Corsários no litoral português [2016]

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A mesma luta

Corso e pirataria são coisas distintas, mas nos relatos e na tradição confundem-se. A costa portuguesa e as ilhas foram especialmente flageladas nos séculos XVI e XVII por Marco Oliveira Borges*

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orsário e pirata são termos que já na Idade Média se usavam para designar os indivíduos que atacavam e capturavam navios visando obter as suas riquezas. Os corsários atuavam associados a um rei ou a um senhor, tanto em tempo de guerra como de paz, podendo invocar o direito de represália que permitia ao agredido atacar qualquer navio da nacionalidade do agressor. Assim, o corso (ou guerra de corso) dava-se quando um navio com pessoas e bens era atacado ou apresado por um particular sob posse de uma ordem jurídica concedida por um rei ou um senhor: uma carta de corso ou de marca que lhe permitisse exercer esse ato de agressão sob estatuto legal. Quando a violência marítima era praticada sem qualquer tipo de justificação legal, por alguém que atuava por conta própria e sem estar sujeito a qualquer entidade, estava-se perante um ato de pirataria. Mas se a distinção entre corso e pirataria é simples de entender em teoria, é complexa de distinguir em termos práticos. Na verdade, muitos marinheiros, pescadores e mercadores, sem conhecimento dos seus soberanos, praticavam atos de pirataria. Além disso, muitas vezes as fontes históricas generalizam a palavra «corsário» quando, na verdade, se estava perante uma ação de pirataria. Não se pode dissociar as intromissões territoriais ultramarinas, nem as atividades de corso e de e pirataria quinhentistas perpetradas por alguns reinos marítimos emergentes, da contestação à doutrina do Mare Clausum, que reservava a Portugal e a Castela os oceanos das descobertas e a sua exploração comercial, selada com o Tratado de Tordesilhas em 1494. De facto,

No período de 1508 a 1538 são conhecidos 423 roubos franceses a navios portugueses. Os Açores foram dos locais mais procurados pelos corsários 74 V I S Ã O H I S T Ó R I A

é muito neste âmbito de denegação do duplo monopólio ibérico que se tem de entender as expedições europeias e o grosso dos ataques à navegação, incluindo à Carreira da Índia e à Carreira das Índias Ocidentais, as duas rotas comerciais mais ricas que se afirmaram em inícios da Idade Moderna. Em novembro de 1508 deu-se a primeira perda de uma nau da Carreira da Índia devido a ataque inimigo. Ao facto esteve ligado o famoso Pedro de Mondragon, que Damião de Góis referiu erroneamente como sendo um corsário francês. Originário da Biscaia, provavelmente da vila de Mondragón (Guipúzcoa), na altura em que atacou a nau de Job Queimado, que vinha de Calecute carregada de especiarias, Mondragon estava a atuar como pirata. De acordo com documentação expedida por D. Manuel I, o ataque ocorreu algures na costa da Galiza, não muito longe de praias portuguesas. Para tentar recuperar o navio, as mercadorias e capturar Mondragon, o rei português enviou João Serrão a águas galegas, conseguindo ainda entrar em cooperação com Castela. Mais tarde, enviaria Duarte Pacheco Pereira com uma armada ao cabo de São Vicente, andando este durante alguns meses no mar entre esse local, o estreito de Gibraltar e a Galiza, com ordens rígidas: «Vos mandamos que enforques ao dito corsário Mondragon e com ele até dez ou doze dos principais que trouxera em seus navios.» Contudo, contrariamente ao que refere Damião de Góis, Mondragon nunca foi apanhado pelos navios portugueses e trazido preso para Lisboa. De qualquer forma, certas mercadorias vindas da Índia, e que tinham sido vendidas em Baiona e em portos franceses (algumas escondidas em igrejas e mosteiros) acabaram por ser recuperadas.

Os anéis de Francisco I No período de 1508 a 1538 são conhecidos 423 roubos franceses a navios portugueses. A geografia das ocorrências abarca um espaço que se distribui entre os arquipélagos atlânticos (Cabo Verde, Canárias, Madeira e Açores), costa africana, Portugal, Espanha, França, Irlanda, Inglaterra, Flandres, Terra Nova e Brasil. Os Açores foram dos locais mais procurados pelos corsários, já que estavam na rota das grandes linhas de navegação ultramarina, servindo de escala não só aos navios vindos da Índia e das Índias de Castela, mas também aos que voltavam ricamente carregados da costa ocidental africana, de Cabo Verde, de São Tomé e do Brasil. Outros pontos estratégicos corsários foram as Berlengas, Sintra, Cascais, Sesimbra e o cabo de São Vicente. Um ataque famoso a um navio da Carreira da Índia ocorreu em 1543, envolvendo uma nau capitaneada

BIBLIOTECA NACIONAL DE PORUGAL

Aventuras nos mares || Piratas

por D. Pedro de Castelo Branco. Surpreendido por franceses, alegadamente a 25 léguas do cabo de São Vicente, o navio acabou por rumar a Faro. Ali, D. Pedro declarou ao juiz local o sucedido e que a nau agressora trazia muita gente e artilharia, enquanto a sua vinha sem artilharia, com poucas pessoas e doentes. A nível pessoal, o fidalgo queixou-se do roubo das suas peças de ouro, de prata e algumas sedas, num valor total à volta de 40 mil cruzados. O caso terá gerado mais um incidente diplomático entre Portugal e França. Posteriormente à chegada a Lisboa, o visado deslocou-se a Paris para requerer os bens que lhe tinham sido roubados, alegando que não existia razão para tal ataque, pois havia paz entre os dois reinos. Durante o moroso tempo em que esteve na Corte francesa, e enquanto Francisco I fazia diligências dissimuladas, D. Pedro observou que o monarca francês usava alguns bens que lhe tinham sido roubados naquele assalto: umas estribeiras de ouro e uns anéis «ricos» que tinha nos dedos, e que tinham sido mandados fazer pelo próprio D. Pedro na Ásia.

Os holandeses e os ingleses A fase mais ativa de ataques ingleses contra navios portugueses ocorreu durante o primeiro quartel da Monarquia Hispânica (1580-1640), estando associada a conflitos políticos e comerciais. Perante a nova conjuntura, o mar dos Açores passou a ser um alvo preferencial das forças inimigas, onde os ataques conjuntos entre franceses e ingleses visavam não apenas conquistar as ilhas, tentando colocar o arquipélago

novamente sob domínio de D. António, prior do Crato, mas também apresar as naus que vinham ricamente carregadas do Oriente e das Índias Ocidentais. Por conseguinte, a navegação ibérica foi fortemente afetada, destacando-se as ações de Francis Drake, a tomada de algumas naus da Carreira da Índia e a perda de outras que se queimaram voluntariamente para não caírem em mãos inimigas. Em finais do século XVI, associadas à luta contra a hegemonia económica e monopólio de Filipe II, entraram igualmente em curso expedições de corsários holandeses a águas ibéricas compostas por dezenas de navios. Em 1606, por exemplo, deu-se um bloqueio da barra do Tejo, situação que fez que nesse ano não partissem navios para a Índia. Num outro caso, em maio de 1622, um navio português que vinha de São Tomé foi atacado por holandeses junto a Buarcos. Os sobreviventes chegaram a Cascais num batel carregado com açúcar e 34 escravos. Outro inimigo que os navios portugueses tiveram de enfrentar vinha do Norte de África, sobretudo de Argel, Tunes, Trípoli e Salé. Em 1617, Pero Roiz Soares escreve que andava «todo o mar coalhado de turcos e mouros com armadas de navios de alto bordo fazendo empresas de tudo» o que vinha para Lisboa, tendo os mesmos ido à ilha de Porto Santo onde cativaram 900 pessoas, entre adultos e crianças, sendo que 550 eram mulheres, 300 delas jovens. No ano seguinte, 45 navios berberescos vieram novamente correr os portos da costa portuguesa, roubando, cativando e tomando quantas embarcações encontravam.

O arquipélago dos Açores Um mapa de 1584

Marco Oliveira Borges é investigador do Centro de História e Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa VISÃO H I S T Ó R I A

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