Corrupção e Combate à Corrupção no Brasil: Abordagens e Limitações

October 4, 2017 | Autor: T. de Oliveira Jú... | Categoria: Public Administration, Corruption
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Corrupção e Combate à Corrupção no Brasil: Abordagens e Limitações Autoria: Temístocles Murilo de Oliveira Júnior, Arnaldo Paulo Mendes

Este trabalhoinvestiga os fundamentos do programa anticorrupção do governo federal brasileiro para verificar se sua abordagemsobre a corrupção e o combate à corrupção se baseia no conceito dorent-seeking. Alguns autores que estudam a corrupção no campo da administração pública defendem que este conceito representa uma simplificação teórica e que programas nele baseados sãolimitados, pois ignoram aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais que podem ser determinantes à compreensão deste fenômeno. A finalidade maior deste trabalho é suscitar o debate sobre possíveis limitações no combate à corrupção empreendido no Brasil, decorrentes desupostas deficiências de sua base conceitual.

Introdução Conforme indica Carvalho (2008), a corrupção, enquanto fenômeno histórico, tanto se alterou quanto teve sua compreensão alterada no transcorrer do tempo, assim como o tipo e a intensidade das reações contra ela. Segundo Bresser-Pereira (1997), as sociedades contemporâneas, como a brasileira, vêm atribuindo à corrupção o sentido de ser a próprianegação de valores relacionados à democracia e à cidadania, o que transformou o seucombateem um dever dos governos que se pretendam legítimos,demonstrando o seu compromissocom o Estado de direito e a orientação desinteressada das políticas públicas. Considerando aatual relevância do enfrentamento deste fenômeno, o governo federal brasileiro criou junto à Presidência da República um órgão específico, com status de Ministério, destinado à condução do programa voltado à materialização de sua política anticorrupção.Completados dez anos de seu funcionamento nos moldes atuais, a Controladoria-Geral da União (CGU)apresentou os resultados do programa que conduzindicando que, como meio de dar um efetivo enfrentamento à corrupção no Brasil, “além de aprimorar os instrumentos de controle interno e de repressão do mauuso dos recursos públicos, [...] passou a priorizar as ações de estímulo à participação da sociedade na vigilância das políticas públicas” (Controladoria-Geral da União, 2013). Pelo que se depreende desta afirmação, tem-se que a CGU aborda a corrupção de forma que o pressuposto teórico sobre seu combate é o de que este se dá pelo acirramento do controle governamental, da vigilância social e da repressão. Considerando o que assentam Graaf, Maravić e Wagennar(2010, pp. 13-20), de que há diferentes perspectivas teóricas para definição do fenômeno da corrupção e de suas causas, pergunta-se: qual é a abordagem sobre a corrupção e sobre o seu combate dá base ao programa conduzido pela CGU? A base teórica do programa de reforma do aparelho de Estado iniciada em 1995pode ser um indício. Bresser-Pereira(2006), seu principal idealizador, afirmaque somente a partir daquela reforma seria possível se dar um efetivo combateàs novas formas de corrupção baseadas norent-seeking,mais sutis e sofisticadas,que emergiram a partir da crise do Estado, no final do século XX.O problema é que alguns autores que estudam a corrupção e seu combate no campo da administração pública, como Anechiarico e Jacobs(1996) e Graaf (2007), defendem que este conceito decorre de uma simplificação teórica que ignora aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais que podem ser determinantes para a compreensão deste fenômeno nos diferentes países, gerando políticas anticorrupção com programas padronizados, que visam só a aumentaros custos da corrupção. Aqui,investigam-se os fundamentos do programa anticorrupção conduzido pela CGU para verificar se ele se baseia de fato no rent-seeking com a finalidade maior de suscitar o debate sobre possíveis limitações no combate à corrupção empreendido pelo governo federal, decorrentes de supostas deficiências de sua base conceitual, buscando ainda apontar possíveis horizontes do que seria um enfretamento mais efetivo à corrupção no Brasil. Este trabalho, realizado a partir de pesquisa bibliográfica e documental, constitui-se em análise de conteúdo, observando a metodologia de Bardin (1977). Além desta introdução e de sua conclusão, divide-se em outras três seções. A primeira explora a bibliografiasobre a corrupção buscando investigar o conceito dorent-seekingaplicado à corrupção e os apontamentos feitos por estudiosos acerca de possíveis limitações em programas anticorrupção nele baseados. A segunda analisa o funcionamento da CGU e as bases regulamentares do programa que ela conduz, com o fito selecionar documentos cujos conteúdos possam indicar seus fundamentos. A terceira consiste na aplicação de análise de técnica categorialdos documentos selecionados, visando indicar se os fundamentos do programa em tela coincidem com a abordagem da corrupção e de seu combate baseada no rent-seeking. 1

As abordagens sobre a corrupção e o combate à corrupção Filgueiras (2008, pp. 353-354), em seu trabalho sobre os marcos teóricos da corrupção, assenta queno século XX duas abordagens sobre a corrupçãoorganizaram as pesquisas sobre o tema em torno de agendas grandes “que expressam opções por políticas, no quadro internacional, marcando grandes paradigmas de construção do conceito e da prática da corrupção”. A primeira, que foi hegemônica até a década de 1980, aborda a corrupção a partir da teoria da modernização. Tendo uma perspectiva dicotômicadas sociedades, esta teoria compreende a corrupção como um fenômeno mais presenteem sociedadespoucodesenvolvidas, relacionando-a a possíveis disfunções das instituições políticas que ocorrem por conta da cultura política predominante ou por processos de mudança social (Filgueiras, 2008). Esta abordagem sobre a corrupção utilizao patrimonialismo como conceito principal para definição da situação institucionaldas sociedades onde tal fenômeno é mais disseminado. Nelas, a predominânciado tipo de dominação tradicional, onde as relações sociais são orientadas pela confusão entre o público e o privado, torna a corrupção um fenômeno corriqueiro nas relações entre Estado e sociedade(Souza, 2008). A segunda agenda se baseia na abordagem da nova economia institucionale se tornou hegemônica apartir da década de 1990, quando instituições financeiras internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional passaram a defender programas de reformaorientados para o mercado, como foi o caso da reforma do aparelho de Estado iniciado no Brasil em 1995.Esta abordagem, apoiada em teorias econômicas,busca analisar a corrupção como umcomportamentoilegal e antieconômico de agentes autointeressados, que é resultantede sistemas de incentivos decorrentes de falhas institucionais. Nela, o rent-seekingé o principal conceito utilizado para a compreensãodo fenômeno da corrupção e para proposição de soluções para seu enfrentamento(Filgueiras, 2008). O rent-seeking, assim como outros conceitos relacionados à nova economia institucional, parte das premissasde que os fenômenos sociais, econômicos e políticos devem ser compreendidos a partir das disposições dos agentes individuais (individualismo metodológico), partindo do pressuposto de que tais agentes se comportam como homo æconomicos, agindo com base em sua racionalidade econômica, mesmo que esta seja limitada, com vistas à satisfação amoral de seus próprios interesses. Para tanto, o rent-seeking parte, sobretudo, dos pressupostos da escolha racional, dos custos de transação, da teoria dos jogos, da escolha pública e do dilema do agente-principal. A escolha racional assenta que o comportamento dos indivíduos (agentes) pode ser compreendido em função da capacidade das instituições em moldar seus processos racionais e influenciar seus interesses particulares (Lustosa da Costa, 2010, pp. 143-145; Marques, 1997, pp. 75-78). Para Bernabel (2009, pp. 76-78) e Marques (1997, p. 76), a escolha racional é pressuposto também da teoria dos pay-offs, que entende que as decisões dos agentes dependem dos incentivos positivos ou negativos gerados pelas instituições. A teoria dos payoffs para análise da corrupção corresponde à teoria da propina (bribes) (Klitgaard, 1994, pp. 209-214; Silva, 2001, pp. 60-66). O conceito de custo de transação se relaciona aos dispêndios que arranjos institucionais podem gerar para celebração e manutenção de determinadas transações políticas ou econômicas e que estes variam na medida em que as instituições aumentam ou diminuem as incertezas(Lustosa da Costa, 2010, p. 143; Marques, 1997, p. 77). Quando um agente recebe propina (bribe) para acelerar a expedição de alvará, por exemplo, ela é compreendida como um custo de transação para o empresário que precisa do alvará e como um incentivo (pay-offs) à corrupção para o agente que exerce as prerrogativas de Estado (Silva, 2001, pp. 60-68). 2

A teoria dos jogos é a terceira teoria que se relaciona à abordagem do rent-seeking com base na escolha racional, pois incorpora a este pensamento o estudo da tomada de decisões entre indivíduos, no qual a decisão de um afeta os resultados dos outros, e viceversa, trazendo para a agenda de pesquisa da corrupção um modelo de análise de estratégias a partir dos dilemas da confiança e da previsibilidade limitada, do compartilhamento de informações entre agentes em competição, consentimento e colaboração e do equilíbrio “ineficiente”, tipicamente exemplificados pelo “dilema do prisioneiro” (Marques, 1997, p. 77; Bernabel, 2009, pp. 39-40). A escolha pública decorre do “estudo da agregação de preferências e da decisão coletiva (escolha pública), o que corresponde ao ponto de vista da demanda por bens públicos”(Lustosa da Costa, 2010, p. 145). Normalmente relacionada à escolha racional e à teoria dos jogos, como aponta Bernabel(2009, p. 7), a escolha pública visa à compreensão de desenhos constitucionais e das instituições relacionadas às decisões colegiadas típicas dos processos legislativos ou eleitorais. Andrews e Kouzmin (1998, p. 10) e Bernabel (2009, pp. 37-38) apontam que uma segunda diferença entre a escolha racional e a escolha pública parte desta segunda não se basear na concepção hobbesiana sobre a natureza humana, considerando que decisões coletivas podem ser resultados de interesses individuais tanto egoístas, quanto altruísticos. Para esta teoria, a autonomia e o insulamento burocrático podem provocar grandes desvios das decisões das agências insuladas do interesse público, já que estas atuariam orientadas somente pela preservação ou ampliação da satisfação dos interesses particulares de seus agentes(Andrews & Kouzmin, 1998, pp. 103-106). O dilema agente-principal assenta que, como a política e a economiase erigem por relações contraditórias, tanto a prestação de serviços públicos, quanto a implementação de políticas públicas e a elaboração de leis e regulamentos resultam das interações entre atores com interesses,em regra, não coincidentes. Instala-se então um desafio, o de equilibrar a ação executada pelo agente com a remuneração paga pelo principal, mesmo com a diferença de informações entre o agente, que domina os conhecimentos sobre a ação que empreendeu, e o principal, a quem cabe remunerar o agente (Przeworski, 2006; Lustosa da Costa, 2010, p. 146).Estas relações serão mais ou menos harmônicas em função da capacidade das instituições em estabelecer o equilíbrio entre os atores e fazer honrar os compromissos entre eles(Przeworski, 2006, pp. 44-46). No caso do rent-seeking, este dilema decorre da possibilidade de agentes (políticos, burocratas e empresários) poderem lograr proveito de negócios públicos em detrimento dos interesses dos principais (cidadãos), em decorrência do déficit informacional (opacidade) desuas ações e da consequente deficiência dos sistemas deaccountabilityem garantir o compliance, ou seja, pela incapacidade dos controles sociais e governamentais em responsabilizar os agentes pelos resultados destas ações quando estas comprometem questões de probidade e ética. Desta forma, o conceito dorent-seekingcompreendea corrupçãocomo um comportamento oportunista de agentes amorais, que se manifesta por meio de ações ilegais voltadas a propiciar transferências de renda que atendam a seus interesses particulares em detrimento do interesse público, sendo resultante de incentivos propiciados por redes de privilégios decorrentes de arranjos institucionais falhos, que permitem a existência de monopólios estatais, de excesso de discricionariedades na condução dos negócios públicos ede mecanismos inadequados ou insuficientes deaccountability(Klitgaard, 1994, pp. 209-214; Silva, 2001, pp. 60-82). Com base nesta abordagem, o ato corrupto resulta da percepção dos agentes sobre as possibilidades de ganho frente à possibilidade de serem pegos e, se pegos, de serem devidamente punidos (Vieira, 2006, pp. 4-5). Considerando os pressupostos da escolha racional e dos incentivos, os níveis de corrupção em diferentes países dependemde como os agentes “percebem” as fraquezas de suas instituições, visto que é com base nelas que 3

elescalculam se os possíveis benefícios superarão os possíveis custos da atividade corrupta. Este é o pressuposto que dá base à representatividade do Índice de Percepção da Corrupção (IPC) da Transparência Internacional (TI) enquanto instrumento válido para se ranquear diferentes países por nível de corrupção no globo (Abramo, 2006). Sendo assim, os níveis de corrupção serão maiores nassociedades onde as instituições sejam menos balizadas pelos valores republicanos (racionais-legais) e mais orientadas pelas representações típicas do tipo de dominação tradicional weberiana, como o patrimonialismo1, o clientelismo ou o nepotismo, onde haja excessode monopólios e redes de privilégiose os controles governamentais e sociais forem mais precários(Silva, 2001, pp. 49-55). Klitgaard (1998) propõe um modelo para a causalidade da corrupção, explicando-o a partir de uma equação que leva em consideração três variáveis. Esta aponta que tal fenômeno é diretamente proporcional à quantidade de monopólios e prerrogativas estatais exercidas com discricionariedade e opostamente proporcional ao accountability. A representação algébrica então fica assim: “Corrupção = Monopólio + Discricionariedade -Accountability”. A compreensão da corrupção por esta visão indica então que este fenômeno se materializa por diferentes práticas que se moldam às falhas do aparato institucional, sejam contingenciais (mudanças, catástrofes, etc.) ou permanentes (patrimonialismo, clientelismo, etc.). Desta forma, quando um agente,a partir do cotejamento entre as oportunidades de ganho e os riscos de ser descoberto e de ser adequadamente punido (accountability), percebe a possibilidade, ainda que temporária e/ou contingencial, de lograr proveito de seu cargo ou contrato, mesmo que em detrimento do interesse público, ele se corrompe. As propostas de enfrentamento da corrupção baseadas nesta abordagem se centram na busca de reformas nas instituições, já que as falhas destas são as principais causas para este fenômeno indesejado.Para Klitgaard (1994, pp. 214-221), o combate à corrupção nestas basesdeve contemplar ações voltadas ao estabelecimento de procedimentos meritocráticos e impessoais para seleção de agentes (sejam servidores, formuladores de políticas ou mesmo fornecedores), à adequação das estruturas organizacionais e dos processos decisórios com vistas à segregação de funções e à mitigação das discricionariedades, à realização de ações de sensibilização sobre os malefícios da corrupção, à instituição de ações voltadas ao levantamento e à análise de informações sobre casos de corrupção e à alteração da relação entre benefícios e custos da corrupção, com vistas a desmotivar o comportamento oportunista dos agentes. Remetendo a trabalhos de Tullock e Olson, estudiososque têm trabalhos significativos nesta corrente, Silva(2001, pp. 73-75) discorre sobre a impossibilidade de se diminuir sobremaneira o monopólio e a discricionariedade próprios da atuação estatal, admitindo também a impossibilidade de se diminuir os benefícios da corrupção e de transformar a gestão do Estado numa gestão puramente gerencial. Sendo assim, aquele autor defende que a única forma de se efetuar um combate efetivo à corrupção se dá por meio de instituições que aumentem os mecanismos de accountability com o fito de desestimular comportamentos oportunistas. Para Silva (2001, p. 122), a impunidade, é a principal causa para a corrupção, afinal “se existe um grande incentivo à trapaça em um grupo, o resultado coletivo será um desrespeito generalizado às regras de conduta; os incentivos à propina tendem a ser elevados e a corrupção pode florescer dramaticamente”. Vistos os posicionamentos sobre a aplicação da abordagem do rent-seeking para compreensão do fenômeno da corrupção e para orientações acerca de seu combate, verificaram-se algunsapontamentos de trabalhos acerca do tema, que indicam limitações comumente encontradas em políticas anticorrupção nela baseadas. A primeira limitação que se traz decorre da afirmação anterior de Silva (2001, pp. 7375) de que, apesar da compreensão da causalidade da corrupção pelo rent-seeking abarcar que ela decorre de questões relativas à rede de privilégios decorrentes do excesso de monopólios e 4

prerrogativas estatais exercidas com discricionariedade, o combate efetivo à corrupção a partir dela só se dá, efetivamente, pelo accountability, e este aindarestrito ao acirramento de medidas de vigilância e punição de agentes. Anechiarico e Jacobs (1996)e por Graaf (2007) assentam que combate à corrupção baseado em teorias relacionadas à nova economia institucional, tende a ignorar os aspectose as singularidades políticas, sociais, econômicas e culturais dos países, regiões ou mesmos dos órgãos e das atividades em que ocorrem as práticas de corrupção, interpretando-a como um fenômeno totalmente homogêneo em suas causas. A própria adoção do IPC/TI pelos defensores do rent-seeking como medida comparativa dos níveis de corrupção dos mais diferentes países do globo, indica que esta abordagem compreende a corrupção de forma homogeneizada. Resultando num ranking de mensuração da corrupção percebida, o IPC é obtido a partir de um levantamento baseadona percepção dos pesquisadosacerca do quanto arranjo institucional de cada país reproduz um conjunto padronizado de atributos de um arranjo que supostamente não incentivaria a corrupção. No mesmo sentido, Bignotto (2011, pp. 31-33) alerta que o uso acrítico dos referenciais teóricos da nova economia institucional (bem como da teoria da modernização) pode conduzir a compreensão da corrupção “por meio de uma noção de falta”, o que mitiga a tentativa de se analisar a corrupção brasileira ao mero estudo comparativo entre sociedades, transformando as percebidas como menos corruptas emmeros “modelos a serem seguidos”. Nestes termos, a abordagem do rent-seeking simplifica a discussão sobre a gênese da corrupção provocando o esquecimento de determinadas particularidades políticas, econômicas, sociais e culturais que sejam importantes não só para a compreensão deste fenômeno num determinado país, mas mesmo em determinadas regiões, órgãos ou mesmo de programas de governo, onde as práticas possam ter causas e formas diferenciadas. Assim, esta compreensão simplista e padronizada da corrupção engendrapolíticas também simplistas e padronizadas, que somentegeram programas que decorrem de receituários limitados ao acirramento de atividades de investigação, auditoria e fiscalização e no agravamento das punições aplicadas aos agentes(Graaf, 2007, p. 48; Anechiarico & Jacobs, 1996, pp. 23-26). Umasegundalimitaçãodecorre da primeira e do fato deque, no Brasil, tradicionalmente, não há integração entre as diferentes políticas governamentais. Como o pensamento sobre o combate à corrupção com base no rent-seekingé orientado pela ideia de que quanto mais “vigilância e da punição, melhor”, e gera medidas desenhadas e executas sem levar em consideração os aspectos e as particularidades das áreas em que são aplicadas, a política anticorrupção do governobrasileiro pode ter sido formulada, implementada e avaliada sem a preocupação sobre seus efeitos nos resultados das outras políticas. Tanto Anechiarico e Jacobs (1996) quanto Graaf e Van derWal (2010) defendem que há um antagonismoparcial, mas inerente, entre os valores públicos voltados à integridade e aqueles voltados à eficácia e à efetividade. É fundamental que órgãos e processos da administração pública sejam conduzidos de forma a garantir o compliance, visto que a falta de margens legais e morais na atuação de gestores e servidores pode levar o poder público ao desvio de finalidade e ao aumento exacerbado de gastos, o que afetará, por óbvio, sua performance. Mas quando, por outro lado, são aumentado sobremaneira os controles de compliance sobre estes órgãos ou processos, estes tendem a diminuir sua performance, considerando a mobilização de pessoas, o tempo e os recursos que sempre são necessários para, por exemplo, a realização de prestações de contas ou para o atendimento de auditores. Quando um governo formula suas políticasde gestão desconsiderando queaanálise de accountabilitydas políticas finalísticas também serveà análise da performance e entendendo que o combate à corrupção se resume a “vigiar e punir”,seusórgãos de controle, que deveriam realizar uma avaliação lato sensu da administração governamental, passam a referenciá-la 5

preponderantemente pelos valores relativos ao compliance. Como assenta Cavalcante(2007), quando isso ocorre, a avaliação de políticas e programas passa a se focar em fiscalizara atuação de políticos e burocratas quanto a possíveis desvios, atentando-se somente em questões financeiras e legais, transformando-se em mero controle orçamentário que pouco serve à sociedade. Assim, esta, que é uma das funções gerais da administração, acaba se tornando mais centrada na verificação da correta aplicação das normas do gasto público do que pela avaliação dos resultados sociais das políticas públicas e na melhoria da própria atuação do Estado. A terceira limitação também decorre das anteriores. Partindo do que defende BresserPereira(1997), de que o combate à corrupção no Brasil deve ser considerado um dever do Estado justamente por se tratar um direito ligado àres publica, pois que visa à garantia da orientação desinteressada das políticas públicas, tem-se então que o valor público que orienta uma política anticorrupção se relaciona à garantia de que as demais políticas de governo não deixem de ser orientadaspelos valores públicos que as legitimam, assegurando-se o que há de mais essencial no que tange aos direitos republicanos, a democracia e a cidadania. Sendo assim, o combate à corrupção no Brasil, para ser efetivo, deve envolver questões que “caras” à democracia e à cidadania, como a representatividade e a participação da sociedade na formação da agenda política, a regulação do mercado e dos agentes econômicos, o desequilíbrio regional, as desigualdades econômicas e sociais e a própria relação Estado-sociedade. O programa anticorrupção do governo federal Como aborda Corrêa (Corrêa, 2011, p. 169), o combate à corrupção promovido pelo governo federal brasileiro vem sendo conduzido pela CGU, órgão integrante da Presidência da República que atua como uma típica agência anticorrupção. A CGU foi criada por meio da edição da medida provisória nº 2.143-31, em 2/4/2001, com o nome de “Corregedoria-Geral da União”, com a missão de combater a impunidade na administração pública federal, por meio da responsabilização administrativa (correição)de gestores e servidores públicos envolvidos em casos de irregularidade. Alinhando-se à Convenção Interamericana contra a Corrupção, aceita no ordenamento pátrio por meio do decreto nº 4.177/2002, o governo federal incorporou à CGU,como unidades finalísticas, a Secretaria Federal de Controle Interno (SFC) do Ministério da Fazenda e a Ouvidoria-Geral da República do Ministério da Justiça, hoje denominada Ouvidoria-Geral da União (OGU), deixando a responsabilização administrativapara uma terceira unidade finalística, denominada Corregedoria-Geral da União (CRG). Posteriormente, alinhando-se à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, aceita no ordenamento por meio do decreto nº 5.687/2006, criou-se na estrutura da CGU uma quarta unidade finalística interna para prevenção da corrupção por meio da promoção da transparência e do incentivo do controle social, a atual Secretaria de Transparência e Prevenção da Corrupção (STPC). Assim, a CGU se tornou o órgão responsável pelas áreas de controle interno, correição, prevenção da corrupção e ouvidoria do governo federal. Este conjunto de áreas e esta estrutura, que sofreram poucas mudanças até hoje, conferiram a este “órgão de controle superior”, a partir de então, a responsabilidade pela condução da política de combate à corrupção no âmbito da administração pública federal, conforme Tabela 1. Tabela 1: Missão, finalidade, competências e unidades e macroprocessos finalísticos da CGU

Missão

Missão, finalidade e competências A Controladoria-Geral da União (CGU) tem como missão “Prevenir e combater a corrupção eaprimorar a gestão pública, fortalecendo os controles internos e incrementando a transparência,

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aética e o controle social”. Com esse enfoque, a CGU vem, desde 2003, atuando junto ao governopara combater a corrupção e seus reflexos nocivos nas políticas públicas e na sociedade brasileira,bem como contribuir para a melhoria da gestão pública. A Controladoria-Geral da União (CGU), órgão central do Sistema de Controle Interno do PoderExecutivo Federal e integrante da estrutura da Presidência da República, instituída pela Lei nº10.683 de 28 de maio de 2003, é dirigida pelo Ministro de Estado Chefe da ControladoriaFinalidade Geral da União e tem, como competência, assistir direta e imediatamente o Presidente da e compeRepública nodesempenho de suas atribuições quanto aos assuntos e providências, no âmbito do tências Poder Executivo Federal, relativos a:defesa do patrimônio público;controle interno;auditoria pública; correição;prevenção e combate à corrupção;atividades de ouvidoria; eincremento da transparência da gestão. Unidades e macroprocessos finalísticos MacroproUnidade Finalidade Atividades cesso responsável Promove a Promove a política de transparência e governo aberto, e transparência dos atos aindaa promoção da transparência ativa (divulgação de Secretaria da de gestão no âmbito informações de órgãos e entidades sem a necessidade Transparên Transparênda administração de pedidos), estimula a participação social fiscalização cia e Precia e da Prepública federal e dos dos gastos públicos (controle social), busca fortalecer a venção da venção da gastos de recursos gestão pública (principalmente estadual e municipal), Corrupção Corrupção federais e estimula a incentiva a integridade tanto pública quanto privada e (SPTC), sociedade a exercer a realiza gestões para cumprimento de acordos vigilância sobre eles. internacionais sobre combate à corrupção. Promove o Busca sistematizar do ombudsman na administração Ouvidoriafranqueamento de pública federal, recebe e trata as manifestações da Sistema de Geral da informações e recebe sociedade enviadas à CGU (denúncias, reclamações, Ouvidoras União denúncias da elogios e sugestões) e gerencia o sistema de (OGU) sociedade sobre transparência passiva (atendimento às solicitações irregularidades. acerca informações de órgãos e entidades). Apura irregularidades denunciadas pela sociedade ou Realiza a vigilância representadas por outros órgãos, avalia a execução dos da regularidade dos orçamentos da União, fiscaliza a implementação dos Secretaria atos de gestão no programas do PPA, realiza de auditorias sobre a Federal de âmbito da Controle aplicação de recursos públicos federais Controle administração pública Interno disponibilizados a Estados, Municípios, DF e entidades Interno federal e dos gastos públicas e privadas, capacita servidores para realização (SFC) de recursos federais e de auditorias e fiscalizações e orienta normativamente apura irregularidades os demais órgãos do Poder Executivo Federal no que denunciadas tange ao controle interno. Apura a Apura a responsabilidade de gestores, servidores e responsabilidade de fornecedores por irregularidades praticadas eaplicaas Corregedoria servidores e punições administrativas devidas, capacita servidores -Geral da fornecedores que para a realização de apurações de responsabilidade, Correição União deram causa a orienta e inspecionaas corregedorias dos demais órgãos (CRG) irregularidades e entidades da administração pública e insere e mantem apuradas na em cadastros registros de punições administração pública aplicadas a servidores e a fornecedores. Nota. Fonte: Controladoria-Geral da União (2014, pp. 19-39).

Realizando uma pesquisa exploratória2para levantar informações acerca dos fundamentos do combate à corrupção empreendido pela CGU, buscaram-se estas, primeiramente, entre os documentos disponíveis no site daquela Controladoria-Geral. Não sendo encontradas quaisquer referências entre o que se pesquisou de início, observaram-se, mesmo assim, outras que são interessantes para fins deste trabalho e que indicam a necessidade de ampliação da primeira exploração: a) a CGU é o órgão do governo federal responsável pela observância e pela implementação dos dispositivos das convenções internacionais de combate à 7

corrupção de que o Brasil é parte, no caso, da Organização das Nações Unidas, da Organização dos Estados Americanos e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico; b) somente foram encontradas informações sobre parcerias da CGU com organismos nacionais e internacionais voltados a atividades de investigação policial, inteligência e auditoria, bem como com órgãos do Judiciário e da advocacia pública; c) segundos os relatórios de gestão dos exercícios de 2003 a 2013, o combate à corrupção realizado pela CGU vem sendo planejado, orçado e avaliado por meio de programas governamentais constantes dos planos plurianuais (PPA) dos quadriênios 2004-2007, 2008-2011 e 2012-2015. Aumentando então o alcance da pesquisa exploratória aos documentos relativos ao planejamento e ou orçamento do governo federal, verificou-se que a atuação da CGU foi formalizada inicialmente por meio de um programa anticorrupção específico, previsto nos planos plurianuais (PPA) 2004-2007 e 2008-20113, intituladoControle Interno, Prevenção e Combate à Corrupção, código 1173. No PPA 2004-2007, este programa está relacionado ao megaobjetivo “promoção e expansão da cidadania e fortalecimento da democracia” e no PPA 2008-2011, ao objetivo de governo “fortalecer a democracia, com igualdade de gênero, raça e etnia e a cidadania com transparência, diálogo social e garantia dos direitoshumanos”. Ao programa 1173 eram relacionadas quatro ações orçamentárias, de códigos 2B13, 4998, 2D58 e 2B15, previstas nas leis orçamentais anuais (LOA) do período, voltadas ao custeamento e à mensuração física e financeira dos macroprocessos finalísticos e geridos pela SPTC, OGU, SFC e CRG, respectivamente. Apesar de não haver formalmente um programa anticorrupção no PPA 2012-2015, vêse que, na prática, o programa anticorrupção do governo federal continua existindo, tendo seus objetivos definidos, seus recursos alocados e sendo conduzido e avaliado pelo mesmo órgão desde 2004, que, inclusive, não teve nem suas competências e nem sua estrutura, significativamente alterados. A alteração da metodologia de organização do PPA vigente transformou o programa 1173 na ação “Controle Interno, Prevenção à Corrupção, Ouvidoria e Correição”, de código 2D58, do programa intitulado “Programa de Gestão e Manutenção da Presidência da República”, de código 21014. As ações orçamentárias relacionadas aos macroprocessos da CGU no antigo programa 1173 agora são os planos orçamentários 0002, 0004, 0006 e 0003 da atual ação 2D585, correspondentes à ordem da relação dos macroprocessos da Tabela 1. Observando os objetivos a que se relaciona o programa 1173 no PPA 2004-20076 e no PPA 2008-20117 e o tema do programa 2101 no PPA 2012-20158, verificou-seque estes se referem, sem maiores detalhes, a determinados valores e diretrizes para o combate à corrupção que vem sendo empreendido pela CGU. Como os objetivos e temas destes PPA decorreramdos compromissos constantes dos programas de governo9 das coligações que assumiram a direção do governo federal e, logo, devem ter definido a agenda anticorrupção para a administração pública desta esfera, partiu-se para a exploração destes programas. Realizando-se uma primeira leitura flutuante dos programas de governodas coligações lideradas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) para as corridas presidenciais de 2002, 2006 e 2010, que dirige o governo federal desde 2003,constatou-se o seguinte: a) paraa corrida presidencial de 2002 a coligação “Lula Presidente”, vencedora do pleito à época, apresentou um documento intitulado “Combate à corrupção: compromisso com a ética”, que integrou seu programa de governo, sendo que tal documento apresenta os fundamentos para o combate empreendido pela CGU a partir de então, indicando conceitos, diagnósticos e compromissos específicos para o enfrentamento da corrupção; 8

b) para a corrida presidencial seguinte, ocorrida em 2006, a coligação vencedora, denominada “Lula Presidente” apresentou somentealgumas considerações sobre a continuidade do combate à corrupção no documento intitulado “Programa de Governo 2007/2010”, na seção denominada “Reforma do estado”, não indicando quaisquer conceitos, números e diagnósticos sobre a corrupção no Brasil, mas apenas um rol de compromissos sem novidades materiais em comparação às propostas de 2002; e c) para a corrida presidencial de 2010, a coligação vencedora, denominada “Para o Brasil Seguir Mudando” apresentou somente uma informação de que “a reforma do Estado dará mais transparência e permeabilidade às demandas da sociedade, além de garantir eficácia no combate à corrupção”, no documento intitulado “Os 13 compromissos programáticos de Dilma Rousseff para debate na sociedade brasileira”, na seção denomina “Expandir e fortalecer a democracia política, econômica e socialmente”. Sendo assim, a análise de conteúdo a que se propõe este trabalho se realiza sobre o programa de governo de 2002, intitulado “Combate à corrupção: compromisso com a ética”, visto que este apresenta os fundamentos que definiram o modelo de combate à corrupção empreendido pela CGU, sem alterações significativas, desde 2003. Os fundamentos identificados no programa anticorrupção Esta seção visa investigar a partir de análise de conteúdo com a técnica de análise categorial-temática de Bardin (1977, pp. 93-153),o programa de governo “Combate à corrupção: compromisso com a ética” como meio de constatar se ele reproduz aabordagem sobre a corrupção e sobre seu combate, própria da aplicação do conceito dorent-seeking. Verificou-se então que o programa em tela é iniciado com um destaque à relevância da corrupção, asseverando que “cresce a cada ano a indignação com o desvio de recursos públicos, que pertencem a toda a sociedade e poderiam ser empregados na melhoria das condições sociais de nosso país” (Partido dos Trabalhadores, 2002, p. 8). Baseando-se no resultado do ICP de 2002, que classificou o Brasil na posição número quarenta e cinco de um ranking de cento e dois países pesquisados, afirmou que: A corrupção no Brasil tem raízes históricas, fundamentos estruturais e impregna a cultura de setores importantes do espectro social, político e econômico.A prática de corruptos e corruptores na esfera do poder se dissemina pela sociedade, como exemplo negativo que vem de cima (Partido dos Trabalhadores, 2002, p. 9).

Apresentando um diagnóstico sobre a corrupção no Brasil, a coligação liderada pelo Partido dos Trabalhadores (2002, p. 10) defendeuainda que: Para compreender a fundo as raízes estruturais do fenômeno da corrupção em nosso país seria preciso considerar pelo menos três dimensões básicas. A primeira dimensão poderia ser chamada cultural e expressa uma tradição histórica de personalismo nas relações sociais e de clientelismo nas relações políticas. A segunda dimensão tem como base o patrimonialismo, que conferiu a uma elite dominante a capacidade de organizar seus interesses econômicos a partir de privilégios e benesses concedidos pelo Estado. Uma terceira dimensão reside no caráter crônico e estrutural da distorção dos objetivos universalistas do Estado pela pressão de interesses econômicos privados ilegítimos.

Continua o documento colocando que as práticas relacionadas à corrupção buscam o acobertamento, fato que torna necessária a observância aos princípios da transparência, visibilidade e controle democrático. Ou seja, “a disposição individual de agentes públicos e privados em participar de atos de corrupção só pode se materializar face à debilidade dos mecanismos de controle do Estado e da sociedade” (Partido dos Trabalhadores, 2002, p. 9

10).Por fim, o documento apresenta oscompromissos e metas para o combate à corrupção, conforme Tabela 2. Tabela 2: Compromissos para o combate à corrupção no programa de governo do PT para as eleições de 2002

Compromissos

Metas Regulamentar o acesso da sociedade ao sistema de gestão financeira e contábil. Fortalecer os conselhos sociais quanto à aplicação de recursos. Promoção da Transparência Simplificar a linguagem do orçamento e promover capacitação. Construir um modelo viável de orçamento participativo. Estabelecer diretrizes para a elaboração de editais de licitação. Controle sobre Revestir as licitações e os contratos públicos de total transparência. licitações Incentivar participação da sociedade em audiências licitatórias. Reestruturar a área de fiscalização do Banco Central. Regulação e Ampliar a prevenção e desenvolver a investigação sobre a remessa de recursos. fiscalização de Realizar acordos para facilitar as investigações sobre lavagem de dinheiro e remessa de fluxos financeiros recursos. Fortalecer a Receita Federal e valorizar o auditor fiscal. Investigar o planejamento tributário temerário e ilegal. Aparelhamento do Combater de forma efetiva a sonegação e a evasão. fisco Controlar com rigor importações e exportações de bens e serviços. Combater as práticas danosas do comércio internacional à produção nacional e ao fisco. Reestruturar e fortalecer a Controladoria-Geral da União (CGU), com instrumental e competências para o pleno exercício de sua vocação. Reconstrução de Articular as ações da Receita Federal, da Polícia Federal, do Ministério Público, do Banco mecanismos de Central, do Poder Judiciário, do Tribunal de Contas da União e Sistema de Controle controle sobre a Interno coordenado pela CGU. Este último deve ser reforçado em suas competências e corrupção capacidade operacional. Criar um sistema de ouvidorias que abranja toda a administração. Baixar normativo para proibir a nomeação de parentes e afins. Erradicação do Firmar compromissos com os partidos da coligação para envio de mensagem ao nepotismo Congresso Nacional para garantir a vedação da prática do nepotismo no âmbito da Administração Pública. Implementar as medidas preconizadas pela Convenção Interamericana Contra a Incremento da Corrupção e pela OCDE, das quais o Brasil é signatário. articulação Participar de articulações internacionais e promover novas iniciativas, visando ao controle internacional dos fluxos financeiros dos paraísos fiscais. Nota. Fonte: Partido dos Trabalhadores(2002, pp. 13-17)

Com a pré-análise e a exploração do conteúdo deste programa de governo foielaborada a Tabela 3, a partir do seguinte: a) definiu-se que o tipo de unidade de registo utilizado foi o “tema” e a regra de enumeração foi a “frequência”, pois estes permitem que, de forma relativa, se indique de forma mensurada quais são as ideias mais (ou menos) utilizadas para se explicar a corrupção, justificar seu combate ou informar como este deve ser norteado, conforme colunas “frequência” e “%”; b) foram selecionados todos os trechos (frases ou conjunto de frases) que continham quaisquer ideias de explicação da corrupção, ou utilizadas para justificar o seu combate no Brasil e para se definir como se deve dar tal combate (seleção das unidades de registro), que geraram um quantidade de 85 categorizações de trechos); c) dos trechos selecionados foi estabelecido um rol de categorias de ideias utilizadas para explicar a corrupção, para justificar seu combate no Brasil e para definir como se deve dar tal combate, conforme a coluna “tema”. 10

Tabela 3: Consolidação do resultado da análise categorial Aplicação Tema Corrupção como privatização do interesse público Corrupção como controle institucional deficiente Pressupostos sobre a Corrupção como resultado da opacidade corrupção Corrupção como ilegalidade Corrupção como arranjo legal pouco rigoroso Total de ideias referenciadas na aplicação Patrimonialismo, clientelismo e nepotismo Privatização do interesse público Opacidade Diagnóstico da realidade Controle institucional deficiente brasileira A corrupção no Brasil tem ramificações no exterior Posição no ranking de percepção da corrupção Corrupção como estrutural Institutos penais insuficientes Total de ideias referenciadas na aplicação Fortalecimento do controle institucional Diretrizes do combate à Estímulo ao controle social corrupção Promoção da transparência Aumento do rigor sobre políticos e burocratas Total de ideias referenciadas na aplicação Total de ideias referenciadas no conteúdo

Frequência 3 3 3 1 1 12 5 3 3 3 2 2 1 1 20 20 14 12 7 53 85

% 27,27% 27,27% 27,27% 9,09% 9,09% 25,00% 15,00% 15,00% 15,00% 10,00% 10,00% 5,00% 5,00% 37,73% 26,42% 22,64% 13,21%

Observando os resultados da Tabela 3 no que tange à representatividade dos temas frente a sua aplicaçãoquanto à definição da corrupção, quanto ao diagnóstico sobre a realidade brasileira e quanto à indicação de diretrizes para seu combate, destaca-se o seguinte: a) no que tange à explicação sobre o fenômeno da corrupção, que passa principalmente pela privatização do interesse público (27,27%) decorrente de um arranjo institucional que gera como incentivos o controle deficiente (27,27%) e a opacidade (27,27%), aponta-se a identificação ao rent-seeking; b) no que tange ao diagnóstico da corrupção, o uso dos conceitos do patrimonialismo, do clientelismo e do nepotismo (25%),que é encontrado em obras que defendem o uso do rent-seeking, como a de Silva (2001), como modelo teórico que explica o arranjo institucional deficiente, deficiência que gera a opacidade (15%) e o controle inadequado (15%) que são incentivos para a privatização do interesse público (15%), aponta-se que este tambémse identifica ao rent-seeking; c) continuando sobre o diagnóstico, vê-se ainda o uso do ranking do ICP (10%) para se indicar que o nível de corrupção no Brasil é alto se comparado com os níveis de percepção de outros países institucionalmente desenvolvidos, apontando-se assim, pelos temas aplicados ao diagnóstico da realidade brasileira, que a política que se estuda se identifica com a forma própria da aplicação rent-seeking no estudo das condições institucionais que funcionam como incentivos ao comportamento corrupto; d) no que tange às diretrizes para o combate à corrupção, aponta-se que estas se identificam à aplicação do rent-seeking na definição de medidas de controle da corrupção, ou seja, ao aumento dos custos da corrupção por meio do enrijecimento da lei sobre a conduta de políticos e burocratas (13,21%) combinado com o incremento da cobrança da observância da lei materializada pelo fortalecimento do controle institucional (37,73%) e social (26,42%) sobre 11

a atuação dos agentes públicos, este último viabilizado pelo aumento da transparência sobre o gasto público. Há ainda algumas observações decorrentes da pré-análise mencionada na segunda seção que merecem destaque: a) apesar do tema “combate à corrupção” constar dos PPA de 2004 a 2015 relacionado a objetivos que remetem à afirmação da democracia e da cidadania, não foram encontradas quaisquer referências que relacionem a atuação da CGU a possíveis esforços do governo federal relativos à discussão de reformas com vistas à implementação de mudanças institucionais voltadas à aumento da representatividade, ao incentivo à participação da sociedade na formação da agenda política, ao combate ao desequilíbrio regional e às desigualdades econômicas e sociais e à própria relação Estado-sociedade; b) apesar de autores como Klitgaard(1994; 1998), Vieira(2006) e Silva(2001)indicarem que o excesso de monopólios estatais e de discricionariedade na condução de negócios públicos são causas para a corrupção com base no rent-seeking, não foram encontradas quaisquer referências que relacionem a atuação da CGU a possíveis esforços relativos a tais temas, mesmo que participando de ações dirigidas pelos órgãos que se crê que sejam os competentes para tanto, como a Casa Civil e o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG); c) apesar de autores como Klitgaard (1994; 1998), Vieira (2006) e Silva (2001), indicarem que mecanismos de accountability voltados ao incentivo de bons comportamentos também são medidas efetivas de combate à corrupção, não foram encontradas quaisquer referências que relacionem a atuação da CGU a possíveis esforços relativos à revisão da relação entre Administração e servidores, no sentido da criação de planos de carreira e de avaliação de desempenho que estimulassem a performance e o compliance, mesmo que participando de ações dirigidas pelo MPOG, que se crê que seja o órgão competente para tanto; Os apontamentos anteriores indicam que o programa anticorrupção da CGU se identifica com aabordagem baseada no rent-seeking, bem como que ele reproduz as limitaçõesrelacionadasàspolíticas e programas nele baseados, informadas na primeira seção. Contudo, três considerações devem ser feitas acerca desta assertiva. A primeira é de que não se realizou um estudo profundo das abordagens baseadas na nova economia institucional, massim foram levantadosos referenciais suficientes para verificar se o rent-seeking foi a perspectiva teórica adotada para compreensão da corrupção e de seu combate no programa anticorrupção do governo federal. A segunda é que também não foramem si analisadas as ações de combate à corrupção empreendidasefetivamente pela CGU, o que se fez, neste sentido,foi levantar as ideias constantesdo programa de governo que as fundamentam. A terceira é que as indicações sobre aspossíveis limitações do programa anticorrupção em análise se basearam nas limitaçõesde caráter geral mencionadas na primeira seção e pelo fato de não terem sido verificados, tanto na pesquisa exploratória de que trata a segunda seção, quanto na análise categorial realizada nesta, ações voltadas à promoção ou à participação da CGU relativas a: a) possíveisreformas institucionaiscom vistas àafirmação da democracia e da cidadania que levem em consideração realidade política, social, econômica e cultural do Brasil, de suas regiões ou de órgãos ou processos específicos, que teriama possibilidade de serem mais efetivas do que os receituários padronizados decorrentes do rent-seeking; 12

b) revisão de monopólios estatais, redistribuição de prerrogativas e segregação de funções no âmbito da administração pública federal, observadas, por exemplo, nas propostas de Klitgaard (1994, pp. 214-221). Sobre esta terceira consideração, a não verificação da atuação da CGU não implica por si que outros órgãos, como a Casa Civil e o MPOG, responsáveis por tais questões, não estejam por suas políticas e programas enfrentando incidentalmente outras causas da corrupção. Não obstante, ressalta-se que, se estiverem, este enfrentamento não deveria estar se dando de forma “incidental”, não prevista e à revelia da CGU. Considerando a relevância da corrupção e a orientação pela res publica, uma política anticorrupção, para ser efetiva, deve ser integrada “formalmente” com todas aquelas que possam, de alguma forma, gerar efeitos que influenciem os níveis de corrupção. Finalmente e ainda sobre a terceira consideração, mesmo não tendo sido verificadaspossíveis açõesda CGU acerca das hipóteses mencionadas, tambémnão foram encontradas competências que tenham sido a ela delegadas para tanto, conforme Tabela 1,ou seja, a CGU atuaconforme seus próprios poderes-deveres instituídos em lei. Este fato implica que a questão das possíveis limitações do programa anticorrupção e do órgão que o conduz está em sua gênesemais relacionada à visão sobre o combate à corrupção no Estado brasileiro, materializada no seu ordenamento jurídico positivado, do que em falhas dos processos de formulação, implementações ou avaliação das ações anticorrupção do governo federal. Conclusão Este trabalhoinvestigou os fundamentos do programa anticorrupção do governo federal brasileiro, conduzido pela CGU, para verificar se ele se baseia de fato no conceito do rent-seeking. Seu estímulo decorreu do que defendem alguns autores que estudam a corrupção e seu combate no campo da administração pública, de que este conceito decorre de uma simplificação teórica e que políticas e programas nele baseados são, em geral, limitados, pois: a) geram estratégias padronizadas que ignoram possíveis aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais que podem estar relacionadas a este fenômeno nos diferentes países, regiões, órgãos ou mesmo processos; b) em países onde tradicionalmente não há boa integração entre as políticas governamentais, geram embaraços excessivos em outros programas de governo, podendo prejudicar o resultado destes; c) são formulados, implementados e avaliados sem foco no valor público que os justifica, desconsiderando aspectos mais profundos da corrupção, relacionados à democracia e à cidadania. Por meio de análise do conteúdo do programa de governo que fundamentou o programa anticorrupção objeto desta pesquisa, bem como de outros documentos relacionados à atuação da CGU, verificou-se que o programa anticorrupção estudado aborda o seu fenômeno alvo e justifica o seu enfretamento a partir dos pressupostos do rent-seeking, mas no que se refere às diretrizes para o combate à corrupção, este programa se reserva somente a buscar o acirramento das atividades de vigilância (social e governamental) e de punição. Esta constatação não implica que outros órgãos, como a Casa Civil e o MPOG, não estejam enfrentandoincidentalmenteas outras causas da corrupção por meio de suas políticas e programas, mas mesmo que haja tal enfrentamento, ressalta-se que uma política anticorrupção, para ser efetiva, deve se integrar formalmente com aquelas que possam, de alguma forma, gerar efeitos que influenciem os níveis de corrupção. Finalmente, assenta-se quepolíticas e programas anticorrupção para serem efetivos, ou seja, orientados ao valor público que os legitima, devem contemplar questões caras à 13

democracia e à cidadania, relativas a temas como a reforma do Estado, a representatividade,adiminuição das desigualdades regionais, econômicas e sociais, entre outras. Ao mesmo tempo, as políticas e programas relacionados a estes temas devem ser formulados, implementados e avaliados levando-se em consideração a questão do combate à corrupção, mas sem ignorar a sua própria efetividade, ou seja, os valores públicos que os legitimam. Bibliografia Abramo, C. (2006). Percepções pantanosas. Revista da CGU, 1(1), pp. 117-121. Andrews, C. W., & Kouzmin, A. (1998). O discurso da nova administração pública. Lua nova - Revista de Cultura e Política(45), pp. 97-127. Anechiarico, F., & Jacobs, J. B. (1996). The Pursuit of Absolute Integrity: How Corruption Controls Makes Government Ineffective. Chicago: The University of Chicago Press. Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo.Lisboa: Edições 70. Bernabel, R. T. (2009). Teoria da Escolha Pública: uma introdução crítica. Dissertação para obtenção do título de Mestre em Ciências Políticas. São Paulo: USP. Bignotto, N. (2011). Corrupção e opinião pública. In: L. Avritzer, & F. Filgueiras, Corrupção e sistema político no Brasil (pp. 15-43). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Bresser-Pereira, L. C. (1997). Cidadania e res publica: a emergência dos direitos republianos. Revista de Filosofia Política - Nova Série, 1, pp. 99-144. Bresser-Pereira, L. C. (2006). Gestão do setor público: estratégia e estrutura para um novo Estado. In: L. C. Bresser-Pereira, & P. K. Spink, Reforma do Estado e administração pública gerencial (pp. 21-38). Rio de Janeiro: Editora FGV. Carvalho, J. M. (2008). Passado, presente e futuro da corrupção brasileira. In: L. Avritzer, N. Bignotto, J. Guimarães, & M. M. Starling, Corrupção: ensaios e críticas (pp. 237-242). Belo Horizonte: Editora UFMG. Cavalcante, P. L. (2007). O Plano Plurianual: resultados da mais recente reforma do Planejamento e Orçamento no Brasil. Revista do Serviço Público, 58(2), 129-150. Controladoria-Geral da União. (2013). 10 Anos de Ações e Resultados. Acesso em 17 de abr. de 2014, disponível em Portal da CGU: http://www.cgu.gov.br/10anos/index.asp Controladoria-Geral da União. (2014). Relatório de Gestão Exercício 2013. Acesso em 17 de abr. de 2014, disponível em Portal da CGU: www.cgu.gov.br/Publicacoes/RelatGestao/Arquivos/relatorio_gestao_cgu_2013.pdf Corrêa, I. M. (2011). Sistema de integridade: avanços e agenda de ação para a administração pública federal. In: L. Avritzer, & F. Filgueiras, Corrupção e sistema político no Brasil (pp. 169-190). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Filgueiras, F. (2008). Marcos Teóricos da Corrupção. In: L. Avritzer, N. Bignotto, J. Guimarães, & H. M. Starling, Corrupção: ensaios e crítica (pp. 353-361). Belo Horizonte: Editora UFMG. Graaf, G. (2007). Causes of corruption: Towards a contextual theory of corruption. Public Administration Quarterly, 31(1), 39-86. Graaf, G., & van der Wal, Z. (2010). Managing Conflicting Public Values: Governing With Integrity and Effectiveness. The American Review of Public Administration (pp. 623-630), 40(6). Graaf, G., Maravić, P., & Wagennar, P. (2010). Introduction: causes of corruption - the right question or the right perspective? In: G. Graaf, P. Maravić, & P. Wagennar, The good cause: theorical perspectives on corruption (pp. 13-20). Farmington Hills: Barbara Budrich Publishers. Klitgaard, R. (1994). A corrupção sob controle.Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 14

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Segundo Bignotto (2011, pp. 31-32), as duas agendas partem do atraso institucional como causa para a corrupção, sendo seus conceitos comumente combinados tanto pela academia quanto pela política. 2 Pesquisa realizada no site da CGU endereço eletrônico www.cgu.gov.br, entre 14/03/2014 e 25/04/2014, a partir do conteúdo de todos os documentos listados nas seções "Relatórios e Balanços" e "Cartilhas e Manuais" da página acessível pelo menu “publicações” e no conteúdo das páginas acessíveis pelas abas horizontais. 3 Este programa está previsto no anexo II das leis 10.933/2004 e 11.653/2008. 4 Este programa está previsto no anexo II da lei nº 12.593/2012. 5 Conforme pesquisa realizada em 25/04/2014, no cadastro de ações referentes ao ano de 2013, disponível no Serviço Integrado de Planejamento e Orçamento do Governo Federal (SIOP), endereço eletrônico https://www1.siop.planejamento.gov.br/acessopublico/?pp=acessopublico&rvn=1. 6 Há uma seção intitulada “combater a corrupção” nas páginas 68 e 69 do anexo III, relacionado à “orientação estratégica de governo no PPA 2004-2007”, da lei 10.933/2004. 7 Há uma seção intitulada “transparência e diálogo social” que aborda o combate à corrupção, a que deveria se dar continuidade pela CGU, na página 90 da mensagem presidencial que encaminhou o projeto que culminou na lei 11.653/2008, disponível no Portal do MPOG, endereço eletrônicowww.planejamento.gov.br. 8 Há uma seção intitulada “democracia e aperfeiçoamento da gestão pública” que aborda em um de seus parágrafos o combate à corrupção, na página 264, da mensagem presidencial que encaminhou o projeto que culminou na lei 12.593/2012, disponível no Portal do MPOG, endereço eletrônicowww.planejamento.gov.br. 9 Aqui, “programa” e “programa de governo” são termos diferentes. A noção de programa se refere à formalização da atuação governamental com objetivo um claro e a previsão de indicadores, metas, responsáveis, ações e orçamento, voltado à materialização de uma política governamental. A noção de “programa de governo” se refere ao “[...] conjunto de propostas e compromissos, apresentado pelo partido ou coligação, que norteia a ação dos candidatos na campanha e depois de eleitos”(Partido dos Trabalhadores, 2008, p. 5).

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