CORPOS LACERADOS: O SACRIFÍCIO DA PALAVRA NA OBRA POÉTICA DE GEORGES BATAILLE

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CORPOS LACERADOS: O SACRIFÍCIO DA PALAVRA NA OBRA POÉTICA DE GEORGES BATAILLE Alexandre Rodrigues da Costa – FHA 1 RESUMO: Os poemas do pensador francês Georges Bataille afirmam um lugar de indistinção, onde as palavras se dispersam, ao obliterarem o sentido, ao se tornarem paródias de si mesmas. Pensar a poesia, nesses termos, é articulá-la não como interlocução do homem com o mundo, mas como obra a serviço do desespero, no sentido de que a palavra só pode ser utilizada em função de sua própria perda. Dessa forma, o sujeito que escreve o poema não apenas destrói o sentido funcional das palavras, mas também se assassina, no instante em que sua ação leva-o à exclusão, a um não lugar na coletividade. A escrita de Bataille forma, assim, uma espécie de texto canceroso, cujas palavras se multiplicam, ao se dispersarem nas suas próprias feridas, nos cortes que abrem sobre a página. Este artigo objetiva analisar de que forma os poemas de Georges Bataille criam uma desordem que aponta para um lugar inominável, onde os sentidos se perdem, já que o poema é levado à condição de objeto sagrado, no instante em que aquele que o sacrifica nos conduz ao desconhecido, à angústia de uma nudez a partir da qual a morte se abre soberana, imune a qualquer projeto ou plano moral. Palavras-Chave: Sacrifício. Morte. Informe. Nonsense. Bataille.

Ler os poemas de Georges Bataille é o mesmo que estar diante de uma ferida que não pode ser fechada. Aberta, ela nos obriga a olhar para a escuridão que nela se esconde, sol negro que lacera a medida, fazendo da página o espaço do desvio, da transgressão. Cada palavra, aí, mostra seus interstícios, a noite que a rodeia, a imensidade de sua própria sombra. Os poemas de Bataille, nesse sentido, nos cegam, não com uma suposta beleza idealizada, concebida pelos jogos da razão. Não, seus poemas nos cegam com o desequilíbrio do verso, a insuficiência e a desfiguração de suas palavras. Rasgadas, elas não se prendem a um sentido claro e definido, mas se oferecem, ambivalentes, como naturezas informes. Como Bataille nos diz em uma das edições de Documents: Um dicionário começa quando ele não mais fornece o significado das palavras, mas suas funções. Assim, o informe não é apenas um adjetivo que dá um significado, mas um termo que serve para

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Fundação Helena Antipoff. Faculdade de Letras. Ibirité. Minas Gerais. Brasil. CEP: 32400-000. E-mail: [email protected].

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desclassificar todas as coisas, exigindo que cada uma delas tenha a sua forma. O que o informe designa é o incerto que se espalha por todos os lugares, como uma aranha ou um verme. De fato, para os acadêmicos serem felizes, o universo precisaria ganhar forma. Todos os filósofos não têm outro objetivo: a matéria deve servir como um terno, um terno matemático. Por outro lado, ao se afirmar que o universo se assemelha a nada, somente o informe é relevante para se dizer que o universo é algo como uma aranha ou catarro. (BATAILLE, 1970, p. 217)

Aquele que se atreve a ler os poemas de Bataille depara-se, portanto, com essa zona incerta, onde a lógica e a racionalidade não têm mais espaço, onde a gargalhada, o delírio e a sujeira imperam como um processo de contra-operação: “a prática de uma atitude de pensamento fadada ao fracasso, descontentamento e imperfeição. Nada mais do que uma resistência contra os tediosos e formativos efeitos do pensamento racional” (BILLES, 2007, p. 28). Nesse sentido, a contra-operação é uma atitude que busca propositalmente a imperfeição, o fracasso, como forma de tornar indistinguíveis o sagrado e o profano. Ela é o próprio informe colocado em ação, uma vez que a distinção não tem mais vez e o que prevalece é o que podemos chamar de orgia da forma. O ataque que Bataille dirige aos acadêmicos consiste exatamente em criticar os moldes, os limites impostos pelos vários campos do conhecimento, o “terno matemático” de que ele nos fala. O informe assinala, portanto, a desistência de dominar a matéria. Mas para que se vá ao encontro dessa matéria informe, é necessário abraçar os caminhos da transgressão. E para que a transgressão ocorra, a contradição deve ser percebida como a afirmação daquilo que é profano, ou seja, a nossa própria existência. No instante em que o pensamento se volta para o dualismo, não há espaço para conciliação ou redenção, mas para o fracasso. Por isso, pensar e conceber o poema sob os desígnios do informe deixa, na página, como se fosse ferida, uma palavra sempre aberta, fundada no descontínuo, no fragmentário. O desconhecido, aquilo que não tem resposta, passa a dominar a linguagem e o que se estabelece é uma tensão não resolvida entre nascimento e morte, entre o transitório e o permanente. Longe de uma síntese, o informe abraça simultaneamente os dois termos, sem que haja uma conclusão, um fim. O informe, portanto, não pode ser fechado em uma definição precisa, pois fazer isso seria ir contra a proposta de Bataille, que é a de romper com os significados dicionarizados, catalogados. Ao se encarar o

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informe como uma operação, os significados das palavras se tornam deslizantes, escorregadios, à imagem da aranha ou do catarro. Os limites, aí, são rompidos, em favor da contestação da ordem, daquilo que é dado como certo. Não há mais um centro, no qual a razão se estabeleça, ao contrário, é o incerto que passa a ser o fundamento da existência, no momento em que as linhas que delimitam o contorno desabam e interno e externo se confundem. O informe representa, assim, o colapso da identidade pensada em termos cartesianos, pois permite a imbricação entre sujeito e objeto, um golpe no discurso lógico e na razão. Ao dizermos que somente o informe é relevante para se entender que o universo se assemelha a nada, estamos muito próximos de outro termo caro a Bataille: o impossível. O impossível (L’Impossible) é o nome dado à segunda edição do texto originalmente intitulado Ódio da poesia (Haine de la poésie). O livro é constituído de três partes: “Uma história de ratos”, “Dianus” e “A Oresteia”. A ltima parte, na primeira edição de 1947, abria o livro. Ela se constitui basicamente de poemas e de textos voltados para a reflexão poética. A mudança da ordem do livro assim como a de seu título são significativas e, em sua explicação do porquê de tê-las efetuado, Bataille nos dá pistas para o entendimento de qual a relação entre o impossível e o ódio da poesia: A primeira vez que publiquei este livro quinze anos atrás, dei-lhe um título obscuro: Ódio da poesia. Pareceu-me que a verdadeira poesia só poderia ser alcançada pelo ódio. A poesia não possui nenhum significado poderoso a não ser pela violência da revolta. Mas a poesia apenas alcança essa violência pela evocação do impossível. Quase ninguém entendeu o significado do primeiro título, é por isso que eu preferi finalmente chamá-lo de O Impossível. (BATAILLE, 1971, p. 101)

Ao ligar o ódio da poesia à violência da revolta, Bataille articula uma poesia baseada na subversão, naquilo que escapa do reinado da ciência, do útil, do real. Para entender a relação do ódio da poesia com o impossível, devemos ter em mente que o impossível concebido por Bataille é o que se impõe acima de todos os direitos, “uma convulsão que envolve todo o movimento dos seres, [...] que vai do desaparecimento da morte à fúria voluptuosa que, talvez, seja o significado do desaparecimento” (BATAILLE, 1971, p. 102). Essa f ria voluptuosa se baseia em um contínuo movimento de resistência à satisfação. Seu alvo

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nada mais é do que a própria forma, entendida em termos de perfeição humana. O impossível, nesse sentido, é o ilimitado, aquilo que se oferece acima de todas as restrições. Quando Bataille escreve, no prefácio de A literatura e o mal, que a literatura é uma forma penetrante do mal e que para nós ela tem o valor soberano (BATAILLE, 1989, p. 9-10), podemos concluir que para alcançar essa soberania, a literatura deve se utilizar da violência como uma maneira de quebrar a integridade dos corpos e das coisas, permitindo que a poesia se cumpra em contradição permanente, levada ao limite do impossível. Por isso, a literatura, pensada em termos de soberania, começa quando a possibilidade da vida abre-se sem limite; de acordo com Maria Christine Lala, “Bataille, através da prática do comportamento soberano, remove a barreira do limite que é imposto, no sentido de resgatar o sentido autêntico do sagrado, e o sentido verdadeiro da poesia retornado como o seu oposto” (LALA, 1995, p. 113). Esse sentido autêntico do sagrado está na coexistência dos contrários, na integração e desintegração das formas, naquilo que é o próprio objeto de horror: O que é sagrado, sem dúvida, corresponde ao objeto de horror do qual eu falei, um fétido, pegajoso objeto sem limites, que está repleto de vida e ainda é o signo da morte. É a natureza a ponto onde sua efervescência reúne intimamente a vida e a morte, onde está a morte devorando a vida com substância descomposta. (BATAILLE, 1976, p. 83)

A poesia vista como uma das formas do sagrado não é apenas uma mera representação da reunião de forças contrárias, mas a própria presença delas, no instante em que se torna resto, “pegajoso objeto sem limites”. Mas como conceber a poesia como resto, nutrir seu discurso com um ódio capaz de lhe dissolver as formas a ponto de os seus significados se tornarem monstruosos, irreconhecíveis? Em A noção de despesa, livro que constitui a primeira parte de A parte maldita, Georges Bataille relaciona o sagrado a um estado de perda: “O sacrifício não é outra coisa, no sentido etimológico da palavra, que não a produção de coisas sagradas (...) antes de tudo, fica claro que as coisas sagradas são constituídas por uma operação de perda” (BATAILLE, 1975, p. 31). Mas como se dá essa operação de perda no objeto sagrado? Na Teoria da religião, um dos livros que compõem a Suma ateológica, Bataille nos explica de que maneira um ser, na condição de coisa, torna-se sagrado:

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O princípio do sacrifício é a destruição, mas, ainda que algumas vezes ele chegue a destruir inteiramente (como no holocausto), a destruição que o sacrifício quer operar não é o aniquilamento. O que o sacrifício quer destruir na vítima é a coisa – somente a coisa. O sacrifício destrói os laços de subordinação reais de um objeto, arranca a vítima ao mundo da utilidade e a entrega ao do capricho ininteligível. (BATAILLE, 1993, p. 37)

Talvez, por isso, não seja estranho que Bataille aborde a questão da identidade em um texto ao qual dá o título de “Sacrifícios”. Ao longo da leitura desse texto, não encontramos qualquer referência explícita aos rituais de sacrifício. O tema do texto perpassa pela noção de identidade, de um eu que se debruça sobre o vazio ante a iminência da morte. Na verdade, o que Bataille faz, ao abordar a experiência do eu e de sua improbabilidade, é discutir de que forma a morte não se opõe à existência, já que “a aproximação da podridão liga o eu-que-morre à nudez da ausência” (BATAILLE, 1973, p. 87). Se o eu se projeta para fora de si, criando, assim, o objeto de sua paixão, em oposição a esse objeto está a catástrofe, pois “o pensamento vive a aniquilação que o constitui como uma vertiginosa e infinita queda, e assim não tem somente a catástrofe como seu objeto, sua estrutura é a catástrofe, ela se absorve no nada que a suporta e ao mesmo tempo deixa escapar” (BATAILE, 1970, p. 94). O sacrifício seria, portanto, o momento em que, para o euque-morre, é revelada a existência ilusória do eu, a inutilidade dos objetos que o rodeiam, como se tivesse diante dele “os preparativos de uma execução, já que a existência das coisas não pode fechar a morte que ela traz, mas que ela mesma se projetou nessa morte que a encerra” (BATAILE, 1970, p. 96). A destruição do eu é o sacrifício que o liberta. Nesse sentido, a irrealidade do mundo deve ser corroída, para que a natureza da existência esteja em concordância com a natureza extática do eu-que-morre. A forma como Bataille articula esse tipo de sacrifício em sua obra se faz a partir da unificação entre aquele que sacrifica, o sacrificador, e o que é sacrificado, a vítima. A aspiração de Bataille por “inventar uma nova forma de crucificar a si mesmo” (BATAILLE, 1973, p. 257) se dá como resposta a duas opções frente ao sacrifício: “a tragédia propõe ao homem identificar-se com o criminoso que mata o rei; o cristianismo propõe identificar-se com a vítima, com o rei destinado a morrer” (BATAILLE, 1995, p. 196). A saída para essa antinomia, Bataille a

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encontra no mito de Dianus, nome que utilizou como pseudônimo na primeira edição de O culpado e personagem-narrador em O Impossível. A escolha por Dianus reúne tanto a figura dionisíaca do acéfalo quanto a de Cristo, não a figura institucionalizada pela Igreja Católica, mas a vítima sacrificial cujo renascimento advém do corpo sujo, excremental, mutilado. Dessa forma, o mito de Dianus dá a Bataille tanto a chance de unificar esses opostos quanto de questionar a ambivalente natureza do eu. De acordo com Sir James George Frazer, em O Ramo de ouro, Orestes teria sido o primeiro Dianus, pois, ao chegar ao bosque de Nemi, assassinou o sacerdote que lá reinava e estabeleceu o culto à deusa Diana. Esse ato deu início a um estranho ritual: aquele que assassinasse o sacerdote seria também assassinado por seu sucessor. Dessa forma, o indivíduo se tornava ao mesmo tempo assassino e sacerdote, sacrificador e vítima. Bataille concebe o sacrifício como uma forma de apagar as fronteiras existentes entre o eu-que-mata e o eu-que-morre. É o que podemos constatar em um pequeno poema chamado “O livro”: Eu bebo em tua ferida e estendo tuas pernas nuas eu as abro como um livro onde leio o que me mata. (BATAILLE, 2008, p. 149)

O encontro amoroso se dá através dessa ferida, na qual o sujeito faz do ler não uma forma de domínio sobre o outro, mas de perda, de tal forma que o assassino e sua vítima tornam-se indiscerníveis. O dilaceramento (déchirure) rompe com a homogeneidade pessoal, projeta para o exterior um eu que nega a sua própria existência a partir da relação que mantém com o outro. Bataille deixa isso bem claro quando se nomeia Dianus, em O culpado: “aquele que se chamava Dianus escreveu estas notas e morreu” (BATAILLE, 1973, p. 239). Como bem observa Alexander Irwin, Bataille, “ao escrever sua experiência interior, é tanto soberano e assassino, renegado matador de deuses e salvador autoaniquilante” (IRWIN, 2002, p. 31). Nesse sentido, esse poema, assim como outros de Bataille, pode ser lido como um sacrifício, no qual os papéis de sacrificador e vítima são unificados a partir de um gesto em que vida e morte não se opõem, se complementam: “o sacrifício é a vida com a morte confundida” (BATAILLE, 1980, p. 79). A ang stia da vítima e a do assassino se tornam a mesma, pois, para que haja sacrifício, é necessário antes de tudo que ocorra uma identificação entre eles. Pois se a

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vítima é o objeto e o sacrificador, o indivíduo, a destruição do objeto acarreta a desintegração da identidade dos envolvidos. Já que o matar e o morrer são solidários, não há destruição do objeto, se não houver objeto e aquele que exerce o trabalho de destruí-lo: “A morte desorganiza a ordem das coisas e a ordem das coisas nos mantém. O homem tem medo da ordem íntima que não é conciliável com a das coisas” (BATAILLE, 1993, p. 43). A arte, tudo aquilo que é engendrado tendo em vista a poeisis, é a própria materialização da angústia, no sentido de que compactua com morte, ao destruir todo e qualquer aspecto de utilidade de sua formação. O eu que participa desse processo é ao mesmo tempo o sacrificador e a vítima, já que o que está em jogo é a dissolução de sua identidade, que se realiza como estado de perda: O termo poesia, que se aplica às formas menos degradadas, menos intelectualizadas da expressão de um estado de perda, pode ser considerado como sinônimo de despesa: significa, com efeito, do modo mais preciso, criação por meio da perda. Seu sentido, portanto, é vizinho do de sacrifício. (BATAILLE, 1975, p. 32)

Para aquele que faz o poema não há qualquer retorno material, uma vez que o risco aí assumido exige que empenhe sua própria existência na representação de seus escritos. Isso não quer dizer que o poema seja uma cópia ou reflexo de seu criador, mas um resíduo, matéria destruída, palavras sagradas “limitadas ao nível de beleza impotente, que retiveram o poder de manifestar toda soberania” (BATAILLE, 1988, p. 342). O furor de escrever coloca-se assim a serviço do desespero, no sentido de que a palavra só pode ser utilizada em função de sua própria perda, do abismo que cava. Dessa forma, o sujeito que escreve o poema não apenas destrói o sentido funcional das palavras, mas também se assassina, no instante em que sua ação leva-o à exclusão, a um não-lugar na coletividade. Poderíamos arriscar a dizer, invertendo o postulado de Keats de que o poema é a máscara do poeta, que, na verdade, o poema é onde ele se sacrifica, onde sua identidade não desaparece, mas é despedaçada, para que, a partir de suas carnes, seus ossos, suas vísceras, o poema surja. O resultado disso tudo é que os textos de Bataille podem ser vistos como orgânicos. Conforme bem observa Denis Hollier, o próprio dicionário crítico de Bataille se ampara em um discurso anatômicoanalítico: “cada artigo, de fato, desloca o corpo, isola o órgão que trata e

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desconecta-o de seus suportes orgânicos, transformando-o no lugar de uma concentração semântica através da qual a parte ganha o valor que está amarrado ao todo” (HOLLIER, 1989, p. 78). Cada artigo, assim, desarticula o todo, criando insubordinação, ao fazer com que as relações hierárquicas desabem frente à parte isolada. Em vez de se apagar no todo, a parte se torna aquilo que Hollier chama de “obscenidade fragmentária”. Verbetes tais como o dedão do pé, o olho, a boca, que Bataille cunhou para o dicionário, são exatamente onde o discurso anatômico ganha forma, já que a parte, agora isolada do corpo, não tem mais o propósito de servi-lo como fundamento de uma imagem nica, integral: “O dicionário crítico, em Documents, através de concentrações semânticas, produz um tipo de ereção simbólica do órgão descrito, uma ereção da qual, no fim, o órgão, como que se por cissiparidade, se desprende de seu suporte orgânico” (HOLLIER, 1989, p. 79). Mas é possível perceber que essa visão fragmentada do corpo não se restringe ao dicionário crítico. Em alguns poemas que compõem O Arcangêlico, Bataille isola partes do corpo, de tal forma que elas se tornam seres autônomos: Um longo pé nu sobre minha boca um longo pé contra o coração pé de whisky pé de vinho pé louco para esmagar ó meu chicote ó minha dor calcanhar suspenso me pisando choro por não morrer ó sede insaciável sede deserto sem saída (BATAILLE, 2008, p. 34)

Liberto do corpo, o pé não se sustenta como uma metáfora, uma imagem em substituição a outra, mas como aquilo que oblitera o sentido, rompe com a ordem do discurso. Dessa forma, o pé deve ser apenas o pé; desprendido do corpo, ele se torna bêbado, sem direção, esmagando todo e qualquer sentido, abrindo caminho para o nonsense. Ora, o nonsense é o que possibilita nutrir o discurso poético com um ódio capaz de lhe dissolver as formas, de maneira que suas imagens se tornem desfiguradas,

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quase inapreensíveis. Para entender melhor como essa desfiguração se dá, talvez seja interessante nos determos em uma passagem de O Impossível, no qual Bataille escreve: “a poesia que não se eleva ao nonsense da poesia é apenas o vazio da poesia, é apenas poesia bonita” (BATAILLE, 1971, p. 220). Para evitar essa poesia bonita, o poeta deve escapar do mundo do discurso e aceitar o excesso como “o plano onde cada elemento se converte em seu contrário incessantemente” (BATAILLE, 1971, p. 219). O que se tem, portanto, é uma desordem a partir da qual a linguagem encontra o nonsense, aquilo que excede o mundo das consequências felizes. É o nonsense, na concepção de Bataille, que possibilita que o sentido se quebre e fique suspenso, que o poema não se torne apenas uma coisa bonita, em conformidade com o vazio do que é útil. O nonsense seria, assim, uma forma de quebrar, internamente, as engrenagens do discurso. É o que podemos ler em A oréstia: “eu me aproximo da poesia: mas perdê-la” (BATAILLE, 1971, p. 218). Aqui, a tradução não dá conta da violência contida no verbo manquer, uma vez que ele pode ser traduzido não só como perder, mas também como desfigurar, desrespeitar, estragar, falhar, faltar, ofender. A aproximação da poesia resulta, portanto, no ódio a ela. A partir desse ódio, o discurso é reduzido a restos, de tal maneira que a linguagem fracassa, desmorona. Estamos, assim, no extremo do possível, onde a necessidade de dilacerar o discurso nos remete a um lugar de extravio, de não saber. Em vez de comunicar algo, o poema se afirma naquilo que escapa ao entendimento. Seu fim é a imperfeição: “o sentimento que tenho do desconhecido do qual falei é sombriamente hostil à ideia de perfeição (a servidão mesma, o ‘deve ser’)” (BATAILLE, 1972, p. 16). Se o poema é imperfeito e foge à utilidade, o desconhecido é tanto aquilo que o ampara quanto o que se projeta dele como horizonte do impossível. No entanto, o desconhecido que o poema nos oferece não surge do nada: “o poético é o familiar dissolvendo-se no estranho, e nós mesmos com ele. Ele nunca nos desapossa totalmente, pois as palavras, as imagens dissolvidas, estão carregadas de emoções já sentidas, fixadas a objetos que as ligam ao conhecido” (BATAILLE, 1972, p. 17). Para que o poema se torne desfigurado, maldito, é necessário que suas palavras tenham o sentido obliterado, se tornem inacessíveis, de maneira que jamais constituam um caminho a ser trilhado a fim de se alcançarem determinados objetivos, o que seria a total rendição do poema ao discurso lógico, utilitário do dia a dia:

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Dente de ódio tu és maldita quem é maldita pagará tu pagarás tua parte de ódio o horrível sol tu morderás quem é maldito morde o céu comigo tu rasgarás teu coração amado de pavor teu ser estrangulado de tédio tu és amiga do sol não há nenhum repouso para ti teu cansaço é minha loucura (BATAILLE, 2008, p. 49)

A angústia, que o poema gera a partir do desconhecido, não ocorre de repente, ela se faz na gradual desfiguração do mundo ao nosso redor. A perda de sentido do poema, o nonsense, é a entrada ao desconhecido, mas isso não quer dizer que o conhecido seja esquecido: “a imagem poética, mesmo se ela leva o conhecido ao desconhecido, prende-se, no entanto, ao conhecido que lhe dá corpo, e ainda que ela o dilacere e dilacere a vida nessa dilaceração, se fixa a ele” (BATAILLE, 1971, p. 170). Dilacerar o conhecido não é negar-lhe a existência, mas deslocá-lo, deformá-lo, de tal maneira que o discurso lógico que o cerca desabe. Nesse sentido, de acordo com Bataille, “a poesia é um termo mediador, ela esconde o conhecido no desconhecido” (BATAILLE, 1971, p. 222), ou seja, a angústia que o poema nos oferece surge da tensão entre aquilo que nos é familiar e o que nos foge à compreensão. Como um “entre” a poesia conjuga duas realidades, o conhecido e o desconhecido, sem chegar a uma síntese. À continuidade de uma palavra interrupta, esférica, surge a necessidade de uma linguagem de ruptura, descontínua, fundada na fragmentação. O desconhecido, a questão sempre aberta, se estabelece nessa tensão não resolvida entre a continuidade e a descontinuidade. A poesia, articulada como forma de transgressão, seria, assim, o movimento sem fim, no qual o texto se torna, pelo excesso, fracasso. O discurso poético, nesse sentido, não é só a possibilidade de conjugar o ser pela subtração, determinado por “um poder, que tudo pode, pode

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inclusive isso, suprimir-se como poder” (BLANCHOT, 2007, p. 192), mas a afirmação da obra que se constrói por suas ruínas, por sua incompletude, pela proposital incapacidade de se sustentar em seu dizer. O poema, dessa forma, se concretiza a partir de um errar que o mantém no limite de um não saber, pergunta aberta pelo infinito da questão: “poder enfim não saber nada, ou antes, se eu não sei nada, é que nenhuma questão pode ser feita” (BATAILLE, 1988, p. 530). O ódio à poesia torna-se então esse tempo sempre presente, no qual os limites da forma desmoronam, para nos lançar nessa afirmação que não se afirma, que é a morte. A escrita de Bataille forma assim uma espécie de texto canceroso, cujas palavras se multiplicam, ao se dispersarem nas suas próprias feridas, nos cortes que abrem sobre a página. Daí a proliferação de sentido, já que nesse texto orgânico, o câncer não só ameaça a continuidade como causa rupturas ao longo do discurso. O texto se torna um mergulho no desconhecido, o que é possível apenas quando se tem em mente que o nonsense é uma forma de levar a palavra a se afirmar além de si mesma. O que temos, então, são palavras cegas que dilaceram o discurso lógico, à medida que o entendimento é levado à exaustão de seus sentidos. Mas para que se chegue a essa palavra cega, é necessário alcançar o limite onde o não saber é ainda saber: Há no entendimento um ponto cego (tache aveugle): que lembra a estrutura do olho. No entendimento, como no olho, só se pode percebê-lo com dificuldade. Mas, enquanto o ponto cego do olho é sem consequência, a natureza do entendimento quer que o ponto cego tenha, em si mesmo, mais sentido do que o próprio entendimento. Na medida em que o entendimento é auxiliar da ação, o ponto é aí tão negligenciável quanto ele o é no olho. Mas, na medida em que o homem considere a si mesmo, no conhecimento, eu diria uma exploração do possível do ser, o ponto absorve a atenção: não é mais o ponto que se perde no conhecimento, mas o conhecimento nele. A existência dessa forma fecha o círculo; mas ela não pôde fazê-lo, sem incluir a noite, de onde ela só sai para retornar a ela. Como ia do desconhecimento ao conhecido, lhe é necessário se inverter no topo e retornar ao desconhecido. (BATAILLE, 1973, p. 129)

Nesse ponto cego, que o conhecimento negligencia, a palavra mergulha na escuridão, ultrapassa a medida de si mesma, para chegar ao outro lado do discurso, de forma a se exceder naquilo que a mantém viva:

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o sentido. É o que nos diz Bataille em O Impossível: “Quando aceitar a poesia troque-a pelo seu contrário (ela se torna mediadora de uma aceitação)” (BATAILLE, 1971, p. 218). Esse contrário da poesia, sua contraparte mediadora, se estabelece, quando a palavra se torna cega, ou seja, a partir da multiplicidade e do esgotamento de seus sentidos. Se a poesia torna-se mediadora, no sentido de que se abre à heterogenia, a metáfora já não tem obrigatoriamente a função de estabelecer identidade entre os seres, pois o que se quer é a indistinção das coisas, o entre-lugar onde a reversibilidade rompe com a integralidade da palavra, comprometendo os seus significados. Apaga-se a identidade, impede-se a transposição. Cega, a palavra abraça o excesso, o equívoco, até se tornar perda. Mas isso não quer dizer que a transposição desapareça, pois, na verdade, ela se abre múltipla, emaranhada em si mesma. Os poemas de Bataille nos levam para esse lugar de perda, onde o desconhecido se afirma a partir dos destroços do discurso lógico. O que se revela, assim, é uma desordem amparada na morte, na desintegração que esta proporciona, no instante em que a palavra desorienta, rompe com a medida dos significados. O nonsense passa a ser o questionamento de todas as coisas indiferentes ao fracasso, ao desejo de se dilacerar naquilo que nos olha e buscamos ver, já que o desconhecido mantém a estranheza mesmo quando algo nos é familiar. A angústia gerada por esse movimento articulado pelo desconhecido se fundamenta, portanto, em uma palavra inacabada, aberta àquilo que a questiona, sendo ela questão que não se formula, que se perde na morte que nomeia, ao evocar o que está além. É a ang stia do enigma, do “eu” transformado em esfinge. A palavra, nessa perspectiva, não é salvadora, mas, antes, desnorteadora, pois o enigma se funde a ela, de tal forma que a escrita se realiza pela impossibilidade de assinalar qualquer resposta e pela própria falta que a mantém. Finita e ilimitada, a palavra poética oferece em sacrifício as coisas que nos traz, sob a condição de colocá-las sob nossas sombras, de fazer de nossos questionamentos os labirintos nos quais as perderemos: INSIGNIFICÂNCIA Adormeço a agulha de meu coração choro uma palavra

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que perdi abro o contorno de uma lágrima onde a madrugada morta se cala. (BATAILLE, 2008, p. 129)

No poema acima, retirado dos Poemas eróticos, o espaço das palavras passa a ser o da perda, no qual todas as representações se ajustam a partir da noite, da morte. As palavras que compõem os versos “a agulha/de meu coração” só podem existir como imagens precárias, solicitadas apenas para morrer. Por isso, na palavra perdida, o que se quer é o ilimitado, aquilo que soberanamente não se restringe a nenhuma forma. A morte, assim, desempenha um papel crucial no poema, pois é ela que permite não só que as identidades sejam apagadas, mas que o impossível, o contorno rompido de uma lágrima, possa existir. Em A parte do fogo, Blanchot diz: “somente a morte me permite agarrar o que quero alcançar; nas palavras, ela é a nica possibilidade de seus sentidos” (BLANCHOT, 1997, p. 312). Assim, as palavras apontam para a morte, a partir do momento em que não somos mais capazes de nos apoiar sobre o significado do poema. A escrita nos oferece um entendimento da morte não como algo similar à palavra, mas como parte integrante dela, de tal forma que morte e palavra nos levam a questionar o próprio saber, tendo o ser como lacuna de si mesmo. Mas, para isso, é necessário esclarecer que essa escrita só pode se articular a partir de sua própria incompletude. Esse sentido de incompletude torna-se evidente na escrita de Bataille, no instante em que, inapreensível, a morte torna-se representação que excede a própria representação, questão que ultrapassa a possibilidade de questionar. A morte seria, assim, uma forma de evitar que o poema se torne um mero discurso amparado em um jogo de semelhanças, uma vez que ela desarma todo arcabouço teórico e nos oferece apenas um campo de impossibilidades, de experiências desfeitas. Dessa forma, os poemas de Bataille geram uma angústia que é, antes de tudo, o não saber. O não saber, segundo Bataille, desnuda, revela o que até então o saber escondia. Ver através do não saber é deixar que o nonsense impere. Daí a angústia da falta de explicação, de o porquê de as coisas se apresentarem como são. Ao contrário do célebre aforismo de Nietzsche, “aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se

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tornar também um monstro”, os poemas de Bataille parecem afirmar que “o ódio à poesia” é aquilo que nos incita a correr o risco de olhar para o abismo, sabendo que podemos nos transformar em monstros. O poema é a materialização desse abismo, e sua monstruosidade, sua desfiguração, em vez de nos assustar, é o que nos leva a aceitá-lo como espaço de perda, onde as palavras têm o seu sentido contestado e onde nos perdermos, dilacerados, tão incompletos quanto podemos ser. LACERATED BODIES: THE SACRIFICE OF THE WORD IN THE POETIC WORK OF GEORGES BATAILLE Abstract: The poems of the french thinker Georges Bataille affirm a place of indistinction, where words are dispersed, when they obliterate the sense, to become parodies of themselves. Think the poetry in these terms is not articulate it more as a dialogue between man and the world, but as the work in the service of despair, in the sense that the word can only be used according his own loss. Thus, the subject who writes the poem not only destroys the functional sense of the words, but also it suicides at the instant that its action leads to exclusion, a non-place in the community. The writing of Bataille thus forms a kind of cancerous text, which words are multiplied, when they disperse themselves in their wounds, in the cuts which are opened on the page. Therefore, this paper aims to examine how Georges Bataille's poems create a disorder that points to an unnamed place where the senses are lost, since the poem is brought to a condition of sacred object, at the instant who sacrifices it leads us to the unknown, the anguish of a naked, from which death opens itself sovereign, immune to any project or moral scheme. Keywords: Sacrifice. Death. Formless. Nonsense. Bataille.

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