivocada e deve ter sua importância reduzida. Enquanto linha de atuação, a cooperação Sul-Sul busca responder a um conjunto de elementos que estruturam as relações internacionais do Brasil. Por um lado, a condição de país ainda não desenvolvido contrasta com as potencialidades representadas pelo seu território, população, recursos naturais e posicionamento espacial no globo e, portanto, a expectativa representada pela superação dessa condição está na raiz dos argumentos que buscam sustentar uma conduta externa orientada pela articulação política prioritária com os países do Sul, pois o diagnóstico geral é de que o sistema internacional está organizado de forma a privilegiar as potências já constituídas, diminuindo as chances de uma inserção internacional mais autônoma e com melhores oportunidades para o desenvolvimento econômico nacional. Além dos aspectos estruturais, o papel que a cooperação Sul-Sul assume na política exterior do Brasil ao longo do tempo depende do jogo político doméstico, que responde às pressões políticas, econômicas e sociais, e da interpretação governamental em relação às possibilidades presentes na arena internacional. As ideias em torno da cooperação Sul-Sul, portanto, estão vinculadas às condições objetivas nas quais as práticas políticas são processadas. Diante desse quadro geral, foi possível verificar que as políticas voltadas para o incremento das relações com os países do Sul, fundamentam-se em argumentos que buscam sustentar uma perspectiva de mudança de longo prazo, pois envolvem objetivos voltados a alcançar o desenvolvimento e tornar as regras de funcionamento do sistema internacional mais justas. No entanto, para que essas políticas se realizem, é necessário lançar mão de argumentos e imple-

Considerações Finais No âmbito da política externa brasileira a cooperação Sul-Sul passou por diferentes crises domésticas, mudanças de regime político e transformações do sistema internacional. Houve momentos de maior importância e reconhecimento, como nas gestões dos Ministros das Relações Exteriores Azeredo da Silveira (1974-1979) 44

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mentar decisões voltadas fundamentalmente para o curto prazo, de modo a propiciar recompensas voltadas para atores domésticos e, também, para os parceiros externos, principalmente os Estados de menor desenvolvimento relativo. Assim, enquanto horizonte de possibilidades, a ideia de cooperação Sul-Sul apresenta-se em uma situação de grande complexidade, pois combina um discurso de mudança futura, voltado a sustentar expectativas positivas sobre a possibilidade de alterações sistêmicas a partir da união de esforços dos países em desenvolvimento e, ao mesmo tempo, alimenta um discurso de que essas mudanças já podem ser sentidas no curto prazo, criando oportunidades de políticas de desenvolvimento econômico e social para os países menos desenvolvidos beneficiários de recursos governamentais brasileiros, assim como para os setores domésticos nacionais interessados em expandir seus interesses além das fronteiras. Esse discurso e prática de curto prazo acabam por reavivar a dicotomia histórica entre pragmatismo e idealismo presente no processo formulador da política externa brasileira, estimulando o debate público a respeito da inserção internacional do país, onde setores descontentes defendem a tese de que a cooperação Sul-Sul é fundamentada em uma visão de mundo irreal, orientada fundamentalmente por políticas de solidariedade e de pouco retorno econômico em detrimento das relações com os principais países desenvolvidos, enquanto setores simpatizantes ressaltam que as relações de aproximação com os países em desenvolvimento também apresentam resultados concretos, em virtude da expansão e maior internacionalização das empresas brasileiras. Diante do exposto é possível verificar que a maior importância assumida pela cooperação Sul-Sul na política externa brasileira a partir dos anos 2000, contempla o resultado da mudança de orientação política a partir da eleição de Lula da Silva na primeira metade da década em um contexto internacional caracterizado por transformações na distribuição do poder. No entanto, também contou com os frutos de experiências passadas de negociações Sul-Sul, que permaneceram conectadas ao longo dos diversos governos – sobrevivendo inclusive aos anos 1990 – em virtude de modificações organizacionais criadas em consequência dos acordos e aproximações realizadas no passado, como pode ser visto

na história da cooperação com a Índia e a China, os principais parceiros Sul-Sul. Assim, as experiências envolvendo a cooperação Sul-Sul podem ser entendidas também como um importante aprendizado da política exterior do Brasil, que teve maior intensificação a partir do século XXI. Portanto, apresenta os principais elementos relacionados ao aprendizado experimental em política externa apresentados por Jack Levy (1994), como a ocorrência de mudanças organizacionais, a capacidade de produzir e acessar a memória organizacional, mudanças nas regras do processo decisório e aprimoramento do conhecimento especializado a fim lidar com as novas temáticas.

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COOPERAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO E COOPERAÇÃO SUL-SUL: A PERSPECTIVA DO BRASIL Carlos R. S. Milani* Rubens de S. Duarte**

Introdução Desde a década de 1960, o Brasil tem prestado cooperação a outros países do Sul geopolítico por meio de projetos e programas, principalmente por meio de cooperação técnica em políticas * Doutor em Estudos sobre Desenvolvimento pela École de Hautes Études en Sciences Sociales (Paris, 1997) e tem pós-doutorado em Relações Internacionais no Institut d’Etudes Politiques de Paris (2008). Ele é professor de Ciência Política e Relações Internacionais no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp/Uerj), pesquisador 1D do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Coordenador do Laboratório de Análise Política Mundial (Labmundo-Rio) e Secretário-Executivo da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP). E-mail: [email protected]. Websites: www.labmundo.org; www.carlosmilani. com.br ** Doutorando em Política e Estudos Internacionais na University of Birmingham (Reino Unido). Ele tem mestrado em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp/Uerj, 2013), é Bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio, 2008) e Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio, 2007). E-mails: [email protected]; [email protected].

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sociais, ressaltando a retórica da solidariedade e do intercâmbio de conhecimentos e práticas entre países em desenvolvimento. A Guerra Fria restringia as margens de ação de países como Brasil, México e Argentina no campo da segurança hemisférica e das relações Leste-Oeste. Aí prevaleciam os diálogos ideológicos e estratégicos sobre os riscos associados à expansão do comunismo, liderados pelos Estados Unidos, sobretudo após a revolução cubana. Nas relações Norte-Sul, os debates sobre modelos de desenvolvimento econômico e de comércio internacional favoreceram, a partir dos anos 1960, articulações entre os países da América Latina, Ásia e África. A agenda de segurança (Leste-Oeste) era mais rígida, ao passo que a agenda do desenvolvimento (Norte-Sul) permitia atuação de maior destaque aos países latino-americanos. Para o Brasil, a qualidade de observador no seio do Movimento dos Não Alinhados e sua diplomacia de relativo baixo perfil nas negociações intergovernamentais sobre segurança foram compensadas pela forte atuação do Itamaraty nas Nações Unidas em temas sociais e econômicos (Nova Ordem Econômica Internacional, Grupo dos 77, Conferência de Estocolmo sobre Meio Ambiente Humano em 1972, etc.). A liderança dos embaixadores Ítalo Zappa, San Tiago Dantas e Araújo Castro foi decisiva para garantir agência e influência do Brasil no sistema multilateral da ONU em temas relacionados ao desenvolvimento. O enlace entre política externa e desenvolvimento manteve-se dinâmico, no âmbito das relações Norte-Sul, apesar dos controles e da relativa rigidez da ordem internacional da Guerra Fria. O famoso discurso dos três D’s de Araújo Castro pode ser compreendido nesse contexto: descolonização, desarmamento e desenvolvimento seriam pilares importantes da diplomacia brasileira nos anos 1960 e 1970. No entanto, no bojo das duas crises do petróleo dos anos 1970, do endividamento dos anos 1980 e do ajuste estrutural dos anos 1990, os países do Sul perderam capacidade coletiva de articulação política em torno dos temas do desenvolvimento. Mais preocupados com temas econômicos domésticos, sua participação na agenda internacional se despolitizou e sofreu graves pressões das estratégias de condicionalidade política colocadas em prática pelas instituições

financeiras internacionais. Embora alguns analistas tendam a apresentar o Plano de Ação de Buenos Aires, de 1978, sobre cooperação técnica entre países em desenvolvimento, como um marco histórico importante da CSS, é bem verdade que o Paba, como ficou conhecido, também poderia ser interpretado como simples expressão da agenda mínima possível de cooperação naquela conjuntura, fruto do esvaziamento da capacidade política de negociação conjunta do Terceiro Mundo no enfrentamento das questões estruturais, como no caso das desigualdades no processo decisório e das assimetrias materiais Portanto, o foco na cooperação técnica poderia ser lido como redução do escopo da cooperação, antes de natureza mais política entre os países em desenvolvimento. Com o descongelamento das relações Leste-Oeste e o final da Guerra Fria, a ordem mundial foi-se livrando de velhas amarras bipolares da segurança e a política passou a contemplar novos atores (novos Estados, mas sobretudo agentes não estatais), mas igualmente distintos palcos de ação (do regional ao global) para as chamadas “potências emergentes”, entre elas o Brasil. Na transição para o século XXI, moveram-se as placas tectônicas da ordem econômica e política mundial, crescendo paulatinamente a importância de países semiperiféricos nos processos de globalização da economia. A problemática da graduação de países como China, Índia e Brasil, a do reposicionamento geopolítico de países como a Rússia ou ainda a da transição de países como África do Sul, Indonésia, México e Turquia, em qualidade, escala e graus distintos, têm estado na pauta da agenda internacional desde o começo do século XXI. Em alguns casos (África do Sul, Brasil, China e Índia, por exemplo), a dimensão política da CSS tem sido enfatizada nos discursos, na definição de princípios e na reconstrução de um regime simbólico da cooperação para o desenvolvimento. O grupo Brics pode ser lido como verdadeiro desafio que seus Estados-membros colocam aos países centrais, no sentido de que sejam revisados os principais parâmetros de definição da ordem mundial contemporânea, suas normas, mecanismos e governança. As respectivas estratégias de CSS (no caso de Brasil, China, Índia e África do Sul) e a ação coletiva em torno do Novo

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Banco do Desenvolvimento (no caso dos Brics) são aqui analisadas enquanto ativos de países moderadamente revisionistas, como instrumentos de poder de Estados geopoliticamente insatisfeitos. A conformação da nova ordem que buscam construir seria tema para outro capítulo, haja vista que aqui simplesmente são analisadas as estratégias de CSS de um dos países, o Brasil. Nesse contexto, retomando alguns dos princípios sociais e políticos que marcaram as décadas de 1960 e de 1970, a política externa brasileira (PEB) desde 2003 também tem sido caracterizada pelo adensamento quantitativo e qualitativo das relações exteriores e das estratégias de cooperação internacional para o desenvolvimento (CID). No âmbito da “Nova Política Externa” – definida em torno da “busca de maior autonomia e protagonismo no plano internacional” e da “ênfase na integração regional, especialmente sul-americana” (Maringoni et al. 2014, p. 4) – a CID brasileira tornou-se mais densa e complexa. Segundo relatório conjunto do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) com a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), o Brasil destinou cerca de 923 milhões de dólares para a cooperação em 2010, um aumento significativo em relação ao montante de 158 milhões de dólares verificado em 2005 (Ipea/ABC, 2013). O aumento do engajamento brasileiro e a participação incremental de outros países em desenvolvimento no âmbito da CID (Índia, Turquia, África do Sul e México, por exemplo) acentuaram a pluralidade de atores, normas e práticas. Neste capítulo, analisamos três aspectos da CID que nos parecem importantes na perspectiva brasileira: (i) as distinções políticas entre CNS e CSS; (ii) as estratégias de CSS do governo brasileiro; (iii) a dimensão de política pública da CSS do Brasil.

donde a dificuldade em falar-se de um regime propriamente dito. Grande parte das regras atuais é derivada de discussões do Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (CAD/OCDE), da Declaração de Paris sobre a Eficácia da Ajuda (2005) e da Agenda de Ação de Acra (2008)  – ambas organizadas a partir da OCDE. Como lembra Chatuverdi (2012), as normas e instituições que daí resultam são a expressão do consenso entre os principais doadores do Norte, esforço de coordenação e diminuição da competição entre eles. Como lembram Milani, Suyama e Lopes (2013, p. 3), “o que foi construído no CAD da OCDE nunca teve caráter político de universalidade”. Ainda assim, as regras e critérios construídos pelos países industrializados são flexíveis a ponto de garantirem variação de práticas de cada tipo de Ajuda Oficial para o Desenvolvimento (AOD): nem sempre as práticas da USAID convergem com as do DFID (Reino Unido) no que diz respeito, por exemplo, à ênfase bilateral ou multilateral; nem sempre os padrões organizacionais e normativos da cooperação germânica coincidem com os da agência de cooperação internacional do Japão (Jica), muito embora todos esses países sejam membros do CAD. Isso significa que, mesmo depois de 50 anos de criação do CAD, persiste a heterogeneidade de práticas, critérios e padrões entre seus membros. É bem verdade que uma das conquistas mais relevantes do CAD foi construir o conceito estatístico de AOD, que permite a comparação entre os diferentes doadores. No entanto, é importante evitar o frequente deslize semântico de cooperação Norte-Sul à AOD: alguns analistas tendem a confundir uma com a outra, esquecendo que a cooperação Norte-Sul (CNS) envolve muitos outros aspectos além da AOD (inclusive no campo econômico, militar e estratégico). Essa distinção entre CNS e AOD revela-se importante nas comparações que podem ser feitas entre AOD e CSS. Do mesmo modo, muitas das críticas atuais à CSS envolvem investimentos de grandes corporações de países como Índia, China ou Brasil, porém o debate sobre CNS tende a se concentrar nas estatísticas da AOD, o que revela imprecisão, ingenuidade ou alguma intenção implícita dos analistas. A comparação, quando e se

Cooperação internacional para o desenvolvimento: NorteSul e Sul-Sul Diferentemente do que se verifica em outras agendas internacionais (como nos temas de comércio, de segurança, de direitos humanos e de meio ambiente), não há instituições formais fortes, com regras e acordos juridicamente vinculantes no campo da CID, 54

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necessária, deveria dar-se entre as duas formas políticas de cooperação: Norte-Sul e Sul-Sul. A eventual (e, talvez, aparente...) precisão da AOD não revela o fato político de que suas regras e critérios não foram definidos no âmbito de uma organização que seja universal (Janus et al., 2014). A citada falta de adensamento institucional torna a CID mais heterogênea, mas não significa que as normas existentes deixem de representar a visão particular de um pequeno número de países. O Grupo de Trabalho sobre Eficácia da Ajuda (sob tutela do CAD/OCDE), que é a principal instituição responsável por atuar no regime da CID, foi composto apenas por países industrializados até 2005, e não contava com Estados beneficiários até o ano de 2009 (Mawdsley, 2012; Kondoh et al., 2010). A pluralidade da CID e a influência de princípios característicos dos países do Norte acarretam duas consequências importantes para se entender a posição brasileira atual (Milani et al., 2013). A falta de regras e instituições rígidas cria um ambiente fértil para que atores busquem maior protagonismo, defendendo novos modelos de desenvolvimento, ideias e práticas (Velasquez, 2013). Do mesmo modo, a (re)emergência de atores na CID causa um movimento de contestação das atuais instituições, do poder decisório no âmbito da CID e suas normas, reforçando o uso da cooperação para o desenvolvimento (Norte-Sul, mas também Sul-Sul) como instrumento de política externa (Milani, 2012b). Por esses motivos, a política externa brasileira para a CSS aproveita o caráter plural do regime e busca contribuir para a CID, apresentando novos modelos de ação que entende ser mais positivos e eficazes para promover o desenvolvimento no mundo. Simultaneamente, o Brasil denuncia o caráter oligopolizado da CID defendendo sua reforma, bem como a falência dos modelos neocoloniais da cooperação Norte-Sul. A cooperação tradicional, apesar de avanços, mostrou-se pouco eficaz no combate a mazelas sociais e econômicas no mundo (como a fome, acesso à água, acesso à educação, erradicação de doenças, entre outros), mesmo depois de diversas promessas e projetos ao longo de mais de meio século de AOD (Easterley; Pfutze, 2008; Escobar, 1995; Hayter, 1971; Humphrey, 2010).

A ação dos países no âmbito da CID, inclusive a política de CSS do Brasil, deve ser lida como uma ferramenta estratégica, apesar de que o discurso oficial de diversos Estados defenda que as respectivas políticas de cooperação sejam solidaristas e livres de interesses (Milani et al., 2013; McEwan; Mawdsley, 2012). Nesse sentido, é importante ressaltar que a política de CSS, enquanto parte da política externa brasileira, deve ser entendida como uma política pública. Em função de sua natureza, a política externa atua no âmbito global e no regional, entre as restrições sistêmicas e a defesa dos interesses próprios. Apesar dessa característica sui generis da política externa, ela aproxima-se das outras políticas públicas que estão sujeitas ao jogo de interesses no âmbito doméstico, que é característica de um governo democrático (Milani; Pinheiro, 2013). Cada governo pode ajustar a política externa de modo que reflita os interesses da sociedade brasileira decididos na eleição e nos diálogos domésticos, considerando as oportunidades que a conjuntura internacional apresenta (Lima; Duarte, 2013). Por conseguinte, o estudo da política brasileira para a CID não deve se limitar à análise do governo federal, seus ministérios, agências e comissões (apesar de serem os principais atores na formulação da política externa), mas também os movimentos e redes da sociedade, o empresariado e o setor financeiro, que pressionam o governo brasileiro a orientar seus posicionamentos na agenda externa que contemplem seus interesses. Por esse motivo, este capítulo argumenta no sentido de que a política brasileira no âmbito da CID ainda não tem uma identidade definida e é mais complexa do que a apresentada pelo discurso oficial do governo brasileiro.

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As estratégias atuais da cooperação brasileira: perspectiva oficial No primeiro relatório da Cooperação brasileira para o desenvolvimento internacional (Cobradi) publicado em 2010, feito em conjunto pelo IPEA e pela ABC, o governo brasileiro definiu cooperação como sendo: 57

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A totalidade de recursos investidos pelo governo federal brasileiro, totalmente a fundo perdido, no governo de outros países, em nacionais de outros países em território brasileiro, ou em organizações internacionais com o propósito de contribuir para o desenvolvimento internacional, entendido como o fortalecimento das capacidades de organizações internacionais e de grupos ou populações de outros países para a melhoria de suas condições socioeconômicas. (Ipea, 2010, p. 17)

Apesar de não repetir expressamente a definição o segundo relatório, publicado em 2013, a redação deixa claro que o Ipea manteve o seu entendimento acerca do conceito estatístico de cooperação. Essa definição da cooperação brasileira afasta-se significativamente da adotada pelo CAD e, consequentemente, por seus membros. Segundo a OCDE, a Ajuda Oficial para o Desenvolvimento pode ser classificada como: Ajuda Oficial para o Desenvolvimento é definida como fluxos para países e territórios que estejam na lista da OCDE de recipientes de AOD e para instituições multilaterais de desenvolvimento, sendo que os fluxos são: I

Fornecidos por agências oficiais, incluindo governos federais e locais, ou pelas agências executivas; e

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Toda transação que a. É administrada com o objetivo principal de criar desenvolvimento econômico e bem-estar em países em desenvolvimento; e b. Tem caráter de concessão e transmite a fundo perdido parcela de pelo menos 25% (calculada a uma taxa de desconto de 10). (OCDE, 2008, p. 1, tradução dos autores)

Ao analisar o discurso oficial brasileiro para a CID, assim como o dos países do Norte, deve-se ter em mente que a ação no âmbito da CID também pode ser entendida como instrumento da política externa, conforme mencionado anteriormente. Com isso, é possí58

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vel explicar a escolha do governo brasileiro em criar uma definição própria do que entende por cooperação para o desenvolvimento. Visando a marcar um contraponto político e simbólico, o governo brasileiro evita usar conceitos e termos associados aos países da OCDE (Mawdsley, 2012; Milani et al., 2013). Com isso, o país tem como objetivo criar uma imagem desassociada da CNS e das antigas potências coloniais, bem como gerar capital político para atuar no âmbito bilateral e multilateral. No âmbito multilateral, o Brasil visa a denunciar uma série de discordâncias que o país tem em relação à cooperação tradicional feita pelos países industrializados. Aproveitando o caráter pouco institucionalizado da CID e sua heterogeneidade, o Brasil, ao lado de outros países do Sul, propõe uma série de novas práticas, ideias e modelos de ação, a fim de pressionar por uma reforma das instituições existentes, principalmente no processo decisório. Esse movimento político brasileiro não ocorre apenas no âmbito da CID, mas também em outras agendas internacionais como na segurança (Conselho de Segurança da ONU), no comércio (criação do G-20 nas negociações da OMC), no sistema financeiro (com a elevação do G-20 financeiro em nível de reuniões de cúpula), entre outros (Saraiva, 2007; Lima, 2005). Essa estratégia política é um dos motivos pelos quais o Brasil não demonstrou interesse em se associar à OCDE. Há uma percepção por parte do Brasil e de outros chamados “novos” doadores de que as normas no âmbito da CID dificilmente serão modificadas por meio desse comitê, restando a opção de pressionar a OCDE por outros meios (Kondoh et al., 2010; Kharas, 2010). A quebra do monopólio dos países do Norte na construção de regras e conceitos da CID não é o único objetivo brasileiro ao criar definição própria de cooperação. A percepção pelo governo brasileiro da imagem desgastada que a CNS tem nos países que recebem os fluxos de cooperação faz com que o Brasil vise a criar um arcabouço simbólico e normativo que produza uma distinção entre o que o Brasil faz e os doadores tradicionais. Com isso, o governo brasileiro espera que os demais países em desenvolvimento percebam o Brasil como um parceiro mais preocupado 59

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com o desenvolvimento e bem-estar dos Estados do Sul e de suas sociedades (Duarte, 2013b). Com isso, o Brasil tem o propósito de criar capital simbólico a fim de fortalecer laços políticos (mas também econômicos e comerciais) com outros países do Sul, facilitando sua inserção internacional, o acesso a mercados e a internacionalização de suas empresas. Por esse motivo, a primeira distinção que o discurso oficial brasileiro busca fazer em relação aos países do CAD/OCDE é terminológica e simbólica. O termo “ajuda” pressupõe que um dos atores da relação estaria em posição superior ao outro e, consequentemente, um em condições de ajudar e outro no contexto de simples beneficiário. No caso, os doadores tradicionais apresentariam melhores índices de desenvolvimento do que os países recipientes, cabendo aos primeiros passar técnicas, conhecimentos e valores aos outros. Uma forte hierarquia caracteriza essa relação, oprimindo e subjugando os países que recebem ajuda, como se os valores, as culturas e as técnicas dos países ajudados fossem inferiores. Além disso, cria-se sentimento de dívida do recipiente em relação ao doador, em que aquele pode sentir a necessidade de reciprocar a dádiva recebida (Mawdsley, 2012). O Brasil tem a preocupação de não usar termos característicos dos discursos dos países membros do DAC/OCDE, como “ajuda”, “doador” e “país recipiente”. Entende-se que os vernáculos “cooperação” e “parceiros”, adotados pelo relatório da Cobradi, são mais bem aceitos pelos países e sociedades com quem o Brasil coopera. Os termos adotados pelo discurso oficial brasileiro conferem agência ao país com o qual o Brasil coopera, bem como reforçam a ideia de horizontalidade e mitigam a hierarquia entre “quem ajuda” e o “ajudado” que os termos da OCDE transmitem simbolicamente (Duarte, 2013a). A ideia de fazer cooperação, ao invés de dar ajuda, simultaneamente afasta o Brasil da imagem dos países do Norte, muitas vezes conhecidos por certa arrogância na efetivação e debate dos projetos, assim como apresenta o país aberto a um intercâmbio de ideias, conferindo voz ao “outro” africano, asiático ou latino-americano.

No mesmo sentido, as autoridades brasileiras frequentemente trazem à tona argumentos históricos, sociais e culturais, para criar laços com os países parceiros. O Brasil é um país intermediário na geometria de poder mundial (Lima, 2005) e é simultaneamente um país que recebe e fornece cooperação internacional (Milani, 2012c; Milani et al., 2013). Segundo o discurso do corpo diplomático brasileiro, o país conseguiu superar fortes problemas de domésticos, mas ainda enfrenta grandes desafios em busca do desenvolvimento, característica que confere ao Brasil um acumulado de experiências que pode ser compartilhado com parceiros que passam por problemas semelhantes aos existentes no Brasil. Além disso, o passado de colônia e de recipiente de AOD o torna mais sensível para respeitar as vozes, a cultura e as particularidades do país parceiro e sua sociedade. O citado respeito ao parceiro também está presente no caráter reativo do Brasil ao não ofertar projetos de cooperação, bem como na ausência de condicionalidades políticas (direitos humanos, democracia, “boa” governança) ao colocar em prática projetos de cooperação. É costume dos países da OCDE condicionar a AOD a contrapartidas (econômicas, políticas ou institucionais) dos países recipientes, tais como reformas políticas, garantia de direitos humanos ou mudanças na política econômica doméstica. Além disso, muitas vezes os projetos de AOD são executados sem que o país recipiente o tenha de fato solicitado (Easterly, 2006). O Brasil afirma não exigir condicionalidades dos seus parceiros, bem como somente reagir a pedidos de cooperação (critério da cooperação “demand-driven”), porque entende que esses assuntos são de natureza doméstica e, portanto, a interferência neles pode ser entendida como desrespeito à soberania do Estado. Postura que, além de deixar evidente a agência dos parceiros, revela a importância do respeito à soberania no cenário internacional, que é um conceito defendido sistematicamente pela diplomacia brasileira em diversos foros internacionais (Milani, 2012b). Laços culturais e históricos também são muito usados pelos agentes domésticos brasileiros ao decidir com quem e em que área cooperar. O foco da CSS brasileira é na região próxima

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(América do Sul, América Central e Caribe) e com países de colonização portuguesa, como os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop). Segundo dados do Ipea, a América Latina e Caribe e a África foram os principais destinos de fluxos da cooperação brasileira em 2010, responsáveis por 68,1% e 22,6% do total, respectivamente, como pode ser verificado no mapa 1.1 Como demonstra o gráfico 1, dentre os 10 principais parceiros em termos de volume de gastos em 2010, cinco são sul-americanos (Chile, Argentina, Peru, Paraguai e Colômbia) e quatro são africanos (Cabo Verde, Guiné-Bissau e Moçambique). O Haiti também merece destaque, devido aos valores destinados à Minustah e aos projetos de desenvolvimento associados com a reconstrução do Estado caribenho. O Timor-Leste é o maior parceiro brasileiro fora dos continentes latino-americano e africano, com o 11º maior fluxo de CSS brasileira em 2010.

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As áreas em que o Brasil coopera são bastante variadas, mas geralmente são associadas às experiências que o Brasil teve (e, muitas vezes, continua tendo), ao lidar com problemas domésticos. Por esse motivo, entre os principais setores em que o Brasil atua na CSS estão agricultura, saúde, defesa, educação, administração pública, meio ambiente e desenvolvimento social (gráfico 2). Para o corpo diplomático do Brasil, essa distribuição é reflexo do reconhecimento que as políticas públicas brasileiras obtiveram sucesso, despertando interesse de outros países em conhecer as experiências domésticas nacionais.

Todas as imagens foram concebidas pelos próprios autores, no âmbito do Ateliê de Cartografia do Labmundo (http://www.labmundo.org/atlas/). 1

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Apesar de bem estruturados, o discurso oficial do Brasil e o relatório da Cobradi não dão conta da complexidade da CSS brasileira enquanto política pública. Faz-se necessária análise mais abrangente, empírica, detalhada e profunda, a fim de entender quais são as características da ação do país na CID, bem como as oportunidades e desafios decorrentes dela. A próxima seção tem como objetivo contribuir nesse sentido.

ta de outros países do Sul, como a China, a Índia e a África do Sul. A definição brasileira de cooperação exclui do relatório as linhas de crédito concedidas, por exemplo, pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para atores brasileiros que atuam na CSS. Segundo a definição de cooperação brasileira, empréstimos, por demandarem o retorno do capital investido, não são caracterizados como cooperação, ainda que tenham juros subsidiados. Por outro lado, a China e a Índia têm como principal atividade de cooperação a concessão de empréstimos para obras de infraestrutura e para outros projetos, a exemplo dos Eximbank’s dos referidos países (Gadzala, 2011). Pode-se argumentar no sentido da existência de contradições derivadas da heterogeneidade de modelos de desenvolvimento e de padrões de ação entre os países emergentes, para além da pluralidade que é característica da CID. Em uma lógica de articulações de geometria variável, o Brasil associa-se a grandes países do Sul, para ganhar capital político e demandar reforma do sistema decisório mundial, que concentra o poder de voto nos países do Norte (Lima, 2005). O governo brasileiro articula-se com outros Estados (como a China, a Índia, a Turquia e a África do Sul), pois todos têm objetivos semelhantes no plano multilateral. Todavia, o Brasil tem a preocupação de não se associar com práticas que tendem a prejudicar a sua imagem, ainda que essas sejam feitas por países parceiros. Por exemplo, a fim de se mostrar livre de interesses comerciais, o discurso brasileiro afasta-se do entendimento indiano, que baseia sua cooperação na concessão de linhas de crédito. Do mesmo modo, importantes políticos brasileiros destacam que a cooperação brasileira usa mão de obra local, o que é importante para criar empregos no país parceiro (Amorim, 2011). Com isso, o discurso oficial do Brasil afasta-se da política de cooperação chinesa, que por vezes usa mão de obra compulsória de presidiários chineses. Apesar disso, o Itamaraty reforça sempre que possível o caráter Sul-Sul de sua cooperação e enaltece iniciativas em conjunto com outros países do Sul (como o Fundo Ibas e o recém-criado Banco de Desenvolvimento do Brics). A diplomacia brasileira não somente cria um contraponto da CSS em relação à CNS, mas também demonstra discordâncias quanto à ação de outros países emergentes na CID.

Cooperação brasileira enquanto política pública: atores, preferências e interesses Tendo em vista o relatório conjunto do Ipea e da ABC, não é difícil perceber que o discurso oficial da CSS do Brasil não dá conta da complexidade da cooperação brasileira e deixa lacunas em diversas áreas. Como explicitado, este artigo trabalha com o entendimento de que a política externa (e, consequentemente, a ação brasileira no âmbito da CID) é uma política pública (Milani; Pinheiro, 2013). Uma análise que foque somente no discurso oficial estaria, portanto, fadada a desconsiderar ampla gama de fatores e de atores que influenciam as estratégias de CSS do Brasil e, por esse motivo, seria incapaz de apontar sinergias, tensões e contradições existentes na construção da identidade brasileira no campo da CSS. Dentre outros, há quatro fatores que trazem maior complexidade para a CSS brasileira, analisados a seguir: a indefinição sobre a sua identidade, a grande descentralização, a falta de marco legal e o baixo orçamento destinado à cooperação. Como visto na seção anterior, em que foi analisada a distinção entre o conceito de cooperação dada pela ABC e o da OCDE, é importante ressaltar o entendimento de que a cooperação feita pelo Brasil é destinada ao país parceiro 100% não reembolsável, enquanto os países da OCDE consideram como AOD os fluxos que tenham pelo menos 25% de “concessionalidade”, jargão técnico que implica inexistência de obrigação de retorno financeiro. Como afirmado, o Brasil tem o propósito de criar um contraponto político e simbólico aos países do CAD/OCDE ao classificar cooperação como o valor que é destinado totalmente a fundo perdido (Milani et al., 2013), mas isso também o afas64

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Um dos fatores que contribuem para essa possível contradição do discurso oficial é a alta descentralização que a caracteriza. O relatório da Cobradi deixa evidente a pluralidade de atores atuando na política de cooperação brasileira. São diversos atores do âmbito federal atuando na cooperação técnica, entre eles 22 ministérios, secretarias e agências (gráfico 3), bem como três agências nacionais (Agência Nacional de Telecomunicações, Agência Nacional do Petróleo e Agência Nacional de Energia Elétrica), duas secretarias da Presidência (Secretaria de Políticas para Mulheres e Secretaria de Direitos Humanos), assim como o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (Ipea, 2013 pp. 33-34). Diferentemente de outros países (como no caso dos Estados Unidos com a USAID ou do Reino Unido com o DFID), a cooperação brasileira não é centralizada ou coordenada por uma instituição ou ministério. Cada órgão federal é livre para atuar internacionalmente, cooperando com outros países e suas instituições (Milani et al., 2013). Muitas vezes, o Itamaraty tem pouca participação nos projetos de cooperação, enquanto são protagonistas atores como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), na área de saúde, e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), na área de agricultura.

Outra questão que pode ser levantada, ao analisar o discurso oficial brasileiro é a ausência de atores importantes que atuam na CID. Além dessa evidente descentralização no âmbito federal, o relatório da Cobradi não considera os atores no nível estadual e municipal. O portal da ABC na internet revela que, apesar de ausentes no relatório da Cobradi, outros atores são bastante atuantes na cooperação brasileira, como é o caso das polícias militares de São Paulo e do Rio de Janeiro; o Ministério Público de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Distrito Federal; e o Poder Judiciário de São Paulo. Os governos estaduais e os municípios estão cada vez mais se lançando no cenário internacional. O relatório de 2014 da Confederação Nacional dos Municípios demonstra que as cidades brasileiras cooperam com governos locais de outros países em diversas áreas. É o caso, por exemplo, de acordos de irmanamento e da iniciativa chamada C-40, que se define como um grupo de megacidades que tem o compromisso de combater o aquecimento global. As redes e organizações da sociedade civil brasileira, ausentes do relatório da Cobradi, também têm importância destacada no campo da CSS brasileira, embora seu papel tenha sido, até agora, mais de monitoramento social e controle político das atividades. Por vezes, esses atores são críticos da CSS feita pelo Brasil, afirmando que o país, junto com as políticas públicas, exporta suas contradições domésticas para outros países (Mello, 2013). Por outro lado, também há algumas poucas organizações da sociedade civil (OSC) que participam da CSS brasileira, emprestando seus conhecimentos adquiridos na luta pela melhoria das condições de vida no Brasil, como é o caso do Viva Rio e da Missão Criança em atividades da Minustah (Haiti) e da ABC no continente africano. Ainda permanece, porém, em aberto a discussão sobre o papel das OSC na CSS do Brasil, haja vista que poucos trabalhos empíricos se debruçaram sobre o tema (Santos, 2013). Por fim, o discurso oficial brasileiro silencia-se acerca da ação do capital privado nas estratégias brasileiras de CSS. É interesse do governo brasileiro que as empresas brasileiras se internacionalizem, e a política externa é um instrumento usado para faci-

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litar tal objetivo (Amorim, 2011). Isso é evidente. Ao fortalecer laços políticos e econômicos, a CSS serve muitas vezes de porta de entrada do capital brasileiro no país estrangeiro, criando condições favoráveis para a atuação dessas empresas. Empresas no ramo da construção civil (como a Odebrecht, a Andrade Gutierrez e Camargo Correa) frequentemente estão envolvidas em projetos de cooperação brasileira, em projetos de infraestrutura (como estradas, portos e aeroportos), muitas vezes financiadas pelo BNDES. Também podem ser citadas a Vale e a Petrobrás no setor de mineração e petrolífero respectivamente (apesar da última ser de controle estatal). Além disso, é inegável o interesse (econômico e político) brasileiro em aumentar a produção mundial de cana-de-açúcar, visando a consolidar o etanol (e outros biocombustíveis) como commodity internacional (Albuquerque, 2014; Duarte, 2013b). Alguns países são muito reticentes em adotar o etanol em larga escala, argumentando que não é racional depender de uma fonte de energia produzida em somente um país (no caso, o Brasil). Há uma evidente contradição no discurso brasileiro que, ao mesmo tempo em que se diz livre de interesses econômicos e comerciais, tem uma íntima relação entre os setores público e privado, particularmente na América do Sul, mas também no continente africano (Garcia et al., 2013). Os países em que há maior quantidade de atividades de cooperação brasileira também são os países em que essas empresas estão mais atuantes. Como as empresas privadas não são representantes legítimas do Estado e da sociedade brasileiros, elas não têm, em princípio, que alinhar seus atos e interesses de acordo com a vontade do Brasil. A lógica empresarial, de busca de novos mercados, negócios e lucro, faz com que as suas ações sejam muito próximas às das multinacionais com sede nos países do Norte. Isso cria o risco de que a imagem do Brasil seja associada a práticas comuns às dos países industrializados, em que o capital privado teve papel de destaque em políticas colonialistas e imperialistas. Diante da falta de coordenação do Estado brasileiro com os demais atores domésticos, há a possibilidade de que os interesses do capital privado se sobressaiam, porque eles têm maior capacidade de influenciar a formulação da política externa brasileira por meios informais do que os demais atores da política doméstica.

O fato de que o relatório do Ipea contempla somente os atores governamentais do nível federal pode ser explicado por fatores políticos, metodológicos, mas também reflete a pouca organização da cooperação brasileira. No âmbito metodológico, o trabalho de identificar e registrar todas as atividades de CSS de três níveis do governo brasileiro e dos atores não governamentais seria um trabalho muito mais demorado e oneroso, que demandaria recursos humanos e financeiros, bem como tempo que o Ipea não dispunha. Politicamente, pode-se argumentar que o discurso oficial brasileiro não tem interesse de demonstrar a ação desses diversos atores envolvidos na CSS do Brasil, que atuam no âmbito doméstico visando a pressionar o governo para que a política externa contemple seus interesses. Todavia, o relatório da Cobradi também demonstra a falta de organização jurídico-institucional da cooperação brasileira. Os atores envolvidos na CSS do Brasil agem com grande liberdade, sem uma coordenação clara entre os ministérios, agências nacionais e secretarias da presidência, muito menos entre esses atores do governo federal com os demais. A ABC é, em teoria, a instituição do governo federal responsável por coordenar as ações de cooperação brasileira, mas é pouco eficiente nesse objetivo. Essa agência ligada ao Itamaraty foi criada com o propósito de receber e organizar os fluxos de AOD recebidos pelo Brasil. Com o crescimento econômico e político do Brasil no cenário internacional, o país passou a receber maior demanda para cooperar com outros países, mas não tinha instituições e burocracias especificamente para tal fim. Com isso, a ABC também assumiu a função de coordenar a oferta de CSS brasileira, mas não passou por todas as reformas que seriam necessárias para isso. A falta de um marco regulatório sobre a cooperação brasileira torna a situação ainda mais complexa. Como visto, diante da falta de um marco legal e da impossibilidade da ABC de coordenar todas as ações da cooperação brasileira, os atores atuam livremente. A falta de um marco legal contribui para a descentralização da CSS brasileira e para a dificuldade de se criar uma identidade da ação do Brasil no âmbito da CID. Também contribui para a complexidade da CSS brasileira o baixo orçamento destinado para programas de cooperação. Apesar

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de ser a quarta modalidade de cooperação em termos de gastos (gráfico 4), a cooperação técnica é uma das mais celebradas pelos atores domésticos e pelos países parceiros. A cooperação técnica é feita, geralmente, por funcionários do governo brasileiro que têm conhecimento prático na área em que estão cooperando (Milani et al., 2013). Por meio de trocas de visitas de técnicos e de especialistas, a transferência de conhecimentos entre os países parceiros é mais eficaz. A cooperação técnica também tem a vantagem de ser menos dispendiosa do que as demais, pois os custos geralmente envolvem apenas o translado, hospedagem e alimentação dos funcionários. A cooperação técnica revela-se um instrumento da CSS brasileira eficaz e de baixo custo, capaz de contribuir para a inserção internacional do Brasil.

do capital, tecnologia e pessoal. Esse modelo de cooperação tem a vantagem de mitigar o problema orçamentário da cooperação brasileira, o que permite sua ampliação, mas também pode gerar contradições no discurso brasileiro. Como visto, o discurso oficial brasileiro tem o objetivo de criar um contraponto simbólico e normativo em relação à cooperação tradicional. Para isso, o governo brasileiro propõe novas ideias, modelos de ação e conceitos, criticando a CNS. A cooperação trilateral pode tornar o discurso oficial contraditório, porque cria uma parceria entre a CSS do Brasil e os doadores do Norte, estes que eram anteriormente criticados.

Outra possibilidade encontrada pelos atores da cooperação brasileira para lidar com os problemas derivados do baixo orçamento é a cooperação trilateral, em que o Brasil se associa com um doador (geralmente um país industrializado) para cooperar com um terceiro país. O programa Pró-Savana, como visto, é um exemplo da cooperação trilateral, em que o Brasil (representado, principalmente, pela Embrapa) se associa com a agência de cooperação japonesa (Jica) para cooperar com Moçambique a fim de que o país africano consiga aumentar a sua produção agrícola (principalmente de soja) na região da savana. Nesses projetos de cooperação triangular, é comum que o Brasil entre com grande parte do capital humano e técnico, enquanto que o país do Norte financie parte considerável do programa, embora ambos os países sejam responsáveis por parte 70

Considerações finais A atuação brasileira no âmbito da CID é mais complexa do que é apresentada pelo discurso oficial brasileiro. Atores domésticos da burocracia estatal e atores não governamentais atuam livremente no âmbito internacional com pouca e nenhuma coordenação, dada a ausência de uma política pública de CSS no Brasil. A falta de um marco jurídico para a ação do Brasil na CID aumenta a complexidade e agrava a falta de identidade da cooperação brasileira. Ao meio de tantos atores agindo internacionalmente e pressionando o governo no âmbito doméstico para que seus interesses sejam contemplados na política externa, inexiste um órgão capaz de promover a coordenação entre os atores e dar coerência e identidade para a CSS do Brasil. Essa realidade tem-se tornado mais crítica ao se considerar que a quantidade de atores que atuam ou que têm interesses na ação do Brasil na CID tende a crescer, tornando a cooperação brasileira mais plural e aumentando o risco de contradições na política externa do país. Além disso, como citado, na ausência de marco regulatório e de instituições que sejam capazes de coordenar os atores da política de cooperação brasileira, as vozes dos movimentos e das redes sociais tendem a se enfraquecer. A Agência Brasileira de Cooperação não exerce esse papel. Diante da informalidade em que os diálogos de política externa ocorrem, os representantes do capital privado tendem a ter maior acesso e capacidade de influenciar os formuladores 71

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da política externa, sendo mais bem sucedidos em ter seus interesses contemplados na política de cooperação brasileira. Com isso, a política externa brasileira para a CID pode passar por um processo de privatização, em que os interesses do capital privado sejam atendidos em detrimento das vozes dos demais atores e organizações da sociedade civil brasileira. Por conseguinte, a CSS do Brasil progressivamente corre o risco de repetir as práticas da tradicional CNS que, paradoxalmente, busca denunciar no discurso oficial. Como uma possível saída para essa falta de identidade e de coordenação da PEB para a ação do país na CID é a criação de um Conselho Nacional de Política Externa. Essa ideia foi proposta pelo Grupo de Reflexão em Relações Internacionais (GR-RI)2 e visa a criar um espaço formal para o debate em temas de política externa, inclusive para ações na CID. Ao contrário do que se possa pensar, o Conselho não enfraqueceria a ABC, mas seria mais um instrumento para o governo buscar a coordenação entre os atores da política externa, sem que os agentes menos poderosos sejam esquecidos e que a pressão de alguns setores se torne irresistível. Enquanto isso, a política externa brasileira para a CID continua sendo marcada por muitos “não” e poucos “sim”. A CSS do Brasil parece construir sua identidade com base em oposição aos modelos existentes (por exemplo, não é igual à dos países do DAC/ OCDE; não é baseada em interesses comerciais; é Sul-Sul, mas não é igual aos outros países do Sul), ainda que essas denúncias criem uma contradição quanto a parcerias existentes na ação do Brasil na CID. O país ainda carece de um amplo debate sobre que tipo de política de cooperação quer ter e com qual propósito.

Informações detalhadas e análises sobre o GR-RI estão disponíveis em http://brasilnomundo.org.br. 2

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A COOPERAÇÃO BRASILEIRA PARA O DESENVOLVIMENTO COM ANGOLA E MOÇAMBIQUE: UMA VISÃO COMPARADA1 Adriana Erthal Abdenur* João Marcos Rampini**

Introdução Desde a virada do milênio, as relações entre o Brasil e os países africanos vêm se intensificando. Tais laços abarcam diversos setores, desde o comércio e os investimentos até a cooperação técnica para o desenvolvimento. Este capítulo analisa o aprofundamento da interação entre o Brasil e dois países africanos de língua oficial portuguesa  – Angola e Moçambique. Mais especificamente, nos Os autores agradecem o apoio do programa “Jovem Cientista do Nosso Estado”, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj), e do projeto “South-South Cooperation”, do Department for International Development (DFID), para a realização dessa pesquisa. 1

* Adriana Erthal Abdenur (PhD Princeton, BA Harvard) é professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e pesquisadora sênior do BRICS Policy Center. Sua pesquisa se concentra na cooperação Sul-Sul e no papel das ditas potências emergentes, inclusive os países BRICS, na governança global. ** João Marcos Rampini é Mestre em Relações Internacionais e Especialista em Gestão Governamental e Avaliação de Politicas Sociais, ambos os graus pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

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concentramos sobre o papel da cooperação para o desenvolvimento nas relações bilaterais, assim como na interação por meio de mecanismos multilaterais tais como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) e a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (Zopacas). Por que comparar a cooperação com Angola à cooperação com Moçambique? Além de serem países lusófonos, ambos passam por períodos de crescimento econômico elevado (crescimento anual do PIB de 13,3% e 7,4%, respectivamente). A abundância de recursos naturais nos dois países – sobretudo o petróleo e gás em Angola e o carvão em Moçambique – tem atraído atores do setor público e privado. As relações abarcam não apenas iniciativas diplomáticas e de cooperação técnica coordenadas pelo governo brasileiro, mas também uma gama ampla de atores de ambos os lados: empresas transnacionais, organizações não governamentais, igrejas e associações profissionais, para mencionar apenas quatro categorias de interlocutores. Por outro lado, são dois países bastante distintos. Moçambique possui cerca de 22,4 milhões de habitantes, ao passo que Angola tem “apenas” 17,4 milhões. Em 2010, o PIB nominal per capita de Angola – cerca de 4.700 dólares – ofuscava o de Moçambique, de apenas 4262. Passados vinte anos do final da guerra civil moçambicana, o país permanece fortemente dependente da assistência ao desenvolvimento oferecida pelos países doadores, organizações multilaterais e provedores de cooperação Sul-Sul, ao passo que Angola goza de maior autonomia e recursos, com um fundo soberano (estabelecido em outubro de 2012 com recursos do petróleo e gás) que investe dentro e fora do país. Além disso, Angola está localizada no Atlântico Sul, cujo panorama geopolítico difere bastante do contexto regional de Moçambique, situado no Oceano Índico. Tais divergências oferecem uma oportunidade para se analisar até que ponto a política externa brasileira para a África subsaaria-

na – se é que ela existe no sentido regional – se adapta (ou é adaptada) às condições, oportunidades e percepções locais. Levando em conta as divergências entre Angola e Moçambique, o argumento central do texto é que a cooperação brasileira com esses países, longe de ser homogênea, reflete fatores históricos, políticos e socioeconômicos específicos a cada país. Debruçar-se sobre tais divergências exige repensar as relações Brasil-África de acordo com as experiências de cada país parceiro e como essas especificidades, por sua vez, influenciam a interação com atores brasileiros. O capítulo está estruturado da seguinte forma. A primeira sessão oferece um pano de fundo histórico das interações entre o Brasil e a África, sobretudo com os países que contam com o português dentre suas línguas oficiais. Em seguida, analisamos as iniciativas de cooperação para o desenvolvimento no contexto mais amplo das relações entre o Brasil e Moçambique e Angola, tratando não apenas das divergências entre os dois casos, mas também de certas transformações ocorridas ao longo do tempo. A conclusão lida com o papel da cooperação técnica em um contexto de crescimento econômico reduzido e aponta direções para futuras pesquisas.

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A cooperação Sul-Sul e as relações Brasil-África O conceito de cooperação Sul-Sul O conceito de cooperação Sul-Sul tem suas origens na Guerra Fria, e mais especificamente nas tentativas lançadas por países do então chamado Terceiro Mundo com o duplo objetivo de se distanciarem do embate ideológico travado pelas superpotências, e de encontrarem novos caminhos para o desenvolvimento socioeconômico. Coalizões flexíveis, tais como o Movimento dos Não Alinhados (MNA) e o Grupo dos 77 (G-77) permitiam que países em desenvolvimento juntassem forças para reivindicar uma ordem internacional mais justa e legítima. No âmbito da ONU, a proposta da Nova Ordem Econômica Internacional (Neio) não surtiu o impacto esperado, e foi criticada por alguns analistas pelo conservadorismo excessivo (Rist, 1996). No entanto, a criação 83

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da Conferência da ONU para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD) resultou dos esforços feitos pelos países em desenvolvimento para alterar a arquitetura da governança global e lançou os primeiros esforços de institucionalização da cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento no âmbito das grandes organizações multilaterais. Portanto, desde o início, o conceito de cooperação Sul-Sul tem natureza dupla: trata-se, ao mesmo tempo, de projeto político e empreitada econômica. A essas dimensões foram-se somando outras, conforme reflete o discurso oficial da ONU. De acordo com a organização, a cooperação Sul-Sul abarca também aspectos sociais, culturais e ambientais3. A Conferência sobre Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento, de 1978, que produziu o Plano de Ação para Promover e Implementar a CTPD (também conhecido como Plano de Ação de Buenos Aires), representou um marco não apenas no processo de institucionalização da cooperação SulSul dentro do âmbito da ONU, mas também na ampliação da definição dessa cooperação. A cooperação Sul-Sul se expandia não apenas via plataformas multilaterais, mas também por meio das relações bilaterais. Já nas décadas de 50 e 60, países tais como a China, a Índia e o Brasil passaram a oferecer cooperação técnica e econômica, desde investimentos em infraestrutura até capacitação e compartilhamento de tecnologias em áreas como agricultura, saúde e educação. A África, palco de movimentos de libertação e independência, tornou-se um foco importante nessa primeira onda de cooperação Sul-Sul, com interesses econômicos respaldados pelo discurso de solidariedade que foi popularizado por intermédio do Movimento Não Alinhado e o G-77. Contudo, tanto no plano bilateral quanto no multilateral, a escassez de recursos e a inflexibilidade da configuração bipolar da Guerra Fria limitavam o escopo da cooperação Sul-Sul. Além disso, a partir de meados da década de 70, houve uma forte retração da

cooperação Sul-Sul, tanto em termos de fluxos quanto em termos de saliência do tema em discussões globais sobre o desenvolvimento internacional. Com o alastramento dos efeitos da crise do petróleo de 1973, muitos países em desenvolvimento se endividaram, recorrendo às instituições de Bretton Woods. Como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial condicionavam os empréstimos aos ajustes estruturais, que incluíam cortes orçamentários, muitos provedores reduziram seus programas de cooperação SulSul. Embora o Plano de Ação de Buenos Aires tivesse mantido a cooperação entre países em desenvolvimento na pauta da ONU, na prática o discurso da cooperação Sul-Sul não se traduziu em iniciativas transformadoras durante as décadas de 80 e 90. Tal quadro começou a se reverter apenas a partir dos anos 2000, quando a cooperação Sul-Sul bilateral ganhou novo fôlego e se expandiu consideravelmente, com a China assumindo a vanguarda. A abertura gradual da economia chinesa e a política de investimentos do governo chinês começavam a render vastas reservas internacionais, e a liderança chinesa optou por usar parte desse excedente de forma a fomentar a internacionalização de suas empresas estatais e privadas, incentivando-as a investir sobretudo na África. Outras grandes economias em desenvolvimento, dentre as quais o Brasil, a Índia, e a Turquia, também passaram por períodos de crescimento relativamente elevado, retomando ou intensificando suas iniciativas de cooperação para o desenvolvimento. Com essa “segunda onda” de cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento, tais países passaram por uma mudança de status no campo do desenvolvimento internacional: de recipiendários de assistência, tornaram-se provedores de cooperação, mesmo que ainda recebam alguma assistência por parte de doadores e organizações multilaterais. Além da mudança de status desses países, o período foi marcado por uma série de tendências. Em primeiro lugar, houve certa diversificação dos atores engajados na cooperação Sul-Sul  – não apenas em termos de Estados oferecendo cooperação, mas também no que diz respeito à gama de atores da sociedade civil e do setor privado envolvida em tais iniciativas (independentemente, ou em parceria com atores estatais). Tal padrão se deve em parte à maior disponibilidade de recursos financeiros, em comparação

UNDP, 2014. Disponível em: Acesso em: 19 jun.2014. 3

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com o período da Guerra Fria. Tendo atingido certa estabilidade macroeconômica e alcançado um nível de crescimento econômico razoavelmente elevado, as ditas potências emergentes podiam alocar recursos extras para a expansão da sua cooperação Sul-Sul. Em segundo lugar, o discurso de solidariedade, horizontalidade e não intervenção se intensificou também por meio de novas coalizões informais de potências emergentes, tais como o Fórum de Diálogo Índia – Brasil – África do Sul (Ibas) e o agrupamento Brics, (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), assim como organizações regionais tais como a Unasul, a Comunidade da África Meridional para o Desenvolvimento (SADC) e a Organização de Cooperação de Shanghai (OCS). Em terceiro lugar, alguns provedores de cooperação Sul-Sul, entre os quais os Brics, passaram a defender que o Estado deve desempenhar um papel de protagonista no desenvolvimento. Embora a atuação do Estado varie bastante entre tais países, seus governos rejeitam abertamente as políticas de mercado disseminadas por meio do Consenso de Washington. Em certas regiões, sobretudo a América Latina, governos de esquerda reforçaram o papel do Estado no desenvolvimento, tanto no âmbito doméstico quanto na cooperação internacional. Como muitas dessas economias se recuperaram de forma relativamente rápida após o choque inicial da crise financeira global que eclodiu em 2008, os discursos que ressaltam divergências entre a cooperação Sul-Sul e a assistência do Norte se intensificaram. Ao mesmo tempo, a assistência do Norte passava por um momento de crise. Por um lado, desde os ataques de 11 de setembro e o início da Guerra ao Terror, os EUA e seus aliados passaram a enfatizar questões de segurança internacional. Com isso, a assistência ao desenvolvimento ficou em segundo plano e, em muitos casos, sendo redirecionada de forma a alcançar objetivos de segurança. A securitização do desenvolvimento internacional ocorreu tanto dentro quanto fora da ONU. Além disso, após o início da crise financeira, em 2008, a assistência oficial ao desenvolvimento (official development assistance – ODA) sofreu uma retração temporária, justamente quando o volume e o alcance da cooperação SulSul continuava crescendo (Mawdsley, 2012).

Nesse contexto, ao mesmo tempo em que a cooperação Sul-Sul ganhava peso, o Comitê para a Assistência ao Desenvolvimento (DAC) da OCDE tratava de avançar a Agenda para a Eficácia. Marcos como a assinatura da Declaração de Paris sobre a Eficácia da Ajuda ao Desenvolvimento, em 2005, e o lançamento da Agenda de Ação de Acra, em 2009, foram iniciativas importantes no esforço, por parte da OCDE, de “harmonizar” as normas e práticas do campo do desenvolvimento internacional. A iniciativa  – lançada pelos países desenvolvidos – tentou incorporar provedores de cooperação Sul-Sul, mas vem encontrando resistência por parte dos Brics. O distanciamento desses países da agenda da eficácia tornou-se ainda mais evidente em 2011, na ocasião da IV Reunião de Alto Nível sobre Eficácia da Ajuda, realizada em Busan, e em 2014, quando a Parceria Global foi lançada na Cidade do México.

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O Brasil e a cooperação técnica Sul-Sul O Brasil passou a oferecer cooperação técnica a outros países em desenvolvimento ainda durante a década de 60, quando certos ministérios lançaram iniciativas voltadas para parceiros da América Latina e da África. Tais esforços se concentravam na capacitação de funcionários públicos de países parceiros. Por exemplo, a Escola de Administração Fazendária (Esaf ) do Ministério da Fazenda inscrevia funcionários de Angola e Moçambique em cursos oferecidos no campus da instituição em Brasília. No entanto, tais iniciativas eram bastante limitadas, tanto em termos do número de ações lançadas, quanto no que diz respeito aos gastos. A cooperação técnica que o Brasil oferecia a países parceiros era muito pequena quando comparada à assistência que o país recebia dos doadores e das organizações multilaterais. Além disso, a coordenação da cooperação Sul-Sul era limitada. Embora o Ministério das Relações Exteriores (MRE) assessorasse os demais ministérios na assinatura de certos acordos internacionais, ainda não possuía divisão ou agência dedicada exclusivamente à coordenação dessas iniciativas. Com isso, a vinculação entre a política externa brasileira e a cooperação técnica oferecida por órgãos do governo senão o MRE era tênue. 87

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Mesmo assim, com o discurso da cooperação Sul-Sul se fortalecendo no âmbito da ONU, sobretudo a partir do Plano de Ação de Buenos Aires, o Brasil tomou certas medidas para fortalecer a sua cooperação Sul-Sul. Em 1987, foi fundada a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), divisão do Ministério das Relações Exteriores (MRE) encarregada de coordenar a cooperação internacional do Brasil, tanto a recebida quanto a oferecida. Embora boa parte das iniciativas de cooperação Sul-Sul oferecidas por ministérios e outras divisões do governo ficassem fora da pasta da ABC (Cervo, 1994), a criação da ABC foi um passo importante na institucionalização da cooperação técnica brasileira, permitindo também um maior alinhamento entre tais iniciativas e a política externa. Com o fim da Guerra Fria, o Brasil encontrou novas formas de inserção internacional, inclusive por meio da cooperação Sul-Sul. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), foram privilegiados na cooperação Sul-Sul brasileira os países do Mercosul e outras grandes economias em desenvolvimento, especialmente a China, a Índia e – após o colapso do regime Apartheid, em 1994 – a África do Sul (Saraiva, 2007). A partir de 2003, o governo Luís Inácio Lula da Silva (20032011) tornou a cooperação Sul-Sul uma das prioridades da política externa. Como o governo visava projetar o Brasil como potência emergente  – não apenas dentro da sua própria região, mas também no plano global – a cooperação técnica passou a ser utilizada para facilitar ou cimentar as relações com outros países em desenvolvimento. Para tal, o governo lançou mão de estratégias institucionais e discursivas. No plano institucional, como parte de um esforço de ampliação do corpo diplomático, a ABC passou por reformas que visaram a expansão da capacidade de coordenação de projetos pelo MRE. As mudanças foram realizadas com o objetivo de estreitar o alinhamento entre a cooperação técnica e, por outro lado, as prioridades da política externa tais como estabelecidas pelo governo  – ponto ressaltado pela própria ABC, de acordo com a qual, a missão da cooperação Sul-Sul brasileira é a de: 88

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contribuir para o adensamento das relações do Brasil com os países em desenvolvimento para a ampliação dos seus intercâmbios, para a geração, disseminação e utilização de conhecimentos técnicos, para a capacitação de seus recursos humanos e para o fortalecimento de suas instituições, por meio do compartilhamento de políticas públicas bem sucedidas4.

Mesmo com sua pasta de projetos ampliada, certas limitações institucionais perduraram. Por exemplo, o quadro reduzido de funcionários restringe a profissionalização da cooperação oficial, e a ausência de um marco legal para a cooperação internacional dificulta a alocação de recursos e pessoal para projetos de cooperação técnica no exterior. No que diz respeito ao discurso oficial da cooperação Sul-Sul, o governo brasileiro continuou sublinhando o caráter horizontal da sua cooperação, argumentando que a sua cooperação técnica atende a demandas identificadas pelos governos parceiros e ressaltando que o Brasil não impõe condicionalidades políticas à sua cooperação Sul-Sul. Tais afirmações servem não apenas para diferenciar a cooperação brasileira da assistência do Norte, mas também para enfatizar os laços de solidariedade para com outros países em desenvolvimento. De maneira geral, o discurso oficial também trata de apresentar o Brasil como uma fonte alternativa e positiva de políticas públicas inovadoras, retratando a cooperação brasileira como mais eficaz e complementar que a assistência provida pelo Norte, por causa do fato de o país já ter passado por experiências que seriam mais semelhantes aos desafios enfrentados por outros países em desenvolvimento (em comparação com os países avançados). Por isso, o governo considera a cooperação Sul-Sul distinta da “ajuda ao desenvolvimento”, buscando distanciar o Brasil da categoria de “doadores”. Apesar do discurso de solidariedade e horizontalidade, a cooperação Sul-Sul não é isenta de assimetrias, nem se trata de ação desinteressada. As iniciativas de cooperação Sul-Sul  – inclusive a cooperação técnica – são impulsionadas por um leque variado de interesses políticos, econômicos e sociais. ABC, 2014. Disponível em: http://www.abc.gov.br/CooperacaoTecnica/ Historico> Acesso em: 19 jun. 2014. 4

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A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

As relações Brasil-África As relações entre o Brasil e os países africanos têm variado ao longo do tempo. Os laços entre o Brasil e a África remontam ao comércio do império português, e particularmente o tráfego de escravos que eram levados da África para o Brasil. De Angola, por exemplo, escravos atravessavam o Atlântico Sul em direção ao Brasil. Houve também alguma movimentação na direção oposta, de administradores, mercenários, missionários e aventureiros. No século XVII, Angola teve três governadores “brasílicos”— Salvador de Sá (1648-1652), João Fernandes Vieira (1658-1661) e André Vidal de Negreiros (1661-1666) que possuíam propriedades no Rio de Janeiro, Pernambuco e Paraíba (Alencastro, 2007). Com o término legal e, mais adiante, de facto do comércio de escravos, o contato entre o Brasil independente e colônias africanas se reduziu a um mínimo. Após a Segunda Guerra Mundial, o Brasil redirecionou sua política externa de forma a alimentar o projeto de desenvolvimento econômico e industrial do país. No contexto bipolar do pós-Guerra, o alinhamento com o bloco ocidental, sobretudo os Estados Unidos, era percebido pelas elites brasileiras como o curso de ação mais favorável ao projeto de desenvolvimento nacional. Foi apenas na década de 60 que o governo optou por diversificar suas relações exteriores em busca de novas oportunidades econômicas. O primeiro passo nessa direção foi dado no governo Jânio Quadros, por meio de sua Política Externa Independente (PEI). A adoção de uma postura mais autônoma frente à bipolaridade da Guerra Fria tinha o objetivo de alcançar novos mercados que pudessem absorver produtos da indústria brasileira em expansão, trazendo benefícios econômicos para o país. As relações do Brasil com a África foram enfatizadas, por exemplo, por intermédio da criação do departamento de África no Itamaraty, da abertura de embaixadas no continente e da criação do Instituto Brasileiro de Estudos AfroAsiáticos5. Quadros aprofundou a PEI, sobretudo as relações com

o continente africano, sob a “Política dos 3Ds” (Desarmamento, Desenvolvimento e Descolonização), que tentava se colocar acima dos constrangimentos ideológicos da Guerra Fria6. No entanto, o regime militar que se instalou no Brasil após o golpe de Estado de 1964 reverteu o rumo da política externa, alinhando-a de novo com os EUA. Tal orientação mudaria mais uma vez apenas a partir de 1974, quando  – em busca de novas parcerias econômicas  – o governo enfatizou novamente a cooperação Sul-Sul, inclusive com países da África e do Oriente Médio. No período da ditadura, as relações com a África foram retomadas gradualmente pelos governos Costa e Silva (67-69), Médici (6974) e Geisel (74-79), sempre com foco na diversificação de parcerias (Médici firmou 30 tratados comerciais com países africanos e Geisel, 22). Vale destacar que no governo Geisel, o “pragmatismo responsável e ecumênico” da política externa brasileira priorizou as relações com a África, os países árabes e o campo socialista. No entanto, a descolonização permaneceu tema bastante sensível para o Brasil, em função da postura de passividade adotada pelo governo brasileiro ao colonialismo português na África. Apesar de defender os princípios da soberania e da autodeterminação, o Brasil chegou a defender o colonialismo europeu, e principalmente o português, na África. O compromisso político advindo do Tratado de Amizade e Consulta, que o Brasil assinou com Portugal em 1953, restringia a liberdade de ação do Brasil quanto ao tema colonial (Cau, 2011 p.55). Como parte de sua estratégia, o Brasil tratava de dar um caráter distinto ao colonialismo português, frente aos demais colonialismos7. Isso permitia uma postura mais flexível, porém bastante ambígua. Tal ambiguidade ficava muito clara nas posturas que o Brasil adotava nas sediado pela Universidade Cândido Mendes. A PEI pode ser mais bem compreendida por meio do discurso do diplomata brasileiro Araújo Castro na XVIII Sessão da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque. 6

Inclusive, Portugal defendia que os territórios ultramarinos não eram dependências, mas sim províncias de um Estado unitário. E, por sua vez, o Brasil reafirmava essa posição. 7

O Instituto, criado em 1961, foi extinto em 1964 pelo governo militar, sendo retomado apenas em 1973 como o “Centro de Estudos Afro-Asiáticos” e 5

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Nações Unidas. Por exemplo, ao mesmo tempo em que o país votava contra a resolução que recomendava a Portugal apresentar à ONU informações sobre as suas colônias na África, o Brasil também votava a favor do projeto de “Declaração sobre a concessão de independência aos povos e países das colônias”. Além de prejudicar seu relacionamento com as colônias portuguesas, esse posicionamento também dificultou as relações com outros países africanos, tendo em vista o engajamento destes na luta pelo fim do colonialismo e em favor da autodeterminação dos povos. O Brasil só abandonou sua postura de ambiguidade com o colapso do colonialismo português, esgotado definitivamente após a Revolução dos Cravos e o fim do regime Salazarista em 1974. Os efeitos da crise do petróleo de 1973, somados ao esgotamento do modelo de desenvolvimento praticado no Brasil até então (o da substituição de importações), levaram ao endividamento externo, induziram taxas elevadas de inflação e provocaram baixo crescimento econômico. A crise também foi fator na mudança de postura do Brasil quanto ao colonialismo português. Afinal, uma aproximação com a África portuguesa serviria não apenas para melhorar a imagem do Brasil com outros países em desenvolvimento (inclusive os produtores de petróleo), mas também para prospectar novas fontes de petróleo para o Brasil. A partir dessa virada, o Brasil passou a estabelecer políticas de longo prazo e perseguir objetivos mais estratégicos em relação à África. Porém, vale ressaltar que o reconhecimento das independências foi um reconhecimento de facto; o Brasil não condenou publicamente a política colonialista de Portugal. Assim sendo, no período pós-independências, o Brasil enfrentou certo ressentimento africano por causa de sua postura de passividade durante o período colonial. A partir da instalação de representações diplomáticas nos países recém-independentes, as relações com os países africanos de língua portuguesa começaram a se aprofundar. Foi concedida prioridade estratégica aos países ricos em petróleo, assim como aqueles cujo mercado consumidor parecia promissor para os produtos industrializados brasileiros. Atenção especial foi dada a Angola em função de seus recursos minerais abundantes.

Em um contexto internacional marcado por adversidades, a política externa do governo Figueiredo (79-85) adotou o universalismo como orientação política, com o objetivo de consolidar uma maior autonomia para o país. O Brasil buscou então reforçar uma identidade terceiro-mundista, aprofundando as relações com outros países em desenvolvimento e mantendo sua aproximação com o Movimento dos Não Alinhados (mesmo sem ingressar formalmente na organização). Nesse período, a África continuou sendo uma prioridade da diplomacia brasileira, apesar da cooperação ter sido limitada em função das fortes instabilidades políticas e econômicas presentes em ambos os continentes. Figueiredo foi o primeiro presidente brasileiro a visitar a África, passando pela Nigéria, Senegal, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Argélia em 1983. Com a redemocratização brasileira e o fim da Guerra Fria, o governo Sarney (85-90) buscou diversificar ainda mais as relações externas. No entanto, os ajustes estruturais do consenso de Washington, que pregava a austeridade fiscal e os princípios do mercado, estreitaram as opções tanto no âmbito doméstico quanto no plano internacional. Com isso, a cooperação Sul-Sul brasileira se enfraqueceu, o que se refletia também na sua cooperação técnica; o país ainda recebia mais assistência do que oferecia cooperação Sul-Sul. Mesmo assim as relações entre o Brasil e a África na década de 90 recebem interpretações distintas; certos autores enxergam um incremento dos laços, ao passo que outros interpretam a década como marcada pelo enfraquecimento dessas relações. Rizzi (2005) aponta um declínio nas relações Brasil-África, citando diversos fatores, entre os quais: a diminuição do número de diplomatas brasileiros servindo na África; o abatimento do comércio BrasilÁfrica no período pós-Guerra Fria; a vulnerabilidade política e econômica dos países africanos; e a escassez de novas oportunidades de comércio. Já nas interpretações de Hirst e Pinheiro (1995) e Pimentel (2000), houve retomada gradual da política africana na década de 1990. Pode-se considerar que o Brasil fez, como coloca Saraiva (1996), “opções seletivas” no continente africano no período pós-Guerra Fria, concentrando-se em quatro linhas de ação. No plano bilateral, o Brasil buscou estreitar laços com a África do Sul uma vez que o regime Apartheid terminou, em 1994, e com

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Angola, para onde enviou tropas como parte da missão de paz da ONU. Na dimensão multilateral, o Brasil investiu na revitalização da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (Zopacas)8 e na criação da Comunidade de Países Lusófonos (CPLP), lançada em julho de 19969. Contudo, no âmbito geral, o Brasil buscou mais contato com os EUA e com a Europa, enfatizando também o recém-formado Mercosul e, em segundo plano, procurando certa aproximação com a Ásia. Como parte da sua política de aproximação com outras potências regionais, o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) também aprofundou os laços com a África do Sul, englobando aspectos políticos e econômicos. As parcerias do Brasil na África se intensificaram e se diversificaram após a virada do milênio, quando o governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) optou por priorizar a cooperação SulSul, inclusive como forma de aumentar a autonomia da política externa brasileira em relação aos países do Norte. O novo grau de importância dado à África como um todo, se reflete na abertura ou reabertura de embaixadas e outras representações diplomáticas brasileiras no continente. O Brasil tem hoje representações em 37 dos 54 países africanos, das quais 19 foram inauguradas desde o início do governo Lula. Muitos países africanos reciprocaram o gesto abrindo também missões em Brasília: 17 embaixadas e escritórios de países africanos foram inaugurados em Brasília, somando-

-se às 16 que já existiam10. A diplomacia presidencial de Lula, que se interessava pessoalmente pela África, também contribuiu para a intensificação das relações: Lula visitou a África mais vezes que qualquer antecessor. Tais esforços facilitaram não apenas a assinatura de acordos oficiais, mas também a atuação de atores não estatais. Os investimentos brasileiros na África, liderados pela Vale, Petrobras e grandes construtoras tais como a Odebrecht, aumentaram de forma significativa, muitas vezes com financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Socioeconômico (BNDES). A própria estrutura do BNDES passou a refletir o maior empenho do governo em fomentar a cooperação Sul-Sul: o financiamento às exportações, lançados em 1990, foram expandidos e concentrados em divisão própria dentro do Banco. Em 2013, o BNDES abriu escritório em Joanesburgo para coordenar suas atividades em todo o continente africano. O discurso oficial passou a ressaltar os laços históricos e demográficos entre o Brasil e a África, por vezes sublinhando também a condição comum de ex-colônia11. Os países africanos membros da CPLP permaneceram prioridades, pois a organização  – vista por parte da liderança como espécie de plataforma para a projeção do Brasil na África  – foi adquirindo um caráter mais estratégico na política externa brasileira. Como aponta Coelin:

A Zopacas foi relançada em 1994, e a proposta para a criação da CPLP foi lançada em 1989, durante o governo Itamar Franco, sendo que a organização foi fundada em 1996 com a participação—além do Brasil  – de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe (Timor Leste ingressou na comunidade em 2002, após obter a sua independência, e a Guiné Equatorial se juntou à organização em 2014).

a inserção do Brasil na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa dá-se justamente sob o duplo signo da avaliação político-estratégica do interesse nacional e do sentimento de solidariedade que nos aproxima de países e povos com os quais compartilhamos elementos históricos e culturais, bem como projetos comuns de desenvolvimento e paz. Assim, a CPLP constitui-se em marco orientador de prioridades para a atuação brasileira na cooperação Sul-Sul12.

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De acordo com o artigo 5º do Estatuto da CPLP (1996), são objetivos gerais da organização: 1- a concertação político-diplomática entre os seus membros em matéria de relações internacionais; 2- a cooperação em todos os domínios, inclusive os da educação, saúde, ciência e tecnologia, defesa, oceanos e assuntos do mar, agricultura, segurança alimentar, administração pública, comunicações, justiça, segurança pública, economia, comércio, cultura, desporto e comunicação social; 3- a promoção e difusão da Língua Portuguesa. 9

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BBC Brasil, 2011. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/ noticias/2011/10/111017_diplomacia_africa_br_jf.shtml 10

Tal discurso minimiza o apoio dado pelo Brasil ao colonialismo português durante boa parte da Guerra Fria, assim como os frequentes votos na ONU contra a independência de colônias africanas. 11

Artigo disponível Port-4.pdf 12

em:

http://dc.itamaraty.gov.br/imagens-e-textos/CPLP-

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Durante a década de 2000, a agenda da CPLP foi ampliada de forma a incluir não apenas cooperação cultural e para o desenvolvimento, mas também iniciativas voltadas para a segurança, como no caso da instabilidade recorrente em GuinéBissau. Do ponto de vista do Brasil, a organização também adquiriu maior peso por conta da nova política de defesa brasileira, que alçou o Atlântico Sul ao mesmo patamar de importância historicamente dedicado a zonas de fronteira terrestres, sobretudo a Amazônia (Abdenur; Souza Neto, 2014). A importância dos países lusófonos para a política externa do período se reflete também na cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento. Levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) indica que os países de língua portuguesa juntos receberam 27% do volume da Cooperação Técnica, Científica e Tecnológica (CTC&T) brasileira entre 2005 e 2009 (Ipea, 2010). Segundo os dados na África, os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop) são os principais beneficiários da cooperação brasileira na África. Entre os Papop, Moçambique e Angola estão em segundo lugar na lista de maiores parceiros de CTC&T do Brasil (cada um deles recebendo o equivalente a 4% do total de CTC&T brasileira, sendo superados apenas por Guiné-Bissau que recebe cerca de 6%)13. Além das iniciativas bi e multilaterais, o número de projetos de cooperação triangular dentro da CPLP vem aumentando à medida que os países lusófonos têm buscado, cada vez mais, financiamento externo para suas atividades de cooperação, mesmo para além dos doadores do Norte. É, portanto, nesse contexto de aprofundamento das relações com a África que se dá a intensificação da cooperação brasileira com Moçambique e Angola, analisada na próxima parte do texto.

A cooperação Brasil-Angola

Ipea e ABC. (2010), Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional 2005-2009. Brasília: Ipea/ABC.

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O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência angolana, em 11 de novembro de 1975. Enquanto o Brasil se coloca como interlocutor entre Angola e o Ocidente (Rizzi, 2005 p. 37), Angola se posiciona como um mediador no projeto brasileiro de aproximação com países africanos. Sobretudo após a virada do milênio, o crescimento econômico, o fim da guerra civil angolana e a crescente importância do Atlântico Sul para as políticas externa e de defesa do Brasil tornaram Angola um dos principais interlocutores do Brasil na África. As relações bilaterais foram lançadas por meio de iniciativas de cooperação econômica. Em abril de 1976, foi organizada a primeira missão comercial brasileira a Angola, levando representantes da Petrobras e do Banco do Brasil. Em julho de 77 foi firmado o convênio MRE-Seplan, que deu origem ao Programa de Cooperação Técnica Brasil-África. Dentro desse contexto, o primeiro gesto para incentivar a cooperação técnica entre Brasil e Angola foi a assinatura do Acordo de Cooperação Econômica, Científica e Técnica, em junho de 1980, na ocasião da visita do Chanceler brasileiro Saraiva Guerreiro. Por meio desse acordo, surgiram projetos de cooperação nas áreas de saúde, cultura, administração pública, formação profissional, educação, meio ambiente, esportes, estatística e agricultura14. O acordo também levou à criação da Comissão Mista Brasil-Angola. Um dos resultados dessa missão foi oficializado em 1979 com a assinatura do acordo entre a Petrobras e a Sonangol (petrolífera estatal angolana). Os primeiros grandes investimentos da iniciativa privada brasileira em Angola tiveram início na década de 1980. A pioneira nesse processo foi a Construtora Odebrecht, que começou a operar em Angola em 1984 na construção da Hidrelétrica de Capanda. Para facilitar a instalação de empresas do Brasil em Angola, o governo brasileiro começou a ampliar as linhas de crédi ABC, 2014. Disponível CooperacaoSulSul/Angola

em:

http://www.abc.gov.br/Projetos/

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A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

to para o país africano. Em junho de 1986 foram oferecidos US$ 150 milhões e em julho de 1988 o valor liberado foi de US$ 235 milhões (Rizzi, 2005). Com o final da Guerra Fria, a diplomacia bilateral foi se intensificando, o que se reflete nas visitas de chefes de Estado. Sarney foi o primeiro presidente brasileiro a visitar Angola, em janeiro de 1989, e Fernando Henrique Cardoso viajou ao país em 1996. Com o fim da bipolaridade, surgiram novas oportunidades de cooperação e apoio mútuo no plano multilateral. Na década de 1990, o Brasil não apenas atuou junto ao CSNU em questões relacionadas à guerra civil angolana (1976-1991) e em apoio à legitimidade das eleições de 1992 no país, como também participou ativamente nas missões de paz da ONU em Angola a partir de 1995 (Rizzi, 2005). A V sessão da Comissão Mista Brasil-Angola, realizada em Brasília, ampliou e aprofundou a cooperação bilateral. Durante a reunião, foram assinados diversos acordos e protocolos de intenções nas áreas de agricultura, energia, comércio, educação e formação profissional, entre outros, contando com a participação de diversos órgãos vinculados ao governo brasileiro, tais como a Embrapa, assim como entidades da sociedade civil, como o Senai e o Senac. A parceria entre a Petrobras e a Sonangol também foi aprofundada. Em novembro de 1996, Fernando Henrique Cardoso visitou Angola (assim como a África do Sul) com o objetivo de reverter o decréscimo das relações econômicas. Como no caso de Moçambique, os laços entre o Brasil e Angola se aprofundaram com as oportunidades de cooperação trazidas pela criação da CPLP em julho de 1996. Na esfera política, é importante destacar as afinidades de interesses entre Brasil e Angola no que diz respeito ao adensamento das relações de cooperação Sul-Sul e à revisão das relações de poder do sistema internacional, como, por exemplo, a eliminação das distorções no comércio de produtos agrícolas provocadas pelos países desenvolvidos (José, 2011 p. 235). Rizzi (2005) argumenta que as relações bilaterais entre Brasil e Angola foram estabelecidas com a independência, intensificadas economicamente na década de 1980 e amadurecidas a partir da década de 1990.

Dessa forma, o Brasil passou a atuar como um parceiro importante na reconstrução do país após o fim da guerra civil angolana por meio de iniciativas públicas e privadas. A relação comercial entre Brasil e Angola vem se tornado cada vez mais expressiva. Entre 2009 e 2013, as trocas comerciais entre os dois países aumentaram em 35,9%, de US$ 1,47 bilhão para US$ 1,99 bilhão. No entanto, os fluxos estão marcados por uma forte assimetria: o saldo da balança comercial permaneceu favorável ao Brasil em todo o período, registrando superávit de US$ 544 milhões em 2013. O Brasil exporta para Angola produtos manufaturados (71,3% do total), sobretudo açúcar refinado, máquinas, aviões e automóveis, e importa predominantemente produtos básicos (71,3% do total em 2013), com destaque para petróleo e gás natural15. Como no resto da África lusófona, a presença de empresas brasileiras em território angolano também tem crescido. Em 2000, apenas 7 empresas brasileiras participaram da Feira Internacional de Luanda (Filda), ao passo que, na edição de 2009, o evento contou com 75 expositores brasileiros (José, 2011 p. 222). Atualmente, entre as principais empresas brasileiras com atuação em território angolano, destacam-se as construtoras que participam em projetos de infraestrutura no país: Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Odebrecht. Além disso, também existem projetos de grande porte sendo executados por empresas como Furnas, Petrobras, Vale do Rio Doce e Embraer. Em alguns projetos, as empresas possuem financiamento à exportação concedido pelo BNDES. Em outros, formaram joint ventures com empresas locais, como no caso da construção do primeiro shopping mall de Luanda, o Belas Shopping (parceria entre a Odebrecht e a angolana HO Gestão de Investimentos (Hogi)16.

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Brasil Export, 2014. Disponível em: http://www.brasilexport.gov.br/sites/ default/files/publicacoes/indicadoresEconomicos/INDAngola.pdf 15

Em 2014, o shopping contava com várias marcas brasileiras, desde a Bob’s (restaurant fast food) até Ellus (roupas), Boticário (perfumaria) e Mundo Verde (produtos orgânicos). 16

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Visitas presidenciais contribuíram para a intensificação da cooperação econômica. Lula esteve em Angola em duas ocasiões como presidente  – em 2003 e novamente em 2007  – aproveitando para anunciar o aumento do crédito concedido ao país para um montante de dois bilhões de dólares. Já em junho de 2010, em visita do presidente Santos ao Brasil, foram assinados acordos que elevaram o crédito do Brasil para Angola a uma faixa de 10 bilhões de dólares (José, 2011 p. 227). Esses incentivos econômicos serviram não apenas para consolidar os laços bilaterais, mas também para tentar contrapor a influência crescente da China em Angola. Se no momento inicial o principal impulso das relações Brasil-Angola foi comercial, em um segundo momento a cooperação técnica ganhou destaque na agenda bilateral. A ABC coordena diversos projetos em Angola. Na área de agricultura, a Embrapa tem um projeto estruturante de fortalecimento de instituições públicas de pesquisa agrícola. O projeto é executado por intermédio de parceria com o Ministério da Agricultura e Desenvolvimento de Angola e dois institutos de pesquisa locais e faz parte do programa de cooperação triangular entre o Brasil (coordenado pela ABC) e a FAO17. Já na área de saúde pública, o Brasil tem um projeto de capacitação do sistema angolano de saúde, financiado pela ABC e executado por diversas unidades da Fiocruz. O projeto tem dois componentes: apoio ao Instituto Nacional de Saúde de Angola (INS/Angola) e cooperação na formação de pesquisadores e docentes em temas de saúde18. O Brasil também coopera no fortalecimento das escolas de saúde pública de Angola, por exemplo, por meio de um projeto para a realização de um curso de

mestrado em saúde pública. Em 2014 foi assinado também um acordo para novo projeto, um programa de prevenção e controle de malária com forte componente de capacitação técnica19. Alguns projetos de cooperação técnica são colocados em prática por entidades da sociedade civil brasileira. O Serviço Nacional de Aprendizagem (Senai), por exemplo, em parceria com o Instituto Nacional de Emprego e Formação Profissional de Angola (Inefop), inaugurou o Centro de Formação Profissional Brasil-Angola (também conhecido como Centro de Formação Profissional do Cazenga) em novembro de 1999, com a presença do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. O projeto, fruto de longa parceria20 entre os dois países, foi elaborado de forma a contribuir para a oferta de mão de obra qualificada para prestar apoio nos esforços de reconstrução do país. O controle do centro, que visa a formação e reciclagem de mão de obra desmobilizada, foi transferido para o governo angolano em 2005. Atualmente o Instituto atende cerca de 1.200 alunos anualmente e funciona com cerca de 30 instrutores, a maioria com cursos de formação profissional realizados no Brasil21. No que diz respeito à cooperação cultural, podemos citar a doação de 1.419 livros brasileiros para bibliotecas angolanas em 2003; a inauguração da Casa de Cultura Brasil-Angola e Centro de Estudos Brasileiros Embaixador Ovídio de Andrade e Melo, instalada em Luanda também em 2003; e a realização do Dia da Amizade Angola-Brasil em Luanda, com apresentação de diversos artistas dos dois países (Jos, 2011). Na área de gestão da Cultura, o Ministério da Cultura e a Universidade Federal da Bahia (UFBA) cooperam com o Ministério da Cultura angolano na capacitação de técnicos, na recuperação do acervo audiovisual angolano e na área de arquivo histórico. O Instituto do

Embrapa (s.d.) “Projetos estruturantes” https://www.embrapa.br/projetosestruturantes

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ABC (s.d.) disponível em: http://www.abc.gov.br/imprensa/mostrarnoticia/152

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A primeira visita de técnicos da ABC e do Senai a Luanda ocorreu em 1997.

Centro de Relações Internacionais em Saúde (2012) “Relatório de Atividades” Fiocruz: http://portal.fiocruz.br/sites/default/files/documentos/ Relatorio%20CRIS%202012%20b.pdf

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Agência Brasileira de Cooperação (s.d.) “Centro de Formação BrasilAngola”. Disponível em: http://www.abc.gov.br/Projetos/CooperacaoSulSul/ CentroFormacaoAngola

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Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) também atua na execução deste projeto22. Além da cooperação bilateral, o Brasil também oferece a Angola cooperação por meio da CPLP. Como exemplo, podemos citar o Programa de Formação Técnica em Informação em Saúde para os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa e Timor-Leste, que tem a participação da Fiocruz e inclui Angola entre os cinco países onde o projeto está sendo colocado em prática (os demais são Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe)23. A cooperação Brasil-Angola também se estende à dimensão política, com uma parceria estratégica assinada por meio de declaração conjunta em 23 de junho de 2010, na ocasião da visita do presidente angolano José Eduardo dos Santos. Mecanismos institucionais visando a consolidação das relações entre os dois países incluem a formação de uma Comissão Bilateral de Alto Nível e a assinatura do Plano Plurianual de Cooperação Brasil-Angola, que estabelece parâmetros para a ampliação da cooperação. Em 2011, o presidente Santos expressou seu apoio à candidatura brasileira a um assento permanente no CSONU24. Em 2014, o Brasil retribuiu o gesto apoiando a candidatura de Angola ao cargo de membro não permanente no mesmo Conselho25. A importância estratégica de Angola para o Brasil aumentou com a reformulação da política brasileira de defesa, que eleva o Atlântico Sul ao mesmo patamar de importância historicamente

dada à Amazônia e à região do Prata. A nova atenção dada ao Atlântico Sul é, em parte, resultado das descobertas de reservas de petróleo nas camadas do pré-sal e dos esforços por parte da diplomacia brasileira de ampliar as águas jurisdicionais do país por meio da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar – elementos ressaltados pela campanha “Amazônia Azul,” lançada com o objetivo de conscientizar a população brasileira sobre a importância do espaço atlântico para o desenvolvimento e defesa nacionais. Como o Brasil vem desempenhando papel de liderança no processo de revitalização da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (Zopacas), mecanismo que busca estimular a cooperação para a manutenção de um ambiente de paz e cooperação na região, Angola tornou-se um parceiro ainda mais importante em questões geopolíticas (Abdenur; Souza Neto, 2014). Em 2007, Luanda sediou reunião ministerial da Zopacas, ao final da qual foi lançado o Plano de Ação de Luanda. Além do âmbito multilateral, Angola vem tornando-se importante parceira em assuntos militares; a parceria estratégica em defesa prevê não apenas o aumento das exportações de materiais de defesa do Brasil para Angola, mas também o Programa de Desenvolvimento do Poder Naval de Angola (Pronaval), no que a Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron), da Marinha brasileira, irá cooperar com o governo angolano na construção de estaleiros, capacitação de recursos humanos, e manutenção e operação de seis navios-patrulha adquiridos também por meio do Pronaval. Outros aspectos da cooperação bilateral em defesa abrangem o ensino e treinamento de oficiais e suboficiais, saúde militar, operações especiais, missões de paz e sistemas de vigilância marítima26.

ABC (s.d.) “Brasil e Angola firmam três novos projetos de cooperação técnica nas áreas cultural e de saúde). Disponível em: http://www.abc.gov.br/ imprensa/mostrarnoticia/152 22

Fiocruz (s.d.) “Cooperação Internacional do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde”. Disponível em: http://www.icict. fiocruz.br/content/cooperacao-internacional 23

MRE (2011) “Comunicado Conjunto por ocasião da visita da Presidenta Dilma Rousseff a Angola” Luanda, 20 de outubro de 2011, Nota à imprensa no. 405. 24

Portal Brasil, 2014. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/governo/2014/06/ dilma-anuncia-apoio-brasileiro-a-candidatura-de-angola-no-conselho-deseguranca-da-onu 25

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Portal Brasil, 2014. “Angola busca cooperação brasileira para implementar Programa Naval”. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/defesa-eseguranca/2014/08/angola-busca-cooperacao-brasileira-para-implementarprograma-naval 26

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A cooperação Brasil-Moçambique As relações diplomáticas entre os dois países foram estabelecidas em 15 de novembro de 1975, poucos meses após a independência de Moçambique. Em 1976 foi aberta a Embaixada em Maputo (a Embaixada de Moçambique seria estabelecida em Brasília apenas em 1998). Os primeiros anos da relação bilateral foram complicados por conta de diversos fatores. Do lado moçambicano, restava um ressentimento por parte das lideranças políticas em relação ao apoio que o Brasil havia dado ao colonialismo português, o que provocou certa resistência e falta de confiança mesmo após o lançamento das relações formais. Além disto, durante a Guerra Fria Moçambique optou por manter uma cooperação privilegiada com países socialistas dentro do contexto de bipolaridade da época, justamente quando o Brasil ainda se encontrava sob regime militar. Por fim, a instabilidade regional e a guerra civil moçambicana, que eclodiu em 1977, também prejudicaram um contato mais próximo com o Brasil. Já o Brasil passava por sérias dificuldades econômicas, agravadas pela crise do petróleo. A contenção de despesas dificultou a disponibilidade de crédito para Moçambique, justamente quando o período pós-independência demandava investimentos, limitando a dimensão da cooperação técnica oferecida pelo Brasil. Em função desse cenário adverso, a primeira visita oficial de um representante do governo moçambicano ao Brasil ocorreu apenas em setembro de 1981, quando Joaquim Chissano, então Ministro de Negócios Estrangeiros, esteve no Brasil. Nessa ocasião foi assinado o Acordo Geral de Cooperação entre a República Federativa do Brasil e a República de Moçambique, estabelecendo um arcabouço geral para o aprofundamento das relações bilaterais. Em meados da década de 80, com o processo de redemocratização no Brasil, as relações com a África ganharam novo fôlego. Com o fim da guerra fria, o contexto político-econômico melhorou consideravelmente para as relações bilaterais entre Brasil e Moçambique. O período de redemocratização do Brasil coincidiu com a o fim da guerra civil moçambicana e a transição 104

A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

do país para uma economia de mercado. A estabilidade política, a consolidação da democracia e os avanços econômicos em Moçambique criaram condições favoráveis para o aprofundamento das relações bilaterais. Do lado brasileiro, o Plano Real, colocado em prática em 1994 pelo governo Fernando Henrique Cardoso, trouxe a estabilidade macroeconômica e, portanto, as bases para a retomada do crescimento econômico. Já Moçambique, cuja economia tornou-se altamente dependente da assistência do Norte, buscava diversificar suas parcerias no exterior, inclusive com os provedores de cooperação Sul-Sul. As relações bilaterais se intensificam durante o governo Lula. Durante sua presidência, Lula visitou Moçambique três vezes (em 2003, 2008 e 2010), assinando vários acordos de cooperação bilateral com o país e perdoando quase toda a dívida de Moçambique (US$ 315 mi de US$ 330 mi). Na cooperação técnica, amparada pelo Acordo Geral assinado em 1981, destacam-se projetos na área de desenvolvimento urbano, agricultura e segurança alimentar, saúde pública e fortalecimento do Poder Judiciário. De acordo com a ABC, ao final de 2011, o programa bilateral de cooperação técnica Brasil-Moçambique era composto por 21 projetos em execução, sendo que outros nove se encontravam em processo de negociação. Dentre os projetos mais visíveis nas mídias e nos debates públicos estão o projeto ProSavana, parceria entre a ABC e a agência japonesa de desenvolvimento internacional (Jica) e o governo moçambicano, que visa transformar a região de savana na província de Matola em um grande corredor de monocultura voltada à exportação de commodities. O projeto, inspirado na experiência da Embrapa de transformação do cerrado do centro-oeste brasileiro, visa a modernização da agricultura de Nacala de forma a aumentar a produtividade e produção, mas também tem sido alvo de críticas por parte da sociedade civil por incluir o deslocamento de populações locais. Outro projeto de destaque é a instalação, liderada pela Fiocruz, de uma fábrica de medicamentos, sobretudo antirretrovirais usados no tratamento do HIV/Sida, em Matola. A fábrica, originalmente prometida por Lula durante visita a Maputo em 2003, foi cons105

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A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

truída com financiamento da Vale no município de Matola, perto da capital, visando a transferência de tecnologias e conhecimento na fabricação, embalagem, armazenamento, controle de qualidade e distribuição de medicamentos. Apesar de ter sido formalmente inaugurada em 2012, o projeto tem sofrido uma série de atrasos e ainda não se encontra plenamente operacional. Embora esses dois projetos tenham recebido atenção na mídia e nos debates públicos, há outras iniciativas voltadas para o fortalecimento de capacidades locais, muitas delas visando a criação ou ampliação de instituições governamentais. Por exemplo, a Fiocruz contribui para a criação de um banco de leite materno, para a ampliação de um mestrado em ciências da saúde, e para o fortalecimento do Instituto Nacional de Saúde (Almeida et. al., 2010). A maioria dos projetos de cooperação técnica é coordenada pela ABC e colocada em prática por ministérios ou instituições vinculadas ao Estado, tais como a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em parceria com órgãos do governo moçambicano. No entanto, alguns projetos são executados juntamente com atores não estatais, sobretudo do lado brasileiro. O Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), por exemplo, está implementando um centro de formação profissional em Maputo. Na área de desenvolvimento urbano, também existem projetos de cooperação técnica que foram estabelecidos entre municípios brasileiros e municípios moçambicanos. A cidade de Porto Alegre, por exemplo, já havia cooperado com Xai-Xai e Inhambane, compartilhando sua experiência com reassentamentos. Mais recentemente, em janeiro de 2013, surgiu um projeto com maior dimensão para o intercâmbio de ferramentas de gestão urbana entre cidades dos dois países. O objetivo é melhorar a capacidade de gestão do desenvolvimento de oito municípios em Moçambique (Dondo, Inhambane, Lichinga, Manhiça, Maputo, Matola, Nampula e Xai-Xai) e seis no Brasil (Porto Alegre, Belo Horizonte, Guarulhos, Vitória, Canoas e Maringá), assim como de duas associações de autoridades locais (Associação Nacional de Municípios de Moçambique  – ANAMM  – e Frente Nacional de Prefeitos

do Brasil  – FNP), mediante ações de intercâmbio de boas práticas e capacitação institucional27. Concretamente, o projeto inclui o desenvolvimento, a adaptação local, a gestão e conhecimento de três ferramentas de gestão pública (Orçamento Participativo; Cadastro Territorial Multifinalitário; Plano Diretor Participativo), por meio da troca de experiências entre as cidades dos dois países28. A cooperação também se estende à área de defesa. Em julho de 2005, foi estabelecida a adidância das Forças Armadas junto à Embaixada em Maputo29- reflexo da importância crescente de Moçambique como parceira na cooperação militar. Oficiais e suboficiais moçambicanos são treinados em academias militares brasileiras, e em 2014 o Brasil ofereceu contribuir para a estrutura naval moçambicana. Também foi prometida a doação de aeronaves de treinamento, e os dois países estudam a possibilidade de incorporar o fornecimento de equipamentos de defesa à cooperação militar bilateral30. Tais laços de cooperação têm se intensificado por meio de visitas de chefe de Estado (inclusive a ida do Presidente Armando Guebuza a Brasília em setembro de 2007) e diversas reuniões ministeriais. A Comissão Mista de Cooperação Brasil-Moçambique tornou-se mecanismo importante na manutenção e ampliação desses laços. No plano econômico, o comércio entre Brasil e Moçambique, em números absolutos, ainda é pouco expressivo: aproximadamente US$ 99,1 milhões em 2014, sendo que os intercâmbios estão caracterizados por uma forte assimetria. Apenas 0,05% das exportações moçambicanas estão destinadas ao Brasil, que ocupa o 53o lugar entre os compradores de Moçambique.

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Disponível em: Acesso em: 05 jun.2014. 27

Disponível em: Acesso em: 05 jun.2014. 28

MRE (s.d.) “Relações bilaterais Brasil-Moçambique”. Disponível em: http:// maputo.itamaraty.gov.br/pt-br/relacoes_brasil-mocambique.xml 29

Notícias Online (2014) “Área da defesa: Moçambique e Brasil reforçam cooperação” 20 março 2014. Disponível em: http://www.jornalnoticias.co.mz/ index.php/politica/12594-area-da-defesa-mocambique-e-brasil-reforcamcooperacao 30

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Da mesma forma, Moçambique foi o 96o parceiro comercial do Brasil em 201331. O Brasil exporta para Moçambique predominantemente produtos manufaturados (77,5% do total em 2013), sobretudo veículos, máquinas e automóveis, ao passo que importa de Moçambique quase exclusivamente (95,9% do total) commodities (hulha betuminosa)32. Já os investimentos brasileiros em Moçambique aumentaram de forma significativa na década de 2000, em parte graças aos incentivos fiscais, tais como isenções de impostos e reduções de taxas, concedidos pelo governo moçambicano para projetos de grande porte. Dentre os maiores investidores brasileiros no país estão a Odebrecht (infraestrutura), Siemens (telecomunicações), Petrobras (petróleo e gás) e Vale (mineração e transporte)33. A presença brasileira em Moçambique não é isenta de críticas. Como já mencionado, o projeto ProSavana tem sido alvo de fortes contestações por parte da sociedade civil moçambicana, frequentemente em articulação com entidades brasileiras. Intelectuais moçambicanos tais como Mia Couto e Paulina Chinzane também questionam a influência cultural do Brasil em Moçambique; o primeiro contesta a imagem elitista e branca que o Brasil passa no exterior34, ao passo que Chiziane critica as telenovelas e as igrejas pentecostais com sede no Brasil que abriram filiais em Moçambique35. As reações à cooperação brasileira em Moçambique  – tanto os elogios quanto os questionamentos  – tendem a se diversificar a medida que os laços vão se expandindo, tanto por vias bilaterais quanto por meio de mecanismos multilaterais tais como a ONU e a CPLP. Brasil Export, 2014. Disponível em: http://www.brasilexport.gov.br/sites/ default/files/publicacoes/indicadoresEconomicos/INDMocambique.pdf 31

Brasil Export, 2014. Disponível em: http://www.brasilexport.gov.br/sites/ default/files/publicacoes/indicadoresEconomicos/INDMocambique.pdf 32

33

ibid.

Época, 2014. Disponível em: http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2014/04/ bmia-coutob-o-brasil-nos-enganou.html (authors’ translation) 34

Agência Brasil, 2012. Disponível em: http://memoria.ebc.com.br/ agenciabrasil/noticia/2012-04-17/novelas-brasileiras-passam-imagem-de-paisbranco-critica-escritora-mocambicana 35

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Conclusão A intensificação da cooperação brasileira com Angola e Moçambique faz parte de um fenômeno mais abrangente: a crescente importância dada por atores brasileiros – tanto atores estatais quanto empresas do setor privado e entidades da sociedade civil – aos laços com a África, e mais especificamente com a África lusófona. O aumento dos fluxos comerciais (ainda que marcados por fortes assimetrias em favor do Brasil), a expansão dos investimentos e a diversificação das iniciativas lançadas por ONGs, associações e entidades religiosas refletem a percepção de novas oportunidades no continente africano. Ao mesmo tempo, a ampliação da cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento, inclusive na sua dimensão técnica, mostra que a demanda angolana e moçambicana por maior interação com o Brasil abarca áreas tão diversas quanto a agricultura, a educação e a saúde pública. Sobretudo a partir da década de 90 – com o fim da guerra civil angolana e, por outro lado, a estabilização da economia brasileira – novos mecanismos bi- e multilaterais permitiram a consolidação das relações não apenas no plano econômico, mas também nas suas dimensões política, cultural e militar. Ao mesmo tempo, tal comparação requer uma série de qualificações, pois as divergências históricas, econômicas, políticas e culturais entre Angola e Moçambique  – apesar do status comum como ex-colônias portuguesas que se tornaram independentes durante a Guerra Fria – não podem ser ignoradas. Tais diferenças afetam as relações desses países com o Brasil, o que significa que a cooperação brasileira é “filtrada” por meio de instituições, práticas e normas locais, levando a resultados que não podem ser interpretados como idênticos. Por exemplo, o fato de Angola estar situado no Atlântico Sul, que se tornou nova região prioritária da política de defesa do Brasil, traz uma série de motivações e preocupações que não existem necessariamente nas relações Brasil-Moçambique. Da mesma forma, os investimentos brasileiros em carvão moçambicano e a efetivação do projeto ProSavana em Nacala provocam reações locais que não se aplicam ao caso da cooperação Brasil-Angola. É, portanto, essencial repensar a “cooperação Brasil109

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África” à luz dessas especificidades, de forma a evitar generalizações que perpetuem o mito de uma África homogênea. Finalmente, é essencial analisar tais laços ao longo do tempo, pois a trajetória histórica das relações entre o Brasil e seus parceiros africanos  – tal como demonstram os casos de Angola e Moçambique – é inconstante, variando não apenas de acordo com as motivações e recursos brasileiros e africanos, mas também conforme o contexto mais amplo. Tanto no caso angolano quanto no moçambicano, por exemplo, o Brasil enfrenta concorrência não apenas dos países do Norte global, mas também – e cada vez mais – de outros provedores de cooperação Sul-Sul. Ao mesmo tempo que o Brasil colabora com os demais Brics, inclusive por meio do projeto do Novo Banco de Desenvolvimento (anunciado em 2014, durante a sexta cúpula dos cinco chefes de Estado em Fortaleza), as potências emergentes competem por nichos e oportunidades em comércio, investimentos, cooperação técnica e (de forma geral) influência na África. Futuras análises da cooperação brasileira com países africanos, inclusive Angola e Moçambique, devem levar em conta essas novas geometrias de cooperação e concorrência, inclusive quando elas se sobrepõem nos mesmos espaços.

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POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E A COALIZÃO IBAS: COMÉRCIO E INSERÇÃO INTERNACIONAL1 Adriana Schor* Janina Onuki**

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Introdução Embora não haja convergência entre os especialistas sobre qual foi o grau de mudança da política externa brasileira, ocorrida com o início do governo Lula, e depois continuada pelo governo Dilma, ainda assim não há como negar que a cooperação Sul-Sul foi uma marca de destaque e a aproximação com os países em desenvolvimento e emergentes ocupou lugar de relevo no discurso da diplomacia desde então. Um dos exemplos mais bem acabados do foco da política externa brasileira na última década no chamado Sul foi o Fórum Índia-Brasil-África do Sul (Ibas). Inserido no contexto dessa discussão sobre as mudanças no projeto de política externa que passou a vigorar a partir da eleição do governo petista, o acordo de cooperação entre Brasil, Índia e África do Sul assinado em 2003 Uma versão preliminar deste capítulo foi publicada como artigo, em inglês, na New Global Studies (2013). 1

* Professora do Instituto de Relações Internacionais da USP e pesquisadora do Caeni-USP. ** Professora do Instituto de Relações Internacionais da USP e pesquisadora do Caeni-USP.

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foi um marco na chamada cooperação Sul-Sul (Lima, 2005). Não apenas porque representou um novo comportamento internacional do país, mas também porque, diferentemente dos acordos estritamente comerciais ou de cooperação política, o Ibas tratava de diversos temas como democracia, redução da pobreza, políticas públicas de educação e ciência, cooperação tecnológica e, também, de comércio e investimentos2. Além disso, o Ibas passou a ser, dentre os acordos firmados pelo novo governo, um elemento de destaque ao reunir países com perfis de atuação internacional próximos e a autopercepção de lideranças internacionais, assim como articular posições políticas conjuntas em vários ambientes multilaterais. Passados mais de dez anos, o acordo Ibas continua sendo fruto de diversas análises no ambiente acadêmico (veja, por exemplo, publicação resultante do Seminário Ibas na III Conferência Nacional de Política Externa e Política Internacional “O Brasil no Mundo que vem aí” realizado em 2008, assim como Alden e Vieira 2005, Lima 2005 e Oliveira, Onuki e Oliveira 2006). Embora nesses estudos o acordo seja abordado por meio de diferentes matrizes teóricas e enfatizem diferentes questões colocadas pela cooperação entre os três países, há relativo consenso de que “most likely IBSA will not focus on trade” (Flemes, 2007, p.24; Lima, 2010; Dupas, 2006). Com a manutenção de um discurso diplomático coordenado, e de análises que reforçam a ideia de que os três países compartilham o objetivo de ampliar a visibilidade internacional por meio de uma atuação de mais destaque em contextos multilaterais, várias análises deixam de lado o comércio, avaliando as dificuldades de justificar a manutenção da coalizão apenas por esta variável.

Parte das razões argumenta o fato de que os países têm uma estrutura produtiva bastante semelhante e que, portanto, não há complementaridade entre suas pautas de exportação e importação, o que reduz os potenciais ganhos de comércio. Além disso, dadas as semelhanças entre a produção e a exportação, os países competem entre si pelos mercados dos países desenvolvidos, o que inviabiliza a ação conjunta em questões comerciais. Nesse sentido, não haveria cooperação, mas competição entre eles. Nossa avaliação é que a maior parte das análises sobre o Fórum Ibas, influenciada pelo discurso diplomático e pelo cenário internacional em que a coalizão foi criada e evoluiu, tem passado ao largo das questões de comércio em particular (e econômicas, em geral) e enfatizado, predominantemente, seu papel normativo. O foco tem sido no papel diplomático que os três países membros têm tido na arena internacional a partir da criação da coalizão (Lima, 2010). É comum a utilização de conceitos como “países emergentes” ou “potências médias” (Higgot; Cooper, 1990) para argumentar que o papel desses países, e da cooperação entre eles, é o de intermediar a relação entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento em organizações internacionais. Também é ressaltado o papel que os três países têm tido na busca pela reforma dessas organizações, como a ampliação do número de membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (Flemes, 2007). É claro que não se pode desprezar a imagem construída pela coalizão no plano internacional, mas em geral, a ausência da discussão de uma colaboração mais específica em termos econômicos e comerciais dentro das discussões das causas e efeitos da criação do Fórum parte do pressuposto que o Fórum Ibas não deve tratar de comércio, dadas as suas próprias limitações econômicas, e seu objetivo mais amplo de construção de uma identidade internacional. Este capítulo pretende fazer uma análise da evolução comercial entre os países membros do Ibas, mas também pretende questionar a ideia de que a relevância do acordo concentra-se apenas na sua dimensão normativa. Nosso argumento central é que o Ibas pode (e deve) também ser sobre comércio. O texto está dividido em três partes. Na primeira delas, são reunidas evidências que questionam a falta de complementaridade das economias brasileira, indiana e

Declaração de Brasília de 6 de junho de 2003, disponível em http://www. itamaraty.gov.br. O Fórum Ibas é também conhecido como G-3, e apresenta como propósito central a consolidação de uma parceria estratégica entre países em desenvolvimento, com três interesses comuns principais: o compromisso com instituições e valores democráticos; o empenho em vincular a luta contra a pobreza a políticas de desenvolvimento; e a convicção de que instituições multilaterais devem ser fortalecidas em contextos de instabilidades econômicas, políticas e relativas a questões de segurança. 2

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sul-africana que impediria ganhos de comércio. Na segunda parte, são feitas considerações a respeito dos ganhos que a cooperação intragrupo teria com a intensificação do fluxo de comércio. Por fim, a terceira parte organiza as conclusões.

Brasil, Índia e África do Sul apresentam pouca diversificação nas suas exportações totais. O aumento do preço das commodities ao longo da primeira década de 2000 fez com que houvesse uma maior concentração do valor das exportações em poucos produtos. No caso brasileiro, os 8% dos produtos mais exportados representavam 81% do total em 2001. Este valor aumentou para 87% em 2011. Para o caso indiano, estes valores passaram de 78% para 73% no mesmo período. As exportações sul-africanas mantiveram índice de concentração dos 100 produtos em 80% em 2000 e 2013. Entretanto, o que os dados nos mostram é que houve diversificação das exportações no comércio Brasil-Índia. As exportações brasileiras para a Índia em 2000 estavam totalmente concentradas em 100 produtos (99%). Em 2013, os 100 produtos mais exportados representaram 97% do total. O mesmo ocorreu com as exportações indianas para o Brasil (de 92% do total em 2000 para 87% em 2013). Num período no qual houve concentração das exportações totais, a pequena desconcentração observada no comércio Brasil-Índia é bastante relevante.

Brasil, Índia e África do Sul: os ganhos de comércio Uma das características de países menos desenvolvidos é a relativa concentração das suas exportações em poucos produtos. Isso os torna vulneráveis a mudanças no ambiente externo, pois pequenas variações de preços ou de quantidade demandada levam a grandes variações na receita de exportações. Assim, a diversificação das exportações, tanto em termos de produtos quanto em termos de destino, é um objetivo fundamental de política econômica. Usando dados de valores exportados em 2000 e 2013 desagregados ao nível de quatro dígitos (1257 produtos), calculamos o percentual do total das exportações concentrado nos 100 produtos (8% do total de produtos) com maior valor exportado. Foram excluídos os setores de combustível e energia (NCM 27). Esses setores, como mostra a tabela 1, compõem parte não desprezível das exportações totais dos três países, mas distorcem a análise proposta a seguir. Tabela 1 – Exportações: percentual das exportações totais (2013)

Tabela 2 – Concentração das exportações: percentual dos 100 produtos mais exportado no total das exportações

Fonte: cálculo do autor com base nos dados de Comtrade, ONU.

Fonte: cálculo do autor com base nos dados de Comtrade, ONU. 116

No caso do comércio com a África do Sul, as exportações brasileiras tiveram um aumento da concentração (de 92% para 95% nos 100 principais produtos), assim como as exportações indianas (de 79% do total em 2000 para 87% em 2013). As exportações sul-africanas, tanto para o Brasil (98%) quanto para a Índia (98%), mantiveram o mesmo nível de concentração. 117

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O fato de as exportações intra-Ibas (especialmente Brasil e Índia) nesse período não apresentarem o mesmo padrão de concentração das exportações totais sugere que esses são destinos que oferecem um potencial de aumento da diversidade das exportações que pode, ao mesmo tempo, reduzir a dependência em poucos produtos e em poucos destinos. Além disso, a diversificação das exportações pode significar a diversificação da produção doméstica na direção de produtos com maior produtividade e, em alguns casos, na desconcentração setorial e espacial da produção nacional.

ria de um aumento na disponibilidade de bens de capital para aumentar a produtividade na produção de seus bens, o que significaria aumento da renda e crescimento econômico. O segundo tipo de comércio internacional previsto pela teoria é o chamado comércio intraindústria. Aqui, o incentivo para o comércio, e a razão para a existência de ganhos dele provenientes, não é a diferença entre os países, mas suas semelhanças. Os países têm dotações semelhantes de recursos, rendas e preferências parecidas e dividem a mesma tecnologia de produção. O ganho de comércio é gerado pela possibilidade de cada país se especializar na produção de certas variedades de produtos do mesmo setor produtivo (o exemplo clássico é o comércio no setor automotivo, com grande variedade de modelos e tipos). Essa especialização gera ganho de escala, redução de custos e preços e o comércio permite que os consumidores se beneficiem do aumento da variedade de produtos disponíveis. Essa é a dinâmica do comércio Norte-Norte. Entretanto, não são todos os países que dividem as mesmas características produtivas e de demanda que praticam o comércio intraindústria. Se assim fosse, esse seria também o caso do comércio Sul-Sul. Para que exista o comércio intrassetorial, e esse gere ganhos para ambos os países, é necessário que a tecnologia de produção apresente economias de escala. Isto é, que o aumento da quantidade produzida gere redução dos custos unitários de produção. E isso ocorre, de forma geral, no caso de bens produzidos com tecnologia intensiva em capital físico e humano (elevados custos fixos em pesquisa para desenvolvimento de novas tecnologias e produtos diferenciados). Os países que tradicionalmente produzem esses bens são os países do Norte desenvolvido. Durante as décadas de 60 e 70, o comércio internacional cresceu a taxas bastante elevadas e, concomitantemente a esse crescimento, houve uma mudança estrutural nos fluxos de bens entre os países. A grande parte do comércio passou a ser intraindústria. O comércio Norte-Sul baseado na exportação de produtos primários do Sul continuou, mas perdeu importância relativa. Mais de 70% do fluxo de comércio se dava entre os países do Norte, predominantemente intraindústria (Tussie, 1987). Muitos argu-

O comércio Sul-Sul pode também ser intraindústria A teoria econômica (Krugman; Obstfeld, 2010) prevê a ocorrência de dois tipos distintos de comércio entre dois países. O primeiro deles, o chamado comércio interindústria, ou intersetorial, é derivado das teorias tradicionais de comércio internacional. As diferentes dotações de fatores produtivos existentes entre os países significam que a especialização na produção, e consequente exportação, nos bens produzidos com tecnologia intensiva no recurso abundante no país levam a uma alocação mais eficiente dos recursos produtivos e ao ganho de comércio. O país importa os bens nos quais não tem vantagem comparativa e o bem-estar da economia como um todo aumenta em função da maior disponibilidade de bens para consumo. De uma maneira simplificada e estilizada, é esse o argumento para a existência de ganho no comércio Norte-Sul. Países com dotações de recursos distintas (Norte abundante em capital e tecnologia e Sul abundante em trabalho e recursos naturais) comercializam produtos com combinações de recursos distintas, aproveitando-se das vantagens comparativas. Haveria então ganhos para todos. O Sul se beneficiaria ao usar de forma mais eficiente seus recursos produtivos (utilizando o escasso capital na produção de bens com tecnologia intensiva em trabalho e recursos naturais) e importaria bens com tecnologia intensiva em capital, como máquinas e equipamentos. Ao permitirmos investimento e ganho de produtividade nestas economias, o Sul se beneficia118

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mentam que esse foi um dos fatores que explicam o crescimento elevado das economias desenvolvidas nesse período. O comércio permitiu um elevado ganho de produtividade que se refletiu no aumento da renda desses países. Nesse período, a parcela de comércio dos países do Sul caiu sensivelmente em relação ao comércio total. Entretanto, a característica de comércio interindústria dos países do Sul foi aos poucos dando lugar a um comércio mais sofisticado de manufaturas. A partir da década de 1980, parte expressiva do comércio do Sul já é de manufaturados. Esse movimento se acelera a partir da década de 1990, quando vários países em desenvolvimento ampliam e consolidam suas estruturas produtivas industriais. A liberalização comercial que se segue leva a um aumento de produtividade das firmas desses países (Krishna; Mitra, 1998 para evidências para Índia, Jonsson; Subramanian, 2001, para África do Sul, e Schor, 2004, para Brasil) e a inserção na economia internacional ganha prioridade na política econômica. Isso acontece em diferentes graus nos países do sul. A consequência dessa mudança na estrutura produtiva e internacional é a intensificação do comércio intraindústria no Sul. Segundo o World Development Report 2009 (Brulhart, 2008, p. 11), algo em torno de 27% do comércio mundial poderia ser considerado intraindústria. O peso desse comércio nos diversos países era, entretanto, bastante variado. Baseado no índice de Grubel-Lloyd3, que tem valor zero caso o fluxo de comércio seja totalmente interindústria e valor um caso esse fluxo seja integral-

mente intraindústria, o autor calcula (usando dados desagregados a cinco dígitos) que o índice tem valor 0,324 para os países de renda elevada (segundo a classificação do Banco Mundial) e 0,067 para os países de renda baixa. Os países de renda média têm índice próximo de 0,2. Para o ano de 2013, calculamos o mesmo índice (usando quatro dígitos) para o fluxo de comércio entre cada um dos países membros do Ibas e os Estados Unidos (EUA). Estes são 0,2741 (Brasil-EUA), 0,2124 (Índia-EUA) e 0,2025 (África do Sul – EUA). Os valores para 2000 são expressivamente menores (0,2389, 0,1605 e 0,1879, para o comércio entre Brasil, Índia e África do Sul com os Estados Unidos, respectivamente). Esses dados mostram que o comércio intraindústria é relativamente elevado nos países do Ibas, o que significa que seu parque industrial é diversificado o suficiente para se relacionar com a indústria de manufatura norte-americana. Quando o mesmo índice é calculado para o fluxo de comércio entre os países do Ibas, os valores são bem menores. Desconsiderando o comércio de setores de combustível e energia, os valores do índice agregado de Grubel-Lloyd são: 0,1112 para o comércio Brasil-Índia, 0,1226 para o comércio Brasil-África do Sul e 0,0510 para o comércio Índia-África do Sul. Isso mostra que, apesar do setor manufatureiro desses países ser diversificado o suficiente para sustentar o comércio intraindústria com os Estados Unidos, o potencial não é aproveitado para o comércio intraindústria entre os países do Ibas. A tendência é que a magnitude do comércio intraindústria intra-Ibas seja sempre menor que aquele entre os países membros e os países desenvolvidos. Mas os números do comércio de 2013 nos mostram que ainda há muito potencial para esse tipo de comércio antes que o limite imposto, por serem economias menores que os Estados Unidos, seja alcançado. Um exemplo, dentre muitos outros, é o setor de “Bombas de ar ou de vácuo, compressores de ar ou de outros gases e ventiladores; exaustores (coifas aspirantes) para extração ou reciclagem, com ventilador incorporado, mesmo filtrantes” (NCM 8414). Tanto o

O índice de Grubel-Lloyd é calculado para cada setor usando os dados de importações (M) e exportações (X): GL = 1- [|X-M|/(X+M)]. Quando o comércio nesse setor é predominantemente intraindústria, o volume de comércio (X+M) é elevado, mas o saldo comercial (X-M) é pequeno, pois há importação e exportação no mesmo setor. Assim, o GL tende a um. Quando o comércio, nesse setor, é predominantemente interindústria, o saldo comercial e o volume de comércio tendem a ser iguais. Nesse caso, GL tende a zero. Para obtermos um índice agregado para os países, calculamos os índices setoriais para cada um dos setores a quatro dígitos e usamos uma média ponderada pelos pesos de comércio de cada setor no comércio internacional como sugerido por Mikic e Gilbert (2009). 3

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Brasil quanto a Índia importam e exportam produtos desse setor. O índice de comércio intraindústria com os Estados Unidos é 0,85 e 0,78 para Brasil e Índia, respectivamente. No caso do comércio entre Brasil e Índia, o índice tem valor de 0,32, pois o valor importado pelo Brasil é muito mais elevado que o valor por ele exportado da Índia. Além disso, o volume de comércio Brasil-Índia é muito inferior ao volume de comércio desses dois países para com os Estados Unidos (US$ 28 milhões Brasil-Índia, US$ 330 milhões Brasil-EUA e US$ 240 milhões Índia-EUA). Esse é um exemplo de um setor onde há evidência de potencial não aproveitado de comércio intraindústria intra-Ibas. Um dos argumentos a respeito da dificuldade na cooperação dos países em desenvolvimento, em especial os membros do Ibas, é que eles competem entre si na oferta de produtos manufaturados para os países desenvolvidos, cujo acesso ao mercado já é restrito pelas barreiras tarifárias e não tarifárias. Calculamos o índice de similaridade das exportações4 para os três países membros do Ibas. Esse índice compara a parcela das exportações de cada um dos 1257 produtos (quatro dígitos) no total das exportações de cada país, o que permite a comparação entre países cujas magnitudes das exportações são muito diferentes entre si. O índice varia de zero a um, onde zero significa nenhuma similaridade e o valor um, total coincidência das pautas de exportações. Para o ano de 2013, os valores encontrados são: 0,33 para Brasil-Índia, 0,37 para Brasil-África do Sul e 0,31 para ÍndiaÁfrica do Sul (em 2000, eram 0,27, 0,37 e 0,30, respectivamente). Esses valores não são elevados, o que não indica excessiva similaridade nas pautas de exportações dos três países para o resto do mundo. Para termos uma referência melhor, os índices de similaridade das exportações totais de Brasil, Índia e África do Sul com as exportações dos Estados Unidos, para 2013, são 0,34, 0,39 e 0,40, respectivamente. Ou seja, não há muito maior simi-

laridade entre as exportações dos países do Ibas do que entre as exportações de cada um deles e dos Estados Unidos. Entretanto, esses valores são relativos às exportações totais. O argumento da concorrência das exportações se refere aos países do Ibas nos mercados desenvolvidos. Para verificarmos que a similaridade é baixa mesmo nesses mercados, calculamos o mesmo índice anterior, mas apenas para a pauta das exportações dos três países para os Estados Unidos. Para 2013, os valores são 0,20, 0,16 e 0,12, para Brasil-Índia, Brasil-África do Sul e Índia-África do Sul. Ou seja, as semelhanças parecem ser menores do que nas exportações totais. Os dados recentes de comércio nos mostram que o argumento da concorrência nos mercados desenvolvidos pode ser válido para alguns produtos específicos, mas não é válido de forma geral. Provavelmente ele foi verdade em algum momento do tempo, quando os países de fato tinham sua pauta de exportações concentradas em produtos básicos. Hoje, parece que não é mais o caso.

Esse índice é calculado somando-se (entre todos os setores) o valor mínimo do percentual de cada setor na exportação total de cada país envolvido (no nosso caso, sempre dois a dois) como sugerido por Mikic e Gilbert (2009). 4

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Por que não ampliar o comércio intra-Ibas? No período de 13 anos, entre 2000 e 2013, o fluxo de comércio intra-IBSA cresceu mais de 12 vezes, de pouco mais de US$ 1,5 bilhão para US$ 20,5 bilhões. Esse número é muito superior ao aumento, também expressivo, do comércio total de cada um dos países membros. Apesar disso, continua sendo pouco expressivo em relação a outros destinos. Em 2013, o comércio intra-IBSA corresponde a menos de 2,5% do fluxo total do comércio internacional do Brasil. Para a Índia, o valor não é muito diferente (3%). O comércio intra-IBSA é mais relevante para a África do Sul (8,5%), principalmente em função do comércio com a Índia. O comércio, além de pouco representativo, ainda é relativamente concentrado em poucos produtos. No caso das exportações brasileiras para a Índia em 2013, mais de 50% do total refere-se a petróleo e pouco menos de 15%, a açúcar. Para a África do Sul, no mesmo ano, algo em torno de 14% das exportações brasileiras foram ouro. 123

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De fato, o comércio intra-IBSA enfrenta dificuldades adicionais em função dos países não serem o que poderíamos chamar de “parceiros naturais”. Além das limitações que se referem às diferenças culturais e linguísticas, um desafio a ser considerado é a distância entre os países, amplificada pela falta de infraestrutura, e a ausência de ligações frequentes entre os principais portos e aeroportos. Segundo Prabir De (2005), em 2004 havia apenas um navio por semana que ligava o Porto de Santos, Brasil, e o Porto da Cidade do Cabo, África do Sul. Não havia, entretanto, nenhuma ligação direta entre portos brasileiros e portos indianos, o que dificulta enormemente o comércio entre esses dois países. Para chegar à Índia, as exportações brasileiras devem antes ir para a Cidade do Cabo, depois para o Porto de Durban, na própria África do Sul. Há então três alternativas para o Porto de Jawalal Nehru, na Índia: via Dubai, via Oman ou via Ilhas Maurício e Singapura. Ou seja, os custos de transporte são significativamente elevados. Segundo as estimativas do autor, algo em torno de 12% do total do valor do fluxo de comércio entre Brasil e Índia é referente a custos de transporte. Um aumento do fluxo deve reduzir esse custo ao aumentar a oferta de frete entre os países. Entretanto, existe um problema de coordenação, pois o aumento da oferta só ocorreria frente a um aumento da demanda. Assim, esse problema seria mais facilmente solucionado com a intervenção dos governos ao incentivar o aumento da oferta de frete. Nesse sentido, o Fórum Ibas pode ter um papel relevante na ampliação do comércio entre os países membros ao propiciar políticas públicas coordenadas entre os países. Por outro lado, cabe ressaltar que a distância geográfica não é um obstáculo intransponível para o aumento do fluxo do comércio entre os países. O melhor exemplo da superação da distância é o crescente comércio entre a China e os países ocidentais, especialmente com os Estados Unidos. Estimativas mais gerais (Baier; Bergstrand, 2001) sugerem que a redução do custo de transporte explica 8% do aumento do comércio internacional entre vários países da OCDE no período 1960-1980. Como resultado, apesar de haver potencial de comércio intra-IBSA, esse é significativamente reduzido em face de várias dificul-

dades, sobretudo na área de transporte. Além disso, como acima destacado, a parcela de comércio intra-Ibas, embora crescente, ainda é extremamente pequena em comparação com os parceiros tradicionais. Entretanto, a perspectiva de ganhos de comércio pela diversificação das exportações e pela possibilidade de desenvolvimento de comércio intraindústria pode justificar o empenho diplomático e os investimentos públicos em aproximar as economias dos membros do Ibas. Além disso, argumenta-se em seguida que há a possibilidade de ganhos de cooperação política com a intensificação do comércio. Dessa forma, a análise de custos e benefícios dos investimentos ligados ao apoio ao aumento do comércio deve levar em consideração esses outros potenciais ganhos.

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Os benefícios da cooperação Um dos objetivos declarados da Declaração de Brasília que oficializa o Fórum Ibas é a negociação conjunta em fóruns multilaterais. Mais especificamente em questões de comércio internacional, “(...) Brazil, India and South Africa decided to articulate their initiatives of trade liberalization”. Em sua diferenciação entre arranjos cooperativos e coalizões, Lima (2010) argumenta que o Fórum Ibas pode ser descrito tanto como uma coalizão ou como um arranjo cooperativo. Embora haja dois pilares cooperativos (cooperação entre os países membros e cooperação triangulada com terceiros), a autora reforça a ideia de que Ibas é uma coalizão e aponta para articulação política dos países no âmbito internacional. Os três países, principalmente Brasil e Índia, foram reconhecidamente líderes da coalizão de países em desenvolvimento, o G-20, nas negociações comerciais em Cancun, que mudou de forma definitiva o ambiente das negociações internacionais na OMC ao tornar clara a impossibilidade do encaminhamento de propostas sem a participação dos países em desenvolvimento, o que não ocorria anteriormente (Narlikar, 2003; Queresh, 2003; Narlikar; Tussie, 2004). Entretanto, na maioria das vezes as coalizões de países em desenvolvimento têm se mostrado eficazes para bloquear as nego125

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ciações (vide Cancun), mas não têm conseguido evoluir para coalizões eficazes nos períodos de efetiva negociação de propostas. A cooperação entre os países parece ruir no momento em que fica evidente a grande diferença de interesses na área comercial. Nesse contexto, o grande desafio para os países em desenvolvimento, e para o Fórum Ibas em particular, é manter a cooperação nas negociações em fóruns multilaterais. Esta seção argumenta que a intensificação do comércio internacional intra-Ibas poderia contribuir para a manutenção da cooperação entre os países membros nessas negociações.

na arregimentação de seguidores regionais. Mas isso também não parece ser capaz de resolver o problema da cooperação sem interesses comuns. Os países do Ibas, além de não serem líderes regionais no sentido de terem seus vizinhos como seguidores de seus interesses, também não dividem interesses comuns. E esta é uma das características necessárias, embora não suficiente, para que um grupo sustente a cooperação ao longo do tempo. Em seu estudo sobre as coalizões de países em desenvolvimento na área de comércio internacional, Narlikar (2003, p.197) conclui que “[the] sustaintability of the coalition hinges crucially on a shared, internally consistent agenda”. Vários autores argumentam nesse mesmo sentido. Flemes (2009) mostra que, não só em temas de comércio, há divergência de interesses entre Índia, Brasil e África do Sul. Areias (2010) aponta como sendo essa divergência a razão pela qual o G-20 não foi capaz de defender uma posição comum ao longo das negociações da Rodada Doha na OMC. Tussie (1987) argumenta que as coalizões de países em desenvolvimento não se sustentam, pois há pouco comércio entre eles e o existente é predominantemente baseado nas vantagens comparativas, ou seja, no comércio interindústria. Segundo a autora, uma das razões pelas quais os países desenvolvidos são bem sucedidos nas negociações comerciais é que eles têm menor atrito em relação a questões relativas ao comércio internacional, pois o comércio intraindústria, predominante, gera menores redistribuições domésticas da renda que o comércio interindústria. De acordo com a teoria econômica, os ganhos de comércio existem, pois a possibilidade de dissociar produção e consumo permite que os recursos produtivos sejam alocados de maneira mais eficiente, o que aumenta a disponibilidade de bens. Isso ocorre tanto quando o comércio é gerado pelas diferentes vantagens comparativas (comércio interindústria) quanto quando o motivo é a presença de economias de escala (comércio intraindústria). Entretanto, a realocação dos recursos produtivos, no caso do comércio intersetorial, ocorre entre dois setores que usam diferentes combinações dos fatores de produção. Isso gera a redistribuição da renda domésti-

A construção de uma identidade comum Um dos pilares que sustenta o Ibas é o fato dos três países dividirem características comuns, como serem países em desenvolvimento, as maiores economias nas suas respectivas regiões, grandes democracias e ativos na política global. Além disso, como o discurso de Manmohan Singh, então primeiro ministro indiano, claramente aponta, dividem ideias e uma identidade comum: “IBSA is a unique model of transnational cooperation based on a common political identity. Our three countries come from three different continents but share similar world views and aspirations.” (apud Vieira; Alden, 2011). Narlikar (2003) recorre às ideias construtivistas para argumentar que coalizões podem ser formadas a partir de identidades comuns. Países que têm características semelhantes tendem a ter maior grau de confiança uns nos outros, pois acreditam ser menos provável que países que dividem as mesmas características que eles (consideradas “boas”) tenham comportamento agressivo em sua direção. A autora mostra que, muitas vezes, identidades comuns ajudam a manter a coalizão mesmo quando o motivo inicial para negociação conjunta desaparece. Entretanto, tanto Narlikar (2003) quanto Vieira e Alden (2011) argumentam que laços de identidade não são suficientes para sustentar uma coalizão, ou manter a cooperação. Vieira e Alden (2011) buscam a resposta para uma maior sustentação 126

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ca, onde o fator produtivo usado intensivamente nas exportações ganha renda e aquele usado intensivamente na produção de bens que competem com importados, perde renda. É o chamado efeito Stolper-Samuelson. Essa é uma das razões pelas quais as mudanças na política comercial são tão controvertidas. Há grupos que ganham e grupos que perdem renda. Por outro lado, o comércio intrassetorial gera menores redistribuições de renda. A realocação dos fatores de produção se dá dentro de um mesmo setor, o que não muda significativamente sua composição na produção nacional e, portanto, na renda. A mudança, nesses casos, se dá na concentração da produção em algumas variedades do bem, ao invés de o país produzir todas as variedades que os consumidores desejam. Como não há mudança significativa na distribuição da renda doméstica, há menor resistência a mudanças de política comercial. Um maior comércio intraindústria significa, portanto, uma convergência maior de interesses. O aumento do volume do comércio intraindústria entre os países faz com que as economias desses países se tornem mais parecidas no sentido de terem a produção alocada nos mesmos setores. Isso faz com que a combinação de fatores produtivos na produção seja parecida e, portanto, sejam parecidos seus interesses comerciais (que interferem na distribuição doméstica da renda). Assim, embora o aumento do comércio intraindústria não seja capaz de fazer convergir todos os interesses comerciais dos membros Ibas (Brasil e Índia, por exemplo, inevitavelmente têm interesses distintos na questão agrícola), ele pode aumentar o grau de convergência existente e aproximar os interesses dos setores industriais dos três países, como discutido mais adiante. Em geral, as coalizões de países em desenvolvimento são vistas como coalizões com estratégias meramente distributivas. Isto é, buscam apenas obter ganhos, mas não oferecem muita coisa em troca (Odell; Ortiz, 2004). Embora isso nem sempre seja verdade (Narlikar; Tussie, 2004), já discutimos a dificuldade dessas coalizões gerarem propostas conjuntas nas negociações comerciais pela falta de convergência de interesses.

Por outro lado, os países em desenvolvimento, especialmente os países membros do Ibas, contestam os limites estabelecidos pelos países desenvolvidos nas negociações multilaterais (Hurrell; Narlikar, 2005). Apesar de Brasil e Índia terem sido incluídos nas reuniões que antecedem as negociações formais na OMC (Krajeslki, 2000), as demandas de tratamento diferenciado para países menos desenvolvidos, de limitação das regras de defesa da propriedade intelectual e da inclusão dos chamados novos temas como compras governamentais e padrões ambientais e trabalhistas, por um lado, e da inclusão da liberalização e redução de subsídios aos produtos agrícolas, por outro, não encontram espaço na agenda de negociações delimitada pelos países desenvolvidos. A liberalização do comércio intra-Ibas permite, entretanto, a experimentação com temas e formas de acordos que sejam compatíveis com aquilo que os países membros gostariam de observar nas negociações multilaterais. É uma oportunidade para definir novas normas e procedimentos em linha com as demandas, longe de serem atendidas, dos países em desenvolvimento (Celli et al, 2011). Um tema caro aos países Ibas é permitir flexibilidade de ajuste aos países mais vulneráveis à liberalização do comércio, tanto em termos de tratamento especial e diferenciado, como na previsão da utilização de salvaguardas. Assim, acordos intra-Ibas seriam também importante sinalização para os países desenvolvidos, que relutam em abrir seus mercados para os produtos dos países em desenvolvimento, que a cooperação para liberalização do comércio que beneficie a todos e gere crescimento e desenvolvimento é possível caso os países estejam comprometidos. Um dos argumentos para explicar o entrave das negociações da Rodada Doha é a impossibilidade de um acordo que permita maior exportação agrícola para Europa e Estados Unidos, por um lado, e acesso aos mercados de serviços e manufaturas dos países em desenvolvimento, por outro. Brasil e Índia, por exemplo, estão em lados opostos na questão da liberalização agrícola e, também, na abertura dos mercados de serviços. Um acordo entre esses países que permita uma maior exportação agrícola brasileira e a importação de serviços indianos seria simbóli-

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co no sentido de mostrar que é possível uma liberalização desses mercados, com regras e velocidades diferentes das negociadas atualmente na OMC.

ca externa focada nos acordos Sul-Sul e a percepção dos indivíduos. Embora 65% dos entrevistados se mostrem a favor de uma maior integração entre os países do Sul, a avaliação positiva desses países é sistematicamente inferior à avaliação dos países desenvolvidos5. Um maior volume de comércio intra-Ibas poderia ter a função de reduzir os questionamentos domésticos da política exterior voltada para os parceiros Ibas. A possibilidade de ganhos via comércio intraindústria de manufaturas pode ser um atrativo para empresários que buscam acessos a novos mercados. A disponibilidade de bens para consumo dos países Ibas ajuda também a melhorar a imagem dos parceiros na opinião pública, o que se soma aos esforços de cooperação científica e cultural também proposta pelo Fórum Ibas. Como argumentamos na primeira parte deste capítulo, o comércio intra-Ibas tem potencial de crescimento e sofisticação, mas o fato de não serem “parceiros naturais” requer intervenção governamental para que o potencial seja realizado. Uma forma de intervenção que incentiva o aumento de comércio é a efetivação de acordos comerciais que ofereçam preferências tarifárias aos parceiros Ibas. Sem dúvida, existem outras, como medidas de facilitação de comércio por meio da harmonização de certas normas e redução da burocracia aduaneira e também outros acordos, como de tributação. Dos três vértices Ibas, dois deles já foram interligados com acordos preferenciais de comércio assinados pelos países membros  – acordos Índia-Mercosul (Brasil) e Mercosul (Brasil)-Sacu (África do Sul). O terceiro, Índia-África do Sul está em negociação. O acordo Índia-Mercosul está em vigor desde 2009 e pretende ser um primeiro passo para a formação de uma área de livre comércio entre os países. O acordo do bloco sul-americano com o bloco sul-africano já foi assinado em 2009 por todos os envolvidos, mas ainda aguarda o processo interno de ratificação que deve ocorrer em todos os países para que o acordo entre em vigor.

Os desafios da cooperação Sul-Sul Outro ponto importante que deve ser considerado é o fato de a institucionalização do Ibas, assim como de outros acordos, ainda ser centralizada pelos Ministérios das Relações Exteriores de cada um dos países. Isso, segundo Alden e Vieira (2005), garante a continuidade da cooperação mesmo frente a mudanças de governo. Mesmo assim, a manutenção da cooperação em instâncias multilaterais depende, em algum grau, da legitimidade que o acordo tem entre os diversos grupos constituintes domésticos (Mancuso; Oliveira, 2006; Mancuso, 2007). No Brasil, por exemplo, há o questionamento por grupos de empresários da maior ênfase da diplomacia nas negociações com os países do sul em detrimento dos parceiros tradicionais, como Europa e Estados Unidos (Alden; Vieira, 2005). O argumento é que, embora haja potencial de ganhos com as novas parcerias, as parcerias tradicionais ainda devem ser aquelas com maior ênfase na política externa e comercial. Por um lado, isso reflete a posição de grupos beneficiados com o status quo da política comercial brasileira. Por outro, mostra que ainda há desconfiança dos empresários a respeito dos ganhos potenciais da cooperação Sul-Sul. Segundo Areias (2010), a decisão brasileira de aceitar a proposta EUA-EU na reunião Ministerial da OMC em 2008 contra a posição do G-20 se deve ao fato da mudança da posição da representação do setor industrial brasileiro frente à possibilidade de, mais uma vez, não haver acordo na Rodada Doha. O custo econômico da manutenção da coalizão com parceiros mais defensivos em questões comerciais se tornou maior que os possíveis ganhos políticos a serem obtidos pela diplomacia brasileira ao se manter unida aos países em desenvolvimento. Onuki e Oliveira (2012) mostram que, segundo pesquisa de opinião realizada em 2011 no Brasil, há um descompasso entre a políti130

Survey “O Brasil, as Américas e o Mundo”. IRI/USP. Dados disponíveis em http://www.lasamericasyelmundo.com 5

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Do ponto de vista do aumento do fluxo de comércio tanto Valls Pereira (2006) quando Kume et al (2005) apontam para resultados pouco expressivos a serem obtidos em decorrência dos acordos de preferências. Além de serem poucos os produtos que sofrem redução tarifária, essa é concentrada nos produtos já negociados entre os países, o que não fomenta um maior intercâmbio comercial entre eles. Com relação ao acordo Mercosul-Índia, esperava-se uma nova troca de listas de preferências em 2013. Celli et al (2010) analisam os textos dos acordos Sul-Sul assinados pelo Mercosul, dentre eles os acordos com Sacu e Índia. Os autores questionam a timidez com a qual os acordos tratam os problemas de assimetria entre os países signatários, tão questionados nos acordos multilaterais que envolvem países desenvolvidos e países em desenvolvimentos. Segundo eles, os acordos, que “são vistos como poderosos instrumentos para diminuir as assimetrias NorteSul, ao incentivar o comércio Sul-Sul, têm muito pouco a dizer em relação às assimetrias Sul-Sul” (Celli et al, 2010, p. 55). Além disso, apesar dos preâmbulos bastante ambiciosos, quando se trata dos instrumentos comerciais per se (antidumping, salvaguardas, regras de origem, barreiras ténicas, sanitárias e fitosanitárias), os acordos se referem às regras dentro da estrutura da OMC. Em resumo, os acordos comerciais intra-Ibas até agora negociados não mostram uma significativa diferença qualitativa em questões relevantes para que se tornem referências de cooperação Sul-Sul. Também não parecem ser capazes de oferecer os incentivos necessários para que o volume de comércio intra-Ibas cresça de forma a mudar significativamente as condições atuais de manutenção e fortalecimento da cooperação da coalizão. As negociações Sul-Sul sofrem as mesmas dificuldades que as negociações Norte-Sul. Por outro lado, poderiam também se beneficiar dos mesmos incentivos, dadas as perspectivas de ganhos, tanto em termos de comércio, como em termos dos seus próprios objetivos mais amplos em termos normativos. Isto é, um comércio mais forte leva, necessariamente, à maior interdependência política. 132

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Conclusões Este capítulo procurou mostrar que existe potencial para o comércio intra-Ibas e que ele ainda é pouco explorado. Identificouse a necessidade de ampliação dos incentivos governamentais para superar o problema de distância e de falta de conhecimento mútuo das oportunidades disponíveis, pois os passos dados até agora nesse sentido parecem bastante tímidos. Os dados de fluxo de comércio mostram que o volume de comércio intra-IBSA ainda é marginal nos três países, embora tenha havido crescimento expressivo na última década. Há inúmeros obstáculos a serem enfrentados e o setor privado não tem incentivos para mudar esse cenário. Além do problema da distância, há barreiras ao comércio que dependem de negociações conjuntas entre os governos para que sejam reduzidas. Entretanto, os movimentos têm sido avaliados como insuficientes para levar a uma mudança significativa na relação comercial entre os três países. A questão que se coloca é sobre a validade do esforço em aumentar o fluxo e a diversidade do comércio intra-IBSA. Aqui se procurou argumentar que o aumento do comércio, além dos possíveis benefícios diretos, pode ter efeitos positivos sobre a cooperação intra-IBSA nas negociações multilaterais. A criação do Fórum em 2003 aconteceu num momento em que havia claramente o incentivo para a ação coletiva do grupo. O resultado da reunião da OMC em Cancun mostrou que há potenciais ganhos na negociação conjunta. A contínua negociação da Rodada Doha, por outro lado, mostrou também as limitações de uma coalizão com baixa coerência interna. Como argumenta Narlikar (2003), a construção de uma coalizão pode ser resultado de uma identidade partilhada, mas é insuficiente para manter sua coesão e relevância ao longo do tempo. A presença do Ibas representou uma novidade do ponto de vista da correlação de forças no plano da governança global. A coalizão tornou-se uma instância importante de coordenação de posições dos três países para um conjunto amplo de negociações multilaterais, mas ainda há muito que se avançar. 133

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Os esforços diplomáticos para criação do Fórum em particular, e da aproximação com outros países do Sul em geral, necessitam de complementação substantiva para que os países possam de fato cooperar nas negociações multilaterais. O aumento do comércio pode, como este capítulo tenta mostrar, contribuir nessa direção. Não se trata de resolver todos os problemas de convergência de interesses, em todas as esferas, mas de aproximar os interesses de alguns setores para que os pontos de contato sejam fortalecidos. Assim, consideramos que, apesar dos poucos avanços em seus mais de dez anos de existência, ainda cabe falar em comércio no Fórum Ibas. Os estudos acadêmicos devem também se debruçar sobre as dificuldades, custos e benefícios da cooperação comercial entre os países membros. Essa é uma questão relevante não somente em função de possíveis proposições de políticas públicas, mas também por conta do papel que o comércio pode ter na maior (ou menor) cooperação política em negociações multilaterais.

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BRASIL, CHINA E A COOPERAÇÃO SUL-SUL Marcos Cordeiro Pires* Luís Antonio Paulino** Aline Tedeschi da Cunha***

Introdução Na nova ordem mundial em construção, países que tinham pouca influência sistêmica vêm atualmente se consolidando como importantes atores num realinhamento das relações de poder da política e economia mundiais. Dentre esses, China e Brasil surgem como system affecting states1 no redesenho da geopolítica mundial, já que ambos são global players que exercem papel de peso no âmbito internacional. Por isso, a relação bilateral sino-brasileira desperta um renovado interesse, por se tratar de exemplo de cooperação SulSul, que atingiu em 2012 o status de uma parceria estratégica global.

* Docente do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas – UnespMarília. ** Docente do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas – UnespMarília. *** Doutoranda em Ciência Sociais – Unesp-Marília. Segundo a definição de Keohane (1969), são system affecting states aqueles países que, participando de vias multilaterais de concertação e ação coletiva, buscam influenciar resultados internacionais e apresentam perfil internacional assertivo, ainda que disponham de recursos de poder limitados em comparação com grandes potências já estabelecidas. 1

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No ano de 2014 se comemora 40 anos do restabelecimento das relações diplomáticas entre Brasil e China. Em 1974, ainda que de maneiras distintas, Brasil e China seguiram modelos econômicos que se caracterizavam pela pequena inserção na economia mundial. Já na década de 1980, iniciaram processos de abertura econômica ao se integrarem ao processo de globalização por meio dos fluxos comerciais, produtivos, financeiros e tecnológicos. Hoje, ambos os países exercem grande influência em seu entorno regional e, mais recentemente, em diversos aspectos da agenda global. Em linhas gerais, Brasil e China apresentam objetivos internacionais relacionados a quatro elementos principais: (1) luta contra o neocolonialismo, imperialismo e exploração capitalista dos países emergentes e em desenvolvimento, em prol da democratização das relações internacionais; (2) defesa dos direitos à autodeterminação dos povos e à soberania estatal; (3) defesa da paz e do progresso social e econômico; (4) cooperação voltada para a modernização e minimização do fosso científico e tecnológico com relação às potências centrais. Além disso, possuem fatores comuns determinantes de suas políticas externas, como a busca pelo desenvolvimento, a autonomia e a segurança nacional e, para tanto, buscam afirmar uma agenda Sul-Sul, não apenas bilateral, mas multilateral, baseada em princípios como a Conferência de Bandung, em 1955, da parte chinesa, e ainda, no caso brasileiro, da Política Externa Independente, inaugurada por Afonso Arinos e San Thiago Dantas, no começo da década de 1960 e retomada em meados da década de 1970, durante o governo Geisel. Assim, ao longo da segunda metade do século XX e da primeira década do século XXI, o Brasil e a China buscaram colocar em prática seus projetos de desenvolvimento, afirmar-se regional e mundialmente e manter relações de cooperação com os países do “Sul”, política esta refletida na ação conjunta no G-20 (G-77) Comercial, no G-20 Financeiro, no Grupo Basic, para as discussões sobre mudança climática e, mais enfaticamente, no Grupo dos Brics, que acaba de criar um Novo Banco de Desenvolvimento e um Fundo de Contingência para crises de balanço de pagamentos.

Da passagem de uma formulação político-diplomática retórica para o estabelecimento de ações bilaterais realmente estratégicas, muitas questões se apresentam. Logo, ao longo deste capítulo descreveremos alguns aspectos dessa relação, como uma vigorosa sinergia político-diplomática, o avanço da relação econômico-comercial e ainda um breve balanço dos avanços obtidos na cooperação bilateral por meio da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban).

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Da relação diplomática à parceria estratégica: a construção da relação de tipo Sul-Sul entre Brasil e China Ainda que as relações sino-brasileiras sejam datadas desde o período colonial por via dos portos brasileiros que serviam como escala no trajeto Lisboa-Macau, é apenas com o restabelecimento das relações diplomáticas, em agosto de 1974, que ocorre um maior contato entre o Brasil e a República Popular da China (RPC). Desde então, os discursos das autoridades se concentram em muitos dos pontos de confluência de suas políticas externas. De acordo com Comunicado Conjunto sobre o Estabelecimento das Relações Diplomáticas entre o Brasil e a China: Os dois governos concordam em desenvolver as relações amistosas entre os dois países com base nos princípios de respeito recíproco à soberania e à integridade territorial, não-agressão, não-intervenção nos assuntos internos de um dos países por parte do outro, igualmente e vantagens mútuas e coexistência pacífica2.

Assim, a existência de princípios comuns baseados, sobretudo, no conceito de não ingerência, fundamentaria a base do relacionamento sino-brasileiro, mesmo porque, à época, o Brasil era governado por uma ditadura de direita e a China por um partido marxista-leninista. Resenha de Política Exterior do Brasil. Ministério das Relações Exteriores, Brasília: ano I, n. 2, Set 1974. Disponível em: . Acesso em: 22 ago. 2014. 2

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A política externa brasileira de então estava apoiada nos conceitos de pragmatismo, responsabilidade e ecumenismo. O primeiro, relacionado à eficiência exigida de acordo com a visão realista da conjuntura em que o país se inseria, buscando “[...] vantagens no cenário internacional, independente de regime e ideologia” (Vizentini, 2003, p. 208); o segundo, relacionado à não contaminação ideológica da política externa; e o terceiro, correspondia ao caráter universalista da política externa, de forma a ampliar parcerias no sistema, e buscar maior autonomia frente aos Estados Unidos. O estabelecimento de relações diplomáticas com um país que também primava pela independência de política externa e pelo respeito à soberania, tal como a China, veio a fortalecer o discurso brasileiro3. Além de compartilharem posições semelhantes frente aos temas da agenda internacional, e a despeito das diferenças ideológicas e do papel desempenhado por cada um na política mundial, a aproximação entre ambos foi impulsionada pela trajetória da conjuntura internacional, que trouxe para ambos os governos, em diferentes intensidades e por razões diversas, a necessidade de promover um melhor posicionamento político e econômico no sistema global  – a RPC necessitava rescindir o isolamento e se reaproximar do Ocidente, e o Brasil necessitava reagir para empreender e manter o desenvolvimento do país por meio da ampliação de seus parceiros comerciais. Esses foram os pilares do relacionamento bilateral rumo ao estabelecimento da parceria estratégica duas décadas depois.

Os anos de 1980 marcaram profundas transformações na estrutura de cada país. Na China, o início das reformas modernizadoras lideradas por Deng Xiaoping – que propiciaram maior abertura ao país e sua integração ao processo de globalização econômica. No Brasil, o restabelecimento da democracia no Brasil, em que pese o fato de o país enfrentar a sua maior crise econômica desde a década de 1930, por conta dos efeitos da crise da dívida externa. Na época, a vulnerabilidade financeira do Brasil foi potencializada pelos conflitos de interesses comerciais com as potências tradicionais e pelas injunções norte-americanas nos âmbitos bilateral e multilateral  – mormente com o posterior receituário do Consenso de Washington e no âmbito das prescrições do Fundo Monetário Internacional (FMI)-, o que forçou o governo brasileiro a adotar uma estratégia subordinada no mencionado processo de globalização. Em meio às incertezas políticas geradas pelos efeitos da “década perdida”, houve “[…] forte perda da capacidade de negociação do Brasil, que se tornou indisfarçavelmente vulnerável às preces dos países industrializados e dos organismos multilaterais” (Sennes, 2003, p. 67). Num balanço daquela década, constatam-se as diferentes trajetórias do Brasil e da RPC: enquanto o Brasil experimentou longo período de estagnação ocasionada pela crise da dívida externa, pela consequente crise fiscal e pelo conjunto de políticas inadequadas fruto dos ajustes liberalizantes aplicados entre 1981 e 1994, a China apresentou vigoroso crescimento impulsionado pela política de modernização, mercantilização e abertura da economia controlada pelo Estado. A partir da década de 1990, as alterações ocorridas na estrutura do sistema internacional intensificaram o anseio no sentido de permitir maior participação dos países em desenvolvimento4 e mini-

Na verdade, o Brasil manteve uma estratégia de dupla inserção do sistema internacional, na medida em que mesmo focando no discurso ecumênico, o governo convergia em muitos momentos com as potências tradicionais, nomeadamente os Estados Unidos, dependendo da pauta dos interesses nacionais. Exemplo disso foi o fomento externo do processo de industrialização do país por meio do II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), lançado em setembro de 1974, o que acabou por incrementar substancialmente o endividamento externo brasileiro (Vizentini, 2004). De acordo com Bueno e Cervo (2002, p. 348-349) “o pragmatismo haveria de guiar-se pelas circunstâncias, sem admitir dicotomias e camisas-de-força. Sem opções exclusivistas pelo bilateralismo ou multilateralismo, pelo Ocidente ou Terceiro Mundo, pelo alinhamento ou divergência, por essa ou aquela ideologia.” 3

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Em termos produtivos, a transnacionalização progressiva foi agente catalisador desse processo. O peso do avanço tecnológico como variável da produção criou um abismo ainda maior entre os países mais e os menos desenvolvidos. O novo cenário multilateral modificou a inserção internacional dos países menos desenvolvidos com geometrias variáveis na composição dos grupos de atuação na esfera internacional. 4

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mizar as sujeições da estrutura hegemônica, sobretudo nos foros econômicos e políticos multilaterais, em que pese o “momentum” neoliberal difundido por Reagan e Thatcher (Guimarães, 2003). O governo Itamar Franco reviu a política externa brasileira e o paradigma foi adaptado à conjuntura internacional, de forma que o caminho seria percorrido por meio do multilateralismo5 e da universalização da política externa. Dessa forma, adotou uma postura crítica e ativa nos foros multilaterais6 e procurou assegurar mecanismos que impelissem à consecução de projetos de desenvolvimento. Nesse ínterim, o Brasil buscou aprofundar suas relações com países do Sul global, como Índia, Rússia, África do Sul e, principalmente, a China, percebendo neles certas similaridades e grande potencial de articulação diante dos desafios da agenda internacional, como as questões comerciais, ambientais e de governança. Nesse contexto de orientações difusas da política exterior, entre preservação de parcerias tradicionais e a busca pela diversificação e firmamento de novas parcerias com países em desenvolvimento, o caminho cursado pelo Brasil na década de 1990 foi caracterizado como a “dança dos paradigmas” (Cervo, 2002), que se deu nos governo de Fernando Collor de Melo, de Itamar Franco e de Fernando Henrique Cardoso. Ainda que as relações com as potências tradicionais tenham sido privilegiadas, a China foi identificada

como uma das prioridades da diplomacia brasileira devido à sua potencialidade como importante parceiro político, dadas posições similares nos fóruns multilaterais; de parceiro econômico, como forte mercado consumidor, fornecedor e investidor; como parceiro na cooperação científico-tecnológica; além da identificação compartilhada de países em desenvolvimento que buscam por maior engajamento e autonomia na arena internacional. A partir dessa percepção de convergência de interesses, as visitas de alto nível entre os países foram intensificadas. Em março de 1993, o chanceler Qian Qichen esteve em visita oficial ao Brasil. Na ocasião, ele afirmou que seu país atribuía uma atenção especial para suas relações com o Brasil e declarou a vontade do governo chinês em fazer das relações bilaterais exemplo de cooperação de sucesso entre países em desenvolvimento (Shang, 1999). Em maio desse ano, por ocasião da visita do então Primeiro-Ministro Li Peng e do Vice-Primeiro-Ministro Zhu Rongji ao Brasil, visando orientar as tratativas que antecederam a visita do Presidente Jiang Zemin, o relacionamento sino-brasileiro foi qualificado por Zhu Rongji como uma parceria estratégica, uma vez que se delineava uma “relação sinérgica” entre os dois maiores países em desenvolvimento do Oriente e do Ocidente (apud Fujita, 2003, p. 64). Destaca-se o fato de que a parceria estratégica foi formalizada nove anos após a entrada em vigor do primeiro Acordo de Cooperação Econômica e Tecnológica (1984) entre o Brasil e a China, abrindo espaço para a efetiva cooperação tecnológica que foi do codesenvolvimento do China-Brazil Earth Resources Satellite (CBERS), que teve início em 1988 com a assinatura do Protocolo sobre Pesquisa e Produção Conjunta do Satélite Sino-Brasileiro de Sensoriamento Remoto, que estipulava a construção conjunta de satélites de sensoriamento remoto. Em 1999, foi lançado com êxito o primeiro satélite do programa CBERS. O Programa está voltado para a construção de uma série de cinco satélites de sensoriamento remoto. Já foram lançados três satélites, CBERS-1 (1999), CBERS-2 (2003) e CBERS-2B (2007), sendo que esses três primeiros satélites obedeceram à divisão de responsabilidades de 70% para a China e 30% para o Brasil. Em

A atuação brasileira foi ampliada inclusive no terreno ambiental, tendo o país já durante a primeira metade da década de 1990 sido escolhido para ser anfitrião da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 (Rio-92). Naquela e em outras ocasiões, o Brasil logrou incluir o tema do desenvolvimento ao debate sobre meio ambiente, conduzindo os trabalhos de modo a substituir os impasses pela cooperação ambiental no diálogo Norte-Sul. 5

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Destaca-se a atuação brasileira na Comissão de Direitos Humanos da ONU, quando o país apoiou o governo chinês, votando contra a proposta de punição por violação dos direitos humanos feita pelos Estados Unidos. Tal fato mostra a convergência do princípio de não intervenção nos assuntos internos de ambos os países. Ver: Full Text of Human Rights Record of the United States in 2010, China’s Information Office of the State Council, 2010. Disponível em: [http://news.xinhuanet.com/english2010/china/201104/10/c_13822287.htm] Acesso em: 15 ago. 2014.

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2013, uma falha na terceira e última etapa do lançamento (propulsão) do satélite CBERS-3 fez sua colocação em órbita fracassar, o que levou as partes envolvidas a anteciparem o lançamento do CBERS-4 para o final de 2014. Nestes dois últimos satélites, a divisão de responsabilidade passou a ser de 50% para cada país. O lançamento do primeiro CBERS foi considerado um paradigma de Cooperação Sul-Sul, já que significou não só uma solução ao cerceamento tecnológico7 e ao oligopólio de dados de sensoriamento remoto impostos pelas potências centrais, como também representou iniciativa singular na cooperação de dois países em desenvolvimento no setor de tecnologia de ponta. Também foi pioneira a forma particular de como se deu cooperação: um modelo inédito de parceria entre dois países em desenvolvimento  – o de construção conjunta de dois satélites operacionais de grande porte  –, feito de maneira distinta do modelo habitual de assistência técnica e intercâmbio de pesquisadores. Isso se deve ao fato de que, até então, as diversas cooperações nesse campo davam-se por meio do uso de sistemas operacionais já estabelecidos, e tal cooperação foi no sentido do desenvolvimento conjunto desses próprios sistemas (Costa Filho, 2006). Do lado brasileiro, tais acordos contribuíram para a modernização tecnológica, tendo em vista a escassez de recursos para a pesquisa e desenvolvimento (P&D). Para a China, a cooperação científico-tecnológica serviu como instrumento para viabilizar o desenvolvimento das forças produtivas no país justamente num momento em que a China intensificava o processo de urbanização do país, promovendo a continuidade do seu crescimento econômico, fundamentalmente por meio de esforços em setores estratégicos como de infraestrutura, defesa, energético e, em certa medida, agrícola.

Faz-se mister enfatizar o importante fator político imbricado aos aspectos da cooperação tecnológica internacional, fato que também é verificado no caso da cooperação sino-brasileira (Costa Filho, 2006). Com efeito, tais fatores políticos, mormente ligados à autonomia e à soberania relacionadas ao sistema internacional, constituem-se precisamente como um argumento levantado para justificar a continuidade do programa CBERS, como exemplo concreto, e possivelmente singular, de cooperação Sul-Sul na área espacial a ter o seu objetivo alcançado. É também comumente citado como um dos programas pioneiros do avanço nas relações de cooperação tecnológica entre países em desenvolvimento – modelo de cooperação Sul-Sul –, além de dar legitimidade ao discurso de política externa independente tanto do Brasil quanto da China8. Sumariamente, a cooperação no setor científico-tecnológico foi um dos campos em que mais se desenvolveram contatos e onde mais se avançou na tessitura de acordos em diversos níveis. O desenvolvimento maior nessa área se deu em consequência do reconhecimento do potencial de colaboração existente em vista de certas similitudes de condições de desenvolvimento e da existência de considerável margem de complementaridade entre as estruturas industriais e de pesquisa, sendo que os setores mais beneficiados pela celebração desses acordos foram os de geociências, exploração de petróleo, aeronáutica e aeroespacial, transportes, medicina e saúde, fontes de energia, tecnologia da informação, recursos hídricos, indústria química, biotecnologia e agropecuário9.

Esse cerceamento se traduzia na prática, sobretudo, pela elaboração e divulgação de listas de tecnologias e materiais de exportação ou reexportação proibidos, como o Committee for Multilateral Exports Control (Cocom), o International Traffic in Arms Regulations (Itar) e o Missile Technology Control Regime (MTCR). O cerceamento tecnológico se justificava pelo caráter estratégico das tecnologias espaciais.

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Nesse aspecto, vale a pena refletir sobre o fracasso na cooperação entre Brasil e Ucrânia na construção de foguetes lançadores de satélites. Isso se deve, em parte, às pressões dos EUA contra a transferência dessa tecnologia estratégica. Ver: EUA tentaram impedir programa brasileiro de foguetes. O Globo, 25/01/2011. Disponível em: http://oglobo.globo.com/mundo/euatentaram-impedir-programa-brasileiro-de-foguetes-revela-wikileaks-2832869 8

Em abril de 1994, foi assinado o “Ajuste no Setor de Biotecnologia Aplicada à Agricultura”, complementar ao Acordo de Cooperação Científica e Tecnológica de 1982, que objetivava principalmente a promoção de cooperação e joint ventures sino-brasileiras voltadas para a pesquisa, beneficiamento e comercialização de produtos agrícolas (como arroz irrigado, soja e batata), além da promoção do intercâmbio de pesquisadores para capacitação em

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A partir do momento de sua concepção, a expressão parceria estratégica passou a caracterizar o relacionamento sino-brasileiro, e o reconhecimento mútuo dessa traduziu a proximidade de interesses e deu novo alento às relações bilaterais. O termo parceria estratégica empregado na caracterização do relacionamento sino-brasileiro tem sentido na formulação de planos de ações encadeados em diferentes esferas, maiormente política, comercial e científico-tecnológica, por ambos os países, e de contorno gradual, para além de dificuldades econômicas, e de viés de longo prazo, a partir de uma “perspectiva promissora” (Abdenur, 1994, p. 41). Em 1993, Jiang Zemin formulou breves princípios norteadores à cooperação bilateral, dando sentido ao caráter estratégico da parceria sino-brasileira, quais sejam: a) aprofundar as relações comerciais para promover a prosperidade mútua e consolidar um exemplo de cooperação Sul-Sul; b) estender a comunicação interpessoal e efetivar a cooperação em diversos campos, como na cultura e na educação; c) efetuar consultas bilaterais nos organismos multilaterais e sobre os assuntos da agenda internacionais, objetivando fortalecer a coordenação e o apoio mútuo, para salvaguardar os interesses dos países em desenvolvimento e contribuir para o estabelecimento de uma nova ordem política mundial baseada na paz, estabilidade e justiça; d) estender os contatos diretos e o diálogo entre os dirigentes para efetivar o mecanismo de consulta política e expandir a cooperação em todos os níveis e campos, no sentido de aprofundar o entendimento e a confiança mútua e construir uma relação bilateral estável e mutuamente benéfica (Shang, 1999). Além de reforçar o caráter de entendimento mútuo de longo prazo, tal configuração de parceria estratégica continha elementos que formavam três vertentes principais de cooperação: político-diplomática, econômico-comercial e científico-tecnológica (Fujita, 2003). De fato, se se considerar desde o período de estabelecimento das relações diplomáticas, em 1974, o relacionamento registrou saltos qualitativos nessas vertentes, muito embora os

primeiros 20 anos de relações diplomáticas entre Brasil e China não tenham sido muito expressivos. Os avanços na cooperação política foram mensurados pela amplitude da interlocução entre os países, a convergência de posições e de interesses e a frequência das visitas de alto nível. No início da década de 1990, o Brasil e a China buscaram a superação dos constrangimentos econômicos e diplomáticos externos, tendo em vista que o cenário internacional sinalizava a probabilidade de uma maior participação de novos atores, mormente países periféricos de grande porte como o Brasil e a China, que até então estavam à margem da arquitetura bipolar do poder. A década de 2000 experimentou significativa aproximação entre Brasil e China por meio de visitas recíprocas de alto nível e institucionalização de meios para maior concertação e coordenação. Ainda em 2001, Jiang Zemin fez sua segunda visita de Estado ao Brasil. Na ocasião, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, foram firmados acordos visando o estabelecimento de joint-ventures entre grandes empresas brasileiras e chinesas, a exemplo da associação entre a Embraer e a AVIC e entre a Vale e a Shanghai Baosteel. Ao longo de seu governo, inaugurado em 2003, o então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva reiterou a prioridade dada pela política externa brasileira às relações de perfil Sul-Sul. Como resultado, a dependência dos mercados da Europa e dos Estados Unidos para as exportações brasileiras diminuiu fortemente. Em 2000, elas representavam 58,3% e, em 2013, caíram para 32,3%. Em contrapartida, as exportações para a Ásia subiram de 16,8%, em 2000, para 32,1%, em 2013 (Secex/MDIC, 2013). Tal direcionamento colocou as relações com a RPC em novo patamar. Em 11 anos de governo do Partido dos Trabalhadores, ocorreram seis visitas de Estado: Luiz Inácio Lula da Silva, maio de 2004 e abril de 2009, Hu Jintao, novembro de 2004 e abril de 2010, e Dilma Rousseff, em abril de 2011, e Xi Jinping, em julho de 2014. Na década de 2000, a estratégia da China para o Brasil basicamente centrou-se em cinco elementos essenciais: a) fortalecer os laços comerciais e obter recursos para o desenvolvimento nacio-

biotecnologia aplicada à agricultura, e avaliação e troca de material genético de micro-organismos para controle de insetos e pragas.

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nal; b) expandir os negócios asiáticos, seja por meio da venda de produtos com alto valor agregado, seja por intermédio da realização de investimentos diretos voltados para os mercados regional e continental; c) garantir presença em mercados regionais cada vez mais competitivos e restritivos, sobretudo diante da tendência de aprofundamento de processos regionais e de formação de novas áreas de livre mercado; d) aumentar seu poder relativo pela via da promoção da multipolaridade e da democratização das relações internacionais, tendo a agenda de cooperação Sul-Sul como respaldo político no âmbito dos organismos multilaterais; e e) arrefecer as influências de Taiwan e conter seus interesses de independência (Oliveira, 2004). Da parte brasileira, a ampliação dos laços com a RPC baseou-se nas seguintes diretrizes: a) aumentar a margem relativa de manobra no plano externo frente aos principais parceiros internacionais; b) atrair um maior número de investimentos externos e adquirir novas tecnologias de ponta; c) abrir mercados de alta capacidade de consumo com vistas a uma maior inserção de produtos brasileiros; d) aproveitar dos efeitos desenvolvimentistas advindos das relações com países asiáticos altamente competitivos e, e) explorar as similaridades existentes entre o Brasil e a China enquanto países em desenvolvimento – sobretudo aquelas ligadas à necessidade de reestruturação do Sistema Internacional –, permitindo um aumento do poder de barganha nos fóruns multilaterais e ampliação dos espaços ocupados pelo Brasil nos negócios internacionais. No encontro realizado em 2004, Lula da Silva e Hu Jintao incentivaram mais fortemente o diálogo de alto nível. As conversações ao longo das missões diplomáticas concentraram-se em quatro temas principais: a) colaboração no plano multilateral; b) apoio à candidatura do Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU; c) processo de reconhecimento do status da China como país de economia de mercado; e d) direitos humanos na China. Percebe-se o caráter de “troca mútua” nas discussões conduzidas na missão10. Além disso, os presidentes

estabeleceram princípios como forma de ampliar as relações bilaterais: persistir no benefício recíproco e ampliar o intercâmbio econômico e comercial; fortalecer a cooperação no âmbito internacional e incentivar o aprofundamento do entendimento mútuo nas respectivas sociedades civis; e persistir em consultas em pé de igualdade e fortalecer a confiança política11. Na perspectiva brasileira, o objetivo maior da referida viagem presidencial era sinalizar ao governo central da RPC a importância estratégica e comercial que o Brasil passava a atribuir à China. Havia grande expectativa brasileira de que o maior estreitamento das relações bilaterais conferisse resultados mais palpáveis, sobretudo no longo prazo, por meio do comércio bilateral e de investimentos chineses na infraestrutura do Brasil. O encontro teve o saldo de nove atos bilaterais e 14 contratos empresariais assinados – no sentido da ampliação do intercâmbio econômico e comercial-, além da relevante criação da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban), destinada a promover, no mais alto plano estratégico, as políticas de desenvolvimento nos planos: econômico, comercial, financeiro, científico e tecnológico, acadêmico e cultural12. Adicionalmente, sob o direcionamento da Cosban, foi assinado pelos presidentes, em 2009, o Plano de Ação Conjunta 2010-2014, com o objetivo de constituir espaço de negociações comerciais e de investimento com a China, na busca por orientar as políticas nas diversas esferas do relacionamento. Tal Plano tinha por intenção dotar o relacionamento sino-brasileiro de um caráter institucional,

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A Cosban foi montada com 11 Subcomissões, que cobrem diversos aspectos da agenda bilateral (Econômico-Financeira; de Inspeção e Quarentena; Educacional; Política; de Cooperação Espacial; Econômico-Comercial; de Agricultura; Cultural; de Ciência e Tecnologia; de Energia e Mineração; e de Indústria e Tecnologia da Informação). Conta também com Grupos de Trabalho sobre temas específicos (investimentos; propriedade intelectual; questões aduaneiras; esportes, entre outros). 12

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com o estabelecimento de metas e a criação de mecanismos permanentes de consulta e coordenação entre os dois países. Nos anos seguintes à criação da Cosban, o relacionamento sino-brasileiro intensificou-se por meio de visitas de alto nível entre os países e de iniciativas no sentido da maior institucionalização das mesmas. Assim, logo em 2007 houve a I Reunião do Diálogo Estratégico Brasil-China, que pôde ser interpretado como uma espécie de termômetro de interesses da RPC, servindo como arena menos burocrática para negociação de questões comerciais e/ ou como instrumento para inclusão de temas na agenda bilateral e aprimoramento das relações diplomáticas, cujas bases estão no entendimento de que nada substitui o contato direto e constante entre principais líderes do governo. No início do século XXI, também emerge um novo horizonte na parceria estratégica sino-brasileira, qual seja: a percepção de que o multilateralismo era fundamental para ampliar suas ações em prol de buscar maior voz nos processos decisórios internacionais, e lançar pilares para a construção de uma nova ordem política e econômica internacional de característica não hegemônica. Diversos momentos intensificaram o relacionamento sino-brasileiro neste sentido como o ingresso da China na OMC e participação na Rodada Doha de negociação comercial, sua incorporação ao G20 comercial, em 2003, o reconhecimento brasileiro da China como economia de mercado, em 2004, e o lançamento pelo governo central da RPC, em 2006, do primeiro Livro Branco para a região latino-americana: China’s Policy Paper on Latin American and the Caribbean. Diante da percepção de similaridades de interesses no âmbito multilateral  – respeito à soberania nacional e não ingerência em assuntos internos de outros países, por exemplo  –, o Brasil apresentou intenção em obter assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, vislumbrando o apoio chinês, sendo a China o único país considerado emergente em tal posição. Não obstante os aportes por parte do Brasil, o apoio chinês esperado à reivindicação brasileira de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU não vingou, em grande parte pela inclusão de Japão, Índia e Alemanha no pacote “reformista” do Brasil. Da

parte chinesa estava registrada, no comunicado conjunto, que o Brasil deveria desempenhar “maior papel nas instituições multilaterais, como as Nações Unidas”, não havendo apoio explícito à reivindicação brasileira13. China e Brasil buscaram desenvolver as relações em todas as suas esferas com vistas a fomentar os mais diversos mecanismos de diálogo nas seguintes áreas: econômica, comercial, política e diplomática; nos planos bilateral e multilateral, envolvendo organizações governamentais, empresas e sindicatos; no âmbito dos partidos e parlamentos; entre outros atores. A conjuntura internacional igualmente estimulou os laços de cooperação de tipo Sul-Sul entre os gigantes emergentes. O primeiro deles encontra-se na afirmação da agenda pacífica da não intervenção, por ambos os lados, especialmente depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 e das guerras do Afeganistão e do Iraque, ações unilaterais norte-americanos dentro dos ideais da guerra contra o terror. Outro ponto foi o ingresso da China na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 11 de dezembro de 2001. Também foi realizada a reunião ministerial de Cancun (setembro de 2003), na formação do G-20 comercial14, um grande instrumento de barganha de países interessados no fim dos subsídios internos e das subvenções às exportações de produtos agrícolas e em um maior acesso aos mercados dos tradicionais protegidos do Norte. E por último, as relações comerciais entre Brasil e China no âmbito BRICS15 – Brasil, Rússia, Índia, China, e após o III encon-

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“China quer status de economia de mercado”. O Estado de S. Paulo, 25 mai.2004. Disponível em: [http://www.lourivalsantanna.com/chin0015.html] Acesso em: 12 ago. 2014. 13

A criação inicial de 1999 estabelecia um G-20 como fórum consultivo em termos de sistema financeiro internacional. A partir de 2008 estabeleceu-se que o G-20 seria um conselho internacional permanente de cooperação econômica entre os países em desenvolvimento no âmbito da OMC, e em suas reuniões participariam não só os ministros das finanças dos países-membros, como também os respectivos chefes de Estado. 14

O acrônimo que virou um grupo foi criado pelo economista Jim O’Neill, do banco Goldman Sachs, em um estudo de 2001 (“Dreaming with the Brics”) em 15

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tro da Cúpula em 2011, na cidade de Sanya, China, o ingresso da África do Sul – também se tornaram especiais, na medida em que ambos os países de certa forma resistiram a uma convulsão econômica com os efeitos da crise financeira relacionada às hipotecas subprime norte-americanas em 2008. Nesse mesmo ínterim de valorização das relações de cooperação no âmbito Sul-Sul, a Cúpula do Brics veio a acoplar metas de coordenação internacional semelhantes. O bloco, oficializado em sua I Cúpula em 2009, em Ecaterimburgo, Rússia, trazia em pauta inicialmente termos de cunho econômico e relacionados ao desenvolvimento, tais como os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, e a ampliação dos fluxos comerciais entre os países do bloco, passando de US$ 38 bilhões em 2003, para US$ 143 bilhões em 2009 e para US$ 220 bilhões em 2010. Assim, entre 2003 e 2010, o crescimento dos países do Bric (em formação original sem a participação da África do Sul) representou cerca de 40% da expansão do PIB mundial, e seu PIB, calculado pela paridade de poder de compra, atingiu US$ 19 trilhões, correspondente a 25% da economia mundial16. O Brics advoga um bloco periférico, “engajado numa integração estratégica trans-regional, com visão global para além do pensamento tradicional geoestratégico” (Yang, 2013, p. 31), em condições de transformar representatividade econômica em força política e assim transformar a correlação de forças em âmbito mundial em prol do direito à autonomia dos países periféricos em escolher caminhos ao desenvolvimento. Em suma, tal articulação buscava garantir aos países do “Sul” a possibilidade de construir uma ordem internacional em moldes verdadeiramente multilaterais17. Nesse sentido, para além de apenas um acrônimo,

o bloco logrou um giro em importância também como fórum no pleito por mais voz aos países emergentes em organismos multilaterais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), fortemente influenciados pelos países centrais. Essa iniciativa é relevante, na medida em que o bloco dos Brics tem sido cada vez mais ativo na arena internacional. Se na primeira reunião do grupo a declaração de Ecaterimburgo foi composta de 16 pontos que versavam basicamente sobre desafios econômicos a serem transpassados, a reunião realizada na África do Sul em 2013, a declaração de eThekwini foi composta por 47 pontos que versavam não só sobre a reforma das esferas de governança financeira mundial  – inclusive com a proposta de um fundo de investimentos em infraestrutura e projetos de desenvolvimento (Brics-Led New Development Bank) e segurança monetária multilateral (Contingent Reserve Arrangement – CRA) com capital inicial de US$ 50 bilhões e US$ 100 bilhões, respectivamente-, mas também os países se posicionaram frente a temas latentes conjunturais de segurança e política internacionais, como o caso de violações de direitos humanos na Síria (ponto 26) e na República Democrática do Congo (ponto 32), o programa nuclear do Irã (ponto 28), o terrorismo e o extremismo no Afeganistão (ponto 29) e até mesmo congratularam a Palestina como membro observador das Nações Unidas (ponto 27) (Brics Summit, 2013). Já na VI Cúpula dos Brics, realizada em Fortaleza e Brasília, em julho de 2014, o comunicado conjunto apresentou 72 pontos, destacando-se a criação do Novo Banco de Desenvolvimento e do Fundo de Contingência que haviam sidos propostos na reunião de eThekwini, um ano antes (Brics Summit, 2014). Fruto do amadurecimento das relações bilaterais, ambos os países decidiram por elevar o relacionamento em nível de Parceria Estratégica Global. Isso se deu no âmbito da Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), realizada entre os dias 13 e 22 de junho de 2012, quando a Presidenta brasileira

que previa que as quatro economias emergentes teriam um PIB superior ao do G7 até 2050. Ingresso da África do Sul no Bric reforçará busca pela reforma do sistema financeiro mundial. Portal Brasil. 2011. 16

Os países do Brics também clamam pela reestruturação da regulamentação financeira mundial, focando o FMI, de forma a tentar prevenir a recorrência dos fatores que causaram a crise financeira no segundo semestre de 2008, originada pelo estouro da bolha especulativa nos Estados Unidos. Na agenda 17

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da cimeira está a proposta de realização de trocas comerciais em suas próprias moedas, não mais dependendo do intermédio do dólar estadunidense.

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Dilma Rousseff e o Primeiro Ministro da China, Wen Jiabao, decidiram por elevar o status da parceria sino-brasileira, considerando que a partir daí sua parceria estratégica ultrapassaria os assuntos bilaterais e incorporaria as mais relevantes questões globais de política e economia, a serem discutidas pelos respectivos chanceleres. Assim, os dois países: Reconheceram o aprofundamento da confiança política mútua e o dinamismo do relacionamento entre os dois países, em sua vertente bilateral e em sua crescente projeção multilateral, com perspectiva de longo prazo. Reiteraram o compromisso de promover salto qualitativo das relações sino-brasileiras, por meio da intensificação do diálogo político e da ampliação da agenda de cooperação bilateral18.

Naquela oportunidade, foi lançado o “Plano Decenal de Cooperação entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo da República Popular da China”. As diretrizes para a cooperação do Plano Decenal são as seguintes: (1) Ciência, Tecnologia, Inovação e Cooperação Espacial; (2) Minas, Energia, Infraestrutura e Transportes; (3) Investimentos e Cooperação Industrial e Financeira; (4) Cooperação Econômica e Comercial; (5) Cooperação Cultural, Educacional e Intercâmbio entre os povos (MRE, 2012). Nesse aspecto, é preciso mencionar a terceira reunião da Cosban, realizada em Guangzhou, China, em novembro de 2013, que contou com a presença do Vice-Presidente brasileiro, Michel Temer, e do Vice Primeiro Ministro chinês, Wang Yang. De acordo com a ata divulgada após o encontro (MRE, 2013), foram revisados os relatórios de trabalho das subcomissões e identificados os avanços até então realizados. Vale ressaltar dessa Ata a avaliação sobre os trabalhos da Comissão, tal como segue: REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Comunicado Conjunto entre a República Federativa do Brasil e a República Popular da China. Ministério das Relações Exteriores, 21 jun. 2012. Disponível em: [http://www.itamaraty.gov.br/ sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/comunicado-conjunto-entre-brasile-china2013-rio-de-janeiro-21-de-junho-de-2012/print-nota]. Acesso em: 23 ago. 2014. 18

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Na reunião de trabalho antes da Sessão Plenária, o VicePresidente Michel Temer e o Vice-Primeiro-Ministro Wang Yang avaliaram a evolução recente das relações bilaterais e a situação político-econômica internacional e forneceram orientações para a condução da agenda sino-brasileira. Assinalaram o estabelecimento do Plano Decenal de Cooperação e do Diálogo Estratégico Global e a elevação das relações ao nível de Parceria Estratégica Global. As Partes avaliaram positivamente o desempenho do comércio bilateral e dos investimentos recíprocos. Comprometeram-se a envidar esforços com vistas a seu aumento e diversificação, com especial atenção aos segmentos de maior valor agregado, ao agronegócio, e a projetos-chaves de energia e infraestrutura. Saudaram a intensificação das relações na área financeira e a trajetória da cooperação nos campos da ciência, tecnologia e inovação, espacial, cultura e educação.

Como se pode verificar, existe um canal fluído de diálogo e vem ocorrendo um melhor nível de entendimento entre ambos os países, não só potencializando as questões econômicas e comerciais, mas também adensando a compreensão mútua e relação política em foros de governança globais. De forma geral, tradicionalmente presentes nas políticas externas de ambos os países, o multilateralismo e o terceiro-mundismo mantiveram-se como noções centrais da alocução diplomática dos dois países, acreditando-se colaborarem para a existência de um ambiente internacional pacífico favorável para o desenvolvimento, para a abertura econômica e para a própria inserção no mundo em termos justos. Os organismos internacionais, como ONU e OMC, também continuaram a ser vistos como foros ideais para o exercício da diplomacia, ainda que necessitando de reformas estruturais. Ainda que os fatores políticos e diplomáticos estejam presentes e sejam paradigmáticos na evolução das relações sino-brasileiras, foi o terreno econômico-comercial que ditou os passos das relações da China com o Brasil na década de 2000, sobretudo pelo fato deste ser considerado como reservatório de recursos naturais, matérias-primas e alimentos, tidos como essenciais para sustentar o modelo de desenvolvimento adotado pela China, em 157

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processo de impressionante aceleração. Faz-se então necessária a análise dessa vertente durante a consecução da parceria estratégica sino-brasileira na próxima seção.

A evolução do comércio externo entre Brasil e China (ver Figura 1) durante a década de 2000 pode ser caracterizada por três períodos distintos. O primeiro (2000-2003) foi marcado pela intensificação dos resultados favoráveis ao Brasil, trajetória interrompida pelo segundo período, de 2004 a 2008, ano em que o superávit chinês atingiu os US$ 3,5 bilhões. O terceiro período ocorreu nos anos de 2009 e 2010, quando o saldo voltou a ser largamente favorável ao Brasil  – situação que se sustenta até 2013, em resposta à elevação acentuada nas exportações brasileiras para a China frente às importações. Além disso, vale destacar que tal crescimento de fluxo comercial foi possível na medida em que a concentração de produtos primários ou manufaturados intensivos em recursos naturais na pauta exportadora brasileira para a China aumentou sobremaneira. Em relação à estrutura da pauta comercial brasileira, nesse período ocorreram mudanças na composição tanto das exportações, quanto das importações brasileiras com relação à China. Se em 1991, perto do início da parceria estratégica, o Brasil concentrava 42,1% de produtos básicos em suas exportações para a RPC, entre 2000 e 2009 – ano em que a China se tornou o principal parceiro comercial do Brasil  –, os produtos básicos passaram de 68% para 83% da pauta. Em 2013, esse percentual ultrapassou 90% do total. Os produtos que apresentaram a maior participação das exportações brasileiras para a China são minérios, oleaginosas e combustíveis fósseis, e, em menor medida, ferronóbio, aço e pasta de madeira. Em 2010, ano em que a China se tornou importadora líquida de grãos19, a exportação de oleaginosas aumentou, e a soja ocupou o primeiro lugar nas exportações brasileiras para aquele país, sendo que no ano de 2014 representa pouco menos da metade das exportações – 49,9% (MDIC, 2014). Já a pauta de importação do Brasil com a China por intensidade tecnológica mostra o comportamento contrário. As importações

Evolução da esfera econômico-comercial É do ponto de vista econômico e comercial que as relações entre Brasil e China tem se mostrado mais robustas. O crescimento da China, com sua forte demanda por matérias-primas e alimentos, e também sua oferta diversificada de bens industriais, a transformou no principal parceiro comercial do Brasil. Em 2000, a China figurava como o décimo parceiro comercial, com uma corrente de comércio de US$ 2,3 bilhões; em 2013, o fluxo comercial atingiu US$ 83,3 bilhões, com um superávit em favor do Brasil de US$ 8,7 bilhões. Desde 2009 o país é o principal parceiro do Brasil. Figura 1 – Comércio Bilateral Brasil – China – 1989-2013 (em bilhões de US$)

Fonte: MDIC, 2014.

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A entrada da China, um dos maiores importadores do complexo de soja, na OMC gerou mudanças significativas no mercado internacional de soja, uma vez que foi possibilitado a essa commodity um maior acesso ao mercado chinês e limitou os subsídios do governo chinês aos produtores domésticos. 19

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brasileiras de produtos de maior valor agregado e alta tecnologia aumentaram significativamente em termos de valores, saindo de US$ 487 milhões em 2000 para US$ 10 bilhões em 2010, sendo que ao longo dos anos, a concentração de manufaturados aumentou de 91% para 97,6% entre 2000 e início de 2014. A pauta de importação quanto aos produtos, por sua vez, tende a ser mais diversificada, já que o total dos 100 principais produtos importados chega a apenas 42,7%, sendo que os cinco primeiros produtos importados, que envolvem máquinas e aparelhos elétricos, participam com apenas 12% da pauta (MDIC, 2014). Tais dados explicitam, de um lado, a forte concentração de pauta das exportações brasileiras em poucas commodities e a vulnerabilidade da mesma em relação às variações dos preços internacionais, conhecidamente voláteis. De outro, o crescimento e relativa diversificação da pauta chinesa no sentido de produtos de maior valor agregado. O ganho comercial bilateral obtido na década de 2000, em que pese duras críticas quanto ao deslocamento de produtores brasileiros no mercado doméstico e internacional20, deu sentido à percepção de complementaridade entre as duas economias baseada em vantagens comparativas. De fato, houve clara tendência de expansão do Índice de Complementaridade Comercial (IC) nas categorias dos produtos primários, cujo índice subiu de 9% para 17% entre 2000 e 2010; e de manufaturas, cujo índice avançou de 28% para 32% (Carneiro, 2012). Ademais, se em 2001 a China investiu pouco mais de US$ 215 milhões, e ocupava a modesta 29ª posição no ranking de investidores no Brasil, em 2010 passou a figurar também como o principal investidor, posição antes ocupada por Estados Unidos. Em 2009 os investimentos eram da ordem de US$ 549 milhões. Em apenas um ano os investimentos anunciados ampliaram-se para mais de US$ 35 bilhões (sendo US$ 13 bilhões concretizados), e em 2013

somaram US$ 3,6 bilhões. Enfatiza-se que a observância do declínio em valor dos investimentos decorre do fato de que as empresas chinesas têm desenvolvido maior planejamento de suas ações, passado o momento de euforia em relação ao Brasil como novo destino de investimentos, além do fato de que questões relativas à burocracia e ao sistema tributário brasileiro dificultam a atuação de empresas chinesas no país. Apesar disso, o número de projetos confirmados tem sido constante (13 projetos em 2010 e 11 projetos em 2013), e, com os investimentos direcionados para projetos de maior probabilidade de concretização, a taxa de efetivação dos mesmos também tem aumentado de 45% entre os anos de 2007 e 2011, para 81% entre 2012 e 2013 (CEBC, 2014). Os investimentos chineses têm como foco a busca de fornecedores de energia e de alimentos, e adicionalmente, como parte da estratégia going global, buscam diversificar sua cadeia produtiva em setores e mercados em potencial onde a própria indústria começa a florescer, como a automobilística, a de informática, a de telecomunicações, entre outros, ainda que tenha um potencial mercado doméstico a explorar21. Assim, o Brasil apresentou-se como o parceiro preferencial no continente. Desde então, o País figura como um dos principais destinos dos fluxos de IED da China na América Latina por meio de, principalmente, parceria em joint ventures,

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Estima-se que os produtos chineses causaram um deslocamento total de US$ 14,4 bilhões no mercado doméstico na década de 2000 (Fiesp, 2010) e, entre 2005 e 2009 o Brasil deixou de exportar US$ 2,5 bilhões para a região latino-americana e pelo menos US$ 730 milhões somente para a Argentina (Carta Capital, 2012).

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Tal estratégia pretende responder ainda a interesses subjacentes do governo central da RPC. Um deles é a busca por competitividade, pois desde seu ingresso na OMC, em 2001, o país teve de abrir gradualmente seu mercado interno à concorrência de empresas estrangeiras, o que induziu as firmas chinesas a se expandirem nos mercados externos a fim de compensar as perdas no mercado doméstico. Além disso, vislumbra-se estratégia de saída da posição da RPC de maior credor dos Estados Unidos, já que, contando com mais de US$ 2,3 trilhões de reservas investidas em títulos públicos norteamericanos, a China teme que a fuga dos investidores em busca de retornos melhores dadas políticas expansionistas estadunidenses para estimular a retomada econômica do país e reduzir seu endividamento cause sérios impactos em seu estoque de riqueza. Um último elemento tangencia a intenção de aumentar a influência política e econômica chinesa  – soft power chinês – no mundo, haja vista intenções por parte de certas correntes internas no país em mudar a atual política externa do “esconder as capacidades, e manter perfil baixo” (韬光养晦-Taoguang yanghui), rumo a um maior ativismo internacional. 21

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fusões e aquisições de empresas já estabelecidas, e a partir da modalidade de novos investimentos (greenfield). O modelo de desenvolvimento adotado pela China supõe a necessidade de diversificar as fontes energéticas e de assegurar o fornecimento confiável de combustíveis fósseis. Em decorrência disso, a variável energética tornou-se presente na relação da China com o Brasil, iniciando estudos de viabilidade de operações conjuntas para exploração, refino e construção de oleodutos. No caso do petróleo, a China encontrou uma forma de garantir o fornecimento ao fechar contrato, em maio de 2009, de fornecimento de 10 anos com a Petrobrás22, num molde similar ao que já possui com a Rússia: o China Development Bank – tipo de versão chinesa do BNDES brasileiro – concedeu empréstimo para a empresa petrolífera a juros baixos para ser quitado com os recursos da venda do petróleo à empresa petrolífera chinesa, cotado pelo valor da data da entrega23. Graças ao acerto entre Petrobrás e Sinopec, o ritmo de crescimento das vendas de petróleo para a China foi exponencial. Em 2004, os chineses estavam na sexta colocação entre os clientes do Brasil, atrás de países como Chile e Portugal. Em 2003, sequer apareciam nas estatísticas. Já no final da década, em 2010, a China passou a liderar a importação de petróleo do Brasil24. Em que pese o fato de o Brasil ainda ser um fornecedor irrelevante para os chineses e ainda não produzir petróleo o suficiente para exportar volumes significativos para a China, o país conta com reservas

promissoras, atraindo investimentos chineses no sentido de maior exploração do setor. Em agosto de 2013, a Ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffman, e o Ministro de Desenvolvimento, Fernando Pimentel, realizaram um roadshow na China para apresentar ao governo chinês as potencialidades de negócios nesses setores. Lá, se reuniram com o vice premiê Wang Yang e com o chanceler chinês, Wang Yi. Destaca-se que após essa visita ocorreram investimentos de peso de empresas estatais chinesas no Brasil, como os aportes da CNPC, CNOOC no consórcio liderado pela Petrobrás para a exploração do campo de petróleo de Libra e a participação majoritária da State Grid num consórcio com a estatal Furnas para transmissão da energia da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. Outro acordo, entre Eletrobrás, Furnas e o grupo de Três Gargantas, pretende garantir a participação chinesa na licitação para a construção da usina hidrelétrica do Rio Tapajós. De maneira geral, o governo brasileiro aposta ainda na atração de investimentos chineses em infraestrutura (portos, aeroportos, rodovias, ferrovias, energia), de aberto interesse chinês na medida em que acelera e barateia os custos do escoamento dos produtos primários exportados pelo Brasil àquele país. Não obstante a complementaridade verificada no fluxo comercial sino-brasileiro e o crescente fluxo de investimentos chineses no Brasil, diversas críticas são direcionadas à crescente primarização da pauta exportadora brasileira. Tal tendência tem sido reforçada desde 2004 pela combinação do câmbio valorizado (apreciação da moeda brasileira)  – encarece as exportações ao mesmo tempo em que torna as importações mais baratas  – com o significativo aumento dos preços relativos das principais commodities exportadas pelo país, além dos problemas relacionados ao chamado “CustoBrasil”, entre eles os recentes aumentos reais de salário, o preço da energia e a insuficiente infraestrutura, que acentuam a perda de competitividade da indústria doméstica. Se bem é verdade o fato de que a capacidade industrial chinesa e sua competitividade, aliada ao boom de commodities alavancado pela própria China, podem trazer o risco de o Brasil encerrar-se num novo ciclo de dependência da produção de matérias-primas,

Com base no financiamento chinês de US$ 10 bilhões e venda de até 200 mil barris de petróleo por dia à estatal chinesa Sinopec. 22

“Banco chinês financiará US$ 10 bi para Petrobrás”. BBC Brasil, 19 mai. 2009. Disponível em: [http://www.bbc.co.uk/portuguese/ noticias/2009/05/090519_china_lula_dg.shtml]. Acesso em: 12 ago. 2014. 23

Vale lembrar que em 1985, a China encontrava-se na posição de quarto maior fornecedor de petróleo para o Brasil. Contudo, ao longo dos anos esse quadro foi sendo alterado, tanto em função da crescente necessidade chinesa de consumo de energia, setor em que se tornou deficitária, como pela melhoria da sua economia, que cada vez mais se industrializava. Como resultado, temse que nos últimos anos o Brasil tornou-se um importador de equipamentos industrializados e exportador de commodities. 24

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também é verdade que o superávit comercial obtido com a China a partir do aumento expressivo do fluxo de exportações de commodities a este país contribuiu para que o Brasil atravessasse a crise internacional de 2008 sem maiores dificuldades para fechar sua balança de pagamentos. É relevante destacar o fato de que, no âmbito da reestruturação das cadeias produtivas em nível global, a China ainda participa nos processos finais de baixo valor agregado de produtos cujos componentes vem de outros países, e apenas são montados nesse país em empresas subcontratadas (como a Foxconn), que contribui com pequena porcentagem do valor agregado (aperfeiçoamento passivo), e que posteriormente reexporta tais produtos – papel que conferiu à China o rótulo de “fábrica do mundo”. Isso decorre de alguns fatores, como da grande oferta de mão de obra relativamente qualificada e barata, do câmbio administrado, dos subsídios dados às empresas, dos ganhos de escala e do baixo custo de infraestrutura na China. Tais vantagens estimularam as empresas multinacionais a utilizar a China como uma grande plataforma de produção e exportação. No caso brasileiro, isso implicou que parte da matéria-prima antes era exportada para os países desenvolvidos foi redirecionada para a China, algo que reflete na pauta comercial sino-brasileira. Em vista desse quadro de comércio entre Brasil e China, e a partir da observação do grau de penetração das importações chinesas diante da produção doméstica e da perda de dinamismo competitivo da mesma, segmentos industriais e variados sindicatos de trabalhadores têm pressionado o governo brasileiro a adotar medidas protecionistas. Ainda que o Brasil não se utilize de Salvaguardas Especiais com relação à China, o país tem de fato aumentado a aplicação de medidas contra produtos chineses. Dentre as 72 medidas em vigor, 47 envolvem empresas e produtos chineses, como vidros planos, fibras têxteis, pneus, utensílios domésticos, insumos industriais, como magnésio, eletrodos de grafite, tubos metálicos, entre outros (MDIC, 2014). Levando em consideração apenas o atual padrão comercial sino-brasileiro, pode-se considerar que esse se reveste de um caráter

centro-periférico, na medida em que a China, da mesma forma que os países ricos fizeram outrora, é grande compradora de commodities agrícolas e minerais e grande exportadora de manufaturas, e acaba por intensificar a estrutura de trocas comerciais baseada em vantagens comparativas. No entanto, seria errôneo conferir à China a principal ameaça ao desenvolvimento do Brasil. Isto porque não é apenas a exportação de commodities per se à China que configura o padrão assimétrico de trocas comerciais, mas sim a dependência relativa a tal tipo de exportação. Não é sensato que o Brasil não explore suas potencialidades como a exportação de alimentos e recursos naturais. Estados Unidos e Europa fazem o mesmo. O problema está em não diversificar pauta, cuja explicação está em problemas estruturais que fogem ao objetivo deste trabalho. Se bem é sabida a pressão internacional estrutural – a exemplo do mecanismo tributário empregado pelos países centrais  – para que países subdesenvolvidos, em desenvolvimento, ou até mesmo emergentes, ricos em recursos naturais, permaneçam num status quo da divisão internacional do trabalho enquanto exportadores de matérias-primas com baixo valor agregado, a estratégia nacional de desenvolvimento destes países, nomeadamente o Brasil, deve envolver planejamentos referentes ao aprofundamento da integração na cadeia global de valor, buscando criar competência interna, além de tirar maior proveito dos investimentos externos.

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O estado das relações bilaterais em 2014 Nesta última seção busca-se fazer um breve balanço do estado das relações bilaterais, particularmente nos debates que envolvem a Cosban. Desde que foi criada, em 2004, a Comissão reuniu-se três vezes, em 2006 (Pequim), 2012 (Brasília) e 2013 (Cantão). Simultaneamente, ocorreram reuniões das onze subcomissões, que cobrem diversos aspectos da agenda bilateral. Apresentamos, a seguir, os principais temas que vêm sendo discutidos no âmbito dessas subcomissões. 165

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Brasil, China e a cooperação Sul-Sul

Comércio e Investimento Em que pese a ampliação da corrente de comércio entre Brasil e China, que passou de US$ 3,2 bilhões, em 2001, ano de entrada da China na OMC, para US$ 83,3 bilhões, em 2013, as relações de comércio entre os dois países são marcadas pela já assinalada assimetria representada pelo fato de que os principais produtos exportados pelo Brasil são produtos básicos e semimanufaturados enquanto as importações brasileiras da China são de produtos acabados. As exportações de soja, minério de ferro e óleos brutos de petróleo, somadas, representam 81% da pauta brasileira exportadora para a China. No sentido oposto, mais de 90% das importações brasileiras da China são de produtos acabados. As compras de máquinas e aparelhos elétricos e mecânicos, somados, correspondem a cerca de 50% do montante das importações. Em diversas ocasiões o governo brasileiro manifestou o interesse não apenas de aprofundar as relações bilaterais de comércio, mas também de diversificar a pauta exportadora brasileira nela incluindo produtos acabados de maior valor agregado. Com esse objetivo, não tem poupado esforços para ampliar a exportação brasileira de aviões, produzidos pela Embraer, bem como superar as barreiras impostas pela China à exportação brasileira de produtos agrícolas e alimentos. No momento os esforços brasileiros concentram-se em eliminar as barreiras chinesas para a exportação brasileira de carnes, milho e ração animal. Há no momento 42 frigoríficos habilitados a exportar para China, sendo sete de carne bovina, seis de suína e 29 de aves. O Brasil tem insistido para que a China agilize os trâmites na habilitação de novos estabelecimentos. No caso do milho, embora em novembro de 2013 tenha sido assinado um protocolo para exportação do milho, o mercado chinês permanece fechado, pendente da aprovação, pelas autoridades chinesas, do gênero transgênico MIR 116, utilizado pela maioria dos produtores brasileiros. No que diz respeito ao investimento direto, a partir de 2010 o Brasil passou a figurar como um dos principais destinos do IDE chinês. Segundo o Conselho Empresarial Brasil-China, no período 2007-2012, 60 projetos de investimentos totalizando cerca de US$ 68,5 bilhões foram anunciados por empresas chinesas. Observa-

se que, contrário ao senso comum de que o IDE chinês no Brasil estaria em busca de fontes de abastecimento de matérias-primas, grande parte dos investimentos chineses destina-se ao setor de manufatura (automobilístico, equipamentos de construção, alta tecnologia) e serviços (distribuição de energia, telecomunicações, serviços financeiros), o que evidencia outros motivos para o IDE chinês no Brasil, especialmente a busca de mercados. No sentido oposto, um número crescente de empresas brasileiras está realizando investimentos no mercado chinês em áreas como aeronáutica e equipamentos industriais, processamento de alimentos, serviços financeiros e instalações portuárias. Entre os principais investidores brasileiros na China temos a Embraer (aeronáutica), Vale (mineração), BR Foods, Marfrig (alimentos), WEG (motores), Maxion, Marcopolo, e Fras-le (autopeças), Votorantim (cimento). Empresas como a Gerdau (siderurgia), a Suzano (papel e celulose), Riachuelo (vestuário), Tramontina (utilidades domésticas), Soprano (metalurgia hidráulica), Oxiteno (solventes) e Caloi (bicicletas) além do Banco do Brasil, do Banco Itaú-BBA e do BTG Pactual também mantêm escritórios comerciais na China. Um dos pontos que tem sido objeto de discussões bilaterais na área de comércio é o caso dos navios Valemax. A Vale concebeu a frota Valemax com navios de grande capacidade (até 400 mil toneladas) para obtenção de ganhos de escala uma vez que os principais concorrentes brasileiros, os australianos BHP Billiton e Rio Tinto têm grande vantagem no custo de frete por causa da menor distância em relação à China. Mesmo tendo negociado antecipadamente com as autoridades portuárias chinesas o uso desses navios, a Vale encontra dificuldades para atracação nos portos chineses, aparentemente por pressão dos armadores chineses que se sentem prejudicados pela concorrência da frota Valemax.

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Agricultura Além das dificuldades já mencionadas relativas ao embargo à carne brasileira, rações animais e milho, o Brasil encontra limitações na exportação de fumo, que atualmente estão limitadas à produção dos Estados da Bahia, Rio Grande do Sul e Alagoas. O 167

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Brasil negocia, no âmbito da subcomissão, a inclusão dos Estados de Santa Catarina e Paraná. A China também recorre ao instrumento da escalada tributária para dificultar a exportação de produtos brasileiros de maior valor agregado. O caso mais notório é o da soja, no qual a China aplica a tarifa de 3% para o grão, 5% para o farelo e 9% para o óleo, dificultando a exportação de produtos de maior valor agregado. O mesmo ocorre com o café e sucos.

o CBERS 4, previsto para ser lançado ainda em 2014. O Plano Decenal de Cooperação Espacial, firmado em 2013, prevê o aprofundamento da cooperação espacial entre os dois países. Durante a Rio+20, em junho de 2012, foi assinado memorando de entendimento entre o MCTI, o Inpe, o Ministério da Ciência e Tecnologia da China e Administração Nacional de Meteorologia da China (CMA) para o estabelecimento de Centro Conjunto Brasil-China para Satélites Meteorológicos.

Energia e Mineração As áreas de mineração e energia têm importância estratégica para ambos os países. Como maior consumidora mundial de minério de ferro e energia, além de outras commodities minerais, a China é um importante mercado para as empresas brasileiras. Pela mesma razão, o IDE chinês na área de mineração e energia vem crescendo bastante nos últimos anos no Brasil. Diversas empresas chinesas, como a Shandong Iron and Stell, a Wuhan Iron and Stell Company (Wisco) e o Birô de Exploração e Desenvolvimento Mineral do Leste da China (ECE) têm feito grandes investimentos no Brasil por meio de compras de participação em empresas mineradoras locais como Sul Americana de Metais (SAM), MMX, Itaminas Comércio de Minério e outras. Na área do petróleo, as empresas chinesas CNPC e CNOCC, em consórcio com Petrobrás, Shell e Total foram as vencedoras do primeiro leilão do pré-sal sob o regime de partilha de produção, realizado em outubro de 2013. As possíveis áreas de cooperação entre Brasil e China no setor de mineração e energia seriam na exploração de terras raras e na realização de investimentos conjuntos em terceiros países na área de mineração. Cooperação Espacial Como já foi anteriormente mencionado, o programa CBERS é a mais importante parceria na área de alta tecnologia entre países em desenvolvimento. No âmbito do programa, iniciado em 1988, foram desenvolvidos quatro satélites: O CBERS 1 (1999), o CBERS 2A (2003), o CBERS 2B (2007) e o CBERS 3 (2013), cujo lançamento falhou. Está em desenvolvimento atualmente 168

Ciência, Tecnologia e Inovação São consideradas prioritárias na cooperação entre Brasil e China em C,T&I as áreas de nanotecnologia, biotecnologia, fármacos, tecnologias agrícolas, parques tecnológicos e tecnologias de bambu. Na área de biotecnologia foi assinado durante a Rio+20, em junho de 2012, Memorando de Entendimento entre o MCTI e o Ministério da Ciência e Tecnologia da China (MOST) para a criação do Centro Brasil-China de Biotecnologia. Na área de mudanças climáticas foi criado, em 2009, pelo Coppe/UFRJ e Universidade de Tsinghua, o Centro Brasil-China de Mudanças Climáticas e Tecnologias Inovadoras para Energia. Com base no memorando de entendimento firmado, em 2010, entre a Embrapa e a Academia Chinesa de Ciências Agrárias (CAAS) foram inaugurados o Laboratório Virtual de Embrapa (Labex) em Pequim e o Laboratório Virtual da Academia Chinesa de Ciências Agrícolas, no Brasil. Em maio de 2014 ocorreu uma missão de parques tecnológicos brasileiros à China, organizada pelo MCTI com o objetivo de conhecer o modelo de parques tecnológicos chinês. Também em 2012, foi inaugurado simbolicamente o Centro Brasil-China de Pesquisa e Inovação em Nanotecnologia. O centro é virtual e funciona como uma rede de cooperativa de pesquisa e desenvolvimento, vinculada ao Laboratório Nacional de Nanotecnologia no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas. Em março de 2014, ocorreu o I Seminário BrasilChina de Nanotecnologia, em Campinas, organizado pelo MCTI e pelo MOST. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) organizou, em abril de 2014, a Semana da 169

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Fapesp China 2014, com apoio da Fundação Nacional de Ciências Naturais da China e da Universidade de Pequim. Finanças Até o momento três instituições bancárias chinesas ingressaram no mercado brasileiro: o Banco da China, O Banco Industrial e Comercial da China e o Banco da Construção da China que, em 2013, adquiriu o BicBanco. O Banco de Desenvolvimento da China inaugurou escritório no Rio de Janeiro, para atuação em financiamento de projetos. Em maio de 2014 o Banco do Brasil inaugurou a primeira agência de um banco latino-americano na China. As principais discussões entre os dois países visando a cooperação bilateral na área de finanças concentram-se no tema de swap cambial. Em novembro de 2012 foi anunciada a decisão de estabelecimento de mecanismo de swap cambial entre o Brasil e a China no valor máximo de R$ 60 bilhões/CNY 190 bilhões. O acordo está direcionado à provisão de liquidez para o uso de moedas locais no comércio e investimentos bilaterais, cujo uso efetivo dependerá do interesse de agentes privados de fazer uso da liquidez provida pelo acordo.

Estado de São Paulo para o oferecimento de cursos nos Centros de Língua para estudantes do ensino médio. Ao longo dos últimos cinco anos de funcionamento, o Instituto Confúcio na Unesp já enviou 200 alunos para programas de intercâmbio na China. Tais programas são financiados pela matriz do Instituto Confúcio na China e cobrem, dependendo da modalidade, desde passagens aéreas, mensalidade, moradia, alimentação e ajuda de custo. A segunda iniciativa a ser destacada é o Programa Ciência de Fronteiras, do Ministério da Educação do Brasil. Em junho de 2012, foi firmado Memorando de Entendimento entre o Ministério da Educação (MEC) e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) do Brasil e o Ministério da Educação da China para a implementação do Programa Ciência sem Fronteiras na China. O memorando prevê 5.000 vagas para estudantes brasileiros em cursos de graduação e pós-graduação na China e o mesmo número de chineses no Brasil. No âmbito desse acordo o governo chinês oferecerá anualmente 200 bolsas de estudos com isenção de mensalidade e taxa de matrícula. A barreira linguística é o principal obstáculo para a ampliação do intercâmbio educacional entre os dois países.

Educação No plano educacional duas iniciativas merecem destaque. A primeira delas é a criação dos Institutos Confúcio em parceria com universidades brasileiras. Até o momento já foram inauguradas sete unidades: Unesp (2008), UNB (2009), PUC-Rio (2011), Faap (2012), UFRGS (2012), UFMG (2012) e Universidade de Pernambuco (2013). Durante a visita do presidente Xi Jinping, em julho de 2014, foram assinados mais três acordos para criação de novas unidades na Universidade Federal do Pará, na Universidade Federal do Ceará e na Unicamp. O Instituto Confúcio na Unesp além de ser o mais antigo, é o que tem desenvolvido trabalho mais abrangente de intercâmbio educacional entre os dois países. Conta atualmente com cerca de 2.000 alunos e 24 professores chineses que oferecem cursos de língua china em 13 campi da universidade, além de um acordo com a Secretaria Estadual de Educação do

Cultura Em setembro de 2013, foi realizado o “Mês do Brasil” na China em sete cidades (Pequim, Xangai, Hong Kong, Macau, Hanzhou, Nanjing e Chongqing) com eventos na área de música popular e erudita, dança, capoeira, fotografia, grafite, cinema, design, literatura e gastronomia. Já o “Mês da China” no Brasil foi organizado pelo governo chinês e ocorreu de 15 de outubro a 15 de novembro de 2013. Contou com apresentações de balé, concerto de música tradicional, exposição de cartoons e festival de cinema. O evento ocorreu em Brasília, Rio de Janeiro (Petrópolis) e São Paulo. O interesse pelo cinema chinês no Brasil é crescente. Em agosto de 2014, foi realizada em São Paulo, no Cine Belas Artes, uma mostra de filmes do diretor chinês Jia Zhangke, com grande sucesso de público. Na área editorial também tem havido esforços mútuos de publicação de obras literárias e acadêmicas. A editora Unesp,

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em associação com o Instituto Confúcio na Unesp, já publicou traduções recentes para a língua portuguesa dos “Analectos” de Confúcio, traduzido por Giorgio Sinedino, e “Poesia Completa de Yu Xuanji” e “Antologia da Poesia Clássica Chinesa”, traduzidos por Ricardo Portugal e Tan Xiao. No sentido oposto, publicou em parceria com a Editora da Universidade Reminbi, a obra do historiador brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira, “Formação do Império Americano” e com a editora da Academia Chinesa de Ciências Sociais, o livro do diplomata brasileiro Samuel Pinheiro Guimarães, “Desafios Brasileiros na Era de Gigantes”. A presença da literatura brasileira na China é mais ampla do que se imagina, conforme demonstra pesquisa realizada pelo jornalista Jayme Martins, que foi corresponde de vários órgãos da mídia brasileira entre 1962 e 1979 e de 1987 a 1989. Conforme levantamento minucioso organizado por Martins, já foram publicadas para o idioma chinês obras como “Os sertões”, de Euclides da Cunha, diversas obras de Jorge Amado, como “São Jorge de Ilhéus”, “Mar Morto”, “Dona Flor e seus dois Maridos”, “Tocaia Grande”, “O Cavaleiro da Esperança”, “Terras do Sem Fim”, “Gabriela” e “Quincas Berro D’agua”. Ainda segundo Martins, a “Escrava Isaura”, de Bernardo Guimarães teve três traduções diferentes, uma das quais alcançou 300 mil exemplares. Também já tiveram traduções para o chinês obras de Machado de Assis (“Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Quincas Borda” e “Dom Casmurro”), José de Alencar (“Guarani”, “Iracema”), Monteiro Lobato (“Coletânea de Obras Infantis”), Castro Alves (“Poesias”), Érico Veríssimo (“Incidente em Antares”, “O Senhor Embaixador”), Carlos Drummond de Andrade (“A moça e a flor”), Lygia Fagundes Telles (“Ciranda de pedras”), Josué Montelo (“O silêncio da confissão”), Sérgio Buarque de Holanda (“Raízes do Brasil”), Fernando Moraes (“Olga”) e Paulo Coelho (“O Alquimista” e “Verônica decide morrer”).

de cooperação: organização de Jogos Olímpicos e Paraolímpicos; desempenho de atletas olímpicos e paraolímpicos; programas sociais para difusão da prática esportiva para todos; intercâmbio entre tênis de mesa, badminton, saltos ornamentais, pelo lado chinês e judô, voleibol e voleibol de praia, pelo lado brasileiro; contatos entre a Universidade de Pequim e instituições brasileiras, como Unesp e Unicamp; ações para promover e aprimorar o futebol na China e transmissão, na China, de partidas do torneios brasileiros.

Esportes O grupo de trabalho de Esportes no âmbito da Cosban já realizou duas reuniões: Pequim (2012) e Brasília (2013). Na primeira reunião do GT (Pequim/2012) foram definidas potenciais áreas 172

Defesa Os governos do Brasil e da China assinaram, em 2004, Memorando de Entendimento que instituiu o Comitê Conjunto de Defesa bilateral, cujo principal objetivo é promover debates sobre cooperação, trocas de informação e fortalecimento da confiança entre as Forças Armadas. A primeira reunião ocorreu em abril de 2013, em Pequim.

Considerações finais Tal como descrevemos, verifica-se um grande potencial para a cooperação de perfil Sul-Sul na relação sino-brasileira. Em diversos campos temos assistido a uma forte interação entre os países, cujos frutos possuem repercussões globais, destacando-se a recente criação do Novo Banco de Desenvolvimento, o Bird dos Brics, e o Fundo de Contingenciamento de Reservas, uma espécie de FMI para os países do bloco, ou ainda o papel desempenhado na OMC e nos G-20s comercial e financeiro. Ademais, alguns aspectos da cooperação bilateral têm se mostrado paradigmáticos, como é o caso da cooperação para o desenvolvimento de tecnologia de satélites e, mais recentemente, na área de biocombustíveis e outras energias alternativas. De forma geral, verifica-se a ampliação da cooperação, muito mais por uma visão chinesa de longo prazo do que pelo amadurecimento de uma estratégia brasileira frente à China. Ainda persiste certo improviso por parte de nossas autoridades, como já havia declarado o ex-Chanceler Celso Amorim, em 2010, “ 173

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Precisamos dar uma forma importante ao relacionamento com a China. Não desenvolvemos um conceito pleno de como vai ser nossa relação com a China. Essa é uma autocrítica. Não deu tempo. Precisamos pensar mais profundamente nisso (O Estado de São Paulo, 2010).

Em suma, apesar do clima positivo nas relações com a RPC, muitos desafios ainda persistem. À medida que a relação do Brasil com um país das dimensões da China se intensifica, trazendo saldos positivos em uma diversidade de campos de cooperação, é fato que também serão inevitáveis certos contenciosos, como a necessidade brasileira de proteger seu setor industrial. Não obstante tais desafios, ambos os países reafirmam a grande importância da parceria estratégica para o objetivo último de construir uma ordem internacional mais equitativa e inclusiva. Vale lembrar que as premissas fundamentais que presidiram o lançamento da parceria estratégica não se alteraram, pelo contrário, se mostram atualmente muito mais relevantes quando os países em desenvolvimento ganham nova proeminência.

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Cristina Soreanu Pecequilo* A consolidação da Cooperação Sul-Sul (CSS) tem sido um dos fenômenos mais estudados nas relações internacionais do século XXI, e, muitas vezes, tem sido descolada de suas origens históricas e ideológicas. Tal descolamento busca encobrir seu caráter contestador e transformador do equilíbrio de poder internacional, tornando o movimento inédito e associado a termos como “Sul Global” e “emergentes”. Porém, a CSS contemporânea é representativa da continuidade e renascimento de uma agenda terceiro-mundista que, ao surgir nos anos 1950, defendia a democracia, o desenvolvimento e a justiça social1. Tal agenda, na década de 1970, exprimiu-se de forma concreta em coalizões de nações pobres em organismos multilaterais e alcançou espaço significativo. Na oportunidade, termos como potência média passaram a ser utilizados para definir essas nações que tinham potencial para redefinir o sistema internacional, dentre * Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), Professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Bolsista PQ-2 CNPq, Nerint/UFRGS, UFABC/Unifesp, UnB. [email protected] De acordo com Milani (2012), questões relativas à evolução da CSS, suas raízes históricas e conteúdos, são bastante complexas e sujeitas a debate. Este texto, portanto, trará algumas abordagens ainda sujeitas a debate no campo, seja no que se refere às origens da CSS, perfil contemporâneo e definições do conceito. 1

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as quais se inseriam o Brasil, o México, a Índia e a China. Esses avanços, contudo, geraram uma contrarreação dos países do Norte no sentido de pressionar essas nações política e economicamente, explorando suas vulnerabilidades e dependências. Essa contrarreação, de caráter conservador e neoliberal, foi liderada pelos Estados Unidos de Ronald Reagan, com foco nos setores comercial, de investimentos e de ajuda externa, havendo a elevação de juros da dívida externa para fragilizar essas nações que dependiam desses recursos. O final da Guerra Fria em 1989 e a reorientação das políticas das nações do Sul, ainda pressionadas pela crise e pela busca do realinhamento estratégico aos norte-americanos, somente acentuou o recuo das parcerias Sul-Sul. Essas parcerias iniciaram um processo de revitalização nos anos 2000, tendo como base a ascensão econômica de potências-chave do Terceiro Mundo, como a China, a Índia e o Brasil. Não cabe aqui retomar todo o processo de reforma interna que essas nações realizaram política, social, econômica e estrategicamente para iniciar e/ou retomar seu desenvolvimento e autonomia externa, visto que suas trajetórias foram diferentes, mas indicar que esse processo provocou o renascimento da CSS. Porém, um renascimento que representa tanto a continuidade quanto a renovação do movimento, diante da menor vulnerabilidade do Sul. Ainda que permaneçam fragilidades, os países do Sul têm procurado estabelecer formas de relativizar e superar dificuldades. Isso tem levado ao surgimento de novos mecanismos de cooperação e financiamento de políticas, que criam espaços próprios, sem a presença de países do Norte. Tal dinâmica é favorecida pela maior complexidade do Sul que se dividiu em dois grupos, os emergentes e os países de menor desenvolvimento relativo (PMDRs). Os PMDRs são classificados como países de baixo desenvolvimento relativo (LDCs), e que convivem com inúmeras dificuldades sociais e econômicas. Por sua vez, o termo emergente detém correspondência com o conceito de potência média dos anos 1970 e o de Grandes Estados Periféricos (GEP) e países em desenvolvimento (ou subdesenvolvidos) do Terceiro Mundo. Associa-se a esta

definição a premissa do “novo” Segundo Mundo (Khanna, 2008). Isso se refere a visões geopolíticas e geoeconômicas que definem esses países como Estados-pivôs em suas respectivas regiões. Os protagonistas encontram-se sistematizados em uma série de siglas: Brics- Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul, Mint- México, Indonésia, Nigéria e Turquia, Next-Eleven- México, Bangladesh, Egito, Indonésia, Irã, Coreia do Sul, Nigéria, Paquistão, Filipinas, Turquia e Vietnã, MIKTA- México, Indonésia, Coreia do Sul, Turquia e Austrália, dentre outras. Diante dessa reconfiguração de forças, a segunda década do século XXI, à sombra da crise econômica de 2008 que eclodiu com força nas economias centrais, Estados Unidos e União Europeia (UE), representou o início de outra retomada: a das tentativas de contenção, da parte desses agentes, da CSS e dos efeitos que tem na ordem global. A partir disso são construídas análises que se dividem em duas correntes: propositiva e negativa. A corrente propositiva procura enfatizar a evolução e aprofundamento dos processos de CSS nas arenas políticas, econômicas, sociais e estratégicas, sustentada pelo fortalecimento das nações emergentes e o aprofundamento de suas relações com os PMDRs. Tal corrente relaciona-se aos protagonistas da CSS, focando no uso de termos como solidariedade e desenvolvimento. A negativa destaca os riscos de imperialismo associados à CSS e tem se tornado comum tanto nos países do Norte, quanto nos países do Sul em meio a elites domésticas que discordam das agendas de política externa que representam autonomia. Nesse contexto, este texto analisa uma experiência de CSS específica que envolve Estados-pivôs regionais: a triangulação do Brasil com a Turquia e o Irã. Para a política externa brasileira, essa ação representa a retomada de uma projeção no Oriente Médio iniciada nos anos 1970, que envolve geopolítica e geoeconomia. A CSS é entendida como abrangendo aspectos técnicos e ligados ao desenvolvimento, mas também uma cooperação de caráter mais abrangente, que vai além do assistencialismo e que é dotada, desde suas origens, de forte perspectiva político-estratégica.

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O Brasil, a Turquia e o Irã: dimensões de cooperação estratégica

Para abordar o tema, a discussão está dividida em três partes: um breve retrospecto da inserção do Brasil no Oriente Médio de 1970 a 2000, a retomada dessa agenda no século XXI com foco nas relações com Turquia e Irã (e uma contextualização das percepções e relevância desses atores), com uma avaliação do Acordo Nuclear Tripartite Brasil-Turquia-Irã, e uma sistematização das perspectivas e desafios associados a esses intercâmbios.

de investimentos em setores como de infraestrutura e tecnologia, assim como o aproveitamento de vantagens comparativas no setor agrário. Por fim, objetivava-se a consolidação do poder estratégico por meio da nacionalização de segurança que tinha dentre seus pilares o desenvolvimento de uma indústria bélica nacional e a capacitação nuclear (Acordo Nuclear com a Alemanha Ocidental e Programa Nuclear Paralelo)3. Conjugadas, todas essas iniciativas visavam a consolidação do país como potência média. Para esse projeto de dimensões domésticas e internacionais, o setor externo era essencial, ampliando a busca de parceiros extra-hemisfério na lógica iniciada pela PEI de cooperação Sul-Sul e Sul-Leste. A ampliação e solidificação das relações do Brasil com a África, o Leste Europeu, a Ásia e o Oriente Médio inserem-se nessa agenda de prioridades, assim como a busca de alternativas ao Norte com a Europa Ocidental e o Japão. Na América do Sul, zona de influência preferencial, inicia-se uma trajetória de valorização desse espaço geopolítico tanto ao Norte quanto ao Sul. Nos anos 1980, esse processo foi consolidado com a reaproximação Brasil-Argentina, base dos projetos de integração regional futuros: o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a União das Nações SulAmericanas (Unasul). Abordando a região na qual se inserem os dois Estados tema deste texto, a Turquia e o Irã, o Oriente Médio, a década de 1970 representa a entrada em definitivo do Brasil nesse espaço geopolítico e geoeconômico. Em termos gerais, a cooperação Sul-Sul com o Oriente Médio detém componentes político-estratégicos e econômicos, complementares e sobrepostos. No que se refere à agenda político-estratégica, o incremento da presença regional brasileira amplia posições em uma zona sensível das relações internacionais por sua importância geográfica como espaço de trânsito eurasiano, de convergência de ação de diversas potências, pela existência de recursos energéticos e potencialidade de coope-

A Política Externa e o Oriente Médio (1970/2000): consolidação e recuo A CSS com o Oriente Médio e a África, desde a sua retomada a partir de 2003, é objeto de forte controvérsia no Brasil, uma vez que alguns grupos argumentam que existe uma falta de tradição de projeção nesses espaços e que seriam “muito longe e muito pobres”. Essa avaliação é parcial e ignora que o país já desempenha sólidos esforços em ambas as regiões desde os anos 1960, com a alteração do paradigma da política externa brasileira do alinhamento para a autonomia. Iniciada pela Política Externa Independente (PEI) em 1961, essa alteração abriu oportunidades de parceria Sul-Sul e Sul-Leste, quebrando o predomínio do eixo Norte-Sul. Essa agenda foi amadurecida pelo Regime Militar (1964/1985), período no qual se consolidou essa vocação global2. Portanto, a presença do Brasil no Oriente Médio, e em outras regiões do Sul, não é inédita, representando a retomada e o aprofundamento dessas parcerias no século XXI. Especificamente, é durante o Regime Militar que a ação no Oriente Médio se consolida. A despeito de um período inicial de realinhamento com os Estados Unidos (1964/1967), o objetivo do regime pós-1967, até seu encerramento em 1985, foi o de uma projeção global para o Brasil. Essa projeção surgia ancorada por um processo sistemático de desenvolvimento interno, sustentado na modernização e finalização do processo de industrialização por substituição de importações. Além disso, havia a concentração 2

Recomenda-se Visentini (2013) para o aprofundamento dessas discussões.

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Somado a esses tópicos incluíam-se a denúncia do acordo militar com os Estados Unidos e o investimento na política de informática. Ver Cervo; Bueno, 2008.

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ração autônoma (Visentini, 2014). Com isso, dentro do projeto brasileiro de construção de uma potência média de alcance global, o Oriente Médio era uma região considerada prioritária para essa pauta de ampliação de parcerias. No caso do Oriente Médio, a presença e maior atuação de atores “novos” como o Brasil trouxe retóricas e posições diferenciadas em temas de pauta “travados” na região, como a situação de Israel, da Palestina, as guerras e negociações de paz que se iniciam a partir de 1973. No conjunto da política externa do regime militar brasileiro, o período de 1974 a 1979, correspondente ao governo de Ernesto Geisel, realiza uma salto qualitativo nas relações com a região, a partir do Pragmatismo Responsável e Ecumênico. Como indica Visentini (2013), o Brasil foi uma das primeiras nações a expressar seu apoio aberto à causa palestina, a condenar os atos de agressão unilateral, a demandar a aplicação das resoluções das Nações Unidas à questão regional e a defender um maior equilíbrio e isenção na agenda diplomática. Essa postura de equilíbrio entre todas as nações da região, mas sem furtar-se a condenar abusos aos direitos humanos e defender o cumprimento das demandas multilaterais, tem sido uma constante na diplomacia nacional. Todavia, uma postura que periodicamente sofre críticas de alguns interlocutores como os Estados Unidos e Israel, pois, na percepção desses atores seria “pró-Palestina” ou “antissemita”. Essas objeções, porém, revelam apenas o jogo de alianças e pressões existentes na região e que se prolongam até os dias de hoje e que foram reativadas quando da CSS Brasil-Irã-Turquia no século XXI. O Brasil investiu em uma forte expansão econômica na região por meio da ampliação e diversificação de sua pauta de exportações ao Oriente Médio, e parcerias em setores-chave como o energético de exploração de petróleo. No que se refere às exportações, mercados como os do Oriente Médio representam para o Brasil importantes compradores de bens em todos os segmentos de valor agregado, e que demonstram interesse em diversificar sua pauta, reduzindo sua dependência do Norte e também com custos menores. Dentre os diversos setores que se abriram ao longo dos anos 1970 encontram-se: defesa, energia, infraestrutura e alimentos.

No que se refere ao setor de defesa, destacam-se as exportações de armamentos e veículos de combate produzidos pela indústria nacional representada pela Engesa e Avibras. Os principais mercados eram Irã e Iraque, com os quais o país também havia estabelecido acordos de cooperação científica e tecnológica nas arenas energética (exploração e refino de petróleo) e nuclear. Inclusive, o avanço do Brasil como fornecedor de bens de segurança nesse período foi significativo, afetando os interesses de potências como os Estados Unidos e França, que tradicionalmente dominavam o mercado de armamentos. Na arena nuclear, a cooperação ocorria tanto em trocas tecnológicas e de conhecimento (e de minerais estratégicos e estudo de processos para enriquecimento de urânio), como na dimensão político-diplomática com a convergência de posições na defesa do acesso à tecnologia nuclear como um direito de todas as nações. Desenvolvida nos anos 1960 com a PEI, essa postura condenava o “congelamento do poder mundial” pelas grandes potências, que tinha como um de seus mecanismos a imposição de limitações à pesquisa e capacitação no setor nuclear. O símbolo dessa postura foi a não assinatura do Tratado de Não Proliferação Nuclear em 1967, considerado restritivo, e a defesa da democratização do conhecimento das tecnologias sensíveis. Como citado, esses elementos fazem parte do projeto mais abrangente do Regime Militar, no campo da estratégia e que foi denominado de nacionalização da segurança (Cervo; Bueno, 2008). No campo energético, além dessas nações, o país estabeleceu joint ventures para a exploração de petróleo com a Arábia Saudita, a Líbia, o Egito e a Argélia. Nesse campo, a Petrobras atuava por meio de uma subsidiária chamada Braspetro. Houve a ampliação dos projetos de infraestrutura que tinham à frente empresas privadas brasileiras como a Odebrecht, que, com o apoio do governo brasileiro, foram responsáveis pela construção de projetos viários e de transportes (estradas de rodagem, metrô). Por fim, o setor de alimentos, com a exportação de bens como carne de frango e grãos tornou-se um dos principais pilares de atuação, e permitiu a expansão do agronegócio de forma sólida.

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Nesse período, a parceria com a Turquia não era tão destacada quanto às com o eixo Irã-Iraque e demais países, mas havia, como citado, uma preocupação nacional em estabelecer sua presença como pivô estratégico na região. Esse processo teve seu recuo na década de 1980, como resultado de um acúmulo de crises nos países do Sul, geradas por seus problemas internos, como pela pressão das potências desenvolvidas. Iniciada pelos Estados Unidos de Ronald Reagan (1981/1988), essa reação tinha como foco a exploração da vulnerabilidade dos adversários, o neoliberalismo e o conservadorismo. Para o Terceiro Mundo, foi utilizado um tripé para fechar espaços e estrangular as sociedades: o militar-estratégico, com o foco em conflitos localizados e intervenções à distância; o político, com a elevação de críticas aos países pobres em setores sensíveis como meio ambiente e direitos humanos; e o econômico, que se desdobra em agendas financeiras e comerciais, com a elevação dos juros da dívida externa, acusações de práticas de comércio ilegais da parte dos países pobres e a dupla protecionismos e subsídios para fechar mercados. Combinados, esses fatores levaram ao termo “década perdida” para se referir ao cenário latino-americano, mas o conceito estende-se ao restante do Terceiro Mundo. Se no Brasil e América Latina a crise econômica foi acompanhada pela redemocratização, no Oriente Médio as tensões foram ainda mais profundas: desequilíbrios econômicos e guerras regionais. O ano de 1979 foi significativo desse processo de eclosão de tensões, seguindo-se inúmeros outros conflitos: Revolução Fundamentalista do Irã com a ascensão do poder do Aiatolá Khomeini, a Guerra do Afeganistão (1979/1989) e a Guerra Irã-Iraque (1980/1988). A consolidação do processo de paz Israel-Egito mediado pelos Estados Unidos em 1979 também representava uma ofensiva regional. Por outro lado, essa ofensiva não representava a plena inserção de Israel no cenário geopolítico local, bastando lembrar a permanência das tensões no Líbano, na Síria e na Faixa de Gaza (e, em geral, a condição da população palestina). As condições externas se demonstravam adversas ao incremento e à manutenção das relações Brasil-Oriente Médio em alto nível.

Somado a isso, o fim da Guerra Fria e a consolidação dos Estados Unidos como a única superpotência restante em 1989 diminuíram ainda mais os espaços para o Terceiro Mundo e reforçaram, internamente, os argumentos contrários à manutenção de uma política externa global. A partir da década de 1990, com a ascensão de Fernando Collor ao poder, como primeiro presidente eleito diretamente após o fim do Regime Militar, ocorre uma mudança significativa na política externa. Nesse contexto, a CSS tornou-se pouco prioritária, subordinada à busca, mais uma vez, dos alinhamentos com os Estados Unidos. A CSS, e iniciativas adicionais de independência, foram chamadas de “autonomia pela exclusão” por supostamente levarem o país ao isolamento e à confrontação. Ainda que Collor seja apontado como responsável pelo reinício do paradigma de alinhamento, desde 1985 existiam movimentos ambíguos de ajuste nas relações internacionais, sob a lógica da “limpeza da agenda”. Os grupos defensores do alinhamento no Brasil alegavam que o país detivera uma postura agressiva e que isso provocara sua crise e distanciamento dos parceiros do Norte. Frente a essas pressões, o governo Sarney (1985/1989), primeiro governo civil, eleito indiretamente, divide-se entre a manutenção da autonomia nas relações internacionais, com ações compensatórias diante dos Estados Unidos, como a assinatura de regimes de meio ambiente, direitos humanos e de proliferação. Porém, a guinada ao Norte não se completa plenamente e o Brasil mantém, por exemplo, os esforços de integração regional. Nos anos 1990, contudo, Collor quebra em definitivo o paradigma global, auxiliado pelo discurso da renovação e pelo agravamento da situação interna. Em seu curto governo (1990/1992), o Brasil dilapida grande parte do seu patrimônio diplomático, desmontando sua segurança nacional e abrindo sua economia de forma rápida. A assinatura de regimes antes visto como restritivos e impositivos em setores de armamento como o TNP e o de tecnologia e mísseis (e mesmo de direitos humanos e meio ambiente) tornam-se simbólicos da busca da integração ao mundo como uma nação confiável. Com isso, opunha-se a autonomia pela “exclusão” à da “integração”.

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Abre-se mão de uma diplomacia de caráter universal, restringindo a atuação em nações do Sul de uma forma geral, afetando as parcerias e interesses brasileiros na África e no Oriente Médio. Mesmo o Mercosul, quando criado em 1991, surge com um caráter complementar à abertura econômica neoliberal e às agendas dos Estados Unidos para a América Latina, retirando-se o caráter autônomo e politizado dos laços regionais. As tendências de perda de espaço e visibilidade política global se acentuam, e somente foram matizadas com o impeachment de Collor e a chegada de Itamar Franco à presidência (1992/1994), que tentou retomar a visão global-multilateral e reativou o caráter autônomo da integração. A situação econômica adversa não permitiu a retomada plena desse curso, e mesmo a sociedade brasileira continuava não apoiando uma percepção internacional descolada do eixo estadunidense. A estabilidade alcançada com o Plano Real em 1994, e a subsequente eleição e reeleição do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995/2002), foram acompanhadas pela defesa de uma visão de alinhamento (ainda que pragmático) aos Estados Unidos. Somente a partir de 1999, o governo FHC começa a inserir retóricas mais autônomas e a incrementar a integração sul-americana, até como medida compensatória ao fracasso do bilateralismo-hemisférico. Além da América do Sul, outros espaços começaram a ser sinalizados como opções de parceria econômica, em particular com Rússia, Índia e China: o processo era compensatório ao fechamento dos mercados ao Norte. Esse processo de “reforma” em nível global limitava-se às grandes nações-chave, sem o avanço em direção à recuperação do perfil do Brasil como líder do Terceiro Mundo e com esforços sistemáticos para aprofundar a CSS. Regiões como a África e o Oriente Médio mantinham-se à margem, o que limitava, inclusive, oportunidades de expansão de negócios. Ou seja, era uma política externa “apolítica” e presa às relações verticais. Nessa dimensão, mesmo o surgimento da retórica da “globalização assimétrica” era moderada e não criticava a visão dominante em si. Essa realidade somente começa a se alterar a partir de uma nova quebra externa e interna, agora com o governo Luis Inácio Lula da Silva (2003/2010).

O Brasil do século XXI (2003/2010): reposicionamento e projeção global

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Se a década de 1990 foi caracterizada pela retomada do paradigma de aliança especial com os Estados Unidos e a valorização das relações Norte-Sul, mediadas pela integração regional na América do Sul, os anos 2000 reabrem perspectivas de uma projeção internacional autônoma. Tal projeção tem como base os referenciais do paradigma multilateral-global, a partir da ascensão do projeto da administração Lula, na qual existe uma forte interdependência entre a agenda interna e externa. Em termos abrangentes, a presidência retoma a visão do Brasil como país do Terceiro Mundo, com uma postura independente e não subordinada, que tem como objetivos o reforço do poder nacional, sustentado por programa internacional sólido e um setor interno estável e em reforma. Segundo Visentini (2013), as relações internacionais do Brasil tornam-se mais complexas no governo Lula sob a gestão do Embaixador Celso Amorim, não só porque recuperam prioridades Sul-Sul e intercâmbios regionais e globais, mas porque somam esses esforços aos de fortalecimento da posição brasileira vis a vis o Norte. De acordo com o autor, ainda que esse não seja um objetivo imediato, ele deriva naturalmente da recuperação da projeção do poder brasileiro internacionalmente, o que nos leva à política externa dos eixos combinados Sul-Sul e Norte-Sul (Pecequilo, 2008) ou à autonomia pela diversificação (Oliveira, 2014). O Brasil é reconhecido como país emergente ao lado dos demais Brics, caso utilizemos os conceitos contemporâneos, ou como pivô regional e potência média. Nesse sentido, o Sul do século XXI como citado, demonstra-se mais complexo do que em surgimento, estando dividido entre os países emergentes e os PMDRs. Avaliando os pilares dessa agenda, internamente a mesma busca o empoderamento econômico e social por meio da correção das assimetrias, com a efetivação de projetos de combate à fome, acesso a medicamentos gratuitos para tratamento de doenças crônicas, democratização do ensino superior, investimentos em infraestrutura e programas habitacionais: Fome Zero, Farmácia Popular, 189

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PAC, Minha Casa, Minha Vida são alguns desses projetos, e dos quais derivam ações setoriais. Esses tópicos compõem o fortalecimento do poder nacional e constituem, externamente, a pauta de CSS, representando o poder brando brasileiro. Tais objetivos internos e de CSS encontram-se diretamente ligados às Metas de Desenvolvimento do Milênio (Millenium Development Goals) das Nações Unidas. Inovadora, a CSS do século XXI tem como receptores e doadores os próprios países do Sul, que aprofundaram essas ações como forma de evitar a escassez de recursos e as condicionalidades do Norte. Com isso, desenvolve-se uma visão autóctone sobre as necessidades e potencialidades dos países envolvidos. Como também apontado, a liderança dos Brics nesse campo torna-se objeto de críticas por seu suposto imperialismo, o que revela a outra dimensão da CSS: a sua potencialidade para alterar relações de poder e formas de ordenamento do equilíbrio global. Afinal, a CSS detém conteúdo político-estratégico. A atuação da CSS se dá por elementos técnicos e se dissemina tendo como base alianças de geometria variável como os citados Brics, o Ibas (Índia, Brasil, África do Sul), a OCX (Organização de Cooperação de Xangai) em nível global e esforços de integração regional como os do Brasil na América do Sul, Mercosul/ Unasul/Celac. Da mesma forma, expressam-se em coalizões nas negociações da OMC (G20 Comercial), FMI, Banco Mundial e G-20 Financeiro. Comum a esses esforços é o desenvolvimento de uma linguagem única, recuperando a unidade terceiro-mundista anterior, e, nas instituições criadas, a ausência de membros do Norte, o que gerou o termo soft balancing, para referir-se ao contraponto brando e não agressivo que essas nações colocam ao núcleo do poder mundial. Não se trata de um movimento “antiordem”, mas sim de reforma. Para o Oriente Médio, essa movimentação significou a retomada dos laços estabelecidos na década de 1970 que haviam sido esvaziados e despolitizados no arco dos anos 1980/1990 em um patamar mais complexo. Tal patamar é caracterizado por duas dimensões: as relações bilaterais do Brasil e o intercâmbio da América do Sul com

a região. Enquanto a primeira dimensão é classificada como de retomada, como citado, a segunda, é de ineditismo4. Em termos inéditos, estabelece-se uma plataforma de cooperação estratégica, comercial, social e política birregional. Assim, cria-se mecanismo específico, denominado de Cúpula América do Sul – Países Árabes (Aspa), cuja primeira reunião ocorre em 2003 e permanece ativa. No que se refere à retomada, a mesma ocorre de forma abrangente em diversos níveis econômicos, políticos e estratégicos. Um de seus resultados mais expressivos foi o aumento de cerca de 300% no comércio Brasil – Oriente Médio na última década, conforme dados do MDIC (MDIC, 2014). Essa evolução foi sustentada em produtos de médio e baixo valor agregado, com destaque aos setores ligados ao agronegócio. Em termos políticos existe uma reaproximação sustentada na CSS e na agenda de reformas defendida pelo Brasil, assim como a reafirmação de prioridades da diplomacia: apoio à causa palestina, incluindo em 2010 o reconhecimento do direito do Estado palestino pertencer às Nações Unidas e à existência, princípio reafirmado desde a década de 1970; defesa de um processo de paz isento e equilibrado; condenação dos atos de violência existentes na região e do unilateralismo; repúdio à intervenção e/ou ingerência externa das potências sobre o Oriente Médio e, por fim, o compromisso com a soberania e a autonomia dos Estados. Na agenda estratégica, foram preservadas as parcerias no setor energético, havendo um esvaziamento natural do papel do Brasil na indústria de defesa que, nos anos 1970, havia sido um forte componente da agenda. Uma vez que o país promoveu o desmonte do setor de segurança, essa base de cooperação não tinha sustentação. A defesa do acesso à tecnologia nuclear foi recuperada e tornou-se essencial nesse período, em particular na relação do país com Turquia e Irã. Essa relação de CSS engloba aspectos econômi-

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Padrão similar é observado na retomada das relações Brasil-África, com o foco em setores econômicos, sociais e estratégicos, recuperando o espaço diplomático dos anos 1970, e, em termos inéditos, foi lançada a Cúpula América do Sul-África a partir de 2006. A Cúpula já realizou três edições, sendo a última em 2013. 4

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cos, políticos e estratégicos, e representa uma agenda de intercâmbio entre Estados definidos como pivôs regionais em seus espaços geopolíticos e geoeconômicos.

ficativas associadas a direitos humanos, temas econômicos e tensões regionais com os vizinhos. Essa contínua rejeição europeia ocorre em um momento no qual a Turquia tem se tornado cada vez mais importante para a política eurasiana, como zona de passagem de gasodutos e oleodutos e país que poderia atuar como moderador entre Ocidente e Oriente. Assim, a projeção global (e a busca de novas parcerias) era vista como uma forma de matizar essas questões. Segundo Turan (2013),

As relações bilaterais Brasil-Turquia e Brasil-Irã Para o Brasil, a CSS com Irã e Turquia envolve a retomada e adensamento das relações internacionais com o Oriente Médio e o reposicionamento estratégico global autônomo da política externa como visto. Processo similar pode ser observado na Turquia: para o país, o século XXI representa um salto qualitativo na política externa, tendo como base a continuidade do reforço do poder no entorno eurasiano, e sustentado em alianças e intercâmbios tradicionais com os Estados Unidos e a União Europeia, associado a uma ação de caráter global5. Essa combinação sustenta-se na busca da autonomia, na valorização da posição turca na Eurásia e a validação do interesse nacional de forma abrangente, também tentando minimizar as pressões desses mesmos aliados. Trata-se de uma consolidação dupla: como potência média emergente (listada nos citados N-11 e Mint) e da soberania e autonomia internas diante das pressões do Ocidente. Tais pressões ocorrem por meio de críticas diretas à política interna turca, em particular a partir da ascensão do Partido Justiça e Desenvolvimento de caráter islâmico (AK) liderado por Recep Tayyip Erdogan em 2003, no que se refere aos direitos humanos e ao processo de reversão da secularização do país em direção ao fundamentalismo. Além disso, a instabilidade do entorno regional gerada pelas intervenções dos Estados Unidos no Iraque e Afeganistão afeta os interesses geopolíticos turcos (independente de ser membro da Otan). Por fim, a Turquia permanece fora da União Europeia6, a despeito de sua candidatura estar sendo julgada há muitos anos, com base em justi No caso da CSS, a agência estatal turca responsável é a Turkish International Cooperation and Development Agency (Tika). 5

Segundo Brzezinski (2012), a não inclusão da Turquia na União Europeia demonstra a irrelevância estratégica do bloco, que deriva de sua incapacidade de tomar decisões difíceis e abrir mão de preconceitos. Polêmico, o autor defende a tese que a Turquia e a Rússia sejam incorporadas à União Europeia, 6

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While trying to maintain good ties with its traditional allies, the 2004-2010 period was also a time when Turkey tried to expand its ties with other countries and regions of the world. Turkey initiated diplomatic relations with numerous new African countries, as well as forging new ties and strengthening existing ties with Latin American and Asian countries. This is a period during which Turkish embassies opened in new capitals, Turkish external aid agency TIKA assumed an activist posture in many an underdeveloped country and after an energetic campaign, Turkey was elected as a temporary member of the UN Security Council. (Turan, p. 130, 2013)

Essa ofensiva teve como resultado no campo bilateral o estabelecimento do “Plano de Ação para a Parceria Estratégica entre a República Federativa do Brasil e a República da Turquia” (Action Plan, 2010), assinado pelo Presidente Lula e o Primeiro Ministro Erdogan em 2010. Em retribuição à visita de Lula à Turquia, Erdogan esteve no Brasil e reafirmou a importância da cooperação entre as potências, destacando o Acordo Tripartite com o Irã, que será analisado no próximo item (Erdogan, 2010). O Plano de Ação estabelece como áreas prioritárias (dentre as quais se inclui a nuclear): o diálogo político e a cooperação em foros multilaterais, comércio e investimentos, energia, biodiversidade, meio ambiente e desenvolvimento sustentável, defesa, combate ao crime organizado e prevenção do terrorismo, ciência, inovação e alta tecnologia, educação e cultura. Também se define com apoio dos Estados Unidos, visando a consolidação do que define como um “Ocidente Vital e Ampliado”.

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como válidas as negociações entre o Mercosul e a Turquia, estabelecendo fóruns de contato comerciais. Esse documento final é produto de um processo de aproximação iniciado em 2003, e que já fora antecedido pelo incremento dos fluxos comerciais pelo aprofundamento das parcerias no setor energético. Segundo dados da Apex (2013), a Petrobras atua desde 2006 na Turquia, em parceria para a exploração de petróleo em águas profundas no Mar Negro (Sinop), com a Exxon Mobil e a Turkey Pertolleri Anonim Ortakligi (TPAO). Na última década os fluxos comerciais subiram 330%, com o superávit ao Brasil, impulsionados pelo crescimento da economia turca e por sua demanda por produtos de exportação, em particular do setor de agronegócio. Nesse sentido, foi lançado o documento “A Estratégia Turca das Exportações para 2023”, visando uma maior convergência de interesses e identificação de zonas de oportunidade. Para a Apex (2013), existem duas categorias de oportunidades comerciais para o Brasil na Turquia: as de setores já consolidados, mas que podem crescer em escala e outros em escala inicial ou inexistentes que podem ser explorados pelo Brasil. A Apex indica que essa pauta é sustentada ainda por bens primários ou de baixo valor agregado em sua maioria (e com maior participação) e recomenda a diversificação. Os setores consolidados são, (...) açúcar e álcool; animais vivos; autopeças; bicicletas; demais produtos de borracha e suas obras; café; calçados; cereais em grãos e esmagados; mate e especiarias; colas e enzimas; couros; derivados e ovos; farinhas para animais; ferramentas e talheres; frutas; fumo; gorduras e óleos vegetais e animais; higiene pessoal e cosméticos; instrumentos e aparelhos de ótica e precisão; madeiras e obras de trançaria; máquinas e motores; materiais elétricos e eletrônicos, metais e pedras preciosas; metais não ferrosos; papel e celulose; produtos farmacêuticos; produtos metalúrgicos; produtos minerais; produtos químicos; soja; sucos; têxteis; tintas; veículos automotores e suas partes; vidros e suas obras (Apex, 2013, p. 6)

A segunda categoria é composta de: 194

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Aparelhos transmissores e receptores; artigos de joalheria de metais preciosos; calçados; cátodos de cobre; colas e enzimas; compressores e bombas; computadores e acessórios; defensivos agrícolas; demais sucos; demais veículos automotores e suas partes; ferramentas manuais; pneumáticas e hidráulicas; ferro fundido; fios, cabos e condutores elétricos; higiene pessoal; lâmpadas, tubos elétricos e faróis; ligas de alumínio; madeira laminada e serrada; máquinas de lavar roupa e suas partes; máquinas para indústria alimentícia e de bebidas; máquinas e aparelhos de terraplanagem e perfuração; máquinas e aparelhos de uso agrícola, exceto trator; máquinas e aparelhos para indústria celulósica; máquinas e aparelhos para trabalhar pedras e minérios; material esportivo; painéis de madeira; partes de calçados; produtos de limpeza; produtos farmacêuticos; produtos para fotografia; resinas e elastômeros; rolamentos e engrenagens; suco de laranja não congelado; tecidos de algodão; tratores. (Apex, 2013, p. 7)

Se para o Brasil e Turquia a ativação do relacionamento bilateral possui um caráter ofensivo e de reafirmação de seu peso estratégico por meio de diversificação de parcerias, o caso do Irã se demonstra mais complexo. Mais vulnerável que Brasil e Turquia, econômica, política e estrategicamente devido às dificuldades da transição interna e às ofensivas geopolíticas estadunidenses no Oriente Médio e à continuidade do embargo econômico ocidental, o Irã, mesmo sustentando-se como polo regional, trazia embutido em sua agenda de CSS um elemento defensivo. Diferente de seus parceiros que se tornaram importantes doadores de CSS em escala global, o Irã possuía limitações para essa projeção. Pensar o Irã sintetiza-se, como indica Visentini (2014), a uma pergunta: se o país é potência emergente ou um regime em crise. E, na prática, o país apresenta as duas tendências. Em termos domésticos, o Irã se encontra polarizado entre reformistas e conservadores. De 1997 a 2003, o reformista Mohammad Khatami governara amparado em maioria popular, construída principalmente nas massas urbanas entre jovens e mulheres, e buscara uma reaproximação com o Ocidente. O objetivo era uma abertura 195

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O Brasil, a Turquia e o Irã: dimensões de cooperação estratégica

político-social moderada, e internacionalmente uma reconstrução de laços que rompesse o ciclo de pressões sobre o Irã e que tivesse efeitos econômicos positivos, reduzindo as restrições comerciais dos Estados Unidos e União Europeia. Bastante frágil e dependente das exportações de petróleo, a situação econômica iraniana é um ponto sensível, devido às altas taxas de desemprego, à necessidade de importação em diversos setores e à inflação. Khatami chegou a ser definido como o “Gorbachev do Oriente Médio”, porém, mesmo com forte apoio popular, os conservadores iranianos reagiram com políticas de repressão a candidatos e a mídias reformistas. Essa corrente foi “beneficiada” por dois fatores em sua ofensiva de retomada do poder: a polarização da sociedade iraniana, em centros rurais (tradicionalistas) e urbanos (reformistas), e a ascensão dos neoconservadores no poder nos Estados Unidos em 2000. A chegada de Bush filho ao poder, associada aos atentados terroristas de 11/09, impediu o avanço das negociações bilaterais Estados Unidos – Irã iniciadas na era Khatami – Bill Clinton (1993/2001), e impulsionou em 2002 a Doutrina Bush. De caráter preventivo, a Doutrina Bush anunciava que os norte-americanos protegeriam o país por meio de ações de guerra, atacando seus inimigos antes de serem atacados. Dentre esses, encontravam-se os membros do Eixo do Mal, Irã, Iraque, Coreia do Norte. Essas visões, somadas à iminente Guerra do Iraque (2003/2011), e à Guerra do Afeganistão (2001 em andamento), acentuaram a realidade de estrangulamento do Irã (e a sensação de “próximo alvo”), que favoreceu os conservadores e levou à eleição de Mahmoud Ahmadinejad em 2005. Apoiado em um discurso antiocidental e em defesa da soberania do regime iraniano, Ahmadinejad retomou e aprofundou o programa nuclear (após uma breve suspensão em 2003), elevando a barganha com os Estados Unidos. Embora essa ação iraniana, e a da Coreia do Norte que seguiu padrão similar, tenham sido condenadas de forma veemente por norte-americanos e europeus ocidentais, e grande parte da comunidade internacional “pró-paz”, do

ponto de vista estratégico ambos demonstravam-se corretos em sua tática de proteção do interesse nacional7. Diante do risco de ataques preventivos gerados por W. Bush era necessário desenvolver elementos dissuasórios que barrassem a intervenção. Mesmo sendo signatário do TNP desde 1968, o Irã recuperou e, como indicado, acelerou sua agenda nuclear8, defendendo-a como direito ao acesso à tecnologia para uso pacífico e para domínio do conhecimento. Em 2006, o país reativou o complexo de Natanz para a produção de urânio enriquecido, dando início a atual crise nuclear com o Ocidente. Essa crise que, como será analisado no próximo item, prossegue até o período contemporâneo e tem alternado desde então ameaças de bombardeios aéreos de Israel sobre o país para destruir instalações nucleares (que repetiriam os ataques da década de 1980), ataques cibernéticos israelenses e norte-americanos, inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica, sanções unilaterais dos Estados Unidos e da União Europeia e sanções do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Por fim, Ahmadinejad reabriu alternativas de parceria externa, coincidindo com o movimento brasileiro-turco, e que resultou no aprofundamento das relações com a Rússia e a Venezuela (tanto no campo nuclear quanto energético). No caso da Turquia, o elemento econômico e o estratégico de atuar como possível ponte nas negociações entre o Ocidente e o Irã compõe a agenda. De acordo com Turan (2013),

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Essa lógica de poder é básica nas relações internacionais. Kenneth Waltz, um dos grandes teóricas da área, defendeu em artigo para a Foreign Affairs a lógica do programa nuclear iraniano e o porquê ele beneficiaria a estabilidade no Oriente Médio. (Waltz, 2012). 7

Apesar de os Estados Unidos condenarem o atual programa nuclear iraniano, suas origens contaram com ajuda financeira e auxílio tecnológico norte-americano na década de 1950, no âmbito do projeto “Átomos para a Paz” da presidência Eisenhower. O projeto visava contribuir para o desenvolvimento da tecnologia nuclear em países aliados. O Brasil, inclusive, foi um dos países participantes no “Átomos para a Paz”, e iniciou seu programa nuclear na mesma época. Após 1979, os Estados Unidos e o Irã romperam relações por conta da revolução fundamentalista e novos parceiros como a Rússia tiveram que ser buscados para manter o programa. 8

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Turkey expanded its economic relations with Iran and became a major customer of Iranian gas and oil. In contrast to western leaders that shunned from developing close relations with Iran, Turkey’s leaders were warm and receptive to their Iranian counterparts. Turkish foreign policy leadership tried to restrain western governments, especially the US in pursuing a non-compromising line against Iran, and argued for engagement and communication. Again Turkey saw Iran as a major economic partner and Turkish trade with Iran was constantly growing. Turkey also attracted a respectable number of Iranian tourists who found in Turkey a liberal society in which they could enjoy food and drink without having to worry about gender and dress codes. It is to be remembered that the Turco-Iranian relationship has always harbored both competitive and cooperative elements. While the competitive elements did not disappear during the period in question, clearly a more cooperative mood characterized the relationship (Turan, 2013, p. 132)

Ambas as dimensões encontram-se presentes também na pauta bilateral com o Brasil, estabelecida na década de 1970. Após um período de baixa e distanciamento, a reaproximação no século XXI ganha forte sentido estratégico. Economicamente, o Brasil manteve seu superávit comercial nas transações com o Irã, mantendo-se um saldo estável entre 2003 e 2011 (Apex, 2011). Essa situação de não ampliação das exportações reflete, em maior parte, a crise da economia iraniana, e as limitações de receita da mesma além do petróleo e o resultado do embargo Estados Unidos – União Europeia. A pauta de exportações não decaiu, mas como citado, permaneceu estável. Porém, essa pauta sofreu importante alteração em comparação aos anos 1970: nesse período inicial, a entrada de produtos brasileiros no mercado iraniana era diversificada, com a pauta sendo composta de produtos de alto, médio e baixo valor agregado. Setores como o de energia no qual se observava uma cooperação equilibrada, atualmente encontram-se mais favoráveis ao Irã, constituindo o maior foco de importações do Brasil do país (algo em torno de 76% em extração de petróleo e gás natural). Refletindo essa mudança, desde 2003 houve redução da participação de setores de alto e 198

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médio valor nas exportações ao Irã, e a concentração de quase 70% das exportações em produtos alimentícios e bebidas (Apex, 2011). Os setores nos quais o Brasil concentra suas exportações ao Irã são: produtos alimentícios e bebidas; agricultura, pecuária a serviços relacionados; veículos automotores, reboques e carrocerias; minerais metálicos; produtos químicos; produtos do fumo; celulose e produtos de papel. Como no caso da Turquia, a Apex aponta a existência de setores que poderiam ser mais explorados pelo Brasil, com forte potencial de exportação: frutas, carnes, peixes, soja, chá, cacau, adubos e fertilizantes dentre outros. E, ainda, a Apex aponta um setor que fora tradicionalmente muito forte nas exportações, mas que decaiu: o de veículos automotores e autopeças. Igualmente, o Brasil tem procurado atuar na mediação de conflitos relativos ao processo de paz na região do Oriente Médio, envolvendo o Irã na temática. Em 2009/2010, os líderes do Irã, Palestina e Israel visitaram o país, desenvolvendo uma série de negociações, O período de 2003 a 2010, foi composto por uma diversidade de iniciativas mútuas, envolvendo os três atores em suas relações bilaterais, e que tinham elementos de convergência econômicos e estratégicos. Tais elementos envolvem tanto o fortalecimento de posições em caráter ofensivo (Brasil e Turquia) como defensivo (Irã), e, no caso do reposicionamento estratégico da CSS foram sintetizados nas potencialidades e dificuldades associadas às negociações nucleares. A relação triangular: o Acordo Tripartite Em 2010, o Acordo Tripartite tornou-se simbólico das relações do Brasil com Turquia e Irã ainda que essas não se limitassem a ele para nenhum dos envolvidos. Todavia a importância do mesmo reside no seu tema e o que poderia representar em termos de reordenamento do poder global em direção ao eixo Sul. Para os envolvidos, a conclusão do Acordo significou a elevação de seu poder político-estratégico e o reconhecimento de que as potências médias detinham capacidade para negociar questões tradicionalmente assimétricas dominadas pelas grandes potências. 199

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No período de 2009 a 2010, as negociações referentes à questão nuclear do Irã, que vinha sendo conduzidas entre o país, a AEIA e o P5+1 (Estados Unidos, China, Rússia, Reino Unido, França e Alemanha), mudaram o seu lócus para a arena triangular Brasil, Turquia, Irã. Essa mudança ocorre como uma tentativa de destravar o processo, uma vez que o mesmo se encontrava estagnado. Tal estagnação derivava da dualidade das potências EUA-UE na gestão do tema, que se dividia em duas táticas: um discurso multilateral no âmbito AEIA e P5+1 e o unilateralismo dos embargos praticados pelas duas diplomacias. No caso dos EUA, grupos conservadores, tanto democratas quanto republicanos, opunham-se a qualquer tipo de acordo com o Irã, defendendo soluções militares. Por sua vez, o governo Obama defendia as negociações tentando eliminar mais uma crise no Oriente Médio, além das já existentes no Iraque e no Afeganistão, e as turbulências que começavam a se anunciar e que eclodiriam em 2010 na forma da Primavera Árabe. Essa falta de confiabilidade do Ocidente fragilizava a ação do governo Ahmadinejad, cuja situação política interna apresentava-se em crise após a reeleição do Presidente em 2009. Bastante polarizada, essa eleição mais uma vez dividira o país entre conservadores e moderados (liderados por Hossein Mousavi) e detonara uma onda de protestos populares em Teerã que acusavam Ahmadinejad de fraudar as eleições para garantir um segundo mandato, com a aquiescência dos clérigos. A essa crise política somava-se a econômica, cuja situação somente se deteriorava, com a extensão dos embargos ocidentais. Assim, negociar com o Ocidente poderia enfraquecer ainda mais o governo. Dessa forma, a inserção de Brasil e Turquia nas negociações foi uma tentativa de destravá-las e correspondeu tanto a uma iniciativa dessas três potências regionais como da própria AEIA e do P5+1. Essa nova fase de conversações demonstrou-se bem sucedida, com Brasil e Turquia atuando como brokers dotados de credibilidade diante do Irã e em condições de menor assimetria de poder diante desse Estado. Como resultado, em maio de 2010 foi fechado o Acordo Tripartite formalizado na “Declaração Conjunta de Irã, Turquia e Brasil”. A Declaração de Teerã, como também ficou

conhecida essa iniciativa, seguia as linhas gerais das negociações em andamento, baseadas no princípio da interrupção do enriquecimento de urânio pelo Irã (enriquecido em 20%), que seria enviado a outros países, e no direito ao desenvolvimento pacífico da tecnologia nuclear. Nas palavras do Acordo,

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(...) 3. . Acreditamos que a troca de combustível nuclear é instrumental para iniciar a cooperação em diferentes áreas, especialmente no que diz respeito à cooperação nuclear pacífica, incluindo construção de usinas nucleares e de reatores de pesquisa. 4. Com base nesse ponto, a troca de combustível nuclear é um ponto de partida para o começo da cooperação e um passo positivo e construtivo entre as nações (...) 5. Baseado no que precede, de forma a facilitar a cooperação nuclear mencionada acima, a República Islâmica do Irã concorda em depositar 1200 quilos de urânio levemente enriquecido (LEU) na Turquia. Enquanto estiver na Turquia, esse urânio continuará a ser propriedade do Irã. O Irã e a AIEA poderão estacionar observadores para monitorar a guarda do urânio na Turquia. 6. O Irã notificará a AIEA por escrito, por meio dos canais oficiais, a sua concordância com o exposto acima em até sete dias após a data desta Declaração. Quando da resposta positiva do Grupo de Viena (EUA, Rússia, França e AIEA), outros detalhes da troca serão elaborados por meio de um acordo escrito e dos arranjos apropriados entre o Irã e o Grupo de Viena, que se comprometera especificamente a entregar os 120 quilos de combustível necessários para o Reator de Pesquisas de Teerã. (...) 10. A Turquia e o Brasil apreciaram o compromisso iraniano com o TNP e seu papel construtivo na busca da realização dos direitos na área nuclear dos Estados-Membros. A República Islâmica do Irã apreciou os esforços construtivos dos países amigos, a Turquia e o Brasil, na criação de um ambiente conducente à realização dos direitos do Irã na área nuclear. (Acordo, 2010, s/p)

A conclusão do Acordo foi cercada de elevado otimismo e anunciada por Brasil e Turquia como prova da crescente relevância das potências emergentes na grande política mundial. No caso turco, demonstrava a força política e a credibilidade do país em um espaço geopolítico sensível das relações internacionais, e o compro201

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misso do governo com as regras e procedimentos multilaterais da comunidade internacional. Para o Brasil, a atuação destacada na arena nuclear recuperava suas posições anteriores no campo, que defendem o direito ao acesso à tecnologia nuclear para fins pacíficos, de desenvolvimento e pesquisa. Além disso, inserem-se na retomada do programa nuclear brasileiro pelo governo Lula e no avanço do país no setor de enriquecimento de urânio, tema extremamente competitivo no cenário global e dominado pelas potências nucleares tradicionais. A capacitação brasileira nesse setor surge como desafio a esse “mercado” do conhecimento tecnológico e interrompe um ciclo de encolhimento no setor de segurança. Como indicam Patti (2013) e Jesus (2012) em dois estudos muito interessantes, o século XXI pode ser entendido como renascimento da atuação do Brasil no setor nuclear e o Acordo Tripartite torna-se simbólico dessa projeção. Todavia, imediatamente após o seu lançamento, o Acordo foi condenado pelos Estados Unidos, posição que se estendeu à AEIA e ao P5+1. Oficialmente essas potências que antes haviam considerado válidas as negociações agora rejeitavam o texto que elas mesmas haviam ajudado a formatar. Em junho, inclusive, as Nações Unidas aprovaram novas sanções contra o Irã. Ao mesmo tempo, Brasil e Turquia foram “alertados” pelos Estados Unidos e pela União Europeia de que estariam sendo “ingênuos” ao acreditar nas promessas do Irã. Nas letras pequenas, essas críticas procuravam desqualificar esses esforços e recolocar ambos no segundo escalão da política mundial, e acabaram por inviabilizar a aplicação do Acordo, uma vez que o Irã continuava sem garantias de que sua posição negociadora fora aceita. O Irã continuou a desenvolver o seu programa nuclear, novas sanções foram impostas, mantendo-se o ciclo de crises conhecido. Essa postura foi repudiada por Brasil e pela Turquia, tornando público, inclusive, documentos e correspondências secretas entre o Brasil e os Estados Unidos. Nas cartas do Presidente Obama ao Presidente Lula, Obama agradece o Brasil pelos esforços nas negociações e que as mesmas abriram novas portas para a estabilidade regional (Pacto Irã-Brasil, 2010). Porém, independente

disso, o que prevaleceu na política norte-americana foi a condenação do Acordo por pressão dos grupos conservadores, e, com isso, a temática e o Acordo foram colocados em segundo plano também nas Nações Unidas. Ignorando as ações prévias dos Estados Unidos e das Nações Unidas, no Brasil, em ano de eleição presidencial (2010), essa situação foi explorada pela oposição como prova de que o país estaria novamente se isolando na comunidade internacional ao defender “países agressivos” como o Irã e que estaria “se metendo” em questões “além de sua capacidade” e em “lugares remotos” nos quais não detinha interesses ou presença significativa. À questão nuclear somou-se a dos direitos humanos sintetizada na acusação de que o Brasil estaria apoiando Ahmadinejad na condenação de Sakineh Ashtiani à morte por apedrejamento. Ignorava-se o fato de que o Ministério das Relações Exteriores negociava o perdão a Ashtiani e a suspensão da sentença. Explorada na mídia, após a eleição o tema desapareceu desde 2011. Ora, como analisado, o envolvimento brasileiro no Oriente Médio não é novidade do século XXI, e nem uma visão estratégica sobre a arena nuclear. O que ocorreu foi um abandono dessa projeção no pós-Guerra Fria e que foi retomada a partir de 2003, no âmbito de uma política externa de eixos combinados, associada ao paradigma da autonomia, colocando em xeque o alinhamento. Além disso, essas iniciativas inserem-se em uma perspectiva de CSS mais abrangente e na transformação do poder global. O Acordo Tripartite era apenas uma, dentre várias iniciativas assertivas do Brasil e outros emergentes, que questionavam estruturas de poder e negociações multilaterais em andamento. Com isso, a reação negativa dos Estados Unidos e aliados a essas agendas renovadas de CSS reflete um momento de mudança, no qual essas nações perdem espaço e, como resposta, pressionam os Estados que, como o Brasil, ganham. Entretanto, ganhos que nem sempre são aceitos como reais dentro de casa e geram alternâncias e recuos nas relações internacionais do país devido a polarizações internas.

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Perspectivas e desafios (2011/2014) Apesar dos avanços obtidos pela diplomacia de Lula entre 2003 e 2010, incluindo as relações aqui analisadas, a contínua cisão da sociedade brasileira no tema levou a uma estagnação e recuo relativo na agenda autonomista a partir de 2011. Se no campo doméstico a Presidente Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores, deu continuidade e aprofundou programas de governo lançados pelo seu antecessor, no externo, a situação demonstrou-se menos clara. Apesar de sustentar a retórica da autonomia nas relações internacionais, mantendo a política de Estado, a política de governo optou por uma via compensatória. Essa via compensatória buscava reduzir ruídos, matizando questões que haviam se tornado polêmicas na eleição de 2010: direitos humanos e acordo nuclear. Antes mesmo de sua posse, a Presidente declarou seu apoio incondicional aos direitos humanos. Na dinâmica nuclear, a posição foi de afastamento das arenas globais dessas negociações, mantendo-se à margem no tema Irã. Esse relativo recuo não se restringiu a esses setores, mas à agenda da América do Sul, à proximidade com os Estados Unidos e a uma menor visibilidade externa de Dilma e do novo Ministro Embaixador Antonio Patriota. O governo somente passaria a se manifestar de forma mais veemente em 2013 na crise da espionagem com os Estados Unidos (e a defesa do direito à privacidade na era digital). Isso se refletiria na busca de uma retomada da visibilidade dos Brics e demais alianças de geometria variável, no Mercosul/Unasul e no continente africano. No que se refere ao Oriente Médio, as questões político-estratégicas acabaram sendo limitadas à realização das Cúpulas da Aspa e à condenação das intervenções na Líbia, e atualmente no Iraque e na Síria (contra o Estado islâmico), e a necessidade de rever o conceito de “responsabilidade de proteger” das Nações Unidas, contrapondo-o ao termo “responsabilidade ao proteger”. Porém, o Brasil pouco se envolveu nas questões da Primavera Árabe a partir de 2010 e a triangulação nuclear com a Turquia e o Irã foi abandonada. Manteve-se, contudo, forte agenda econômica com a região, com sustentação e ampliação das exportações. 204

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A quase despolitização das relações Brasil-Turquia, Brasil-Irã, reflete dificuldades internas de todos os envolvidos e fenômenos externos, derivados da contrarreação hegemônica dos Estados Unidos. No que se refere às dificuldades internas, no caso do Brasil, faz parte do debate doméstico sobre relações internacionais e a opção de recuo inicial da nova presidência, ao qual se agregaram em 2013 pressões sociais. Movimento similar ocorre na Turquia (a chamada “Primavera Turca” de 2013). Em 2013 o Irã enfrenta nova eleição polarizada, ganha, nessa oportunidade, pelos reformistas, liderados por Hassan Rouhani. Rouhani assume em junho em um momento de agravamento da crise econômica interna, de aprofundamento das pressões ocidentais e ampliação das crises regionais. Isso somente acentua a sensação de estrangulamento do Irã, que leva à nova rodada de negociações nucleares, voltando ao “comando” das AEIA e ao P5+1. Rouhani afirma abertamente sua intenção em negociar com o Ocidente, com destaque a um discurso moderado na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas em setembro. Essa rodada, assim como a extensão das pressões dos Estados Unidos sobre os emergentes, faz parte da contrarreação hegemônica que se expressa em termos retóricos e práticos. Como visto, a CSS é criticada como uma nova forma de poder e imperialismo por essas potências (e elites internas) e em termos práticos desenvolvem-se novos mecanismos de projeção de poder no âmbito dos Comandos Militares no Atlântico Sul (USSOUTHCOM), na África (USAFRICOM), o pivô asiático (Parceria Transpacífica) e o europeu (Parceria Transatlântica, somada à Otan), intervenções e embargos. Observa-se uma ofensiva ocidental que, no caso do Irã, resulta no Acordo Nuclear de novembro de 2013, em efetivação em 2014. Patrocinado pela AEIA e o P5+1, o Acordo foi alardeado como prova do sucesso das negociações multilaterais conduzidas por esses atores, e a disponibilidade do Irã em negociar devido à ascensão do governo reformista. Mas o que exatamente diferencia esse acordo do anterior de 2010? Por que esse acordo é validado internacionalmente como “positivo” e mesmo entre algumas correntes no Brasil, desmerecendo o anterior? 205

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Em termos de conteúdo, o Acordo é menos restritivo ao Irã do que o de 2010, não incluindo, por exemplo, a troca de combustível nuclear. No acordo de 2010, o Irã enviaria o urânio para ser enriquecido no exterior; no de 2013, o país continuará enriquecendo o urânio em suas instalações, sob monitoramento. Além disso, entre 2010 e 2013 o país conseguiu maior quantidade de urânio enriquecido a 20%. Entretanto, por ser um acordo fechado pelo núcleo do poder global, o mesmo foi validado. Sintetizando o dilema, o Embaixador Amorim, que esteve à frente das negociações em 2010, e exerce o cargo de Ministro da Defesa (2011/2014), afirma que:

As reflexões de Amorim demonstram a complexidade da política internacional e seus atuais jogos de poder, nos quais a CSS insere-se como parte significativa. As perspectivas de sua evolução e consolidação no formato abrangente aqui analisado, social, político, estratégico e econômico encontram-se condicionadas à superação de dois desafios: um interno, que possa solidificar os meios e o consenso em torno da sua importância como parte da política externa, e de um projeto de Estado; e um externo, ligado à resistência às pressões dos países desenvolvidos a essas agendas e suas contrarreações à perda de espaço que o sucesso da CSS implica. A CSS Brasil-Turquia, Brasil-Irã, e sua triangulação, é exemplar desses dilemas, assim como da importância do aprofundamento de ações autônomas globais.

(...) por que não foi para frente em 2010 se na realidade o que nós obtivemos do Irã era exatamente aquilo que o presidente Obama tinha pedido que obtivéssemos do Irã. Houve fatores políticos, dentro dos Estados Unidos. Porque nós não inventamos aquele acordo. É preciso que se diga. O que o Brasil conseguiu junto com a Turquia foi, usando o seu poder de persuasão e de conversa, levar o Irã a aceitar aquilo que os Estados Unidos, eles próprios juntamente com os outros quatro, mais um de agora, já tinham proposto antes. São fatores políticos (...) ele escreveu para o presidente Lula, três semanas antes da nossa ida, dizendo que era fundamental um acordo naqueles termos e foi obtido um acordo naqueles termos. O acordo, na realidade, esse agora, sob vários aspectos é mais favorável ao Irã do que era aquele. O Irã está muito feliz, por exemplo, com o fato que não vai ter que mandar urânio enriquecido para fora. E o nosso tinha que mandar 1.200 quilos, que era mais ou menos a metade do que o Irã tinha, para fora para ser depositado na Turquia. (...) Mas eu não acho isso [o acordo atual] ruim. Acho que é excelente. (...) a declaração [de 2010], naquela época, volto a dizer, era para criar confiança. Teria que continuar falando de inspeções e outros aspectos do qual se não tratava. Mas se tivesse havido aquilo o Irã não estaria hoje com seis ou sete toneladas de urânio levemente enriquecido. Não teria duzentos a trezentos quilos de urânio enriquecido a 20%. (...) Naquela época o Irã tinha, discute-se, 2.000, 2.400 quilos, pouco mais de duas toneladas de urânio levemente enriquecido. Não tinha praticamente nada enriquecido a 20%. Agora tinha muito mais em todo o sentido. Então foram três anos perdidos. (Amorim apud Rodrigues, 2013) 206

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YORUK, Erdem. O longo verão da Turquia. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, 97, p. 57-66, novembro de 2013.

Walter Antonio Desiderá Neto*

Introdução A cooperação entre países em desenvolvimento não é uma novidade da política internacional do século XXI. As primeiras ocorrências de maior expressão desse tipo de cooperação internacional ocorreram ainda durante a Guerra Fria, quando os países em desenvolvimento promoveram o Movimento dos NãoAlinhados, no âmbito da Conferência de Bandung (1955) da Organização das Nações Unidas (ONU)1. A finalidade inicial do movimento era a adoção de uma posição comum contra o colonialismo que não se alinhasse ideologicamente a nenhum dos dois polos de poder dominantes à época. Desde aquela ocasião, dentro de instâncias da ONU e em negociações no âmbito de diversos regimes internacionais, os países em desenvolvimento vêm cooperando entre si para tentarem fazer prevalecer seus interesses na formação das regras que orientam a governança global, tendo o Brasil participado na * Técnico de Planejamento e Pesquisa da Diretoria de Estudos e Relações Econômicas e Políticas Internacionais (Dinte) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). ¹ Nesse caso específico, o Brasil não participou do movimento, uma vez que em função do Tratado de Amizade e Consulta de 1953, “o país subordinava suas posições sobre as colônias portuguesas na África aos interesses de Portugal” (Saraiva, 1996, p. 55).

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maioria das ocasiões. Destacam-se como exemplos emblemáticos a formação do G-77 em 1964 no âmbito da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) e a proposta conjunta pelos países em desenvolvimento, em 1974, de uma Nova Ordem Econômica Internacional (Noei) na Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU). A nomenclatura que tem sido dada para se referir à atuação concertada entre países em desenvolvimento na política internacional é cooperação Sul-Sul (Lima, 2005; Oliveira; Onuki; Oliveira, 2006; Saraiva; 2007; Rodrigues, 2010). Ao mesmo tempo, outros autores, inclusive algumas publicações institucionais de organizações internacionais, também têm utilizado esse termo para se referir à cooperação para o desenvolvimento técnica, financeira, científica ou tecnológica prestada por países emergentes a outros países do Sul (Ecosoc, 2009; Ayllón, 2009; Hirst, 2011; Segib, 2011; Burges, 2012). Entretanto, por se tratarem de expressões diferentes do fenômeno, é importante esmiuçar o conceito de cooperação internacional do tipo Sul-Sul a fim de evitar que o mesmo, por exagerada amplitude, acabe perdendo poder explicativo. Conforme comenta Puente (2010, p. 223), referindo-se ao próprio discurso diplomático brasileiro,

to que podem ser diferenciadas dentro da chamada cooperação internacional de tipo Sul-Sul: i) a coalizão internacional, caracterizada pela formação de grupos de dois ou mais países em desenvolvimento para coordenar posições e atuar conjuntamente em mecanismos multilaterais de negociação das regras que orientam a governança global; ii) e a cooperação para o desenvolvimento nas modalidades técnica, financeira, científica ou tecnológica, a qual envolve transferências (predominantemente bilaterais, mas também por meio da intermediação de instituições regionais do Sul) de recursos financeiros, de informações e de experiências entre países em desenvolvimento, com função explícita de promover o desenvolvimento do país receptor. Essa diferenciação aqui colocada tem a instrumentalidade analítica de não intercambiar como iguais relações que têm como objetivo estratégico de política externa a soma de recursos de poder com outros países para aumentar a efetividade da defesa de interesses comuns no curto ou médio prazo na política global, características da coalizão internacional, com relações que têm por objetivo, do ponto de vista do doador, promover parcerias duradouras e, expondo uma imagem positiva de solidariedade e responsabilidade perante a comunidade internacional, adquirir prestígio internacional a partir da exportação de práticas bem-sucedidas, típicas da cooperação para o desenvolvimento. Ainda que não seja comum encontrar na realidade relações entre dois países em desenvolvimento em que ocorram apenas expressões isoladas dessas duas faces da cooperação Sul-Sul, sua diferenciação analítica é instrumental para verificar os objetivos que embasam essas iniciativas de política externa. No caso deste artigo, a separação conceitual também é útil para descrever e analisar a estratégia de cooperação Sul-Sul da política externa promovida pelo Brasil, permitindo mapear de que maneira diferentes iniciativas foram empregadas em sua composição. De forma a exemplificar, a situação que se pode apontar, no caso da política externa brasileira, como uma das mais próximas à cooperação para o desenvolvimento Sul-Sul são os projetos que o Brasil empreendeu em países africanos da Comunidade de Países

(...) de fato, verificam-se (...) referências dispersas à expressão “cooperação internacional”, quando, na verdade, o que se pretende muitas vezes é aludir a políticas de concertação, diálogo e aproximação com outros países, tanto no nível bilateral como, especialmente, no multilateral. (...) A referência genérica à “cooperação Sul-Sul” no discurso diplomático é um pouco mais frequente. Não está desprovida, no entanto, da abrangência e dispersão já mencionadas, pois induz muitas vezes a outros aspectos da política externa, como a busca de aproximação e concertação com países em desenvolvimento com vistas a objetivos outros que não apenas a cooperação para o desenvolvimento.

Dessa forma, pode-se afirmar que existem duas formas importantes de expressão da cooperação entre países em desenvolvimen212

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O Brasil, a América do Sul e a Cooperação Sul-Sul

de Língua Portuguesa (CPLP) por intermédio de seus organismos da administração federal e com alguma coordenação da Agência Brasileira de Cooperação (ABC). Por outro lado, o G-20 agrícola formado na Reunião Ministerial de Cancun da Organização Mundial do Comércio (OMC) é exemplo de uma das iniciativas caracterizadas como coalizão internacional Sul-Sul. De fato, no governo Lula (2003-2010) a cooperação internacional com países em desenvolvimento ganhou destaque. Para tanto, a política externa brasileira passou por alguns ajustes com relação à estratégia de inserção internacional do governo anterior. A diversificação de parceiros tornou-se um importante vetor dessa política (Vigevani; Cepaluni, 2007), voltando-se principalmente para a expansão dos vínculos com os países do mundo em desenvolvimento. Pecequilo (2008, p. 145) denomina essas parcerias ao Sul de “eixo horizontal” da política externa.

a autora, a cooperação Sul-Sul com os países sul-americanos esteve relacionada à construção de um projeto de liderança regional brasileiro articulado “à segurança regional, à defesa da democracia, aos processos de integração regional e às perspectivas de desenvolvimento nacional” (Saraiva, 2007, p. 48). Para tornar-se um ator global e aumentar sua influência na formação das regras que orientam a governança global, o Brasil buscou a concertação também com atores do Sul externos ao continente. Encontram-se nesse grupo de iniciativas o Fórum de Diálogo Ibas (Índia, Brasil e África do Sul), o ora mencionado G-20 agrícola, as Cúpulas dos Bric (Brasil, Rússia, Índia, China), além das Cúpulas América do Sul – Países Árabes e América do Sul – África. Conforme apontam Hirst, Lima e Pinheiro (2010, p. 30),

O eixo horizontal é representado pelas parcerias com as nações emergentes, por suas semelhanças como grandes Estados periféricos e países em desenvolvimento como Índia, China, África do Sul e Rússia (...). A agenda é composta também pelos países menos desenvolvidos da África, Ásia e Oriente Médio, cujo poder relativo é menor do que o brasileiro. Este eixo representa a dimensão terceiro-mundista da política externa, também definida como relações Sul-Sul. Os benefícios potenciais deste eixo são econômicos, estratégicos e políticos. (...) A proximidade política entre as nações do Sul refere-se a uma reivindicação permanente desde o fim da Guerra Fria que é a reforma das organizações internacionais globais como G-8, [Fundo Monetário Internacional] FMI, Banco Mundial e, principalmente, do CSNU.

Do ponto de vista das coalizões internacionais, as iniciativas de concertação política com países do Sul que tiveram mais proeminência no governo Lula, segundo Saraiva (2007), podem ser divididas entre, de um lado, as que se direcionaram aos demais países da América do Sul e, de outro, as que foram realizadas com potências médias de grande porte do mundo em desenvolvimento. Para 214

a participação do Brasil nos foros de governança global reflete não apenas uma política pró-ativa de constituição de “coalizões de geometria variável”, envolvendo algumas nações emergentes, como os limites derivados das carências de recursos de poder que permitam ao país uma carreira “solo” em instâncias globais.

Ao mesmo tempo, observou-se ao longo do governo Lula um crescente empenho brasileiro, paralelamente à concertação política com parceiros do Sul, em prestar cooperação técnica, financeira, científica e tecnológica a um grupo de países de menor desenvolvimento relativo. Essa outra expressão da cooperação Sul-Sul apresentou crescente dispêndio financeiro desde 2005 (Ipea; ABC, 2010), tendo como principais destinos determinados países africanos de língua portuguesa e alguns países latino-americanos. No que concerne à cooperação técnica, as experiências bem-sucedidas de políticas públicas que o Brasil buscou levar a seus parceiros se localizaram, principalmente, nas áreas temáticas de qualificação profissional, saúde pública (política de prevenção e combate à epidemia do HIV/Aids), agricultura (tecnologias de cultivo desenvolvidas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – Embrapa) e inclusão social (programas de transferência condicionada de 215

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O Brasil, a América do Sul e a Cooperação Sul-Sul

renda consolidados pelo Programa Bolsa Família  – Ministério do Desenvolvimento Social) (Ayllón; Leite, 2010). Ainda que a diplomacia tenha se empenhado em diferenciar a forma de atuação brasileira nessas iniciativas das práticas empreendidas historicamente pelos países desenvolvidos (evitando o termo “país receptor” e optando por “país parceiro”, bem como afirmando inexistir condicionalidades de ordem econômica ou política na prestação dessas ações, por exemplo), algumas análises indicaram uma correlação entre o aumento da cooperação para o desenvolvimento e o crescimento das exportações brasileiras em algumas localidades, em especial no continente africano (Inoue; Vaz, 2007, 2012). De toda maneira, uma vez que essas correlações não ocorreram em função de condicionalidades vinculadas aos programas realizados pelo Brasil nesses países, do ponto de vista dos objetivos declarados pela política externa, é possível apontar apenas a formação de parcerias de longa duração, a ampliação de vínculos externos e a conquista de prestígio internacional, além da própria solidariedade. No que se refere ao lugar que foi destinado ao Mercado Comum do Sul (Mercosul)  – principal iniciativa de integração regional da qual participa o Brasil  – dentro dessa estratégia em duas frentes paralelas e distintas de cooperação Sul-Sul, cabe ressaltar que ele também passou por uma reformulação. Com a crise do modelo livre-cambista decorrente da desvalorização do real no final da década de 1990 e das consequentes crises da dívida e política argentinas que se estenderam até as eleições de 2002, os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner, eleitos com base em projetos políticos críticos às iniciativas liberais da década de 1990, propuseram em 2003 o relançamento do bloco sob novas bases, buscando incrementar seus objetivos econômicos e conferir maior componente político e social (Ruiz, 2007). Dessa maneira, também para o Mercosul buscou-se uma mudança de rumos pela política externa brasileira, recuperando para sua agenda temas como o diálogo para a adoção de posições comuns na política internacional e incluindo a criação de meca-

nismos para a redução das assimetrias e o aumento da cooperação para o desenvolvimento entre os integrantes do bloco. Na prática, ao longo dos pouco mais de sete anos que sucederam a assinatura do Consenso de Buenos Aires (2003) pelos presidentes dos dois países e a aprovação pelo Conselho do Mercado Comum (CMC) do Programa de Trabalho do Mercosul 20042006, foram criados na estrutura institucional do Mercosul, entre outras iniciativas, no lado social, as Cúpulas Sociais do Mercosul, o Instituto Social do Mercosul (ISM) e o Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul (IPPDH) e, na esfera política, o Parlamento do Mercosul (Parlasul) e o cargo de Alto-Representante Geral do Mercosul. Do ponto de vista econômico, destacou-se a criação do Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (Focem) em 2004 e do Fundo Mercosul de Garantias para Micro, Pequenas e Médias Empresas (Fundo Pymes) em 2008, com foco na redução das assimetrias e na promoção da integração produtiva entre os países integrantes do bloco regional, respectivamente. Diante desse contexto, o objetivo deste capítulo é examinar o desenvolvimento da cooperação Sul-Sul – prestação de cooperação para o desenvolvimento e atuação como coalizão internacional  – do Brasil com os países da América do Sul no período entre 2003 e 20122. Ele está organizado em quatro sessões: após esta introdução, a segunda seção trata do funcionamento do Mercosul como coalizão internacional de 2003 a 2012; a terceira seção, por sua vez, examina a prestação de cooperação para o desenvolvimento do Brasil para os outros parceiros do bloco econômico regional de 2003 a 20103; por fim, a última seção busca concluir os argumentos construídos ao longo do texto.

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Avançando, do ponto de vista da política externa brasileira, sobre os dois primeiros anos do primeiro governo Dilma (2011-2014). 2

Os dados da cooperação para o desenvolvimento para os anos de 2011 e 2012 ainda não foram divulgados. 3

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O Brasil, a América do Sul e a Cooperação Sul-Sul

O Brasil, a América do Sul e a cooperação Sul-Sul: coalizão internacional

De acordo com Russel e Tokatlián (2011, tradução nossa, p. 298), a respeito da nova gestão,

De 1991 a 1997, com a eliminação progressiva das barreiras tarifárias intrabloco, a corrente de comércio entre os países do Mercosul havia crescido de forma expressiva, atingindo taxas anuais de crescimento superiores a 25%. Do ponto de vista dos investimentos, observou-se também aumento e diversificação. Entretanto, com a crise financeira asiática, seguida da crise russa e do estremecimento por elas provocado nos mercados ao redor do planeta, esse processo sofreu um estancamento. Em 1999, diante das dificuldades para seguir financiando o regime de bandas cambiais do real com o dólar decorrentes da retração da liquidez internacional4 e da redução do preço internacional das commodities, o governo brasileiro deixou o câmbio flutuar, conduzindo a uma forte desvalorização da moeda. Ao mesmo tempo, uma vez que a Argentina seguiu praticando o regime de câmbio fixo do peso com a divisa americana, houve uma brusca alteração dos preços relativos no bloco em favor dos produtos brasileiros. Dessa forma, o Brasil passou a apresentar superávits comerciais com a Argentina nos anos seguintes, gerando alguns atritos comerciais no Mercosul, o qual também vinha apresentando maus resultados decorrentes da recessão econômica. Os déficits argentinos, por sua vez, vieram se somar às dificuldades fiscais do país, as quais decorriam, entre outros fatores, dos custos em reservas da manutenção da paridade artificial do peso com o dólar e da reforma de seu setor previdenciário. No final de 2001, no auge de uma crise política doméstica causada pelo alto desemprego e pelo bloqueio das contas-correntes (o corralito) realizado pelo presidente Fernando de la Rúa, a Argentina decretou a moratória de sua dívida externa. Após uma turbulência na qual mais três presidentes foram nomeados e acabaram renunciando num período de doze dias, Eduardo Duhalde assumiu a presidência e governou o país durante 2002, num mandato que representou a transição do retorno do país ao peronismo.

a Argentina pós-crise, fraca, solitária e ensimesmada, reconheceu-se mais latino-americana e viu na sociedade com o Brasil o melhor caminho para ganhar autoestima coletiva e retornar a um mundo que, em sua grande maioria, havia lhe dado as costas.

Essas dificuldades já se faziam sentir desde a desvalorização mexicana de 1995. 4

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A eleição de Néstor Kirchner e de Luiz Inácio Lula da Silva (daqui em diante, Lula) na Argentina e no Brasil, respectivamente, em 2003, veio ocorrer em um contexto pós-crise. O clima predominante se caracterizava pela valorização da parceria bilateral e pelo questionamento do modelo livre-cambista sobre o qual se baseara o Mercosul até então. Dessa forma, em outubro daquele ano, os dois presidentes, reunidos na capital argentina, propuseram o relançamento do bloco regional. No Consenso de Buenos Aires, documento resultante desse encontro, foi proposta a alteração das prioridades do Mercosul com vistas a dar mais atenção para as dimensões social, política, participativa e distributiva da integração. Nesse sentido, no lugar da liberalização comercial  – ainda que ela não tenha sido revertida –, os novos motes norteadores do processo passaram a ser justiça social (combate à pobreza, à desigualdade, à fome e ao analfabetismo), atuação conjunta em espaços multilaterais, participação da sociedade civil e redução dos desequilíbrios regionais. Em dezembro de 2003, na cúpula semestral de Montevidéu, os quatro Estados Partes aprovaram o Programa de Trabalho Mercosul 2004-2006, incorporando essa nova perspectiva. Ele identificava uma lista de tarefas a serem cumpridas para que a integração avançasse em quatro direções: a) econômico-comercial: consolidar a tarifa externa comum, formular o código aduaneiro, promover a integração produtiva, realizar a coordenação macroeconômica, avaliar as negociações externas, entre outros pontos; b) social: ampliar os mecanismos de participação da sociedade civil e investigar sobre temas sociais, como trabalho, educação e direitos humanos; c) institucional: fundar o Parlamento do Mercosul e fortalecer as ins219

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O Brasil, a América do Sul e a Cooperação Sul-Sul

tituições existentes; d) “nova agenda”: fomentar a cooperação em ciência e tecnologia, bem como a integração física e energética. Certamente, o avanço no cumprimento de cada um desses objetivos ocorreu em ritmos variados, com sucessos e malogros. De todo modo, para os objetivos deste capítulo, é importante apenas assinalar sua eficiência em i) efetivamente ampliar a agenda da integração para novas dimensões e ii) enfatizar o sentido político-estratégico do Mercosul, para além dos aspectos econômico-comerciais. A consolidação desses novos temas se caracterizou como fator decisivo para o aprofundamento da coordenação de visões de política externa e, portanto, do funcionamento do bloco como coalizão internacional. Da mesma forma, não se pode deixar de reconhecer também a contribuição do processo de integração sul-americano como fator promotor da convergência de perspectivas entre as nações do continente de uma forma geral. Inaugurado por iniciativa brasileira5, a partir da Primeira Cúpula Sul-Americana6, ocorrida em Brasília no ano 2000, definiu-se como objetivos centrais: i) impulsionar a integração física do continente, para a qual foi criada a Iniciativa para Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (Iirsa); ii) iniciar um processo de convergência entre o Mercosul e a Comunidade Andina de Nações (CAN), com vistas à conformação de uma área de livre comércio entre os dois blocos; iii) coordenar posições negociadoras no contexto da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), de forma a assegurar o acesso a mercados para as exportações provenientes do continente; iv) e, do ponto de vista mais estritamente político, consagrar a região como zona de paz e afirmar o compromisso com a democracia.

Na Segunda Cúpula Sul-Americana, realizada em Guayaquil (Equador) em 2002, o andamento do processo foi avaliado e praticamente as mesmas disposições foram reafirmadas. Além de ter sido adotada a Declaração sobre a Zona de Paz Sul-Americana, também foi destacado nesse encontro a importância da Primeira Reunião de Ministros de Relações Exteriores do Mercosul, Chile e da Comunidade Andina, ocorrida no ano anterior, e da criação do Mecanismo de Diálogo e Concertação Política, como iniciativas para fomentar a convergência de visões sobre temas de interesse comum entre as nações envolvidas. Dando prosseguimento ao processo, em 2004 realizou-se em Cuzco (Peru) a Terceira Cúpula Sul-Americana, na qual foi formalmente criada a Comunidade Sul-Americana de Nações (Casa). No documento resultante do encontro, a concertação e a coordenação política e diplomática, vistas como caminho para fortalecer as capacidades de negociação e projeção internacionais do continente, aparecem em primeiro lugar na lista de dinâmicas que o novo organismo seguiria aperfeiçoando e impulsionando7. Em 2005 e 2006, em substituição às Cúpulas Sul-Americanas, ocorreram as duas primeiras Reuniões de Chefes de Estado e Chanceleres da Casa (em Brasília e em Cochabamba, respectivamente), nas quais o entendimento político é tido como parte da essência da comunidade. Finalmente, em 2008, com a assinatura do Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), essa questão é objetivo específico da organização explicitado pelo item “a” do terceiro artigo do tratado: “o fortalecimento do diálogo político entre os Estados Membros que assegure um espaço de concertação para reforçar a integração sul-americana e a participação da Unasul no cenário internacional”. A ênfase reiterada de uma reunião a outra com relação a esse ponto se deve em grande medida à liderança brasileira durante todo o desenvolvimento das principais iniciativas de integração na

Vale destacar, nesse ponto, o fato de a política externa brasileira ter lançado, com esse processo, o conceito de América do Sul, abandonando temporariamente a ênfase na ideia de América Latina (presente na Associação Latino-Americana de Integração  – Aladi) e, portanto, excluindo o México das iniciativas. Além disso, fica claro o objetivo do país de buscar alternativas para o crescimento na região em um momento em que o Mercosul apresentava sinais de debilidade. 5

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Com a participação dos presidentes dos doze países sul-americanos.

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Deve-se assinalar que, nesse encontro, a redução das assimetrias estruturais presentes na região apareceu pela primeira vez como um dos objetivos prioritários da integração sul-americana. 7

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O Brasil, a América do Sul e a Cooperação Sul-Sul

América do Sul. A partir de 2003, com a inauguração do governo Lula, a política externa brasileira sofreu uma inflexão, passando a apresentar maior assertividade na busca de seus objetivos. Conforme analisa Lima (2005, p. 11-13), e com base também nos apontamentos do então Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim (2010, p. 215), a mudança da estratégia de inserção internacional ocorreu em função de uma alteração na própria leitura que o novo governo fazia do cenário internacional. Na gestão anterior, o país buscava “credibilidade” perante as grandes potências a partir da adoção dos padrões do bloco ocidental globalizado, pois acreditava que extrairia benefícios de uma inserção entendida como modernizadora. A partir do governo Lula, o país passou a buscar “autonomia” por meio da conformação de espaços políticos alternativos que de alguma maneira deslegitimassem a ordem unipolar e promovessem a desconcentração de poder, posto que, ao examinar a globalização como um fenômeno gerador de desigualdades8, instava-se a se tornar um ator global com as devidas capacidades para enfrentar os desafios do desenvolvimento. Para contextualizar, deve-se ter em mente que, do ponto de vista do ambiente internacional, a Guerra Contra o Terror promovida pelos Estados Unidos na administração de George W. Bush (20012009), em momentos emblemáticos executada de forma unilateral (Guerras do Afeganistão e do Iraque), abalou em parte a capacidade de liderança global da superpotência, em especial com relação à perda do apoio de determinados parceiros tradicionais da Europa Ocidental (Buzan, 2007). Além disso, com a condução dessa política em nível global, os Estados Unidos acabaram dando menos atenção às relações internacionais da América Latina. Desse modo, o cenário dos anos 2000 se mostrou propício para o lançamento de iniciativas de países em desenvolvimento que, mesmo sem adotar

um discurso provocativo, contestassem a hegemonia americana e buscassem aliados para defender o multilateralismo. Isso ganharia ainda mais força no final da década com a crise financeira de 2008, o avanço econômico chinês e a crise do euro. Portanto, tendo esse diagnóstico como pano de fundo, o Brasil passou a advogar pela construção de um mundo multipolar baseado nas regras do multilateralismo. A estratégia de cooperação Sul-Sul, elemento central do novo projeto, era composta por duas frentes paralelas e distintas de ações, conforme mencionado anteriormente: prestação de cooperação para o desenvolvimento SulSul; e formação de coalizões internacionais Sul-Sul. No Balanço de Governo 2003-2010 produzido pelo governo brasileiro, a inclusão da integração regional no seio dessa estratégia fica muito clara, como se segue:

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Deve-se reconhecer que o descontentamento com a falsa promessa dos frutos positivos da interdependência econômica no mundo  – via liberalização comercial e financeira  –, expressado principalmente na ideia de “globalização assimétrica” defendida pelo então Ministro das Relações Exteriores Celso Lafer (2001-2002), começou a conquistar espaço no seio da corporação diplomática ainda no último ano do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

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O adensamento das relações políticas e econômicas entre os países sul-americanos contribuirá para o desenvolvimento socioeconômico da América do Sul e a preservação da paz na região; o desenvolvimento do mercado interno sul-americano e o aumento da competitividade dos países no mercado internacional; e o fortalecimento da capacidade de atuação do Brasil em outros foros internacionais. A integração sul-americana se baseia em dois pilares: a Unasul e o Mercosul (Brasil, 2010, p. 18).

Vale adicionar ainda – como demonstração da inserção do bloco regional na estratégia maior da política externa brasileira – que, em três das cinco novas iniciativas de coalizão internacional SulSul promovidas pelo Brasil, os demais países do Mercosul estavam inseridos: i) o G-20 comercial, no âmbito das negociações da Rodada Doha da OMC, em defesa da eliminação das barreiras ao comércio de bens agrícolas; ii) as cúpulas América do Sul – Países Árabes (Aspa); iii) e as cúpulas América do Sul – África (ASA)9. Conforme sintetizou o então Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim (2010, p. 231), As outras duas iniciativas são o Fórum de Diálogo Ibas (Índia, Brasil e África do Sul) e as cúpulas anuais dos Bric (Brasil, Rússia, Índia e China), aos quais veio se somar a África do Sul em 2011. 9

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(...) a cooperação Sul-Sul é um instrumento diplomático que surge de um desejo autêntico por prestar solidariedade aos países mais pobres. Ao mesmo tempo, ela ajuda a expandir a participação do Brasil nas relações internacionais. A cooperação entre iguais em questões de comércio, investimentos, ciência e tecnologia e outros campos reforça nossa estatura e fortalece nossa posição nas negociações de comércio, investimentos e do clima. Por fim, construir coalizões com países em desenvolvimento é também uma forma de se empenhar na reforma da governança global, de forma a tornar as instituições internacionais mais justas e mais democráticas.

Com esse contexto de iniciativas em mente, torna-se mais simples compreender os motivos pelos quais, em 2004, o Mercosul e a CAN assinaram acordo comercial e, em seguida, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela vieram se somar à lista de países associados do bloco do Cone Sul10 – passando a participar de suas cúpulas semestrais. Em 2012 foi a vez de Guiana e Suriname também se associarem ao Mercosul, perfazendo no bloco regional os mesmos membros da Unasul. Afinal, trata-se de partes de um mesmo projeto, voltado a aumentar a participação e marcar as posições do continente nos mecanismos multilaterais em que são negociadas as regras da governança global. Nesse sentido, ao examinar os comunicados conjuntos emitidos semestralmente por esses países nas cúpulas presidenciais do Mercosul entre 2003 e 2012, percebe-se ter ocorrido ampliação na quantidade de temas convergentes e aprofundamento no tratamento e na abordagem conferida a cada um deles. Num esforço de síntese, a tabela 1 abaixo traz uma lista dessas questões.

O Brasil, a América do Sul e a Cooperação Sul-Sul

Tabela 1: Temas de política internacional abordados em cúpulas do Mercosul e países associados (2003-2012) Tema

Abordagem

Alca

Necessidade de que os temas agrícolas, em especial as distorções provocadas pelos subsídios, sejam matéria de discussão do projeto, com vistas a alcançar o equilíbrio nas negociações

Armas de destruição em massa

Compromisso com o desarmamento, a não proliferação e o uso pacífico da energia nuclear, com apoio à resolução 1540/2004¹² do CSNU, bem como ao Tratado de Não Proliferação Nuclear

Crise financeira de 2008

Responsabilização dos países desenvolvidos pelo estopim da crise, com enfoque na necessidade de reforma, de fortalecimento da legitimidade, de capitalização e de aumento de recursos das instituições financeiras internacionais

Cuba

Repúdio ao bloqueio econômico, comercial e financeiro, por entender que é contrário aos princípios da Carta das Nações Unidas e contravém as regras do direito internacional

Direitos humanos

Nesse caso, costumam aparecer nos comunicados como valores e princípios a serem respeitados e promovidos. De uma forma mais específica, a questão apareceu em certas ocasiões relacionada às ditaduras militares que vigoraram na região no passado recente, voltada aos direitos à memória e à verdade

Malvinas

Respaldo aos legítimos direitos da Argentina na disputa de soberania relativa à questão das Ilhas Malvinas. Rechaço à pretensão de considerar as ilhas como países e territórios aos quais se possam aplicar a Quarta Parte do Tratado de Funcionamento da União Europeia e as Decisões de Associação de Ultramar da União Europeia

Proíbe, entre outras medidas, países de apoiarem atores não estatais que busquem desenvolver, adquirir, industrializar, possuir, transportar, transferir ou usar armas nucleares, químicas ou biológicas e seus meios de entrega, em particular para objetivos terroristas. 11

A Venezuela, particularmente, acabou iniciando um processo de adesão plena ao bloco em 2006, o qual se concretizou em 2012, na ocasião da suspensão temporária do Paraguai. 10

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Migrantes

Visão não discriminatória, independente da condição do migrante e de sua família, na busca da garantia, do respeito e da promoção de seus direitos humanos

Mudanças climáticas

Abordagem inserida no contexto da Convenção Marco das Nações Unidas sobre Mudança Climática (CMNUMC) e do Protocolo de Quioto, com respeito ao princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas e respectivas capacidades

Objetivos de Desenvolvimento do Milênio

Para que sejam alcançados, enfoque na necessidade de contar com projetos e recursos regulares e previsíveis de cooperação por parte dos países desenvolvidos, de maior acesso de seus produtos de exportação aos mercados internacionais, bem como da criação de mecanismos inovadores de financiamento

Palestina

Apoio ao direito do povo palestino de constituir um Estado, com base nas linhas de 1967, vivendo lado a lado com o Estado de Israel

Problema mundial das drogas

Enfoque integral e dentro do princípio da responsabilidade comum e compartilhada (regional e global), com respeito ao direito internacional

Propriedade intelectual

Visão incorporada ao desenvolvimento e às políticas públicas, tendo preocupação com relação a direitos sobre recursos biológicos e/ou conhecimentos tradicionais a eles vinculados

Reforma da ONU

Compromisso com uma reforma ampla, integral e urgente, que permita a democratização das instâncias decisórias internacionais. Importância de continuar envidando esforços no sentido de promover a necessária reforma do CSNU, tornando-o mais democrático, representativo e transparente

Rodada Doha

Enfoque vinculado ao desenvolvimento. Condenação de barreiras tarifárias, de apoio doméstico e de subsídios à exportação por parte dos países desenvolvidos a produtos agrícolas, os quais distorcem o comércio internacional e impedem o avanço do sistema multilateral

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O Brasil, a América do Sul e a Cooperação Sul-Sul

Terrorismo

O combate a esse flagelo deve se desenvolver em conformidade com o direito interno e as normas do direito internacional, com pleno respeito à soberania e à integridade territorial dos Estados, o direito internacional humanitário, o direito internacional dos refugiados e os direitos humanos, bem como os compromissos emanados dos convênios e instrumentos internacionais sobre a matéria

Fonte: comunicados conjuntos resultantes de cúpulas semestrais do Mercosul e países associados. Elaboração do autor.

No que se refere às votações de resoluções da AGNU12, os dados presentes na tabela 2 abaixo, representados em termos percentuais pelo gráfico 1, confirmam haver uma tendência mais ou menos contínua e estável de convergência13 entre os quatro Estados Partes originais do Mercosul – subindo de 74% em 2003 para 87% em 2012.

A AGNU é um órgão plural, constituído por todos os países membros da ONU. Desde 1945, quando foi aberta sua primeira sessão, diferentes questões relativas à paz e à segurança internacionais têm sido discutidas em seu âmbito, conforme está previsto no art. 11 da Carta das Nações Unidas. Além disso, a AGNU também tem promovido estudos e recomendações com vistas a fomentar a cooperação internacional no plano político e no domínio econômico, social, cultural, educacional e da saúde, em conformidade com o art. 13 da Carta. Nesse fórum, a cada país cabe um voto com mesmo peso. Dessa maneira, em toda sessão anual da AGNU são aprovadas algumas centenas de resoluções  – em média, três quartos delas sem votação, as demais por maioria absoluta – sobre os mais variados temas da política internacional. Em função dessa amplitude temática, geográfica e temporal, a análise do padrão de votação dos países em resoluções da AGNU se caracteriza como um bom indicador do perfil de inserção política internacional dos países. Para o objetivo deste capítulo, serve ainda como indicador da convergência ou da afinidade de posições e preferências políticas entre nações pertencentes a coalizões ou processos de integração regional no sistema internacional. 12

Considerou-se como “convergente” todos os votos iguais para uma resolução (sim, não ou abstenção), enquanto “divergente” a existência de pelo menos o voto de um país diferente dos demais para a resolução. Existem casos em que, por diversas razões, os diplomatas que representam o país se 13

227

Walter Antonio Desiderá Neto

O Brasil, a América do Sul e a Cooperação Sul-Sul

Tabela 2: Comportamento dos votos dos países do Mercosul na AGNU (2003-2012)

As viradas mais acentuadas no gráfico entre 2003 e 2005 são explicadas: a) no decréscimo inicial na ordem de 6% na convergência entre 2003 e 2004, pela agenda do contexto internacional, na qual, apesar da eliminação de divergências em duas resoluções, surgiram seis desacordos em questões conjunturais sobre temas variados; b) no aumento posterior de 69% para 82% de 2004 para 2005, em parte pela eliminação daquelas questões conjunturais, em parte pela convergência em alguns casos, destacando-se o entendimento sobre o caso do Golã Sírio. A tabela 3 abaixo, na qual se encontram as ocorrências em que cada país do bloco é o responsável pela divergência14, apresenta uma mudança importante nesse período com relação aos anos 1991-2002: redução da participação argentina de 53% para 36% dos casos, tornando a distribuição entre os países menos desigual. Dessa forma, nota-se que, de fato, a Argentina pós-crise, a partir dos governos de Néstor Kirchner e Cristina Fernández de Kirchner, experimentou um giro em sua política externa que se traduziu em maior aproximação com os parceiros regionais em suas perspectivas. Isso se deve, em grande medida, aos desentendimentos dessa administração com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que levaram o país a se afastar consideravelmente dos Estados Unidos – rompendo as “relações carnais” com a superpotência outrora propostas no governo Menem.

Ano

Convergente

Divergente

Total

2003

56

20

76

2004

50

22

72

2005

61

13

74

2006

75

12

87

2007

65

12

77

2008

61

12

73

2009

58

11

69

2010

53

9

62

2011

56

9

65

2012

59

9

68

2003-2012

594

129

723

Fonte: Strezhnev e Voeten (2013). Elaborada pelo autor. Gráfico 1: Percentual de convergência em votações na AGNU – Mercosul (2003-2012)

Tabela 3: Quantidade de casos em que cada país do Mercosul é responsável pela divergência no bloco em votações na AGNU (2003-2012)

Fonte: Strezhnev e Voeten (2013). Elaborado pelo autor.

País

Casos

%

Argentina

46

36%

Brasil

34

26%

Uruguai

18

14%

Paraguai

9

7%

Em outras palavras, esses dados se referem à quantidade de casos em que determinado país foi o único a votar de maneira diferente dos demais naquele período. 14

ausentam no momento da votação e o país não vota para a resolução (voto ausente). Essas ausências não foram consideradas como divergências.

228

229

Walter Antonio Desiderá Neto

Pares de países

22

17%

TOTAL

129

100%

O Brasil, a América do Sul e a Cooperação Sul-Sul

Gráfico 2: Quantidade de casos por tema em que cada país do Mercosul é responsável pela divergência no bloco em votações na AGNU (2003-2012)

Fonte: Strezhnev e Voeten (2013). Elaborada pelo autor.

O gráfico 2 abaixo separa por temas15 os casos em que cada país é responsável pela divergência. Enquanto a Argentina se absteve em determinadas resoluções sobre desarmamento nuclear (enquanto os demais países votaram a favor), houve uma redução de casos sobre Palestina/Oriente Médio em comparação com o período anterior16. O principal tema de discordância do Brasil, por sua vez, foram direitos humanos. Metade dos casos se refere à reedição anual de uma resolução em que é afirmado o impacto da globalização sobre a completa fruição dos direitos humanos; e a outra metade se deve a resoluções em que países são acusados de desrespeitá-los (Turcomenistão, Congo, Irã, Bielorrússia, Coreia do Norte e Mianmar)17. Por fim, quase todos os casos sobre Palestina/Oriente Médio em que o Uruguai responde pela divergência no bloco regional se referem a resoluções reeditadas anualmente em que são abordadas as atividades do Comitê para os Exercícios Inalienáveis do Povo Palestino18. O tema “Sistema ONU” se refere a questões ou assuntos que se relacionam com a criação ou modificação dos poderes e funções de qualquer um dos órgãos da ONU. A AGNU tem prerrogativa para fazê-lo, segundo o art. 10 da Carta das Nações Unidas. O tema “Questão nuclear”, por sua vez, envolve desarmamento, não-proliferação e uso pacífico da tecnologia nuclear. 15

De 1991-2002, dos casos em que a Argentina era responsável pela divergência no bloco, 27% se concentravam em resoluções que versavam sobre Palestina/Oriente Médio, o que é explicado pelo seu alinhamento automático com os Estados Unidos nessas questões. Ressalte-se ainda, para o reforço dessas posições, a influência do ataque à Embaixada de Israel em Buenos Aires de 1992 e do carro-bomba que destruiu a sede da associação israelita Amia na mesma cidade em 1994.

Fonte: Strezhnev e Voeten (2013). Elaborada pelo autor.

A tabela 4 abaixo contém a distribuição por temas de todos os casos divergentes de 2003 a 2012. Em razão de um número considerável de resoluções sobre direitos humanos e questão nuclear em que o Brasil e a Argentina divergem dos demais, esses dois temas juntos respondem por mais da metade das discordâncias, seguidos de Palestina/Oriente Médio, em boa parte decorrente dos casos uruguaios. Tabela 4: Quantidade de casos por tema em que há divergência entre os países do Mercosul em votações na AGNU (2003-2012)

16

O Brasil se absteve e os demais votaram a favor. A diplomacia brasileira evita assinar resoluções nas quais países sejam acusados de desrespeitar direitos humanos, apontando que os países desenvolvidos têm duplo comportamento nessa matéria – acusam os demais, mas têm problemas domésticos. 17

18

Tema

Casos

Parcela correspondente

Direitos Humanos

42

33%

Questão nuclear

34

26%

Palestina / Oriente Médio

25

19%

Desenvolvimento

13

10%

Controle de armamentos

7

5%

Sistema ONU

5

4%

Uruguai se abstém, os demais votam a favor.

230

231

Walter Antonio Desiderá Neto

Segurança

3

2%

Meio ambiente

0

0%

TOTAL

129

100%

Fonte: Strezhnev e Voeten (2013). Elaborada pelo autor.

A tabela 5 abaixo apresenta a divergência dentro de cada tema para os países do Mercosul. Sua função é verificar se a distribuição dos temas na tabela 4 apenas reflete a composição das frequências temáticas de todas as resoluções colocadas para votação ou se realmente a divergência é mais frequente nos primeiros temas da lista. De uma forma geral, as posições dos temas nas duas tabelas não apresentam grandes alterações, salvo o caso das resoluções sobre o sistema ONU, que aparecem em terceiro lugar na tabela 5. De toda forma, por se tratarem de questões administrativas em que posições mais gerais de política externa não estão em jogo – composição do pessoal do Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, por exemplo –, a análise realizada até aqui não é prejudicada. Tabela 5: Percentual de divergência dentro de cada tema entre os países do Mercosul em votações na AGNU (2003-2012) Tema

Percentual

Direitos Humanos

28%

Questão nuclear

26%

Sistema ONU

17%

Palestina / Oriente Médio

14%

Segurança

14%

Desenvolvimento

13%

Controle de armamentos

8%

Meio ambiente

0%

Fonte: Strezhnev e Voeten (2013). Elaborada pelo autor.

232

O Brasil, a América do Sul e a Cooperação Sul-Sul

Por fim, um dado adicional é merecedor de nota no exame do desempenho do Mercosul como coalizão internacional nesse período: a conquista de dois cargos importantes em organizações internacionais. Em 2011, José Graziano da Silva foi eleito diretor-geral da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, sigla em inglês). Posteriormente, em 2013, o embaixador brasileiro Roberto Azevêdo foi eleito diretor-geral da OMC. Em ambos os casos, foi a primeira vez que um latino-americano conseguiu conquistar o posto. Contribuíram para as duas conquistas: a liderança brasileira no processo de integração sul-americana19; a visibilidade da campanha mundial contra a fome lançada pela diplomacia presidencial do governo Lula; e a importância da atuação do Brasil, ao lado da Índia, frente ao G-20 comercial e às demandas pela liberalização dos setores agrícolas. Afinal, são frutos concretos da estratégia de cooperação Sul-Sul e, portanto, da concertação política entre os países do Mercosul.

O Brasil, a América do Sul e a cooperação Sul-Sul: cooperação para o desenvolvimento Nesta seção, optou-se por confrontar a cooperação para o desenvolvimento prestada pelo Brasil aos Estados Partes do Mercosul com as iniciativas globais nesse campo empreendidas pelo país durante o governo Lula – de maneira a revelar semelhanças e especificidades entre os contextos, bem como dimensionar a importância relativa conferida ao entorno regional. Dessa forma, na primeira subseção a comparação do contexto regional é realizada com os projetos de cooperação técnica empreendidos nos três maiores países africanos da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP): Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. O objeto de investigação são as grandes áreas temáticas que abrangeram os projetos. No tocante aos dispêndios financeiros, a segunda subseção se dedica a comparar a contribuição brasileira apenas ao Focem com Ressalte-se que o concorrente de Roberto Azevêdo era mexicano, mas os países sul-americanos votaram no candidato brasileiro. 19

233

Walter Antonio Desiderá Neto

O Brasil, a América do Sul e a Cooperação Sul-Sul

o valor da assistência que os parceiros do Mercosul receberam das nações desenvolvidas, estas com base em dados do próprio Focem e da OCDE. Apenas para o ano de 2010, em função da disponibilidade dos dados, também se comparou a presença dos recursos da cooperação brasileira para o desenvolvimento no Mercosul e nos três maiores países africanos da CPLP com a prestada pelos países da OCDE às mesmas nações, utilizando dados disponibilizados pelo Ipea e pela ABC (2013), além dos dados da OCDE.

Brasil no combate a doenças tropicais, como a dengue e a malária. Com os parceiros regionais, observou-se nos três casos a instalação, pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), de Bancos de Leite Humano em hospitais. Ademais, com o Uruguai e também com Moçambique, o Brasil empreendeu capacitações relacionadas ao combate à epidemia HIV/Aids, por exemplo. Com relação à capacitação profissional, o Brasil, por meio do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), desenvolveu em parceria com estes países centros binacionais de formação profissional e de ensino técnico. O objetivo desses centros foi transferir capacidades brasileiras desenvolvidas para a especialização da mão-de-obra local em alguns setores da economia, como turismo e alimentos. Os projetos de cooperação em agropecuária, executados por intermédio principalmente da Embrapa, caracterizaram-se pela assistência técnica nas áreas do agronegócio e de biocombustíveis. A similaridade geográfica entre esses países, por se encontrarem em regiões tropicais e subtropicais, a depender dos casos, fez aumentar a lista de contribuições a oferecer pelo Brasil. Por fim, os casos de apoio ao governo local variaram de acordo com as necessidades dos parceiros, contando com a participação de uma diversidade maior de instituições públicas brasileiras. São exemplos: fortalecimento da gestão do patrimônio cultural em Angola; interoperabilidade de governo eletrônico na Argentina; fortalecimento da Assembleia Popular Nacional de Guiné-Bissau; apoio à instalação do Sistema Nacional de Arquivos do Estado de Moçambique; modelagem de política postal no Paraguai; e fortalecimento da capacidade institucional em vigilância sanitária no Uruguai. Do ponto de vista bilateral, portanto, apesar de haver diferenças nos projetos de cooperação técnica de acordo com as necessidades locais das contrapartes, o Brasil baseou suas iniciativas na qualidade de suas próprias capacidades domésticas. Valendo-se de similaridades geográficas e culturais, exportou suas práticas mais bem-sucedidas para manter parcerias duradouras com os sócios do Mercosul e com os maiores países africanos da CPLP. Dessa forma, buscou ainda, de forma solidária, conquistar prestígio internacional.

Cooperação técnica com países do Mercosul e com os três maiores países africanos da CPLP Com base em dois catálogos publicados pela ABC (2010, 2010a), foram comparados os projetos bilaterais de cooperação técnica para o desenvolvimento empreendidos pelo Brasil nos países do Mercosul com os colocados em prática nos três maiores países africanos da CPLP  – tendo como critério as áreas temáticas que abrangem. Cumpre salientar que esses catálogos versam sobre os projetos em negociação, em execução ou executados no período entre 2006 e 2010. Ainda que esses projetos sejam um recorte do universo da cooperação técnica, eles podem ser considerados uma amostra representativa para o governo Lula (2003-2010) como um todo, uma vez que os catálogos foram organizados pela própria agência brasileira, traduzidos em quatro idiomas, com objetivo publicitário de expor as principais áreas de atuação do país no campo da cooperação para o desenvolvimento no período em relevo. Afinal, a análise dos projetos presentes nos catálogos revela que, seja de um lado, com Argentina, Paraguai e Uruguai, seja de outro lado, com Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, mais de dois terços das iniciativas corresponderam em ambos os grupos às áreas de saúde, capacitação profissional, agropecuária e apoio ao governo. Portanto, considerando as iniciativas bilaterais, não houve diferenças significativas nos âmbitos sul-americano e africano quanto às áreas temáticas abrangidas pelos projetos. No caso dos projetos bilaterais de cooperação em saúde, entre outras iniciativas, em ambos os contextos geográficos houve exportação de políticas públicas do Ministério da Saúde do 234

235

Walter Antonio Desiderá Neto

O Brasil, a América do Sul e a Cooperação Sul-Sul

Contudo, apesar das semelhanças, houve uma importante diferença entre os dois contextos que não pode ser perdida de vista. Enquanto com estes países africanos os projetos de cooperação para o desenvolvimento foram realizados essencialmente pela via bilateral, com os parceiros do bloco regional houve outra via fundamental de relacionamento: os projetos financiados pelo Focem. Por isso, esse tema receberá atenção mais detalhada na seção seguinte.

do Processo de Integração: projetos que atendam à melhoria das instituições do Mercosul e seu eventual desenvolvimento. A composição financeira anual do Focem foi estabelecida no valor de US$ 100 milhões de dólares, integralizados a fundo perdido pelos Estados Partes na seguinte proporção: Argentina, 27%; Brasil, 70%; Paraguai, 1%; e Uruguai, 2%. Por outro lado, a distribuição dos recursos, os quais devem ser utilizados pelos Estados Partes em projetos vinculados aos programas I, II ou III20, ocorre na seguinte proporção: Argentina, 10%; Brasil, 10%; Paraguai, 48%; Uruguai, 32%. Dessa maneira, ficou clara a decisão de transferir recursos dos sócios maiores para as economias menores, com o objetivo de reduzir as assimetrias no bloco por meio da cooperação regional para o desenvolvimento. Em dezembro de 2005, foi aprovado o regimento do fundo, no qual foram determinadas, essencialmente, as regras de cunho técnico para a submissão dos projetos. Ao longo de 2006, essa decisão foi internalizada pelos parlamentos nacionais dos Estados Partes até que, finalmente, em 2007, foi aprovado para o Paraguai o primeiro projeto financiado pelo Focem. Compilando os dados presentes nos projetos aprovados pelo Focem, calcula-se que entre 2007 e 2010, a média de utilização anual do fundo pelos países parceiros do Brasil ocorreu da seguinte forma: Argentina, US$ 4,72 milhões; Paraguai US$ 47,81 milhões21; e Uruguai, US$ 24,2 milhões. Considerando o conjunto dos três sócios22, a distribuição dos recursos entre os programas do fundo ocorreu da seguinte maneira nesse período: 85% para o Programa de Convergência Estrutural, 5% para o Programa de

Projetos e gastos anuais com o Focem Em julho de 2004, o Conselho do Mercado Comum (CMC) criou um grupo de alto nível com a função de propor fórmulas de financiamento para a realização de iniciativas e programas que promovessem a competitividade e a convergência estrutural das economias dos Estados Partes do Mercosul. Como resultado do trabalho desse grupo, em dezembro de 2004 foi estabelecido o Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem). Em junho de 2005, as regras de funcionamento do Focem foram pontuadas. Com o objetivo de estabelecer critérios para a seleção dos projetos que seriam financiados, quatro programas foram criados no interior do fundo: I) Programa de Convergência Estrutural: projetos que contribuam para o desenvolvimento das economias menores e regiões menos desenvolvidas, incluindo o aprimoramento dos sistemas de integração fronteiriça e dos sistemas de comunicação em geral; II) Programa de Desenvolvimento da Competitividade: projetos que contribuam com a produtividade no Mercosul, incluindo processos de reconversão produtiva e trabalhista que facilitem a criação de comércio e projetos de integração de cadeias produtivas ou de fortalecimento da institucionalidade pública e privada nos aspectos vinculados à qualidade da produção, bem como pesquisa e desenvolvimento de novos produtos e processos produtivos; III) Programa de Coesão Social: projetos que contribuam para o desenvolvimento social, em particular em zonas de fronteira, podendo incluir projetos de interesse comunitário nas áreas de saúde pública, redução da pobreza e desemprego; IV) Programa de Fortalecimento da Estrutura Institucional e 236

20

Apenas 0,5% dos recursos do Focem se destinam ao programa IV.

Essa média foi calculada sem contar o projeto 03/10, “Construção da Linha de Transmissão 500 kV Itaipú  – Villa Hayes, da Subestação Villa Hayes e da ampliação da Subestação Margem Direita Itaipu”, o qual foi feito em regime especial, com aporte extraordinário brasileiro de US$ 300 milhões em 2010. 21

Para os objetivos deste capítulo, não faz sentido incluir nessa listagem os projetos em que o Brasil se posiciona como receptor dos recursos do Focem, uma vez que a análise está interessada em avaliar o desempenho do país como doador da cooperação para o desenvolvimento no bloco regional. 22

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Walter Antonio Desiderá Neto

O Brasil, a América do Sul e a Cooperação Sul-Sul

Desenvolvimento da Competitividade e 10% para o Programa de Coesão Social. Dessa forma, observa-se que, enquanto o Paraguai utilizou os recursos de acordo com seu limite, Argentina e Uruguai subutilizaram suas cotas no período 2007-2010. Ademais, como era de se esperar, o tema da convergência estrutural recebeu destaque, uma vez que essa foi a principal demanda que conduziu à criação do fundo. No Paraguai, o país mais pobre do Mercosul, predominaram projetos de infraestrutura, como pavimentação de ruas e estradas e construção de estruturas de saneamento básico em zonas urbanas. Outros projetos se dedicaram à construção de casas em regiões afetadas pela pobreza extrema, enquanto alguns se voltaram a prestar capacitação profissional a comunidades carentes. Em 2010, com aporte extraordinário brasileiro de US$ 300 milhões, aprovou-se o projeto 03/1023, “Construção da Linha de Transmissão 500 kV Itaipú  – Villa Hayes, da Subestação Villa Hayes e da ampliação da Subestação Margem Direita Itaipu”. Essa obra objetiva transportar a energia de Itaipu até a zona metropolitana de Assunção, oferecendo assim as condições para que lá se desenvolva um polo industrial baseado em mão de obra e energia baratas integrado com as cadeias produtivas brasileiras. No caso do Uruguai, aprovaram-se também dois projetos de reabilitação de estradas e um projeto de interconexão elétrica com o Brasil. Os projetos sociais voltaram-se para o campo do desenvolvimento sustentável e os de capacitação se concentraram em política industrial. A Argentina, por sua vez, também efetuou um projeto de interligação de infraestrutura elétrica com o Uruguai. Seus outros projetos preocuparam-se com o acesso de populações vulneráveis à educação e com a capacitação de exportadores. De maneira a dimensionar a importância dos recursos investidos nesses projetos, os quais são em sua maioria provenientes do Brasil (70%), a tabela 9 abaixo apresenta os dispêndios dos principais doadores da AOD recebida por Argentina, Paraguai e Uruguai entre 2007 e 2010.

Tabela 9: Principais países doadores da assistência oficial para o desenvolvimento recebida por Argentina, Paraguai e Uruguai (2007-2010) – Em milhões de US$ correntes

Apenas para não enviesar o resultado e tornar os valores muito discrepantes, esse projeto não foi incluído no cálculo da média de utilizações de recursos do fundo por cada país. 23

238

Argentina 2007 2008 2009 País Valor País Valor País Valor

País

Espanha 21,63 França 16,80 Japão 15,09

Espanha 29,67 Alemanha 22,12 França 12,75

Japão 40,33 Espanha 22,96 Alemanha 21,93

2007

2008

Espanha 24,14 Alemanha 22,70 França 12,27

2010 Valor

Paraguai País Japão EUA

Valor 28,90 24,90

Espanha 13,26

2009

País Japão EUA

Valor 30,85 29,67

País Espanha Japão

Valor 38,89 37,31

Espanha

23,03

EUA

26,52

2010 País EUA Espanha Coreia do Sul

Valor 28,00 21,84 11,63

Uruguai 2007 2008 2009 País Valor País Valor País Valor

País

Valor

Espanha 12,65 França 2,88 Japão 2,59

Japão Itália Espanha

11,36 8,61 8,41

Espanha França Canadá

9,36 1,36 1,06

Itália Espanha Japão

13,34 12,23 2,43

2010

Fonte: OCDE. Elaborada pelo autor.

À exceção do caso argentino, que pela própria filosofia do fundo tem recepção menor dos recursos, o Focem se caracterizou como o principal provedor da cooperação internacional para o desenvolvimento recebida por Paraguai e Uruguai em todos os anos considerados. Tomando apenas a parte que é financiada pelo Brasil (70%)24, por intermédio somente do Focem (sem contar projetos bilaterais) o país foi o maior provedor de cooperação internacional para o desenvolvimento do Paraguai e do Uruguai em todos os anos analisados (2007-2010)25. Valores: US$ 3,30 milhões (Argentina), US$ 33,46 milhões (Paraguai) e US$ 16,94 milhões (Uruguai). 24

Para 2009, no caso paraguaio, o valor da cooperação espanhola é maior do que o da média calculada da contribuição brasileira. Entretanto, nesse caso, 25

239

Walter Antonio Desiderá Neto

O Brasil, a América do Sul e a Cooperação Sul-Sul

A tabela 10 abaixo, por seu turno, contém dados da cooperação internacional para o desenvolvimento prestada pelo Brasil no ano de 2010 para Argentina, Paraguai e Uruguai, seja bilateral, seja por meio do Focem. A tabela 11 seguinte, por sua vez, apresenta os principais doadores da AOD recebida por Angola, Guiné-Bissau e Moçambique em 2010. A cooperação brasileira prestada a esses três países em 2010 somou US$ 2,6 milhões, US$ 7,8 milhões e US$ 4,9 milhões, respectivamente, de acordo com os dados levantados pelo Ipea e pela ABC (2013). Comparando os dados das duas tabelas, infere-se que o Brasil, em função essencialmente da criação do Focem e por intermédio dele, ocupou o primeiro lugar entre os financiadores da cooperação para o desenvolvimento do Paraguai e do Uruguai também em 2010. Ao mesmo tempo, apesar de importantes esforços, o país ficou longe de conquistar essa posição com, de um lado, a Argentina, que não era o principal destino dos recursos do Focem e tem assimetria estrutural relativamente menor com o Brasil e, de outro lado, com os três maiores países africanos da CPLP, onde já existe vasta presença histórica de recursos das potências tradicionais do Comitê de Assistência para o Desenvolvimento (CAD) da OCDE.

Tabela 11: Principais países doadores da assistência oficial para o desenvolvimento recebida por Angola, Guiné-Bissau e Moçambique em 2010 – Em milhões de US$

Tabela 10: Cooperação internacional para o desenvolvimento prestada pelo Brasil a Argentina, Paraguai e Uruguai em 2010 – em milhões de US$ País Modalidade Argentina Paraguai Uruguai Técnica 1,18 1,10 0,60 Científica e tecnológica 5,31 0,15 0,27 Outras* 2,97 2,70 1,96 Focem 3,30** 33,46** 16,94** TOTAL 12,76 37,41 19,77

* Pode envolver cooperação educacional e assistência humanitária. ** 70% da média anual de utilização do país no período 2007-2010. Fonte: Ipea; ABC, 2013; Focem (www.mercosur.int/focem). Elaborada pelo autor. para que a comparação seja justa, o projeto 03/10 deve entrar na média.

240

Angola

País Valor EUA 54,82 Japão 37,62 Coreia do Sul 18,83

Guiné-Bissau

País Japão Portugal Espanha

Moçambique

Valor País 16,11 EUA 15,72 Portugal 8,29 Reino Unido

Valor 277,91 112,62 104,42

Fonte: OCDE. Elaborada pelo autor.

Afinal, por mais que US$ 100 milhões anuais possam parecer um montante diminuto para um fundo com as grandes pretensões do Focem, deve-se ter em mente que os dados apresentados dimensionam seu verdadeiro tamanho se examinado em comparação com a AOD que os sócios menores do Mercosul recebem das nações desenvolvidas. Dessa maneira, a avaliação desses valores deixa claro como a cooperação para o desenvolvimento e a redução das assimetrias com os sócios menores do bloco regional se tornou uma preocupação importante da política externa brasileira no tratamento do Mercosul a partir da criação do Focem. Portanto, se na estratégia brasileira de cooperação Sul-Sul a exploração de áreas para promoção da cooperação para o desenvolvimento se apresentou recorrentemente como um objetivo paralelo ao da coordenação de posições para a atuação conjunta na política internacional, na América do Sul os rumos perseguidos não se mostraram de forma alguma diferentes. Com efeito, no caso do bloco econômico regional, a prestação de cooperação para o desenvolvimento também foi empreendida, priorizada e institucionalizada  – de maneira inédita. Com as dimensões que ela adquiriu, o Brasil se posicionou desde 2007 como o principal parceiro mundial dos dois sócios menores do bloco nesse campo, à frente mesmo de todas as grandes potências – situação que não logrou conquistar com nenhum outro parceiro com quem tenha cooperado no mesmo período em outra parte do mundo, com destaque para a África lusófona. 241

Walter Antonio Desiderá Neto

Conclusão Desde a aproximação brasileira com a Argentina promovida no governo Sarney em 1985 até a construção da Unasul no final da gestão do governo Lula em 2008, o sentido estratégico conferido pelo Brasil à integração regional passou por importantes mudanças. Ainda que essas alterações tenham ocorrido sucessivamente conforme as diferentes estratégias de projeção externa foram efetivadas pelos governos que chegaram ao poder, deve-se sublinhar que a integração não perdeu em momento algum seu caráter de grande prioridade entre os objetivos nacionais. Nesse sentido, na visão da diplomacia do governo Sarney, em que predominava ainda o paradigma globalista26 de inserção internacional, a aproximação proposta com os argentinos deveria ser realizada gradualmente e com a intervenção estatal na economia. Politicamente, ela servia essencialmente ao objetivo de pacificar as relações bilaterais, deixando para trás desconfianças que se baseavam no nacionalismo dos regimes militares. Dessa maneira, demonstrava também o compromisso mútuo com suas consolidações democráticas, melhorando sua imagem externa. A partir do governo Collor de Mello, no qual ganhou espaço o paradigma americanista, preconizou-se a adoção dos padrões ocidentais capitalistas e a aliança especial com os Estados Unidos como formas de modernizar o país. Ao Mercosul, instituído sob a filosofia do regionalismo aberto, coube duas funções: constituir um espaço de liberalização de fluxos econômicos a partir do qual os setores produtivos nacionais se preparariam para a posterior abertura à competição global; e, como atesta o Acordo 4+1, agregar capacidades para a negociação de uma eventual área de livre comércio hemisférica. Esse paradigma tem três características: 1) crítica nacionalista à matriz americanista da política externa brasileira tradicional; 2) visão das relações econômicas internacionais sob o prisma centro-periferia; 3) concepção teórica realista das relações políticas internacionais, em que se entende que o sistema internacional é anárquico e os países têm o dever de defender seus interesses nacionais (Lima, 1994, p. 35). 26

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A crise política doméstica permitiu que a tradição formuladora em política externa do corpo diplomático brasileiro atenuasse a maneira como esse paradigma viesse se expressar nos anos seguintes na política externa. Assim, preocupado com as investidas americanas, o governo Itamar propôs a criação da ALCSA, insistindo em um ainda maior sentido estratégico de coalizão internacional para a integração regional. Para o Mercosul, imprimiu um relativo retorno ao gradualismo no processo de convergência econômica, buscando resguardar a autonomia de ação do país. Com a chegada do governo Cardoso, a participação nos regimes internacionais, entendida como uma forma de elevar a credibilidade externa do país, passou a ser o eixo central da ação externa, buscando assim seguir abandonando a clivagem Norte-Sul na inserção internacional. Para o bloco econômico, diante das negociações da Alca e da pressão doméstica contra esse projeto, consolidou-se a visão de que o Mercosul contribuía estrategicamente para reforçar a autonomia do país nas relações internacionais, pois representava, ao mesmo tempo, fonte de fluxos econômicos e coalizão internacional contra o avanço do processo hemisférico. Contudo, esse sentido econômico do bloco acabou ficando em suspenso por ocasião da crise que perdurou de 1998 a 2002. Como tentativas de renová-lo, destacam-se o lançamento da Iirsa e a retomada da ideia de América do Sul – que, com alterações, resultaria na formação da Unasul. Paralelamente, o Mercosul desenvolveu ao longo do governo Cardoso a institucionalização do sentido estratégico de ordem política que o bloco exibia desde os contatos Sarney-Alfonsín. Entres as iniciativas efetuadas  – com a participação de Bolívia e Chile  – estão o mecanismo de defesa da estabilidade democrática regional (Protocolo de Ushuaia), a declaração da região como zona de paz (que inclui o estímulo da cooperação militar e da instituição de medidas de fomento da confiança), além do estímulo da atuação global dos membros em coalizão (Fórum de Consulta e Concertação Política do Mercosul – FCCP). Localiza-se no governo Cardoso, assim, o embrião para a conformação do bloco como espaço de governança regional. Mais do que isso, considerando que 243

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posteriormente os demais países andinos vieram se somar a esses e outros instrumentos do Mercosul na condição de associados, essas experiências revelam que, em larga medida, na prática as principais atividades propostas para a Unasul já existiam antes da assinatura do seu tratado constitutivo. Retomando a análise histórica, após a crise de múltiplas dimensões enfrentada pelo Mercosul na virada do milênio, a chegada ao poder do governo Lula em 2003, proferindo pela voz da carismática diplomacia presidencial um discurso crítico sobre as desigualdades sociais e internacionais produzidas pela globalização, e ao mesmo tempo liderando uma assertiva campanha mundial de combate à fome e à pobreza extrema, provocou diversas inflexões na política externa brasileira, algumas mais acentuadas que outras. Fundamentalmente, a nova proposta de inserção internacional se diferenciou das anteriores por se basear em uma estratégia de cooperação Sul-Sul. Com efeito, a execução dessa estratégia, a partir da qual se diversificaram os parceiros do Brasil em direção aos países do Sul, não se caracterizava como um fim em si mesmo. O objetivo último certamente era o desenvolvimento do país, conforme tradicionalmente a corporação diplomática logrou manter ao longo dos anos como o princípio basilar de qualquer concepção de projeção internacional que tenha sido proposta por algum governo. A estratégia, assim, constituiu-se num meio que, apesar de apresentar objetivos próprios, devia servir ao desígnio basilar que guia a ação externa brasileira. O governo Lula, que vivenciou uma crise cambial pelo temor do mercado de que medidas econômicas heterodoxas fossem tomadas com sua eleição, reconhecia a potencialidade do setor externo tanto para contribuir como para constranger o desempenho do país na superação de seus desafios sociais e econômicos. Os formuladores da política externa consideravam que, de um lado, diante dos reveses sofridos pelo multilateralismo com a instauração da Guerra Contra o Terror e, de outro lado, com o aumento da competição econômica global, a qual intensificou a desigualdade Norte-Sul no planeta, o Brasil precisava engajar-se diplomaticamente para se tornar um ator global relevante e influente. Com isso, possuiria mais

capacidades para estimular a multipolaridade e para defender seus interesses numa ordem baseada no multilateralismo – conformando aquele que seria o mundo ideal (multi-multi) para o país defender seus interesses e seguir seu caminho rumo ao desenvolvimento. De fato, a diversificação de parceiros proporcionada pela estratégia de cooperação Sul-Sul, acompanhada pelo excelente desempenho de alguns indicadores econômicos e sociais conquistados pelo país (crescimento econômico, controle da inflação, redução da pobreza e da desigualdade social, aumento das reservas internacionais), foi capaz de alterar o perfil do país e projetá-lo no sistema internacional como potência emergente e ator global. O país impulsionou várias coalizões com diferentes parceiros do mundo em desenvolvimento. Estão na lista o G-20 agrícola na OMC o Fórum de Diálogo Ibas, a Cúpula Aspa, a Cúpula ASA e a Cúpula Brics. Na ocasião desses encontros, também se exploraram domínios nos quais a cooperação para o desenvolvimento pudesse ser introduzida posteriormente pela via bilateral. Embora cada uma tenha apresentado seu enfoque diferenciado de agenda, o protagonismo brasileiro na idealização do conjunto dessas coalizões proporcionou ao país uma ampliação significativa na diversidade de parcerias concretizadas ao redor do planeta. No que concerne ao entorno regional, deve ser lembrado que o sentido estratégico conferido ao Mercosul como coalizão internacional, em primeiro lugar, esteve presente nas visões de todos os governos brasileiros que estiveram à frente do país desde que o bloco surgiu. No entanto, a investigação dos comunicados conjuntos demonstra a ocorrência de coordenação de visões para temas que vão além da agenda econômico-comercial. Os dados dos votos na AGNU – baixa divergência, concentrada em poucos temas – também referendam esse argumento. Uma possível explicação para essa ocorrência se encontra no relançamento do Mercosul efetuado a partir do Consenso de Buenos Aires. A expansão da agenda da integração em direção às dimensões social e política, procurando trazer as sociedades para dentro do processo, exibia também no conjunto de suas metas a ampliação do diálogo a respeito de temas de interesse comum da

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agenda política global, de forma a coordenar as posições de política externa. Não se pode deixar de mencionar como fator explicativo, adicionalmente, a convergência de visões político-ideológicas dos governos no poder dos Estados Partes desde as eleições de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil (2003), Néstor Kirchner na Argentina (2003), Tabaré Vázquez no Uruguai (2005) e, um pouco mais tarde, Fernando Lugo no Paraguai (2008). O tratamento do bloco como destino da cooperação para o desenvolvimento, por sua vez, é inédito na história da política externa brasileira para o Mercosul. A partir da criação do Focem, quando foi instituído o compromisso brasileiro de contribuir anualmente com US$ 70 milhões para o financiamento de projetos para a redução das assimetrias no bloco, alterou-se significativamente a concepção que vinha sendo atribuída ao processo regional. Em outras palavras, o Mercosul deixou de ser idealizado apenas como um ambiente no qual as empresas brasileiras se preparavam para a competição global, para se transformar também num espaço em que o Brasil, ao contribuir com o desenvolvimento dos sócios menores, passaria a construir parcerias duradouras – visando integrar cadeias produtivas, por exemplo  – e conquistar prestígio internacional. Em decorrência, serviria de insumo para o reconhecimento como potência emergente que cumpre com suas responsabilidades regionais.

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EXPERTISE, DISPUTA POLÍTICA OU SOLIDARIEDADE? VARIAÇÕES SOBRE O ENGAJAMENTO DA SOCIEDADE CIVIL BRASILEIRA NA COOPERAÇÃO SUL-SUL Gonzalo Berrón* Maria Brant**

Introdução Muito se tem escrito sobre o novo papel assumido pelo Brasil nos últimos doze anos no universo da cooperação internacional para o desenvolvimento, ou seja, sobre a vontade do governo brasileiro de dar um sentido próprio aos esforços de política pública voltados para a as relações com países de igual ou menor nível de * Doutor e Mestre em Ciência Política pela USP, Diretor de Projetos da Fundação Friedrich Ebert – Brasil, Fellow do Transnational Institute (Holanda) e assessor da Secretaria da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip). Membro do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GRRI). Seu último artigo publicado foi “Um tratado que obrigará às transnacionais: a via expressa para a defesa dos direitos humanos”, Papeles, Nº127, Otoño 2014, Madrid. ** Maria Abramo Caldeira Brant é formada em relações internacionais pela PUC-SP e mestre em direitos humanos pela LSE (London School of Economics and Political Science). É diretora do INCIDE (Instituto de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento).

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desenvolvimento, muitos deles localizados no que pode ser chamado de Sul Global. As reflexões giram em torno da apropriação e da prática da ideia de cooperação Sul-Sul, dos conceitos de cooperação estruturante e cooperação técnica, assim como da solidariedade, do imperativo da cooperação “on demand” como forma de respeito aos interesses do país parceiro e, é claro, da intenção de compartilhar com outros povos pobres as fórmulas de políticas sociais  – saúde, educação, combate à fome, distribuição de renda etc. – e produtivas que tiveram sucesso na luta contra a pobreza e outras mazelas socioeconômicas no Brasil. Os debates sobre o tema versam também sobre os sucessos e, principalmente, sobre os desafios enfrentados por essa política: a fragilidade do órgão responsável (ABC), a dispersão institucional e multiplicidade de agências estatais envolvidas na cooperação, os entraves legais para as doações e transferências de fundos, os dilemas sobre os princípios ou condicionalidades da cooperação e, mais recentemente, sobre a crise produzida pelos cortes orçamentários. Tem sido crescente o interesse também de organizações e movimentos sociais brasileiros pela nova relevância dessa política de Estado. Suas motivações são diversas e encontram expressão em várias formas de envolvimento na cooperação internacional promovida pelo Brasil. Dentre as motivações, destacam-se: 1 – O desejo de expandir sua atuação para o plano internacional como fornecedoras de expertise ou serviços específicos vinculados ao tipo de atividade desenvolvido no Brasil – ou a demanda por esse know-how –, no âmbito da cooperação oficial; 2 – Uma crescente preocupação com os impactos das ações do Estado brasileiro  – e de empresas e bancos envolvidos a partir da ação deste – sobre as populações, o ambiente e as políticas dos Estados parceiros; 3 – Um interesse “político” no debate global sobre a cooperação internacional para o desenvolvimento, incluindo o destino e as modalidades da cooperação brasileira; e, finalmente, muitas vezes vinculada ao interesse anterior, 4  – Uma motivação política associada a uma visão, que podemos chamar “internacionalista”, de disputa política global. Alguns think tanks e entidades de pesquisa também têm contri-

buído para esse debate, muitas vezes entrando como parceiros de outras organizações de cunho mais ativista. Cabe lembrar que, ainda que essas motivações tenham ensejado novas formas de atuação no tema, elas estão inseridas num histórico de significativo engajamento de organizações e movimentos sociais brasileiros tanto nos debates domésticos sobre a política externa brasileira, quanto nos debates internacionais, promovidos no âmbito da ONU, nas articulações de solidariedade setoriais (trabalhadores, camponeses, ambientalistas, mulheres, etc.) e em seus foros específicos (por exemplo, OIT e FAO), assim como nas mobilizações de contestação mundial às formas da globalização neoliberal a partir da década de 1990 (Alca, OMC). Neste artigo, procuraremos mapear as principais formas de atuação de organizações da sociedade civil (OSCs) em relação às motivações identificadas acima. Além disso, com o intuito de contribuir de forma específica ao debate, nos aprofundaremos nos casos da atuação do MST – Via Campesina e do Instituto de Cooperação da CUT, experiências inéditas e ainda pouco analisadas na literatura sobre o tema. É com base nessas duas atuações que propomos a ideia de “outra cooperação”, uma cooperação que é feita essencialmente fora dos canais institucionais dos Estados, que é expressão de um tipo de cooperação solidária internacional e que, de uma forma ou de outra, dialoga com o modelo adotado pelo Estado brasileiro.

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Engajamento das organizações sociais na execução de projetos de cooperação internacional. O envolvimento da sociedade civil nas ações de cooperação internacional por vias oficiais se dá pelo menos desde o início deste século, na esteira do fenômeno de multiplicação e fortalecimento doméstico de organizações não governamentais nos anos 1990. Na vasta maioria dos casos, a atuação dessas organizações consiste na exportação de metodologias de trabalho ou “tecnologias sociais” a países em desenvolvimento, principalmente lusófonos. Outra categoria de atores não governamentais envolvida na 253

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cooperação técnica é a de instituições de ensino, não apenas em atividades de treinamento direto, mas principalmente no apoio ao estabelecimento de centros de formação. A partir do ano 2000, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, a Alfabetização Solidária e a Fundação Roberto Marinho, por exemplo, começam a executar projetos educacionais em Timor Leste, e o Senai abre seu primeiro centro de formação profissional fora do Brasil, em Angola (Agência Brasileira de Cooperação, 2015). Nos anos seguintes, a AlfaSol passou a atuar também em Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Guatemala, e o Senai, em todos esses países e também no Paraguai, na Jamaica, no Peru e na Guiné Bissau (Agência de Notícias CNI, 2014). A organização Missão Criança também introduziu projetos-piloto do programa Bolsa Escola em Moçambique, São Tomé e Príncipe, Tanzânia e Guatemala1. A partir da segunda metade do primeiro Governo Lula, intensifica-se a cooperação prestada pelo governo brasileiro, mas parece ser menor o envolvimento de organizações da sociedade civil em projetos executados via ABC. Organizações sociais brasileiras passam a atuar principalmente em projetos de cooperação triangular ou via órgãos multilaterais. Na Guiné Bissau, por exemplo, Instituto Elos e Fundação Gol de Letra executam projetos de educação com a Unesco e a ABC (Cooperação..., 2013). No Haiti, onde o Brasil coordena a missão de manutenção da paz da ONU desde 2004, a Viva Rio mantém centros educacionais comunitários de atendimento direto a crianças e adolescentes, financiados pela Minustah (Schmittz, 2013). O envolvimento de atores não governamentais na cooperação oficial, contudo, não desapareceu completamente. Na Argélia, por exemplo, a Associação Brasileira de Gemas e Joias (Abragem) introduziu recentemente uma escola de lapidação e ourivesaria em Tamanrasset, e a Sociedade Brasileira de Queimaduras executou

projeto para aperfeiçoar o atendimento a queimados no país. Cabe notar que não apenas organizações sociais são envolvidas na cooperação com a Argélia, mas também instituições de ensino superior – no caso, a Universidade Federal de Viçosa, que executa uma série de projetos de treinamento de agricultores argelinos e outros profissionais relacionados ao manejo agrícola (ABC). Esse também foi o caso da introdução de um programa de terapia comunitária em Moçambique, no qual a Universidade de Brasília e a organização social Ibrap foram responsáveis pela execução do projeto2. Além daqueles projetos executados via ABC, organizações muitas vezes realizam projetos de cooperação diretamente com órgãos governamentais. A Secretaria Geral da Presidência, por exemplo, tem acordos firmados com a África do Sul e Moçambique com o objetivo de fortalecer a agricultura familiar nesses países. Executados pelo Ibase e pelos Movimentos Popular Camponês e de Mulheres Camponesas do Brasil, os projetos têm como objetivo capacitar camponeses, por meio da Cooperação Participativa Camponesa (CPC), na recuperação e uso de sementes tradicionais/ crioulas de cereais, de hortaliças e de espécies de adubos verdes em sistemas agroecológicos3. Outra forma de envolvimento de atores não governamentais na cooperação oficial é como financiadores em projetos de cooperação trilateral. Em 2011, por exemplo, a Fundação Bill e Melinda Gates doou, via ABC, US$ 2,5 milhões à Plataforma África-Brasil de Inovação Agropecuária, desenvolvida pela Embrapa, para o desenvolvimento de projetos de pesquisa conjuntos entre Brasil e países africanos.

GUIMA, Daniela. Missão Criança vai ao Exterior. Responsabilidade Social http://www.responsabilidadesocial.com/noticias/missao-crianca-vai-ao-exterior Acesso em: 5 fev. 2015.

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Finalmente, uma forma particular de envolvimento na cooperação é exercida pelo Instituto Lula, organização fundada pelo ex-presidente com a missão de estimular “o exercício pleno da democracia e a inclusão social aliada ao desenvolvimento econômico” em outros países, sendo seu principal eixo de atuação a cooperação do Brasil com a África e a América Latina. Na América Latina, o Instituto foca em ações de incentivo à integração regional e, na África, o incentivo a investimentos no continente africano e o intercâmbio “social, político e cultural entre instituições, fundações, empresas e personalidades do Brasil e dos países da África”. Na prática, o Instituto atua como uma “ABC informal”, dando continuidade aos princípios que nutriram a política de cooperação do Brasil nos mandatos do presidente Lula. Essencialmente, recebe delegações de países africanos em busca de cooperação em programas sociais e media seu contato com órgãos governamentais, além de servir de ponto de contato entre empresários brasileiros e africanos.

marco regulatório próprio. As ações de cooperação do país não são, em sua maior parte, originadas de diretrizes e prioridades pré-estabelecidas pelo governo brasileiro e, sim, de acordo com o próprio Ministério das Relações Exteriores (MRE), realizadas sob demanda de outros países em desenvolvimento (demand driven). A cooperação sob demanda é um dos princípios da cooperação Sul-Sul (CSS), elaborados por países do Sul em reação a uma percebida relação de assimetria entre doadores do Norte e os beneficiários no Sul  – ou entre países ditos desenvolvidos e países em desenvolvimento  – e adotados pelo Brasil em seu discurso sobre a cooperação internacional. Assim, o governo brasileiro rejeita o título de doador, preferindo ser chamado de “parceiro no desenvolvimento” dos países onde atua, e afirma basear-se na solidariedade com outros países e no princípio constitucional da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade em suas ações de cooperação. Diz também acolher, ao realizar ações de cooperação técnica, os princípios da CSS segundo os quais a cooperação não pode impor condicionalidades e nem ter fins lucrativos e deve usar prioritariamente recursos locais4. Esses princípios, contudo, não são traduzidos em diretrizes, salvaguardas ou procedimentos específicos para garantir que estejam sendo seguidos. Além disso, com exceção das atividades de cooperação técnica, capitaneadas pela ABC (Agência Brasileira de Cooperação), a cooperação brasileira é realizada de forma descentralizada, por uma série de agências e órgãos governamentais atuando de forma independente. Se, por um lado, essas características trazem vantagens em relação ao modelo “tradicional” de cooperação ou ajuda ao desenvolvimento realizada por países do Norte, por outro, dificultam o trabalho de incidência da sociedade civil. Assim, grande parte das organizações que desejam influenciar o governo em suas ações de cooperação – exigindo transparência

Intervenção derivada dos impactos sociais e ambientais em terceiros países No que talvez seja a forma de engajamento mais expressiva da sociedade civil na cooperação internacional brasileira, atuam movimentos e organizações preocupados com os impactos sociais e ambientais da presença do Brasil em outros países, principalmente no que diz respeito a populações mais vulneráveis. Essa atuação se dá em duas frentes principais, e, muitas vezes, simultâneas: (a) ações de advocacy, ou incidência; (b) denúncia de violações cometidas pelo Brasil ou por empresas atuando com apoio governamental. Em certas ocasiões, essas iniciativas envolvem, como veremos mais adiante, ações junto a organizações dos países parceiros. Ações de “advocacy”, ou incidência, junto ao governo brasileiro Cabe notar, em primeiro lugar, que a atuação do Brasil como doador, ou parceiro de outros países, na cooperação internacional para o desenvolvimento é relativamente recente, e não é regida por 256

Ver MINISTERIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Cooperação técnica http://www.itamaraty.gov.br/temas/cooperacao-tecnica Acesso em: 5 fev. 2015. e AGENCIA BRASILEIRA DE COOPERAÇÃO. Programa de Treinamento para Terceiros paises http://www.abc.gov.br/treinamentos/informacoes/ABC.aspx Acesso em: 5 fev. 2015. 4

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na divulgação de informações sobre a cooperação (Inesc)5, diálogo com populações afetadas (Fase) ou respeito aos princípios constitucionais de direitos humanos (Conectas), por exemplo  – acabaram tendo que se voltar, primeiro, ao problema da fragilidade institucional da cooperação. Em anos recentes, organizações como Abong, Articulação Sul, Brics Policy Centre, Incide e o próprio Inesc têm se dedicado a produzir estudos e debates para informar esse trabalho de incidência. Abong, Articulação Sul, Incide e FES, por exemplo, têm promovido desde 2013 uma série de debates com pesquisadores, ativistas, funcionários públicos e outros stakeholders diretamente envolvidos com a cooperação internacional brasileira, intitulada O Brasil como Ator na Cooperação Internacional para o Desenvolvimento, com o objetivo de compartilhar experiências e reflexões visando incidir nos debates e iniciativas governamentais sobre o tema. O primeiro  debate explorou o atual estado da  cooperação promovida pelo Brasil, buscando abordar o processo de  cooperação internacional para o desenvolvimento como política pública; o segundo centrou-se nas potencialidades e desafios dos modelos atuais de cooperação e o terceiro, nos princípios e procedimentos a pautar a cooperação brasileira para o desenvolvimento. Além do trabalho de incidência junto ao governo brasileiro, algumas organizações têm procurado influenciar politicamente o debate internacional sobre a cooperação ou ajuda ao desenvolvimento. Em 2011, organizações da sociedade civil brasileira articularam-se para participar do 4º Fórum de Alto Nível sobre a Eficácia da Ajuda, em Busan (Coreia do Sul). O evento foi um marco porque, pela primeira vez, países da OCDE  – que, por meio de seu Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento, ou DAC, tradicionalmente lidera as decisões sobre a cooperação ou ajuda internacional ao desenvolvimento prestada pelos países do Norte – incluíram a sociedade civil no debate oficial sobre o tema.

Parte do interesse das organizações brasileiras no tema se devia ao fato de mudanças nos fluxos de recursos para a cooperação ameaçarem a continuidade de seu trabalho, tradicionalmente financiado por doadores do Norte. Em 2012, Inesc e Christian Aid publicaram pesquisa indicando a inadequação dos critérios de escolha dos países a receber ajuda (o uso da renda per capita como critério, por exemplo, exclui países onde a renda média é alta, mas com situações de desigualdade extrema, como o Brasil) e nas mudanças de prioridade temática, defendendo a continuidade da cooperação oferecida ao Brasil, apesar dos grandes avanços obtidos pelo país, tanto econômicos quanto políticos.6 O envolvimento das OSCs brasileiras na discussão sobre cooperação internacional, contudo, não se limita ao papel do país como receptor de ajuda. Especialmente nos últimos anos, essas organizações têm procurado influenciar o debate tendo em vista o papel do Brasil como doador – ou, como prefere o MRE, parceiro de outros países em desenvolvimento. Em preparação para a reunião em Busan, um grupo de organizações – Abong, ActionAid Brasil, Articulação SUL, Cebrap, Cfemea, Fase, Gife, Idecri, Inesc, Ibase e Instituto Polis – redigiu uma declaração defendendo “a superação da concepção tecnocrática de eficácia da ajuda” por uma concepção de cooperação para o desenvolvimento “onde também esteja em pauta o modelo de desenvolvimento: não apenas crescimento econômico, mas ampliação das possibilidades humanas, com justiça social e ambiental”. As organizações reclamaram também “uma maior participação da sociedade civil na cooperação internacional do Brasil, tanto como país doador como receptor, com maior publicização das atividades governamentais nesse campo” e incentivaram “o engajamento do governo brasileiro no desenho de uma nova arquitetura de governança global da cooperação internacional para o desenvolvimento.”7

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O envolvimento das OSCs no tema teve continuidade durante a Rio+20, onde um grupo de organizações brasileiras tomou a iniciativa de promover uma conferência paralela, a chamada Cúpula dos Povos, e, mais recentemente, nas discussões sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODSs). No caso dos ODSs, as organizações participaram de eventos organizados pelo governo brasileiro para consultar a sociedade civil antes das discussões oficiais em Nova York em 2014/2015 e também promoveram encontros autônomos para influenciar a posição brasileira, capitaneados pela Abong. A rede vem atuando também como facilitadora da rede internacional Beyond 2015 no Brasil para incidir nas discussões sobre Finance for Development (FfD), em preparação para a terceira conferência sobre o tema, a ser realizada em julho de 2015 na Etiópia.

Conselho Latino-Americano das Igrejas (CLAI), que reúne igrejas e organizações protestantes, e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), católica, por exemplo, organizaram um encontro em Brasília em 2014, reunindo movimentos de atingidos pela mineração de todo o continente. Outras redes de afetados, como o Movimento dos Atingidos por Barragens, têm atuação predominantemente nacional, mas ocasionalmente articulam-se com redes dedicadas ao mesmo tema em fóruns internacionais. Outra frente de atuação de organizações brasileiras é a do monitoramento dos créditos subsidiados concedidos por bancos públicos a empresas brasileiras. Como o BNDES é o principal financiador da internacionalização de grandes empresas brasileiras, a fiscalização de sua atuação tem sido a forma encontrada por algumas organizações para exigir o cumprimento de normas trabalhistas e de direitos humanos por essas multinacionais. A Plataforma BNDES, constituída por cerca de 40 organizações, redes e movimentos sociais, ambientais, indígenas e sindicais, atuou entre 2007 e 2012 exigindo mais transparência e inclusão de critérios socioambientais nas avaliações de crédito do banco. A própria inclusão dessa modalidade na contabilidade oficial da cooperação internacional para o desenvolvimento é, aliás, outra pauta abraçada por algumas dessas organizações. A partir de 2014, o Banco aceitou abrir informalmente um espaço de interlocução com organizações sociais para discutir a sua política de concessão de empréstimos, tanto no nível doméstico quanto internacional. A iniciativa, batizada de Fórum de Diálogo BNDES e Sociedade civil, é facilitada pelo Ibase8. Mais recentemente, organizações de direitos humanos e outras pertencentes à extinta Plataforma BNDES vêm se debruçando também sobre o tema do Banco dos Brics, exigindo que critérios de impacto socioambiental também sejam incluídos nas avaliações do novo banco.

Denúncia de violações cometidas pelo Brasil ou por empresas atuando com apoio governamental Na última década, diversas organizações brasileiras – tais como Ibase, Fase, Inesc, Justiça Global, Pacs, MPA  – têm se engajado com organizações ou grupos de indivíduos e comunidades fora do país afetados por ações de órgãos governamentais ou empresas brasileiras, principalmente grandes mineradoras e construtoras. A Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale, por exemplo, reúne organizações sociais e sindicatos, assim como movimentos sociais, ambientalistas e religiosos do Brasil, Canadá, Moçambique, Peru, Chile, Indonésia e Argentina. Fundada em 2009, a rede monitora e documenta violações de direitos cometidas pela mineradora. As próprias organizações que formam a rede também atuam globalmente por meio de redes internacionais de atingidos por mineradoras. Esse é o caso da Justiça nos Trilhos, que atua nacionalmente apoiando grupos e movimentos afetados negativamente pelas ações da Vale no Brasil, principalmente no Maranhão, e internacionalmente articulando-se com redes tais como o Observatório de Conflitos da Mineração na América Latina (OCMAL). Movimentos religiosos têm ocupado papel relevante na articulação internacional dessas organizações. O 260

IBASE. Avanço no diálogo dialogo/. Acesso em: 5 fev. 2015. 8

http://www.ibase.br/pt/2014/10/avanco-no-

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A “outra cooperação” Com maior força a partir dos anos 2000 – e, no caso sindical, definitivamente nesse último período  – organizações sociais brasileiras, e em particular os movimentos sindical e camponês, têm iniciado práticas de cooperação e solidariedade com parceiros  – iguais – de outros países do Sul. Tendo como característica principal uma inspiração em visões de solidariedade setorial ou de classe, observa-se uma relação de maior autonomia política em relação ao Estado brasileiro, o que não impede que, em ocasiões específicas, existam canais de diálogo, formas indiretas de financiamento, e acordos que envolvem não só organizações mas também parceiros estatais não brasileiros. É essa motivação central que nos permite propor a ideia de “outra cooperação”, uma cooperação proativa que se produz de forma autônoma em relação ao universo das políticas públicas promovidas pelo Brasil. Neste texto, analisamos três iniciativas levadas adiante pelo movimento camponês brasileiro, aglutinado em La Vía Campesina (LVC) Brasil: a cooperação com a Venezuela liderada pelo Movimento de Trabalhadores Sem Terra (MST) que culminou na criação do Instituto Universitário Latino-americano de Agroecologia “Paulo Freire” (Iala); a brigada Dessalines, no Haiti; e a experiência de intercâmbios do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA) no âmbito do Programa de Sementes Crioulas em Moçambique. No campo do sindicalismo, analisamos a criação do Instituto de Cooperação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o que ela significa no universo da cooperação sindical para o desenvolvimento, que, no sentido Norte-Sul, é desenvolvida no mínimo desde a década de 1980. Cooperação camponesa Ao longo dos anos 2000, o MST consolidou sua política internacional de fortalecimento de La Vía Campesina, organização que, nas Américas, foi criada em diálogo com a Coordenação Latinoamericana de Organizações Camponesas (Cloc), mas sem que necessariamente houvesse uma identidade clara entre ambas. Essa 262

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linha de atuação coincidiu com um internacionalismo abrangente construído na resistência contra a Alca – na qual o MST foi grande referência – e o diálogo com as ideias de solidariedade regional e integração dos povos latino-americanos. Foi nesse contexto de resistência e construção de alternativas que as relações com o governo cubano, em primeiro lugar, e com a experiência venezuelana do presidente Hugo Chávez, posteriormente, forneceram um marco de trabalho para a nova etapa que se abriria na região. Em 2007, na Carta emitida pelo 5º Congresso do MST, estabelece-se com clareza que, entre as principais linhas de atuação, estariam a contribuição para a construção de todos os mecanismos possíveis de integração popular Latino-americana, através da Alba – Alternativa Bolivariana dos Povos das Américas” e o exercício “da solidariedade internacional com os Povos que sofrem as agressões do império” (...).9

É esse o contexto político das ações que tratamos agora e que complementam outros conteúdos também presentes nos esforços de cooperação. Em suma, trata-se de uma visão política da região e do mundo, comprometida com o que a Alba representa, que se operacionaliza por meio de ações de cooperação e solidariedade baseadas na prática e nas experiências camponesas no Brasil e alavancadas, ao mesmo tempo, pelo arcabouço que a LVC provê no nível internacional. Segundo as linhas de trabalho sistematizadas no 5º Congresso, a prática defendida inclui as seguintes ações: ƒƒ Combater as empresas transnacionais que querem controlar as sementes, a produção e o comércio agrícola brasileiro. ƒƒ Lutar por um limite máximo do tamanho da propriedade da terra. ƒƒ Defender as sementes nativas e crioulas. Lutar contra as sementes transgênicas. Difundir as práticas de agroecologia e técnicas MST. Carta do 5º Congresso Nacional do MST, http://antigo.mst.org.br/ node/7701, 8 de julho de 2009. 9

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agrícolas em equilíbrio com o meio ambiente. Os assentamentos e comunidades rurais devem produzir prioritariamente alimentos sem agrotóxicos para o mercado interno.

produção agroecológica… a preparação da semente certificada que os mesmos produtores podem desenvolver no sítio sem ter que comprar. Essa é uma forma de se tornar independentes das empresas que as vendem, e nem vão ter que comprar agroquímicos. A gente ensina também como melhorar a produtividade dos seus plantios... a proposta principal é garantir a soberania alimentar. Todos sabemos que a Venezuela tem o seu ‘calcanhar de Aquiles’ na produção de comida13, afirmou o membro do MST.

ƒƒ Fortalecer a articulação dos movimentos sociais do campo na Via Campesina Brasil, em todos os Estados e regiões. Construir, com todos os Movimentos Sociais a Assembleia Popular nos municípios, regiões e estados.10 Dessas experiências, a de maior importância no período seria a desenvolvida na Venezuela. Uma série de encontros entre o MST e o então presidente venezuelano Hugo Chávez, dos quais se destacam a visita de Chávez a um assentamento do MST em Tapes (RS) durante o 5º Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em janeiro de 2005, e o acordo de Barinas, desse mesmo ano, lançaram as sementes para a criação, em 2008, do Instituto Universitário Latinoamericano de Agroecologia “Paulo Freire” (Iala)11 Joaquim Pinheiro, uma das lideranças do MST encarregadas das relações internacionais do movimento, afirma que, em setembro de 2005, um dos coordenadores nacionais do MST foi à Venezuela para assinar o acordo em Sabaneta de Barinas e que “nesse acordo foi estabelecido que contribuiríamos para garantir a soberania alimentar do país, ao ensinar aos camponeses como preparar o solo, a produção das sementes, e a formação e criação da Escola Latino-americana de Agroecologia ‘Paulo Freire’”.12 Na missão, 17 membros do MST organizaram na região de Barinas oficinas de formação para desenvolver a 10

A construção do chamado Núcleo de Desenvolvimento Endógeno conta, segundo Edson Cadore, do MST do Rio Grande do Sul, com a organização e formação dos camponeses como ponto de partida. “Esse terá que ser o primeiro passo para consolidar esse núcleo, e nossa escola de formação poderá contribuir nesse sentido”14. Na região de Sabaneta, os integrantes do MST deram assistência sobretudo na produção de tomates e de sementes, na condição de contratados pelo Ministério da Agricultura. Ainda faz parte do acordo dos sem-terra com a Venezuela a concessão de 120 bolsas universitárias a estudantes brasileiros vindos de movimentos sociais que, divididos entre Caracas e Barinas, estudam medicina e agroecologia.15 Por fim, em 2008 foi criado também em Barinas, o Instituto Universitário Latino-americano de Agroecologia “Paulo Freire” (Iala), un centro de educación universitaria que forma a estudiantes latinoamericanos y caribeños provenientes de la base de los movimientos campesinos, quienes al regreso a sus países, regiones y localidades de origen, contribuirán con el desarrollo endógeno, integral y agroecológico al tiempo que fortalecerán las luchas contra el neoliberalismo, los agronegocios, la depen-

Op. cit.

IALA, Instituto Universitário Latino-americano de Agroecologia “Paulo Freire” (Iala), http://ialainfo.blogspot.com.br/2011/08/blog-post.html, Acesso em: 5 fev. 2015. 11

GUERRA, Claudia. Entrevista a Kima Reis… http://www.ecoportal.net/EcoNoticias/Entrevista_a_Kima_Reis_Movimiento_de_Trabajadores_Rurales_ Sin_Tierra_MST_El_campesino_venezolano_supera_la_dependencia_ agroproductiva Acesso em: 25 jan. 2015. 12

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13

Op. cit.

14

Op. cit.

INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS. O MST em Sabaneta, terra natal de Chávez, http://www.ihu.unisinos.br/noticias/noticias-anteriores/8383-o-mst-emsabaneta-terra-natal-de-chavez, Acesso em: 25 jan. 2015. 15

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dencia en todas sus formas y la depredación ambiental. El trabajo esta directamente orientado hacia el logro de la soberanía alimentaria y la integración solidaria de los pueblos de América Latina, el Caribe y el mundo, en el marco de la Alternativa Bolivariana de los Pueblos de Nuestra América (Alba) (Iala).

A criação do Instituto culminou dessas primeiras atividades que se estenderam por três anos em um processo de desenvolvimento de parceria entre o governo da Venezuela, o MST e organizações camponesas venezuelanas para resolver o problema da escassez de produção de alimentos nesse país. O Governo do Presidente Chávez tinha esse objetivo estratégico claro; segundo um dos principais operadores internacionais da Venezuela, Maximillien Arvelaiz, “podemos nos beneficiar muito com a experiência desenvolvida pelo MST no tema da organização, capacitação e educação”16. Também do lado do MST, o ganho estratégico sempre esteve claro. O Iala é, assim como outras iniciativas implementadas no Brasil e em algumas outras regiões, uma ferramenta internacional para fortalecer a luta camponesa na América Latina toda por meio da capacitação dos seus quadros e lideranças: “El curso de Agroecología tiene como objetivo formar campesinos/as vinculados a los procesos organizativos de La Vía Campesina en la lucha por la reforma agraria y de las comunidades rurales.”17(Iala). Os projetos continuam sendo introduzidos, apesar das recentes crises políticas na Venezuela. Recentemente, um novo acordo entre o MST e o Ministério do Poder Popular para as Comunas e Movimentos Sociais da República Bolivariana da Venezuela ganhou notoriedade devido à repercussão midiática que teve a visita do Ministro Elias Jaua no contexto eleitoral brasileiro. O acordo, dessa vez, contudo, possuía uma natureza que ia além da questão meramente rural para focar mais na contribuição política que o MST poderia fazer ao processo venezuelano: o acordo JARDIM, Claudia. MST inspira projeto venezuelano. http://www.voltairenet. org/article128528.html. Acesso em: 5 fev. 2015

tem por objeto assentar as bases mediante as quais o Ministério do Poder Popular para as Comunas e Movimentos Sociais da República Bolivariana da Venezuela e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) da República Federativa do Brasil realizarão ações para desenvolver programas, projetos e atividades conjuntas com a finalidade de beneficiar as comunidades urbanas e rurais, assim como toda aquela potencialidade em matéria de participação popular, economia comunal e movimentos sociais.18

Brigada Dessalines A Brigada Internacionalista da Via Campesina Brasil no Haiti chegou a esse país em janeiro de 2009 e recebeu o nome de JeanJacques Dessalines, em homenagem a um dos heróis da revolução haitiana que conquistou a independência do país em 1804.  Segundo os ativistas envolvidos, a brigada surge como resposta à cooperação militar por meio da Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti (Minustah), e foi parte da demanda das organizações de LVC no Haiti, entre elas os movimentos camponeses Tet Kole, MPP, MPNKP e Kros. De forma similar ao que ocorreu na Venezuela, mas com atenção à precária situação do Haiti, o centro da atuação da Brigada é a formação voltada para a agroecologia e a organização dos camponeses. Segundo o testemunho de Leonel Silva Ferreira, militante do MST que participou da Brigada em 2010, antes do terremoto, os camponeses haitianos plantavam mandioca, inhame e batata no país inteiro. O terremoto quebrou três cidades grandes do Haiti, incluindo Porto Príncipe, e as pessoas da cidade foram para o campo, comendo as sementes. Fomos para lá, identificamos isso e fizemos um projeto com o governo brasileiro, que mandou 60 toneladas de sementes de arroz, feijão e milho para o Haiti.19

16

IALA, Principios Pedagógicos de la Educación en el IALA. http://ialainfo. blogspot.com.br/2007/03/principios-filosficos-de-la-educacin-en.html Acesso em: 5 de fev. 2015 17

266

MST, Conheça o "ameaçador" acordo bolivariano firmado entre MST e Venezuela, http://antigo.mst.org.br/node/16714 Acesso em: 5 fev 2015 18

COUTINHO JUNIOR, José. Militante do MST relata sua experiência na brigada de solidariedade ao Haiti. MST, 2014. http://www.mst.org.br/2014/07/01/ 19

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Fazem parte do grupo membros do MST e de outros movimentos da LVC na América Latina que receberam, antes da chegada ao Haiti, treinamento na Escola Nacional Florestan Fernandes. O grupo recebeu apoio especial quando o Haiti sofreu o terremoto que matou mais de 200 mil pessoas. Na época, a Brigada chegou a ter 76 pessoas.20 Na atualidade, a Brigada trabalha na região rizicultora de Artibonite, dando aulas de educação ambiental e agroecologia e formando agentes comunitários para a produção de alimentos, além de trabalhar para a capacitação de novas lideranças políticas. Tem sido fundamental também o trabalho para a recuperação do solo e a produção de sementes de legumes, “a fim de combater a dependência do produto importado, assim como viveiros de reflorestamento no país onde a atividade de extração é contínua e o carvão vegetal, a principal fonte de renda alternativa do camponês.”21

O intercâmbio é realizado com a União das Cooperativas Agrícolas de Marracuene – Ucam, no distrito de Marracuene (província de Maputo). A associação é formada por 38 entidades e cooperativas comunitárias da Unac.23 Gilberto Afonso Schneider, militante e técnico em agropecuária do Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA, passou seis meses em Moçambique realizando intercâmbio de conhecimentos técnicos na área de sementes crioulas e foi quem liderou o processo de planejamento, formação, identificação e resgate das sementes, preparando o terreno para um segundo ano de cooperação que envolveu 11 associações de camponeses e aproximadamente 300 pessoas. Serão melhoradas cinco espécies (milho, feijão nhemba, amendoim, mandioca e batatadoce) e mais de 10 variedades diferentes. O informe que relata o primeiro ano da experiência “Recuperação, reprodução, manutenção de sementes nativas  – um intercâmbio entre o MPA e a Unac – Moçambique” menciona o êxito da experiência por meio da enumeração dos resultados obtidos:

Semente Crioula O trabalho em torno da questão da semente como uma dimensão da soberania alimentar é uma das constantes da cooperação iniciada pelos membros da LVC nas diversas experiências, mas, no caso da parceria entre o MPA  – Movimento de Pequenos Agricultores – do Brasil e a Unac – União Nacional de Camponeses – de Moçambique, foi esse o foco principal do intercâmbio. O objetivo é o fortalecimento da soberania alimentar a partir do resgate, da multiplicação, do melhoramento e da conservação de sementes nativas.22

Receberam formação política e técnica mais de 100 camponeses; criou-se um grupo de estudo sobre os sistemas camponeses de produção com foco na questão das sementes, que envolve líderes da Ucam, técnicos da área de desenvolvimento rural da Ucam e camponeses de 11 associações ou cooperativas comunitárias. Todos os campos instalados foram em áreas coletivas, o que possibilitou uma maior aprendizagem por parte dos camponeses. Dos dez campos previstos no planejamento, foram efetivados sete: dois campos de milho, um de feijão nhemba, dois de amendoim e dois campos de mandioca. Colheu-se os dois campos de milho, os dois de amendoim e o feijão nhemba. Os dois campos de mandioca se perderam em virtude das cheias. As três espécies colhidas são de cinco variedades diferentes. Outro resultado importante é a organização da casa de sementes, que a partir das colheitas dos campos, parte da produção foi destinada para alimentar a casa.24

militante-do-mst-relata-sua-experiencia-na-brigada-de-solidariedade-ao-haiti. html. Acesso em: 26 jan. 2015. GOMBATA, Marsílea. Com a Brigada Dessalines, Sem Terra ajudam movimentos sociais no Haiti. Disponível em: http://antigo.mst.org.br/ node/16392. Acesso em: 26 jan. 2015. 20

21

Op. cit

MPA, “Cooperação entre Camponeses do Brasil e de Moçambique retoma intercambio na ultima semana”, http://www.mpabrasil.org.br/noticias/ cooperacao-entre-camponeses-do-brasil-e-de-mocambique-retomaintercambio-na-ultima-semana Acesso em: 26 jan. 2015 22

268

23

Op. cit.

MPA, Recuperação, reprodução, manutenção de sementes nativas  – um intercambio entre o MPA e a Unac  – Moçambique http://www.mpabrasil.org. 24

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Cooperação Sindical Em agosto de 2013, o Instituto de Cooperação da CUT (ICCUT), fundado oficialmente no dia 18 de dezembro de 2012, assina o primeiro acordo formal de parceria com uma contraparte sindical de outro país. Acordado com o Sindicato dos Trabalhadores da Cobal (Companhia Bananeira Atlântica, conhecida como Chiquita), da Costa Rica, filiada à central CTRN, apoia

A segunda trata do reconhecimento de que “é preciso disputar a visão da política de Cooperação do governo brasileiro a partir da nossa visão de classe....” (11º ConCut). Nesse sentido, Artur Henrique da Silva, então presidente da CUT e posterior presidente do ICCUT, afirmava que “o Brasil não está preparado para este momento que nós estamos assistindo... O Brasil precisa adaptar a sua legislação interna, construir uma política de cooperação que envolva os atores sociais”. (ICCUT)26 A terceira decisão estratégica diz respeito ao meio de efetivação das estratégias citadas acima. O Congresso dispõe que o desafio é “construir uma ferramenta que proporcione a adequada gestão e agilidade dessas parcerias, em especial nas relações Sul-Sul, preferencialmente no âmbito dos países da América Latina e África.” Determina ainda a criação do Instituto e sua “governança” interna:

uma campanha de conscientização e filiação dos trabalhadores que atuam na cadeia produtiva da banana, dentro da estratégia de transformar-se em sindicato por ramo de atividade (desde o plantio até a colheita, distribuição e processamento industrial). 25(ICCUT)

A criação do ICCUT foi parte de um processo de debate da conjuntura que teve como momento de amadurecimento o 11º Congresso da CUT (11º ConCut, julho de 2007), que incluiu na resolução sobre questões internacionais orientações políticas estratégicas para esse tema. Destacamos aqui três delas que justificam esse novo viés de atuação internacional, que, assim como foi o caso do MST, tem sido forte praticamente desde a criação da central, no início dos anos 1980. A primeira questão se refere à definição das parcerias procuradas e do tipo de trabalho a realizar: desenvolver uma política de cooperação cada vez mais vigorosa, priorizando a articulação com os países da América Latina, Caribe e África, a cooperação Sul-Sul por meio do intercâmbio de experiências com diversas centrais sindicais, visando sistematizar e disponibilizar experiências organizativas e políticas aos/às companheiros/as desses continentes.

a CUT constituirá um Instituto de Cooperação, com a responsabilidade de executar os planos de cooperação e solidariedade definidos pela Secretaria de Relações Internacionais (SRI) e aprovados pela Executiva Nacional, contendo ações planejadas de acordo com a estratégia geral da CUT, projetos que podem ser de caráter financeiro, técnico ou técnicofinanceiro.27(CUT)

É importante assinalar que a estratégia do debate sobre a cooperação internacional sindical para o desenvolvimento tem um histórico similar ao que identificamos nos casos de várias organizações da sociedade civil do Norte. Confederações e centrais sindicais também de países desenvolvidos têm se engajado nos mecanismos institucionais de ajuda pública para o desenvolvimento nos seus países. Organizações tais como o Congresso Laboral Canadense, 26

br/bibliotecas/nossas-publicacoes/recuperacao-reproducao-manutencao-desementes-nativas-um-intercambio. Acesso em: 27 jan. 2015. ICCUT. Instituto de Cooperação da CUT firma, na Costa Rica, sua primeira parceria http://ic.cut.org.br/noticias/instituto-de-cooperacao-da-cut-firma-nacosta-rica-sua-primeira-parceria-1588/Acesso em: 27 de jan. 2015. 25

270

ICCUT. Instituto de Cooperação quer parcerias com centrais estrangeiras para mudar modelos de desenvolvimento locais e regionais http://ic.cut.org. br/noticias/instituto-de-cooperacao-quer-parcerias-com-centrais-estrangeiraspara-mudar-modelos-de-1585/ Acesso em: 27 de jan. 2015. CUT. Caderno de resoluções do 11º Congresso da CUT (ConCut). http:// cut.org.br/system/uploads/document/86a292b45d9318b1a73157b3ec1f7302/ file/11-congresso-nacional-da-cut-11-concut-09-a-13-07-2012.pdf 27

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as Comisiones Obreras de España, a CGIL italiana, a LO norueguesa ou a AFL-CIO dos Estados Unidos têm usado esses fundos para financiar o trabalho de centrais de países em desenvolvimento, como a CUT no Brasil, ao longo das últimas três décadas ou mais. Há um reconhecimento explícito dessa dívida, mas, simultâneo a essa gratidão, há um desejo de protagonismo por parte do sindicalismo do Sul, que atribui uma nova relevância ao Brasil, à sua população e às suas organizações, empresas, e instituições. Para o Secretário de Relações Internacionais da CUT, João Felício, a Central trava uma luta “nos espaços sindicais internacionais... para trazer o movimento como um todo para a esquerda, vencendo resistências onde houver”.

Outra grande diferença é a natureza dos fundos utilizados para a cooperação. No caso das organizações sindicais do Norte, os recursos utilizados fazem parte de projetos que os sindicatos pleiteiam perante o Estado para execução de uma parcela do orçamento destinado oficialmente pelos países para a CID. No caso do Brasil, esse tipo de arranjo não existe – os fundos saem do caixa da organização sindical. O que explica o fôlego financeiro que alavancou essa nova política sindical foi a reforma, em 2008, que o Presidente Lula promoveu e que reconheceu legalmente a existência das centrais sindicais brasileiras. Junto com esse reconhecimento, concedeu uma participação de 10% no chamado imposto sindical, uma contribuição compulsória anual correspondente a um dia de trabalho que todo trabalhador brasileiro paga. Trata-se de uma enorme quantia; em 2008, por exemplo, foi de R$ 62 milhões, passando para R$ 124 milhões em 2011. A entrada nesse debate tem também reflexos de uma tradução real do poder relativo das centrais brasileiras, em particular da CUT, dentro do universo sindical internacional. Um indicador dessa relevância é a participação ativa de dirigentes em instâncias decisivas da Confederação Sindical das Américas, que hoje é liderada por uma aliança Sul-Norte, quando a histórica sempre foi a inversa. A própria mudança da sede da organização para São Paulo é uma amostra dessa influência, consagrada com a eleição de um ex-presidente da CUT como presidente da CSI no Congresso de 2014. A parceria estratégica entre a CUT e a CSA também foi influente no desenvolvimento da recente política de cooperação internacional adotada pela central brasileira. Como forma de contribuição ao debate, a CSA organizou em Florianópolis, em 2012, em conjunto com a CUT e a CSI, um seminário sobre Cooperação Sul-Sul com o intuito de

Vivemos um novo momento na intervenção internacional de nossa central, em que após termos recebido tanta solidariedade, temos a oportunidade de retribuir o apoio e a confiança depositados, em parcerias com entidades de todos os continentes.28

Há, no entanto, algumas diferenças na forma pela qual os sindicatos do Norte e a CUT se aproximam da cooperação internacional. O Instituto Sindical de Cooperación al Desarrollo (Iscod), vinculado à UGT da Espanha, por exemplo, destaca a importância de fortalecer as organizações sindicais do Sul: La Cooperación Sindical al Desarrollo representa el compromiso de los sindicatos democráticos  – pilares del sistema de democracia participativa junto a los gobiernos y las organizaciones de empleadores – para lograr que se oiga la voz de los trabajadores de los países en desarrollo en los procesos de diálogo social, garantizando un movimiento sindical fuerte y articulado, con capacidad para mejorar las condiciones de desarrollo de sus países.29(Iscod). ICCUT. CUT cria seu Instituto de Cooperação http://ic.cut.org.br/noticias/cutcria-seu-instituto-de-cooperacao-1584/ Acesso em: 27 jan 2015. 28

ISCOD. Fortaleciendo a las organizaciones sindicales del Sur http://www.iscod. org/sitio/organizacion/cooperaciondesarrollo.aspx. Acesso em: 27 jan. 2015. 29

272

estabelecer uma agenda comum com normas e princípios, para que, assim, o movimento sindical internacional possa pressionar seus respectivos governos a garantir uma cooperação justa e solidária, que traga avanços concretos para a população de ambas as partes. 273

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Nessa oportunidade, Kjeld Jakobsen, ex-dirigente da CUT e consultor em relações internacionais, afirmou que

ceiros do Norte tais como as centrais CSN, do Canadá, e ELA, do País Basco, e a organização canadense Alternatives; luta contra a informalidade e a precarização laboral (Moçambique), junto ao Solidarity Center da AFL-CIO; memória contra a escravidão, na Ilha do Goree no Senegal, junto à CGIL (Italia); comunicação e gestão sindical (Cabo Verde); formação sindical em Angola, junto à LO da Noruega; e encontros e seminários para elaboração de propostas econômicas, políticas, ambientais e sociais que vão culminar na elaboração da “Plataforma para as Mudanças: as Propostas dos Trabalhadores e Trabalhadoras para El Salvador”. Essa plataforma unifica o movimento sindical para a disputa das eleições majoritárias de El Salvador, em fevereiro de 2014, e servirá como referência para as ações e campanhas no próximo período31. Nesse último caso, por exemplo, o boletim da UntaConfederação Sindical informa que foi realizado um seminário internacional sobre Saúde e Segurança no Trabalho e que um sindicalista da CUT-Brasil

todas as relações internacionais são pautadas por interesses. A partir desta concepção, o movimento sindical deve construir seus princípios, aproveitando cada oportunidade para influenciar os rumos das políticas que os governos vêm implementando.

Víctor Baez, secretário-geral da CSA, complementou: (...) a ascensão de governos progressistas não significa que automaticamente teremos uma cooperação aberta ao sindicalismo. É importante também que se fortaleça a política de cooperação sindical no plano nacional, continental e mundial, com maior capacitação e formação dos atores sociais, que nos permita também disputar com os governos o modelo de cooperação.30

Nesse contexto de disputa, o papel do Instituto de Cooperação da CUT é o de

transmitiu de forma metodológica o suficiente que trazia na sua bagagem. Condições de trabalho, causas de acidentes de trabalho e doenças profissionais foram os subtemas que predominaram nas sessões que contaram com a participação de quadros e dirigentes sindicais das Províncias de Luanda, Benguela e Cabinda. Aferindo-se da importância que os temas apresentaram, os participantes clamaram por mais seminários do gênero para melhor capacitação dos quadros, ao mesmo tempo em que identificaram dificuldades que as associações sindicais enfrentam na organização e efetivação da segurança e saúde nos locais de trabalho.32(Unta)

lutar pela construção de um novo modelo de desenvolvimento sustentável, ou seja, um modelo que subordine o crescimento  – indispensável para a produção de riquezas  – a três outros pilares além do econômico propriamente dito: social, ambiental e político... sempre na perspectiva de que os sindicatos livres, autônomos e classistas são agentes indispensáveis de desenvolvimento e mudança social.

O ICCUT trabalha em dez países, sendo seis na América Latina e cinco na África, com diversos projetos: comunicação e formação de novas lideranças (Chile e Paraguai); sindicalização por ramo de atividade (Costa Rica, cadeia produtiva da banana); comunicação e formação política (Honduras e Nicarágua), em conjunto com par CUT. Movimento sindical deve disputar e influenciar processos de Cooperação Sul-Sul e triangular http://www.cut.org.br/noticias/movimentosindical-deve-disputar-e-influenciar-processos-de-cooperacao-sul-sul-e-3e86/. Acesso em: 27 jan. 2015. 30

274

EL MUNDO, Sindicatos entregan propuestas de gobierno al FMLN, http:// elmundo.com.sv/sindicatos-entregan-propuesta-de-gobierno-al-fmln, Acesso em: 27 jan. 2015. 31

UNTA, União Nacional dos Trabalhadores Angolanos: http://unta-cs.com/ boletins/JORNAL%20UNTA-OUTUBRO%20A%20DEZEMBRO%202013%20. pdf. Acesso em: 25 jan. 2015. 32

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Gonzalo Berrón e Maria Brant

Expertise, disputa política ou solidariedade? Variações sobre o engajamento da sociedade civil brasileira na cooperação Sul-Sul

Em um artigo assinado por João Felício, secretário de Relações Internacionais da CUT, e Artur Henrique, à época secretário-adjunto e presidente do ICCUT, eles afirmam que

No que diz respeito às organizações atuando na segunda frente, identificamos também ações desenvolvidas com base na solidariedade para com populações afetadas por políticas públicas brasileiras em terceiros países. Nesse sentido, os esforços iniciais têm focado na compreensão do alcance dos impactos e na elaboração de interpretações, análise e conhecimento sobre os mesmos, assim como no estabelecimento de vínculos com organizações dos países onde o Brasil atua com o intuito de construir um entendimento comum sobre os problemas e as estratégias de ação. São esforços pontuais, centrados na maioria dos casos nos impactos das obras e de outras ações de empresas financiadas pelo BNDES, da “exportação” de agricultura do agronegócio brasileiro. Outro caso, de natureza diferente por se tratar de participação brasileira em uma “missão de paz”, é o da solidariedade com as organizações haitianas que demandam a saída da Minustah. Verificamos ainda que certas organizações, por sua atuação internacional prévia ou pelo fato de estarem envolvidas como receptoras de cooperação internacional nos debates, têm um acúmulo maior na intervenção em relação à política externa brasileira e uma capacidade maior de transferir essa experiência para essa outra dimensão da PEB. Ao mesmo tempo, são fundamentalmente elas as que demandam maior transparência, informação e abertura de espaços de participação nos processo decisórios dessa política. No artigo, procuramos nos aprofundar nos casos de engajamento político de organizações sindicais e movimentos de camponeses e os chamamos de outra cooperação porque, diferentemente dos casos de cooperação tradicional, é exercido por organizações que investem fundos próprios em projetos de cooperação, de forma independente do Estado brasileiro. Além disso, apesar de participarem do debate nacional e internacional sobre políticas públicas de cooperação para o desenvolvimento, não são condicionados diretamente por ele. Finalmente, são motivados por visões políticas internacionalistas oriundas da pertença setorial – no caso, sindical ou camponesa – ou de uma leitura político-estratégica da situação do capitalismo global contemporâneo.

as parcerias desenvolvidas via Instituto de Cooperação, seja para a CSA, bem como aos países da América Latina (Chile, Costa Rica, El Salvador, Honduras, Paraguai e Nicarágua) e da África (Angola, Cabo Verde, Moçambique e Senegal) têm colhido excelentes frutos, com nossa central retribuindo os decisivos apoios recebidos ao longo de décadas. Participamos ativamente da Rede de Cooperação da CSA e CSI, de ações de solidariedade e de reconstrução do Haiti e decidimos nos somar ao PANAF, projeto que reúne centrais sindicais europeias e africanas de língua portuguesa, inglesa e francesa.33

As expectativas têm sido muito altas com relação aos resultados esperados, mas, para além da relevância política imediata, o movimento sindical e o camponês terão que avaliar os impactos específicos das diversas metodologias e objetivos dessa outra cooperação.

Notas finais Sem a pretensão de esgotar o tema, procuramos neste texto apresentar um panorama do envolvimento de atores sociais na cooperação internacional para o desenvolvimento promovida pelo Brasil. Como vimos, há significativa diversidade de modalidades de atuação nessa área, que talvez possam ser agrupadas em duas frentes principais: a da execução de projetos acordados entre Estados, via MRE ou outros departamentos do governo, e a do engajamento político, seja via incidência no debate, tanto nacional e internacional, sobre os objetivos e estratégias a serem adotados pelos governos em suas estratégias de cooperação internacional, seja via articulação política direta com organizações e comunidades em outros países. 33

ICCUT. Secretaria de Relações Internacionais fortalece aliança global contra o neoliberalismo e por direitos http://ic.cut.org.br/noticias/secretariade-relacoes-internacionais-fortalece-alianca-global-contra-o-neoliberalismo-epor-1583/. Acesso em: 25 jan. 2015.

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Gonzalo Berrón e Maria Brant

Expertise, disputa política ou solidariedade? Variações sobre o engajamento da sociedade civil brasileira na cooperação Sul-Sul

Essa outra cooperação, em termos clássicos, é exercida no marco de certa assimetria entre quem dá e quem recebe, mas enquadrada numa descrição do mundo na qual as duas partes  – camponeses, trabalhadores, habitantes do Sul, de países pobres e em desenvolvimento – são mais iguais do que desiguais, e utiliza uma retórica de emancipação de um “nós” que os iguala. Ou seja, trata-se de uma cooperação consigo mesmo para superar a opressão do latifúndio, do agronegócio, da empresa ou até do próprio Estado nacional. Identificamos, ao mesmo tempo, uma vontade, mais explícita nas falas dos sindicalistas, de “devolver” a ajuda recebida, em uma atitude que acompanha, de uma certa forma, a descrição da política externa do período Lula: “altiva e ativa”. Altiva perante os sócios sindicais do Norte, ativa em relação aos companheiros sindicais dos países em desenvolvimento. No caso do MST e do MPA, essa outra cooperação pode ser interpretada como a internacionalização do modelo brasileiro de luta agrária e do papel central que tem exercido na construção de La Via Campesina, canal central de entrada nos diversos países parceiros. O que fica claro é que, entre o exercício da solidariedade internacional e a exigência de maior participação no debate sobre o destino, o teor e as modalidades da cooperação brasileira, configura-se uma constelação crescente de organizações sociais dispostas a disputar a agenda da cooperação brasileira. Cabe, nesse futuro imediato, saber o que vai acontecer com os esforços de cooperação com o Sul Global no período de vacas magras enfrentado pelo Brasil em 2015. Vacas magras que, combinadas com a relevância decrescente que a gestão Dilma tem dado à política externa em geral, geram baixas expectativas no que diz respeito ao aprofundamento da cooperação e do debate que a sociedade civil brasileira tem promovido em volta dela.

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COMÉRCIO, INVESTIMENTOS E NEGOCIAÇÕES INTERNACIONAIS: UMA BREVE ANÁLISE DAS RELAÇÕES ECONÔMICAS ENTRE O BRASIL E OS PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO NAS ÚLTIMAS DÉCADAS José Luiz Pimenta Junior*

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284

* Doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP) e Mestre em Relações Internacionais pela USP, é Especialista em Negociações Econômicas Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (PUC, Unesp e Unicamp) e Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Atualmente, é Coordenador de Negociações Internacionais e Estudos de Comércio Exterior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e professor de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (Fecap). É membro do Centro de Estudos e Pesquisas em Diplomacia Corporativa da ESPM, do Grupo de Análise de Conjuntura Internacional da USP (Gacint), pesquisador do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais da Unesp (IEEI) e colunista do International Centre for Trade and Sustainable Development (http://www.ictsd. org/about-us/jos%C3%A9-luiz-pimenta-j%C3%BAnior).

285

José Luiz Pimenta Junior

Introdução O desenvolvimento econômico das nações emergentes durante as últimas décadas passou a influenciar diretamente os fluxos de comércio e investimento em nível mundial. Esses movimentos provocaram profundas alterações em termos de estrutura produtiva, mercado consumidor e alocação de recursos em escala global. Para se ter uma ideia, a média de crescimento dos países em desenvolvimento (PEDs) entre 2003 e 2013 foi de 6,4% ante 1,8% das economias avançadas (FMI, 20141). Atualmente, os PEDs são responsáveis por 54% da recepção global de investimentos estrangeiros diretos (IED), enquanto os países desenvolvidos (PDs) correspondem a 39%2. Ademais, em 2013, as economias emergentes representaram 45% das exportações e 42% das importações globais3. Em face dessa nova realidade, o Brasil intensificou suas relações políticas e econômicas com diversos PEDs durante as últimas décadas. Por meio de ações de distintas naturezas, governo e setor privado ampliaram seus escopos de atuação em diferentes setores e regiões do mundo emergente. Nesse sentido, o presente capítulo busca mapear parte dessas ações, sistematizando-as em três eixos analíticos: comércio, investimentos e negociações internacionais. A análise sobre comércio apresenta os principais parceiros (PEDs) comerciais do Brasil, bem como algumas iniciativas de diplomacia empresarial colocadas em prática pelo setor privado nos últimos anos. A segunda parte, relacionada ao investimento brasileiro direto (IBD) no exterior, mapeia os principais pólos e atividades relacionadas à internacionalização recente pela qual passaram e ainda passam alguns setores da economia brasileira. Fonte: Fundo Monetário Internacional (FMI)  – World Economic Outlook database. Disponível em: http://www.imf.org/external/data.htm#dat Acesso em: 20 dez.2014. 1

Dados referente ao ano de 2013. Fonte: Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad)  – Unctad Stat. Disponível em: http://unctad.org/en/pages/Statistics.aspx Acesso em: 20 dez. 2014. 2

3

Comércio, Investimentos e Negociações Internacionais: Uma breve análise das relações econômicas entre o Brasil e os países em desenvolvimento nas últimas décadas

Por fim, apresentaremos as principais iniciativas governamentais, bem como o papel do setor privado, no que se refere às negociações comerciais multi e bilaterais.

Uma perspectiva “Sul-Sul” do comércio exterior brasileiro As transformações referentes à balança comercial brasileira e ao fluxo de investimentos do país nos últimos anos foram fundamentais para a consolidação de importantes transformações no cenário econômico nacional. Isso decorre, sobretudo, da estrita relação entre essas duas atividades, bem como de todos os efeitos diretos e indiretos que elas provocam nas cadeias produtivas do país. No caso da balança comercial, importantes fatos devem ser destacados, tais como: (i) aumento expressivo da corrente de comércio na última década; (ii) concentração da pauta exportadora em produtos básicos; (iii) diversificação, ainda que incipiente, de parceiros comerciais; (iv) aumento do déficit de produtos manufaturados, (v) incremento de iniciativas de diplomacia empresarial sobretudo com países em desenvolvimento, entre outras. Em relação ao IED, apesar de todas as dificuldades em termos de ambiente produtivo, o Brasil continua a ser um polo de atração desse tipo de atividade, ficando atrás somente de Estados Unidos (EUA), China, Rússia e Hong Kong como destino de IED em 2013 (Unctad, 2014). Ademais, o aumento do estoque IBD no exterior e a internacionalização de empresas brasileiras merecem destaque nas últimas décadas. A figura 1, abaixo, mostra a evolução agregada da corrente de comércio, que saltou de US$ 159,5 bilhões em 2004 para US$ 481,7 bilhões em 2013. Chama atenção, todavia, a diminuição gradual do superávit comercial brasileiro no final do período analisado, sobretudo por conta da queda dos valores exportados entre 2011 e 2013 (-5%), aliada ao incremento das importações (6%) concentradas principalmente em manufaturas.

Idem.

286

287

José Luiz Pimenta Junior

Comércio, Investimentos e Negociações Internacionais: Uma breve análise das relações econômicas entre o Brasil e os países em desenvolvimento nas últimas décadas

Figura 1 – Balança comercial brasileira (2004-2013)

Fonte: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Elaboração do autor

O perfil das exportações brasileiras também sofreu transformações desde o início da década passada. De acordo com a tabela 1, a seguir, os dez principais produtos exportados pelo Brasil em 2000 representavam algo em torno de 36% do total exportado, enquanto em 2013 os top dez passaram a representar aproximadamente 47%. Outro elemento importante é a diminuição da presença de produtos manufaturados (aviões, químicos, calçados, por exemplo) na lista dos dez itens mais exportados no mesmo período. Tabela 1 – Perfil das exportações brasileiras – principais produtos (2000-2013) Exportações 200

Exportações 2013

Produto

Part.

Produto

Part.

Aviões

6,2%

Minérios de ferro

13,4%

Automóveis de passageiros

3,2%

Açúcar, em bruto

3,8%

Aparelhos transmissores ou receptores

3,2%

Carne de frango congelada

2,9%

Farelo de soja

3,0%

Farelo de soja

2,8%

Pastas químicas de madeira

2,9%

Milho em grãos

2,6%

Café em grão

2,8%

Automóveis de passageiros

2,3%

Calçados, suas partes e componentes

2,8%

Carne bovina congelada

2,2%

Semimanofaturados de ferro ou aços

2,5%

Pastas químicas de madeira

2,1%

Subtotal (top 10)

36,1%

Subtotal (top10)

46,9%

Total

100,0%

Total

100,0%

Fonte: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Elaboração do autor

No que se refere especificamente a acesso a mercados, nota-se um incremento da participação de PEDs4 como destino das exportações brasileiras entre 2000 e 2013. Além da China, que saltou da 12ª colocação em 2000 para ser o principal comprador do Brasil em 2013, outros PEDs ganharam espaço e se tornaram importantes destinos de produtos brasileiros, como é o caso de Venezuela, Coreia do Sul, Chile e Panamá. Esses países, que ocupavam uma posição intermediária nos anos 2000, estiveram presentes entre os dez principais importadores do Brasil em 2013. Merecem destaque também países como Índia e Hong Kong, que passaram a estar entre os 20 maiores importadores do Brasil no mesmo período. Apesar do esforço em termos de diversificação de mercado, deve-se ressaltar que grande parte das exportações brasileiras também é direcionada para países desenvolvidos, como EUA, Holanda, Japão e Alemanha. O conceito de “país(es) em desenvolvimento” (PEDs) pode sofrer variações de acordo com a metodologia empregada. Dessa forma, nas Tabela 2 e 4 do presente capítulo, PEDs obedece à classificação do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, disponível em no sítio do Ministério no endereço . Acesso em: 12 dez. 2013. 4

Minérios de ferro e seus 5,5% concentrados

Soja, mesmo triturada 9,4%

Soja, mesmo triturada 4,0%

Óleos brutos de petróleo

288

5,4%

289

José Luiz Pimenta Junior

Comércio, Investimentos e Negociações Internacionais: Uma breve análise das relações econômicas entre o Brasil e os países em desenvolvimento nas últimas décadas

Tabela 2 – Perfil das exportações brasileiras – países (2000-2013).

Também ganhou destaque no período o aumento da corrente de comércio com a Ásia, liderado pelo incremento do fluxo comercial com a China ao longo da última década, bem como com o Oriente Médio, impulsionado pela intensificação das trocas com importantes parceiros como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.

Exportações 2000

US$ Milhões

%Total

Exportações 2013

US$ Milhões

%Total

Variação 20002013

1º Estados Unidos

13.190

23,9%

1º China

46.026

19,0%

4141%

2º Argentina

6.238

11,3%

2º Estados Unidos

24.653

10,2%

87%

3º Países Baixos (Holanda)

2.796

5,1%

3º Argentina

19.615

8,1%

214%

4º Alemanha

2.527

4,6%

4º Países Baixos (Holanda)

17.333

7,2%

520%

5º Japão

2.474

4,5%

5º Japão

7.964

3,3%

222%

6º Itália

2.146

3,9%

6º Alemanha

6.552

2,7%

159%

7º Bélgica

1.785

3,2%

7º Venezuela

4.850

2,0%

544%

8º França

1.731

3,1%

8º Coreia do Sul

4.720

2,0%

713%

9º México

1.713

3,1%

9º Chile

4.484

1,9%

259%

10º Reino Unido

1.499

2,7%

10º Panamá*

4.423

1,8%

5290%

11º Chile

1.248

2,3%

11º México

4.230

1,7%

147%

12º China

1.085

2,0%

12º Provisão de Navios e Aeronaves

4.135

1,7%

337%

13º Espanha

1.005

1,8%

13º Itália

4.098

1,7%

91%

14ºProvisão de Navios e Aeronaves

945

1,7%

14º Reino Unido

4.067

1,7%

15º Paraguai

832

1,5%

15º Bélgica

3.594

16º Venezuela

753

1,4%

16º Espanha

17º Uruguai

669

1,2%

17º França

18º Coreia do Sul

581

1,1%

19º Canadá

566

20º Colômbia

516

Subtotal - Top 20 Total

Bloco Econômico

Exp. 2000 Imp. 2000 C.C 2000

Exp.2013 Imp. 2013 C.C 2013

Var. C.C 2000-2013

América Latina e Caribe

13.921

11.818

25.739

53.555

40.781

94.336

267%

Ásia (exclusive 6.327 ORIENTE MÉDIO)

8.600

14.927

77.659

73.231

150.891

911%

Oriente Médio

1.333

1.561

2.894

10.954

7.369

18.323

533%

2.907

4.254

11.087

17.446

28.533

571%

171%

África (exclusive 1.347 ORIENTE MÉDIO)

2.292

4.320

53.967

47.057

101.024

2239%

101%

3.546

1,5%

253%

Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul (BRICS)

2.028

1,5%

3.394

1,4%

96%

9.124

17.616

29.533

20.450

49.983

184%

3.339

1,4%

602%

Mercado Comum do Sul 5 (MERCOSUL 5)

8.493

18º Hong Kong*

1,0%

19º Índia*

3.130

1,3%

1339%

0,9%

20º Paraguai

2.997

1,2%

260%

44.300

80%

Subtotal - Top 20

177.151

73%

300%

55.119

100%

Total

242.034

100%

339%

Fonte: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Elaboração do autor (*) – Panamá (63ª posição em 2000); Hong Kong (22ª posição em 2000); Índia (41ª posição em 2000)

Em relação à evolução da balança comercial brasileira com blocos selecionados de PEDs, entre os anos 2000 e 2013, percebe-se um crescimento expressivo da corrente de comércio (C.C) com todas as nações analisadas, conforme indica a tabela 3, abaixo. Em nível regional, por exemplo, as exportações brasileiras para América Latina e Caribe cresceram quase 300% no período analisado, ao passo que as importações advindas desses mercados também sofreram um crescimento de cerca de 250%. 290

Tabela 3 – Balança Comercial Brasileira – blocos selecionados (2000-2013).

Fonte: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC). Elaboração do autor

Um fator extremamente pertinente para se compreender o incremento das trocas comerciais do Brasil é a chamada diplomacia empresarial. Missões governamentais especificamente voltadas para a promoção de comércio, bem como iniciativas empresariais lideradas por câmaras, associações e empresas passaram a ocupar um lugar central na agenda do governo brasileiro e de entidades setoriais nacionais. Apesar da dificuldade de se mensurar o impacto direto que eventos, feiras, missões comerciais, entre outras iniciativas têm sobre a realização de negócios, é fundamental enxergar tais ações como fomentadoras de conhecimento, networking, oportunidades de investimentos, entre outros. Atualmente, o Brasil conta com uma importante entidade governamental com atuação direta na promoção de produtos e serviços brasileiros no exterior, bem como na atração de investi291

José Luiz Pimenta Junior

Comércio, Investimentos e Negociações Internacionais: Uma breve análise das relações econômicas entre o Brasil e os países em desenvolvimento nas últimas décadas

mentos estrangeiros para diversos setores da economia brasileira: a Apex-Brasil (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos). A agência, que está presente em mais de sete países5, por meio de seus Centros de Negócios (CNs), auxilia o setor privado a se inserir no mercado internacional por meio de diversos serviços, dentre os quais se destacam: (i) inteligência de mercado; (ii) qualificação empresarial; (iii) estratégias de internacionalização; (iv) promoção de negócios e imagem e (v) atração de investimentos. Dentre as diversas ações realizadas pela entidade e que impactam diretamente o setor privado, estão as missões prospectivas e comerciais, rodadas de negócios, apoio à participação de empresas brasileiras em grandes feiras internacionais, visitas de compradores estrangeiros, entre outras6. Outro foco de atuação da Agência visando ao aumento das exportações brasileiras e que conta com a participação direta do setor privado, por meio de entidades de classe, são os Projetos Setoriais. Esses projetos têm como objetivos principais a prospecção de oportunidades de negócios voltados à exportação e ao aprimoramento da percepção internacional sobre as empresas, produtos e serviços brasileiros, por meio de ações como missões empresariais; rodadas de negócios; apoio à participação em feiras internacionais e visita de compradores estrangeiros ao Brasil7.

Todos os Projetos têm como mercados-alvo parceiros comerciais desenvolvidos, como, por exemplo, EUA, Alemanha, Reino Unido, Espanha, Bélgica, ou em desenvolvimento. Especificamente em relação a esses últimos, a lista de países-alvo das ações dos projetos compreende, entre outros: África do Sul, Angola, Nigéria, Arábia Saudita, Cuba, Jordânia,   Peru, Rússia, Paraguai, Uruguai, China, Irã, México, Colômbia, Argélia, Moçambique, Turquia, Argentina, Bolívia, Egito, Nicarágua, Índia, Guatemala, Panamá, Equador. Atualmente, os setores participantes de tais iniciativas são: (i) Alimentos e Bebidas (Arroz, Balas, Doces e confeitos, Biscoitos, Massas, Pães e bolos industrializados, Cachaça, Cafés especiais, Carne Bovina, Suína e de Frango, Frutas, Lácteos, Mel e derivados, Produtos Étnicos, Produtos Orgânicos, Tradings e Vinhos); (ii) Agronegócios (Etanol, Materiais Genéticos, Reciclagem Animal, entre outros); (iii) Casa e Construção (Arquitetura, Cerâmica e Revestimento, Móveis, entre outros); (iv) Economia Criativa (Arte contemporânea, Cinema, Design, Franquias, etc); (v) Máquinas e Equipamentos (Autopeças, Aeroespacial, Eletroeletrônico, Material de Defesa, Plásticos, etc.); (vi) Moda (Couro, Calçados, Joias, Têxtil e Confecções); (vii) Tecnologia (Softwares e Jogos eletrônicos) e (viii) Saúde (Equipamentos odontológicos, Higiene pessoal, perfumaria e cosméticos, farmoquímicos e medicamentos). Além da Apex, as próprias associações de classe, entidades setoriais, Confederações e Federações da Indústria também possuem uma agenda própria de promoção comercial e diplomacia empresarial. A Confederação Nacional da Indústria, por exemplo, coordena, em nível nacional, a Rede Brasileira dos Centros Internacionais de Negócios (Rede CIN). A Rede é integrada pelas 27 Federações de Indústrias dos estados brasileiros, as quais, por meio de unidades locais, trabalham com vistas à internacionalização das empresas brasileiras por meio de assessoria, capacitação, missões, encontros e ações de inteligência comercial8.

Dos sete Centros de Negócios (CNs) que a Apex-BRASIL possui no mundo, cinco estão situados em países em desenvolvimento: Cuba, China, Rússia, Emirados Árabes Unidos e Angola. Os outros dois estão situados nos Estados Unidos e em Bruxelas. Segundo a Apex, “Os CNs são plataformas que auxiliam no processo de internacionalização, prospectam oportunidades e servem de apoio para a atração de investimentos. É por meio deles que os empresários colocam em prática as estratégias elaboradas pela Apex-Brasil para uma expansão competitiva e sustentável no cenário internacional.” Para maiores informações, ver o sítio da Apex Brasil relacionado exclusivamente aos CNs, disponível em: http://www2.apexbrasil.com.br/aproximar-compradores/apoioda-apex-brasil-no-exterior Acesso em: 08 jan. 2015. 5

Fonte: Apex-BRASIL. Disponível em: http://www3.apexbrasil.com.br/quemsomos Acesso em 05 jan.2015. 6

Fonte: Apex-BRASIL. Disponível em: projetos-setoriais Acesso em: 05 jan. 2015. 7

292

http://www3.apexbrasil.com.br/

Fonte: Rede Brasileira dos Centros Internacionais de Negócios (Rede CIN). Disponível em: http://www.cin.org.br/portal/main.jsp?lumChannelId=2C8A80872 CA341EB012CA813BFA435F0 Acesso em: 10 jan. 2015. 8

293

José Luiz Pimenta Junior

Comércio, Investimentos e Negociações Internacionais: Uma breve análise das relações econômicas entre o Brasil e os países em desenvolvimento nas últimas décadas

No que diz respeito especificamente ao estado de São Paulo, o governo do estado conta com uma agência de promoção de investimentos, a Investe São Paulo, que, entre outras atividades, apoia e assessora potenciais investidores durante o processo de tomada de decisão com vistas à introdução de novos empreendimentos9. Do ponto de vista do setor privado estadual, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) conta com uma equipe especializada10 para tratar de temas ligados à área internacional, como Negociações Internacionais, Defesa Comercial, Promoção do Comércio e Investimentos, Facilitação do Comércio, Certificação de Origem, entre outros. Em relação à diplomacia empresarial, a entidade destaca-se como importante interlocutor do setor privado junto ao governo federal e a outros governos, bem como a diversas entidades empresariais internacionais. Em consulta ao Departamento de Relações Internacionais e Comércio Exterior  – Derex, da Fiesp, pode-se perceber o grande número de iniciativas realizadas com outros países, seja no nível privado ou governamental. Apesar de haver um número significativo de eventos, seminários, rodadas de negócio, recepções e reuniões com países desenvolvidos, como Estados Unidos, Canadá, Japão e países europeus, optamos por consolidar, na tabela 4, abaixo, algumas iniciativas, entre 2004 e setembro de 2014, com os principais parceiros comerciais brasileiros classificados como PEDs, foco do presente capítulo.

Tabela 4 – Iniciativas Institucionais e de Diplomacia Empresarial 2004 – set/2014 – Fiesp

Fonte: Agência Paulista de Promoção de Investimentos e Competitividade (Investe SP). Disponível em: http://www.investe.sp.gov.br. Acesso em: 11 jan. 2015. 9

Fonte: Departamento de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Derex)  – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Disponível em: http://www.fiesp.com.br/sobre-a-fiesp/departamentos/relacoes-internacionais-ecomercio-exterior/ Acesso em 11 jan. 2015. 10

294

País

Exportações Número de brasileiras - 2013 iniciativas US$ (Milhões)

Exemplos

Reunião - China Development Bank - 2012; Missão Institucional da FIESP à China - 2014

China

46.026

43

Argentina

19.615

18

Rodada de Negócios Brasil - Argentina - 2012

Venezuela

4.850

4

Missão Institucional à cidade de Caracas, Venezuela - 2001

Chile

4.484

27

Reunião - SOFOFA (Sociedad de Fomento Fabril) - 2011; Recpção Delegação de empresários da Câmara Chilena de la Construcción - 2012

Panamá

4.423

9

Missão empresarial brasileira - Exposição Comercial Internacional (EXPOCOMER) EM 2004, 2008, 2009 E 2010

México

4.230

13

Recepção do Presidente Eleito dos Estados Unidos do México, Sr. Enrique Peña Nieto - 2012

Índia

3.130

24

Recepção - Delegação empresarial indiana - 2009 e Delegação da Confederação Indiana de Indústrias 2012

Paraguai

2.997

19

Seminário - Oportunidade de Investimentos Brasileiros no Paraguai - 2012; Missão Institucional ao Paraguai - 2013

Rússia

2.974

8

Encontro Empresarial Brasil - Rússia - 2007; Reunião - Delegação governamental e empresarial da Rússia - 2013

Arábia Saudita

2.839

1

Reunião - Embaixador brasileiro na Arábia Saudita - 2008

Emirados Árabes Unidos

2.589

4

Missão empresarial brasileira - Feira Big Five - 2008; Reunião - Dubai Export Development Corporation - 2012

Colômbia

2.558

7

Encontro Empresarial Brasil - Colômbia - 2009

Egito

2.202

5

Reunião - Export Development Bank of Egypt - EDBE - 2011

Peru

2.147

23

Missão empresarial brasileira ao Peru - 2007; Seminário Comércio e Investimentos Brasil - Peru - 2012

Uruguai

2.071

14

Rodada de Negócios Brasil - Uruguai - 2006; 3º Encontro Empresarial Brasil - Uruguai para Integração Produtiva - 2010

Indonésia

1.999

6

Reunião - Indonesian Tradc Promotion Centre - 2006 Participação - Forúm de Negócios "Remarkable Indonesia: Tourism, Trade and Investment"

África do Sul

1.836

22

Missão empresarial brasileira - África do Sul - 2011 Seminário - Oportunidades de Negócios na África do Sul" - 2013

Tailândia

1.654

10

Recepção - Delegação empresarial e governamental da Tailândia Reunião - Ministério do Comércio da Tailândia - 2014

Bolívia

1.534

7

Recpção - Delegação empresarial boliviana - 2010

Malásia

1.372

3

Reunião - Consulado da Malásia em São Paulo - 2011

Argélia

1.200

3

Recpção - Conselho dos Embaixadores Árabes ao Estado de São Paulo 2013

Vietnã

1.192

7

Encontro Empresarial Brasil - Vietnã - 2008 e 2009

Omã

1.107

2

Recepção - Conselho dos Embaixadores Árabes ao Estado de São Paulo 2013

Turquia

957

35

Missão empresarial brasileira à Turquia - 2013

Filipinas

880

3

Reunião - Representantes da Embaixada das Filipinas no Brasil

Nigéria

876

10

Encontro Empresarial Brasil-Nigéria - 2008 Recpção - Ministério de Comércio e Investimentos da Nigéria - 2012

Equador

820

2

Recpção - Ministério da Coordenação de Assuntos Estratégicos do Equador - 2011

Marrocos

689

4

Seminário "Encontro de Negócios: Marrocos - Um Parceiro Estratégico para o Brasil" - 2013

Fonte: Consulta ao Departamento de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Derex) da Fiesp em outubro de 2014. Elaboração do autor. 295

José Luiz Pimenta Junior

Investimentos brasileiros em países em desenvolvimento No que diz respeito ao fluxo de IED, o Brasil foi, em 2013, o quinto maior destino desse tipo de atividade no mundo. Como o cálculo é feito em termos de fluxo, no mesmo ano o país retraiu seus investimentos no exterior (US$ –3,4 bilhões), ocupando uma baixa colocação em termos IBD (Unctad, 2014 e Fiesp, 2013). Em termos de destino, o Brasil conseguiu manter uma média de atração de IED acima dos US$ 60 bilhões nos últimos 3 anos, como mostra a Figura 2, abaixo. Dentre os principais países que investiram no Brasil em 2013, destacam-se Holanda (Países Baixos), EUA, Chile, Japão e Suíça. Figura 2 – Fluxo de Investimento Estrangeiro Direto (IED) e principais investidores no Brasil (2010-2013).

Comércio, Investimentos e Negociações Internacionais: Uma breve análise das relações econômicas entre o Brasil e os países em desenvolvimento nas últimas décadas

últimas décadas, ainda permanece atrás de países como China e Rússia. Em relação ao estoque de IED de outros países no Brasil, pode-se notar um claro crescimento do papel do país como receptor de investimentos internacionais, todavia com montantes abaixo daqueles recebidos pela China. Tabela 5 – Panorama do Estoque de investimento estrangeiro direto – Brics – 2005-2013 Investimento Estrangeiro Direto (IED) - Estoque - Entrada - US$ Milhões

Brasil

181.344 220.621 309.668 287.697 400.808 682.346 696.507 745.089 724.644 19%

300%

Rússia

180.228 265.873 491.052 215.756 378.837 490.560 454.949 496.396 575.658 16%

219%

Índia

43.202

105.790 125.212 171.218 205.580 206.354 224.988 226.748 23%

425%

China

272.094 292.559 327.087 378.083 473.083 587.817 711.802 832.882 956.793 17%

252%

70.870

2007

2008

106.928 131.832 83.649

2009

2010

2011

2012

2013

Variação 2005-2013

2005

África do 96.693 Sul

2006

Crescimento Médio Anual

Países

138.751 179.564 159.391 163.510 140.047 5%

45%

Investimento Estrangeiro Direto (IED) - Estoque - Saída - US$ Milhões 2007

2008

2006

Brasil

79.259

113.925 141.880 157.796 167.148 191.349 206.187 270.864 293.277 18%

270%

Rússia

146.679 216.474 370.129 205.547 302.542 366.601 361.750 406.295 501.202 17%

242%

Índia

9.741

27.036

44.080

1130%

China

57.206

75.026

117.911 183.971 245.755 317.211 424.781 512.585 613.585 35%

973%

África do 31.038 Sul

41.102

55.214

209%

49.439

80.839

70.296

2010

96.901

83.248

2011

2012

2013

Variação 2005-2013

2005

63.338

2009

Crescimento Médio Anual

Países

109.509 118.072 119.838 37%

97.051

111.780 95.760

15%

Fonte: Banco Central do Brasil e Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad). Elaboração do autor.

Fonte: Banco Central do Brasil

Quando se analisa o estoque de IED do Brasil no exterior (que também pode ser chamado de IBD) em comparação com o dos países dos Brics (tabela 5, abaixo), observa-se que, apesar de o país ter incrementado consideravelmente essa atividade ao longo das 296

Duas regiões são fundamentais para se analisar os principais aspectos dos investimentos brasileiros em países em desenvolvimento: América Latina (AL) e África. A América Latina, por exemplo, conta atualmente com a maior quantidade de empresas brasileiras situadas no exterior, conforme mostra a tabela 6, abaixo. Ademais, cerca de 55% das empresas presentes no Ranking FDC das Multinacionais Brasileiras de 2013 instalaram sua primeira subsidiária em algum país da região (Fundação Dom Cabral, 2013). 297

José Luiz Pimenta Junior

Comércio, Investimentos e Negociações Internacionais: Uma breve análise das relações econômicas entre o Brasil e os países em desenvolvimento nas últimas décadas

A expansão dos investimentos brasileiros na região pode ser mais bem compreendida por meio da análise de diversas variáveis que atuam conjuntamente. Em linhas gerais, fatores como maior proximidade cultural, reduzida distância logística, similaridades linguísticas, entre outros, tendem a reduzir a distância psíquica do investidor, fazendo com que esse, durante o processo de internacionalização, procure inicialmente mercados considerados mais similares ao doméstico. Em um segundo momento, todavia, voltam-se àqueles cujas condições culturais e econômicas são menos semelhantes às de seu país (Rocha; Almeida, 2006). Gradualmente, o investimento brasileiro na região transpassou as estratégias de entrada tradicionais, como exportação ou greenfields. Apesar de essas atividades ainda ocorrerem, diversas empresas brasileiras passaram a capturar novos mercados na AL por meio da prestação de serviços exclusivos e da ampliação de suas marcas. O modelo de internacionalização adotado por muitas delas é o de franquia, tipo de negócio extremamente consolidado no Brasil, que já é o terceiro país do mundo em número de franquias, com 2.700 (Camargo, 2014). Dessa forma, ao procurar estabelecer parcerias com investidores locais, as empresas brasileiras buscam mitigar riscos associados à atividade empresarial e ampliar gradualmente o conhecimento em relação a um mercado em franca expansão. Setores importantes como calçados, comunicação, alimentos, cosméticos, acessórios, perfumaria, vestuário, livros, locação de veículos, entre outros, têm procurado ampliar sua participação no mercado latino-americano por meio dessa modalidade de negócio. Nesse sentido, destacam-se empresas como Via Uno, Totvs, CCAA, Localiza Rent a Car, O Boticário, Chilli Beans, Hope, Livrarias Nobel, Vivenda do Camarão, Colcci, Fisk, Cia. Hering, Arezzo, Spoleto e Wizard (Camargo, 2014).

Tabela 6 – Países com maior presença de empresas brasileiras Posição

País

Número de empresas

1

Estados Unidos

41

2

Argentina

35

3

Chile

30

4

Colômbia

23

4

Uruguai

23

5

México

22

5

Peru

22

6

China

21

7

Reino Unido

19

8

Paraguai

17

8

Venezuela

17

9

Portugal

16

10

França

13

Fonte: Ranking FDC das Multinacionais Brasileiras 2013. Os impactos da política externa na internacionalização de empresas brasileiras. Disponível em: http://www.fdc.org.br/imprensa/Documents/2013/ranking_multinacionais_ brasileiras2013.pdf Acesso em: 20 out.2014.

No que se refere ao continente africano, a ampliação das exportações e dos investimentos brasileiros nas últimas décadas ocorreu concomitantemente ao incremento dos esforços de aproximação promovidos pelo governo brasileiro com diversos países da região. 298

299

José Luiz Pimenta Junior

Comércio, Investimentos e Negociações Internacionais: Uma breve análise das relações econômicas entre o Brasil e os países em desenvolvimento nas últimas décadas

Essa ofensiva política congrega, entre outras ações, a assinatura de mais de uma centena de atos bilaterais e a abertura de 19 embaixadas (das 37 existentes) na última década (Andrade Pinto, 2013). No âmbito da cooperação Sul-Sul, sobretudo com países africanos, destaca-se o papel da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), que concentra uma grande quantidade de projetos no continente: do total de 98 países beneficiados pelas iniciativas da ABC em 2013, quase a metade (43%) são da África. Mali, Chade, Benin, Burkina Faso, Senegal, Guiné Bissau, Moçambique, entre outros, são alguns dos países em que a ABC realizou importantes iniciativas nos últimos anos (Abreu, 2014). Nesse sentido, destaca-se a atuação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que, em conjunto com a ABC, passou a atuar de forma sistemática no continente, sobretudo nas áreas de (i) capacitação, (ii) transferência de tecnologia e (iii) compartilhamento de conhecimentos agropecuários, agroflorestais e meio ambiente. Em 2007, a empresa consolidou sua presença física no continente com a abertura de um escritório regional sediado em Acra, Gana.11 É nesse contexto de aproximação política e aumento das ações e diálogos bilaterais, somado à consolidação da estabilidade política em alguns países africanos, que diversas empresas brasileiras passaram a incrementar sua atuação no continente. Embora tenha havido uma concentração dos investimentos em áreas como construção civil, óleo & gás e mineração, outros setores também começam a receber a devida atenção por parte do empresariado brasileiro, como é o caso de autopeças, agronegócio, energia, biocombustíveis e instalações industriais. Isso ocorre, principalmente, pelo fato de projetos importantes desenvolvidos por empresas como Petrobrás, Vale, entre outras, terem atraído firmas de menor porte que fazem parte da sua cadeia de fornecedores (Vieitas; Aboim, 2013). Ao se analisar o perfil dos investimentos brasileiros no continente africano, é possível notar, além da concentração setorial, a necessidade da diversificação de destinos de tais iniciativas. São

poucos os países que contam com a presença de três ou mais empresas brasileiras (apenas Líbia, Angola, Moçambique, África do Sul, Egito e Namíbia estão nesse grupo). Grande parte das nações africanas que conta com o investimento brasileiro possue de uma a duas empresas do Brasil atuando em seu território, como é o caso de Nigéria, Camarões, Gana, Argélia, Marrocos, Zâmbia, Gabão, entre outras. Países como Etiópia, Sudão do Sul, Costa do Marfim, República Democrática do Congo, Quênia, Tanzânia, Uganda e Ruanda mostram-se como proeminentes destinos do IED brasileiro, já que, de maneira geral, têm incrementado sua estabilidade política e econômica. Essa dinâmica, se ampliada, tende a fomentar investimentos em áreas estratégicas, como infraestrutura, logística, energia e agricultura (Cook, 2013 e Vieitas; Aboim, 2013). Abaixo, alguns exemplos de empresas brasileiras com atuação consolidada no continente africano:

Fonte: Embrapa  – Cooperação Técnica. Disponível em: https://www. embrapa.br/cooperacao-tecnica Acesso em: 10 dez.2014. 11

300

ƒƒ Petrobras: Presente em 9 países africanos (Argélia, Líbia, Senegal, Nigéria, Guiné Equatorial, Tanzânia, Madagascar, Angola e Moçambique), o continente faz parte das estratégias de diversificação das fontes de fornecimento da companhia e de acúmulo de conhecimento na exploração de águas profundas. Em Angola, por exemplo, a empresa iniciou levantamentos exploratórios em 1979, firmando um acordo com a companhia estatal Sociedade Nacional de Combustíveis de Angola (Sonagol) em 1980. Atualmente, a empresa mantém a exploração e a produção nas águas rasas da Bacia do Baixo Congo, no Bloco 2, e em profundas, no Bloco 34 (Iglesias; Costa, 2011 e Petrobrás, 2014). ƒƒ Vale: Empresa com investimentos no Malaui, Guiné, Moçambique e Zâmbia, concentrados nas áreas de mineração e logística. Em Moçambique, por exemplo, a Vale atua desde 2004 e detém a concessão de uma das maiores reservas de carvão do mundo, em Moatize, na província de Tete. Na Zâmbia, a companhia produz cobre na mina Lubambe, por meio de uma joint venture com a African Rainbow Minerals, em um investimento de US$ 400 milhões. Na 301

José Luiz Pimenta Junior

República do Malaui, a empresa investiu cerca de US$ 4,4 bilhões na expansão da capacidade do corredor logístico de Nacala, com o objetivo de contar com uma infraestrutura logística que forneça o devido suporte nas suas operações na África Central e Oriental. Ademais, atua em Angola, desde 2005, por meio de uma joint venture com a empresa angolana Genius, voltada para o desenvolvimento mineral e de pesquisas com foco em níquel e cobre. (Vieitas; Aboim, 2013 e Vale, 2014). ƒƒ Odebrecht: A empresa atua no continente africano em Gana, Angola (desde 1984) e Moçambique, nas áreas de infraestrutura, mineração, bioenergia, agronegócio e projetos especiais. Em Angola, por exemplo, a companhia trabalha atualmente na construção do Polo Agroindustrial de Capanda, em uma região de 411.000 hectares, que vai abrigar grandes empresas agroindustriais por meio da agricultura familiar. Em Moçambique, a empresa finalizou em 2014 a construção do Aeroporto Internacional de Nacala, inaugurado nesse mesmo ano e com capacidade para atender 600 mil passageiros/ano (Odebrecht, 2014). ƒƒ Andrade Gutierrez: Atualmente possui projetos em andamento e/ou concluídos em Moçambique, República Democrática do Congo, República do Congo, Guiné Equatorial, Argélia, Líbia, Camarões, Nigéria, Gana, República da Guiné, Mali, Mauritânia e Angola. Destaque para este último país, onde a empresa possui 16 projetos concluídos, sete projetos em andamento e 1 escritório (Andrade Gutierrez, 2014). ƒƒ Marcopolo: Desde 2000 na África do Sul, a empresa detém no país uma planta produtiva com área física de cerca de 32.000 m2. No Egito, está presente desde 2009, com uma planta de área de física de 282.000 m2 (Marcopolo, 2014). Outras empresas também merecem destaque pela sua atuação no continente africano, como é o caso da Camargo Corrêa, 302

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Queiroz Galvão, Stefanini, WEG, além de diversas outras que atuam via exportação. Apesar do incremento da presença brasileira no continente africano nas últimas décadas, diversas condicionantes ainda devem ser levadas em consideração em iniciativas empresariais de médio e grande porte. Dentre as principais, destacam-se: (i) ambiente institucional complexo e considerável risco regulatório (procedimentos na elaboração das regras ou do marco jurídico existente); (ii) baixa qualificação da mão-de-obra; (iii) necessidade de ampliação de fornecedores locais; (iv) precariedade do serviço de energia elétrica; (v) ampliação da disponibilidade de financiamento, seguro de crédito e garantias, sobretudo para empresas construtoras e industriais; e, por fim, (vi) aumento da concorrência chinesa. (Iglesias; Costa, 2011 e Motta Veiga, 2013).

Negociações internacionais: o Brasil e os países em desenvolvimento Ao longo do século XX, o Sistema Internacional passou a conviver com diversas arenas de negociação em nível multilateral. Temas como meio ambiente, segurança, comércio, desenvolvimento econômico, entre outros, tornaram-se fontes de negociações acirradas nos mais distintos fóruns, com posições muitas vezes divergentes entre PDs e PEDs. No que se refere ao contexto Sul-Sul, o Brasil, além de fazer parte do G77&China (coalizão de PEDs estabelecida em 1964 no âmbito da Unctad e que coordena ações conjuntas em diversas negociações) exerceu um papel central, em conjunto com outros PEDs, durante a Rodada Doha de Desenvolvimento (RDD) da Organização Mundial do Comércio (OMC). De maneira geral, desde a criação da OMC, em 1995, PDs e PEDs intensificaram a busca por uma ação coordenada mais efetiva dentro da instituição. Com isso, diversos membros da organização passaram a influenciar o processo negociador por meio da criação de coalizões internacionais, principalmente durante RDD, iniciada em 2001. A atuação paradigmática do Brasil no processo de for303

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mação e atuação do G2012 fez com que o país se projetasse internacionalmente e se tornasse um eminente player nas negociações agrícolas da Rodada. Esse processo fez com que o país entrasse de maneira definitiva no alto nível decisório da Organização, ocupando um lugar de destaque na arena comercial multilateral ao lado de EUA, União Europeia, Índia, Japão e China. O G20 foi criado em 2003, durante a V Conferência Ministerial da OMC, em Cancun, México, e atuava13 no âmbito das negociações para o estabelecimento de parâmetros voltados à liberalização de produtos agrícolas, um dos principais entraves para a concretização da Rodada. A coalizão era responsável, à época de sua criação, por cerca de 60% da população mundial, 70% da população rural em todo o mundo e 26% das exportações agrícolas mundiais. Os principais membros do G20 eram PEDs que buscavam, desde o início da RDD, estabelecer medidas efetivas acerca das disparidades do comércio agrícola internacional, principalmente àquelas relacionadas a subsídios às exportações e a acesso aos mercados. Em linhas gerais, a Conferência em que o Grupo foi criado foi marcada pela ação pragmática da Coalizão durante as negociações agrícolas, instituindo-se uma nova dinâmica negociadora ao longo de toda a negociação. Essa dinâmica certamente abriu o caminho para que outros grupos de PEDs agissem conjuntamente em prol de seus interesses, como é o caso do G33 (que contava com diversos membros do G20 com posição mais defensiva na esfera agrícola), o Grupo Africano, o Grupo África-Caribe-

Pacífico (ACP), o Grupo de Economias Pequenas e Vulneráveis (SVE, em inglês) e os já citados PMDRs14. O Grupo, entre 2003 e 2008, passou a trabalhar continuamente por meio de reuniões ministeriais, pronunciamentos e apresentação de propostas que, recorrentemente, norteavam o debate em torno da regulação agrícola durante as negociações.

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O G-20 (23) é formado por: África do Sul, Bolívia, Argentina, Brasil, Chile, China, Equador, Egito, Cuba, Filipinas Guatemala, Índia, Guatemala, Indonésia, México, Nigéria, Paquistão, Paraguai, Peru, Tanzânia, Tailândia, Uruguai, Venezuela e Zimbábue. Disponível em: http://www.wto.org/english/tratop_e/ dda_e/negotiating_groups_e.pdf Acesso em: 12 dez. 2014.

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Apesar de a RDD não ter sido formalmente finalizada e a coalizão ainda existir, o ápice de atuação do G20 ocorreu durante a fase mais dinâmica das negociações, entre 2003 e 2008.

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A força do G-20 baseia-se em dois pilares: seu objetivo de integrar plenamente a agricultura em um sistema multilateral de comércio justo e fundado em regras; e sua capacidade de conciliar interesses agrícolas divergentes dentro do próprio grupo. Esses dois pilares outorgaram ao G-20 credibilidade sem precedente e evidenciaram que é possível encontrar um meio termo nas negociações quando há honestidade nos propósitos e probidade na abordagem.15

A despeito do impasse ocorrido na RDD em 2008, a perspectiva de atuação dos PEDs por meio de coalizões, sobretudo a do G20, é entendida como um ganho substancial em vista dos procedimentos decisório e negociador no Sistema Multilateral de Comércio (SMC), sobretudo no que tange à regulação da agricultura em nível multilateral. O G20 foi objeto de ásperas críticas e fortes pressões das principais potências, mas a legitimidade de suas posições e a firme condução do Brasil permitiram sua consolidação [...] deu provas de grande consistência técnica em suas propostas, coerência política em seu discurso e atuação e, acima de tudo, de profun-

DÂMICO, Flavio S. O G-20 e as negociações agrícolas da OMC. Pontes, v. 3, n.3, 2007. Disponível em http://ictsd.org/i/news/12473/ Acesso em 20/06/2012. Para uma abordagem mais profunda da composição e dos interesses dessas coalizões, ver: OMC, Groups in the WTO, 2012. Disponível em http://www.wto. org/english/tratop_e/dda_e/negotiating_groups_e.pdf Acesso em: 04 jun. 2012. Kamal Nath, à época, Ministro do Comércio e Indústria da Índia. MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. G-20 e a OMC: Comunicados e Documentos. Brasília, DF. Fundação Alexandre de Gusmão, 2007, p. 15.

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do compromisso com o Mandato de Doha e com o objetivo de desenvolvimento a que deve fazer jus esta Rodada16.

O Brasil, líder intelectual da Coalizão, passou gradualmente a ocupar um papel central na definição das diretrizes e das estratégias de atuação do grupo ao longo da rodada, obtendo cada vez mais legitimidade em suas propostas e na sua liderança intrabloco. O país foi crucial na formulação e manutenção da coalizão, que buscava a reforma da dinâmica negociadora e a revisão das normas até então estabelecidas na área agrícola, as quais privilegiavam os países adeptos de medidas com efeitos distorcivos ao comércio internacional17. Em contrapartida, nas negociações bilaterais o Brasil tem se destacado, nas últimas décadas, pelo tímido avanço em termos de celebração de acordos preferenciais de comércio (APCs). A assinatura desses acordos ganhou força a partir da década de 1990, e, atualmente, cerca de 600 APCs envolvendo bens e serviços já foram notificados à OMC18. Ademais, devido à estagnação das negociações comerciais em nível multilateral, esses acordos passaram a incorporar novos temas (OMC extra), como meio ambiente, direitos trabalhistas, concorrência, entre outros, ou aperfeiçoar temas já negociados no nível multilateral (OMC plus). São arranjos mais sofisticados do que aqueles do início da década de 1990, com foco em medidas “behind the border”, e que buscam acompanhar tendências comerciais e reforçar as principais cadeias produtivas dos países que lançam mão de tais iniciativas (Badin, 2012; Thorstensen, 2011).

Comércio, Investimentos e Negociações Internacionais: Uma breve análise das relações econômicas entre o Brasil e os países em desenvolvimento nas últimas décadas

O Brasil, detentor de 22 acordos preferenciais que envolvem bens e/ou serviços, concentrou a celebração de APCs com países da América Latina. Os arranjos extrarregionais que o país possui são com parceiros de pouca relevância comercial, sendo que, em alguns casos, os instrumentos ainda não se encontram vigentes, como mostra a tabela 7 abaixo. Ademais, é importante salientar que os acordos dos quais o Brasil é parte têm como foco a liberalização comercial por meio da desgravação tarifária, sendo que a grande maioria não contém temas OMC plus ou OMC extra. Tabela 7 – Acordos comerciais dos quais o Brasil é parte19 Acordos Preferência Tarifária Regional entre países da ALADI (PTR-04) Acordo de Sementes entre países da ALADI (AG-02)  Acordo de Bens Culturais entre países da ALADI (AR-07) Brasil – Uruguai (ACE-02) Brasil – Argentina (ACE-14) Mercosul (ACE-18) Mercosul – Chile (ACE-35) Mercosul – Bolívia (ACE-36) Brasil – México (ACE-53) Mercosul – México (ACE-54) Automotivo Mercosul – México (ACE-55) Mercosul – Peru (ACE-58) Mercosul – Colômbia, Equador e Venezuela (ACE-59)

MISSÃO DO BRASIL EM GENEBRA, Carta de Genebra. Ministério das Relações Exteriores. Ano 4, n.° 6, setembro de 2005, p. 6 16

Para uma análise mais completa da atuação do Brasil no G20 durante a Rodada Doha, ver: PIMENTA JR, J.L., Coalizões Internacionais e o G-20: Aspectos da liderança brasileira na Rodada Doha de Desenvolvimento da OMC. Disponível em: http://www.iri.usp.br/documentos/defesa_12-09-12_Jose_ Luiz_Pimenta_Junior.pdf Acesso em: 12 dez.2014. 17

Fonte: WTO. Regional Trade Agreements Database. Disponível em: http:// www.wto.org/english/tratop_e/region_e/region_e.htm Acesso em: 18 dez.2014. 18

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Brasil – Guiana (ACE-38) Brasil – Suriname (ACE-41) Brasil – Venezuela (ACE-69)

Uma abordagem mais detalhada do conteúdo dos acordos está disponível no sítio eletrônico do MDIC, no endereço: http://www.desenvolvimento.gov.br/ sitio/interna/interna.php?area=5&menu=405 Acesso em: 20 dez.2014. 19

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Mercosul – Cuba (ACE-62)  Mercosul/ Índia Mercosul/ Israel  Mercosul/ SACU – AINDA SEM VIGÊNCIA

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ciais com os países dos Brics e diversos países africanos; (iv) Agenda OMC; (v) assinatura de Acordos de Cooperação e Facilitação de Investimentos (ACFI); (vi) assinatura de Acordos para Evitar a Dupla Tributação Internacional e, por fim (vii) fortalecimento institucional do Comércio Exterior brasileiro21.

Mercosul/Egito – AINDA SEM VIGÊNCIA Mercosul/Palestina – AINDA SEM VIGÊNCIA

Fonte: MDIC

Recentes iniciativas do setor privado brasileiro visaram propor ao governo nacional uma agenda efetiva de negociação de APCS. Em 2012, por exemplo, a Fiesp, por meio do estudo “Análise Quantitativa de Negociações Internacionais20” mapeou as perspectivas de importantes setores da economia brasileira em relação à assinatura de APCs, No estudo, foram simulados acordos entre o Mercosul e diversos países, e os resultados derivados da liberalização comercial foram compartilhados com eminentes empresas e associações setoriais. Em linhas gerais, foi consenso entre as associações e empresas consultadas que a América Latina é a região em que o Brasil deve concentrar seus esforços negociadores, sobretudo em relação a acordos que vão além do espectro tarifário. Outras oportunidades também podem ser visualizadas com EUA, União Europeia e União Aduaneira da África Austral. Em 2013 e 2014, a Fiesp também lançou dois Documentos de Posição, que buscavam atentar para a necessidade de integrar estrategicamente a economia nacional à esfera internacional. De maneira geral, ambos os documentos eram pautados por cinco eixos de atuação: (i) aprofundamento da integração regional (Mercosul e América Latina); (ii) incremento da integração extrarregional (sobretudo com países/regiões que contam com uma estrutura produtiva de elevado conteúdo tecnológico, como EUA, Japão e União Europeia; (iii) intensificação de ações econômicas e comer Documento disponível no sítio da FIESP em: http://www.fiesp.com.br/indicespesquisas-e-publicacoes/analise-quantitativa-de-negociacoes-internacionais/ Acesso em: 12 dez. 2014. 20

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Considerações Finais Como se pode perceber, o Brasil tem ampliado seus esforços visando a uma maior integração com PEDs. Em nível político, as últimas décadas foram cruciais para o maior engajamento do país em projetos de cooperação Sul-Sul, os quais visaram à transferência da expertise brasileira para outros países, em temas-chave para o desenvolvimento econômico de regiões como África e América Latina. Ao longo da presente análise, é possível evidenciar o esforço que governo e empresariado passaram a empreender nos últimos anos, com vistas a diversificar os destinos das exportações brasileiras. Apesar de incipiente, é crescente o número de PEDs que passaram a figurar entre os principais compradores de produtos brasileiros na última década. Nesse sentido, destaca-se a atuação de entidades governamentais, agências especializadas, federações e associações que, por meio de ações de inteligência comercial e diplomacia empresarial, atuam como verdadeiros facilitadores do acesso de produtos brasileiros a novos mercados. Em relação aos investimentos brasileiros no exterior, buscou-se destacar o pujante processo de internacionalização de alguns setores da economia nacional, que tiveram como foco o mundo em desenvolvimento. Países que crescem a taxas elevadas e com mercados cada vez mais consolidados, passaram a ser destino dos mais diversos tipos de iniciativas brasileiras nas últimas décadas. Apesar dos avanços, essa dinâmica precisa ser aprofundada. O Brasil precisar capturar cada vez mais as crescentes oportunida Para maiores informações, consultar: http://www.fiesp.com.br/indicespesquisas-e-publicacoes/propostas-de-integracao-externa-da-industria/ Acesso em: 12 dez. 2014. 21

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des presentes nas economias emergentes. Nesse sentido, iniciativas como a proposição de Acordos de Cooperação e Facilitação de Investimentos (ACFIs), em curso pelo governo brasileiro a países da África e, futuramente, América Latina devem ser ampliadas. Os ACFIs foram concebidos em conjunto com o setor privado brasileiro, atendendo a diversas prerrogativas e prioridades estabelecidas pelo setor produtivo. Cabe, a partir de agora, a ampliação dessa agenda, com a assinatura de acordos comerciais ambiciosos e equilibrados que atendam aos interesses do setor privado brasileiro. É fundamental que o Brasil amplie e consolide sua presença no exterior de maneira estruturada, sobretudo em países emergentes. Para tanto, o planejamento e a combinação de políticas de curto, médio e longo prazos devem ser foco de atuação conjunta do governo e do setor produtivo brasileiro.

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AGRICULTURA, COMÉRCIO INTERNACIONAL E COOPERAÇÃO SUL-SUL: O CONTENCIOSO DO ALGODÃO BRASIL-EUA Carlos Henrique Canesin* Adriana Mesquita Corrêa Bueno**

Introdução O ambiente internacional sofreu sensíveis alterações desde os tempos da balança de poder do concerto europeu até o atual estágio liberalizante. O que encerrou, mas também abriu, novos instrumentos de política internacional. Embora a política de poder não possa ser a priori descartada das relações interestatais, seu uso tem sido cada vez mais restrito e têm prevalecido mecanismos de conciliação e acomodação diversos (Pease, 2003). O que se observa é que os instrumentos de política a que podem recorrer os Estados se alteraram com a reestruturação do sistema internacional. Mas o mesmo não é verdade a respeito de suas moti* Doutorando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Analista “A” de Cooperação Internacional da Embrapa-SRI. ** Doutorando em Relações Internacionais pelo Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Analista “A” de Cooperação Internacional da Embrapa-SRI.

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vações. Com isso não se sugere aqui que os Estados estejam exclusiva ou principalmente preocupados com questões de segurança, o que não era uma realidade absoluta mesmo sob a ordem precedente, mas sim que os mesmos, assim como qualquer indivíduo racional, possuem preferências inerentes aos seus sistemas domésticos de legitimidade e que esses mesmos Estados buscam no ambiente internacional a realização dessas preferências. Ora, uma vez que os Estados, enquanto atores racionais, são capazes de definir objetiva e coerentemente seu conjunto de preferências, devem também ser capazes de avaliar os custos e benefícios envolvidos na consecução das mesmas, dadas as restrições impostas pelo meio externo. E dessa forma, são capazes de escolher o melhor meio de ação para maximizar seu bem-estar. Resulta daí, como observa Helen Milner (1997), que o sistema internacional oferece tanto a possibilidade de cooperação quanto de conflito, a depender das preferências externalizadas pelo ator-Estado em questão, dos incentivos do sistema (meios de ação factíveis) e da própria natureza da questão (temática). Todo Estado, assim como os indivíduos, procura maximizar seu bem-estar. O bem-estar de um Estado significa em última instância o bem-estar de sua sociedade e assim de cada indivíduo que a constitui. Dessa forma, o bem-estar do todo, Estado, não pode ser diversamente definido em relação ao bem-estar de suas partes constituintes. O que implica que para o Estado, assim como para o indivíduo, o bem-estar pode ser definido por meio da teoria econômica e a maximização do bem-estar implica na maximização de seus recursos materiais (Nicholson, 2005). Bem verdade, existam conflitos distributivos em torno dessas dotações, a renda per capita média é um bom indicador de desenvolvimento econômico por sua correlação positiva com uma diversa gama fatores que indubitavelmente contribuem para o bem-estar dos indivíduos (Jones, 2005). Os Estados, atores racionais no ambiente internacional, tendem assim a buscar a maximização de seu bem-estar pela realização de ganho econômico, sobretudo o comercial como se pode facilmente observar nas recorrentes negociações multilaterais na

OMC. Os arranjos multilaterais, bilaterais ou regionais são adotados conforme a percepção de que avançam os interesses particulares de seus aderentes. É importante notar, no entanto, que assim como existem assimetrias no ambiente internacional o mesmo vale para o acesso de determinados grupos privilegiados ao aparato estatal, mais facilmente transmitindo as suas próprias preferências às formulações governamentais. Tal dinâmica depende do poder relativo dos grupos mobilizados domesticamente e, embora obedeça a mecanismos competitivos, sofre dos problemas naturais de qualquer formulação de ação coletiva (Olson, 1965; Olson; Zeckhauser, 1966). O que fica patente é que, embora as preferências dos Estados possam ser traduzidas em termos econômicos, os mecanismos à sua disposição para avançá-las são eminentemente políticos. É nesse sentido que não se pode descartar a priori a utilização de quaisquer instrumentos, dadas as condições restritivas de ganhos e custos em cada situação específica, ao alcance dos Estados no sistema internacional  – inclusive a guerra e a política de poder não são a priori descartadas, no entanto, seus custos tanto de curto quanto de longo prazo são tão absurdamente imensuráveis que sua utilização se torna virtualmente improvável dados os ganhos possivelmente auferidos. Isso sugere que o atual sistema internacional penaliza pesadamente atitudes belicistas, mas não coage de forma alguma em favor da cooperação interestatal, esta continua a ser uma decisão autônoma dos atores, tanto quanto o conflito (Milner, 1997). Definida a estratégia cooperativa, para um caso particular, como aquela que maximiza o bem-estar do Estado, inicia-se a barganha com outros Estados para extrair da cooperação os maiores dividendos possíveis. A barganha cooperativa se dá, assim, fundamentalmente em torno do aspecto distributivo. E embora seja eficiente em seu sentido paretiano não é equitativa, sendo permeada por linkages com outras áreas temáticas e outros tabuleiros, assim como pela interdependência assimétrica (Keohane; Nye, 1989). Dessa forma, as compensações (sidepayments) ou as retaliações (shadow price), são

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nada mais do que materializações dos linkages no jogo cooperativo/ competitivo, que visam ampliar/reduzir o winset dos atores. Uma vez que a vinculação ao jogo cooperativo é uma decisão autônoma, surge um problema operacional externo ao jogo que pode afetar seu output. Este problema é a factibilidade e credibilidade dos compromissos assumidos. Pois, muito embora os ganhos percebidos conjuntamente na cooperação possam ser suficientes para garantir o compromisso, sempre existe a possibilidade de deserção – um recorrente problema na teoria dos jogos, o que impede soluções iterativas para as disputas. Uma solução para o problema cooperativo pode ser a criação de organismos internacionais capazes de monitorar e garantir em certa medida o cumprimento dos acordos, como no caso do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da Organização Mundial do Comércio (OMC). Em alguns casos inclusive com a delegação de parcela da soberania estatal para uma instituição internacional com mandato previamente acordado, de forma a garantir o controle recíproco do comportamento dos atores, como a União Europeia (UE). Esses mecanismos de controle em áreas nas quais os ganhos conjuntos percebidos são altos, mas os mecanismos tradicionais de garantir a adesão ao acordo e/ou os mecanismos domésticos de controle são ineficientes, aumenta substancialmente a credibilidade dos compromissos (Coutinho; Hoffmann; Kfuri, 2007). Sob essa perspectiva, as organizações internacionais de todos os tipos, sejam de caráter técnico como o sistema multilateral de comércio GATT/ OMC, e até os arranjos de integração regional podem ser entendidos como mecanismos de self-enforcement dos acordos internacionais, garantidos por mecanismos de monitoramento da adesão ao mandato pré-estipulado. Dessa forma, a sustentabilidade em longo prazo de qualquer regime internacional1 dependerá da eficácia obtida em se garantir

o cumprimento dos acordos e regras do mesmo e o desempenho de cada Estado em elevar os seus próprios ganhos gerais no sistema internacional e, por conseguinte, seu bem-estar doméstico, dependerá de sua eficiência em se utilizar dos mecanismos da interdependência assimétrica para estabelecer os linkages entre diferentes áreas temáticas e tabuleiros de negociação de forma a construir um ambiente favorável às suas próprias preferências. No caso específico tratado neste capítulo, procuraremos demonstrar como o Brasil se utilizou desses instrumentos para estabelecer linkages entre o sistema multilateral de comércio representado pela OMC e o sistema de cooperação internacional para o desenvolvimento, especificamente em sua vertente de cooperação técnica Sul-Sul.

A origem das teorias de regimes internacionais situa-se na década de 1970, com a publicação do artigo “International responses to technology: concepts and trends”, por John Ruggie (1975). Conforme o racionalista Stephen Krasner, os regimes podem ser definidos como “conjuntos de princípios implícitos ou explícitos, normas, regras e procedimentos em torno dos quais as expectativas

A OMC e a solução de controvérsias A Organização Mundial do Comércio, estabelecida no ano de 1995, foi o principal fruto da Rodada Uruguai de negociações multilaterais de comércio e substituiu tanto na prática quanto no imaginário o perfil anterior de comércio internacional administrado por um comitê de potências comerciais que prevalecia sob o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) desde o pós-guerra. A principal função da OMC é servir como fórum para que seus membros criem e alterem as regras globais de comércio de forma multilateral e, ao mesmo tempo, procurem maximizar os ganhos potenciais do comércio internacional para o conjunto de sociedades representadas pelo sistema. Em conjunto, os membros procurariam criar novas oportunidades econômicas, em um jogo de soma positiva, derrubando barreiras comerciais de forma ainda mais acelerada do que nas décadas anteriores, em futuras rodadas de negociações da entidade.

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dos atores convergem em uma dada área das relações internacionais” (Krasner, 1982, p. 2). Outros expoentes dessa corrente são Susan Strange, Robert Keohane e Robert Axelrod.

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O Sistema de Solução de Controvérsias da instituição, por sua vez, seria utilizado pelos Estados membros, aliado a sistemas domésticos de defesa comercial alinhados às diretrizes multilaterais, para identificar medidas ilegais de acordo com as regras multilaterais e fazer cumprir as obrigações comerciais existentes. Esse é, portanto, um mecanismo essencial para garantir em longo prazo a sustentabilidade do sistema por meio da efetiva execução dos compromissos assumidos na organização e, segundo opinião do ex-Diretor Geral Pascal Lamy, “garantindo a igualdade de condições para todos” (OMC, 2013. Tradução nossa). Pesquisa realizada pelo Conselho Consultivo do DiretorGeral no ano de 2004 (OMC, 2004) mostra que a opinião geral é de que o sistema tem sido um notável sucesso da organização. Outros estudiosos (Busch; Reinhardt, 2000) vão ainda mais longe e chegam a concordar com a afirmação do ex-Diretor Geral Mike Moore (OMC, 2000) de que o mecanismo de solução de controvérsias é o “eixo central” e a “espinha dorsal” do sistema multilateral de comércio. Com a finalidade de assegurar a participação adequada dos países em desenvolvimento (PED) no novo sistema, quando os membros menos desenvolvidos não possuíssem recursos ou expertise para aplicar os novos regulamentos ou adotar procedimentos litigiosos, a entidade ofereceria treinamento e assistência, pagas principalmente pelas contribuições dos países desenvolvidos (PD) mais ricos como Estados Unidos (EUA) e União Europeia (UE). No entanto, pouco de fato parece ter sido alcançado no sentido da efetiva inclusão desses atores menores no efetivo processo de negociação dos pilares da regulação comercial internacional e na utilização do instrumental criado para garantir um padrão mais justo de comércio: o Órgão de Solução de Controvérsias (OSC). Conforme observam Bown e Hoekam (2005), os países mais pobres membros da OMC estão quase que completamente ausentes dos procedimentos necessários para garantir o cumprimento dos acordos firmados na organização e a aplicação correta dos seus direitos de acesso a mercados, representado formalmente pelo sistema de solução de controvérsias. Embora os países em desen-

volvimento mais avançados e maiores façam uso crescente dos mecanismos estabelecidos no “Entendimento sobre Solução de Controvérsias” da OMC (DSU), os países de menor desenvolvimento relativo (LDC2) estão em sua maioria alijados do processo em qualquer uma das categorias: demandante, acionado ou parte interessada/terceira parte. O sistema de solução de controvérsias da OMC tem características de bem público ofertado pela organização e sua eficácia é fundamental tanto do ponto de vista da legitimidade institucional quanto pelas externalidades positivas que pode gerar para o sistema multilateral de comércio e suas partes (Bagwell; Mavroidis; Staiger, 2002). A participação ativa no sistema de solução de controvérsias da OMC pode ter externalidades positivas se os esforços específicos de um país contribuir para a remoção de uma barreira comercial que afete negativamente também outros membros da organização. Ao passo que essa mesma participação, em nível apropriado, reduz a incerteza e dá maiores garantias quanto ao cumprimento dos acordos firmados na organização. Ainda, faz com que os países estejam mais dispostos a aprofundar o escopo de seus próprios compromissos, dado o reduzido risco de deserção, para conseguir vantagens adicionais de outros membros. Isso pode levar a um efeito em cadeia, conduzindo o sistema para maiores níveis de liberalização progressivamente mais rápidos. A garantia do cumprimento dos compromissos acordados é um problema comum na literatura de organizações internacionais, e se materializa no caso da OMC com especial importância para os países em desenvolvimento que ainda não estão totalmente integrados

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De acordo com o critério classificatório desenvolvido pelo Banco Mundial, utilizando o Produto Nacional Bruto per capita (WB, 2013a, 2013b, 2013c) calculado pelo método Atlas, os países podem ser estratificados por nível de renda per capita: 1) Países Desenvolvidos (PD), renda per capita maior do que USD 12.615; 2) Países em desenvolvimento (PED), renda per capita entre USD 1.085 e USD 12.615; 2.1) Países em Desenvolvimento de renda médiaalta (PEDma), renda per capita entre USD 4.086 e USD 12.615; 2.2) Países em Desenvolvimento de renda média-baixa (PEDmb), renda per capita de USD 1.036 a USD 4.085; e 3) Países de menor desenvolvimento relativo (LDC), renda per capita igual ou inferior a USD 1.035. 2

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ao sistema (tratamento especial e diferenciado). Assim, uma falha sistêmica que impossibilite os países em desenvolvimento de exigir o cumprimento de acordos e compromissos existentes pode levar ao colapso não apenas do OSC, mas do próprio motor da OMC que é a liberalização progressiva do comércio internacional. Esse efeito adviria do fato de que os países em desenvolvimento correspondem hoje à maioria dos países membros da organização e que, portanto, a continuidade e viabilidade do objetivo principal da OMC requer a incorporação progressiva desses países na normalidade do sistema multilateral. Caso esses países possuam suficientes razões para acreditar que não poderão exigir o cumprimento das obrigações dos outros membros – especialmente chave são os direitos de acesso a mercado, por meio do sistema de solução de controvérsias  –, eles estarão menos propensos a efetivar seus próprios compromissos na OMC e a assumir novos compromissos no curso da atual Rodada Doha de negociações comerciais multilaterais. Parte do debate acadêmico sobre a participação dos países em desenvolvimento no sistema multilateral de comércio tem, assim, se concentrado em identificar as possíveis explicações para a baixa participação dos países em desenvolvimento na solução de controvérsias na OMC. Uma diversa gama de variáveis tem sido sugerida como potenciais explicações por essas pesquisas: i) falta de compreensão correta dos direitos e obrigações na OMC; ii) problemas de articulação entre o setor público e o setor privado na identificação de demandas; iii) restrições de recursos financeiros e humanos para identificar violações e levar disputas até o final; e iv) temor de que as preferências comerciais ou outras formas de assistência sejam retiradas pelos países desenvolvidos em retaliação; dentre outras. No entanto, embora esse elenco de variáveis mais frequentemente apontado seja válido e em nossa opinião represente bem uma explicação do cenário atual de utilização do sistema de solução de controvérsias da OMC pelos países em desenvolvimento, essa é uma explicação parcial. Para compreender a instalação e os desdobramentos dos contenciosos, assim como as posições brasileiras e de outras partes interessadas em apoio na OMC nestes,

é necessária uma análise com amplitude ainda maior que tenha como foco as conexões entre os diferentes regimes e subsistemas do sistema internacional e a atuação da Política Externa Brasileira (PEB), no contexto do contencioso do algodão na OMC, neste cenário ampliado.

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Diretrizes da Política Externa Brasileira no governo Luis Inácio Lula da Silva (2003-2010) A diplomacia do governo Lula conferiu continuidade às linhas gerais da política externa brasileira na medida em que o Estado se manteve como principal definidor da PEB. Ademais, os principais temas e agendas presentes na política externa brasileira do governo Lula – como será explicitado abaixo – remetem àqueles presentes nos governos brasileiros desde a década de 1960, quando a PEB passou a estar diretamente relacionada ao objetivo do desenvolvimento. Portanto, a diplomacia lulista não representa uma ruptura ou inflexão; antes, uma reformulação da estratégia de inserção internacional do Brasil. Isso é, trata-se de uma mudança muito mais de forma de elaboração e execução da política exterior do que conteúdo. Nesse sentido, conforme Marcelo Fernandes de Oliveira (2005), a diplomacia do governo Lula aprofundou a correção de rota iniciada no final do segundo mandato de seu predecessor, Fernando Henrique Cardoso. Ademais, de acordo com Cervo3, a PEB do governo Lula caracterizou-se pelo paradigma logístico de inserção internacional, ou seja, a diplomacia brasileira buscava o interesse nacional do país de forma madura e que visa o desenvolvimento econômico, social e político do Estado brasileiro. Alcides Vaz (2003, p. 8) também Segundo nomenclatura elaborada por Paulo Roberto de Almeida (2006, p. 95-106), as obras concernentes à diplomacia do referido governo dividemse em: vozes autorizadas, ou seja, posições e discursos oficiais do Itamaraty; apoiadores externos, acadêmicos e profissionais de comunicação que apoiam as diretrizes desse governo; e os independentes ou críticos, que possuem um olhar crítico sobre as diretrizes da atual diplomacia. Amado Cervo é considerado um apoiador externo da diplomacia do governo Lula. 3

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considera que a política exterior desenhada pelo governo Lula não representou uma ruptura com a PEB do governo anterior, apesar de apresentar nuances diferenciadoras e críticas à postura adotada por FHC e seu Chanceler: Embora não configure ruptura direta com nenhuma das dimensões centrais da política exterior do governo anterior, e não introduza tampouco elementos inéditos em relação a outros períodos históricos, a orientação que o Governo Lula procura imprimir à política externa constrói-se a partir de avaliação crítica da condução e dos resultados alcançados por seu antecessor, bem como da trajetória que se imprimiu à ação diplomática do Brasil após o declínio do nacional desenvolvimentismo ao final dos anos oitenta.

Assim, a ação diplomática brasileira do governo Lula aprofundou a ênfase aos aspectos políticos e sociais e às parcerias com outros países em desenvolvimento de renda média como Índia, África do Sul, China e Rússia,4 que já estavam presentes na ação do Itamaraty desde o governo interino de Itamar Franco e que, no limite, é uma diretriz da PEB desde a década de 1960. Destarte, a política externa recuperou, parcialmente, pontos da agenda da Política Externa Independente (PEI) e do Pragmatismo Responsável e Ecumênico.5 Nesse contexto, as grandes linhas de atuação da política exterior do governo Lula foram: Cumpre destacar que, embora China e Rússia sejam considerados neste estudo como países intermediários, seus aspectos econômicos, militares, demográficos e até geográficos permitem que sejam denominados por alguns autores grandes potências (Almeida, 2004, p. 162-184). Nesse sentido, a coordenação política com esses países torna-se mais complexa e dificulta a conformação de coalizões nos mesmos moldes da iniciativa IBAS, por exemplo. 4

A proximidade que a agenda exterior do governo Lula possui em relação à PEI e ao Pragmatismo Responsável gera críticas por parte dos chamados autores independentes ou críticos, os quais afirmam que a diplomacia do governo Lula reproduz de forma equivocada o terceiro-mundismo das décadas de 1960 e 1970. 5

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(...) revitalização e ampliação do MERCOSUL; intensificação da cooperação com a América do Sul e com os países africanos; relações maduras com os Estados Unidos; importância das relações bilaterais com as potências regionais China, Índia, Rússia e África do Sul; ampliação do número de membros permanentes no Conselho de Segurança das Nações Unidas; participação nos principais exercícios multilaterais em curso  – Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio, negociação da ALCA e entre MERCOSUL e União Europeia –, assim como na conformação das novas regras que regerão as relações econômicas com vistas à defesa dos interesses dos países em desenvolvimento. (Lima, 2003, p. 97-98)

A partir da análise dos temas e agendas presentes na política exterior brasileira desde 2003, pode-se inferir que há dois grandes elementos norteadores da diplomacia do governo Lula, quais sejam: multilateralismo de reciprocidade,6 presente na atuação brasileira junto às Nações Unidas e seu Conselho de Segurança; junto à OMC, referente ao comércio internacional; clima e outras questões ambientais; saúde e direitos humanos; e internacionalização da economia brasileira, por meio da integração regional e enfoque em relações bilaterais com parceiros estratégicos – Estados Unidos, China, Índia e Rússia, por exemplo. (Cervo; Bueno, 2008, p. 491 e ss). Em análise que combina o modelo de Hermann7 e pressupostos construtivistas, Vigevani e Cepaluni (2007) advogam que a principal estratégia de inserção internacional da política exterior brasileira do governo Lula foi a autonomia pela diversificação, isto é, busca-se a consecução do interesse nacional de forma independente e sem Esse conceito, desenvolvido por Amado Cervo, afirma que a reciprocidade se estabelece no SI quando as regras do ordenamento multilateral beneficiam todos os Estados envolvidos, sem privilegiar aqueles que são considerados potência. Ainda, deve ele estar presente em todos os âmbitos da ordem internacional, quais sejam: comércio, economia, segurança, questões ambientais e de saúde e direitos humanos (Cervo; Bueno, 2008, p. 496). 6

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Esse modelo busca examinar a extensão das alterações de rumos da política externa e identificar os principais atores e eventos que provocam tais mudanças.

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alinhamentos automáticos, trabalhando com parceiros diversos: países desenvolvidos, em desenvolvimento e demais intermediários e a capacidade de fornecer bens públicos globais, ou seja, intervir em assuntos variados, que atenderiam não apenas aos interesses brasileiros imediatos mas também os de longo prazo ou mais difusos. Essa autonomia pela diversificação revelou-se em dois eixos principais: regionalismo e integração regional, por meio do papel de liderança que o país procurou desenvolver na América Latina e, em especial, na América do Sul, desde a ascensão de Lula à Presidência; e ênfase nas relações Sul-Sul, por intermédio de parcerias e alianças como o G-208 e o Fórum IBAS.9 Andrew Hurrell (2007) examina o surgimento das regiões na política internacional e afirma ser necessário incorporar as sociedades internacionais regionais  – ou sistemas de Estados regionais – em uma adequada compreensão da sociedade internacional contemporânea como um todo. O regionalismo10 é um processo instável e indeterminado de sete lógicas múltiplas que competem entre si, sem um ponto de fim único. As lógicas concorrentes apontadas por Hurrell são: econômica, transformação tecnológica, integração societal, competição por poder político, segurança, identidade e comunidade. Ainda, o impacto do regionalismo na política internacional é entendido como “uma resposta às crises e falência econômi-

cas e à percepção regional compartilhada de que os vizinhos são necessários como parceiros em um mundo política e economicamente indecente e ameaçador” (Hurrell, 2007, p. 141. Tradução nossa). Daí, decorre a conceituação de Sistema Multirregional Internacional, isto é, um sistema de Estados no qual prevalece as diversas regiões existentes. Nesse contexto, alguns países emergentes destacam-se em suas regiões e buscam consolidar sua posição de líderes e potências regionais11 no sistema internacional. O que diferencia as potências regionais dos demais emergentes existentes em uma determinada região é que essas são capazes de prover bens públicos para Estados vizinhos, como benefícios econômicos, manutenção da paz e segurança, estabilidade e coordenação política. Ademais, potências regionais projetam seu poder – seja ele duro ou brando – e exercem influência política na região a que pertencem. No âmbito desse Sistema Multirregional Internacional, o Brasil exerce papel de liderança12 na América Latina, como bem expressou o aceite para comandar a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti em 2003. O custeio de uma operação de pacificação denota a vontade tácita do país em afirmar-se como líder do subcontinente e o interesse em um assento permanente, com direito a veto, no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Ainda no campo regional, o Brasil empreendeu ações que visavam o fortalecimento do Mercosul, com a entrada de novos membros associados (Peru, Colômbia e Equador) e da Venezuela, como

O G-20 concentra sua atuação em agricultura, e possui vinte e três membros África do Sul, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, China, Cuba, Egito, Equador, Filipinas, Guatemala, Índia, Indonésia, México, Nigéria, Paquistão, Paraguai, Peru, Tailândia, Tanzânia, Uruguai, Venezuela e Zimbábue. Ele foi formado no dia 20 de agosto de 2003 para a V Conferência da OMC, que durou de 10 e 14 de setembro desse mesmo ano. 8

O Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul (Ibas) foi criado em junho de 2003 e possui três pilares: coordenação política, cooperação setorial trilateral, por meio dos Grupos de Trabalho, e o Fundo Ibas para Alívio da Fome e da Pobreza. 9

Hurrell recorda que é necessário diferenciar alguns processos comumente definidos como regionalismo. São conceitos distintos de regionalismo, e entre si: regionalização, identidade e consciência regionais, cooperação interestatal regional, integração econômica regional e consolidação regional. 10

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Alguns autores, como Ricardo Sennes, utilizam o conceito “países intermediários”, por tratar-se de uma conceituação mais abrangente do que potências regionais e países emergentes e permitir uma agenda de pesquisa comparativa. Países intermediários são “Estados que ocupam intuitivamente uma posição intermediária no ranking de capacidades políticas internacionais e que estão, portanto, situados em um nível intermediário de importância internacional política e econômica” (Vaz, 2006, p. 53-54. Tradução nossa). Para análise detalhada dessa categoria conceitual, ver Sennes (2006) e Hurrell (2000). 11

Em discursos oficiais, Lula e o Itamaraty desvinculam hegemonia de liderança; afirmam que essa não é almejada pelo país e que esta é uma vocação natural do mesmo, devido a seu tamanho geográfico, capacidade econômica e tradição de articulação externa. 12

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Estado-parte, e a estabilidade econômica e da segurança regional, por meio da maior integração da região  – embora efetivamente o resultado final dessas políticas ser contestável. Aqui, destaca-se a criação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), que forma zona de livre comércio entre os blocos do Mercosul e da Comunidade Andina de Nações (CAN), além de Chile, Guiana e Suriname. Na dimensão da segurança regional, foi criado o Conselho de Defesa Sul-Americano, proposta essa feita pelo Brasil. Nesse sentido, a política externa brasileira do governo Lula combinou o regionalismo e as relações Sul-Sul na busca de uma autonomia externa que se pautava pela diversificação, tanto de parcerias quanto de temas nos quais o país julgava ter capacidade de intervir. Apesar da forte aproximação com países do Sul desde 2003, no governo Lula, nesse período o Brasil não desconsiderou ou rompeu laços com seus parceiros tradicionais do Norte, como Estados Unidos, União Europeia (UE) e Japão. Dessa forma, entende-se que no período de análise os principais objetivos da PEB foram: assegurar poder de barganha ao país nas negociações internacionais em múltiplas frentes, reduzir as assimetrias presentes no sistema internacional, consolidar o papel e a imagem do Brasil como líder regional e potencializar condições para fomento do desenvolvimento nacional.

cional; entretanto, com a gradual constituição de um Sistema de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (SICD) durante as décadas de 1940 a 1960, os dois conceitos se diferenciam e, em 1969, o Comitê de Assistência para o Desenvolvimento da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (CAD/OCDE) elabora o conceito definitivo de Ajuda Oficial ao Desenvolvimento (AOD), para substituir o termo “ajuda”. A AOD caracteriza-se por ocorrer estritamente no âmbito governamental e por ter pelo menos 25% de seu montante financeiro transferido em caráter de fundos perdidos. Conforme Ayllón Pino (2006), o SICD é um regime internacional heterogêneo, decorrente de três dinâmicas históricas: (i) o conflito Leste-Oeste, característico do período bipolar de 1945-1988; (ii) o processo de descolonização, que teve início em meados do século XX e foi aprofundado a partir da década de 1950, e o consequente deslocamento do conflito para o eixo Norte-Sul; e (iii) o aprofundamento da globalização e das integrações regional e econômica. O SICD passou por profundas alterações, sobretudo a partir das mudanças ocorridas no sistema internacional no início do século XXI, como a crise financeira, a diminuição da ajuda externa por parte de doadores tradicionais e o surgimento de atores estatais emergentes ou intermediários. Os doadores emergentes, principais protagonistas da Cooperação Sul-Sul para o Desenvolvimento, caracterizam-se por serem países que atingiram um patamar médio de desenvolvimento relativo mais recentemente, como África do Sul, Brasil13, China, Índia, México e Turquia. Em geral, os doadores emergentes possuem uma rede de cooperação bastante difusa e com foco em sua região, para garantir a paz, estabilidade e reforçar sua liderança regional, por meio da distribuição de bens públicos (Vigevani; Cepaluni, 2007). A cooperação técnica se institucionaliza a partir da criação das agências especializadas da ONU (Unesco, Pnud, Unicef ), das agên-

Cooperação Sul-Sul brasileira contemporânea: definições, práticas e lugar na agenda da PEB Para compreender a problemática proposta, faz-se necessário retomar o Sistema Internacional de Cooperação ao Desenvolvimento, suas origens, conceito, evolução e como a Cooperação Sul-Sul para o Desenvolvimento está inserida nesse Sistema. O conceito “ajuda” surge no pós-II Guerra Mundial para definir a ajuda econômico-financeira que os Estados Unidos forneceram a diversos países da Europa Ocidental e ao Japão para reconstruir suas economias, devastadas pelo conflito. A ajuda, nesse período, é remanescente do neocolonialismo do início do século XX e confunde-se com a cooperação interna328

O Brasil não é signatário da Declaração de Paris (OCDE), não é um membro do DAC/OCDE e não aceita o rótulo de “doador emergente”, pois trabalha com o conceito de horizontalidade e entende o conceito de doador como vertical. 13

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cias de cooperação bilateral (USAID – EUA, Jica – Japão, DFID – Reino Unido, GTZ/GIZ  – Alemanha, AFD  – França, AECID  – Espanha, dentre outras) e da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), entre as décadas de 1950 e 1970. No início dos anos 1970, surge a cooperação entre Estados em desenvolvimento, a chamada Cooperação Sul-Sul para o Desenvolvimento (CSS-D)14. Essa se desenvolve em três fases: (i) Guerra Fria, a partir do surgimento do Movimento dos NãoAlinhados, em 1955, e aprofundamento das relações Sul-Sul; (ii) década de 1980, marcada pela paralisia da CSS-D; e (iii) anos 1990 e 2000, com a criação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e “cooptação” da CSS pelos doadores tradicionais (países desenvolvidos e organizações internacionais) por meio da forma de cooperação triangular. A Agência Brasileira de Cooperação (ABC/MRE) foi criada em 1987, vinculada ao Ministério das Relações Exteriores (MRE), com o objetivo de centralizar a formulação política, a gestão e o monitoramento do sistema brasileiro de cooperação técnica internacional (Cervo, 1994). Inicialmente, a ABC/MRE foi estruturada com enfoque na gestão interna da cooperação recebida pelo Brasil de países desenvolvidos, mas com o passar do tempo e com a mudança no status internacional do país, essa Agência passou a coordenar e gerenciar a cooperação prestada15 pelo Brasil a outros países em desenvolvimento.

A atuação da ABC/MRE é pautada por cinco princípios de cooperação Sul-Sul, traçados pelo MRE: i) diplomacia solidária; ii) ausência de condicionalidades; iii) atuação em resposta a demandas (demand driven); iv) desvinculação de interesses comerciais; e v) reconhecimento da experiência local e adaptação da experiência brasileira.16 Nesse contexto, o Brasil atuou, em sua política externa, conforme os seguintes princípios e diretrizes (Brasil, 2007): i) aprofundamento da integração regional (com destaque para o Mercosul); ii) ênfase na cooperação Sul-Sul, porém sem descuidar dos parceiros tradicionais; iii) busca pela autonomia por meio da diversificação de parceiros; iv) promoção de parcerias estratégicas (China, Índia, África do Sul, Rússia); v) multilateralismo; vi) universalismo; e vii) autodeterminação e não intervenção. As diretrizes de política externa postas em prática durante os governos de Lula passaram, então, a enfatizar a cooperação com países em desenvolvimento como prioridade. No período entre 2005 e 2009, a cooperação brasileira para o desenvolvimento internacional divide-se nas seguintes categorias: cooperação técnica, científica e tecnológica; bolsas de estudos para estrangeiros; ajuda humanitária; operações de paz; e contribuições do orçamento brasileiro para organizações internacionais.17

A cooperação entre Estados em desenvolvimento passa a ser reconhecida a partir do Plano de Ação de Buenos Aires (1978), adotado por 138 países, durante Conferência das Nações Unidas para Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento (CTPD). Conforme esse documento, a CTPD tornou-se uma dimensão importante, pois possibilita que os países em desenvolvimento criem, adquiram, adaptem, transfiram e acumulem conhecimentos e experiências para seu desenvolvimento social e econômico (Buenos Aires Plan of Action, artigo V). 14

Desde 1959, existia um órgão do governo federal para coordenar, sobretudo, a ajuda recebida (Escritório do Governo Brasileiro para a Coordenação do Programa de Assistência Técnica). Tal Escritório foi substituído em 1969 pela Subsecretaria de Cooperação Econômica e Técnica Internacional (Subin) do Ministério do Planejamento e Coordenação Geral  – por meio do Decreto 15

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nº 65.476, de 21 de outubro de 1969. No âmbito do Ministério das Relações Exteriores, também existia um departamento responsável pela cooperação técnica, qual seja, o Departamento de Cooperação Científica, Técnica e Tecnológica (DCT). Esses princípios baseiam-se na retórica oficial do governo brasileiro. No campo acadêmico, existem trabalhos que analisam criticamente a aplicação desses princípios nos projetos de cooperação técnica internacional brasileira, vide Elodie Brun (2012) e didaticamente a palestra “Cooperação Internacional e Cooperação Sul-Sul” da pesquisadora Iara Costa Leite no I Curso de Atualização em Políticas Públicas de Cooperação Internacional em Saúde em Perspectiva Bioética, Brasília-DF, março/2013 (Disponível em: ). 16

Essa categorização está presente no primeiro relatório Cobradi, publicado em 2010, referente aos anos de 2005 a 2009. A segunda edição do relatório, publicada em 2013, referente ao ano 2010, traz mudanças nas categorias 17

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Nesse período, foram gastos R$ 252,6 milhões com a cooperação técnica, científica e tecnológica; já no ano de 2010, a cooperação técnica representou R$ 101,0 milhões (Brasil, 2010). Em termos porcentuais, entre o período de 2005 a 2010, o aumento de recursos financeiros investidos em cooperação técnica foi de mais de 300%, passando de R$ 25 milhões para R$ 101 milhões (Brasil, 2013). As principais áreas da cooperação técnica brasileira são: saúde, agricultura e educação e formação profissional. Ainda, a cooperação técnica Sul-Sul brasileira busca promover projetos e programas com abordagem estruturante. Conforme o relatório “Cooperação brasileira para o desenvolvimento internacional”, referente aos anos 2005 a 2009 (Idem, 2010, p. 33):

Assim, o retorno da ênfase na cooperação entre países em desenvolvimento é realizado pela diplomacia brasileira principalmente a partir da segunda metade dos anos 2000. A cooperação Sul-Sul esteve bastante presente na diplomacia brasileira nos anos 1960 e 1970, caracterizando-se então por uma agenda de Terceiro Mundo normativa, isto é, baseava-se muito mais no apoio solidário à causa dos países em desenvolvimento do que em interesses substantivos comuns. A retomada no século XXI decorre da combinação de dois fatores: a conjuntura do sistema internacional, que favorece o multilateralismo e o tipo de inserção internacional do Brasil; e o aprofundamento influenciado pela ascensão da corrente autonomista no Ministério das Relações Exteriores brasileiro (Saraiva, 2007). Contudo, essa retomada não reproduz pura e simplesmente a cooperação Sul-Sul dos anos 1960 e 1970; pode-se afirmar que esse esforço cooperativo contemporâneo possui um caráter substantivo, seletivo e hierarquizante, em que há convergência de fato de interesses, embora restrita aos interesses dos países intermediários, e não apenas solidariedade à causa do Sul. Segundo discurso oficial do governo brasileiro, a CSS-D desempenha um papel instrumental18 na PEB, sobretudo por meio de sua cooperação Sul-Sul. De acordo com o ex-Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, a cooperação técnica é um instrumento central da ação exterior do país (Inoue; Vaz, 2012). O aumento significativo da cooperação técnica e humanitária do país relaciona-se, ainda, às aspirações nacionais de promover a reforma do sistema das Nações Unidas e de seu Conselho de Segurança, bem como fortalecer as posições brasileiras no sistema internacional enquanto global player. Conforme Milani (2014, p. 14, tradução nossa),

Programas e projetos com abordagem estrutural são caracterizados por ações que possam desenvolver capacidades individuais e institucionais com resultados sustentáveis nos países beneficiados, em contraposição a projetos pontuais, cujos impactos são mais limitados. Os projetos de natureza estrutural oferecem diversas vantagens: aumentam o impacto social e econômico sobre o público-alvo da cooperação, logram assegurar maior sustentabilidade dos resultados dos programas/ projetos, facilitam a mobilização de instituições brasileiras para a implementação de diferentes componentes dos programas/ projetos, bem como criam espaço para a mobilização de parcerias triangulares com outros atores internacionais.

expostas no relatório anterior, apresentando as seguintes divisões: cooperação técnica; cooperação educacional; cooperação científica e tecnológica; cooperação humanitária; apoio e proteção a refugiados; operações de manutenção da paz e gastos com organismos internacionais. Essa mudança na categorização, entre outros fatores, dificulta a avaliação e monitoramento das ações brasileiras de cooperação para o desenvolvimento. Faz-se necessário, conjuntamente com os atores domésticos que executam projetos e programas de cooperação, desenvolver critérios permanentes que permitam a avaliação comparativa da evolução temporal da cooperação brasileira. Ademais, é importante estabelecer períodos fixos para publicação do relatório Cobradi (por exemplo, a cada três anos).

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concentrar-se na autonomia, na diversificação de parceiros estratégicos, fortalecer a integração sul-americana e a cooperação com a África, além de fornecer os meios para apoiar esses objetivos a longo prazo, são as características essenciais de um Brasil potência emergente e global player. Para um posicionamento contrário à instrumentalidade da CTPD na política externa brasileira, verificar LEITE et Al., 2013. 18

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Agricultura, comércio internacional e cooperação SulSul: o contencioso do algodão Brasil-EUA

O contencioso do algodão na OMC e a cooperação SulSul brasileira

de diversificação produtiva. Sob o enfoque social, a cotonicultura representa uma das poucas alternativas econômicas viáveis no curto e médio prazo para a geração de renda e de ocupações produtivas nas comunidades de agricultura familiar, principalmente aquelas situadas nas áreas rurais mais deprimidas economicamente. Com volume médio próximo de 1,7 milhão de toneladas de pluma nas últimas três safras, o Brasil é o quinto maior produtor mundial, atrás de EUA, China, Índia e Paquistão. O Brasil é o terceiro maior exportador e o primeiro em produtividade em sequeiro. O cenário interno também é favorável, sendo o quinto maior mercado consumidor, com quase um milhão toneladas/ano de pluma. No Brasil, a cadeia do algodão (algodão-têxtil-confecção) é o segundo setor que mais emprega mão de obra, perdendo apenas para a construção civil.20 Dada a magnitude do setor no país, os produtores de algodão são uma categoria muito bem organizada e articulada que é representada por uma associação classista chamada Associação Brasileira de Produtores de Algodão (Abrapa) há mais de quinze anos. Essa associação é congregada por associações estaduais de todas as regiões produtoras do Brasil e representa os interesses dos produtores de algodão em foros domésticos e internacionais. Um dos principais problemas, em geral, para levar adiante um contencioso na OMC é a capacidade de mobilização setorial e de sustentação dessa mobilização por vários anos durante o contencioso. No setor industrial ligado ao comércio internacional, que na maioria das vezes possui características oligopolistas, isso é em geral mais fácil. Mas na agricultura, esse problema geralmente é uma das fraquezas do setor agrícola brasileiro. Exceção a esse quadro, no entanto, são os produtores de algodão, que por meio da Abrapa, tiveram grande importância na abertura e sustentação do contencioso do algodão na OMC, inclusive tendo arcado com grande parte dos custos do processo.

O algodão é uma planta de múltiplos usos, sendo comercializada nos mercados mundiais como fibrosa (fibra e línter), como oleaginosa (é a sexta mais importante fonte de óleo da humanidade) e como fonte de proteínas de elevado valor biológico. A fibra do algodão é o insumo têxtil mais importante no mundo, representando mais de 40% da matéria prima dos vestuários. As fibras mais curtas são utilizadas na preparação do algodão hidrófilo, na fabricação de papel para escrever, de películas fotográficas e chapas de radiografia, dentre outros; e a fibrila é usada na indústria química de plásticos e de explosivos. Por sua vez, o caroço do algodão tem considerável interesse alimentar (óleo comestível e margarina) e industrial (sabão), e constitui uma das mais importantes alternativas para uso como matéria prima para a produção de biodiesel. A torta de algodão é aproveitada para a alimentação animal dado seu alto valor proteico (40% a 45%). Nesse extraordinário contexto de mercado, o agronegócio do algodão no mundo é um dos mais importantes do ponto de vista social e econômico, movimentando em toda a cadeia por ano mais de 300 bilhões de dólares e cerca de US$ 12 bilhões apenas no comércio internacional direto de algodão, que mobiliza cerca de 350 milhões de pessoas entre produção, logística e trading. O algodão é explorado em mais de 60 países em todos os continentes e atualmente são plantados, em média, 35 milhões de hectares no mundo todo, sendo uma das culturas que mais empregam mão de obra no setor rural e distribuem renda. Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a cultura do algodão no mundo envolve cerca de 90 milhões de famílias.19 No longo prazo, o algodão é considerado como uma das atividades do agronegócio de maior valor estratégico para o desenvolvimento regional de zonas deprimidas e com escassas oportunidades Disponível em: http://www.abrapa.com.br/estatisticas/Paginas/Algodao-noMundo.aspx. Acesso em: 19 set. 2014. 19

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Disponível em: http://www.abrapa.com.br/estatisticas/Paginas/Algodao-noBrasil.aspx. Acesso em: 19 set. 2014. 20

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Agricultura, comércio internacional e cooperação SulSul: o contencioso do algodão Brasil-EUA

O programa norte-americano de crédito e os subsídios aos produtores e aos exportadores de algodão (definidos nos mecanismos Farm Security and Rural Investment – Farm Bill, GSM-102, GSM103 e SCGP) foram responsáveis, no período 1999-2002, por uma queda abrupta dos preços internacionais do algodão. Apenas no ano anterior ao pedido de abertura de consultas do Brasil aos EUA na OMC sobre o tema (2001), a perda estimada para o setor no Brasil foi de cerca de US$ 600 milhões, pois, tais mecanismos deprimiram os preços internacionais em 12,6% e elevaram artificialmente a produção e as exportações americanas em 28,7% e 41,2%, respectivamente. No período questionado pelo contencioso originalmente (1999-2002), os prejuízos à economia brasileira foram da ordem de US$ 3,2 bilhões. Tais distorções levaram a uma grande mobilização do setor, representado pela Abrapa, e a uma parceria estreita entre o governo brasileiro a associação, que contratou uma firma de advocacia norte-americana para atuar no contencioso em apoio ao governo brasileiro e arcou com parcela significativa dos custos de abertura e manutenção do contencioso durante vários anos. Assim, em 27 de setembro de 2002, o Brasil solicitou formalmente a abertura de consultas na OMC com os EUA para discutir os mecanismos em questão e seu efeito sobre o comércio internacional de algodão. Em 18 de março do ano seguinte, deu-se a instalação do Painel do contencioso no OSC contra os EUA (Caso DS267). Em maio de 2003, foi encaminhado um manifesto à OMC contra a prática de subsídios ao cultivo do algodão por parte dos países desenvolvidos, pouco após a abertura do painel do Brasil contra os EUA no contencioso do algodão, por um grupo de países africanos conhecido como Cotton-4 ou C-4. Esse grupo é composto por Benin, Burkina Faso, Chade e Mali21, sendo todos países de menor desenvolvimento relativo e

dois deles (Benin e Chade) ingressaram no contencioso do algodão (DS267) ao lado do Brasil como partes interessadas. Juntaramse ao contencioso também como partes interessadas: Argentina, Austrália, Canadá, China, Taipei, União Europeia, Índia, Nova Zelândia, Paquistão, Paraguai, Venezuela, Japão e Tailândia. É importante notar que o problema dos subsídios aplicados ao algodão pelos países desenvolvidos já estava consolidado como um dos temas importantes da Agenda Doha na OMC, especialmente relevante para os LDCs, desde a revisão da Agenda Doha conhecida como “Pacote de Julho de 2004”, que na verdade foi a decisão WT/L/579 adotada pelo Conselho Geral da OMC em 1º de agosto de 200422, como efeito do rescaldo do fracasso da Conferência Ministerial de Cancun no ano de 2003 e em um ambiente de crescente polarização entre PDs e PEDs:

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o alto nível de subsídios ofertado a produtores de algodão em alguns paísesmembros da OMC é uma das maiores causas dos problemas enfrentados pela produção global de algodão.

Esse grupo de países passa a ser reconhecido como grupo Cotton-4 no âmbito da Organização Mundial do Comércio em 2003. Naquele ano, durante sessão especial do Comitê de Agricultura da OMC, Benin, Burkina Faso, Chade e Mali propuseram a Iniciativa do Algodão. Conforme o documento “Poverty Reduction: sectoral initiative in favour of Cotton”, proposto pelos quatro países,

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(b) Algodão: o Conselho Geral reafirma a importância da Iniciativa do Algodão e toma nota dos parâmetros estabelecidos no Anexo A em que os aspectos desta questão relacionados ao comércio serão perseguidos nas negociações agrícolas. O Conselho Geral também considera importantes os aspectos ligados ao desenvolvimento da Iniciativa do Algodão e sublinha a complementaridade entre os aspectos comerciais e de desenvolvimento. O Conselho toma nota do recente Workshop sobre algodão em Cotonou, entre 23 e 24 de março 2004, organizado pelo Secretariado da OMC, e outros esforços bilaterais e multilaterais para avançar sobre os aspectos de assistência ao desenvolvimento e instrui a Secretaria a continuar a trabalhar com a comunidade de desenvolvimento e apresentar ao Conselho relatórios periódicos sobre a evolução da matéria. Os membros devem trabalhar em questões relacionadas ao desenvolvimento multilateralmente com as instituições financeiras internacionais, continuar seus programas bilaterais, e

Disponível em: http://www.wto.org/english/tratop_e/dda_e/draft_text_gc_ dg_31july04_e.htm. Acesso em: 20 set. 2014. 22

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todos os países desenvolvidos são instados a participar. A este respeito, o Conselho Geral instrui o Diretor Geral a estabelecer consultas com as organizações internacionais relevantes, incluindo as instituições de Bretton Woods, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura e o Centro de Comércio Internacional para dirigir programas efetivamente existentes e quaisquer recursos adicionais para o desenvolvimento das economias onde o algodão tem uma importância vital. [Tradução nossa]

Em 03 de março de 2005, o Órgão de Apelação do OSC em decisão final entendeu que os mecanismos contestados pelo Brasil eram ilegais perante os acordos multilaterais de comércio da organização. Após a primeira derrota no Órgão de Apelação do OSC, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA), órgão do executivo federal norte-americano, procurou adequar os programas de créditos à exportação contestados, pois poderiam ser modificados administrativamente pelo executivo federal. No entanto, quanto aos subsídios, tratava-se de matéria legislativa estabelecida na Farm Bill pelo Congresso norte-americano, que não agiu para eliminá-los, em parte devido ao forte lobby do grupo de pressão dos produtores de algodão do país. Em 28 de setembro de 2006, o caso foi reaberto a pedido do Brasil para apurar as providências tomadas pelos EUA. Durante a 9ª sessão do Mecanismo Consultivo do DiretorGeral da OMC sobre o setor algodoeiro, realizada em novembro de 2007, o Brasil propôs a elaboração de documento conceitual para a introdução de Cooperação Sul-Sul no setor cotonícola em parceria com os países do Cotton-4 (Benin, Burkina Faso, Chade e Mali). A estratégia tinha por objetivo fortalecer o setor cotonicultor do grupo de países do Cotton-4 que lançaram, em maio de 2003, um manifesto à OMC contra a prática de subsídios ao cultivo do algodão por parte dos países desenvolvidos. Com isso buscou-se fortalecer a posição do Brasil nesse caso na OMC reforçando sua liderança, reduzindo os custos potenciais adversos para esses países e também fortalecendo o aspecto axiológico/ideacional que se procurava dar à atuação brasileira contra os EUA no contencioso 338

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do algodão  – especialmente com a vinculação do contencioso à Agenda Doha e ao Pacote de Julho de 2004. Esse documento conceitual de cooperação Sul-Sul teve por base as deficiências identificadas por especialistas brasileiros em missão de caráter técnico-político a esses países, ocorrida em 2006. A partir desse documento e de missão adicional realizada em 2008, foi elaborado o projeto “Apoio ao Desenvolvimento do Setor Algodoeiro dos Países do C-4 (Benin, Burquina Faso, Chade e Mali)”23, ou Projeto Cotton-4, o primeiro projeto de caráter estruturante da cooperação Sul-Sul brasileira. O projeto foi coordenado pela ABC/MRE e executado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), tendo sido iniciado em 2009 e concluído em 2013. Esse projeto, cujo objetivo geral oficial era “contribuir para o aumento da competitividade da cadeia produtiva do algodão nos países parceiros”, teve como objetivos específicos: i) revitalizar a Estação Experimental de Sotuba, em Bamako no Mali, para funcionar como unidade-piloto de pesquisa adaptativa e de demonstração de tecnologias inovadoras; ii) desenvolver testes de validação de tecnologias nas áreas de solos, nutrição, plantio direto e manejo integrado de pragas; iii) capacitar pesquisadores, técnicos e agricultores líderes em novas tecnologias de produção de algodão; e iv) elaborar e disseminar materiais de divulgação sobre os conhecimentos validados para a melhoria da produção de algodão na região. A gestação desse projeto se deu durante a fase final do contencioso do algodão do Brasil contra os EUA, mais especificamente durante a circulação dos relatórios referentes ao painel do conten O orçamento do Projeto Cotton-4 foi de 5,48 milhões de dólares americanos, após revisões orçamentárias. Desses, US$ 4,38 milhões correspondem ao dispêndio financeiro do governo brasileiro, por meio da Agência Brasileira de Cooperação. Cabe destacar que 68% desse valor (US$ 2,99 milhões) foi custeado com recursos do governo brasileiro e os 32% restantes (US$ 1,39 milhão), com recursos advindos do “Fundo de Assistência Técnica e Fortalecimento da Capacitação relativo ao Contencioso do Algodão”, fruto da vitória brasileira no contencioso do algodão na OMC contra os EUA (DS267). 23

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cioso e ao painel de apelação. A introdução efetiva do projeto iniciou-se durante a fase de compliance do caso e a grande visibilidade e simpatia internacional angariada pelo Brasil em torno do projeto em diversos foros internacionais foi um elemento importante de pressão nas negociações entre o Brasil e os EUA. A decisão final do Órgão de Apelação do OSC sobre o caso foi proferida em 20 de junho de 2008 e como consequência do não cumprimento das disposições do OSC por parte dos EUA, o Brasil solicitou o direito de adotar medidas compensatórias na forma de retaliação direta sobre o setor e cruzada com a quebra de direitos de propriedade intelectual do setor farmacêutico norte-americano. O direito de retaliação foi concedido pelo OSC ao Brasil no dia 19 de novembro de 2009 no montante anual de US$ 147,3 milhões de dólares. Até o final do ano de 2009, os EUA não haviam se mostrado propensos a alterar sua legislação doméstica conforme determinado pelo OSC ou a chegar a um acordo com o Brasil. A pressão exercida sobre os EUA por diversas frentes, dentre elas uma das menos conhecidas e tratadas na literatura até este momento é esta conexão com o tabuleiro da cooperação Sul-Sul, fez com que a situação se revertesse em favor do Brasil. Em 08 de março de 2010, o Brasil notificou o OSC que iniciaria as retaliações contra os EUA em 07 de abril daquele ano. No entanto, uma mudança da posição americana permitiu que uma solução negociada para o caso passasse a ser gestada entre os dois países. O primeiro passo nessa direção foi a assinatura do “Memorando de Entendimento entre o Governo dos Estados Unidos da América e o Governo da República Federativa do Brasil sobre um Fundo de Assistência Técnica e Capacitação com Relação ao Contencioso do Algodão (WT/DS267) na Organização Mundial do Comércio” (MdE-1 DS267) entre os dois países em 20 de Abril de 2010 em Punta del Este, Uruguai. O MdE-1 DS267 estabeleceu três pontos importantes: i) o entendimento entre os dois países de que uma solução mutuamente negociada para o contencioso era do melhor interesse de ambas as partes; ii) até 22 de abril de 2010 o Brasil publicaria no Diário Oficial da União um adiamento de 60 dias na aplicação de

quaisquer medidas de retaliação no âmbito do caso DS267; e iii) enquanto ambos os países procuravam avançar na busca por uma solução negociada seria instituído um Fundo em benefício do Brasil com recursos norte-americanos para o financiamento de atividades definidas no documento. Como resultado, em 30 de abril daquele ano o Brasil comunicou à OMC o adiamento unilateral da aplicação das medidas compensatórias autorizadas pelo OSC. Para dar efetividade à última disposição, a Abrapa criou em junho de 2010 uma entidade com personalidade jurídica própria para receber esses recursos e que passou a ser responsável pela administração desse Fundo, o Instituto Brasileiro do Algodão (IBA). Conforme estipulado no acordo, os EUA realizaram uma primeira transferência no valor de US$ 30 milhões para formação do IBA e em junho daquele ano uma transferência complementar de US$ 4,3 milhões. Adicionalmente, e a cada mês subsequente foi estipulado um aporte adicional de fundos no valor US$ 12,275 milhões (US$ 147,3 milhões por ano, estipulado em valor equivalente ao montante anual que o Brasil havia sido autorizado pelo OSC a retaliar os EUA). De acordo com o Memorando, as áreas em que esses recursos poderiam ser utilizados eram:

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Atividades autorizadas são as atividades de assistência e capacitação técnica, excluindo pesquisa, relacionados com o sector do algodão no Brasil e relacionadas com a cooperação internacional no mesmo setor em países da África subsaariana, Estados membros e associados ao Mercosul, Haiti, ou em qualquer outro país em desenvolvimento que as partes virem a acordar. [Tradução nossa]

Para operacionalizar a cooperação Sul-Sul brasileira promovida com os recursos geridos pelo IBA, foram assinados entre o Instituto e o Ministério das Relações Exteriores em 10 de outubro e 15 de dezembro de 2011, respectivamente, os seguintes instrumentos: “Protocolo de Intenções entre o Ministério das Relações Exteriores da República Federativa do Brasil e o Instituto Brasileiro do Algodão para Cooperação Técnica no 341

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Setor do Algodão” (Protocolo IBA-MRE) e o “Memorando de Entendimento entre o Ministério das Relações Exteriores e o Instituto Brasileiro do Algodão para Cooperação Técnica no Setor do Algodão” (MdE IBA-MRE). Esses dois documentos, juntamente com o MdE-1 DS267, estabeleceram as bases para a operacionalização e expansão da política de cooperação Sul-Sul brasileira por meio de projetos estruturantes da ABC/MRE com recursos do Fundo geridos pelo IBA. Conforme esses dois acordos, o IBA deveria destinar à ABC/MRE o valor de 10% de todo o montante recebido ou que viesse a receber como reparação dos EUA no âmbito do MdE-1 DS267. Por sua vez, a ABC/MRE deveria utilizar esses recursos exclusivamente para a cooperação técnica internacional no setor cotonícola nas áreas definidas24 no acordo entre Brasil e EUA. A introdução desse acordo e a assinatura complementar do “Acordo-quadro para uma solução mutuamente acordada para o Contencioso do Algodão no Mundial do Comércio Organização (WT/DS267)” entre Brasil e EUA suspendeu indefinidamente em 25 de agosto de 2010 a aplicação de medidas compensatórias pelo Brasil relativas ao contencioso do algodão na OMC. A celebração do Acordo-quadro, por si só, não constituiu uma solução para o contencioso, apenas definiu diretrizes para as discussões entre os dois países com vistas a uma solução definitiva para o caso e suspendeu a aplicação de medidas compensatórias pelo Brasil enquanto o MdE-1 DS267 e o Acordo-quadro estiverem em vigor. Dentre os principais dispositivos desse Acordoquadro estavam a previsão de que: i) os EUA não excederiam o nível de apoio praticado no período 1999-2005; ii) os países

manteriam consultas periódicas buscando uma solução negociada para o caso; iii) os dispositivos do MdE-1 DS267 teriam aplicação indefinida enquanto o Acordo-quadro fosse válido; iv) após a promulgação de legislação sucessora do Farm Bill de 2008, o Brasil e os Estados Unidos comprometiam-se a consultas para determinar se uma solução mutuamente acordada para a disputa tinha sido atingida pela nova legislação; v) o acordo tinha validade indefinida; e vi) o Brasil se comprometia a não impor medidas compensatórias contra os EUA no âmbito do contencioso do algodão enquanto o acordo estivesse em vigor. A partir desses desenvolvimentos e das conexões estabelecidas entre os tabuleiros do sistema multilateral de comércio e do sistema de cooperação para o desenvolvimento, o Brasil pôde ampliar e adensar sua política de cooperação Sul-Sul contando com o financiamento de 10% do valor recebido pelo IBA como compensação, destinado à cooperação técnica internacional brasileira coordenada pela ABC/MRE com África Subsaariana, Mercosul e estados associados, Haiti ou com quaisquer outros países em desenvolvimento acordado pelas partes. Para se ter uma ideia da escala que esses recursos representam para a política de cooperação Sul-Sul brasileira, o valor anual de US$ 14,73 milhões (10% do valor do Fundo) repassados pelo IBA para a ABC/MRE para a aplicação em ações de cooperação correspondia a 70% dos recursos próprios da ABC/ MRE, cerca de US$ 21 milhões no ano de assinatura do acordo (2010),25 que eram destinados a cobrir todo o custeio da agência com folha de pessoal, administração, representação e para aplicação em projetos de cooperação. O Projeto Cotton-4 foi o primeiro a se beneficiar desse Fundo, pois além de contar com recursos próprios da ABC/MRE, também dispôs de orçamento proveniente dos recursos transferidos pelo IBA à ABC/MRE. Ademais, a ABC/MRE estabeleceu em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) um Programa-base para a operacionalização da cooperação brasileira

São elas: controle, mitigação e erradicação de pragas e doenças e serviços de extensão correlatos; aplicação de tecnologia pós-colheita; compra e uso de bens de capital; promoção do uso do algodão; adoção de cultivares; observância das leis trabalhistas; treinamento e instrução de trabalhadores e empregadores; serviços de informação de mercado; gestão e conservação de recursos naturais; aplicação de tecnologias para a melhoria da qualidade do algodão; aplicação de métodos para a melhoria dos serviços de gradação e classificação e serviços de extensão correlatos. 24

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Disponível em: http://www.cebri.com.br/midia/documentos/ minmarcofaranichinanaafrica972003.pdf. Acesso em: 22 set. 2014. 25

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na África na área de algodão intitulado “Programa de Apoio Técnico para o Desenvolvimento da Cotonicultura na África”. Com base nesse Programa estão sendo negociados entre a ABC/ MRE, a Embrapa e os governos parceiros, três projetos regionais estruturantes de grande envergadura que deverão ser introduzidos em 10 países africanos pela Embrapa: i) Projeto Regional de Fortalecimento do Setor Algodoeiro na Bacia do Lago Victoria  – Projeto Cotton-Victoria (Burundi, Tanzânia e Quênia); ii) Projeto Regional de Fortalecimento do Setor Algodoeiro na Região do Baixo Shire-Zambezi  – Projeto Lower Shi-Zam (Moçambique e Malaui); e iii) Projeto Regional de Fortalecimento Tecnológico e Difusão de Boas Práticas Agrícolas para o Algodão em Países do C-4 e no Togo – Projeto C-4+Togo (Burkina Faso, Benin, Chade, Mali e Togo), que dará continuidade às ações implementadas no Projeto Cotton-4 (2009-2013), além de incluir novo país da África Ocidental na iniciativa (Togo). Para operacionalizar a cooperação Sul-Sul nessas bases na América Latina, a ABC/MRE estabeleceu no final de 2012 um Macroprojeto de cooperação triangular com o Escritório Regional para América Latina da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO-Chile) intitulado “Proyecto GCP/ RLA/199/BRA – Fortalecimiento del Sector Algodonero por medio de la Cooperación Sur- Sur”, conhecido como Projeyto Paraguas. Esse macroprojeto prevê o estabelecimento de seis Projetos-país de cooperação técnica na área de algodão em países da América do Sul: Argentina, Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai e Peru. Dentre esses, desde abril de 2014, o Projeto-Paraguai já se encontra em execução pela Embrapa: “Fortalecimiento de los sistemas de producción de algodón en la Agricultura Familiar del Paraguay”. Os demais projetos ainda estão em negociação. No âmbito do contencioso do algodão, em outubro de 2013, os Estados Unidos interromperam as transferências mensais para o Fundo de reparação administrado pelo IBA devido a cortes automáticos de gastos do governo americano que entraram em vigor em março daquele ano. Até então, os EUA haviam pagado, aproximadamente, US$ 505 milhões ao Brasil como reparação e desse montante, US$ 50,5 milhões foram destinados para a cooperação

Sul-Sul brasileira. Essa medida representa rompimento unilateral do acordo firmado em 2010 com o Brasil, pois ela só poderia ocorrer caso o Congresso dos EUA aprovasse uma nova lei agrícola (Farm Bill), o que ocorreu somente em fevereiro de 2014, e se essa fosse considerada em conformidade com as obrigações dos EUA na OMC conforme estabelecido no MdE-1 DS267 e no Acordoquadro entre Brasil e EUA. Embora o Conselho de Ministros da Câmara de Comércio Exterior (Camex) do Brasil tivesse autorizado o Brasil a abrir novo painel na OMC, ainda em fevereiro de 2014, para avaliar se a nova Farm Bill americana atende às recomendações adotadas pelo Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, no âmbito do contencioso DS 267, o Brasil optou por mais uma vez buscar uma solução negociada. Assim, em 1º de outubro de 2014, ambos os países anunciaram o encerramento definitivo do contencioso DS267 sobre algodão na OMC com a assinatura de um novo Memorando de Entendimento entre os dois países: “Memorandum of Understanding Related to the Cotton Dispute WT/DS267” (MdE-2 DS267). A partir do novo acordo, os Estados Unidos se comprometeram a ajustar seu programa de crédito e garantia à exportação (GSM102) no âmbito da Farm Bill 2014, cujos critérios serão bilateralmente negociados. Ademais, o MdE-2 DS267 inclui pagamento adicional de US$ 300 milhões ao Instituto Brasileiro do Algodão e prevê, semelhantemente ao primeiro Memorando, que os recursos sejam utilizados em atividades autorizadas  – relacionadas à assistência técnica e ao fortalecimento de capacidades – no Brasil e em cooperação internacional com África Subsaariana, Mercosul e associados, Haiti ou em quaisquer outros países em desenvolvimento acordado pelas partes. Porém, com maior amplitude, permitindo o financiamento de atividades de pesquisa,26 infraestrutura e logísti-

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O financiamento a atividades de pesquisa é permitido, desde que essas sejam conduzidas em colaboração com agências de pesquisa do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos ou com universidades ou fundações de pesquisa situadas nos EUA. A depender de acordo entre as instituições brasileira e norte-americana envolvidas, as atividades de pesquisa poderão contemplar parcerias com terceiros países. 26

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ca. Isso significa um aporte adicional imediato de US$ 30 milhões para ações da política de cooperação Sul-Sul do Brasil.

Considerações finais Embora a cooperação brasileira em algodão tenha se iniciado anteriormente à vitória brasileira no contencioso do algodão, é possível afirmar que a ampliação da estratégia desenvolvida pelo Brasil para o fortalecimento do setor cotonícola de países em desenvolvimento é resultante direta de sua política externa comercial no âmbito multilateral na OMC. Em função da relevância e eficácia do linkage estabelecido pelo Brasil entre o sistema multilateral de comércio e sua política de cooperação Sul-Sul, o sucesso do país no OMC se expressou diretamente na ampliação e aprofundamento de sua política de cooperação Sul-Sul e a ampliação da cooperação promovida pelo Brasil nessas bases reforçou o seu próprio sucesso no sistema multilateral de comércio, promovendo a simpatia e o apoio de seus parceiros de cooperação e da comunidade internacional mais ampla para suas posições no primeiro tabuleiro. Pode-se concluir que as diretrizes e o modo de operação estabelecidos para a Política Externa Brasileira no período 2003-2010 foram capazes de configurar um vetor de profunda conexão de dois subsistemas internacionais de grande relevância para a PEB (comercial e cooperação). A eficiência dessa conexão das duas áreas permitiu uma ampliação do poder relativo, prestígio e liderança brasileiros em ambas as áreas e no sistema internacional. Como resultados indiretos da liderança brasileira nessas áreas pode-se elencar a eleição de dois brasileiros como Diretores Gerais de duas importantes organizações multilaterais: Roberto Azevedo, negociador-chefe e representante do Brasil na OMC durante o contencioso do algodão, para a OMC; e José Graziano da Silva para a FAO, sendo a área de agricultura prioritária para a cooperação brasileira e a que responde pela maior parte da cooperação técnica prestada pelo país, especialmente por meio dos fundos do IBA. 346

Agricultura, comércio internacional e cooperação SulSul: o contencioso do algodão Brasil-EUA

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livro aborda as características, motivações, desafios e possibilidades da cooperação Sul-Sul na política externa brasileira contemporânea. Trata-se de um dos assuntos de política externa que mais tem sido debatido e uma das razões para o renovado interesse no tema é que a lógica das relações Sul-Sul envolve aspectos pragmáticos e normativos da ação internacional do Estado. Assim, os capítulos que compõem a obra, a partir de uma variedade de perspectivas em termos de dimensões e atores, constituem relevante contribuição para o entendimento de questões de relevância acadêmica e política das relações internacionais.

ISBN 978-85-7983-247-5

9 788579 832475

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