Corpo e Espaço Reconfigurados na Cidade Cibernética

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Iain Chambers, Cities without maps in Mapping the Futures – Local Culture, Global Change, p. 188-198
Bragança de Miranda, Da Interactividade: Crítica da Nova Mimesis Tecnológica, in Claudia Giannetti (org.) Ars Telemática, Lisboa, Relógio D'Água, 1999
FURTADO, Gonçalo, O Corpo no Espaço da Técnica Contemporânea in CASCAIS, Fernando, MARCOS, Maria Lucília (Org.) (2004) Revista de Comunicação e Linguagens n.º 33: Corpo, Técnica, Subjectividades, Lisboa: ed. Cosmos
Idem
Ver manifesto da Ars Industrialis em http://arsindustrialis.org/node/1472
Martin Heidegger em O Fim da Filosofia e a Tarefa do Pensamento (1966)
Walter Benjamin em To the Planetarium (1936)
Iain Chambers, Cities without maps in Mapping the Futures – Local Culture, Global Change, p. 196
Alusão ao capítulo do livro O Aberto: o Homem e o Animal de Giorgio Agamben
Esther Leslie in The Work of Art in the Age of Unbearable Capitulation, capítulo 6
Idem
José A. Bragança de Miranda in Mapear a Cibercultura
Idem
in Adenda a Teses Sobre o Conceito de História, Walter Benjamin

Trabalho para o Seminário
O CORPO E O ESPAÇO NAS ARTES CONTEMPORÂNEAS
Mestrado Ciências da Comunicação - Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias
Docente Professor Doutor José Bragança de Miranda




- Projecto Vénus:
Corpo e espaço reconfigurados na cidade cibernética-
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"In a decaying society, art, if it is truthful, must also reflect decay and unless it wants to break faith with its social function, art must show the world as changeable, and help to change it"
Ernst Fischer






Ano lectivo 2013/2014
Paulo Moisés Silvestre de Figueiredo
Nota: este trabalho foi escrito de acordo com a ortografia antiga
Palavras-chave: arte, cidade, utopia, técnica, projecto vénus

Projecto Vénus:
Corpo e espaço reconfigurados na cidade cibernética

Com o objectivo de trabalho na dissertação em que pretendo perceber que contributos e problemáticas nos podem oferecer os discursos tecnológicos contemporâneos no âmbito das ciências da comunicação, para o seminário O Corpo e o Espaço nas Artes Contemporâneas pretendo trabalhar uma utopia tecnológica específica: o Projecto Vénus desenhado por Jacque Fresco. Trata-se de um projecto de reconfiguração social, tendo como ferramenta de trabalho a cidade. Nas palavras do próprio:
"The Venus Project call for a cybernetic society (…) the Venus Project's only purpose is to elevate the spiritual and intellectual potential of all people, while at the same time providing the goods and services that will meet their individual and material needs. All of this could only be accomplished in a resource-based world economy where all of the world's resources are held as the common heritage of all of the earth's peoples."
Jacque Fresco in http://www.thevenusproject.com/
Uma visita ao site oficial do Projecto Vénus responde a todas respostas possíveis sobre a estrutura da cidade, assim como métodos de construção, manutenção e melhoramento. Idealizada do ponto vista estritamente científico com o objectivo de viabilizar auto-suficiência energética à cidade, a estrutura é pensada para permitir melhoramentos progressivos conseguidos através do que Fresco prevê como avanços significativos nas áreas de investigação. Jacque Fresco, arquitecto e designer industrial, tornou públicos os seus projectos em 1976 nos Estados Unidos como resposta a sistemas políticos e económicos globais que apelidou de obsoletos. A sua proposta vai para além da renovação das cidades. Em verdade, o Projecto Vénus divide-se em duas fases: a adopção de uma economia baseada em recursos naturais (resource based economy), em que gradualmente ambos sistemas económico e político seriam descontinuados e as decisões em termos de gestão dos recursos naturais seriam efectuadas localmente por centrais cibernéticas que, em ligação com todas as centrais mundiais, eliminariam por principio o poder político e corporativo, e consequentemente epidemias como a doença, fome, guerra, desigualdade e desemprego. Estas centrais utilizariam a Teoria dos Sistemas, que advoga dependência dos seres humanas das leis naturais e a necessidade de viver em simbiose com a natureza, sem prejuízo para esta que permite em última análise a nossa sobrevivência. O modelo de construção das cidades nos diversos locais do globo seguiria uma estratégia específica denominada comprehensive systems approach, isto é, a edificação de cidades seria feita de acordo com o que cada área fornece, e se fornece condições que satisfaçam as básicas necessidades humanas.

A estrutura das cidades passa por cinco corpos:
-Uma central cibernética interligada em rede com todas as outras centrais do mundo.
-Mecanização total da produção e gestão da cidade.
-Sistema integrado de energia (solar, eólica, termonuclear, geotermal, marés).
-Centros de investigação, escolas e recreação.
-Sistema de transportes, distribuição, reciclagem e esgotos.
Com o objectivo de libertar os cidadãos do trabalho repetitivo e de um sistema monetário que os aprisiona, Fresco idealiza esta cidade auto-suficiente a que Lewis Mumford chamaria de Cidade Orgânica, em termos energéticos, preconizando uma utopia tecnológica que atiraria o Homem para uma espécie de nova sociedade pré-socrática em que as preocupações máximas seriam o bem-estar do Humano e da Natureza e a investigação científica.
O objectivo do presente trabalho pretende articular Heidegger e Benjamin na sua relação distinta com a técnica (Gestell e segunda natureza versus mediação e reprodução) e da habitação da cidade (habitação do local versus cidade única dos humanos), que também se trata de uma das instituições mais trabalhadas no âmbito das utopias, como podemos constatar em inúmeros exemplos, começando da «República» de Platão, na «Utopia» de Tomas More, na «Cidade do Sol» de Campanella até às mas recentes «Hard Times» de Dickens e «Admirável Mundo Novo» de Aldous Huxley.

Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.

Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.

Sophia de Mello Breyner Andresen
Obra Poética I
Caminho
Se na pólis grega os cidadãos eram-no na medida em que nasciam de homens livres e faziam uso da palavra, na modernidade a articulação entre o que os gregos chamavam de Zōē (vida, o biológico) e o Bios (forma de vida) é suspensa, e a potência aberta do homem de organizar de determinada maneira o mundo através da linguagem regride à vida nua ou seja, à incapacidade do homem fazer algo consigo próprio, estado que Agamben associa aos prisioneiros dos campos de concentração nazis. Esta zona de indistinção entre o fora e o dentro, o autor apelida de estado de excepção ou da possibilidade do Estado poder devolver o homem ao seu estado biológico. Mas a pólis grega deu-nos ainda outras possibilidades, como o nascimento do homem político, reconfigurado pela edificação da própria cidade. O que deve ser um Homem? Como se deve viver? Perguntas que advém do nascimento do homo politicus nas cidades. Ser da cidade, que devemos compreender não como um lugar determinado, mas como um ethos, um carácter e um conjunto de práticas nascidas da experiência dos homens entre si, com seus deuses e com os eventos que enfrentam e realizam, a pólis dá ao homem sua humanidade. O homem é fruto da cidade, da sua paideia, e por decorrência toda criação humana terá a cidade como origem e – é importante não esquecer – como propósito ou, pelo menos, referência. A noção de espaço procurou definir-se em termos da extensão, relacionamento e movimentos dos objectos-corpo, reconfigurando o corpo humano através da técnica, como nos relata o processo de reconfiguração do corpo nos séculos XVI e XVIII, entre De Humanis Corpore Fabrica de Vesálio (1543) e o Homem-Máquina de La Mettrie (1747), onde ocorre uma mudança radical na experiência dos ocidentais que levará à transformação da experiência de ser um corpo para a experiência de ter um corpo. A vida deixa de ser fruto do sopro vital divino e passa a ser entendida como resultado de um complexo mecanismo corporal de sobrevivência de que Frankenstein é exemplo paradigmático. Para Breton o gesto veseliano foi o primeiro passo na invenção do humano, "na ordem do conhecimento, a distinção entre corpo e a pessoa humana traduz simultaneamente uma mutação ontológica decisiva. É à invenção do corpo, na episteme ocidental, que conduzem estes diversos procedimentos" (1998: 47). Para além da mudança de contornos anatómicos, também se assistiu à transformação do corpo enquanto força de trabalho para a mecânica do trabalho. Explica Grmek: "nas máquinas da antiguidade, a fonte de energia era retirada do trabalho muscular do homem ou do animal. A analogia entre corpo vivo e a máquina não podia pois de modo nenhum esclarecer o problema da origem do movimento. Numa máquina antiga, este é estritamente passivo; nos seres vivos, ele é activo, mesmo se não é necessariamente espontâneo (…) as máquinas podem ter estruturas que restituem uma força armazenada mas não têm alma, único motor verdadeiro" (1990:117).
Para Foucault, o advento do Cristianismo transformou a "carne" em matéria-prima e a ciência, trabalhando-a, abriu caminho para a técnica voltar ao corpo. Argumenta o autor de Vigiar e Punir que se nas civilizações antigas (grega e romana) e politeístas, os prazeres e o uso do corpo configuram uma deontologia que perfila uma sociedade da vergonha e da aphrodisia, Foucault identifica na ascensão do cristianismo uma sociedade que explora a culpa e impõe uma relação do individuo com a carne. Uma ontologia monoteísta onde o prazer existe e é para ser reprimido pelo combate espiritual, renúncia e ascese. O facto de ser monoteísta implica que "todos os homens são iguais e criados à imagem de Deus" e que o mal é intrínseco à carne de toda a humanidade que se deve expurgar do pecado. O cristianismo inaugura com a "carne" uma matéria-prima transversal a toda a sociedade. Assim, antes do século XX não se fazia a experiência da sexualidade como na modernidade. Tinha lugar uma experiência cristã da carne e antes, uma experiência antiga pagã. Essa experiência adquire na modernidade novos contornos e como resposta à teoria da repressão proposta pela psicanálise, Foucault chega desta forma à scientia sexualis. Foucault diz-nos que com a evolução da medicina começam a surgir discursos produzidos sobre a sexualidade a que apelida de dispositivo da sexualidade.
O que Foucault nos permite perceber é que ao mesmo tempo que os dispositivos da ciência reconfiguram a corpo e produzem a própria realidade, a técnica pode reconfigurar não só o corpo como o espaço que este ocupa. William Harvey que publicou De Motu Cordis ("Sobre o Movimento do Coração e do Sangue") em 1628 promoveu uma explicação científica sobre a circulação do sangue no corpo humano, tendo o léxico utilizado no seu livro sido aproveitado por Adam Smith em Riqueza das Nações (1776), para falar não só de liquidez financeira e circulação de bens, mas também do planeamento das cidades, promovendo uma ligação entre anatomia e cidade, ou a biologização das cidades. A cidade transforma-se ela própria um corpo urbano situado no espaço e no tempo, como Chambers diagnostica, "the city plan is both a rationalization of space and of time; its streets, buildings, bridges and roads are also temporal indices. It permits us to grasp an outline, a shape, some sort of location, but not the contexts, cultures, histories, languages, experiences, desires and hopes that course through the urban body"
Foi precisamente no Renascimento quando o homem se tornou o centro do espaço cósmico, que surgiu a distinção dialéctica entre o orgânico e o mecânico, grosseiramente, entre carne e a técnica. Um percurso levaria à revolução tecnocientífica do século XIX como decisiva alternativa ao imaginário místico. Com esta distinção ocorreu uma inversão crucial em que já não é apenas a corpo que é interpretado em termos mecânicos, mas a máquina que pretende ser vista em termos orgânicos. A modernidade, baseada na ideia de um progresso conduzido pelo domínio técnico, cultivou o corpo à imagem da perfeição industrial e normalizou o social, inspirando-se na estandardização. Procurar um sentido humano para a utilização do Tecnocosmos é hoje a única liberdade que nos resta. "Estando imersos no Tecnocosmos, parece útil pensar em formular programas de hibridação para o nosso relacionamento com a técnica que significariam pautarmo-nos por modos de utilização que contrariem as predeterminações incluídas no metaprograma maquínico"
A importância das cidades é assumida na forma como a sua disposição afecta o corpo e se "expressa espacialmente na proliferação de infra-estruturas e terminais dedicados ao trânsito, na efemeridade construtiva dos espaços públicos contemporâneos, nos centros urbanos tematizados, nos corredores polidos dos aeroportos onde nos sentimos flutuar como mercadoria sujeita à eficácia dos fluxos. São as novas infra-estruturas de comunicação e os produtos digitais que asseguram a expansão e performance urbana da cidade contemporânea que se tornou difusa e descentrada. A aceleração é tão grande que superou a velocidade da cultura da máquina (que estivera na base da anterior metrópole moderna), dando origem à velocidade absoluta viriliana, que (também) dita a cidade à submersão num ciberespaço telemático." Os espaços arquitectónicos tendem actualmente também a dotar-se de inteligência e interactividade com o usuário, prosseguindo com a histórica artificialização e mecanização dos ambientes espaciais que habitamos, iniciada com a incorporação de infra-estruturas no século XIX e dos electrodomésticos, da TV etc. no século XX. As actuais tecnologias digitais suscitam alterações na concepção, construção e performance do espaço arquitectónico. "O meio digital tem, para além das repercussões no espaço um impacto na condição do corpo."
A cidade projectada por Jacque Fresco responde de alguma forma a necessidade de encontrar programas de hibridização que ultrapassem os receios do determinismo em relação ao papel da tecnologia, e conferem-lhe um cariz mais aproximado dos conceitos antropológicos de Leroi-Gourhan quando este apelida a técnica de utensílio colocado forma do corpo que permitir ao homem sobreviver num mundo hostil. A diferença é que a técnica já assumiu uma condição que transcende o mero instrumento, para ser já ela própria configuradora da realidade, como Kittler dizia e mais recentemente Bernard Stiegler que propõe mesmo uma reconfiguração da Ars Erotica foucauldiana para uma Ars Industrialis que apela a uma "política industrial do espírito".
Fresco coloca a cidade como paradigma de uma revolução cibernética, em que a tecnologia servirá para libertar o humano de condições políticas, económicas e sociais que o autor considera obsoletas. Uma nova configuração espaciotemporal multidimensional que se apoia numa nova esfera pública, ambicionando um ethos global com uma estrutura digital para comunicar em rede e se realizar com os outros. Fresco atribui uma dimensão de extrema importância aos factos de a tecnologia fica paredes meias com a natureza sem que tenha uma relação intrusiva, mas antes uma relação de responsabilidade pela gestão eficaz dos sistemas circundantes que preconizam muitas das "expectativas messiânicas" de que Walter Benjamin nos falava acerca da tecnologia.

"To be simultaneously 'rooted and rootless'"
Trinh T. Minh-ha
O labirinto da cidade e dos edifícios redefine, pelo deambular, corpo e espaço. Para Heidegger essa deambulações eram constituintes da condição do ser cidadão, que adquiria nessa simbiose com a cidade, uma cultura. Segundo o autor de Habitar, Construir, Pensar, "a labiríntica e contaminada qualidade da vida metropolitana leva a novas aproximações culturais mais ricas". Para Heidegger não se trata da habitação das pessoas, mas a habitação do local (a língua e as características). É neste sentido, de uma técnica que se evidencia nas cidades e que identifica o homem pelo simples deambular, que Heidegger refere que a técnica é uma gestell, ou a capacidade da técnica colocar tudo em estado de disponibilidade por intermédio de uma reconfiguração de experiências. A técnica é a permanente reconversão de energia em objectos e trabalha a segunda natureza. "A cibernética – a união total das ciências – é a culminação da metafísica ocidental que hipostasia uma subjectividade dirigida para uma forma de pensar que evoca poder e domínio da natureza/mundo e esquecimento e despotencialização do Ser".
Ao contrário de Walter Benjamin que vê a técnica num sentido de mediação, uma reformulação do corpo e da carne no confronto com a técnica e a arte como construção da habitação dos humanos. O objecto tem uma representação na cultura e uma dimensão política planetária que pede uma redefinição pólis. Benjamin pede uma "política dos humanos e não do estado", e a arte com papel na construção desta política (a espontaneidade das multidões), tal como Duchamp havia reconhecido que na arte não há de forma alguma uma poiesis, produção – e nem sequer o artista, porque aquele que assina com um irónico nome falso o vaso sanitário não age como artista, mas, se muito, como filósofo ou crítico, ou, conforme gostava de dizer Duchamp, como "alguém que respira", um simples ser vivo. A estética da arte foi apropriada pela política, o que levou a uma desestetização da arte e Benjamin a pensar a arte independentemente da estética e a pensar uma segunda técnica, ou técnica originária, que veiculava a fusão dos corpos com a técnica, "a técnica não é dominação da natureza é a dominação da relação entre natureza e humanidade"
Esta fusão dos corpos com a técnica faz construir uma série de questões. Desde logo que reconfigurações podem advir dessa nossa condição? Um pós-humano cuja condição biológica é posta de lado pela crescente inclusão da prótese no corpo? Se sim, estaremos já nós numa condição híbrida entre o biológico e o pós-biológico? Logo que o corpo assumir a sua condição pós-biológica, mais objecto do que orgânica entrará corpo na era da sua reprodutibilidade técnica? Estas são questões a que tento responder nos diversos trabalhos dos seminários do Mestrado e às quais me debruçarei a fundo na Dissertação. No caso do Projecto Vénus, estamos perante uma cidade onde corpo e espaço coabitam. Pondo de outra forma, não se pode tocar na Mona Lisa, mas pode-se viver no Projecto Vénus. O individuo não domina tal como Descartes quereria, nem se ficciona como Nietzsche argumentava, mas reconhece-se a si-mesmo na partilha de experiência do seu corpo e espaço e com os outros numa ligação de rede. Nesta partilha de experiências e reconhecimento mútuo, tradições e raízes tornam-se menos importantes como vestígios de autenticidade estagnados. Adquirem uma importância como veículos de recomposição e modificação do presente, "roots become routes".

"Art is not the forum of utopia.... Of that greater (some)thing - the fulfilment of Utopia- one cannot speak, only bear witness."
Walter Benjamin
A argumentação mais comum sobre os discursos tecnológicos como o Projecto Vénus é a do carácter utópico que nos é oferecido. De facto, parece difícil conceber que a "reconfiguração da máquina antropológica", passe por uma total mudança de paradigma que permita ao homem ultrapassar ideologias políticas e económicas paralisantes em que a coordenada "vida" parece ser inexistente. Que não têm em conta o ambiente, o desperdício e as relações pessoais, que suportam a maximização do benefício próprio e o ambiente não existe a não ser para explorar. Usando a tecnologia para vislumbrar, não uma utopia, mas uma estrutura civilizacional que não contemple a rápida deterioração do próprio habitat; ratifica o tempo místico da utopia que perspectiva o paraíso, mas também sabemos que a técnica modificou a noção de tempo místico e a perfeição afigura-se hoje como fundamento utópico.
Na verdade, vários autores apelam às utopias em forma de arte como motores de revolução. Para Wagner, arte e política são o reverso da mesma moeda, a arte do futuro deveria exalar uma força libertadora ou não seria arte. "O escravo tornou-se o eixo do desastre nos destinos do mundo" em oposição aos gregos que acreditavam que "a beleza e a força só conseguem desempenhar duradouramente o papel de fundamento da vida social se puderem ser pertença de todos os homens" (Wagner 1849:75-76). Wagner acentua mesmo a palavra Revolução e não Restauração, assumindo que "não queremos voltar a ser Gregos" (Wagner 1849:75-76). Por outro lado, Carl Einstein fala não em revolução, mas em descontinuidade e desordem, ou gestalt, "a arte deixa de ser governada pela tradição, pelo logos, mas pela revolta". Para o autor, a intensificação da desordem implica desracionalizar o mundo. Essa desordem do continuum do mundo faz-se através de uma contínua renovação/ repetição da gestalt. A experiência concreta da arte contra o conceito, a fixação e generalidades. A arte em vez de ser uma "imitação de uma imitação" (Aristóteles), passar a ser uma recusa em ver o Mundo como ele é.
Walter Benjamin fala também ele em abraçar a ilusão (utopia) e incorporar a existência social. Nas palavras de Esther Leslie, "Benjamin grounds a strategy for a critical political practice that utilizes technology in a 'truly revolutionary way', that is, in a way that reinvents the relations of aesthetic production". Para atingir um equílibrio (Gleichgewicht) entre o humano e o apparatus, Benjamin identifica um processo de desenvolvimento na imaginação de utopias tecnológicas capazes de desviar a humanidade do perigo. Leslie afirma que "Benjamin is insistent that people need to learn how to use technology or the productions of 'second nature' to work in harmony with nature. The alternative is the permanent substitution of utopia by war-driven, life-denying dystopias, such as the substitution of power stations by human power in the form of soldiers, or the substitution of human transportation by weapons transportation." Mas mesmo que coloquemos a utopia tecnológica em cima da mesa como revolução, descontinuidade ou ilusão necessária à vida, será esta constitutiva absoluta da realidade?
Benjamin diz-nos que a "arte trabalha com o auxílio da tecnologia para alterar as nossas interacções sociais", mas na " medida em que o que está em causa é a qualidade humana das relações, o problema é basicamente político. As artes permitem recriar o espaço político, ao mesmo tempo que arte e política devem dar sentido humano à técnica." Logo percebemos que apesar da solução eminentemente tecnológica de projectos como a cidade arquitectada por Jacque Fresco, é essencial pensar em que medida tal solução reconfiguraria as relações sociais. Existe no projecto algo de planetário certamente, e uma visão benigna da tecnologia que apela a uma convergência do humano em torno daquilo a Allan Turing chamou de "máquina universal". As civilizações cibernéticas de Fresco levam-nos a perceber que certas tendências estão a ter lugar no nosso mundo. Seja o que Kittler identificou de carácter recursivo dos media ou a "progressiva substituição de largos sectores da experiência por «experiência sintética»", ou ainda a "rápida decadência da tradição" e da passagem de saberes.
Mas também percebemos que existe um fundo de libertação na tecnologia do projecto civilizacional do arquitecto norte-americano. Ao pretender abolir diferenças essenciais entre técnica e natureza, refaz a civilização aceitando a ciência "por aquilo que tem para oferecer" em vez que "resistir a mudanças" como os actuais paradigmas o fazem. Mesmo deixando passar esta moralidade em claro, encontramos aqui o "objecto sublime que se liberta do sujeito" e como arquitectura, uma arte para ser vivida de facto pelas pessoas. Benjamin diz-nos que "as novas técnicas produzem o que já está na história", isto é, produzem cidades sobre cidades, apelando ao fundo arcaico da propriedade que é a decisão fundadora da produção de objectos que levou à divisão entre animal e mundo. Decisão que é premente das regras que o homem construiu historicamente, e constituem uma arqueologia do saber (Foucault) sobre um acumular de conhecimento no qual baseamos as nossas decisões.
O projecto Vénus propõe uma cidade que não é definitiva, mas que prevê constante evolução da tecnologia, ao mesmo tempo que em vez de acentuar a cesura ou usando o termo de Agamben, "ferida que se desloca", atribuída à máquina antropológica, pretende aboli-la reconfigurando o humano e uma condição perdida desde exteriorização do primeiro utensílio.

Bibliografia:
BENJAMIN, Walter, A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica, 1936
BENJAMIN, Walter, Capitalismo Como Religião, 1936
BENJAMIN, Walter, To the Planetarium, 1936
BRAGANÇA DE MIRANDA, José, A Dificuldade de Habitar, 2010
BRAGANÇA DE MIRANDA, José, Da Interactividade: Crítica da Nova Mimesis Tecnológica, in Claudia Giannetti (Org.) Ars Telemática, Lisboa, Relógio D'Água, 1999
BRAGANÇA DE MIRANDA, José; MARCOS, Maria Lucília (Org), Revista de Comunicação e Linguagens n.º extra: A Cultura das Redes, Lisboa, Relógio d'Água, 2002
CASCAIS, Fernando, MARCOS, Maria Lucília (Org.), Revista de Comunicação e Linguagens n.º 33: Corpo, Técnica, Subjectividades, Lisboa: ed. Cosmos, 2004
DUCHAMP, Marcel, O Acto Criativo, Tango, Edição trilingue 1977
HEIDEGGER, Martin, Habitar, Construir, Pensar, 1951
KITTLER, Friedrich, Gramophone, Film, Typewriter (1986), Trad. Geoffrey Winthrop-Young e Michael Wutz, Stanford University press, California, 1999
MUMFORD, Lewis, The City in History: Its Origins, Its Transformations, and Its Prospects, Harcourt Brace International, 1968
WAGNER, Richard, (1849) A Arte e a Revolução; trad. José M. Justo; introd. Carlos da Fonseca. Lisboa: Antígona, 1990.

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