CORTE TEÓRICO E BIBLIOGRÁFICO DO TERRITÓRIO DA NÃO - FICÇÃO

May 24, 2017 | Autor: José Vegar | Categoria: Creative Writing, Journalism, Travel Writing, Biography, Narrative Theory
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AS NARRATIVAS DE NÃO – FICÇÃO

CORTE TEÓRICO E BIBLIOGRÁFICO DO TERRITÓRIO E DUAS HISTÓRIAS EM ANEXO José Vegar

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A errância forçada dos conceitos e a volatilidade dos espaços que cercam

Os dois objectivos deste artigo são os de procurar um desenho conceptual nítido de um número identificado de formas narrativas de não – ficção e o de partilhar uma bibliografia de referência constituída por obras filiadas neste vasto domínio. Como anexo, partilham – se igualmente alguns textos de não – ficção. O primeiro objectivo tem vários níveis de impedimento, e duas estratégias para os superar. Um primeiro nível de impedimento é o da opção por um conceito que faça a distinção entre formas narrativas de não – ficção e formas narrativas de não – ficção que concedam o primado ao emprego de modos literários de narrar. O conceito escolhido foi o de não – ficção criativa, que garante tantos argumentos na defesa do seu emprego, como tantos no absurdo do seu emprego.

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Um segundo nível de dificuldade é o de delimitar os espaços, tanto o da não – ficção criativa, por si só, como os das formas narrativas que aqui se discutem, o jornalismo narrativo, a escrita de viagens, a biografia e a escrita de vida, e o documentário. Este nível de dificuldade é construído pela acção das forças que produzem, e discutem, os conceitos e o que estes últimos delimitam, tanto no plano teórico, como na execução da prática. Para este artigo foram tidas em conta as forças principais em acção. Antes de todas as outras, a presença e exercício das formas narrativas ao longo da História. Depois, o trabalho académico, cujo fim último, recorde – se, não é o de estabilizar, mas o de criticar de modo sustentado, e, se possível, o de reformular, neste caso os conceitos e os lugares que mapeiam. Logo de seguida, a procura das plataformas de publicação, dos produtores de cinema às editoras de livros, e dos mercados, que contribuem para a redefinição permanente das formas literárias. Finalmente, a força gerada pelo papel decisivo dos autores, que, ao seguirem e ao utilizarem as formas narrativas estão continuamente a reconstruir os seus moldes, impondo, por sua vez, redefinições conceptuais. Como escrevi, há duas estratégias, pelo menos, para atingir o primeiro objectivo deste artigo. A primeira, a mais sedutora do ponto de vista intelectual, é a de incorporar todas as coordenadas da discussão, o que implica referenciar e partilhar a produção dos múltiplos nós e disciplinas académicas que se dedicam ao tema, como também as conceptualizações geradas pelas classes profissionais envolvidas, as reflexões, sustentadas ou não em teoria, dos próprios autores, e as obras. A segunda estratégia é a de realizar um corte de síntese arriscado, procurando, a partir das fontes nomeadas no parágrafo anterior, trazer a texto, de uma forma coerente e sólida, uma tipologia de conceitos e dos espaços que delimitam que possa ser clara, e especialmente cativante, para quem não circula de forma habitual, ou começa agora a JOSÉ VEGAR – NÃO FICÇÃO

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iniciar o seu caminho nestes territórios. Optei pela segunda estratégia, já que o destinatário preferencial deste artigo é a população sociológica referida. Procurei responder ao segundo objectivo deste artigo usando uma metodologia que, como escrevi, segue à risca o valor da palavra referência. Ou seja, a bibliografia procura partilhar obras que sejam exemplos maiores das várias formas narrativas em análise, mas não é, de modo algum, exaustiva. Foram tidos ainda em conta os critérios de procurar incluir o maior número possível de obras nacionais, o de ter plataformas e locais digitais, e o de afastar a tentação de incluir apenas exemplos contemporâneos. Por último, mantive até ao fim deste artigo a tentação de incluir o conceito e o espaço da investigação, o processo fundamental para criar um bom objecto de não – ficção criativa. Mas como o artigo é dedicado às formas narrativas, optei pela sua exclusão. É mais uma deficiência a juntar a todas as outras que decerto serão detectadas nas linhas seguintes.

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CORTE TEÓRICO UMA METODOLOGIA PARA DESOCULTAR E REPRODUZIR UM PEDAÇO DA REALIDADE

A tarefa e o fim que lhe é destinado foram moldados no que momento em que o homem tomou consciência de si e dos seus actos e nenhuma correcção sofreram desde a tentativa fundadora. A tarefa é a de narrar um pedaço da realidade vivida. O fim não é linear, tem a propriedade da riqueza só garantida às ambições complexas, as que albergam, em rodagem caótica, dimensões que continuamente se fundem, complementam e separam. O fim é, sem dúvida, o tão simples de contar uma história que aconteceu para que esta seja vivida pelos que não estavam no momento. Mas o fim é também o de mostrar que toda e qualquer história transporta em si um conhecimento. Como igualmente, claro, o fim é o de permitir à memória uma viagem que não termine. Assim defendido, haverá poucas tarefas tão decisivas como a de narrar um pedaço da

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realidade que aconteceu, algures, num momento, e num local. A narrativa é apenas um dos recursos possíveis para reproduzir uma realidade, mas talvez seja o mais indicado e o mais eficaz, se tivermos em conta as suas propriedades. Porter Abbott aponta que “narrative is the representation of an event or a series of events. “Event” is the key word here, though some people prefer the word “action”. Without an event or an action, you may have a description, an exposition, an argument (…) but not you won´t have a narrative”. E é também Porter Abbott que aponta o especial poder das narrativas de não – ficção, as que tentam reproduzir uma realidade, já que assentam numa “attraction that fiction lacks, and that is that they claim to tell a story that is factually true”. Não admira, então, que a atribuição da tarefa, ou o desempenho da tarefa, nunca tenham terminado, criando elos temporais e geográficos, nunca extintos, e que, certamente, irão continuar a ser gerados depois de nós. O que foram mudando, e irão continuar a mudar, são os meios e as formas de desocultar e narrar a realidade. Se nos limitarmos, revelando a nossa pobreza, aos meios dominantes de contar uma história, aqueles onde assenta rotineiramente o texto, a imagem e o som, deixando de fora disciplinas como as da música ou da pintura, detectamos um longo caminho quase sem roturas entre o papiro e o codex e a plataforma digital, entre o “griot” africano, que felizmente ainda não foi extinto, e o vídeoclip optimizado para telefone. A forma, o tema deste nosso apontamento, teve, e tem, uma caminhada mais acidental, porque é desde sempre marcada pelas mais diversas influências criativas, estéticas e corporativas e também mais subterrânea, porque, neste último aspecto, nunca teve a atenção permanente, e dedicada, da investigação académica. Se procurarmos uma ordem e uma sequência temporal para a evolução da forma de desocultar e narrar uma realidade, a metodologia mais segura é a de começar por procurar as disciplinas onde, de algum modo, e até há muito pouco tempo, esteve ancorada e filiada.

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Assim, as sub – formas narrativas de não - ficção assentes no texto tiveram do princípio, no tempo dos percursores de fixação sistemática de um texto nos vários antecessores do livro, até ao meio do século 19 controladas pela História, que a partir da data referida sofreu a concorrência, e depois acabou por se submeter ao domínio do Jornalismo. Sendo mais exacto, ao de alguns sub – géneros minoritários do Jornalismo, que continuam a sê – lo ainda hoje, e muito recentemente ao de um género literário de delimitação instável, como iremos ver alguns parágrafos abaixo. Por sua vez, as sub – formas narrativas assentes na imagem andaram sempre entre o cinema documental e o jornalismo televisivo, e hoje ancoram – se ainda na produção televisiva de não – ficção e no documentário, mas também nas plataformas digitais e na novela gráfica. No entanto, recortar e conhecer o território da forma da história de não – ficção através das disciplinas, académicas e profissionais, onde se tenta o seu acantonamento é demasiado limitado. De facto, há que ter em conta, primeiro, a interferência e o poder do contador da história, cuja definição continua, também, em aberto, oscilando entre o profissional, o artesão, o autor, e o criador. O poder do contador, do autor se quisermos um conceito mais normativo, vem da sua angústia de procurar construir tão realista e completa a história narrada como a história real, ao ponto de as duas serem a mesma. É esta demanda, que é uma quimera demasiadas vezes, que o faz, e que sempre o fez, de Heródoto aos nossos cronistas do século 15, ou de Talese a McPhee, suplantar as convenções, tanto nos métodos de investigação, como, e muito especialmente, na forma, isto é no arsenal narrativo. Deste modo, o seu poder e a sua demanda, que foi e é o de Tucídides, de Gellhorn, de Orwell e de Wolfe, e de muitos outros que hoje parecem esquecidos ou publicaram recentemente, fizeram com que ao longo dos séculos violasse, as regras e as convenções do seu tempo, reproduzindo, adaptando, especialmente as da ficção literária, e criando

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formas narrativas, que não eram e não são as reconhecidas, e que foram e são de complexa arrumação teórica e normativa. A delimitação do território das formas narrativas de não – ficção não pode ser feita igualmente sem ter em atenção a existência e o papel agitador dos agentes do mercado essenciais, as plataformas de publicação e os leitores e visualizadores. A procura das plataformas de publicação, especialmente os jornais, as revistas, as entidades de televisão e cinema, e de há pouco para cá os locais digitais, permite a partilha e a evolução da forma. A procura dos leitores e visualizadores gera o reconhecimento profissional e social, o financiamento e, acima de tudo, a existência de um destino, isto é o uso da história para quem esta foi criada. Ao mesmo tempo, a forma de narrar um pedaço da realidade foi sempre, e continua a ser, moldada pelas fileiras, organizacionais, estéticas e criativas, onde os criadores, ou autores, se acantonam, pela procura de um espaço de identidade, muitas vezes, pela necessidade de um espaço profissional, com tudo o que isso implica, outras muitas vezes. Submetido a todas estas forças intensas, o território da forma da história de não – ficção não é, de modo algum, contínuo, assente num só espaço ou de fronteiras estáveis. A forma foi sendo moldada, e continua a ser, pelo género de jornalismo chamado reportagem, que a partir de 1965, com a publicação de “A Sangue Frio”, de Truman Capote chamou – se também jornalismo literário, termo que perdeu relevância com a chegada do “Novo Jornalismo” proposto por Tom Wolfe, e dos seus sucedâneos, como o “gonzo journalism”, que voltou novamente a perder terreno, a meio da década de 90 do século passado, para o jornalismo literário, que actualmente é menos valorizado que o conceito de jornalismo narrativo. No mesmo tempo, mas com uma evolução diferente, a forma deve muito à escrita de viagens (travel writing), um género nobre para Estados e homens de Letras, a partir da Antiguidade Clássica, que ganhou um enorme espaço e relevo no mundo anglo – saxónico, que pareceu sem Norte até aos anos 80 do século passado, quando foi ressuscitado por “Na Patagónia”, de Bruce Chatwin, e que hoje é um dos géneros mais JOSÉ VEGAR – NÃO FICÇÃO

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vibrantes e complexos da não – ficção. Também a contribuir para o desenho contemporâneo sempre em mutação da forma de não – ficção, e a contribuir de um modo decisivo, está a biografia em todas as suas variantes, da memória à escrita de vida, que algures a partir de 1990 violou o seu espaço natural até ali, o de género literário académico, e se tornou um modo narrativo de eleição para os autores e para os mercados. A contribuir para a forma, e apenas para destacar os géneros, ou as correntes, mais dominantes, está também o documentário, que ganhou uma força notável, em densidade narrativa e em número de trabalhos, nos últimos vinte anos. Foi esta explosão, criativa e produtiva, bem como a procura intensa do mercado, das várias formas de não – ficção, que obrigou, muito recentemente, académicos e autores a procurarem, mais uma vez por busca de identidade e de localização, uma conceptualização, e um lugar, no território literário e criativo, e no mercado, para o seu modo de contar uma história que aconteceu.

A fixação teórica está longe da estabilidade, felizmente, mas o conceito que se vai impondo, não sem resistência, tanto académica como corporativo, é o de Não – Ficção Criativa. Roorbach reconhece este conflito quando escreve que “what a troublesome term creative non-fiction is, and yet we seem to be stuck with it. I mean what could ‘creative non-fiction’ possibly mean, when all writing is creative, and most writing is nonfiction? Some very smart people have proposed all kinds of other terms to name this old form...: ‘literary nonfiction,’‘the literature of reality,’ ‘the Fourth Genre’ (with poetry, fiction, and drama being the first three)… ‘New Journalism,’ ‘narrative non-fiction,’… But none is any more accurate or inclusive than ‘creative nonfiction,’ and some are less accurate, and too exclusive… For the sake of continued definition, let us say that creative non-fiction is non-fiction that deserves to be placed up there on the literature shelves along with the best fiction and poetry”. De facto, Não – Ficção Crativa não é um conceito brilhante, não permite também uma

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teorização cristalina, mas garante duas operações fundamentais, a da exclusão, e as das propriedades fundamentais. Assim, a inclusão no conceito do termo “criativa” permite excluir toda a produção de não – ficção que não segue as regras narrativas que iremos enunciar de seguida, manipulando a forma com o único objectivo de tornar claro o texto escrito. Cabe neste território o texto académico, todo o texto jornalístico não – literário ou não – narrativo, o texto de comunicação, como é entendido agora, e o texto profissional. Dentro das fronteiras das formas narrativas incluídas na não – ficção criativa situam – se, como escreve Gutkind, todas as “true stories well told”. Para serem “bem escritas” (well told), Gutkind refere que as histórias têm de apelar ao “ (…) literary craft, the techniques fiction writers, playwrights, and poets employ to present nonfiction—factually accurate prose about real people and events—in a compelling, vivid, dramatic manner”. Scanlan, por seu lado, defende que “creative nonfiction is the latest name for fact-based writing that can perhaps be best understood as the union of storytelling and journalism (…). Procurando dar substância ao conceito, Lounsberry ilumina as quatro dimensões fundamentais da não ficção criativa. Assim, temos, antes de tudo, “documentable subject matter chosen from the real world as opposed to ‘invented’ from the writer’s mind”. Este conhecimento do real, de uma história que aconteceu, é conseguida, e é esta a segunda propriedade, através de uma “exhaustive research”, o que permite aos autores, segundo a teórica, “novel perspectives on their subjects” and “also permits them to establish the credibility of their narratives through verifiable references in their texts”. A terceira característica, que Lounsberry considera “crucial in defining the genre” é “the scene”, sublinhando a importância de “describing and revivifying the context of events in contrast to the typical journalistic style of objective reportage”.

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Finalmente, a “fourth and final feature” é a complexa arte de um texto com “ literary style”. Para Lounsberry, num momento teórico feliz, “verifiable subject matter and exhaustive research guarantee the nonfiction side of literary nonfiction; the narrative form and structure disclose the writer’s artistry; and finally, its polished language reveals that the goal all along has been literature”. O que se procura, definitivamente, com o desenho deste território narrativo, é de encontrar uma forma de contar que permita trazer a realidade a texto, primeiro, e molda – la narrativamente de modo cativante, depois. É sobre isto que Salman Rushdie escreve, quando aponta que o repórter polaco Ryszard Kapuscinski era o “tipo de decifrador de que precisamos” para desvendar o nosso mundo contemporâneo, já que os seus textos permitiam que acedêssemos a realidades que nos são estranhas, ou seja, segundo Rushdie, Kapuscinsky “através da sua mistura de reportagem e arte” fazia-nos aceder “tão perto quanto é possível, através da leitura” ao que ele chamava “ a imagem incomunicável da guerra”. Por outras palavras, desocultar e partilhar uma realidade. Muito mais fascinado com o poder da forma de não – ficção revela – se o praticante Richard Preston, jornalista narrativo, ao escrever que “(...) one could do literary writing in nonfiction; all the techniques available to the novelist are also available to the nonfiction writer. And there are some techniques available to the nonfiction writer that the novelist can´t touch. So it´s not just that you can make a simulacrum of a novel by writing literary nonfiction; you can actually exceed the power of the novel”. O essencial, defende Preston, é que “nonfiction´s combination of narrative literary form and truth makes for, at times, a more powerful experience than the novel”. Assim defendida, teórica e conceptualmente, a forma narrativa de não – ficção não tem sido aplicada na disciplina burocrática, profissional e de mercado, da não – ficção criativa, porque esta só existe, com a excepção de algumas periferias, como conceito identitário, como já apontamos, e também académico e organizacional.

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O que encontramos na narrativa contemporânea é a reivindicação do uso da forma em categorias, ou géneros, de trabalho que envolvem a investigação, a escrita, o som e a filmagem, dos quais iremos dar atenção, de seguida, ao jornalismo narrativo, à escrita de viagens, à biografia, à investigação literária e à reportagem.

No campo do jornalismo narrativo, que como igualmente já referimos foi construído pela prática acumulada e pela história da reportagem, do novo jornalismo, e do jornalismo literário, o recorte do território e o desenho conceptual mais nítidos pertencem à Nieman Foundation, com Vanoost a enuncia – lo como “the genre that takes the techniques of fiction and applies them to nonfiction. The narrative form requires deep and sophisticated reporting, an appreciation for storytelling, a departure from the structural conventions of daily news, and an imaginative use of language“ com o objectivo de contar uma história que “would reveal truths beyond the reach of an ordinary news report”. Kramer, ele próprio um praticante e o fundador do Nieman Program on Narrative Journalism, define que a forma narrativa do género alberga como elementos fundamentais “Set scenes, Characters; Action that unfolds over time; Voice that has personality; a relationship with the audience; and Destination – a theme, a purpose, and a reason”. Vanoost, novamente, leva um pouco mais além o esforço de Kramer, quando escreve que “a journalistic narrative can be defined as a story in which characters perform actions unfolding over time in a certain setting. The journalist uses writing techniques often considered as “literary“ (...)“, que incluem «the use of voice, techniques that allow creating a form of experience for the reader (i.e. detail, expression of thoughts and feelings, etc.), and techniques that aim at capturing and maintaining the interest of this reader (i.e. suspense, conflict, tension between a complication and its resolution, etc.)». O que o autor pretende com o recurso a esta forma de escrita, relembra Vanoost, é criar uma narrativa que cumpra a sua primeira função, isto é construíndo um « plot – essentially consisting of a complication and a denouement – and tension (...)», já que «these two combined traits distinguish narrative from other forms of textualized action JOSÉ VEGAR – NÃO FICÇÃO

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such as chronicle, recipe or account». Como bem anota Vanoost, «the final goal of a journalistic narrative is to offer a better understanding of the real world, which implies that every detail has to be accurately reported». Num raro esforço de teorização de uma forma, a da escrita do jornalismo narrativo, especialmente escorregadia, de constante reinvenção e de margens, formais e estéticas especialmente, amplas, Vanoost refere que o seu uso poderá ter como objectivo conciliar dois objectivos maiores da não – ficção “ the close interaction between the two functions of narrative, the intriguing and the configuring functions (...). Desenvolvendo a sua hipótese, Vanoost escreve que “the former seems close to the reticent dynamics of most fictional narratives, which partially obscure their meaning until they reach their denouement – in other words, close to what Baroni identifies as the intriguing function of narrative. The latter appears to refer to the informative and explicative purpose of most factual narratives that aim, as much as they can, to make sense of real events – i.e. it refers to Baroni’s configuring function (…)”. Por sua vez, Nousiainen recorda que qualquer conceito de jornalismo narrativo fica amputado se não tiver em conta as primeiras teorizações do Novo Jornalismo e do Jornalismo Literário, iniciadas na década de 70 do século passado, onde se destacam a de Wolfe e a de Sims. Assim, Nousiainen relembra para Wolfe a forma «is based on two things: unambiguous rhetorical technique and an authorial intention. He lists four characteristics: “scene-byscene construction” (presenting the narrative in a series of scenes); using third-person point-of-view to put the reader inside the mind of someone else than the writer; using full dialogue instead of quotes found in mainstream journalism; and providing “status” details (appearance, behaviour)». E relembra também que Sims “has listed similar characteristics: “immersion” in the subject matter, structure (some resemblance to Wolfe’s scene-be-scene construction), accuracy (credibility with the reader), a writer’s voice (unlike in the mainstream journalism), journalist’s responsibility to the characters in the narrative, and symbolism or underlying”, como elementos que constroem a disciplina, mas também a forma

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narrativa.

Transportando consigo a devoção que deve ser concedida a um bem antigo precioso, não nos esqueçamos das “odisseias” clássicas e de todas as outras crónicas de passagens por lugares longínquos ao longo da História dos mundos, o lugar teórico e narrativo da escrita de viagens (travel writing) é o alvo no mundo contemporâneo da acção de duas forças opostas. Num polo, é uma das formas narrativas mais empregue por autores, e mais procurada por leitores. No outro polo, resiste a uma fixação conceptual estável, especialmente porque só muito recentemente lhe foi concedida a graça de ser incluída nos currículos universitários, e nas hipóteses de ser objecto de atenção académica. Youngs, que se tem dedicado arduamente à construção do conceito, escreve que “travel writing, one may argue, is the most socially important of all literary genres. It records our temporal and spatial progress. It throws light on how we define ourselves and on how we identify others. Its construction of our sense of ‘me’ and ‘you’, ‘us’ and ‘them’, operates on individual and national levels and in the realms of psychology, society and economics”. Youngs, apesar do seu investimento, não esconde as dificuldades no levantamento do conceito. É ele que recorda o facto de que “Jonathan Raban, in a comment quoted so often that any discussion of the character of travel writing seems incomplete without it, suggests that, ‘As a literary form, travel writing is a notoriously raffish open house where very different genres are likely to end up in the same bed. It accommodates the private diary, the essay, the short story, the prose poem, the rough note and polished table talk with indiscriminate hospitality”. Assim, contido mas honesto, Youngs situa – se num espaço em que “travel writing consists of predominantly factual, first-person prose accounts of travels that have been undertaken by the author-narrator. It includes discussion of works that some may regard as genres in their own right, such as ethnographies, maritime narratives, memoirs, road

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and aviation literature, travel journalism and war reporting, but it distinguishes these from other types of narrative in which travel is narrated by a third party or is imagined”. Quanto à forma narrativa, o que aqui mais nos interessa, o escritor de viagens, acrescenta Youngs “draw on the techniques of fiction to tell their stories. Plot, characterisation and dialogue all play their part. Whereas some travel writers insist on absolute verisimilitude, others readily admit to the manipulation and invention of detail”. No outro extremo de aproximação ao conceito, Pico Iyer, um dos grandes escritores de viagens contemporâneo, tem a convicção de que só uma teorização de largo espectro permite captar tudo aquilo que a escrita de viagens é ou pode ser. Para ele “the definition of a travel writer is someone who would never think of himself as or call herself a travel writer, partly because he or she doesn’t want to live in boxes and partly because what is bringing the energy and life to the work is what each of them is bringing from other fields. That’s to say, I think of Bruce Chatwin as an anthropologist principally; I think of Jan Morris as an historian; Paul Theroux is really a novelist more than anything, and his travel trips are busman’s holidays through which he conducts research between novels. And V.S. Naipaul has more or less exploded the whole distinction” (2006). Iyer não tem dúvidas em defender que “in some ways, travel writers themselves are working to stretch the margins, and I think that’s quite exciting. W.G. Sebald, too, who, I think, is one of the really original writers in the field. When his books came out they were often characterized as fiction, history and memoir. Orhan Pamuk’s beautiful book on Istanbul—the best travel book I’ve read recently—evokes a city hauntingly precisely by drawing on a novelist’s resources—just as Joseph Brodsky did with poetry in writing his immortal book on Venice, “Watermark”. Escrever a viagem, propõe Iyer, “is, in a sense, about the conspiracy of perception and imagination”. Assim definidas, as formas narrativas da escrita de viagens não permitem a fixação de

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um manual de elementos fundamentais. Tal como as outras formas narrativas de não – ficção criativa, a escrita de viagens implica que o autor parta de uma investigação, isto é parta de um recorte de uma realidade que observou, ou no qual participou, e desta recolha construa uma história. Outro ponto de partida dominante é o de que o autor seja viajante, isto é que a sua história assente numa viagem, e naquilo que descobriu durante os seus caminhos e paragens, No entanto, e este é um ponto muito importante, a viagem não tem necessariamente de ser a que percorre pontos longínquos, já que se como afirma Youngs um objectivo fulcral é o da descoberta de quem somos e quem são os outros, é útil nunca perder de vista os outros, humanos e lugares, que estão à nossa volta, não conhecemos e merecem, porque guardam uma história, a nossa dedicação. Um outro elemento fundamental da escrita de viagens a reter é o de que a permitir a conspiração de percepção e imaginação apontada por Iyer estão, sozinhos, o conhecimento e o tempo necessário para o adquirir. O conhecimento é, para começo, o que educa o autor – viajante sobre os locais que irá percorrer, o que o faz descobrir todos os passados e todas as influências que os tornam no que são, mas também, depois, no terreno, o que permite que o seu olhar encontre tudo o que deve ser encontrado, e não apenas a impressão mais nítida. No entanto, nunca perdendo o Norte do que nos traz aqui, o elemento fundamental da forma narrativa da escrita de viagens é o de que tem licença, e deve seguir, as estruturas, fórmulas e técnicas de escrita normalmente atribuídas à ficção literária.

Não há, igualmente, trilhos limpos, planos, de extensa visibilidade e contornos precisos para chegar a um conceito imperial e estabilizado de biografia. Para tentar reduzir, imprudentemente, ao essencial uma intensa discussão académica que se estende já por mais de duas décadas, dos bolorentos centros de investigação de JOSÉ VEGAR – NÃO FICÇÃO

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etnografia, aos deprimentes gabinetes de teoria literária, é necessário ter em conta se o conceito adequado para a forma narrativa é o de biografia ou o de escrita de vida (lifewriting), e o que alberga, e define, cada um deles. No entanto, é porventura útil entender, para começo de caminhada, que qualquer que seja o conceito eleito, estamos sempre no domínio identificado por Habermas, o de “all linguistic acts and products that refer to a temporally extended human life as a frame of reference, such as life narratives, curricula vitae, written biographies and autobiographies, and also more partial biographical accounts”. E não será menos útil ter em conta, como aponta Bamberg, que “the ability to conceive of life as an integrated narrative forms the cornerstone for what Erikson called “ego identity.” The underlying assumption here is that life begins to co-jell into building blocks that, when placed in the right order, cohere: important moments tie into important events, events into episodes, and episodes into a life story”. De facto, o que está fundamentalmente em causa, como alerta Bamberg, é que esta analogia “between life and story—or better: the metaphoric process of seeing life as storied (in narratological terms: story and discourse) that has given substantive fuel to the narrative turn”. Ao mesmo tempo, o que se pretende com o emprego da forma narrativa, qualquer que seja o conceito com que a classificamos. defende Lee, é conhecer “how that person works in all senses of the word works. You learn something historical (…). You learn about all the things that human beings are interested in”. A partir daqui, podemos entender melhor a validade, mas também a limitação, dos conceitos de biografia e de escrita de vida. O primeiro é desenhado por Kendall como uma “form of literature, commonly considered nonfictional, the subject of which is the life of an individual. One of the oldest forms of literary expression, it seeks to re-create in words the life of a human being—as understood from the historical or personal perspective of the author—by drawing upon all available evidence, including that retained in memory as well as

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written, oral, and pictorial material”. Já o Oxford Centre for Life – Writing, da Universidade de Oxford, um dos nós principais de pesquisa teórica e de produção neste campo, defende que a escrita de vida “embraces the lives of objects and institutions as well as the lives of individuals, families and groups. Life-writing includes autobiography, memoirs, letters, diaries, journals (written and documentary), anthropological data, oral testimony, and eyewitness accounts. It is not only a literary or historical specialism, but is relevant across the arts and sciences, and can involve philosophers, psychologists, sociologists, ethnographers and anthropologists”. Uma observação atenta das duas fórmulas conceptuais partilhadas permite, desde já, algumas anotações importantes. Para Kendall, defensor do conceito clássico, a biografia, que inclui diversas expressões narrativas, como a memória ou a autobiografia, é uma forma narrativa literária, e aplica – se apenas quando está em causa a narração de uma vida humana individual. Já a escrita de vida contempla uma muito maior latitude, em várias dimensões. Para começo, inclui também várias formas narrativas, não só a biografia, como também as memórias, e as restantes nomeadas. Depois, defende que esta forma narrativa está longe de ser apenas literária, pode ser antropológica, sociológica ou criada a partir das regras de escrita de outras escolas. Finalmente, e este é a dimensão mais importante do conceito, a escrita de vida não tem como objectos exclusivos o indivíduo e o humano. De facto, e a produção recente em texto e em texto e imagem mostra – o, esta forma narrativa pode ser aplicada à história de vida de um objecto, de uma entidade, de uma comunidade, ou até a objectos imateriais, como é o caso de uma ideia. Procurando um difícil caminho de síntese conceptual, e também de delimitação do que o território pode conter, Lee defende que “life-writing, a term used by Woolf in “Sketch of the Past,” is made up of different kinds of “true” narratives—biography, autobiography, memoir, diaries, letters, travel writing. These narratives can be thought JOSÉ VEGAR – NÃO FICÇÃO

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of as distinct genres, but they can also overlap”. O que nos importa reter como elementos constituintes da biografia e da escrita de vida é que procuram narrar uma história factual de um indivíduo, de uma entidade, de um lugar ou de um objecto. Ou seja, a amplitude extremamente lata da natureza do biografado, ou do alvo da escrita de vida, é um factor decisivo. O objecto de trabalho pode ser humano, mas também pode ser uma empresa, um grupo de profissionais, um telefone, um bairro, na verdade qualquer entidade com acção decisiva numa história que deve ser contada. De igual modo, é importante reter que a narrativa não tem de ser uma descrição exaustiva da vida, da existência ou do percurso do objecto de trabalho, mas apenas uma narração completa da história que há para contar. Ou seja, a narrativa pode reproduzir apenas um período de tempo limitado, dedicar – se somente a um tema ou a uma actividade da acção do objecto de trabalho, ou ainda, ser uma colagem dos períodos temporais ou das acções seleccionadas. Como já aqui foi referido, vida e existência não têm de ser a matriz da vida e da existência narrada. O derradeiro elemento fundamental da narrativa biográfica e de escrita de vida, e o que mais nos importa, é o de que, à semelhança do jornalismo narrativo e da escrita de viagem, a forma, desde que não viole a regra de trabalhar apenas factos, depende unicamente do molde, ou dos moldes de diversas proveniências em fusão, a que o autor a submete. Por outras palavras, dois dos contribuintes nucleares da forma, estrutura textual e linguagem, são os escolhidos pelo escritor, que tanto os pode tomar da ficção literária, como do jornalismo, passando pelos géneros académicos.

Se, como tem vindo a ser aqui anotado, a conceptualização das formas narrativas de não – ficção criativa está cercada por uma tremenda instabilidade teórica e conceptual, o

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documentário não poderia, de modo algum, persistir como uma excepção. Pelo contrário, recortar o “documentário”, e somente como forma narrativa, deixando assim de fora as possibilidades de exercício, é aceitar a entrada num domínio de vasta criatividade e elevado empenhamento teórico, talvez porque discutimos o género artístico filme, o que faz com que sejam muitas as forças com contributo. Eitzen aflora esta vastidão tempestuosa, ao notar que “documentary has been variously defined through the years as "a dramatized presentation of man's relation to his institutional life," as "film with a message," as "the communication, not of imagined things, but of real things only," and as films which give up control of the events being filmed. The most famous definition, and still one of the most serviceable, is John Grierson's, "the creative treatment of actuality”. None of these definitions is completely satisfactory”. Por seu lado, Beattie procura chegar a um conceito mais estável, defendendo que “documentary concerns itself with representing the observable world, and to this end works with what [John] Grierson called the raw material of reality. The documentarian draws on past and present actuality — the world of social and historical experience — to construct an account of lives and events. Embedded within the account of physical reality is a claim or assertion at the centre of all non-fictional representation, namely, that a documentary depiction of the socio-historical world is factual and truthful”. Mas, talvez seja útil, nesta tentativa de conceptualização, ter em conta a posição de Rotha, num dos seus contributos fundadores para a identidade desta forma narrativa. Escreveu ele que "documentary defines not subject or style, but approach. It denies neither trained actors nor the advantages of staging. It justifies the use of every known technical artifice to gain its effect on the spectator....To the documentary director the appearance of things and people is only superficial. It is the meaning behind the thing and the significance underlying the person that occupy his attention....Documentary approach to cinema differs from that of story-film not in its disregard for craftsmanship, but in the purpose to which that craftsmanship is put. Documentary is a trade just as carpentry or pot-making. The pot-maker makes pots, and the documentarian documentaries."

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Por outro lado, talvez seja Grierson, outro dos fundadores da forma, a definir o documentário de um modo mais acutilante, ao escrever que “In documentary we deal with the actual, and in one sense with the real. But the really real, if I may use that phrase, is something deeper than that. The only reality which counts in the end is the interpretation which is profound”.

Ou seja, a forma narrativa depende da interpretação da realidade, da selecção que o autor faz do que observou, do que fixou com as suas máquinas, do que a partir daqui quer contar, e de que modos.

Isto, claro, desde que o autor do documentário tenha sempre presente, como qualquer outro autor de não – ficção criativa, o que Brault defende, quando escreve que “I don't know what truth is. Truth is something unattainable. We can't think we're creating truth with a camera. But what we can do, is reveal something to viewers that allows them to discover their own truth”.

Deste modo, quando identificamos os elementos essenciais do documentário como forma narrativa, estamos, para começar, a isolar a necessidade de uma estratégia e de uma estrutura de escrita e de alinhamento de imagens que permite contar da forma mais acertada para o autor uma história real que este último quer recuperar.

De facto, o centro do labor do documentarista na dimensão narrativa não é o de se submeter ao fio cronológico, às acções decisivas ou aos motivos declarados dos envolvidos nas acções, embora todas estas dimensões tenham de ser tidas em conta, mas o de narrar do modo que considera mais cativante e eficaz uma história real que quer partilhar. Assim, as técnicas e protocolos das formas narrativas da ficção em texto e em imagem podem, e devem quando se justifica, serem aplicadas, usadas e revolucionadas, especialmente se tivermos em conta as inúmeras possibilidades narrativas desencadeadas pela tecnologia recente.

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A EXIGUIDADE DAS CONVENÇÕES E A VIA PARA O CUME NARRATIVO (CONCLUSÃO PRECÁRIA)

As formas narrativas de não – ficção criativa estão submetidas a convenções, no sentido de que a sua conceptualização está cativa das fileiras académicas e profissionais que as investigam e pensam, mas, paradoxalmente, possuem uma gigantesca latitude de criação, o que por sua vez determina as inúmeras possibilidades de conceitos onde as tentamos encerrar, que é tão vasta quanto o que o autor queira que seja, quando a coloca ao serviço da narração de uma história. As convenções principais são as de que, primeiro, as formas narrativas de não – ficção servem para reproduzir histórias que aconteceram, que são um pedaço da realidade histórica ou contemporânea, mas, segundo, os autores que as tentam narrar não confundem o seu desejo de intensidade máxima de factualidade, com uma vontade utópica de alcançar a verdade, ou de serem iluminados por uma objectividade pura e total, que é inexistente. Ou seja, o trabalho de narrar não - ficção é sempre o de reproduzir o pedaço da realidade a que o autor conseguiu aceder, e que descodifica e reescreve a partir das suas referências pessoais. As fileiras académicas e profissionais conceptualizam as várias hipóteses de narrativa de não – ficção com o duplo objectivo de levantarem as suas fronteiras, e de utilizarem estas fronteiras como dimensão fundamental de identidade e como espaço demarcado de produção, chamando – lhes, à falta de termo melhor para a barreira criada, género ou JOSÉ VEGAR – NÃO FICÇÃO

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prática. A procura, e a reinvenção permanente, do conceito geram várias possibilidades de reflexão e conhecimento, especialmente se o destino marcado for o de entender até onde é possível ir narrativamente num texto de não – ficção criativa. No entanto, o conceito e os seus elementos fundamentais padecem de uma fraqueza indestrutível, a de quererem desenhar formas narrativas que são determinadas e construídas decisivamente pela natureza única de cada história investigada, e pelo arsenal narrativo singular de cada autor. De facto, é fundamental ter sempre em conta que o objectivo de um autor de não – ficção criativa é o de, como escrevi aqui, conseguir partilhar “tão realista e completa a história narrada como a história real, ao ponto de as duas serem a mesma”. Este objectivo, que é uma tarefa, incide não na recuperação e fixação integral da história na narrativa, embora o conhecimento profundo daquela seja condição do processo, mas antes na detecção da forma narrativa certeira para que o que é narrado tenha a mesma textura e densidade do que o que aconteceu. Assim sendo, é extremamente redutor, e é esta a falha nuclear dos conceitos e das discussões dominantes, sublinhar que a não – ficção criativa tem como elemento fundamental o recurso às formas narrativas da ficção literária. De facto, é redutor porque no campo do brilho e eficácia narrativa, não só as formas narrativas da ficção literária que têm um contributo para dar, dado que o mesmo acontece com as formas narrativas da série cinematográfica, do ensaio, do teatro, se tivermos em atenção os protocolos de construção de diálogo, ou da novela gráfica, e estas evocações são apenas as mais visíveis. Mas é principalmente redutor porque a forma narrativa da não – ficção criativa deve ser moldada decisivamente pela tentativa de narrar a história de um modo que a torne poderosa e única. O que isto implica, para o narrador, é que ele se liberte de todos os protocolos, e recorra a todos os modos narrativos que conheça ou se arrisque a utilizar, e encontre o melhor para contar a sua história, parágrafo a parágrafo, frame a frame, bloco a bloco.

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Uma Bibliografia de Referência

Tantas Histórias para Contar Quantas a Vida Gera

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A bibliografia que se partilha nas páginas seguintes é de referência, como já foi aqui denunciado. Por de referência designa - se um conjunto de obras que possa ser representativo de um território criativo, neste caso o da não – ficção. Assim, o critério fundamental é o da representatividade, o que exclui desde logo um exercício de medição de valor, por exemplo o de que as obras escolhidas são as melhores, e igualmente um de exaustividade, isto é o de incluir todas as obras de algum modo validadas como de topo. Os critérios de escolha foram os da observação de bibliografias referenciadas, o da consulta a especialistas, mas, de modo dominante, o da eleição do que fui vendo e lendo nas últimas décadas. A escolha, como irá ser descoberto de seguida, privilegia títulos em língua inglesa. Tal deve – se à escolha, discutível, de preferir sempre o texto em língua original, e a uma outra, ainda mais discutível, de as edições inglesas serem mais bonitas. O modo de arrumação escolhido foi o de por suporte de fixação e partilha dos textos, imagens, desenhos e sons. Os objectivos desta bibliografia de referência são os de contribuir para o encanto da descoberta, mas também da educação, dado que, a par do fazer, muito do que se pode aprender sobre narrativa, aprende – se com o labor dos melhores.

PLATAFORMAS VIRTUAIS O tráfico do trabalho de não – ficção é hoje executado de forma dominante nos vastos domínios da rede, aliás como quase todas as acções humanas. A pioneira do jornalismo literária, a revista The New Yorker, newyorker.com, hoje uma dama estabelecida mas ainda brilhante, disponibiliza a maior parte da sua produção, como também o seu gigantesco acervo.

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Mais restrita, mas com alguns conteúdos abertos, é a Granta, granta.com, que persiste em publicar, a par de boa ficção, escrita de viagens, jornalismo narrativo e biografia. The Browser, thebrowser.com, é um bom agregador do melhor que se publica online, e a Nieman Foundation, nieman.harvard.edu, é um bom local de histórias, no seu separador “storyboard”. Os vastos nós e fluxos da rede permitiram a fundação de inúmeros projectos, alguns dos quais centram – se na publicação de não – ficção criativa, em texto de modo predominante, mas com muitos contributos em imagem e som. Estão nesta fileira o The Atavist, magazine.atavist.com, o Narratively, narrative.ly/, o Long Form, longform.org, e o Long Reads, longreads.com. Sendo uma forma narrativa assente na imagem, o documentário fixa – se de modo vasto nas moradas digitais. De

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documentarywire.com, e o Documentary Network, documentary.net. Claramente, os serviços de streaming, como o Netflix e o Amazon, acolhem com carinho este tipo de trabalhos. Infelizmente, os vários nós virtuais de partilha albergam pouco os autores portugueses, e esta injustiça abate – se principalmente sobre aqueles que trabalham de modo predominante nos canais de televisão de sinal aberto, ou directamente para película. Um vasto conjunto dos referidos, como Cesário Borga, Cândida Pinto, Jacinto Godinho, Jorge Pelicano, Rui Araújo, Helder Mendes, José Álvaro de Morais, Miguel Gonçalves Mendes, Catarina Mourão ou Susana Sousa Dias, entre tantos outros, deve ser pesquisado em canais como o Youtube ou o Vimeo, ou no caso daqueles pertencentes às empresas de televisão, nos “sites” das referidas empresas.

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JORNAIS E REVISTAS A presença de textos de tipologia de não – ficção criativa não é de modo algum dominante nestes suportes, e, quando publicados, são a excepção. Para além das já referidas The New Yorker e Granta, devem ser tidos em conta o New York Times, o Guardian, que dá muita importância a narrativas geradas por infografia, a Atlantic Monthly, e a Harper´s. Recentemente surgiram vários projectos com grande cuidado gráfico, como o Avaunt, e existe uma iniciativa muito interessante criada em África, que é a Chimurenga.

NOVELAS GRÁFICAS Para os distraídos ainda uma arte ficcional assente em quadradinhos, a novela gráfica é hoje, no entanto, um meio maior de fixação de narrativas, algumas delas de não – ficção, dado o poder enorme que a imagem desenhada pode ter na recuperação e narração de uma história real. Art Spiegelman é um dos nomes a ter em conta, com “Maus”, cuja reedição comemorativa dos vinte e cinco anos está publicada como “The Complete Maus: A Survivor´s Tale”, que conta a experiências do Holocausto dos seus familiares, e também com “In the Shadows of No Towers”, que reflecte a sua experiência pessoal do atentado de 11 de Setembro. Também já um clássico é “Persepolis”, de Marjane Satrapi, um retrato da vida de uma adolescente iraniana durante os primeiros anos de vigência do regime religioso ortodoxo. Mais recentes são “The Photographer”, de Lefévre, Lemercier e Guibert, que conta a experiência de Lefévre como fotógrafo durante o conflito russo – afegão, e “Marzi, a Memoir”, de Marzena Sowa. O trabalho de Cyril Pedrosa, de ascendência portuguesa, deve ser seguido com atenção,

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especialmente “Portugal”.

LIVRO Manuais A utilidade destas publicações, que não são de mas sobre não – ficção criativa, é a de permitirem ao leitor a descoberta das reflexões e dos modos de fazer dos autores, sobre praticamente todas as dimensões das artes em que estão envolvidos. O mais recente é “Telling True Stories” (Mark Kramer e Wendy Call, Harvard), mas continuam válidos “The New New Journalism” (Robert S. Boynton, Vintage), que compila entrevistas com jornalistas literários, e “Gang Leader for a Day” (Sudhir Venkatesh, Allen Lane), a partilha de um sociólogo da história da sua investigação sobre um gang de Chicago. Sobre a vida do enviado especial, o seu trabalho, a sua solidão e a sua capacidade de descobrir uma boa história, há um livro único: “Once Upon a distant War” (William Prochnau, Vintage).

Antologias “The Art of Fact” (Kevin Kerrane, Scribner), é um bom começo, já que é uma antologia histórica que reúne textos jornalísticos americanos, de 1800 aos nossos dias. Estão lá alguns dos expoentes máximos da escrita de reportagem, que testemunharam a quase totalidade dos principais eventos históricos do século passado, e que foram precursores em alguns dos géneros que levaram o jornalismo mais longe, como o “novo jornalismo” e o “jornalismo literário”. Esta antologia tem três boas concorrentes, que contemplam textos fundamentais, na sua maior parte datados dos anos 80 e 90: “The Faber Book of Reportage” (John Carey, Faber and Faber), “The Best of Granta Reportage” (Granta Books) e “Literary Journalism” (Norman Sims, Ballantine Books). A eles, há que adicionar a antologia de Tom Wolfe, “The New Journalism”, (Picador), onde estão reunidos os principais textos dos seus companheiros de rota. Devem ainda ser referidos “The Best of Granta Travel” (editor Bill Buford, Granta), “Travel Writing 1700 – 1830: An Anthology” (editores Elizabeth Bohls, Ian Duncan,

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Oxford) e a mais completa antologia de um grande autor, George Orwell, “Seeing Things as They Are: Selected Journalism and Other Writings” (Penguin). De autores portugueses, a oferta é muito limitada. Apesar de tudo, há três bons exemplos, de períodos distintos: “Repórteres e Reportagens de Primeira página”, garante textos publicados entre 1901 e 1910. “Serviço de Reportagem” (Editorial Notícias), compila histórias dos anos 80 e 90. “Reportagem: uma antologia” (Assírio e Alvim), engloba vinte reportagens publicadas nos anos 90.

Jornalismo Narrativo Partindo do princípio seguro de que monstros sagrados da forma narrativa, como a “Ilíada” (Cotovia), a “Odisseia” (Cotovia), ambas assinadas pelo nome colectivo Homero, e a “História da Guerra do Peloponeso” (Gulbenkian), de Tucídides, foram lidos já há muito tempo, a referência à produção clássica deve centrar – se em “The Histories” (Penguin), de Herodotus. A arrumação dos títulos referidos não é uma provocação herege, nem um exercício de ignorância. Existindo nestes trechos de ficção, como também outros que a investigação histórica tenta descobrir serem de não – ficção, o que justifica a sua referência neste canto é como os autores narram aquilo que consideraram, ou souberam, ser real. Alguns séculos depois, em 1965, surge um outro marcador de ruptura, porque dá origem, institucionalmente, ao jornalismo literário. O título é “A Sangue Frio”, de Truman Capote (Livros do Brasil). No entanto, convém nunca esquecer que Capote teve vários e gloriosos percursores. Para além do já aqui referenciado Orwell, é fundamental ler Martha Gellhorn, que começou a cobrir guerras em Espanha, em 1936, e só se reformou depois da invasão do Panamá, especialmente “The Face of War”, Granta books, “A Face da Guerra”, Dom Quixote, como também “Hiroshima” (Antígona), de John Hersey e ainda “Dispatches” (Picador), de Michael Herr, este último contemporâneo de Capote. Como nos deixará deficientes ao mais alto nível ignorar a leitura de “Eichmann in Jerusalem”, de Hannah Arendt, publicado originalmente em 1963, na New Yorker, e que tem agora uma edição revista na Penguin.

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Outros percursores, noutros lados do mundo, foram Vasily Grossman, cujos escritos, sobre as campanhas do Exército Vermelho soviético na Segunda Guerra Mundial, foram recuperados muito recentemente em “A Writer at War” (Pimlico), e Stig Dagerman, autor do espantoso “German Autumn” (Quarter Encounters), registo da sua observação da Alemanha de 1946. A partir da década de 70 do século passado, o jornalismo contemporâneo captou vigorosamente o carinho dos leitores, o que deu origem a uma explosão editorial que não voltou a ser extinta. Alguns dos autores iniciais são Joseph Mitchell, cuja antologia dá pelo título de “Up in the Old Hotel” (Vintage), e o maior agitador de todos, Hunter S. Thompson, cujo título mais conhecido é “Hell´s Angels” (Ballantine, edição portuguesa Texto). Já nesta época andava por terras de África e da América Latina o polaco Ryszard Kapuscinsky, cuja escrita, no entanto, só foi descoberta nos anos 90 do século passado, transformando – o num dos maiores ícones da não – ficção criativa. O primeiro grande título de Kapuscinsky é “The Emperor” (Penguin), sobre a queda do último imperador da Etiópia, a que se seguiram “Mais Um Dia de Vida – Angola 1975” (Tinta da China), sobre a saída dos portugueses, e “Ébano” (Campo das Letras), que na versão original tem o título “The Shadow of The Sun: My African Life” (Penguin), onde o autor cria um fio narrativo contínuo para as suas experiências africanas. Já na última década do século passado surgiram alguns trabalhos memoráveis, como “Entre os vândalos” (Asa), de Bill Buford, sobre os hooligans ingleses no Mundial de futebol de 1986, “In the Footsteps of Mr.Kurtz” (Fourth State), de Michela Wrong, um retrato vivido dos últimos dias do Zaíre de Mobutu, e “Stasiland” (Granta), de Anna Funder, que retrata os primeiros tempos da então Alemanha do Leste, após a queda do Muro de Berlim. Saltando agora para a contemporaneidade que nos envolve, há que aceitar o traiçoeiro desafio de recortar de uma multidão de enorme qualidade de títulos de referência. Antevendo os ruidosos e justificados protestos dos leitores deste escrito, se estes vierem

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a existir, a opção mais segura é a da contenção. Assim, o mestre vivo do jornalismo narrativo, John McPhee, tem de ser referenciado, talvez através do seu último título “Uncommon Carriers” (Farrar, Strauss and Giroux), apenas porque contém a marca McPhee a um altíssimo nível, isto é a desocultação da densidade de histórias aparentemente banais, narradas por uma voz literária única. Numa anotação de referência, têm igualmente de estar “The Soul of a New Machine” (Back Bay), de Tracy Kidder, que traça o nascimento do micro – computador, “The Wild Trees: A Story of Passion and Daring” (Random House), de Richard Preston, dedicado a algumas das árvores mais altas do mundo e aos seus exploradores, e “We wish to inform you that tomorrow we will be killed with our families” (Picador), de Philip Gourevitch, que narra em pormenor o mais recente massacre colectivo no Ruanda. Ainda neste campo, o do jornalismo narrativo, seria redutor ignorar produções com matrizes mais complexas. Temos, antes do mais, autores que quando produzem não – ficção, geram livros de difícil catalogação, se é que esta deve existir. Estão neste campo V.S. Naipaul e W.G. Sebald, entre alguns outros. Temos, também, trabalhos que não seguem fielmente a cartilha do jornalismo narrativo, mas que juntam uma boa investigação com cuidado literário na forma. De entre os títulos que merecem anotação, temos “O Mundo é Plano” (Actual, de Thomas L. Friedman, uma notável história do impacto da globalização no mundo, “Outliers: The Story of Sucess” (Penguin), de Malcolm Gladwell, que procura identificar as características dos indivíduos de sucesso, “Freaknomics”(Penguin), de Steven D. Levitt e Stephen J. Dubner, uma curiosa digressão da investigação económica por circuitos que esta ciência costuma ignorar, e “The Looming Tower” (Penguin), de Lawrence Wright, que reconstrói a história dos ideólogos e autores do atentado do 11 de Setembro. A contrastar com abundância que temos vindo a acolher nestas páginas, a produção nacional é limitada, por razões que as editoras um dia terão a bondade de revelar.

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No entanto, podemos referir “O Movimento dos Capitães e o 25 de Abril”, de Cesário Borga, Avelino Rodrigues e Mário Cardoso, “Quem Matou Amílcar Cabral” (Relógio de Água) de José Pedro Castanheira, e “Os Primos da América” (Relógio de água), de José Ferreira Fernandes, “Levante – se o Réu” (Tinta da China), de Rui Cardoso Martins, e “Ilhas de Fogo” (ACEP), de Pedro Rosa Mendes. Em 2006, a editora Dom Quixote começou uma colecção de grande reportagem, e alguns bons títulos foram publicados, entre eles os de Ricardo Rodrigues “Bitcho Bravo”, de Ana Sofia Fonseca, “Barca Velha – Histórias de um Vinho”, e de Fernanda Câncio “Olhem para Mim”. Das safras mais recentes, destacam – se “À Rasca, Retrato de Uma Geração” (Planeta), de Ana Filipa Pinto, e “Longe do Mar” (FFMS), de Paulo Moura, que dá conta da sua viagem pela estrada Nacional 2. Como igualmente tem lugar de destaque “Os Rapazes dos Tanques” (Porto Editora), das velhas glórias que nunca se reformarão Adelino Gomes e Alfredo Cunha, autores de um “travelling” notável sobre a vida dos cavaleiros de Salgueiro Maia que fizeram frente ao único contingente militar salazarista que saiu à rua. Por último, não resistindo à soberba, menciono aqui o meu título “Serviços Secretos Portugueses – História e Poder da Espionagem Nacional” (Esfera dos Livros), onde tento e não consigo aplicar formas narrativas superiores. No entanto, neste sector do jornalismo narrativo nacional, os interessados em ler devem nunca esquecer que textos maravilhosos existem, exigem é trabalho e paciência no seu encontro. O que acontece é que há mais de um século se produz boa narrativa de não – ficção portuguesa, mas esta nunca passa das páginas dos jornais ou revistas onde é publicada, desaparecendo depois quase para sempre. Assim, a pesquisa tem de ser feita na Biblioteca Nacional, na Hemeroteca, ou nos arquivos dos jornais ou revistas, quando estes ainda existem. A não existência de um arquivo nacional de jornalismo narrativo e de investigação, que deveria ter sido levantado pelas empresas de media, é um crime contra o conhecimento

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e contra a leitura, porque enxota para o limbo eterno momentos fantásticos de literatura.

Escrita de Viagem O grande problema nas opções bibliográficas da escrita de viagem é o de que esta forma narrativa tem já séculos de acumulação, dado que, de algum modo, sempre acompanhou o viajante, sendo ele aventureiro, homem de Estado, membro de igreja, ou escritor. A partir do momento em que optei por colocar Heródoto no jornalismo narrativo, decisão pela qual jamais serei esquecido, por más razões, o tempo mais antigo fica aberto para “The Travels of Marco Polo”, de Marco Polo, de que existe uma edição recente da Penguin, e para “A Sentimental Journey Through France and Italy” (Penguin), de Laurence Sterne. Do começo do século 20 são “The Valleys of the Assassins” (Modern Library), de Freya Stark, que dá conta da sua errância no Médio Oriente, e “The Road to Oxiana” (CreateSpace), onde Robert Byron narra a sua viagem no Irão e no Afeganistão. Mais tarde, nos anos 50 do século passado, Norman Lewis publicou “Naples 44” (Eland), que de algum modo alargou o género, já que é uma crónica da vida naquela cidade italiana, no rescaldo da guerra, o que não era de modo algum a matriz dominante da escrita de viagens, e o grande Graham Greene assinou alguns livros de viagem, entre eles “Journey Without Maps” (Vintage). No período contemporâneo, “Na Patagónia” (Quetzal), de Bruce Chatwin, despertou novamente o interesse dos leitores por esta escrita, mas não deve ser esquecido o contributo de “The Great Railway Bazaar” (Penguin), de Paul Theroux. Também nos anos 80 do século passado, foi publicado um livro invulgar, uma meditação erudita em viagem no tempo e no espaço do Mediterrâneo. Chama – se “Breviário Mediterrânico” (Quetzal), de Predrag Matvejevic. Nos anos recentes, “Global Soul” (Bloomsbury), de Pico Iver, ou “Among The Russians” (Vintage), de Colin Thubron, corporizam a referência, como tantos outros, de Jonathan Raban a Jan Morris, também o poderiam fazer. Um apontamento para Daniel Metcalfe, com “Blue Dahlia, Black Gold” (Arrow), já

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que fixa uma viagem recente em Angola, e para Robert Macfarlane, que insiste em viajar a pé, como mostra “The Old Ways” (Penguin). Num ponto muito singular da escrita de viagens está Robert D. Kaplan, já que os seus textos são uma mistura muito curiosa de análise geopolítica, história, viagem e jornalismo narrativo. “The Ends of Earth: A Journey at the Dawn of the 21st Century”(Papermac) é o seu título mais conhecido. E num outro ponto remoto, o da produção sociológica resultante do terreno e com preocupação narrativa, situa – se “Street Corner Society” (Chicago University Press), de William Foote Whyte, que traduz a deambulação demorada do autor num bairro segregado de Boston. No universo de língua portuguesa será importante referir os cronistas e os jesuítas que se lançaram a partir do século, os apontamentos dos grandes aventureiros em África, não esquecendo Gago Coutinho, e também o que escreveram Orlando Ribeiro e Leite de Vasconcelos, entre outros. Uma boa introdução às nossas andanças no território africano é “Viagens de Exploração Terrestre dos Portugueses em África”, de Maria Emília Madeira Santos, um título cuja obscuridade em banca nos deve envergonhar. No entanto, a referência que devo trazer a página é “Vou Lá Visitar Pastores” (Cotovia), de Ruy Duarte Carvalho. É um texto sem fronteiras e inexpugnável a classificações, que usa uma viagem e uma permanência com o povo nómada Kuvale de Angola e da Namíbia, para contar de modo encantador uma história que não voltará a ser contada.

Biografia, Memórias e Escrita de Vida Continuando nos trilhos da heresia, entre eles o de trazer a ficção a este elenco, jamais me perdoaria se não referisse “Memórias de Adriano”, de Marguerite Yourcenar, pelo cuidado investigativo a que a autora se prestou, mas principalmente pelo seu virtuosismo narrativo. Recordando o ponto importante de que a biografia e a escrita de vida não assentam apenas em pessoas, encontro espaço para invocar três exemplos maiores, o da biografia

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de Mike Davis de Los Angeles, “City of Quartz” (Vintage), a reconstituição detalhada de um acto, a feitura de “Kind of Blue”, escrita por Ashley Kahn no título com o mesmo nome, e “The Plot: a biography of english acre” (Granta), de Madeleine Bunting, em que a autora biografa um pedaço de Inglaterra e a posse deste pela sua família. Devemos ainda ter espaço para uma escrita de vida colectiva, a do povo russo no período estalinista, bem contada por Orlando Figes e os seus colaboradores, em “The Whisperers” (Penguin). Um exemplo rigoroso de uma biografia segundo o método clássico, pesquisa exaustiva e narrativa polida, é “Albert Speer. His battle with truth” (Vintage), de Gitta Sereny. Quase o mesmo poder ser dito de “Architect of Global Jihad”(Columbia University Press), de Brynjar Lia, o retrato possível de um dos ideólogos contemporâneos do terrorismo islâmico, embora o poder narrativo seja menor. No sempre indefinido lugar entre a memória e a escrita de vida, encontramos alguns pontos iluminantes, como são “The File” (Harper Collins), de Timothy Garton Ash, onde é dada conta da vigilância a que o historiador foi submetido pela Stasi, “The Hare With Amber Eyes” (Vintage), em que o escultor Edmund de Wall conta a história da sua família através da posse das diminutas esculturas japonesas netsuke, e ainda “Everything is Happening” (Granta), o texto de Michael Jacobs que revela a sua obsessão com “Las Meninas”, de Velazquez. Mais fáceis de arrumar em memórias são “Don´t let´s go to the dogs tonight” (Picador), de Alexandra Fuller, descarnado na descrição de uma infância branca na altura Rodésia, e “Cop in the Hood” (Princeton University Press), um outro contributo de um sociólogo, Peter Moskos, que se alistou na polícia de Baltimore. Muito recentes, e muito louvados, são “H is for Hawk” (Jonathan Cape), que permite a Helen Macdonald revelar a sua relação com um falcão como pretexto para meditar sobre a perda e a morte, e “The Return” (Penguin-Viking), o texto de Hisham Matar onde este leva mais longe a procura de raízes e o mal causado pelo regime de Kadafi. A frente nacional é, curiosamente, muito forte neste campo, por força das operações realizadas nos últimos tempos, em que autores e editoras parecem unidos na celebração JOSÉ VEGAR – NÃO FICÇÃO

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desta forma narrativa. “Salazar” (Dom Quixote), de Filipe Ribeiro Menezes, mostra a utilidade e o retorno em capacidade narrativa de os nossos académicos trabalharem para instituições inglesas do meio, enquanto “Mário Soares – Uma Vida” (Esfera dos Livros) é mais uma marca da elegância literária de Joaquim Vieira. Também Cândida Pinto escreveu um texto interessante sobre Snu Abecassis, com o título “Snu e a Vida Privada com Sá Carneiro” (Dom Quixote). Nas memórias e escrita de vida tem de estar por direito próprio “Bilhete de Identidade” (Aletheia), de Maria Filomena Mónica, sem o qual se ganha menos conhecimento sobre quem somos nós os portugueses, e cabe igualmente “Era uma Vez uma Revolução” (Aletheia), de José Manuel Fernandes, o testemunho publicado mais honesto sobre a geração de revolucionários radicais que encontrou o seu momento de vida nos dias que sucederam ao 25 de Abril. Um exemplo curioso é “Servi a Pátria e Acreditei no Regime” (ACD Editores), do ex - inspector da Pide Rosa Casaco, porque é um raro testemunho de um apoiante de Salazar envolvido activamente na repressão, que deve ser completado com “Biografia de um Inspector da Pide” (Esfera dos Livros), de Irene Pimentel, assente no trabalho de Fernando Gouveia. Neste território, e talvez o mais próximo da escrita de vida, tem um lugar próprio “Papéis da Prisão”, de José Luandino Vieira, que a Caminho editou com orgulho e cuidado estético. Deixo para o rodapé deste campo dois sectores que importa referenciar. O primeiro é o da biografia barra memória rápida, pouco investigada e pouco cuidada ao nível literário, mas de testemunho rico, que geralmente assenta em histórias ou personagens muito contemporâneas, com grande poder mediático, como são os desportistas ou algumas operações policiais. Um bom exemplo é “Both Sides of the Fence: A Life Undercover” (Mainstream), de David Corbett. O segundo é o da escola de história contemporânea anglo – saxónica, que tem feito um JOSÉ VEGAR – NÃO FICÇÃO

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esforço notável para produzir obras que mantêm os protocolos e o rigor da sua disciplina, mas tenta assentar o fio narrativo em personagens, e procura reproduzir uma escrita literária, no sentido formal da classificação. De entre os inúmeros títulos que poderiam estar aqui, realço “Agents of Empire” (Penguin), de Noel Malcolm. Curiosamente, alguns académicos portugueses, de História, mas também de Antropologia, parecem, nos últimos tempos, ter compreendido que é possível um compromisso entre o rigor científico e o texto literário. Os referidos académicos estão ainda a anos – luz da libertação de protocolos feita pelos seus pares saxónicos, mas há alguns exemplos a assinalar, como “Ganchos, Tachos e Biscates” (Ambar), de José Machado Pais, “Vidas em Jogo” (ICS), de Sónia Silva, e “Regressos Quase Perfeitos” (Tinta da China), de Maria José Lobo Antunes.

Vídeo Completando a informação deixada em “plataformas digitais”, colo aqui algumas referências que podem ser encontradas em DVD. Nos anos 50 do século passado, Alain Resnais mostrou, com “Night and Fog”, que o mal, corporizado nos campos de concentração nazis, ainda não tinha sido mostrado em todas as dimensões dos homens e da vida que consegue tomar. Duas décadas depois, Frederick Wiseman começou um longo, e ainda não terminado, percurso feito de tempo paciente e muita observação, sobre como narrar a realidade comum. “Welfare” é umas das suas tentativas. Dez anos depois, Claude Lanzmann alargaria o trabalho de Resnais, procurando contar o Holocausto em “Shoah”, sensivelmente na mesma altura em que Chris Marker editava “Sans Soleil”, em torno da memória e dos homens. Outro documentarista ocupado com revelar o que levou a que alguns acontecimentos do

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mundo tivessem acontecido é Errol Morris, que, entre outras dedicações, contou em “The Fog of War”, o sistema mental de McNamara, o secretário da Defesa americano responsável pela maior parte das decisões relacionadas com a guerra do Vietname. Já no tempo contemporâneo estão muitos grandiosos documentaristas no terreno, entre eles Joshua Oppenheimer, autor de “O Acto de Matar”, que conta a repressão e execução crua, brutal e nunca punida dos indonésios aos seus concidadãos comunistas, e Alex Gibney, que, em “Taxi to the Dark Side” descobriu num motorista de táxi o melhor guia para contar a “guerra contra o terror” dos americanos. No mundo nacional também se tem estado a narrar bem e relativamente muito, como provam “É na Terra Não é na Lua”, de Gonçalo Tocha, a “A Toca do Lobo”, de Catarina Mourão, ou “48”, de Susana de Sousa Dias. “A Guerra”, de Joaquim Furtado, é um monumental trabalho sobre a guerra colonial portuguesa.

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DUAS HISTÓRIAS

A demanda interminável de recolher histórias reais partilhadas em narrativas elegantes tem – me levado aos lugares mais curiosos e ao encontro de pessoas singulares. Este é aliás o melhor que o ofício permite, um passaporte aceite universalmente, ou quase, assinado em nome de um candidato oficializado como buscador e registador de histórias, para andar nos lugares e na companhia encantadora do que de mais fascinante aconteceu no mundo. A história #1é sobre a conspiração de segredo e a manufactura artesanal que rodeou a feitura do “Flash”, de Herberto Hélder, um dos mais sagrados e valiosos livros dos bibliófilos portugueses. Soube da história por um deles, e lá fui descobrindo os seus recantos, especialmente devido à generosidade, sempre encapotada por uma rudeza de trato, do Victor Silva Tavares, um dos conspiradores, e que deixou, com muito cuidadinho, veja lá, o seu exemplar ser fotografado pelo meu camarada Paulo Alexandrino. Dos recantos da história o que trouxe foi uma história de veneradores de livros, mas, principalmente, um dos últimos episódios do labor dos mestres tipógrafos artesanais, infelizmente esquecidos.

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A história #2 é uma biografia limitada do Ruy Duarte Carvalho, essa distinta personagem do mundo, que começou a caminhar em África como português, descobriu – se angolano, e escreveu algumas das melhores páginas na nossa língua. O Ruy não gostava de contactos com estranhos, e ainda menos de falar dele, e foi uma complicação para me permitir um encontro. O espaço onde este aconteceu não podia ser mais indicado, um gabinete abandonado e perdido de uma ala da Universidade de Coimbra. Acabou por ser uma conversa que encetou uma amizade que eu queria. Para os destinatários principais deste papel, aqueles com curiosidade mas pouco conhecimento das formas narrativas que temos vindo a tratar, chamo a atenção para alguns aspectos importantes. O primeiro é o de que quando eu parti para a investigação das histórias tinha já um conhecimento grande e antigo dos temas, ou seja, compreendia que sem tempo e dedicação não é possível penetrar todas as dimensões que fazem parte de uma realidade. O segundo é que tive bastante tempo para escrever, parar e reescrever. Um texto nunca tem a narrativa que merece, mas pelo menos devemos tentar o melhor que consigamos a sua melhoria. Finalmente, os textos foram publicados em revista e jornal portugueses, o que infelizmente me impediu de incorporar todas as dimensões e texturas que descobri.

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#1

Coisa secreta Um encontro de apaixonados entre um editor obstinado e um mestre tipógrafo no longínquo ano de 1980 provocou a criação de um livro “geneticamente vocacionado ao raro”. “Flash”, de Herberto Hélder, foi concebido na sombra, distribuído “em furiosa clandestinidade” pelo seu autor, e, ainda hoje, tê-lo nas mãos e nos olhos é considerado um privilégio de eleitos, tornando-o num dos objectos mais míticos da literatura portuguesa contemporânea

Num dia esquecido de 1973, certamente pela tarde, Vítor Silva Tavares, alma e cérebro da editora de livros Etc, entrou no número treze da Calçada de São Francisco, ali à Baixa, em Lisboa. “Nem queria acreditar no que via, e o que via era o que eu estava à procura. Entrar naquele buraco escuro era como entrar na oficina de Gutemberg”, relembra o editor. Na penumbra da oficina de impressão, impregnada pelo cheiro das tintas do ofício, no meio de velhíssimas máquinas de impressão, estava um homem pequeno, magro, já idoso, com o pouco cabelo oleoso cuidadosamente penteado, óculos quadrados, e a “inevitável batinha azul dos artesãos tipógrafos”. Numa “mezzanine” estreita, ao fundo da oficina, envolta na escuridão, um outro homem, enorme em área e comprimento, também ele bastante idoso, sentado a uma secretária, mirava com curiosidade o visitante. Vítor Silva Tavares acabava de conhecer o mestre tipógrafo José Apolinário Ramos, vestindo “a sua batinha azul”, e, sentado na secretária, Benamor Palma, a quem o poeta Luiz Pacheco chamava o Palma Cavalão, devido à sua envergadura física, o dono da tipografia, de seu nome Ideal. Relembrando “esse encontro iluminado”, Vitor Silva Tavares, passa a mão pela barba e pelo cabelo branco, e um sorriso matreiro ocupa-lhe o rosto magro, ao mesmo tempo que os seus olhos brilham: “Os dois velhinhos nem queriam acreditar no que eu lhes estava a propor”. Para os dois artesãos tipógrafos, representantes da última geração da aristocracia operária lisbonense, a proposta de Vitor Silva Tavares era a tentação do diabo. Quando JOSÉ VEGAR – NÃO FICÇÃO

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ele lhes entrou na oficina, Palma e Apolinário Ramos estavam juntos há mais de 70 anos. Os dois tinham começado no ofício de tipógrafos ainda miúdos de calções, com a cabeça nas ruas e nas brincadeiras. Apolinário Ramos tinha entrado para o oficio na Imprensa Lucas, no Bairro Alto. Ao mesmo tempo, Palma aprendia com o seu progenitor, também ele mestre da “imprimissão”, como na altura se dizia . Pouco tempo depois, o pai do Palma comprou a Ideal, que tinha um historial de tipografia nobre, chegando a ser uma das casas impressoras da família real, no tempo de D.Luís. Foi ali, na Calçada de S.Francisco, que Palma e Apolinário Ramos se tornaram mestres da composição manual, desdenhando profundamente a impressão mecânica, que se impôs nos anos 60 em Portugal. No entanto, após as décadas gloriosas de 50 e 60, quando Brito Camacho e Raul de Carvalho eram clientes fiéis, uma altura em que havia sempre “mais de vinte livros para imprimir”, como disse Apolinário Ramos ao “Diário de Lisboa”, em 1981, a Ideal dos anos 70 estava tão velha, desiludida e cansada como os seus dois artesãos. Já só imprimiam cartões-de-visita, envelopes, cabeçalhos de papel de firmas. Vitor Silva Tavares queria fazer livros, a chamada “composição em cheio” porque ocupa “a mancha toda da folha”. Os dois mestres mostraram-se cépticos, desinteressados, “isso é uma canseira, senhor Vitor”. Mas o editor, para quem um livro feito á mão é coisa sagrada, não desistiu. “Tive que gastar o meu latim todo. Mas no fim lá consegui que os velhinhos se entusiasmassem em voltar a fazer livros”. Vitor Silva Tavares começou a perder dias inteiros no buraco da S.Francisco, cada vez mais maravilhado com a arte que partilhava. “Imprimissou” ali muitos dos seus autores, e também poetas de outras épocas, como Gomes Leal. O lento, e para ele maravilhoso, processo da impressão manual levava-o a partilhar o talento de Apolinário Ramos com todos os seus amigos poetas e escritores, nas tertúlias diárias que realizavam. No entender de Silva Tavares, terá sido essa a razão que levou Herberto Hélder a abordá-lo numa tarde, no primeiro trimestre de 1980, certamente à mesa de um dos cafés que frequentavam. O poeta não só conhecia a fama de Apolinário Ramos, como a experimentara pessoalmente. O seu poema “O corpo, o luxo, a obra” tinha sido impresso, em 1978, na Ideal, na colecção “Contraponto” da Etc. No entanto, na altura da conversa, já Herberto Hélder tinha iniciado, com “Photomatom e Vox”, uma colaboração com a editora Assírio&Alvim, que se mantém até hoje. Mas motivos pessoais, a fama de Apolinário Ramos, e “certamente a questão do dinheirinho”, recorda Silva Tavares, terão levado Herberto a perguntar ao editor: “olha lá, quanto é que me

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custará fazer uma coisinha especial no Apolinário Ramos?” Era o começo da “coisa secreta”, como lhe chama Vítor Silva Tavares. Naqueles meses iniciais de 1980, já Herberto Hélder era “o Herberto”, nome sempre referido com um misto de veneração interminável e estranha reverência por aqueles que o lêem e são cúmplices da maneira de estar no mundo do poeta, que alia uma produção poética de excepção a um total silêncio e ruptura com tudo o que seja exterior a família e amigos. O facto de o seu percurso estar classificado como “segredo de Estado” por aqueles que o conhecem, não impede que se saibam algumas histórias curiosas do mesmo. Herberto Hélder Luís Bernardes de Oliveira nasceu em 23 de Novembro de 1930, no Funchal, Madeira. O antigo sétimo ano dos Liceus foi concluído em Lisboa, a que se seguiu a ida para a Universidade de Coimbra, primeiro para Direito, em 1948, depois para Filologia Românica, em 1949. Em Coimbra, vive na república “Palácio da Loucura”, envolve-se profundamente na vida boémia estudantil, e escreve poesia, chegando a publicar algum do seu trabalho. Em 1952, regressa a Lisboa, para trabalhar na Caixa Geral de Depósitos, o primeiro dos muitos empregos que teve. Continua a escrever e a publicar, ainda irregularmente. Em 1955, está já completamente integrado no meio intelectual lisboeta, que circulava entre os cafés Gelo e Montecarlo, e onde pontificavam Mário Cesariny, Luiz Pacheco, Vítor Silva Tavares, Carlos de Oliveira, de quem foi grande amigo, e Ernesto Sampaio, entre muitos outros. Em 1958, publica o primeiro livro “O amor em visita”, casa pela primeira vez, e o contacto com o meio intelectual leva-o a ser contaminado pelo vírus da política. Em 1959, Herberto está com os conspiradores da Sé, que tinham organizado uma revolução para derrubar Salazar. Quem o revela é Maria Eugénia Varela Gomes, em “Contra ventos e marés”, as suas memórias, recentemente publicadas. Maria Eugénia conta que o poeta não estava na Sé, mas sim numa das casas onde estavam reunidos os conspiradores, preparados para sair para a rua, quando a revolta eclodisse em Lisboa. Na noite de 11 para 12 de Março, quando supostamente se daria o golpe, Maria Eugénia está na mesma casa de Herberto. Conta a velha oposicionista: “...O entusiasmo era imenso. Eu lembro-me da Sacuntala Miranda a cantar canções revolucionárias e do JOSÉ VEGAR – NÃO FICÇÃO

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Herberto Hélder a um canto, com ar de gozo, dizer a certa altura (...):”Muito bonito. E amanhã de manhã vêm os varredores da rua e varrem os cadáveres de nós todos”. Ficou tudo com uma cara... Eu tive um ataque de riso que não imagina”. A revolta, como se sabe, abortou antes mesmo de eclodir, e Herberto parte para a Europa. Durante um ano, vive em França, Bélgica, Holanda e Dinamarca, sobrevivendo de empregos indiferenciados. Em 1960, está de novo em Lisboa, e consegue emprego nas bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, viajando pelo Ribatejo e Baixo alentejo. É já um mito, como poeta e personalidade, quando publica, em 1963, “Os Passos em Volta”. A partir de 1964, escreve mais intensamente, e publica com mais regularidade, tendo uma série de empregos relacionados com a edição e o jornalismo. Em 1969, casa pela segunda vez, e tem um segundo filho, Daniel. Entre 1971 e 72, está em Luanda, onde faz reportagens para a revista “Notícias”. Ventura Martins, seu colega de redacção, recorda, num depoimento prestado ao Jornal de Letras, em 1994, que Herberto, como Pessoa, escrevia à noite, quando ficava sozinho perante a máquina de escrever. É em Luanda que conhece Olga, a mulher com que vive até hoje. Em 1973, continua a trabalhar para a”Notícias”, mas já na delegação de Lisboa, onde chega a fazer uma reportagem sobre um jogo de futebol Benfica-Sporting, a que deu o título de “uma ida ao campo”. Em 1979, publica “Photomaton&Vox”, considerado um dos seus livros mais importantes, na Assírio&Alvim. A relação com a editora vai permitir-lhe dedicar-se por inteiro à poesia, já que passa a receber desta uma avença mensal. É assim que se inicia uma nova etapa da sua vida, que se mantém até hoje. A produção torna-se mais abundante, intercalada com as cartas regulares aos amigos, e com as tertúlias quase diárias, especialmente no café “Águia de Ouro”, nas Escadinhas do Duque, em Lisboa. Nestas tertúlias, segundo amigos mais imprudentes, revela-se Herberto. Ernesto Sampaio escreveu que ele é “neurótico, agradável, mas distante devido à ironia”. João César Monteiro contou que ele, à mesa do café, “de vez em quando soltava umas que iluminavam as tardes”. E Baptista-Bastos, ainda menos JOSÉ VEGAR – NÃO FICÇÃO

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discreto, deixou escapar que o poeta gosta de “realizar as coisas em surdina” e trocar confidências sobre “mulheres devagarosas e vinhos remotissimos”. O trabalho poético de Herberto Hélder, que se alimenta de referências singulares partilhadas numa linguagem ainda mais rara, é objecto contínuo do estudo de ensaístas e académicos. O poeta Fernando Pinto do Amaral aponta que o poeta tem “um poder criador que soube organizar um universo inconfundível e servido por uma transbordante energia verbal”. Num depoimento ao já referido “JL”, Manuel Hermínio Monteiro, falecido recentemente, seu amigo e editor na Assirio, recorre a uma imagem particularmente bela: “ele vai ali e é bom a gente saber que é uma máquina alquímica de transformação do quotidiano em ouro”. Curiosamente, é o próprio Herberto quem melhor cartografa o seu trabalho. Numa acção surpreendente, publica, em 2002, na revista “Inimigo Rumor”, uma auto entrevista, onde condensa, de modo cristalino, o seu lugar no mundo e na poesia. Desvenda que “escreve-se um poema devido à suspeita de que enquanto o escrevemos algo vai acontecer, uma coisa formidável, algo que nos transformará, que transformará tudo. Como na infância, quando se fica à porta de um quarto obscuro e vazio”. Escassos parágrafos depois, Herberto reforça esta quimera, ao escrever que “(...) a suspeita apenas de que nos aguarda uma espécie de graça reticente, um dom reticente. Ou contempla-se um rosto, alguém que se ama, um ser imediato: ou então um rosto desconhecido, defendido. Pensamos: é uma vida nova, uma força nova e profunda, é uma paisagem misteriosa, profunda e nova que se relaciona intimamente connosco: vai revelar-se”. E, mais à frente ainda na auto-entrevista, fixa definitivamente o seu território, ao defender que “ou actuamos nas zonas do quotidiano de onde não foi afugentado o maravilhoso ou existem outras zonas, um quotidiano de maravilha, e então o poema é um objecto carregado de poderes magníficos, terríficos; posto no sítio certo, no instante certo, segundo a regra certa, promove uma desordem e uma ordem que situam o mundo num ponto extremo: o mundo acaba e começa”. No fundo, segundo o poeta, todo o seu labor persegue “o poder de decompor e recompor a palavra do mundo, quer dizer: a realidade, embora não saibamos do que se trata, isto: poder e realidade”. É de um homem acossado por objectivos tão ambiciosos que Vítor Silva Tavares

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recebe, naquela tarde do fim de 1979, a missão de fazer “a coisa secreta”. Hoje, com a feitura do “Flash” perto de atingir um quarto de século, Silva Tavares continua a ter bem presentes as razões da conjura. Segundo ele, Herberto procurava uma “satisfação íntima”, passando “um manuscrito à galáxia de Gutemberg”, isto é à sua impressão, mas com o “encanto” de o texto não se destinar “às livrarias ou aos jornais”, mas sim a alguns leitores escolhidos,“defendendoo assim da exposição à luz, já que as coisas mais belas são as que se resguardam”. No fundo, acrescenta o editor, tratava-se de fazer um livro “geneticamente vocacionado ao raro”, não esquecendo que a edição de autor era também “um luxo sujeito à precariedade do porta-moedas”. Com o manuscrito na mão, Silva Tavares lá voltou à oficina escura da Calçada de S.Francisco, feliz por, mais uma vez, poder usufruir da arte de José Apolinário Ramos. Na Ideal, a rotina era rígida e antiquada. Pegava-se às 8 horas da manhã, das 12h 30 às 13 horas era a hora do almoço, e a jorna era concluída às 17 horas. Apolinário Ramos não facilitava um milímetro, bem pelo contrário. Era tão rigoroso no seu mister, como Herberto nos seus textos. A complicada, esotérica e fechada arte da imprimissão manual não permitia qualquer cedência, especialmente ao tempo. “Quanto a esse, nem sequer se pensava. O tempo era o justo, e acabou-se, porque ele é sempre necessário para qualquer arte, já que estas exigem precisão e paciência”, explica Silva Tavares. Quando uma manhã, não exactamente às 8 horas, Silva Tavares chegou à Ideal para iniciar a impressão do “Flash”, foi direito às matrizes, aos caracteres, para escolher o tipo de letra em que o poema ia ser impresso. Estes continuavam como sempre arrumados no armário a um canto conforme a ordem original: por família de letras, as maiúsculas em cima, daí a caixa alta, e as minúsculas em baixo, dai a caixa baixa. O primeiro passo foi escolher o tipo de letra, “aquele que mais se adequasse ao texto que ia ser impresso”. Para o “Flash”, escolheu-se o tipo Elzevir, tamanho 12. Apolinário Ramos, que não gostava de encurtar caminhos, começou, como sempre, por estudar “a coisa”, isto é o texto que o desafiava. No caso do “Flash”, estava perante um poema de 16 páginas, mais uma de dedicatória, e outra final, com a ficha técnica. A

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regra de composição do tipógrafo foi a de estabelecer, como era seu hábito, a linha de simetria pelo verso mais longo, eliminando assim “desertos” na mancha de qualquer uma das futuras páginas. Depois, estabeleceu a “medida da mancha”, o espaço que o texto iria ocupar em cada uma das páginas, através do estudo do próprio original, a partir do tamanho dos versos e das passagens de página para página, entre outros pormenores. Feito isto, com o passar dos dias, começou o incrível processo da composição manual. Cada caracter, ou matriz, era um quase invisível pormenor de metal assente numa lâmina do mesmo material, mais fina, para usar um termo de comparação, que as lâminas de barbear antigas. Para os espaços, as vírgulas, pontos e outros sinais existiam também lâminas. Significa isto que a cada letra corresponde uma lâmina, juntas conforme as palavras do poema, numa fila, assente numa chapa, por sua vez fixada na máquina, e alinhadas por uma régua de metal com ângulo recto, o chamado Componedor, de composição. Contas feitas rapidamente, a uma linha do poema corresponderam dezenas de lâminas, e para fazer a mancha total de uma página, foram exigidas centenas de matrizes. Depois de alinhadas as palhetas de metal, os caracteres, foi também necessário ser rigoroso nos espaços entre entre letras, e entre linhas, os chamados quadratinos, medidos pela regreta. Na composição, foi ainda necessário calibrar harmoniosamente o espaço de uma linha comum, com o Curandel, o sítio onde se introduziu a capitular, e os verseis, as primeiras maiúsculas de uma frase. O “Flash” exigiu ainda um esforço suplementar, já que o manuscrito era acompanhado por um desenho de Cruzeiro Seixas, preto e azul, com pormenores vermelhos. Apolinário Ramos usou a antiquada técnica da reprodução a zinco, em que a cada cor correspondia uma chapa, fixada em madeira, e onde, para respeitar fielmente o original, os tons eram feitos à mão, misturando pitadinhas das tintas litográficas. Silva Tavares não tem reservas em partilhar o que sentiu naqueles momentos: “papel, metal, madeira. Era alquimia. Eu fazia parte de uma circunstância anacrónica, mas vivia com a palpitação de ver um artista tipógrafo a criar”. Feitas todas as medições, as centenas de lâminas da primeira página do futuro “Flash” foram atadas com cordel ensebado, bem justo, e colocadas numa chapa, onde toda a JOSÉ VEGAR – NÃO FICÇÃO

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composição foi apertada por orelhas. O conjunto foi então colocado no prelo manual, onde o rolo compressor, fixou, à força de braço, a tinta numa página humedecida, gerando a parte do poema correspondente a uma página, criada pela mancha de caracteres metálicos. Depois de um exame rigoroso, em busca de “gralhas”, a página foi colocada na máquina de impressão, sendo que devido ao reduzido tamanho do tabuleiro, o poema foi sendo impresso “in quatro”, isto é duas páginas de um lado, duas páginas do outro. As primeiras quatro páginas do poema, como todas as outras, foram impressas em papel manteigueiro, ou papel custaneiro, do mais rasca que há, usado exactamente, em outros tempos, para embrulhar gordura. O editor da Etc tinha os seus contactos para obter resmas deste papel, e fez vários livros com ele. “Mais uma vez, era barato, e dá-nos a ilusão de fazer uma coisa especial, já que, com um poema, se está a enobrecer um papel desprezado”, revela. A partir do fim de Abril, com a lentidão que a obra exigiu, as 18 páginas do primeiro exemplar do “Flash” foram tornando-se reais. Quando a impressão deste primeiro livro foi dada por terminada, as páginas foram cosidas por uma máquina de linha, accionada à mão, existente na Ideal. Silva Tavares diz que deu o “nózinho final” no cordel do primeiro exemplar. E, assim, uma bela tarde de Maio, Victor Silva Tavares tinha na mão o poema que começa assim: “Nenhum corpo é como esse, mergulhador, coroado de puros volumes de água/Nenhuma busca tão funda, a tal pressão, como pesa na água uma ilha fria, a raiz de uma ilha”. Entre Abril e Junho de 1980, foram impressos, com a arte acima grosseiramente descrita, 250 exemplares do “Flash”, que não terão custado mais de 20 contos. Silva Tavares levou ele próprio o “embrulho” a Herberto, que o esperava no café Montecarlo, situado onde é hoje a Zara da avenida Fontes Pereira de Melo. “O Herberto não disse nada, não era preciso”, garante o homem da Etc. O “Flash” foi um dos últimos livros feitos na Ideal, um dos derradeiros concebidos por “um aristocrata da imprimissão”, como defende Silva Tavares. Escassos anos depois, o Palma morreu. Apolinário Ramos continuou ainda durante um tempo a ir á Ideal, e passar parte da noite na biblioteca da Voz do Operário, de que era responsável, mas

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morreu quatro anos depois. Não deixou descendentes. As máquinas da impressão manual, os caracteres em metal, os arquivos da Ideal, tudo foi para o lixo, como comprova um rápido inquérito ao novo proprietário da tipografia. Victor Silva Tavares continua, como ele próprio diz, “na resistência”, a fazer livros, mas já desistiu de procurar oficinas manuais. Herberto Hélder é hoje um mito de extraordinária dimensão, que continua a escrever. O “Flash” não desapareceu na penumbra, pelo contrário. O facto de Herberto, por razões que só ele conhece, ter oferecido apenas uns escassos exemplares dos 250 feitos, fez com que o livro seja um dos mais cobiçados e sonhados pelos leitores e bibliófilos em todo o mundo. Um verdadeiro tesouro raras vezes alcançado. No entanto, o mais importante talvez seja que todo aquele que folheia um exemplar do “Flash”, encontra na última página uma inscrição que é o testemunho de um acto de uma nobreza desaparecida: “O folheto “Flash”, edição de autor, fora do mercado, foi composto manualmente, em caracteres ELZEVIR corpo 12, pelo artista-tipógrafo José Apolinário Ramos, e impresso na Tipografia Ideal, Calçada de S.Francisco, 13, em Lisboa, durante o mês de Junho de 1980. “Hors-texte” de Cruzeiro Seixas. Tiragem de 250 exemplares”.

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#2 O CONTADOR RELUTANTE Temporariamente residente em Portugal sem que quase ninguém dê por ele, exilado num escuro, anónimo, poeirento e vazio gabinete do edifício de Antropologia da velha universidade de Coimbra, está um angolano que teria muitas histórias fantásticas para contar, se tal fosse a sua vontade. Infelizmente, ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, é mais fácil encontrar Ruy Duarte de Carvalho num labirintico e decadente imóvel da universidade de Coimbra do que lhe arrancar alguma coisa palpável sobre os seus 50 anos de filho de colonos que lutou pela liberdade da sua pátria africana, a esperança “numa ideia de Angola” que o mantém vivo, a poesia hermética, a ficção que nos traz mundos pouco habituais, ou a investigação antropológica no sudoeste angolano, de que resultou um dos mais belos livros de aventuras da literatura portuguesa dos últimos anos. Para se chegar a Ruy Duarte de Carvalho entra-se pela enorme porta de madeira do departamento de antropologia, inquire-se junto das quatro funcionárias que tagarelam junto ao aquecedor eléctrico, admiram-se de passagem sequências enormes de belos azulejos com motivos azuis que decoram as paredes das escadas, ultrapassa-se um enorme, largo e escuro corredor, abre-se a porta onde está escrito “Antropometrista gab 318” e encontra-se uma figura alta, elegante, magra, com uma ligeira barriga, presumivelmente construída pela cerveja angolana, uma barba branca cuidadosamente aparada, a compensar alguma calvice na região frontal do crâneo, mas a condizer com uns óculos de aros redondos. A figura veste de preto, com um bom gosto ascético, e vêse que está em casa neste cenário despojado. Ela e o espaço parecem ter sido feitos um para o outro. Talvez seja a luz escassa, a velha cadeira de madeira, ou o silêncio que predispõe para ouvir histórias de uma longitude longinqua, pausadas por fumaças saídas

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do cachimbo do contador. A verdade é que, seja por que motivo for, o gabinete do antropometrista é um cenário único. Um pouco semelhante aos gabinetes clínicos dos velhos hospitais públicos portugueses, depois do médico libertar boas notícias. Pena é que nada disto interfira com o homem quando dele se querem revelações, e que o percurso para as conseguir seja ainda mais sinuoso que os corredores da universitas. Ruy Duarte de Carvalho tem a sua alma e o seu percurso protegidos por coletes à prova de curiosidade, seja esta de leitor, ou de profissional. A sua delicadeza, o seu sentido de humor apuradissimo, a sua capacidade de encantar com histórias, até a sua camaradagem, que se percebem quando está envolvido numa conversa sem consequências, desaparecem quando o diálogo não é para ser só um momento a dois. As barreiras com que se protege são várias: Há primeiro o autor “snob” que defende estar tudo nos seus livros, não admitindo a importância de esclarecer pormenores ou fornecer algumas pistas sobre as origens das suas narrativas. Há, a par e passo, o intelectual cosmopolita e simultaneamente periférico que, fazendo uso de todo o arsenal linguístico que possui, à base de conceitos teóricos e categorias cientifícas, consegue responder a inúmeras perguntas sem nunca mostrar o que pensa. E, há igualmente o lutador pela liberdade do seu continente, em permanente descoincidência de rumo com o poder, que sabe que em África as palavras ainda têm muito peso. Ruy Duarte de Carvalho vigia-se a si próprio, e é muito disciplinado nesse exercício. O preço são os cigarros Camel que desaparecem velozmente, e o cachimbo trincado. No entanto, é possível, mesmo assim, contar com ele para descrever pedaços de um mundo a que muito poucos conseguem pertencer. Ruy Duarte de Carvalho nasceu em 1941, nas terras do Sul de angola, perto de Moçamedes e do deserto do Namibe. Os pais eram portugueses, e viveram sempre relacionados com a terra, tendo o pai ocupado a posição de regente agrícola. “Razões da cabeça e do coração, que às vezes não são as mesmas”, como ele próprio diz, levaram cedo o jovem Ruy, então com 18 anos, a estar inequivocamente do lado “dos angolanos, dos independentistas e dos africanos”. Racionalmente, diz que a vida o colocou do lado dos que estavam a ser oprimidos. Emotivamente, aquilo a que chama a “teoria do arrepio”desfez-lhe todas as dúvidas. “Quando um jovem de 18 anos se arrepia ao ler certos poemas, o seu destino está determinado. Eu tinha uma alma angolana”. Viriato da Cruz e Aires de Almeida Santos foram os poetas que o puseram no JOSÉ VEGAR – NÃO FICÇÃO

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caminho.Acompanhou o MPLA, nunca se arrependeu da sua escolha. “Sou angolano. É a minha casa. Vou lá ver se a luz está apagada”. Para ele é límpido, tudo “corresponde a uma fidelidade a determinadas referências”. No entanto, hoje como ontem, a sua alma não o cega. Na sua casa na Maianga, um dos bairros mais carismáticos de Luanda, na cátedra de Antropologia da universidade da capital do seu país, ou nas inúmeras viagens que faz, sabe que o sonho vai sendo destruído por uma terrível realidade de guerra, fome, destruição, para indicar só alguns chavões mediáticos que não deixam de se aplicar com propriedade ao dia a dia angolano. Diz que a tristeza se gere não perdendo de vista “os verdadeiros problemas angolanos”, mantendo uma permanente “atitude muito crítica” e fazendo recurso de “uma grande ironia”. Acrescenta, com ardor na voz, que o que se passa em Angola é igual ao que se passa no Congo ou na Serra Leoa, correspondendo a “uma sequela de um processo de ocidentalização que se mantém”. Para ele, Angola debate-se com a falta de alternativas políticas e económicas, mas não é isso que o faz desistir “de uma hipótese de Angola sobreviver como país”. Confidencia que este combate está todo descrito na sua poesia, da qual “Observação Directa”, disponível em Portugal, é o último volume. Foi também a vontade de descobrir o que é ser angolano, e a demanda de respostas para perguntas que o acompanhavam desde a adolescência, que o fez abraçar a antropologia. Curiosamente, começou pelo cinema – na sua biografia pode-se ler que produziu vinte horas de cinema documental – que considera uma óptima ferramenta para conhecer povos e modos de vida. No entanto, foi a antropologia – intervalada com outras actividades, como a regência agrícola, porque “os anos têm muitos dias”- que o seduziu definitivamente, já que lhe fornece “os instrumentos para tratar a diferença” e lhe permite ir à procura, com sentido, “do cidadão angolano”. Estudou a disciplina em Paris, entre 1979 e 1986. De regresso à sua terra, bem apetrechado, Ruy Duarte de Carvalho foi, a partir de 1992, ao encontro de um povo que esteve sempre atravessado na sua vida: Os Kuvale do Namibe, povo da lança, guerreiros, nómadas, pastores e angolanos como ele. O antropólogo conhecera-os na sua infância, tinha ouvido algumas das suas epopeias em JOSÉ VEGAR – NÃO FICÇÃO

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conversas de mato e arredores, filmara alguns deles em 1975. Entre 1992 e 1997, vivendo longas expedições pelo mato e pelo deserto, viveu com os kuvale tanto quanto eles permitiram, observou-os, recolheu os seus depoimentos. Depois, durante um ano, escreveu um livro. “Vou lá visitar pastores”, editado em Portugal pela Cotovia, é um livro único, com a mesma magia e beleza estranha que o “Breviário Mediterrânico” (edição Quetzal) Predrag Matvejevitch. Um dos fios condutores da escrita, que tal como a de Matvejevitch rouba coisas à ficção e à ciência, é todo o mundo Kuvale, donos de uma cultura pastoril e guerreira, mas também de resistência “porque preservam os traços de uma economia e de uma cultura pouco afectada pela colonização e pela desarticulação da sociedade que se deu após a independência”, explica o antropólogo. É fascinante encontrar nas páginas o minucioso trabalho de campo de Ruy Duarte de Carvalho, que disseca as complexas hierarquias dos clans e das famílias kuvale, as ainda mais complexas relações de poder, parentesco, amor e familiares, o quotidiano dos pastores e os seus trajectos, os roubos de gado e consequentes punições e, acima de tudo, os fascinantes rituais e partilhas da carne, o único verdadeiro bem que possuem. Está nas páginas descrito todo um povo diferente, que mantém um equilíbrio na sua sociedade e nos lugares que habitam. Todo o acto tem uma razão, e um preço. Mas “Vou lá visitar pastores” é muito mais que só observação participante dos Kuvale. É também o diário de um angolano intelectual que deixa a cidade, que viaja num Land Rover acompanhado pelo seu ajudante Paulino, dorme na tenda, adormece no deserto, sofre com o calor, em busca dos seus. “Eu cresci ali e observo concidadãos meus. Estamos implicados”. Durante aqueles cinco anos, Ruy Duarte de Carvalho percorreu as inúmeras picadas do Namibe, esperou pela altura certa para falar com os homens certos, escutou confidências e histórias míticas, observou as festas, onde às vezes também era convidado. “A confiança com os kuvale é uma manta que se vai tecendo muito lentamente”. Com um lápis e o bloco sempre na algibeira, e um gravador para todas as entrevistas. “Nas entrevistas, anoto todos os espirros, exclamações, suspiros. Um suspiro pode ser mais revelador que horas de palavras”. Realizou um daqueles projectos que perseguem a vida inteira certos homens, o que é um feito. E teve ainda tempo para ser feliz. “Estar no deserto, sair da tenda de madrugada,

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pelas 5 horas, antes do mundo acordar, e beber um café, é qualquer coisa... “. Poder-se-ia pensar que “Vou lá visitar pastores” encerraria o capítulo do Sul. Mas não. Nesse inesgotável bloco notas que é o cérebro ficaram alguns apontamentos que mereciam ficção. Daí nasceu “Os papéis do Inglês”, agora editado pela Cotovia, gerado pela leitura de um conto de quatro páginas de Henrique Galvão, porque “há uma carga dramática nessas páginas que mereciam mais corpo”, explica Ruy Duarte. Diz ele que este seu livro é todo ficção, mas di-lo com um sorriso irónico. Nunca se sabe. A narrativa cruza várias histórias a partir da reproduzida por Galvão, sobre um inglês, Archibald Perkings, que no princípio do século se refugia do mundo no mato angolano, vivendo da caça, até cometer um crime, e se suicidar algum tempo depois. Dos escritos de Archibald, os papéis do inglês, que terão passado por inúmeras mãos mas nunca terão saído do sul de Angola, parte Ruy Duarte Carvalho, para se confrontar com o seu passado, e o da sua família, para voltar aos kuvale e aos seus territórios, para veladamente descrever a sua Angola de hoje, e todos aqueles que nela vivem ou não a esquecem. É uma ficção com tanto de real, mas os livros costumam ser assim. Ruy Duarte de Carvalho está agora em repouso, ensinando antropologia comparada e métodos e técnicas comparadas aos estudantes de Coimbra. Celibatário, depois de dois casamentos e dois filhos, ambos angolanos, vai tecendo, no segredo natural que faz parte dele, novos projectos e viagens, que darão novos livros. Continua a levantar-se de madrugada, para ver o mundo acordar. E continua a batalhar pela “hipótese que justifica a minha vida: Angola”. Foi uma das poucas revelações claras que fez.

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