Corpo confinado, escrita deslocada: história e discurso em A flor da pele, de Armando Freitas Filho

July 5, 2017 | Autor: Mariana Quadros | Categoria: Brazilian Literature
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Corpo confinado, escrita deslocada: história e discurso em A flor da pele,
de Armando Freitas Filho

Mestranda Mariana Quadros Pinheiro[1] (UFRJ)
...
Resumo:

A partir da inscrição de data e local no poema A flor da pele,
interrogaremos de que modo se registra o tempo histórico nessa obra.
Para além da identificação das personagens e do cenário ali
representados, gostaríamos de pensar as relações entre o poema e a
história a partir daquilo que não é dado a ver. Pensaremos, portanto, um
realismo que se dá menos pela fidelidade do que pela falha.

Palavras-chave: violência, representação, literatura e história, obra
aberta.

Introdução

A flor da pele é uma obra datada. Não entenda o leitor que se
menospreze assim o poema em prosa de Armando Freitas Filho. Não se trata de
afirmar a perda de interesse devido à obsolescência da obra. Ao contrário,
a data – "Setembro, 1978" – é um dos motivos que nos levam a retornar ao
texto trinta anos depois. Não porque suscite a nostalgia despertada por
algumas fotografias antigas, já amareladas, mas talvez porque menos
represente algo do que suscite interrogações. O quê em setembro de 1978? Em
que condições?

A flor da pele é um texto localizado. "Rio" é o topônimo apresentado
abaixo da data. Mais uma vez, a identificação poderia ser um fator a
diminuir o interesse pela obra, restrita talvez aos problemas da capital
fluminense. Porém, não o faz. "Rio" não apenas indica um espaço, mas lança
uma dúvida: substantivo ou verbo? De que ri o "eu"?

Ainda novas questões: data e local se distribuem sob uma gravura
ambígua: Cristo Redentor ou bunda? É impossível decidir. Sob o impacto das
interrogações lançadas por esses elementos, pode-se retornar ao texto, em
busca das representações do tempo e do espaço, apenas indiciados no
conjunto aqui descrito.

Não avancemos para o poema ainda. Não sem antes notar que A flor da
pele não é mais um texto datado e localizado. Relançado em 2003, em Máquina
de escrever (obra poética reunida de Armando Freitas Filho), data, local e
gravura estão ausentes. Também aqui não basta inverter a lógica que
identifica "datar" a "obsoletar", como se a retirada da data e do local
bastasse para tornar a obra infensa ao anacronismo. Há talvez mais do que o
apagamento das marcas da passagem do tempo e dos possíveis deslocamentos de
lugar. Como haviam sido a data, o local e a gravura na edição anterior, a
retirada do conjunto pode levar o leitor a interrogar a obra relançada em
2003. Por que não mais no Rio, em setembro de 1978?

Indicações de tempo e espaço, apagamento de data e lugar são os
primeiros sintomas da inscrição da História no texto. Em busca das marcas
desse registro, voltamos agora ao poema de Armando Freitas Filho.


1. O que se noticia: Rio, setembro de 1978[2].

O primeiro contato com a edição de 1978 de A flor da pele parece nos
convidar a percorrer as páginas do folheto. Antes mesmo de nos engajarmos
na leitura, a textura do papel e as imagens distribuídas pelas folhas levam-
nos a tentar compreender a organização do texto e de que modo se relacionam
palavra e imagens. Um breve passeio pelas quatro páginas do encarte nos faz
observar que estamos diante de índices da construção de um simulacro de
jornal: o título, em letras garrafais, simula uma manchete jornalística;
fotografias margeiam os textos escritos, à maneira das ilustrações nos
periódicos; data e lugar, inscritos na última página do encarte, situam
tempo e espaço do acontecimento noticiado: a expressão "Setembro, 1978/
Rio" é grafada no canto de uma página quase em branco. Surpreendidos por
tal constatação, acostumados talvez aos textos literários que se confinam
ao espaço institucionalizado do livro, voltamos a percorrer as páginas do
folheto na tentativa de compreender de que modo se relacionam escrita
literária e registro da história.

Na primeira página do encarte, em letras garrafais: A FLOR DA PELE. O
título estabelece um pequeno abalo na linguagem: retoma a locução adverbial
"à flor da pele", mas a partir do deslocamento causado pela supressão da
crase. Minimiza-se, assim, o significado comumente atribuído a essa
expressão de modo: "à superfície de". Surge, em detrimento deste, um efeito
de sentido de demonstração, construído pela presença do artigo definido: ao
longo do texto, será apresentada a flor da pele, sua superfície – sabemos,
uma vez que o significado associado à expressão adverbial ("à superfície
de") permanece como som, vestígio e memória. Ao produzir a diferença no
seio do que é aparentemente idêntico, a escrita de A flor da pele leva,
assim, desde o título, ao choque dos sentidos.

O olhar desce um pouco e encontra, mais uma vez, uma configuração
inesperada: uma reprodução do verbete pele do dicionário Aurélio concorre
com algumas figuras. A apresentação anunciada pelo título se constrói pelas
acepções do dicionário: a pele que se define é, portanto, palavra da língua
portuguesa. À transgressão da forma lingüística usual no título, acrescenta-
se, assim, um novo índice de que A flor da pele se desenvolve a partir de
uma retomada da linguagem pela linguagem.

A retomada se dá não apenas pela dobra da língua sobre si mesma, mas
também pela relação desta com a linguagem visual. Essa constatação parece,
porém, ser negada quando se analisam mais detidamente as imagens
distribuídas no lado esquerdo da primeira página. Há ali a fotografia de
uma boca escancarada até seu limite máximo. Diante dessa figura, o leitor
vê multiplicarem-se as interrogações suscitadas pelos sucessivos desvios
engendrados por A flor da pele: ao invés da confirmação da linguagem
definidora do dicionário, encontramos múltiplos efeitos de sentido – trata-
se de careta, grito ou convite à penetração?

Tampouco nas outras duas imagens encontramos elementos que retomem os
temas suscitados pelas definições encontradas no Aurélio. Ao lado da
fotografia da boca escancarada, vemos a foto de uma mulher com um enorme
adorno de plumas. Esse acessório, que ocupa grande parte da área superior
da imagem, parece ser metonímia para a constituição da mulher como adorno,
pura exposição. Encontramos, por fim, a imagem de seres sem rosto, em um
ambiente que, apesar da caracterização pouco nítida, remete aos sistemas
prisionais. Aparentemente, nada nessas figuras reitera a figurativização da
pele como revestimento dos corpos ou superfície.

Em busca de respostas para as questões causadas pela relação tensa
entre palavra e imagem, viramos a página do folheto e encontramos, em
tamanho crescente, duas reproduções do verbete do dicionário. Na primeira
entrada do verbete na parte superior da folha, somos surpreendidos pela
presença inesperada da primeira pessoa, que invade a linguagem supostamente
objetiva do dicionário: a "couro", sinônimo popular de pele, acrescenta-se
"que arranho". A retomada é, portanto, transgressora: viola-se a linguagem
do dicionário, sem, no entanto, suprimi-la por completo. Assim como o
título mantém a expressão adverbial "à flor da pele" como resto subvertido,
presenciamos gestos de violência contra a linguagem retomada, que permanece
como solo a ser trapaceado.

O abalo no verbete do Aurélio se dá não apenas pelo acréscimo, mas
também por sutis processos de supressão. Se na primeira acepção do
dicionário, líamos "membrana mais ou menos espessa que reveste
exteriormente o corpo", no primeiro texto de Armando Freitas Filho,
encontramos "membrana mais ou menos espessa que veste o corpo". A supressão
do prefixo "re-" inaugura uma nova temática, ausente no texto do Aurélio: a
pele é agora caracterizada como vestimenta, cobertura provisória do corpo.
Torna-se, assim, o espaço privilegiado dos sucessivos gestos de violência
realizados pelo eu, invasor da linguagem do dicionário e também da pele do
outro. O procedimento de violência contra a linguagem tem, desse modo, como
duplo o tema da agressão, uma vez que, por meio dessas alterações, surge
uma configuração inesperada: a destruição da fronteira que separa o outro
do eu violador.

Nas acepções 2 a 7, a caracterização da pele como elemento disjungido
do corpo se mantém e se aprofunda. A pele é agora "despida", "arrancada",
"estendida", "devorada; até a pelanca". Após a dissociação da pele alheia e
de sua exposição, ela pode ser ingerida pelo eu. Há, pois, uma aproximação
crescente, que leva à interiorização do outro. Encena-se um cerco invasivo
em que se desenha o espaço ocupado pela personagem de primeira pessoa como
o de uma aproximação agressiva. Além disso, os verbos no presente do
indicativo dão aspecto dramático ao texto: assistimos à encenação de um ato
de conquista e posse de um corpo.

As imagens, ao lado da reprodução do verbete pele do Aurélio, anunciam,
assim, desde a primeira página do encarte, a temática da violência presente
no interior do folheto: a boca escancarada – careta ou grito – prenuncia a
temática da agressão do outro. Introduz, além disso, o tema da penetração
no ser violentado. Essa configuração temática é retomada pela imagem que
separa o primeiro do segundo bloco de texto de Armando Freitas Filho: um
corpo feminino – sem rosto, puro fragmento – expõe a região pubiana,
justamente aquela que mais facilmente abre as vias de invasão do corpo.

Avançamos então para a segunda reprodução do verbete, na parte inferior
da página: é preciso confirmar se, de fato, a ampliação, graficamente
marcada, do texto do Aurélio se dá por gestos de repetição e profanação.
Ali também, a repetição; novamente a transgressão, cada vez mais acentuada.
Outros acréscimos: a pele é ainda, como na reprodução anterior, vestimenta,
cobertura disjungida do corpo a ser agredida e, agora, também
"arrebentada". Além disso, a agressão contra a pele tem tempo definido: "na
hora da tortura do amor". À sensualidade, presente em quase todas as
acepções do Aurélio, soma-se o tema da sexualidade. Os rasgos na
exterioridade alheia se dão por meio da violência erótica.

Nas seis acepções seguintes, adensa-se a caracterização do espaço como
o de um cerco invasivo. O verbo "alcançar", acrescido à segunda entrada do
verbete, ajuda a construir o deslocamento das personagens como avanço e
fuga. A caracterização da pele como veste facilmente arrancada também se
confirma e se aprofunda: a pele, separada do corpo, é "estendida no chão",
"pendurada", "mastigada", "comida". "Com carinhos e unhas", é a violência
sexual que destrói a fronteira entre o outro e o eu violador.

A crueldade nas relações intensifica-se ainda mais nas perversões que
incidem sobre a expressão "estar na pele de", que, no dicionário,
tematizava identificação. Na primeira violação do Aurélio, lemos em
negrito: "estar na pele de, e enfiar". Não há diálogo possível, uma vez que
a reificação do outro o torna resto sem individualidade que permita
identificação. Em detrimento do significado de comunhão presente no
dicionário, erige-se o efeito de sentido de usurpação: uma vez que a pele é
dissociável e dissociada, é possível estar literalmente na pele do outro,
vesti-la e maltratá-la.

Na segunda reprodução do verbete, um outro acréscimo confirma e
aprofunda essa configuração: "enfiam-se agulhas sob as unhas" do torturado.
Uma nova inserção faz, além disso, surgir um tema até então inexistente:
estar na pele que se maltrata permite "a avaliação do sofrimento" causado.
Os gestos sádicos, que levavam à destruição do outro, mas não à perda do
eu, tendem agora ao masoquismo: é sob a pele usurpada, sob uma tortura
sentida em si próprio, que se pode compreender a barbárie. Se era possível
conceber A flor da pele como representação de um momento histórico
determinado, agora pode-se, mais, compreendê-lo como possibilidade de
reflexão sobre a história. A crueldade da linguagem, a violência contra o
texto retomado, é, assim, oportunidade de avaliação do sofrimento vivido
então. Tal reflexão não se dá de forma confortável, mas por meio da tensão
e da identificação masoquista com o sofrimento tematizado.

Avançamos para a terceira reprodução do verbete do Aurélio para
acompanhar os demais gestos transgressores contra a linguagem. No terceiro
texto de Armando Freitas Filho, a agressividade intensifica-se: o couro é
agora não apenas "arranhado", "rebentado", mas também "castigado". A
barbárie expande-se: não apenas "na hora da tortura de amor", mas também
"de outras torturas" se encena a violência, que tende à destruição da
individualidade do outro. A pele cobre o corpo humano, "os dos animais e de
muitos outros seres sem nome e sem feitio". O novo acréscimo leva a
destruição dos limites exteriores ao ápice, imbricando esse tema ao da
disformidade e ao do anonimato.

Além disso, no terceiro bloco de textos, novas figuras fazem surgir
outros temas. Define-se o ator da tortura: "a mão do carrasco pendura no
pau-de-arara" os despojos dos seres tornados massa amorfa. "Debaixo dos
passos das botas", o torturador, "uniformizado", identifica-se com a
polícia e o exército brasileiros. É certamente a intercessão dessas figuras
à temática da crueldade que relaciona mais claramente o texto à construção
de uma imagem de barbárie do momento histórico em que foi produzido.

Lembramo-nos, assim, da última página do folheto, da inscrição
Setembro, 1978/ Rio, às margens do grande espaço em branco no centro da
página. Não à toa, a data em que foi redigido o poema se inscreve no texto,
faz parte dele. Não por acaso, o texto se constrói como simulacro de
jornal: por meio da violência contra a linguagem do dicionário, noticia-se
a violência do cotidiano da ditadura militar, vigente no Brasil no ano de
1978.

A notícia não é inocente. O simulacro de jornal não é apenas um recurso
a explicitar a importância de se considerar o cotidiano dos cárceres do Rio
de Janeiro em 1978 para compreender o poema. O tablóide A flor da pele
divulga o que os jornais da cidade e do país não poderiam narrar. De um
lado, explicita a tortura nos cárceres, tema cuja divulgação a censura
tentava impedir durante o regime militar. Além disso, é sob a forma de uma
confissão do torturador que se noticia a violência. Quem assume a primeira
pessoa não é a vítima, como em diversos testemunhos de torturados, mas o
agressor, cuja impunidade se confirmaria com a Lei da Anistia, no ano de
1979. A flor da pele é, pois, um tablóide que logra trazer à luz em 1978 a
notícia que nenhum outro jornal poderia divulgar nesse ano ou nos que se
seguiram[3].

É significativo, ainda, que a notícia não aponte qualquer
funcionalidade para a tortura, cuja prática foi justificada tantas vezes
pelo êxito em extrair confissões de presos. Ao fazê-lo, representa a
tortura apenas como recurso sádico, de quem objetiva gozar uma vez em
posição de mando. Como o desejo não é saciado, a tortura pode sempre
reiniciar. A repetição dos verbetes parece, assim, homologar-se ao retorno
indefinido das sessões de tortura[4].


2. Para além de uma data precisa, a violência incontornável.

A flor da pele pode ser lido tendo em vista a identificação daquilo que
representa à realidade dos porões da ditadura. O poema torna-se, assim, um
noticiário, válido por seu caráter documental. Tal leitura é possível, mas,
certamente, redutora. O registro histórico está também na representação do
corpo encarcerado e confinado, mas não apenas.

Não esqueçamos que o poema é construído de fragmentos. No interior de
cada verbete reproduzido, entre cada acepção, no espaço entre cada número,
o vazio se dá a ver. Também entre cada verbete reproduzido, o espaço em
branco salta aos olhos. Não nos apressemos em preencher esses vazios, na
busca por um registro histórico dessa forma apaziguado. Leiamos esses
espaços de modo a observá-los em sua potência. Retornamos, então, aos
textos em busca de elementos que nos permitam compreender de que modo é
caracterizada, em A flor da pele, uma reflexão possível sobre um momento
histórico marcado pelo horror.

"e esquecer". Esse sintagma é repetido ao fim de cada um dos verbetes
adulterados por Armando Freitas Filho. O infinitivo pode ser lido em seu
valor imperativo, apontando para a necessidade de apagar o horror.
Entendido nesse sentido, o verbo repetido pode mais uma vez remeter à
identificação das ações empreendidas a serviço do regime, uma vez que as
sessões de tortura foram sistematicamente esquecidas por seus agentes[5]. A
engrenagem de retorno e avanço parece figurar a manutenção da tortura como
método nunca oficializado, nunca punido e, também por isso, propagado.

A última reprodução do verbete parece confirmar tal hipótese: "e
esquecer de tudo isso bem depressa, pois agora a história é outra, as águas
passadas não movem o moinho e o Brasil é feito por nós". O esquecimento
associa-se à mobilidade decorrente da passagem do tempo e dos possíveis
deslocamentos do agressor, que, ao contrário da vítima, não está confinado:
"Salvar, de qualquer maneira, a pele. Bras. Esquivar-se da responsabilidade
em mau ato (através de salvaguardas), porque o Brasil é grande e se pode
fugir para o estrangeiro".

É significativo que a data que situa o horror à época das
reivindicações por anistia, no regime ditatorial brasileiro, se situe
naquela página quase em branco. A brancura do papel torna-se, assim, índice
do silenciamento, da interrupção daqueles textos que se constituíam como
marca e divulgação da violência no Rio de Janeiro, em setembro de 1978. Não
é difícil perceber agora de que ri a personagem, sádica, de primeira
pessoa: do confinamento da personagem torturada e do mecanismo que poderia
constituir a cicatriz da violência, mas se revela inócuo ao avançar em
direção a seu próprio aniquilamento. Não só a personagem está encarcerada.
Também o texto tem sua ação confinada pelo esquecimento.

Não definamos, porém, tão rapidamente o valor do infinitivo no verbo
"esquecer". Lembremos que A flor da pele não foi esquecido, mas reeditado
vinte cinco anos depois. Na edição de 2003, já não existem mais a data e o
local a concorrer com a brancura do papel no fim do poema. Na nova edição,
a página é ocupada apenas pela entrada do verbete: "Pele. [Do lat. pelle.]
S.f.". O silenciamento súbito, inesperado, parece convidar a novos rasgos
na linguagem. É preciso fazer avançar a engrenagem poética. O gesto de
retirada do topônimo e da indicação de tempo chama atenção, assim, para o
caráter infinito do tempo do verbo. Não à toa, após a aparição do verbo
"esquecer" ao fim do primeiro verbete adulterado, dois novos textos são
reproduzidos e violados. É impossível esquecer. É preciso revisitar a cena
de violência. O sujeito do infinitivo pessoal já não é mais o "eu" do
torturador, mas o do torturado, cuja dificuldade de articular a experiência
da tortura é figurada pelo caráter fragmentário dos verbetes e pelo retorno
ao texto, à cena traumática. Do ponto de vista do torturado, o infinitivo
do verbo "esquecer" pode assumir tanto o valor imperativo – é preciso
esquecer para não sucumbir à memória traumática – quanto infinito – é
impossível esquecer, visto que o trauma, não completamente simbolizado,
retorna obsessivamente.

A repetição dos verbetes a serem violentados parece indiciar o caráter
traumático da experiência violenta e tornar o próprio texto um mecanismo de
retorno do trauma. É a partir dessa escrita em dobras que podemos ampliar
as possibilidades de compreensão do horror, em um processo de avaliação que
recomeça sempre, visto que nunca podemos significar inteiramente a
catástrofe:




Assim, gostaria de propor que a dimensão traumática da
experiência humana, esta que escapa à representação, não
tem suas fronteiras delimitadas de antemão. Nossa tarefa
vital, como seres de linguagem, consiste em ampliar
continuamente os limites do simbólico, mesmo sabendo que
ele nunca recobrirá o real todo. De cada experiência, de
cada objeto, de cada percepção, fica sempre um resto que
não conseguimos simbolizar; o núcleo "duro" das coisas,
que lhes confere independência em relação à linguagem e
nos garante, de alguma forma, que o mundo não é uma
invenção de nosso pensamento (KEHL, 2000, p. 138).




Justamente porque a catástrofe não tem limites definidos, é possível
avançar sempre no registro de um trauma nunca completamente representado. A
barbárie é, assim, ilimitada porque nunca se pode noticiá-la toda. Não tem
fronteiras definidas, além disso, porque o horror engendra novas
violências, sem fim: não se restringe à ditadura, mas a partir dela,
avança, em múltiplas direções, sem freio. O tema da passagem do tempo, no
terceiro texto, confirma essa expansão descontrolada: "pois as coisas
mudam", A flor da pele reafirma sua potência de perversão a cada nova
leitura. A violência não se restringe, pois, ao mês de setembro de 1978. Ao
contrário, incita a novas violações da linguagem e aponta para a produção
potencialmente infinita do sofrimento a ser tematizado por outras escritas
transgressoras.

O mecanismo de retorno a um texto a ser mais e mais violado é um modo
de registrar a violência para além da identificação dos personagens nele
envolvidos e do cenário de confinamento. Na dobra da escrita sobre si
mesma, indicia-se a importância do não simbolizado ou do não simbolizável
em A flor da pele. A própria obsessão do retorno a uma notícia a ser
ampliada confirma que a identificação nunca é plena.

A flor da pele nos permite pensar em uma representação feita não apenas
no molde da identificação de referentes (da "cópia"), mas também naquilo
que fica fora do texto e que é irrecuperável. Nesse poema, o real é
registrado não só como o que se representa e se expõe, mas também em sua
fratura. O realismo talvez não esteja tanto na fidelidade, mas na falha do
que se quer registrar.

Reconhecer essa falha não implica reforçar o que o texto não fez, mas
"poderia ter feito". Ao contrário, aponta no que não foi dado a ver a
potência da obra[6]. Talvez um dos mais graves riscos implicados na
identificação do cenário de confinamento e das personagens envolvidas na
tortura a um momento preciso do passado do país esteja na imobilização da
história, em concebê-la como fato concluído e recuperável apenas como
imagem do que já não nos diz respeito. Ao contrário, o poema, ao articular-
se como espiral que avança por meio do retorno à encenação da violência,
aponta para uma concepção de tempo não-linear. O presente guarda em si um
passado recuperado em seu vigor, reconhecido. Sem data, A flor da pele
alveja todos aqueles que possam reconhecer ecos de seu tempo brutalizado na
violência do passado[7].


Conclusão

A leitura de textos que tematizam a violência é freqüentemente
agressora. O contato com obras que violentam a linguagem é ainda mais
cruel. A tentativa de apaziguar o abalo produzido pode levar à proposição
de soluções pacificadoras para aquilo que se lê. Não raro, ignora-se a
concorrência da materialidade escrita da linguagem para a perversão dos
sentidos instituídos. Muitas vezes, aprisiona-se a dramatização do horror à
representação de um acontecimento delimitado no tempo.

A flor da pele, de Armando Freitas Filho, é dessas obras que convidam
ao deslocamento constante. Narrativa da barbárie, é freqüentemente, porém,
reduzida à confissão estanque da brutalidade de um evento do passado. Data
e localização, grafadas na última página do folheto, parecem confirmar o
teor confissional do texto.

De fato, A flor da pele põe em cena a barbárie do ano de1978, no Rio.
Porém, quando se analisa um texto que faz movimentarem-se os limites entre
os modos instituídos de escrita – híbrido de poema e prosa, dicionário e
jornal –, somente por uma recusa da estranheza podemos reduzi-lo ao relato
de um fato histórico. Quando o leitor realiza uma análise que se
desestabiliza pelos desvios e pelas transgressões na linguagem, a
circunstância de tempo e lugar – que não se deixa ignorar – não restringe
as leituras à simples revelação do conteúdo de uma confissão. A
determinação do tempo e do espaço, ao contrário, passam a ser compreendidas
como índice da dramatização de um acontecimento perverso, em um texto que
se torna, ele próprio, um acontecimento cruel.

É significativo do caráter dificilmente delimitável de A flor da pele
que data e lugar da primeira edição se inscrevam em uma página quase em
branco, convite para novas agressões. Afirma-se, na ausência encontrada
neste papel, a tarefa sem fim de registrar a violência. A dramatização do
horror não é, assim, tentativa de tudo significar, mas modo de mover
infinitamente novos abalos, sempre incompletos.

Se os verbetes redigidos não levam a um relato totalizador, tampouco a
escrita pode se mostrar completa. Ao inacabamento do texto, soma-se uma
concepção de história como processo, cujo impacto não permite uma narrativa
inteiriça. Voltamo-nos, assim, para aquilo que, na linguagem, recusa as
formas fechadas e o sentido já dado.

Assim como o outro agredido tende, no limite, à perda de sua
individualidade e à morte, também a palavra anuncia, a cada nova violência,
sua ruína. Vemos, desse modo, como aquela última página em branco é o
centro de atração de cada alteração realizada na palavra do Aurélio: as
primeiras transgressões analisadas remetem a essa folha, promessa de novas
subversões, ao infinito. Fazem-nos vislumbrar que o limite dado a novas
violências nunca é derradeiro, visto que cada gesto transgressor faz mover
a linha a ser ultrapassada. Novas reproduções do verbete poderiam ser
realizadas, em infinitas outras violações que levassem, no extremo, à morte
do sentido. A repetição é forma de a linguagem dobrar-se sobre si mesma,
adiando o silenciamento pressentido:




[...] o limite da morte abre diante da linguagem, ou
melhor, nela, um espaço infinito; diante da iminência da
morte, ela prossegue em uma pressa extrema, mas também
recomeça, narra para si mesma, descobre o relato do relato
e essa articulação que poderia não terminar nunca. A
linguagem, sobre a linha da morte, se reflete: ela
encontra nela um espelho; e para deter essa morte que vai
detê-la não há senão um poder: o de fazer nascer em si
mesma sua própria imagem em um jogo de espelhos que não
tem limites (FOUCAULT, 2006, p. 48).




Essa potência de reprodução, de avanço, torna impossível o
esquecimento, ironicamente repetido no final de cada bloco de texto. Assim
como a pele, após sucessivas agressões torna-se, inteira, cicatriz, também
o poema é vestígio incontornável da violência: lembrança envergonhada de um
passado de brutalidade, mas também marca de um porvir em que se produzem
novas agressões – barbárie que retorna sempre e deve, dia a dia, ser
(re)noticiada.


Referências Bibliográficas

[1] BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais de método sociológico na Ciência da linguagem. São Paulo:
Hucitec, 2004.

[2] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: ______. Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
Trad.: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

[3] FOUCAULT, Michel. A linguagem ao infinito. In: ______. Estética:
literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2006b, p. 47-59. (Ditos e escritos III).

[4] FREITAS FILHO, Armando. Máquina de escrever. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2003.

[5] _______. A flor da pele. Rio de Janeiro, 1978.[mimeo]

[6]GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.

[7] KEHL, Maria Rita. O sexo, a morte, a mãe e o mal. In: NESTROVSKI,
Arthur, SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.). Catástrofe e representação. São
Paulo: Escuta, 2000, p. 137-148.

[8] SELIGMANN-SILVA,Márcio. A história como trauma. In: NESTROVSKI, Arthur,
SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo:
Escuta, 2000, p. 73-98.




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[1] Trabalho realizado com apoio do CNPq.
[2] Referimo-nos às imagens e ao suporte da edição de 1978. Porém, a
reprodução das imagens digitalizadas do folheto em que se publicou A flor
da pele poderia fazer com que o arquivo não fosse enviado a algumas caixas
de mensagens. Aqueles que quiserem ter acesso às imagens, por favor, entrem
em contato: [email protected].
[3] As reflexões de Bakhtin em Marxismo e filosofia da linguagem apontam
para a linguagem em sua dupla relação com as forças sociais. De um lado, a
palavra é vista como o fenômeno ideológico por excelência. Logo, é o
instrumento que reflete de maneira mais sensível as relações sociais. De
outro, ela refrata a realidade. É, ao mesmo tempo, o que dá a ver e o que
silencia: "Mas aquilo mesmo que torna o signo ideológico vivo e dinâmico
faz dele um instrumento de refração e de deformação do ser. A classe
dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível e
acima das diferenças de classe, a fim de abafar e ocultar a luta dos
índices sociais de valor que aí se trava, a fim de tornar o signo
monovalente" (BAKHTIN, 2004, p. 47). Bakhtin vê na "refração do ser" por
meio da palavra um dos instrumentos do poder das classes dominantes.
Poderíamos estender suas reflexões e observar o poder combativo do gesto de
"refratar o ser" na palavra daqueles que se opõem às classes dominantes.
Tal gesto é aquele observado em A flor da pele quando o poema inverte a voz
de quem denuncia as torturas.
[4] Em A ditadura escancarada, Gaspari reflete sobre o ritmo incessante e
indefinido da tortura, que vemos ecoar no retorno ao verbete a ser violado
em A flor da pele: "Usada como instrumento de investigação, a tortura
transforma-se para a vítima num tormento maior que a própria pena. Ela
extrai a confissão através da aplicação do sofrimento ao preso, mas não é a
dor pura e simples que o leva a falar. [...] No Brasil, um oficial do
Exército experimentou o suplício: 'É ruim, mas não é um horror. Dá para
agüentar. Não é de se tirar de letra, mas não é o horror'.
A tortura manobra a dor de forma diversa. O sofrimento começa ou pára,
aumenta ou diminui, pela exclusiva vontade do torturador. Ele tanto pode
suspender uma sessão para dar a impressão de que teve pena do preso, como
pode avisar que vai iniciar a outra, sem motivo algum, para mostrar-lhe a
extensão do seu poder. 'Meu maior medo não era do pau, mas da possibilidade
de tomar pau', lembra Ariston Lucena, militante da VPR, preso do DOI
paulista. 'O meu pavor atingiu tal limite que só de ouvir um abrir de
portas já começava a tremer, eu não pensava em mais nada', depôs Manoel
Henrique Ferreira, militante da VPR e prisioneiro da Força Aérea
Brasileira.
O poder absoluto que o torturador tem de infligir à sua vítima transforma-
se em elemento de controle sobre seu corpo" (GASPARI, 2002, p. 40).
[5] As narrativas das ações no sentido de apagar as provas do uso da
tortura multiplicam-se nos quatro volumes redigidos por Elio Gaspari sobre
o período de 1964-1977 do regime militar. Basta a seleção de poucas dessas
narrativas para que se evidencie que o esquecimento foi o resultado de
ações deliberadas, imperativas: "Na galeria aberta em 1966 pelo sargento
Manoel Raimundo Soares com suas mãos amarradas, Chael tornou-se mais uma
daquelas vítimas do regime que morreram diversas vezes. Na primeira, quando
o mataram. Nas demais, quando a toda iniciativa no sentido de elucidar o
crime e levar os acusado a processo legal, correspondeu uma resposta do
regime, calando-a" (GASPARI, 2002, p. 168). "A tese segundo a qual a
tortura era produto da atividade de agentes desautorizados e passíveis de
punição fora desmoralizada. Os presos da ilha das Flores, da penitenciária
de Linhares e do presídio de Juiz de Fora haviam denunciado os suplícios
por que passaram, sem que o governo procedesse a nenhum tipo de
investigação" (id., ibid., p. 285). "Os militares enterraram Maria num
cemitério de Xambioá, com o corpo embrulhado num pedaço de pára-quedas e a
cabeça envolta em plástico. A ditadura fixara um padrão de conduta. Fazia
prisioneiros, mas não entregava cadáveres. Jamais reconheceria que
existissem" (id., ibid., p. 420).
[6] Ao refletir sobre a Shoah, evento limite no que diz respeito à
catástrofe, Seligmann-Silva questiona a representação hiper-realista do
horror. Eventos de tal magnitude, quando iconizados de forma saturada,
parecem criar o efeito de não-realidade. Além disso, diz o autor, o hiper-
realismo pode ser pouco eficaz na terapêutica do trauma. Em suas palavras:
"[...] os limites da representação, no que tange ao testemunho da Shoah,
não advém de uma incapacidade técnica. A representação extremamente
realista é possível: a questão é saber se ela é desejável e com que voz ela
deve se dar; se ela nos auxilia no 'trabalho do trauma' que tem como
finalidade a integração da cena de modo articulado e não mais patológico na
nossa vida" (SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 86). Em A flor da pele, é o próprio
trabalho de articular o trauma que parece estar em jogo. Daí a
impossibilidade de saturar de realismo o poema, visto que tal configuração
implicaria que o processo de articular e simbolizar o evento traumático já
se tivesse realizado plenamente.
[7] O movimento de retorno e avanço, em espirais dirigidas a um passado de
violência, faz ver no presente a barbárie. O próprio presente do
indicativo, por meio do qual se encenam as ações brutais, reforçam essa
temporalidade, que já não é mais aquela de um tempo homogêneo que
transcorre linearmente. Na temporalidade que foge à narrativa do progresso,
Benjamin vê surgir o poder de combate: "Articular historicamente o passado
não significa conhecê-lo "como ele de fato foi". Significa apropriar-se de
uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo"
(BENJAMIN, 1994, p. 224). O "momento de perigo" é aquele do presente de
quem toma o papel e torna a violar, em diferentes anos e em diferentes
locais, o verbete apenas anunciado na última página, sem indicações de
tempo e lugar, em A flor da pele.
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