Cor é pop. Preto-e-branco é cult: Controvérsias estéticas na filmografia de Francis Ford Coppola

June 8, 2017 | Autor: Wanderley Anchieta | Categoria: Cinema, Estetica, Color, Cultura Popular, Cores
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8º Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação do Rio de Janeiro XII Seminário de Alunos de Pós-graduação em Comunicação Social da PUC-Rio Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, 21 a 23 de outubro de 2015.

Cor é pop. Preto-e-branco é cult 1. Controvérsias estéticas na filmografia de Francis Ford Coppola Wanderley Anchieta 2 Resumo O trabalho versará sobre dois filmes do diretor Francis Ford Coppola lançados em 1983: Vidas Sem Rumo (The Outsiders) e O selvagem da motocicleta (Rumble Fish). Ambos trabalham a ideia da “juventude transviada”. Vidas Sem Rumo é um filme mais pop, na acepção de que possui uma narrativa próxima aos códigos canônicos de Hollywood: é razoavelmente linear e é a cores. O selvagem da motocicleta é um filme nuançado, marcado por um preto-e-branco de forte contraste. Esse é um filme que flerta com a noção de cult. O trabalho pretende traçar as controvérsias que acabaram por marcar o preto-e-branco como local de distinção do consumo massivo, além de analisar algumas diferenças sensíveis entre cor e preto-e-branco. Palavras-chave: cores; estética; cinema; cult; controvérsia. Introdução Este artigo trata de dois filmes feitos ao mesmo tempo, no mesmo lugar, com o mesmo diretor, nascidos de dois livros da mesma autora, Susan Eloise Hilton, e que lidam com o mesmo tema: a passagem para a vida adulta, o final da adolescência. Através das noções de caixa-preta e controvérsia, da teoria ator-rede de Bruno Latour, este artigo pretende demonstrar como o preto-e-branco (utilizado em O Selvagem da Motocicleta) é um recurso cada vez menos utilizado em Hollywood por ser, ele próprio, uma caixa-preta cercada de controvérsias e estigmas. Vez em quando, todavia, alguns diretores desenterram o preto-e-branco de sua aparente proscrição: geralmente em filmes repletos de nuances cuja abordagem remete à criação daqueles que Truffaut nomeava de auteur. Vidas Sem Rumo trata, em essência, da história de dois grupos: os socs (de socialite), rapazes abastados da cidade; e de seus arquirrivais, os greasers. Os 1

Trabalho apresentado no GT2 – Políticas e Estudos do Audiovisual, da Imagem e do Som do 8º Congresso de Estudantes de Pós-Graduação em Comunicação, na categoria pós-graduação. PUC Rio, Rio de Janeiro, outubro de 2015. 2 Mestrando do PPGCOM da Universidade Federal Fluminense, e-mail: [email protected].

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personagens principais pertencem ao segundo grupo: Ponyboy Curtis (C. Thomas Howell); Johnny Cade (Ralph Macchio); Dallas Wiston (Matt Dillon); Steve Randle (Tom Cruise); etc. Ambos os grupos vivem se enfrentando, tanto verbal quanto fisicamente. Até que numa noite fatídica, Ponyboy e Johnny se veem cercados de socs e, num ato desesperado, Johnny se defende com uma faca, causando a morte de Bob (Leif Garrett). Assim, os dois buscam o auxílio de Dallas e fogem. A narrativa se desenrola a partir destes fatos. Esse filme, feito em 1982 e lançado nos cinemas no ano seguinte, foi sucesso de bilheteria 3, bem recebido pela crítica na época e lançou ao estrelato diversos atores: além dos já mencionados, Patrick Swayze; Emilio Estevez; Diane Lane, etc. Concomitante à produção de Vidas Sem Rumo, Coppola decidiu adaptar outra obra da mesma autora que tratava do mesmo tema – a juventude e seus descaminhos, e cuja história se desenrolava na mesma cidade: Tulsa, Oklahoma. O selvagem da motocicleta trata da vida de Rusty James (Matt Dillon), o líder em exercício da gangue mais temida da cidade de Tulsa, enquanto seu irmão mais velho, o Motoqueiro (Mickey Rourke), está desaparecido. Com o retorno do Motoqueiro as coisas não voltam ao que eram antes. Rusty espera que seu irmão reassuma seu trono lendário, porém o Motoqueiro não parece mais interessado em liderar as brigas e a gangue. Rusty tem que lidar com sua idolatria ao irmão, seu guia na vida, uma vez que seu pai (Dennis Hopper) é alcóolatra desenfreado e sua mãe o deixou ainda menino. Este filme fracassou na bilheteria, foi mal recebido pela crítica e, depois de muitos anos, ganhou novas apreciações e se tornou um “clássico” dentre a filmografia de Coppola. Por fim o artigo retomará, de forma sintética, algumas das questões abordadas ao longo do seu percurso numa análise fílmica realizada através de imagens das obras em questão, evidenciado as diferenças sensíveis entre cor e preto-e-branco na construção de universos imagéticos.

As controvérsias (pop e cult, cor e preto-e-branco, o industrial e o auteur) 3

Vendeu 25.6 milhões de dólares em ingressos contra um orçamento de dez milhões. Também foi adaptado para uma série de televisão nos EUA em 1991. Cf. PHILLIPS (2004b), p. 213.

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Quando saiu para dirigir Vidas Sem Rumo (The Outsiders), em 1982, na pequena cidade de Tulsa, no estado de Oklahoma, Francis Ford Coppola gozava tanto de prestígio extraordinário advindo dos dois O Poderoso Chefão (1972 e 74) quanto de uma recente má-reputação como alguém incapaz de manter seus cronogramas de filmagem em dia ou seu orçamento em limites apropriados. Essas ignomínias ficaram famosas durante a produção de Apocalypse Now (1979), cujas gravações foram inicialmente pensadas para durar cinco meses (março até julho de 1976), porém acabaram por se estender por quatorze meses (até maio de 1977), o que por sua vez, fez crescer o custo da obra de aproximadamente doze para trinta e um milhões de dólares 4. Não bastasse, à infâmia se somou a penúria financeira causada pelo estrondoso fracasso nas bilheterias de outro filme seu, o musical O Fundo do Coração (One from the Heart, 1982). Este último custou $26 milhões e rendeu exatos 636,796 mil dólares de volta 5. De acordo com o próprio Coppola: “O telefone da minha residência ficou cortado todo o ano passado, porque não tenho dinheiro para pagar a conta telefônica. [...] Eu acredito que um artista tem o direito de ser dono daquilo que cria, mas não consigo o capital que preciso para criar. Eu dirigia um estúdio de cinema que não tinha dinheiro. O dia em que comecei a filmar O Fundo do Coração, eu não tinha dinheiro. [...] Quer você faça um filme com seu próprio dinheiro ou com o dinheiro dos outros, você está sob pressão. Para mim é pior, entretanto, quando você usa o dinheiro dos outros” (apud PHILLIPS, 2004a, p. 78-9).

Gene Phillips (2004b, p. 203) conta que Coppola recebeu uma carta de uma bibliotecária, Ellen Misakian, que trabalhava numa escola de segundo grau na Califórnia no ano de 1980. Na carta Misakian sugeria ao diretor que adaptasse o livro de Susan Eloise Hilton, Vidas Sem Rumos, para o cinema. O livro, publicado em 1970, era leitura obrigatória em diversos colégios estadunidenses e desfrutava de enorme popularidade entre os adolescentes. Não por outra razão tinha vendido quatro milhões de cópias em menos de dez anos. Coppola apostou que o filme seria um 4

De acordo com o documentário feito pela esposa do cineasta, Eleanor Coppola, chamado Francis Ford Coppola - O Apocalipse de um Cineasta, lançado em 1991. 5 De acordo com as informações do sítio Box Office Mojo, que registra os valores arrecadados nos cinemas dos EUA e do mundo. Disponível em < http://goo.gl/agzceI >. Acesso em 12.07.15.

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grande sucesso de bilheteria (ele estava correto), o que o permitiria recuperar sua saúde financeira. A primeira controvérsia dessa história é aquela entre a independência criativa desejada pelo artista e a necessidade que o fazer do cinema impõe – vide seus altíssimos custos– de usar o “dinheiro dos outros” (estúdios, por exemplo) e, portanto, estar submetido aos seus interesses. Essa controvérsia faz parte da história do cinema, de todo o cinema mundial, desde pelo menos os anos 1980. A sétima arte vive entre sua vocação artística e sua capacidade de vendas, de obter lucros, de ser um produto. Ou seja, tal questão não é particular do Francis Ford Coppola ou mesmo uma anedota circunscrita à Hollywood 6. O lado indústria pressiona o lado arte, eventualmente com mais força: “a mentalidade do ‘sabor do mês’ de muitos produtores – por meio da qual eles tentam aferir as flutuações no gosto do público consumidor–, é difícil para um diretor lidar com isso” (ibid., 2004b, p. 314). Frédéric Martel comenta que os maiores estúdios de Hollywood (conhecidos como majors) são “hoje extremamente dependentes de seus investidores financeiros. E, portanto, são muito sensíveis às oscilações do mercado” (2013, p. 61). E prossegue numa entrevista com o então presidente da Disney, Michael Eisner: “Prometendo aos acionistas lucros de 20% ao ano, Eisner não perde de vista que sua missão consiste, segundo diz ele mesmo, em ‘deixá-los felizes’” (p. 61). Manter acionistas “felizes” é missão cada vez mais arriscada, conforme reafirma o atual diretor do grupo Cinépolis, Luiz Gonzaga Assis de Luca: “Exigem-se fartos investimentos para que um filme atinja seu ponto ideal; são investimentos de alto risco, já que não é possível prever se o lançamento será um sucesso ou não” (2009, p. 364-5). A primeira controvérsia pode ser, então, colocada em outros termos, a saber, entre arte e entretenimento. Entre a ideia de obra, do artista/artesão, e de produto, da fábrica 7. Mais ainda, um filme pode ser uma criação durável, que cresce em consideração ao longo do tempo e acaba sendo cultuada 6

Por exemplo, o cineasta brasileiro Fernando Meirelles comenta, ainda que de forma sarcástica, sobre o assunto: “Cinema é arte, mas é indústria também. O dia que eu quiser expressar livre e integralmente minha subjetividade basta escrever um poema, fazer uma aquarela, algo assim”. Disponível em < http://goo.gl/mJmD4F >. Acesso em 12.07.15. 7 Hollywood coletivamente se apresenta ao mundo como “fábrica de sonhos”.

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(origem da palavra cult). Ou um produto supérfluo feito para ser consumido e esquecido rápido (chave-nuclear do pop), numa proposta que visa propulsionar cada vez mais o consumo de outros produtos que também serão esquecidos na mesma velocidade. Assim, o crítico de cinema Pablo Villaça comenta sobre o recente (Julho de 2015) lançamento do filme Homem-Formiga (Ant-Man, 2015): “faz mais ou menos uma hora que o filme acabou e eu já comecei a esquecer do filme”. Consumo descartável, por conseguinte. Em seguida, sua fala aponta para circularidade do consumo (que gera mais consumo): “a impressão que se dá é que os filmes não tem valor como filmes individuais, eles só tem valor, só tem importância, só tem relevância à medida que eles funcionam como um chamariz ou como um grande trailer pro próximo filme [...]” 8. Para garantir a “felicidade do dinheiro dos outros”, Hollywood recorre às fórmulas e ao que já é “garantido” – por isso Coppola apostava com tanta segurança que Vidas Sem Rumo, um livro com altíssima vendagem, também seria um filme de sucesso. Pois Neal Gabler explica que a controvérsia entre arte e indústria se ancora, ainda, na ideia de que o entretenimento lida com estatísticas voltadas para a massa, enquanto “a arte era dirigida a uma pessoa; o entretenimento era dirigido ao maior número de pessoas. [...] a arte é tida como invenção, e o entretenimento como convenção” (1998, p. 26, grifo do autor). Durante a produção de Vidas Sem Rumo, obra mais marcadamente comercial, ocorreu a Coppola que a autora S.E. Hilton, que o acompanhava nas filmagens, tinha escrito outro livro concernente ao universo adolescente. O livro, O Selvagem da Motocicleta, era mais melancólico, denso, obscuro até. Gene Phillips conta que o diretor aproveitou quase todo o pessoal e equipamentos que já estavam consigo em Tulsa para dar vida a O Selvagem da Motocicleta. Hilton e Coppola escreveram o roteiro juntos nos intervalos das gravações de Vidas Sem Rumo, também aos domingos. Como forma de distanciar o segundo filme do primeiro e também de

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Fala retirada de sua vídeo-crítica. Villaça se refere ao conceito de “teia” da produtora Marvel, em que os produtos criam um “universo” que é compartilhado pelos diversos super-heróis da empresa. Disponível em < https://goo.gl/HSm3dS >. Acesso em 16.07.15.

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manter maior fidelidade ao material umbroso do texto original, Coppola decidiu filmar O Selvagem da Motocicleta em preto-e-branco 9 (2004b, 213). Entre as noções de arte/cult e entretenimento/pop ainda incorre outra controvérsia: a que se estabelece entre os auteurs de cinema, os artistas, e os cineastas “comerciais ou industriais”. Richard Brody, do jornal The New Yorker, explica que o conceito de auteur foi criado por jovens críticos da famosa e influente revista francesa Cahiers du Cinéma, na década de 1950, especialmente por François Truffaut. Ainda que o conceito não é nem hermético nem bem delimitado. Que ele se referia a diretores da época, como Alfred Hitchcock e Howard Hawks, diretores contratados por estúdios que de alguma maneira conseguiam imprimir uma marca pessoal, um estilo próprio. Essa é a chave do conceito. Por fim Brody lamenta que o conceito tenha tomado a dimensão que ganhou, posto que é mal formulado. Assim, parece haver hoje certa “aclamação (que) evidencia um fetiche nostálgico direcionado para as antigas estrelas e estilos de Hollywood” (2015, tradução nossa). Essa ideia baliza o pensamento de Richard Misek, estudioso do tema cinema e cor, que propõe que uso do p/b é feito por diretores que aspiram ao status de autor. Dessa maneira, para justificar sua qualidade enquanto arte, os filmes fazem “alusão a outros filmes, mais antigos (e implicitamente melhores)” (2010, p. 106, tradução nossa). A decisão entre cor ou p/b aponta para uma caixa-preta. Aqui este trabalho faz uma digressão para esclarecer os conceitos de controvérsia e caixa-preta, utilizados a partir das definições de Bruno Latour em sua teoria ator-rede 10: [...] a controvérsia é o momento ideal ou o lugar privilegiado para observarmos os actantes em circulação na construção de uma associação. Momento em que a complexidade das relações sociais se revela na infinidade dos mediadores, nas relações de forças desiguais, nos embates e finalmente na sua estabilização, quando a controvérsia se transforma numa “caixa-preta” (SÁ, 2014, p. 547).

O que a pesquisadora Simone Pereira de Sá esclarece, Latour exemplifica: “[...] os milhões de atos de fala que compõem um dicionário, uma gramática ou uma

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Doravante nomeado p/b.

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estrutura de linguagem num departamento de linguística foram extraídos de atos de fala locais registrados, transcritos, coletados e classificados de várias maneiras [...]” (2012, p. 256). Em outras palavras, o sentido denotativo nada mais é do que uma cristalização de atos de fala do cotidiano em um cânone estabelecido por alguma autoridade acreditada no assunto. Quando, eventualmente, algum elemento – no caso deste trabalho, a cor ou não-cor – desestabiliza a caixa-preta, as controvérsias que cercavam sua fixação se evidenciam, vêm à tona, emergem de seu aparente banimento. E qual controvérsia a escolha do p/b traz consigo? Onde está o rastro de relações complexas que foram afugentadas pela caixa-preta? Richard Misek elucida: Por que os produtores e distribuidores têm tanto preconceito com o preto-e-branco? A resposta é simples – eles creem, e com boas razões, que os consumidores não gostam de preto-e-branco. Larry Karaszewski, co-roteirista de Ed Wood (1994), em referência à decisão do Tim Burton de filmar em preto-e-branco, comentou casualmente que ele acreditava que a decisão ‘eliminaria 90% de nossa audiência’. É impossível determinar valores comparativos do potencial de renda entre filmes preto-e-branco e a cores. Ao mesmo tempo, evidências circunstanciais sugerem que os consumidores tem forte preferência para filmes coloridos (2010, p. 98, tradução e grifo nosso).

A ideia de “forte preferência” é a caixa-preta. Sob qual estudo aprofundado e definitivo o autor, e a vasta maioria dos produtores de cinema da atualidade, baseiam sua fé de que o público não gosta de preto-e-branco? Uma simples tabela, com alguns poucos filmes de amostragem, todos produzidos em Hollywood após a conversão da mídia para cor 11, demonstra que o risco e a aposta financeira, comentados por Martel e Luiz Gonzaga de Luca, parecem independer da escolha entre cor ou não-cor. Há filmes p/b que se tornaram extremamente lucrativos e outros que foram um retumbante fracasso. Todavia, o mesmo pode ser dito, a rigor, de qualquer filme feito: dos nove filmes selecionados, seis foram muito lucrativos. Um (Touro Indomável), ao menos, recuperou o orçamento. E dois, ou seja 22%, fracassaram e emitiram perdas aos investidores – o próprio Ed Wood e também O Selvagem da Motocicleta. 11

Para Richard Misek, o ano de 1965 é fundamental. Nesse momento, os telejornais ao vivo dos EUA passaram a ser transmitidos a cores. Assim, o autor comenta que a “atualidade passou a ser a cores” ao invés de preto-e-branco (2010, p. 83-4, tradução nossa).

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Tabela 01 – Alguns filmes P/B, feitos em Hollywood, desde 1980.

Bilheteria

Filme

Ano

Diretor

P/B

Custo total

O Artista

2011

Michel Hazanavicius

Sim

15 mihões

133 milhões

Sorte

2005

George Clooney

Sim

07 milhões

56.5 milhões

Sin City

2005

Robert Rodriguez

Parcialmente

40 milhões

158.8 milhões

Amnésia

2000

Christopher Nolan

Parcialmente

09 milhões

39.7 milhões

O Balconista

1994

Kevin Smith

Sim

250 mil

3.2 milhões

Ed Wood

1994

Tim Burton

Sim

18 milhões

5.9 milhões

1993

Steven Spielberg

Simb

22 milhões

321 milhões

mundiala

Boa Noite, e Boa

A

Lista

de

Schindler

Francis

O Selvagem da

Ford

Motocicleta

1983

Coppola

Simc

10 milhões

2.5 milhões

Touro Indomável

1980

Martin Scorsese

Sim

18 milhões

23.4 milhõesd

a

Valores aproximados em dólares, retirados do sítio Box Office Mojo; b Há uma pequena aparição de vermelho no filme, numa cena crucial; c Há pequenos relances de cor no filme em momentos-chave; d Valor referente só ao mercado dos EUA.

Deste modo, a ojeriza direcionada ao p/b parece extrapolar a questão mercadológica estrita. Ela estaria, ao menos parcialmente, em outra ordem. O professor de marketing da Universidade de Winnipeg, Satyendra Singh, revela que a cor é elemento extremamente polêmico por si: “Descobertas científicas sobre a teoria da cor parecem ser tão controversas quanto a investigação sobre os efeitos de iluminação. [...] A falta de resultados científicos conclusivos em relação a cor fez surgir diversas especulações” (2006, p. 784-5, tradução nossa).

Análise fílmica

A figura 01, abaixo, apresenta um grande enfrentamento entre os socs, em primeiro plano e de costas na figura da esquerda, e os greasers, numa importante 8

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sequência do final de Vidas Sem Rumo. Não é à toa que a figura do fogo aparece em eminência no quadro, simbolizando a violência e a selvageria do que está por vir. É interessante a escolha de Coppola de introduzir ambos os atos com um enquadramento em contra-plongée (de baixo para cima), estabelecendo um tom ameaçador para o mise-en-scène.

Figura 01. Gangues a cores em e em p/b

No caso de O Selvagem da Motocicleta essa atmosfera é reforçada por uma fumaça fantasmagórica que vive envolvendo os personagens, ademais da trilha desconcertante de sons desenvolvida pelo baterista da banda inglesa The Police, Stewart Copeland, que misturava “sons da rua de Tulsa – como barulho do trânsito, da polícia e sirenes de ambulâncias – com a bateria, o piano e também o xilofone” (PHILLIPS, 2004b, p. 216).

Figura 02. Parte dos greasers: Emilio Estevez (Two-bit), Christopher Howell (Ponyboy) e Tom Cruise (Steve)

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As diretoras de casting de ambos os filmes, Janet Hirshenson e Jane Jenkins, comentam que Vidas Sem Rumo estabeleceu uma visão mais naturalista sobre a forma como “as pessoas jovens falam, agem, e experimentam o mundo”. Ainda comentam que filmes sobre jovens miseráveis e sem rumo se tornaram clichê no cinema norteamericano, mas “[...] em 1982, quando Vidas Sem Rumo foi feito, a ideia de Hollywood sobre adolescentes era Folias na Praia 12, um filme que Francis gentilmente ridiculariza ao fazer seus angustiados personagens assistirem a ele num drive-in” (2006, p. 86). As cores tem seu papel nessa ideia de natural, posto que elas nos traduzem uma impressão de vida real. Afinal, vemos o mundo a cores. Um mundo profundamente colorido, como nos lembra Modesto Farina (2006, p. 1), pelo qual sentimos “satisfação e amor”. Misek comenta que “a fotografia em preto-e-branco tinha sido um elemento da vida cotidiana por mais de uma geração, mas assim que as imagens monocromáticas começaram a se mover, elas se tornaram pálidas” (2010, p. 14, tradução nossa). O desejo pela cor pode ser facilmente comprovado pelos diversos mecanismos de colorização engendrados 13 nas primeiras décadas de existência do cinema.

Figura 03. Matt Dillon (Dallas), Diane Lane (Cherry), Christopher Howell (Ponyboy) 12

Beach Blanket Bingo é o título original. Trata-se de uma comédia musical de 1965 dirigida por William Asher. 13 Cf. SOARES (2012). São eles: pintura à mão sobre película, estêncil, tintagem e viragem.

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A figura 03 (acima) faz parte da supracitada sequência em que os jovens greasers assediam a personagem soc de Diane Lane (Cherry), no drive-in, enquanto assistem entediados a Folias na Praia. Por fim, Vidas Sem Rumo faz um homenagem implícita (ao repetir de forma quase idêntica o esquema de cores do filme nessa sequência específica) e explícita (ao trazer os personagens lendo o livro original, de Margaret Mitchell, e comentando sobre ele) a ...E o Vento Levou (Gone with the Wind, 1939, dir.: Victor Fleming).

Figura 04. Ponyboy e Johnny no frame-homenagem a ...E o Vento Levou

Em O Selvagem da Motocicleta o espectador experimenta o filme a partir da pele do personagem de Mickey Rourke, o Motoqueiro. Ele é jovem de 21 anos, criado sem pais nem limites, extremamente violento. Sua pouca idade não é obstáculo para uma vida conturbada: mito local entre os jovens, ele é temido; a lei quer destruí-lo, fazer dele um exemplo negativo, de qualquer maneira. Depois de retornar a cidade após um tempo desaparecido, o Motoqueiro parece mais distraído do que antes, mais perdido e desinteressado. Isso causa muita frustração ao seu irmão mais novo, Rusty James (Matt Dillon). Rusty é obcecado pelo irmão, a ponto de querer repetir seus atos, de querer ser igual a ele, fisicamente até – em diversos momentos no filme ele diz aos outros personagens que ainda é muito jovem, mas que ao chegar aos vinte e um será idêntico ao irmão. O Motoqueiro, ao contrário, quer outra vida para Rusty, quer que 11

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Rusty decida por si próprio seu caminho. Enquanto Rusty quer que o Motoqueiro retome a liderança da gangue de jovens, o Motoqueiro lhe indica sutilmente seu desprendimento: “If you’re gonna lead people, you have to have somewhere to go” 14. Ademais, os personagens do filme acabam por justificar a escolha do p/b de forma metatextual, posto que o Motoqueiro é parcialmente surdo e é daltônico, não enxerga cor alguma 15. Para construir materialmente a sensação do universo interno, perturbado, do Motoqueiro, o diretor de fotografia do filme, Steve Burum, comentou que trabalhou com uma iluminação “plana e dura” feita para criar uma atmosfera “austera e brutal”. Mais, que “fotografou algumas cenas com uma câmera trêmula na mão” a fim de "dar às pessoas uma sensação de mal-estar”, de que “há algo fora de ordem no mundo instável em que aquelas crianças vivem” (apud PHILLIPS, 2004b, p. 217). Uma perturbação similar pode ser sentida também em outro filme, uma ficção científica distópica, Blade Runner (1982, dir: Ridley Scott). Nele, o cinematógrafo Jordan Cronenweth criou, novamente através da iluminação e câmera, uma sensação de clausura, de medo, construída com um uso de “uma iluminação sem ataque” (luz frontal) e de um contraluz muito intenso (MOURA, 2001, p. 64).

Figura 05. Mickey Rourke como o Motoqueiro 14

Em tradução livre: Se você vai liderar as pessoas, você precisa levá-las para algum lugar. Cf. SACKS (1998). Daltônicos geralmente não veem alguns matizes. Há, na vida real, entretanto, uma síndrome chamada acromatopsia. Quem possui essa síndrome é incapaz de ver qualquer cor. 15

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Estas sensações geridas pela imagem seriam o que Hans Gumbrecht nomeia de “momentos de intensidade” (2010, p. 127). Neles haveria uma ligação primordial entre o corpo e a obra, no qual o artifício implementado pelos artistas atinge o íntimo do espectador e causa grande comoção sensorial. Como num dos momentos-chave de O Selvagem da Motocicleta, quando Rusty James finalmente se liberta da sombra do irmão enquanto é acareado por policiais. Nesse instante, por brevíssimos segundos, o filme se torna colorido. Como se Rusty estivesse vendo o mundo, pela primeira vez, com os próprios olhos.

Figura 06. Rusty James se vê a cores pela primeira vez

Considerações finais

À guisa de conclusão, se torna importante enfatizar o fato de que as caixaspretas não são uma resolução, um fim em si mesmas. Elas são um marco, uma cristalização temporária, porém guardam consigo todas as controvérsias que a cercam. Sobre o exemplo de Latour, do dicionário: um dicionário é um compêndio da língua que não é fixo, nem imutável. Palavras são constantemente adicionadas, novas acepções para palavras também. Do mesmo modo, antigos usos são registrados

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(eventualmente rubricados como uso arcaico ou diacronismo, etc.). A caixa-preta da cor e o do p/b não está resolvida. Produtores continuam a se opor firmemente 16 ao p/b e diretores continuam desejosos do p/b. Janet Hirshenson e Jane Jenkins lamentam o fracasso de O Selvagem da Motocicleta, nos seguintes termos: “o filme tomou riscos extraordinários, muito apreciados pelos cinéfilos de arte, mas isso nunca se traduziu em sucesso comercial. Os Caçadores da Arca Perdida e Guerra nas Estrelas eram o futuro, não O Selvagem da Motocicleta e Vidas Sem Rumo” (2006, p. 86-7). A fala aponta para Martel e Luiz Gonzaga de Luca, numa realidade totalmente metrificada. Se essa fosse verdade absoluta, nenhum filme p/b seria lançado ou atingiria sucesso de público. A tabela da página 08 desmente esse quadro com facilidade, nos termos estritamente comerciais da questão. Quanto à provocação de Misek, de que o p/b é evocado pelos diretores como uma homenagem aos filmes mais antigos e melhores e de que o p/b é usado pelos cineastas para alcançar o status de autor, essa visão tem uma lógica muito limitadora posto que exclui de forma absoluta o pensamento estético da equação. Blade Runner e O Selvagem da Motocicleta, por exemplo, são capazes de materializar – de forma complexa e nuançada – as sensações dos personagens na tela: em sons, luzes, cores (ou a ausência delas), etc.

Referências bibliográficas BRODY, Richard. An auteur is not a brand. The New Yorker, Nova Iorque, 10.07.14. Disponível em < http://goo.gl/4kRn3T >. Acesso em 10.07.15. FARINA, Modesto; PEREZ, Clotilde; BASTOS, Dorinho. Psicodinâmica das Cores em Comunicação. São Paulo: Blucher, 2006.

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“Até Steven Spielberg teve que negociar para conseguir fazer A Lista de Schindler (1994) em pretoe-branco. Para tal, ele teve que renunciar seu próprio salário e declinar sua porcentagem sobre os lucros do filme até que a Universal recuperasse todos os 22 milhões de dólares investidos na produção. Apesar dessa concessão, o diretor da Universal, Tom Pollock, ainda assim convenceu Spielberg a filmar em película colorida, para que o filme fosse posteriormente lançado a cores em vídeo" (MISEK, 2010, p. 98).

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8º Congresso de Estudantes de Pós-graduação em Comunicação do Rio de Janeiro XII Seminário de Alunos de Pós-graduação em Comunicação Social da PUC-Rio Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, 21 a 23 de outubro de 2015.

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