Crianças queer e a representação na mídia brasileira

June 14, 2017 | Autor: Tiago Fioravante | Categoria: Media Studies, Queer Theory, Children and Media, Childhood studies
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CRIANÇAS QUEER E A REPRESENTAÇÃO NA

MÍDIA BRASILEIRA TIAGO DANIEL FIORAVANTE ORIENTADORA: PROF.ª DR.ª SARAÍ PATRÍCIA SCHMIDT

UNIVERSIDADE FEEVALE

TIAGO DANIEL FIORAVANTE

CRIANÇAS QUEER E A REPRESENTAÇÃO NA MÍDIA BRASILEIRA

Novo Hamburgo 2015

TIAGO DANIEL FIORAVANTE

CRIANÇAS QUEER E A REPRESENTAÇÃO NA MÍDIA BRASILEIRA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel

em

Comunicação

Social



Habilitação em Jornalismo pela Universidade Feevale.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Saraí Patrícia Schmidt

Novo Hamburgo 2015

TIAGO DANIEL FIORAVANTE Trabalho de Conclusão de Curso de Comunicação Social- Habilitação em Jornalismo, com o título Crianças queer e a representação na mídia brasileira, submetido ao corpo docente da Universidade Feevale, como requisito necessário para obtenção do Grau de Bacharel em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo. Aprovado por:

_________________________________________ Prof.ª Dr.ª Saraí Patrícia Schmidt Professora Orientadora

_________________________________________ Prof.ª Dr.ª Lisiane Machado de Oliveira Menegotto Banca examinadora – Universidade Feevale

_________________________________________ Prof.ª Me. Adriana Stürmer Banca examinadora – Universidade Feevale

Novo Hamburgo, Novembro de 2015.

À memória de Ale Cartier, Cristiane e tantos outros corpos queer que não suportaram a pressão de viver suas identidades de maneira plena ou que por algum motivo tiveram suas vidas ceifadas, nesta sociedade construída sob uma matriz heterocentrada.

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus familiares e amigos, pelo total apoio e compreensão durante a realização deste projeto e ao longo da minha graduação. Primeiramente, agradeço aos meus pais, Iris e Joceli, pela sua imensa sabedoria, por serem minha base e ao longo da vida nunca deixarem de me mostrar que por mais difíceis que as coisas possam parecer, elas não são impossíveis de ser alcançadas.

Agradeço à

preocupação e às horas de sono perdidas na minha educação, assim como nos momentos longe de casa, dedicados a garantir a mim e meus irmãos o sustento e uma vida digna, repleta de carinho e respeito. Sou grato às lições de amor e força que meus pais personificam. Agradeço a meus irmãos, Diogo, Tanise e Sandra, pelos exemplos de coragem e dedicação que sempre mostraram. Pelo apoio incondicional em meio às inúmeras dificuldades. Agradeço também aos meus amigos de longa data, William, Everton e Israel, que souberam entender meus períodos de afastamento e minhas ausências, assim como pelo companheirismo e momentos de aprendizado. Agradeço ao meu amigo e colega Michael, pelos longos períodos de conversa e de troca ao longo do curso. Agradeço pelo convívio, nestes tantos anos de amizade. Também agradeço à Maíra e Fernando, pelas conversas, pelos momentos de alegria e suporte. Aos amigos Diego, Pilas, Luiza, Alberto, Núbia, Volatille, Gregório, Yuri, Romário, Rafael, Kaluan, Luísa, Márcio, Marina, Ricardo, Gabriela, Renata, Gisberta, Pedro e tantos outros que me ajudaram no despertar de uma consciência de comunidade e pertencimento. Às inúmeras lições e experiências relacionadas ao corpo, gênero e sexualidade que me permitiram perceber o mundo com um olhar diferente. À minha orientadora e amiga, Saraí Schmidt, que desde os primeiros anos da minha graduação, me instigou a pensar a mídia e o processo de comunicação de maneira crítica, assim como a olhar a infância com outros olhos. Sou grato a ela por acreditar em mim e sempre me fazer enxergar além. E ainda por ser um exemplo de profissional e ser humano, que sempre luta por aquilo em que acredita, e ainda pelas oportunidades e incentivo ao longo destes tantos anos de graduação. Também agradeço às professoras Vera Dones e Neusa Ribeiro pelos momentos incríveis de troca e pelo aprendizado compartilhado, assim como pela dedicação e esforço ao me ensinar. Sou grato ainda aos tantos professores que compartilharam comigo visões de

mundo e conhecimento. Agradeço também à Daniela Andrade, Sofia Favero e Erik Barbi por partilharem de maneira tão altruísta sobre a vivência de pessoas travestis e transexuais. Poderia incluir aqui tantas outras pessoas que me fizeram olhar o mundo como um lugar de inúmeras possibilidades em relação a gênero e sexualidade, porém julgo que o espaço não seria suficiente. Ao Gabriel, por todo o apoio, por me mostrar que a vida pode ser linda e que devemos sempre persistir e acreditar nos nossos sonhos. À vida por ter me propiciado tantos momentos incríveis, descobertas e aprendizados nos pequenos detalhes e nos momentos difíceis. Sou grato a ela por ter colocado em meu caminho pessoas que me fizeram enxergar o mundo com olhos de curiosidade e de sempre lembrar que o quê realmente importa está dentro de cada um de nós.

Meu corpo, topia desapiedada. E se, por ventura, eu vivesse com ele em uma espécie de familiaridade gastada, como com uma sombra, como com essas coisas de todos os dias que finalmente deixei de ver e que a vida passou para segundo plano, como essas chaminés, esses telhados que se amontoam cada tarde diante da minha janela? Mas, todas as manhãs, a mesma ferida; sob os meus olhos se desenha a inevitável imagem que o espelho impõe: rosto magro, costas curvadas, olhos míopes, careca, nada lindo, na verdade. Meu corpo é uma jaula desagradável, na qual terei que me mostrar e passear. É através de suas grades que eu vou falar, olhar, ser visto. Meu corpo é o lugar irremediável a que estou condenado. Michel Foucault, 1966.

RESUMO Este estudo trata dos corpos infantis que destoam das regras heteronormativas sobre gênero e sexualidade e sua representação na mídia brasileira. Com objetivo de analisar criticamente os discursos hegemônicos construídos pela mídia para representar este sujeito, o estudo usa como referencial teórico autores oriundos do pós-estruturalismo, como Michel Foucault, Beatriz (Paul) Preciado, Judith Butler, Donna Haraway e ainda Douglas Kellner e Rosa Fischer, a partir de Estudos Culturais. O corpus de análise toma como base 92 referências midiáticas de TV, Internet e veículos impressos, publicadas entre 2010 e 2015, que retratam a experiência desta infância queer. Palavras-chave: queer, infância, mídia.

ABSTRACT This study discusses child bodies that are not in harmony with the heteronormative rules regarding gender and sexuality as represented in Brazilian media. To critically analyze the hegemonic agenda constructed by media, this study draws from a post-structuralism theoretical framework, presented in the work of Michel Foucault, Beatriz (Paul) Preciado, Judith Butler, Donna Haraway and also on authors as Rosa Fischer and Douglas Kellner, from Cultural Studies. The analysis corpus for this study is compiled from ninety-two references in television, internet and print media released between 2010-2015, portraying queer childhood experiences. Keywords: queer, childhood, media.

LISTA DE FIGURAS Figura 1: JEONGMEE YOON - Kara-Dayeoun and Her Pink Things, da série The Pink Project, 2008............................................................................................................................. 43 Figura 2: JEONGMEE YOON - Kevin-Donghu and His Blue Things, da série The Blue Project, 2008............................................................................................................................. 44 Figura 3: THE SUN - Izzy Cornthwaite e sua fantasia de Darth Vader ................................. 45 Figura 4: REVISTA VEJA SP nº 2436 - Julho de 2015. ......................................................... 63 Figura 5: REVISTA PAIS & FILHOS nº 541 - Abril de 2015. ............................................... 70 Figura 6: REVISTA NOVA ESCOLA nº 279 - Fevereiro de 2015 ......................................... 73

SUMÁRIO INRODUÇÃO ......................................................................................................................... 11 CAPÍTULO 1 – METODOLOGIA....................................................................................... 16 1.1. OBJETIVOS ................................................................................................................. 16 1.1.2. OBJETIVOS ESPECÍFICOS .................................................................................. 17 1.2. A BUSCA DESTA INFÂNCIA NA MÍDIA .................................................................. 18 1.3. ORGANIZAÇÃO DO MATERIAL EMPÍRICO .......................................................... 18 1.4. EMBASANDO O OLHAR............................................................................................ 20 CAPÍTULO 2 – CORPO, SUJEITO E IDENTIDADE ..................................................... 22 2.1. GÊNERO: MASCULINIDADES E FEMINILIDADES PERFORMATIVAS ............. 24 2.2. SEXO: ELEMENTO PRÉ-DISCURSIVO OU CULTURAL? ..................................... 26 2.3. SEXUALIDADE: ORIENTANDO O DESEJO ............................................................ 28 2.4. TEORIA QUEER E A PÓS-IDENTIDADE .................................................................. 30 CAPÍTULO 3 – INFÂNCIA, SEXUALIDADE E GÊNERO ............................................ 33 3.1. INVENTANDO UMA INFÂNCIA ............................................................................... 35 3.2. INFÂNCIA E OS PAPEIS DE GÊNERO...................................................................... 38 3.3. DESEJO, SEXUALIDADE E INFÂNCIA ................................................................... 47 CAPÍTULO 04 – REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA DA INFÂNCIA QUEER ............... 51 4.1. A INFÂNCIA MONSTRA ............................................................................................. 54 4.2. A INFÂNCIA CIBORGUE ............................................................................................ 60 4.3. A INFÂNCIA ESTRANHA .......................................................................................... 67 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 75 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 79 GLOSSÁRIO .......................................................................................................................... 85 ANEXOS ................................................................................................................................. 89

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INTRODUÇÃO Ao falar de infância, logo nos vem à mente a imagem de um momento da vida feliz, leve, sem muitas preocupações. Cercado de amor e proteção dos pais e da sociedade. Talvez estejamos caindo num lugar comum ao pensar os corpos e vivências infantis. Lugar comum que nega a pluralidade de expressões e de identidades. Que nega o sofrimento que muitos destes pequenos seres podem estar passando. Sofrimento causado muitas vezes por não se enquadrarem nos padrões binários comumente reproduzidos sobre gênero e sexualidade. Onde as meninas devem ser dóceis, frágeis e meigas, já os garotos, estes devem ser viris, fortes e agressivos. E quando estes conceitos não se aplicam sobre determinadas crianças? Quando nos deparamos com meninas masculinizadas, garotos sensíveis, afeminados e frágeis? Que lugar é destinado a estas infâncias? Desde o momento inicial, quando me deparei com a escolha do tema deste trabalho, não consegui fugir de duas coisas: o debate sobre gênero e sexualidade e o desejo de falar sobre infância. Nada mais lógico para mim, interpor estes temas, tendo eu vivido minha infância como uma criança que jamais se encaixou nos padrões de gênero e sexualidade, tendo sofrido com bullying1 desde os primeiros anos iniciais na escola. Lembro claramente das diversas vezes que fui repreendido por brincar com bonecas ou junto das meninas, ou até mesmo das tantas vezes que fui impedido de usar roupas e calçados pertencentes à minha irmã, itens tinham muito mais apelo a mim do que aqueles ditos “de menino”. Estas situações de repreensão aconteciam por parte de adultos e até mesmo de outras crianças, normalmente maiores, que talvez já tivessem consciência de que meus modos e gostos não eram aceitos no mundo dos grandes. Consigo ver claramente como isso afetou minha autoconfiança e trouxe sofrimento com o passar dos anos. Outra razão de ter escolhido explorar estas temáticas, foi minha familiaridade com as discussões relacionadas à infância. Desde o início da minha graduação, em diferentes períodos, tenho colaborado na condição de bolsista de extensão e estagiário com as atividades do projeto de extensão Nosso Bairro em Pauta, integradas ao projeto de pesquisa da orientadora desta monografia que discute as relações entre infância, mídia e consumo. As vivências na extensão e na pesquisa me possibilitaram encarar de forma diferente a relação 1

Bullying é uma situação que se caracteriza por agressões intencionais, verbais ou físicas, feitas de maneira repetitiva, por um ou mais alunos contra um ou mais colegas. O termo bullying tem origem na palavra inglesa bully, que significa “valentão”, “brigão”. Mesmo sem uma denominação em português, é entendido como ameaça, tirania, opressão, intimidação, humilhação e maltrato.

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infância/mídia, percebendo que as narrativas midiáticas frequentemente estão repletas de valores, julgamentos prévios e muitas vezes errôneos sobre as crianças. E o desejo de pesquisar a relação da mídia com as questões de gênero e sexualidade na infância, surgiu a partir das análises que eu fazia de manchetes, chamadas, reportagens e de matérias que falavam sobre este assunto, pois sempre encontrava algo que me incomodava. Fosse a maneira com que esta infância era abordada, como algo exótico, não natural ou até mesmo pelo fato que frequentemente, estas são histórias reproduzidas de sites internacionais, com crianças de outros países. Mas será que essa infância não existe aqui ou apenas os veículos midiáticos fecham os olhos de forma a torná-las invisíveis? Percebo uma lacuna nas discussões midiáticas que envolvem infância, gênero e sexualidade. Quando não falta preparo dos profissionais na apropriação do tema, são os temas em si que não são abordados. Falta de preparo, no sentido de pouca dominância do assunto. Mistura de conceitos, confusão de orientação sexual com identidade de gênero são os mais comuns, tratar os sujeitos pelo pronome errado também é algo rotineiro. Este discurso midiático pode até parecer informativo, mas não devemos esquecer que a mídia, desde tempos remotos, tem funcionado como um dispositivo educador e normalizador. E quando relacionado à infância, tem o poder de atravessar ou constituir as identidades infantis, violando o direito da criança de experimentar, transitar, conhecer e desfrutar de uma criação identitária própria. Acredito que já passou do momento em que profissionais de comunicação necessitem buscar informações sobre a melhor maneira de lidar com esta temática. Afinal, o papel do jornalista é estar sempre atento às transformações que ocorrem na sociedade e estar preparados para traduzi-las para a massa. Mas como isso pode ser feito sem que haja um prévio preparo, seja nas universidades que tem em sua grade os cursos de comunicação ou dentro dos próprios veículos, para que seus profissionais estejam preparados da melhor maneira, sem fazer recortes exotizadores ou anti-naturalizantes destes comportamentos? Seria possível pensarmos na necessidade de ter aprovada no Brasil uma Lei de Identidade de Gênero (que já está em tramitação na Câmara dos Deputados)? Poderíamos ainda pensar em uma alteração no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros2? Aos poucos começamos a perceber algumas mudanças que podem ser consideradas significativas nesta esfera, como por exemplo, no ano passado, a criação no Rio Grande do

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A exemplo do Código de Ética da Federação de Associações de Jornalistas da Espanha - FAPE, que trata como infração usar um pronome de gênero masculino para se referir a uma mulher trans ou de gênero feminino para se referir a um homem trans.

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Sul de um grupo de ação e debate em torno destas temáticas na mídia. Intitulado GEMIS Gênero, Mídia e Sexualidade, o grupo se propõe a repensar as narrativas de veículos de comunicação, que muitas vezes reproduzem o preconceito em matérias e reportagens. Reportagens estas que em boa parte do tempo, silenciam as vítimas, fazem abordagens errôneas, repetitivas, superficiais, que de nada ajudam a população geral a compreender melhor as vivências de grupos que sofrem há muito tempo com o preconceito e discriminação em nossa sociedade. Da mesma forma que estas discussões sobre gênero e sexualidade são importantes e necessárias no campo da Comunicação, elas são relevantes na área da Educação. Não é mais possível ignorar relações de gênero e sexualidade quando buscamos refletir e analisar complexas questões sociais. Existem poucos estudos e pesquisas que relacionem as questões de gênero e sexualidade com a infância e isto me motivou ainda mais a pesquisar sobre o tema. Afinal, é durante a infância que o mundo começa a se delinear diante dos nossos olhos, é onde construímos muito de nossa personalidade. Buscar o papel da mídia nesta construção tem sido encarado como um desafio, onde a cada dia tenho descoberto novas possibilidades e me interessado cada vez mais. Chamadas como “Menino de 9 anos insiste que é uma menina desde os 2 e pais agora aceitam sua decisão”, “Danann Tyler, 10, nasceu menino, mas se expressa como menina”, “Escola cristã rejeita menina por não ser ‘feminina o suficiente’”, “Mulher é condenada por morte de filho afeminado de 4 anos”, “Criança transexual é proibida de usar banheiro feminino em escola nos EUA”, “Menino de 8 anos é espancado até a morte pelo pai para andar como homem”, “Juízes diminuem pena de estuprador porque vítima de 6 anos seria gay”, “Menino de 5 anos é proibido de frequentar creche por usar roupas de meninas”, “Menina aprende a falar e diz 'sou um garoto'; veja como a família lidou”, são apenas um exemplo de como a mídia trata as histórias de crianças que fogem às regras hegemônicas sobre gênero e sexualidade. Será mesmo que alguém nasce menino ou menina? Ou seria correto dizer apenas que uma criança nasce com determinado genital e, em alguns casos, com genitália ambígua (no caso das crianças intersexo)? O que motiva tantos pais, mesmo antes do nascimento, a demostrarem a intensa curiosidade em saber o gênero do bebê? Isso é mesmo relevante? Enquanto jornalistas/comunicadores, nós não podemos fechar os olhos para as tecnologias sociais a serviço da heteronormatividade. Sejam estas tecnologias as instituições médicas, linguísticas, escolares, domésticas e que produzem constantemente corpos-homens

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ou corpos-mulheres. No momento em que paramos para nos questionar sobre estas construções, problematizando o binarismo de gênero e sexualidade, estamos criando possibilidades para as gerações que virão a seguir. E este é meu principal objetivo com este trabalho. Fazer com que nos questionemos sobre a inocência e normalidade nos discursos subjetivos da mídia quando o assunto é gênero e sexualidade na infância. Não acredito que este seja um caminho fácil de seguir, mas o vejo como uma opção na construção de uma sociedade igualitária. Onde os corpos nasçam livres, ao menos do peso que é ter de se encaixar em padrões binários. Que as crianças que venham ao mundo tenham mais possibilidades, que encontrem pais menos preocupados com os papeis que elas deverão encontrar e desenvolver ao longo da vida. Que estes papeis e escolhas tomem como base aquilo que as nutre verdadeiramente. Minha análise tem como foco os discursos midiáticos de veículos impressos, sites e matérias televisivas. Busco abordar a maneira que as notícias envolvendo o corpo queer infantil são construídas na mídia nacional. Quem são os profissionais entrevistados? Quais são os discursos sobre estes corpos e vivências? Afinal, quem é esta criança queer que a mídia brasileira desenha? Existe um padrão no discurso midiático? Quais os motivos de o sujeito precisar sistematicamente se identificar com um gênero ou outro? Foram estes alguns dos meus questionamentos ao começar pensar neste trabalho. Para tentar encontrar algum tipo de resposta para estas tantas indagações, decidi estruturar esta pesquisa da seguinte maneira: em um primeiro capítulo, abordo os objetivos deste trabalho, os métodos utilizados, as etapas de construção, assim como o referencial teórico utilizado. No capítulo a seguir, faço uma explanação sobre como corpo e identidade são pensados na contemporaneidade e ainda abordo os conceitos básicos de gênero e sexualidade, buscando como referência autores como Judith Butler, Beatriz (Paul) Preciado, Michel Foucault, entre outros. Também é neste capítulo que farei uma introdução aos estudos da Teoria Queer, tendo como base o trabalho de Guacira Lopes Louro, Leandro Colling, entre outros. Na terceira parte do trabalho, faço um histórico da construção do conceito de infância na sociedade ocidental, utilizando como base os estudos de Philippe Ariès, tendo em mente que a busca de interpretação das representações do conceito de infância são relativamente novas no mundo ocidental. É só a partir do século XIX que a preocupação em estudar o sujeito infantil ganhou espaço, mudando a concepção que até então a sociedade tinha sobre a

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criança. A ideia é fazer um paralelo com outros constructos sociais abordados neste trabalho, que são gênero e sexualidade. Aqui trago também o processo de construção social dos papeis de gênero durante a infância. No capítulo final, trago considerações e apontamentos sobre a construção da imagem da criança queer pela mídia/jornalismo brasileiro. Este é o capítulo onde começo as análises da representação da infância queer pelas lentes dos jornais, revistas, sites e emissoras de TV no Brasil. Com estas análises, pretendo mostrar de que maneira a mídia pode ser também considerada um espaço educativo, pois ela tem o poder de acionar efeitos de verdade que contribuem para a construção das identidades. Para tanto, usarei como referência o trabalho de autores como Rosa Fischer e Jane Felipe, que estudam o poder pedagógico da mídia.

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CAPÍTULO 01 - METODOLOGIA

Perceber as maneiras que a mídia retrata a infância queer é de certa forma, dar-se conta de estereótipos reproduzidos, neste caso, em relação aos universos infantis, sexuais e de gênero. Compreender a motivação da mídia ao dar voz à determinada autoridade e não a outra, no processo de construção da notícia, entender as significações impressas nas subjetividades de notícias que tenham como objeto crianças cujos comportamentos ou identidades destoem das hegemonias. Praticar este exercício é estranhar o modo pelo qual construímos o produto midiático e foi este meu principal incentivo, na escolha do tema e foco deste trabalho. No título, decido por utilizar “crianças queer”, pois categorizar infâncias que destoem destas normas já mencionadas, seja utilizando a sigla LGBT ou termos que a ela façam referência, seria generalizar. Afinal, ao longo desta pesquisa, um dos questionamentos que trago é relacionado à construção das identidades na infância. Não seria adequado afirmar que ainda durante a infância, o sujeito possa compreender a dimensão que a categoria LGBT abarque. Também não seria prudente utilizar o temo “infância gay”, justamente pelo mesmo motivo. Como seria possível afirmar que o indivíduo infantil tenha plena noção do todo que estes conceitos contemplam? Proponho com esta pesquisa, analisar de maneira crítica o processo pelo qual a mídia representa o menino afeminado, a menina masculinizada, a criança transgênero e intersexo. Qual seria a abordagem dos produtos midiáticos, especificamente no campo jornalístico, sobre esta infância? Quem são as autoridades (médicas, pedagógicas, jurídicas, religiosas, familiares, etc.) que este jornalismo dá voz ao referenciar este indivíduo? De que maneira esta criança é retratada? Qual é a linguagem utilizada pelos veículos ao retratar este sujeito?

1.1. OBJETIVOS

O objetivo deste estudo, desde seu princípio, tem sido analisar a construção dos discursos referente às questões de gênero e sexualidade infantil por meio das narrativas midiáticas nos veículos nacionais. Busco analisar as representações que a mídia brasileira faz sobre crianças que não se enquadram nas normas hegemônicas em relação a gênero e sexualidade. Utilizo queer no sentido de estranhar o processo de construção identitária durante o período da infância. A expressão é utilizada em países de língua anglofônica e seu significado

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está relacionado a um xingamento amplamente utilizado às pessoas homossexuais, travestis e transgênero. Em português poderia ser traduzido como “estranho”, “excêntrico”, “ridículo” e seu uso ganhou força entre a comunidade acadêmica durante a década de 1990, como modo de positivar um termo degradante, que traz impregnado em seu sentido o questionamento dos processos identitários (LOURO, 2013). E por isso decido aqui utilizá-lo. Poderia ainda me referir a esta infância como uma “infância estranha” ou até mesmo “uma infância monstra”, mas é possível que o enfoque a ser dado com este trabalho não ficasse explícito em seu título. Ao iniciar o processo de construção deste estudo pensei em focar a análise em uma modalidade midiática específica (impresso, online, televisivo, etc.). Porém, em um segundo momento optei por fazer um mapeamento mais amplo contemplando a garimpagem de materiais oriundos de revistas, sites e programas televisivos. Em termos metodológicos posso afirmar que fiz uma bricolagem de diferentes artefatos jornalísticos que colocaram em pauta uma infância dita “estranha” no período de 2010 a 2015. Cabe salientar ainda que escolhi analisar esta infância ao olhar para minha trajetória individual. Durante minha fase infantil, ainda que não tivesse plena noção do meu processo de construção identitária como um todo, uma certeza tinha: era uma criança diferente. Muito cedo cheguei a esta conclusão e foi a partir do olhar do outro sobre meu corpo, meus trejeitos, meu comportamento. Através de xingamentos, apelidos em tom pejorativo, agressões físicas, perseguições e humilhações, aprendi que eu era um indivíduo diferente dos demais, e que por isso, merecia o tratamento que a mim era destinado. Portanto, desenvolver este trabalho seria uma maneira de olhar para mim, em outra fase da vida.

1.1.2. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

a) Traçar um panorama histórico e social da construção do conceito de infância na sociedade ocidental;

b) Discutir sobre os conceitos de gênero e sexualidade;

c) Explanar as origens e significados da Teoria Queer;

d) Investigar a maneira que o jornalismo brasileiro representa a infância queer;

e) Identificar de que maneira estas narrativas midiáticas influenciam cultural, social e

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historicamente nas subjetividades dos corpos queer, especialmente o infantil.

1.2. A BUSCA DESTA INFÂNCIA NA MÍDIA

Uma das dificuldades encontradas ao partir para a parte prática desta pesquisa foi encontrar materiais que tivessem como foco personagens brasileiros, ainda que muitos dos veículos pesquisados se tratassem de mídias nacionais. Foram poucas histórias de crianças retratadas em solo nacional, fato que me chamou atenção. Por se tratar de um tema recente no imaginário midiático, não foi uma tarefa fácil ter acesso a materiais publicados em veículos impressos ou televisivos. Grande maioria do material analisado é veiculado em publicações online. Portanto, para conseguir encontrar relatos midiáticos desta infância tive que me debruçar em portais de notícia, buscadores, fóruns online e até mesmo nas Mídias Sociais. O poder das Mídias Sociais, em gerar um buzz3 sobre determinados assuntos ditos tabus ou polêmicos, talvez tenha sido um facilitador neste processo de gerar mais conteúdo online do que em outras mídias. Inclusive, ao me deparar com muitas destas matérias, quando as famílias eram entrevistadas, muitas só se deram conta de que o comportamento incongruente de seus filhos poderia não se tratar apenas de uma “fase” ao se deparar com relatos de outros pais em blogs e sites ou até mesmo com relatos feitos pela mídia de outras crianças queer.

1.3. ORGANIZAÇÃO DO MATERIAL EMPÍRICO

O corpus de análise da pesquisa é constituído de um conjunto de 92 matérias veiculadas entre 2010 e 2015 na mídia impressa, televisiva e online. Aqui é importante ressaltar que o objetivo desta pesquisa não é quantitativo, ainda que tenha sido necessário fazer este levantamento, mas mapear possíveis recorrências nas produções jornalísticas que colocassem a infância queer em pauta e que poderiam contribuir para a construção deste trabalho. Em termos quantitativos no quadro abaixo descrevo:

Formato

3

Matérias

Principais Veículos

No contexto das Mídias Sociais, o termo buzz representa algo que, tendo sido publicado na Internet, frequentemente nas redes sociais, e tenha gerado inúmeros comentários ou “falatório” nas redes.

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Impresso

03

Revista Pais & Filhos; Revista Nova Escola e Revista Veja SP.

Televisão

02

Fantástico (Rede Globo)

Online

87

Folha de S. Paulo, BBC Brasil, Terra, UOL, G1, R7, iG, Marie Claire, entre outros.

Total

92

Numa primeira etapa foi feita uma leitura panorâmica do material coletado e depois elaborada uma ficha-descritiva deste material (VER ANEXO A – Fichas de Conteúdo analisadas por categoria), onde constam o título da matéria/reportagem, nome do veículo, editoria, data, formato e um link de acesso. Ao iniciar esta categorização, ficou clara a busca da maioria dos veículos em justificar o comportamento destas infâncias com depoimentos de autoridades médicas, jurídicas, familiares ou de sociedades civis (ONGs), porém, poucas vezes davam voz a esta criança. Outro detalhe que não me fugiu ao olhar foi o fato de maioria de estas matérias encararem estas identidades através de um viés patologizante. Em diversos destes materiais, uma confusão, ao retratar as questões relacionadas à identidade de gênero e orientação sexual, além do uso de termos que os movimentos sociais lutam para abandonar (“hermafroditas”, por exemplo) e outros que reforçam o viés da patologização destas identidades (“transexualismo”, “homossexualismo”, etc.). Após feita esta categorização, decidi por reler as Fichas de Conteúdo, no intuito de encontrar categorias em comum destes personagens e matérias, representando esta infância queer que proponho analisar em meu trabalho. Decidi dividir o material em diferentes categorias:

TRANSGÊNERO: esta categoria engloba crianças que se identificam com o gênero oposto aquele registrado em seu nascimento, cujos pais foram buscar informações sobre seu comportamento / identidade e que socializam através do gênero que determinaram para si.

INTERSEXO: crianças que no momento de seu nascimento, sua genitália não se adequa aos padrões pré-estabelecidos para o feminino ou masculino, e que, por este motivo, são categorizadas como intersexo. Algumas destas crianças, logo nos momentos iniciais da vida passam por cirurgias que visam adequá-la a um gênero (seja por determinação cromossômica ou apenas pela aparência externa do seu genital), ainda que no futuro, não

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venham se identificar com este gênero que lhes foi imposto.

ESTRANHA/BIZARRA: enquadro nesta categoria, a infância que por não se adequar às normas sexuais e de gênero, é tratada como estranha ou bizarra. Seja por demonstrar um comportamento afeminado, no caso de meninos, ou meninas que gostem de jogar futebol ou tenham trejeitos que fujam ao estereótipo feminino, delicado e frágil.

1.4. EMBASANDO O OLHAR

A partir do momento que decidi analisar uma infância destoante da regra, precisei buscar autores que pudessem ampliar meu olhar, que até então era especulativo. Busquei através do trabalho de autores oriundos do pós-estruturalismo como Michel Foucault, Judith Butler, Beatriz (Paul) Preciado, Donna Haraway, Jeffrey Weeks e Guacira Lopes Louro, compreender os processos de construção das identidades sexuais e de gênero e a Teoria Queer. Estes autores também foram utilizados para tentar compreender os mecanismos de normalização e controle aos quais somos submetidos no processo de socialização. As reflexões de Foucault, Laqueur, Hall e Bauman também ajudaram a trabalhar as relações de corpo e identidade na pós-modernidade, colaborando para a análise do conteúdo midiático. Philippe Ariès orientou meu olhar no sentido de compreender a infância como construto social, enquanto Pierre Bourdieu jogou luz sobre a relação família, infância e escola, na atribuição dos papeis sociais aos quais somos submetidos. Jorge Larrosa teve um papel fundamental na elaboração deste trabalho ao auxiliar a busca por um sentido da infância contemporânea, fazendo observar a infância além de determinismos biológicos e compreender a alteridade do sujeito infantil. Portanto, após nutrir meu olhar sobre o tema investigado, passei a olhar novamente o material que tinha em mãos e tomei a decisão de dividi-lo em três grandes categorias de análise, de modo que facilitasse estudar as significações e subjetividades presentes nas notícias e conteúdos analisados. E serão estas infâncias que tomarei como base para a análise desta pesquisa. INFÂNCIA MONSTRA: investigo aqui o sujeito infantil dito como “anormal”, aquele que destoa da regra e foi pego pelos aparelhos universais de disciplinamento e dominação. Utilizando o conceito de “monstro”, na perspectiva de James Donald e Michel Foucault. Este indivíduo aqui categorizado retrata o cruzamento de fronteiras entre cultura e natureza, entre

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diferentes tipos de subjetividade.

INFÂNCIA CIBORGUE: utilizando o conceito de ciborgue, abordado por Donna Haraway em seu Manifesto Ciborgue, as infâncias representadas nestas categorias são aquelas que se encaixam em uma identidade de gênero diferente da atribuída ao nascimento. E, por razões médicas ou familiares, se submetem ou são submetidas a procedimentos que alteram a noção biológica de corpo, a fim de adequá-las a um corpo descrito pela medicina como ideal para a identidade de gênero que escolheram ou foi escolhida para si. Esta categoria de infância retrata perfeitamente a simbiose entre máquina e organismo, abordada por Haraway.

INFÂNCIA ESTRANHA: aqui, analiso uma infância tratada pela sociedade como estranha e abominável. Aquela que por um motivo ou outro, não se adequa às identidades de gênero e sexuais pré-estabelecidas, ainda que para si mesma isto não esteja claro e, por isto, tenha para si reservado no contexto social um lugar de exclusão e abjeção. Esta infância é tida como estranha ou bizarra, por trazer em seus corpos ou comportamentos, elementos que deslocam as identidades plenamente reconhecidas.

Decidi por analisar as infâncias a partir destas três categorias. Esta foi uma maneira de não peculiarizar cada história, afinal, muitas destas crianças retratadas, poderiam se encaixar em mais de uma das categorias inicialmente trabalhadas (“transgênero”, “intersexo” e “estranha/bizarra”). Utilizo a Análise de Discurso para dissecar nove, das 92 matérias e reportagens encontradas, três para cada categoria, que contextualizem o sujeito abordado neste estudo. Outro fator importante a ser considerado no delineamento da análise é que ao tratar de construções identitárias infantis, especialmente ao falar de questões como gênero e sexualidade, estamos trabalhando com tópicos controversos, que não constituem uma única verdade. Ao abordar a infância queer, trago aspectos de personagens que em algum momento da história, pudessem estar marcados por um conjunto de discursos e modos de socialização utilizados para descrever pessoas cujas identidades sexuais e de gênero foram categorizadas como desviantes, em relação às normas hegemônicas.

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CAPÍTULO 2 - CORPO, SUJEITO E IDENTIDADE

O corpo não é um dado passivo sobre o qual age o biopoder, mas antes a potência mesma que torna possível a incorporação prostética dos gêneros. A sexopolítica torna-se não somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço de uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros, chicanas, pós-coloniais... (PRECIADO, 2011, p. 14)

Pensar a relação entre corpo, sujeito e identidade na contemporaneidade nos leva ao passado. Quem somos nós? Como os corpos se apresentam e como eles se decidem se representar ao mundo? Na necessidade de encontrar estas respostas, somos levados por diversos caminhos que nos mostram a importância de pensar o corpo dos pontos de vista biológico, político, econômico e social. O corpo não é um mero artefato que passa incólume à experiência do outro. É preciso levar em consideração o contexto em que está inserido, as normas que o regem e regulamentam. É o que nos diz Michel Foucault em sua obra, onde o corpo aparece como arena para múltiplas forças que o vigiam, punem, disciplinam, não se atendo apenas à questão orgânica, ele é um campo onde operam diversos dispositivos de poder. Dispositivos estes que atuam inclusive na diferenciação dos corpos, que ao nascer, são divididos entre masculinos ou femininos. Que durante a vida, terão pré-estabelecidos diferentes normas e condutas, dependendo de qual genitália o corpo vem ao mundo. Ousar cruzar a fronteira de sexo/gênero, algo impensável aqui. Mas não vamos nos ater apenas às diferenciações feitas entre homens e mulheres, Foucault vai além: [...] as relações de poder existem entre um homem e uma mulher, entre aquele que sabe e aquele que não sabe, entre os pais e as crianças, na família. Na sociedade, há milhares e milhares de relações de poder e, por conseguinte, relações de forças de pequenos enfrentamentos, micro lutas de algum modo. Se é verdade que estas pequenas relações de poder são com frequência comandadas, induzidas do alto pelos grandes poderes de Estado ou pelas grandes dominações de classe, é preciso ainda dizer que, em sentido inverso, uma dominação de classe ou uma estrutura de Estado só podem bem funcionar se há, na base, essas pequenas relações de poder. O que seria o poder de Estado, aquele que impõe, por exemplo, o serviço militar, senão houvesse em torno de cada indivíduo todo um feixe de relações de poder que o liga a seus pais, a seu patrão, a seu professor – àquele que sabe, àquele que lhe enfiou na cabeça tal e tal ideia? (FOUCAULT, 2003, p. 231).

Para Foucault, o corpo como o conhecemos hoje, é fruto de disciplina de instituições como escola, hospitais, prisões, entre outros. A docilidade oferecida por estes corpos possibilita que através de mecanismos como o disciplinamento, eles possam ser manipulados, regulados e normalizados. Entendemos aqui que as noções de sexo, gênero e sexualidade também sejam parte destas regulamentações.

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Cabe lembrar que as concepções acerca do binarismo macho/fêmea, passaram por transformações ao longo do tempo. Conforme lembra Louro (2013), quando a Bíblia era o livro de autoridade, cuja verdade não ousava ser questionada, a relação da humanidade com seus corpos era uma, com o passar do tempo foi se transformando, chegando ao que hoje entendemos por corpos masculinos e corpos femininos. Dentre estas transformações, aspectos sobre a diferenciação dos sexos/gêneros, presentes no trabalho de Thomas Laqueur (2001). Quando até o início do século XIX, acreditava-se que o corpo masculino era o modelo ideal, sendo o feminino um corpo que por algum motivo da natureza, não conseguiu alcançar a perfeição. O feminino ocupava uma posição inferior na construção hierárquica dos corpos. Acreditava-se que a mulher tinha internamente os mesmos órgãos e genitália que os corpos masculinos externavam. Esse modelo também foi substituído por outro que apresentava dois corpos singulares, porém opostos, que é este modelo que até hoje conhecemos. E é também o modelo que trata como anormal qualquer outro que esteja fora deste binarismo, aqui, usemos como exemplo a experiência/vivência das pessoas intersexo. Apesar de mais liberal, este modelo ainda se estrutura numa lógica binária. Para pensar estes conceitos, é necessário ter em mente que eles não são objetos de uma única verdade e ao longo da História Ocidental, já passaram por modificações. Também não significa que por serem eles conceitos que estão num fluxo constante de transformação, devam ser ignorados quando pensarmos na constituição dos sujeitos e das identidades. É preciso olhar além e perceber os aspectos culturais, políticos, econômicos que a nossa relação com o corpo tem sido perpassada ao longo dos anos. Conforme Hall (2006) já apontava, não é uma tarefa fácil tentar mapear a noção de sujeito na pós-modernidade. As transformações decorrentes da Globalização reestruturaram completamente nossa maneira de viver em sociedade e nossa visão de mundo. O sujeito e a sociedade são concebidos de maneira dicotômica por diversos estudiosos. A vida em sociedade seria indissociável do indivíduo. Sem sociedade, o indivíduo não existiria e viceversa. Segundo Elias (1994, p.19) “o indivíduo é parte de um todo maior, que ele forma junto com outros”. Durkheim (1999) iria apontar que é necessário estudar os fenômenos sociais em si mesmos, separado do sujeito que o concebe, pois é desta maneira que eles se apresentam para nós. Segundo o autor, estas estruturas não dependem da ação do sujeito, visto que a sociedade é regulada como um imenso corpo social, no qual, cada indivíduo desempenha uma função, isolada e individualmente. Sendo assim, o indivíduo e a sociedade, não existiriam

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isoladamente e de forma unilateral. A identidade é, na pós-modernidade, uma questão difícil de ser concebida levando em consideração aspectos pré-determinados, dado a liquidez que, segundo Bauman (1998), a pósmodernidade está impregnada. Não existe mais uma estabilidade ou segurança nos tempos pós-modernos. Para muitos estudiosos, devido às mudanças decorrentes do dinamismo das relações na contemporaneidade, as identidades estariam em crise. É feito um esforço para determinar o papel do hibridismo na construção da identidade do sujeito contemporâneo. Em relação à construção das identidades sexuais e identidades de gênero dos indivíduos, estas só são possíveis na medida em que identificamos o “Outro”, ou seja, aquilo que não somos (WEEKS, 2010). Pensamos nossas identidades a partir de uma lógica binária. Sabemos que somos “heterossexuais”, pois não somos “homossexuais”, sabemos que somos sujeitos “homens”, quando não somos “mulheres”. A construção destas identidades são partes de um processo de subjetivação, ou seja, da maneira como o sujeito percebe a si mesmo na relação sujeito-objeto (FOUCAULT, 2004). Para Foucault, “os processos de subjetivação e de objetivação que fazem com que o sujeito possa se tornar, na qualidade de sujeito, objeto de conhecimento” (FOUCAULT, 2004, p. 236). E quanto às identidades que não se enquadram nestas normas regulatórias de sexo/gênero/desejo: que papel seria destinado a elas? Em outras palavras, a “coerência” e a “continuidade” da “pessoa” não são características lógicas ou analíticas da condição de pessoa, mas ao contrário, normas de inteligibilidade socialmente instituídas e mantidas. Em sendo a “identidade” assegura por conceitos estabilizadores do sexo, gênero e sexualidade, a própria noção de “pessoa” se veria questionada pela emergência cultural daqueles seres cujo gênero é “incoerente” ou “descontínuo”, os quais parecem ser pessoas, mas não se conformam às normas de gênero da inteligibilidade cultural pelas quais as pessoas são definidas. (BUTLER, 2012, p. 38)

Seria, portanto, necessário discutir a importância da identidade tida como norma, ao invés de uma característica descritiva da experiência humana, dado a vivência das pessoas que não se adequam aos limites discursivos de sexo/gênero/desejo (BUTLER, 2012). Afinal, esta cria seres que são tratados como abjetos. Seres que não têm valia na sociedade atual.

2.1. GÊNERO: MASCULINIDADES E FEMINILIDADES PERFORMATIVAS Scott (1990) conceitua o gênero como “uma forma primeira de significar as relações de poder”. Para abordar gênero com precisão, seria necessário discorrer sobre o movimento feminista, entender seu surgimento, suas “ondas” e suas demandas, mas não é a isto que

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vamos nos ater. A ênfase aqui é a diferenciação entre masculino e feminino, na sociedade contemporânea. Em diversas sociedades, a diferença dos corpos percebida pelos seres humanos levou à dicotomia masculino/feminino, sendo estas estabelecidas como básicas e primordiais, embora nem todas as culturas e sociedades tenham encarado estas diferenças da mesma maneira (LOURO, 2013). Aos corpos que carregavam em seus úteros e posteriormente amamentavam os filhotes humanos, ficavam reservadas atividades na esfera privada, relacionadas à reprodução, cuidados com a família, gestão do espaço doméstico, e aos corpos que se diferenciavam destes, era destinada a esfera pública (SCOTT, 1992). Estas práticas, ao mesmo tempo em que se concretizavam, propiciavam representações e interpretações enquanto criavam significados relacionados aos papéis sociais e elementos dados como masculinos e femininos. Desta forma, o masculino foi associado à cultura, àquilo produzido, criado pela ação humana, e o feminino foi associado à natureza, àquilo já determinado pela biologia. Culturalmente estas práticas engendravam em relações de poder, muitas vezes assimétricas, entre os seres. Este modelo dominante levou a concepção de um sistema patriarcal da sociedade. No contexto social, o conceito de gênero só foi existir após a II Guerra Mundial, quando psicólogos norte-americanos, entre eles John Money, Anke Ehrhardt e Robert Stoller, o usaram para diferenciar seus pacientes entre sexo (aspectos que consideravam biológicos e naturais) e o gênero (aspectos socioculturais) (SCOTT, 1990). Aparece novamente aqui, o binarismo natureza/cultura. Relacionado à natureza, os aspectos biológicos, à morfologia corporal e ao campo da cultura, aspectos relacionados ao gênero, à socialização dos indivíduos. Scott (1994) percebe o gênero constituído por relações sociais baseadas nas diferenças dos corpos, que por sua vez, se constituem no interior das relações de poder. Esses usos descritivos do gênero foram utilizados pelos (as) historiadores(as), na maioria dos casos, para mapear um novo terreno. Na medida em que os (as) historiadores (as) sociais se voltaram para novos temas de estudo, o gênero dizia respeito apenas a temas como as mulheres, as crianças, as famílias e as ideologias de gênero. Em outros termos, esse uso do gênero só se refere aos domínios – tanto estruturais quanto ideológicos – que implicam em relações entre os sexos. (SCOTT, 1990, p. 3)

Butler (2012) toma emprestado da linguística o conceito de performatividade, formulado por John L. Austin, para aplicá-lo às relações sociais baseadas nas diferenças corporais entre os seres ditos “masculinos” e “femininos”. Para a filósofa, a partir do momento em que nos referimos aos corpos ou ao sexo, produzimos os corpos e sujeitos,

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situando-os dentro da dicotomia masculino/feminino, macho/fêmea, homem/mulher, reiterando a heterossexualidade como padrão e tirando o espaço daqueles seres que não se enquadram morfologicamente neste binarismo. A estes, o papel reservado é de seres abjetos. Esta matriz excludente mediante a qual se formam os sujeitos requer, pois a produção simultânea de uma esfera de seres abjetos, daqueles que não são sujeitos, pelo que formam o exterior constitutivo do campo dos sujeitos... O abjeto designa precisamente aquelas zonas invisíveis, inabitáveis da vida social que (...) estão densamente povoadas por quem não goza da hierarquia dos sujeitos, mas cuja condição de viver abaixo do signo do invisível é necessária para circunscrever a esfera dos sujeitos. (BUTLER, 2010, p.155).

Como seres abjetos, podemos supor que aqui estejam inseridas as pessoas transgênero e intersexo, as quais a matriz compulsória de sexo/gênero/desejo, não pode ser aplicada. Para Preciado (2014), a categoria de gênero existe para justificar a existência da masculinidade e feminilidade. Atualmente, o conceito de identidade de gênero tem sido usado para se referir aos atributos culturais que definem quem é “homem” e quem é “mulher” em nossa sociedade (SEFFNER, 2006). Atributos estes que se baseiam em modos de ser, maneira de vestir, tons de voz, objetos que o indivíduo usa para seu adorno, etc. Estas escolhas situam o sujeito em um dos dois polos da dicotomia masculino/feminino. Louro (2000) lembra ainda da diferenciação que é feita entre gênero e sexualidade, da qual teóricas feministas têm recorrido constantemente: Ainda que gênero e sexualidade se constituam em dimensões extremamente articuladas, parece necessário distingui-las aqui. Estudiosas e estudiosos feministas têm empregado o conceito de gênero para se referir ao caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo; assim sendo, as identidades de gênero remetem-nos às várias formas de viver a masculinidade ou a feminilidade. Por outro lado, o conceito de sexualidade é utilizado, nesse contexto, para se referir às formas como os sujeitos vivem seus prazeres e desejos sexuais estariam relacionados aos diversos arranjos e parcerias que os sujeitos inventam e põem em prática para realizar seus jogos sexuais. No campo teórico dos estudos feministas, gênero e sexualidade são ambos, constructos sociais, culturais, históricos. No entanto, essa não é uma formulação amplamente aceita, especialmente quando se trata de sexualidade. Nesse terreno, mais do que em qualquer outro, os argumentos da ‘natureza’ parecem falar mais alto. (LOURO, 2000, p. 63-64).

Aqui a dicotomia anteriormente apontada continua a existir. Cultura/biologia, homem/mulher, macho/fêmea, masculino/feminino, etc.

2.2. SEXO: ELEMENTO PRÉ-DISCURSIVO OU CULTURAL?

Em seu livro Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud (2001), Thomas Laqueur, historiador de medicina, coloca o gênero como categoria constituinte do sexo.

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Laqueur traz para o debate aquilo que Foucault apontava sobre o saber utilizado como instrumento de poder. Seu pensamento vai de encontro ao que filósofas como Joan Scott, anteriormente citada, acreditavam, colocando o sexo quase como elemento pré-discursivo. O termo “sexo” tem sido usado para distinguir as diferenças anatômicas entre corpos que vem ao mundo com genitália masculina (pênis) e feminina (vagina), embora estas diferenças sejam dadas ao nascimento, seus significados são carregados de simbolismos históricos e sociais. O termo também é utilizado para descrever a relação entre os corpos, sejam eles com genitálias diferentes ou não (WEEKS, 2010). Seria possível referir-se ao sexo como uma característica pré-discursiva, anterior à cultura, na experiência humana ou, assim como o gênero, ele também seria uma construção social? Não existe um consenso sobre esta questão, porém filósofas como Judith Butler tem usado o trabalho de Michel Foucault para tentar se aproximar de uma resposta. Devemos reconhecer que existe uma hierarquia social que se baseia na materialidade dos corpos. Ainda que existam as diferenças morfológicas e biológicas entre estes, Butler (2012) propõe pensar o sexo em caráter cultural e linguístico. A categoria do "sexo" é, desde o início, normativa: ela é aquilo que Foucault chamou de "ideal regulatório". Nesse sentido, pois, o "sexo" não apenas funciona como uma norma, mas é parte de uma prática regulatória que produz os corpos que governa, isto é, toda força regulatória manifesta-se como uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir — demarcar, fazer, circular, diferenciar — os corpos que ela controla. Assim, o "sexo" é um ideal regulatório cuja materialização é imposta: esta materialização ocorre (ou deixa de ocorrer) através de certas práticas altamente reguladas. Em outras palavras, o "sexo" é um constructo ideal que é forçosamente materializado através do tempo. Ele não é um simples fato ou a condição estática de um corpo, mas um processo pelo qual as normas regulatórias materializam o "sexo" e produzem essa materialização através de uma reiteração forçada destas normas. (BUTLER, 2010, ps. 153-54)

Butler aponta ainda a necessidade de repensar inclusive o conceito de natureza, pois este tem uma história e se refere a esta como uma página em branco, sem vida. Este conceito estaria também vinculado à emergência dos meios tecnológicos de dominação (BUTLER, 2010). De fato, algumas pessoas têm argumentado que o repensar da natureza como um conjunto de inter-relações dinâmicas é apropriado tanto para objetivos feministas quanto para objetivos ecológicos (tendo produzido, para algumas pessoas, uma aliança com o trabalho de Gilles Deleuze que, se não fosse isso seria bastante improvável). (BUTLER, 2010, p. 157)

No momento em que repensamos o conceito de “natural”, abrimos possibilidade para que os corpos que não se enquadram nos binarismos vigentes na sociedade ganhem voz. É aqui que as pessoas transgênero e intersexo poderiam pensar os seus corpos como campos políticos, onde a heterossexualidade não seria mais a norma.

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A contrassexualidade é também uma teoria do corpo que se situa fora das oposições homem/mulher, masculino/feminino, heterossexualidade/ homossexualidade. Definir a sexualidade como tecnologia é considerar que os diferentes elementos do sistema sexo/gênero denominados “homem”, “mulher”, “homossexual”, “heterossexual”, transexual, assim como as suas práticas e identidades sexuais não são senão máquinas, produtos, instrumentos, aparatos, truques, próteses, redes, aplicações, programas, conexões, fluxos de energia e de informação. Interrupções e interruptores, chaves, leis de circulação, fronteiras, constrangimento, dissensos, lógicas, formatos, acidentes, detritos, mecanismos, usos, desvio… (PRECIADO, 2014, pgs. 22-23)

Trazendo aqui o conceito de contrassexualidade apresentado por Preciado, fica evidente a emergência em deixar de pensar de maneira binária os conceitos que regem as identidades sexuais e de gênero na sociedade.

2.3. SEXUALIDADE: ORIENTANDO O DESEJO Não se deve concebê-la como uma espécie de dado da natureza que o poder tenta pôr em xeque, ou como um domínio obscuro que o saber tentaria, pouco a pouco, desvelar. A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico. (FOUCAULT, 1993, p. 100)

O conjunto de modos que os indivíduos escolhem para viver e realizar seus desejos no âmbito sexual é chamado de sexualidade. Não há um consenso sobre esta definição, afinal, o campo da sexualidade é em si, um conceito abrangente e polimorfo, alvo de vigilância e cuidados. Qualquer sinal de uma sexualidade que fugisse à norma de reprodução era então considerado “anormal” (FOUCAULT, 1988). O fato é que a sexualidade está amparada na questão pessoal e na nossa vivência com o corpo, mas nem por isso, deixa de estar relacionada com questões mais amplas, que permeiam os cenários políticos, sociais e econômicos, ainda que pareça paradoxal. De acordo com Foucault (1988), em seu amplo estudo sobre a História da Sexualidade, a repressão tem início no século XVII e coincide com o início do sistema capitalista, a explicação para tanto seria para que a força de trabalho não se dissipasse na busca pelo prazer, sendo focada apenas para fins reprodutivos. Este biopoder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos. Mas, o capitalismo exigiu mais do que isso; foi-lhe necessário o crescimento tanto de seu reforço quanto de sua utilizabilidade e sua docilidade; foram necessários métodos de poder capazes de majorar as forças, as aptidões, a vida em geral, sem por isto torná-las mais difíceis de sujeitar; se o desenvolvimento dos grandes aparelhos de Estado, como instituições de poder, garantiu a manutenção das relações de produção, os rudimentos de anátomo e de bio-política, inventados no século XVII como técnicas de poder presentes em todos os níveis de corpo social e utilizadas por instituições bem diversas (a família, o Exército, a escola, a polícia, a medicina individual ou a administração das

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coletividades), agiram no nível dos processos econômicos do seu desenrolar, das forças que estão em ação em tais processos e os sustentam; operam também como fatores de segregação e de hierarquização social, agindo sobre forças respectivas tanto de uns como de outros, garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia; o ajustamento da acumulação dos homens à do capital, a articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro, foram, em parte, tornados possíveis pelo exercício do bio-poder com suas formas e procedimentos múltiplos. (FOUCAULT, 1988, p. 132-133)

Para ele, a sexualidade humana é sustentada em um regime de saber/poder/prazer (FOUCAULT, 1988). Também não é nosso intuito fazer um resgate da história desta sexualidade humana, mas é preciso situá-la como fenômeno social e histórico para podermos compreender os mecanismos que regem nossa vontade e nosso prazer na contemporaneidade. Segundo Weeks (2010), “a sexualidade é, entretanto, além de uma preocupação individual, uma questão claramente crítica e política, merecendo, portanto, uma investigação e uma análise histórica e sociológica cuidadosas” (WEEKS, 2010, p. 39). A necessidade compulsória da adequação entre sexo/gênero/desejo/prática sexual nos situa em uma sociedade heteronormativa. Toda e qualquer prática ou orientação do desejo que esteja fora do âmbito heterossexual, é vista como anormal (BUTLER, 2012). A própria linguagem é, em si, normativa e conivente com o ideal regulatório que normaliza os corpos. Examinemos outra vez as palavras — isto é, a linguagem — usadas para descrever a sexualidade. Eu gostaria de examinar, particularmente, a história de dois termos principais — termos que agora tomamos como dados, a um grau tal que supomos que eles têm uma aplicação universal: "heterossexualidade" e "homossexualidade". De fato, esses termos são de origem relativamente recente e vou sugerir que sua invenção — pois é disso que se trata — é um sinal importante de mudanças mais amplas. Para ser mais preciso, a emergência desses dois termos marca um estágio crucial na delimitação e definição modernas da sexualidade. Será, sem dúvida, uma surpresa para muitas pessoas saber que uma definição mais aguda de "heterossexualidade" como sendo a norma foi forçada precisamente pela tentativa de definir a "homossexualidade", isto é, a forma "anormal" de sexualidade, mas os dados de que agora dispomos sugerem que foi exatamente isso que ocorreu. (WEEKS, 2010, p. 61)

A divisão entre “heterossexualidade” e “homossexualidade”, tem sido a matriz norteadora da sexualidade moderna. E ela é em si, problemática. O próprio ato de tentar regulamentá-la, já não deveria ser encarado como natural, mas na nossa busca pelo controle do saber e do conhecimento, acabamos por cair nesta dicotomia. E ela não é a única que nos orienta enquanto sociedade contemporânea. O fato de ser problemática se dá no momento em que estabelece a heterossexualidade como o princípio norteador e os demais, como anomalias (WEEKS, 2010). Cabe aqui colocar que este processo de normatização das identidades sexuais e de gênero traz consigo o estigma

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de identidades deterioradas, apontado por Goffmann (1988). Se uma identidade é considerada normal, àquelas não hegemônicas só restariam aceitar a sua “incompletude” e inferioridade. Na ânsia de normatizar as identidades sexuais e de gênero, as questões de classe e etnia acabam sendo deixadas de lado. Afinal, aqui o que tem valor é o homem, branco, heterossexual. É necessário analisar as questões de poder que permeiam estas relações e que fazem parte da complexidade do comportamento sexual. A classe e o gênero não são as únicas diferenças que modelam a sexualidade. Categorizações por classe e gênero fazem intersecção com as de etnia e raça. Esse aspecto da sexualidade geralmente foi ignorado por historiadores/as e cientistas sociais até recentemente, mas ele é, todavia, um elemento vital da história da sexualidade. (WEEKS, 2010, p.58)

Conforme Weeks (2010) nos aponta, delimitar as identidades sexuais tem sido parte de um processo normalizador da sexualidade. Processo que institucionaliza a heterossexualidade, transformando nossa sociedade em heteronormativa. Exemplifico aqui o conceito de “heteronormatividade”, que ao longo deste estudo, será bastante utilizado: Por heteronormatividade entendemos aquelas instituições, estruturas de compreensão e orientações práticas que não apenas fazem com que a heterossexualidade pareça coerente – ou seja, organizada como sexualidade – mas também que seja privilegiada. Sua coerência é sempre provisional e seu privilégio pode adotar várias formas (que às vezes são contraditórias): passa despercebida como linguagem básica sobre aspectos sociais e pessoais; é percebida como um estado natural; também se projeta como um objetivo ideal ou moral. (BERLANT; WARNER, 2002, p.230)

A heteronormatividade permeia nossas relações nos campos sociais, políticos e econômicos. Ela orienta os sujeitos para que modelem suas vidas dentro deste padrão. Percebe-se a necessidade de pensar nossas vidas para além de um modelo que seja supostamente coerente ou correto.

2.4. TEORIA QUEER E A PÓS-IDENTIDADE (...) o termo queer funciona como uma declaração política de que o objetivo da teoria queer é o de complicar a questão da identidade sexual e, indiretamente, também a questão da identidade cultural e social. Através da ‘estranheza’, quer se perturbar a tranquilidade da ‘normalidade’. (SILVA, 2011, p. 105).

No final dos anos 80 e início dos anos 90, uma série de estudiosos oriundos do pósestruturalismo francês e dos estudos culturais começa delinear o que hoje chamaríamos de Teoria Queer. Teresa de Lauretis, pesquisadora e teórica italiana é a primeira a empregar o uso do termo “Teoria Queer”, em seu artigo “Queer Theory: Lesbian and Gay Sexualities”. O estudo foi publicado em 1991 na revista differences, mesmo que três anos depois, a autora tenha renunciado ao conceito, por considerá-lo desprovido de significado.

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O termo em si é amplamente utilizado em países de língua inglesa para designar “veado”, “bicha”, “sapatão”, “travesti” e as demais identidades desviantes quando relacionadas a gênero e sexualidade. Em uma tradução literal para o português, seu significado seria algo como “estranho”, “excêntrico”, “ridículo”, de qualquer forma, usado frequentemente de maneira pejorativa, para designar a perversão e o desvio. A ideia destes teóricos era então positivar este xingamento destinado a esta comunidade. Dar um novo significado ao termo, como uma maneira positiva de auto identificação, que se coloca como uma prática de vida contrária ao que é socialmente aceito e ainda colocar-se contra a normalização dos corpos e identidades, segundo aponta Colling (2007). A normalização que o queer se opõe é a da heterossexualidade compulsória que os indivíduos são induzidos nas sociedades. Para Louro (2013), o queer representa o diferente que não faz questão alguma de ser aceito ou tolerado, sua forma de ação é agressiva e perturbadora. Falar do queer é falar da margem, da margem que não faz questão alguma de ser assimilada. É falar das diferenças que nos tornam únicos. O queer é ainda a não aceitação do caráter médico que o termo homossexual vem impregnado. Os estudos queer estão inseridos nas vertentes do pós-estruturalismo e pósmodernismos, correntes do pensamento ocidental contemporâneo que problematizam as questões de identidade, sujeito, agência e identificação, embora não seja suficiente situá-los apenas dentro desta ou daquela corrente teórica (LOURO, 2013). Neste contexto, os estudos de Michel Foucault foram fundamentais na formulação da Teoria Queer, especialmente no que tange à questão da sexualidade e os discursos controladores impostos pela igreja, pelas ciências médicas, pela psiquiatria, pelo direito, conforme lembra Louro (2013). Assim como Foucault, Jaques Derrida e sua corrente teórica da Desconstrução tiveram um papel relevante para os teóricos queer. O posicionamento binário que o pensamento metafísico ocidental se baseava, como forma de estabelecer hierarquia e supremacia de um termo sobre o outro, era aqui questionado e por isso sua importância para os estudos queer. As dicotomias

macho/fêmea,

homem/mulher,

hétero/homo

iam

aos

poucos

sendo

problematizados e desconstruídos por este grupo de estudiosos. O fato é que a teoria queer propõe um rompimento epistemológico. Ela nos propõe repensar o sujeito e as identidades. Pensar queer significa questionar, problematizar, contestar todas as formas bemcomportadas de conhecimento e de identidade. A epistemologia queer é, neste sentido, perversa, subversiva, impertinente, irreverente, profana, desrespeitosa. (SILVA, 2000, p. 107)

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Conforme aponta Louro (2013, p. 62), “é possível afirmar que essa é uma teoria pósidentitária: o foco sai das identidades para a cultura, para as estruturas linguísticas e discursivas e para seus contextos institucionais”. Daí a importância de trazer este debate para o campo da comunicação. A subversão que o queer impõe pode ser construtiva, ainda que desafiadora, para o campo do jornalismo.

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CAPITULO 03 – INFÂNCIA, SEXUALIDADE E GÊNERO Os defensores da infância e da família apelam à família política que eles mesmos constroem, e a uma criança que se considera de antemão heterossexual e submetida à norma de gênero. (…) Quem defende o direito das crianças diferentes? Os direitos do menino que adora se vestir de rosa? Da menina que sonha em se casar com a sua melhor amiga? Os direitos da criança queer, bicha, sapatão, transexual ou transgênero? Quem defende o direito da criança a mudar de gênero, se for da vontade dela? Os direitos das crianças à livre autodeterminação de gênero e de sexualidade? Quem defende os direitos da criança a crescer num mundo sem violência sexual ou de gênero? (PRECIADO, 2013)

O pensar a infância na sociedade ocidental é o pensar em uma infância que nasce predisposta à heterossexualidade, que deverá se encaixar em identidades sexuais e de gênero pré-estabelecidas. O corpo do bebê antes mesmo de vir ao mundo é envolto em embates que visam “descobrir” o seu sexo e gênero. Será uma menina? Um menino? Qual a cor do enxoval? Como primeiro passo, a mãe é submetida a uma ecografia ou ultrassonografia, procedimento que a partir da análise de possíveis protuberâncias genitais, poderá definir se a criança é pertencente ao sexo/gênero masculino ou feminino. Atentemos aqui, para o quesito sexo, que como abordado no capítulo anterior, se trataria de um elemento prédiscursivo. Em caso de uma indeterminação, análises cromossômicas irão indicar se o corpo do bebê estará predisposto a vir ao mundo como menino ou menina. Caso a análise cromossômica tenha como resultado XX, o bebê é dado como pertencente ao sexo feminino, caso seja XY, masculino. E pronto, os pais poderão respirar aliviados e partir para a preparação do enxoval da criança. Rosa ou azul serão estas as cores que ao longo da infância, prevalecerão no guarda-roupa deste pequeno ser. Este é apenas o início de uma trajetória que os pais esperam de uma infância “normal”. Qualquer sinal de anomalia deve ser encarado com cuidado e atenção. Ao longo da infância, o corpo infantil irá passar por uma série de disciplinamentos que irão ensiná-los como se comportar de acordo com o “gênero ao qual nasceram”. Estes disciplinamentos não ficam restritos à esfera familiar, estão por toda parte, desde o momento em que iniciam em espaços de aprendizado, até o frequentar ambientes médicos e religiosos (FOUCAULT, 1993). Se a criança nasceu com determinada genitália, dada como masculina, a ela estão resguardados códigos, vestimentas, comportamentos, que estejam de acordo com os papéis de determinado gênero. Se ela nasceu com um pênis, espera-se que brinque com carrinhos, tenha atitudes distantes da sensibilidade (“meninos não choram”, irá

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ouvir ao longo da vida), use peças de roupas exprimindo sua masculinidade, que seja agressivo e entenda seu papel de “macho” na sociedade. Papel este que de forma subjetiva, mostra à criança seu lugar de superioridade em relação ao feminino. Se a criança nasceu com uma vagina, são esperadas atitudes dóceis, que use cores e artefatos demonstrando toda sua feminilidade, sensibilidade e fragilidade. Dela não serão aceitos comportamentos agressivos, como aqueles ensinados aos meninos, pois garotas devem ser submissas, delicadas. Espera-se que não sejam pivetes, que brinquem com bonecas, que gostem de casinha e por aí vai. Aqui começa o disciplinamento para viver em uma sociedade heteronormativa. Além destes papeis de gênero, uma coerência entre sexo/gênero/desejo é também esperada (PRECIADO, 2014). Esta criança será instruída a agir de acordo com o sexo/gênero ao qual veio ao mundo, deverá sentir atração apenas por seres que sejam do sexo/gênero oposto ao seu. Na escola, disciplinamento e vigilância continuam. Os pais devem ficar atentos a qualquer atitude destoante. Sinais de inadequação precisam ser reprimidos, para que no futuro, não errem, para que saibam e possam desempenhar com clareza seus papeis sexuais e de gênero. E quanto àquelas crianças que nascem com genitálias ambíguas ou indeterminadas? Que tratamento é dispensado a elas? As denominadas crianças intersexuais, até pouco tempo chamadas de “hermafroditas”4, estas desde o momento do nascimento, são objeto de dominação e controle nada subjetivos, especialmente pelo campo da medicina. Conforme Preciado (2014), os corpos intersexuais, na impossibilidade de terem seu sexo determinado por meios ultrassonográficos, são submetidos a exames cromossômicos, que determinarão se o ser que é esperado pertence ao gênero masculino ou feminino (XX ou XY). Descoberto este dado, frequentemente entre 3 meses e os 4 anos, são subordinados a operações de redesignação sexual. Operações similares àquelas que os corpos de pessoas transexuais são submetidos na idade adulta, seja de reconstrução do canal vaginal (que futuramente deverá estar apto a receber um pênis adulto, de acordo com a heteronorma) ou de reconstrução peniana. Aqui não cabe qualquer hipótese de que esta criança posteriormente não se identifique com o papel de gênero ou sexo a ela designado por autoridades médicas ou 4

Termo em desuso, que designa espécies com a capacidade de se auto reproduzir, o que não é condizente com a espécie humana.

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familiares. Estas intervenções cirúrgicas ocorrem até a fase da adolescência, muitas vezes com o auxílio de estrógeno ou testosterona, dependendo do objetivo, que comumente visa se adequar a um corpo feminino ou um corpo masculino dito “normal”. O objetivo destas intervenções, para a medicina, é de que no futuro, esta criança tenha uma vida sexual “normal”, que tenha seu sexo alinhado com sua identidade de gênero. Que fique claro, que se tratam de intervenções complexas, das quais não é a finalidade deste estudo aprofundar. O ponto que queremos chegar é o processo nada subjetivo de imposição de sexo e gênero, organizado pelas instituições médicas sobre estes corpos, ditos “anormais” nesta fase inicial da infância. O fato é que, independente de qual seja a infância, ela é permeada de expectativas por parte dos grandes. Expectativas que visam moldar o futuro adulto que esta criança deverá se tornar (LARROSA, 1998). Estas expectativas sempre tem o adulto como norma. Este será o primeiro espelho a definir o tom normalizante. Porém esquecemos que a infância trata-se do saber que a nós, adultos, não pertence. Ainda que tentemos subjuga-la através do poder e dominação. A alteridade da infância não é a nós alcançável, na medida em que sua verdade não é abarcável dentro do nosso saber. 3.1. INVENTANDO UMA INFÂNCIA

Antes de chegarmos ao objetivo inicial deste capítulo, é necessário fazer um resgate do surgimento do conceito de infância na cultura ocidental. Historiadores, dentre eles Philippe Ariès, que durante muito tempo se dedicou aos estudos da infância e da família, nos fizeram olhar para o conceito de infância como um construto social e histórico. Ariès (1981) lembra que, somente no século XIX, a infância foi se tornar objeto de estudo científico. Para o autor, a infância do modo que a compreendemos hoje é um conceito relativamente novo, que data do séc. XVI. Segundo Ariès, o surgimento de um “sentimento de infância” acontece por meio de uma distinção progressiva entre os universos dos adultos e das crianças, sem ter relação com a idade biológica do indivíduo, mas sim por uma série de investimentos culturais que são feitas sobre este sujeito. Ariès (1981) afirma que durante a Idade Média, a vida era dividida entre seis diferentes etapas. Na 1ª delas, do nascimento aos 7 anos, a 2ª etapa, dos 7 aos 14, a 3ª dos 14 aos 21 anos, e estas três etapas iniciais, não tinham tanta importância social. A 4ª etapa, que durava dos 21 aos 45 anos, era aquela onde as pessoas começavam a ganhar

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relevância dentro da sociedade. Na 5ª etapa, dos 45 aos 60 anos, a pessoa não era considerada velha, porém já havia passado da juventude, e, finalmente, a 6ª etapa, a velhice, dos 60 anos em diante, até a morte. Ariès lembra ainda que as terminologias que demarcavam estas etapas durante a Idade Média pareciam puramente verbais (infância e puerilidade, juventude e adolescência, velhice e senilidade). Alguns destes termos foram adotados ao longo do tempo, passando a designar noções abstratas da vida, como é o caso de puerilidade ou senilidade, que atualmente ganharam sentidos diferentes dos originais (ÀRIES, 1981, p.33). Segundo o autor, as etapas da vida não tinham momentos tão demarcados como hoje as compreendemos, o que colocava o sujeito infantil muito mais vulnerável e carente de cuidados dos adultos do que atualmente. A duração da infância era reduzida a seu período mais frágil, enquanto o filhote do homem ainda não conseguia bastar-se; a criança então, mal adquiria algum desembaraço físico, era logo misturada aos adultos, e partilhava de seus trabalhos e jogos. De criancinha pequena ela se transformava imediatamente em homem jovem, sem passar pelas etapas da juventude, que talvez fossem praticadas antes da Idade Média e que se tornaram aspectos essenciais das sociedades evoluídas de hoje. (ÀRIES, 1981, p.10)

Os estudos de Ariès apontam ainda para as relações de poder que perpassavam os corpos infantis. A infância tinha um déficit muito superior aos dias atuais em relação ao corpo, ao mesmo tempo em que algumas figuras infantis tinham um poder imenso, como é o caso de Luís XVI, rei da França, citado diversas vezes por Ariès. O soberano recebia tratamento dispensado aos adultos por seus criados e cortesãos. Do contrário, a ideia de infância estava ligada à submissão, à dependência: (…) as palavras fils, valets e garçons eram também palavras do vocabulário das relações feudais ou senhoriais de dependência. Só se saía da infância ao se sair da dependência, ou, ao menos, dos graus mais baixos da dependência. Essa é a razão pela qual as palavras ligadas à infância iriam subsistir para designar familiarmente, na língua falada, os homens de baixa condição, cuja submissão aos outros continuava a ser total: por exemplo, os lacaios, os auxiliares e os soldados. (ÀRIES, 1981, p.42)

O fato do sujeito infantil não aparecer nos registros históricos, não nega, porém, sua presença biológica em nossa sociedade, apenas nos sugere que antes do século XVI, a existência da criança como uma categoria específica do gênero humano não era um fato admitido pela consciência social (ÀRIES, 1981). A figura infantil como a que conhecemos hoje de fato só viria a emergir na Modernidade, com o surgimento da escola de massas, da nuclearização da família e a constituição de um corpo de saberes sobre a criança.

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A partir de uma análise do traje infantil, Ariès indica que o sentimento de infância beneficiou primeiro os meninos. As meninas tinham uma desvantagem, pois, como observa o autor, elas permaneciam mais tempo vivendo de acordo com o modo tradicional, que não as distinguia dos adultos. Também é importante observar a desvantagem das crianças que pertenciam a classes do povo, filhos de camponeses e artesãos. Estes continuavam usando os mesmos trajes dos adultos. Não havia separação fosse através das vestimentas, do trabalho ou até mesmo de jogos e brincadeiras (ARIÈS, 1981). Se nos limitarmos ao testemunho fornecido pelo traje, concluiremos que a particularização da infância durante muito tempo se restringiu aos meninos. O que é certo é que isso aconteceu apenas nas famílias burguesas ou nobres. As crianças do povo, os filhos dos camponeses e dos artesãos, as crianças que brincavam nas praças das aldeias, nas ruas das cidades ou nas cozinhas das casas continuaram a usar o mesmo traje dos adultos: jamais são representadas usando vestido comprido ou mangas falsas. Elas conservaram o antigo modo de vida que não separava as crianças dos adultos, nem através do traje, nem através do trabalho, nem através dos jogos e brincadeiras. (ÀRIES, 1981, p.81)

No Brasil, em relação ao espaço escolar, com a institucionalização das “escolas de primeiras letras” durante o Período Imperial, as chamadas pedagogias, de cunho eminentemente religioso, se espalhavam por diferentes cidades, vilas e lugarejos. Havia o cuidado de oferecer professores para classes compostas por meninos e professoras, para aquelas compostas por meninas, ainda que as escolas destinadas aos garotos fossem superiores àquelas ofertadas para as meninas (RIBEIRO, 2006). Este costume não ficava restrito apenas ao Brasil, foi uma cultura aprendida com a colonização. Por que, a fim de distinguir o menino dos homens, se assimilava o primeiro às meninas, que não eram distinguidas das mulheres? Por que esse costume, tão novo e tão surpreendente numa sociedade em que se entrava cedo na vida, durou quase até nossos dias, ou ao menos até o início deste século, apesar das transformações dos costumes e do prolongamento do período da infância? Tocamos aqui no campo ainda inexplorado da consciência que uma sociedade toma de seu comportamento com relação à idade e ao sexo: até hoje, só se estudou sua consciência de classe! (ÀRIES, 1981, p.79)

Como lembra Louro (1997), os docentes deveriam ser pessoas de maior respeito e moral intacta dentro da sociedade, afinal, eram ali que seus filhos seriam educados, onde aprenderiam suas primeiras letras. Estas normas de boa conduta eram, porventura, valores organizados dentro do inconsciente coletivo, de forma a naturalizar e docilizar estes corpos que ali estariam prontos para aprenderem as regras sociais. O papel da educação na construção das identidades não poderia ser aqui esquecido. Também é no espaço escolar que as identidades sexuais e de gênero são

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ensinadas. Sabat (2004) traz um apontamento pertinente, relacionado à questão dos espaços de aprendizado. Para ela: No caso específico das identidades de gênero e sexuais, tais elementos ensinam modos específicos de feminilidade e de masculinidade; ensinam formas corretas de viver a sexualidade; ensinam maneiras socialmente desejáveis para os sujeitos levando o sexo de cada um, de acordo com os modos pelos quais tais identidades são representadas. (SABAT, 2004, p.98)

Para Bourdieu (1994), a família também é cúmplice na atribuição destes papeis pelos quais as crianças serão socializadas. Dentro do ambiente familiar são reproduzidos e perpetuados padrões de comportamentos que auxiliam no processo de socialização do sujeito. Diferenças das variadas ordens e acesso aos bens de cultura definirão o comportamento e o rendimento, relacionado à educação. Os espaços escolares e familiares serão os primeiros aonde o indivíduo irá introjetar e expressar papeis relacionados à sua identidade de gênero e sexualidade. Esta é uma construção que se dá através de comportamentos, atitudes, gestos, de maneira a envolver o afeto, emoções e acontece muitas vezes de maneira subjetiva. Ela extrapola o limite biológico. A construção destas identidades acontece de tal forma que não seria justo querer determinar a elas fatores biológicos. Conforme aponta Haraway, em seu Manifesto Ciborgue, após muita luta para reconhecermos que os elementos de gênero, raça, classe são social e historicamente construídos, seria contraditório acreditar que eles formem uma unidade “essencial”. Não existe nada no fato de ser “mulher” que naturalmente una as mulheres. Não existe nem mesmo uma tal situação – “ser” mulher. Trata-se, ela própria, de uma categoria altamente complexa, construída por meio de discursos científicos sexuais e de outras práticas sociais questionáveis. A consciência de classe, de raça ou de gênero é uma conquista que nos foi imposta pela terrível experiência histórica das realidades sociais contraditórias do capitalismo, do colonialismo e do patriarcado. (HARAWAY, 2000, p. 52)

Determinadas dicotomias presentes nas tradições ocidentais são essenciais para as tecnologias de dominação e controle. Elas foram criadas para espelhar um Eu dominante, ao mesmo tempo em que cria o outro subjugado (HARAWAY, 2000). Sobre estas dicotomias e construções, será necessário aprofundar em outro ponto deste estudo.

3.2. INFÂNCIA E OS PAPEIS DE GÊNERO

Chegamos ao ponto em que precisamos analisar a maneira que os papeis de gênero são distribuídos na infância. Durante muito tempo permeou a identificação do masculino e do feminino como um elemento natural, dado pela genitália com a qual o

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sujeito vinha ao mundo. Apenas recentemente este fator, posto como natural e biológico, começou a ser contestado, principalmente pelos Estudos Feministas. A partir de então, a categoria gênero passou a ser compreendida como uma construção social, produto de ações e relações socialmente estabelecidas. Para Carvalho (1999), o conceito de gênero é relativamente novo, traz consigo aspectos do masculino e do feminino como uma construção social, aspectos estes que possibilitam refletir sobre os atributos predeterminados aos homens e às mulheres. Desde o nascimento, a regra é que você para ser “normal”, precisa se adequar a um papel, seja masculino ou feminino. Caso tenha nascido com determinada genitália, espera-se determinado tipo de comportamento. Também é esperado que goste de se vestir de determinada maneira. O detalhe, porém, é que as maneiras que a sociedade propõe são intrinsecamente binárias e heterocentradas. Meninas deverão gostar de rosa, meninos deverão gostar de azul. Meninas serão meigas, dóceis, delicadas, enquanto meninos, estes serão agressivos, não irão demonstrar sentimentos (“meninos não choram”, dirão novamente). Seus papeis já estão bem estipulados. O enxoval já tem suas cores definidas, suas roupas já foram escolhidas, assim como seus brinquedos. Para as garotas, bonecas, ursinhos, casinha. Tudo que relacione à intimidade, ao ambiente familiar e doméstico. Para os garotos, bolas de futebol, carrinhos, bonecos de aventura, armas de brinquedo... Elementos que reforcem o estereótipo machão e que estejam relacionados ao social, ao ambiente externo. Se você for um garoto e gostar de bonecas, correrá o risco de ser chamado de nomes como “maricas”, “menininha”... Se for menina e ousar gostar de futebol, será mal vista, ganhará apelidos como “Maria João”, “sapata”, entre outros. Desde muito cedo, a infância é dominada por códigos que remetem ao binarismo de gênero. Você precisa se adequar, ou é um ou é outro. Não há como fugir. Não existe um meio termo. Dificilmente os pais irão entender uma criança que não se identifica com os códigos que já estão impostos. Ou muito menos, quando uma criança nasce com uma genitália ambígua. Os pais desta criança possivelmente serão orientados a procurar “ajuda” profissional. Afinal, seu filho/a pode estar com problemas de identidade. Para Preciado (2013), a criança funciona como um artefato biopolítico que garante a normalização do adulto. É na infância que serão pré-determinadas diversas regras de gênero que irão controlar os corpos adultos. Se estes corpos fugirem à regra heterossexual, o adulto

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“normal” estará em risco. A polícia de gênero vigia o berço dos seres que estão por nascer, para transformá-los em crianças heterossexuais. A norma ronda os corpos meigos. Se você não é heterossexual, é a morte o que te espera. A polícia de gênero exige qualidades diferentes do menino e da menina. Dá forma aos corpos com o objetivo de desenhar órgãos sexuais complementares. Prepara a reprodução da norma, da escola até o Congresso, transformando isso numa questão comercial. A criança que a Frigide Barjot deseja proteger é a criatura de uma máquina despótica: um copeísta diminuído que faz campanha para a morte em nome da proteção da vida. (PRECIADO, 2013)

Frigide Barjot, citada por Preciado, é Virginie Merle5, humorista e ativista francesa que se tornou figura pública em janeiro de 2013, quando fez uma campanha pública contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, além de ser contra a adoção de crianças por pessoas LGBT. Frigide/Virginie é líder do movimento La Manif pour Tous6, grupo de ONGs que neste mesmo ano levou milhares às ruas da França (de Paris, em particular) para combater a união entre casais do mesmo sexo (ou “le mariage pour tous”7, como utilizado na campanha francesa). Tinham como lema a frase “protejam as nossas crianças”. Seu nome é uma espécie de “homenagem” à outra francesa famosa, Brigitte Bardot, atriz conhecida por defender as causas animais e por suas opiniões conservadoras. Após as eleições de 2012 na França, Frigide conseguiu cativar e movimentar seguimentos conservadores da sociedade francesa, fazendo-os sair às ruas. O quê Frigide/Virginie esquece, ao defender as criancinhas, é daquelas que não se encaixam na regra, como bem lembrou Preciado em seu artigo Qui défend l'enfant queer?8, publicado após as manifestações nas ruas francesas, em sua coluna no jornal Libération. A criança defendida por Frigide é aquela que se adequa às normas pré-determinadas de gênero e sexualidade. Apenas estas. Que, em sua opinião, possivelmente, serão as únicas capazes de continuar o trabalho que o Deus bíblico a elas destinou. “Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra”, é o que dizem as escrituras. Os papeis de gênero, defendidos enfaticamente por Frigide Barjot, são apreendidos através de artefatos da cultura. São marcas de gênero que ao longo da vida nos envolvem, mesmo sem darmos conta. Somos socializados por meio destes papeis. Seja através da vestimenta, das brincadeiras, das atividades físicas. Lá estão eles. E são apenas dois. Não há como fugir. Masculino ou feminino. São estas as possibilidades. 5

Estadão: Outra Bardot conservadora. Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/geral,outrabardot-conservadora,1026236. Acesso em: 01 de Outubro de 2015. 6 “A manifestação por todos”, em tradução livre feita pelo autor. 7 “O casamento para todos”, em tradução livre feita pelo autor. 8 “Quem defende a criança queer?”, em tradução livre feita pelo autor.

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Os mecanismos que instituem o gênero aparecem nas mais diferentes formas ao longo da socialização do sujeito, eles nos auxiliam a dar significado ao mundo que nos rodeia. Estão presentes seja através de entidades reais, simbólicas ou imaginárias. Um bom exemplo para analisar como as crianças são suscetíveis aos estereótipos de gênero é analisando um estudo de Harter e Chao (1992), sobre amigos imaginários na infância. Segundo este estudo, estes amigos imaginários auxiliam as crianças a lidar com questões de competências e habilidades. Os resultados mostraram que os garotos criam amigos imaginários supercompetentes, habilidosos física e cognitivamente, enquanto garotas tendem a criar amigos imaginários pouco competentes, com habilidades intelectuais e físicas limitadas, carentes de instrução e cuidado (HARTER; CHAO, 1992). Voltamos aqui à imagem frágil do feminino e à valentia do masculino. Os papeis de gênero não estão presentes apenas na simbologia das cores rosa e azul, que basicamente compõe os guarda-roupas de meninos e meninas na sociedade ocidental. As cores não se restringem ao universo infantil. Rosa e azul são amplamente utilizadas pela mídia para demarcar territórios da feminilidade e masculinidade. As campanhas de Outubro Rosa e Novembro Azul, voltadas para o público adulto, que atuam no combate ao Câncer de Mama e Próstata respectivamente, nada tem de infantil. Elas exemplificam bem o alcance atingido por estas questões relacionadas aos papeis de gênero e a importância dos mesmos na vida dos sujeitos, sejam eles masculinos ou femininos. Até pouco tempo, estas cores, rosa e azul, davam significado a diferentes universos, inversos ao atual. Estas são construções da publicidade e do marketing. Da mesma forma que o traje infantil evoluiu com o passar dos anos. Ariès (1981) lembra a maneira que esta transformação ocorreu na sociedade europeia. Até meados do século XIV, a criança se vestia como adulto, independente do gênero. Neste momento, uma transformação no traje infantil viria acontecer. A criança passa a se vestir de maneira específica, não mais como os adultos, ainda que este processo seja marcado por um atraso em relação às meninas, que continuariam durante um tempo, se vestindo da mesma maneira. Por volta de 1770, os meninos deixaram de usar o vestido com gola aos quatro-cinco anos. Antes dessa idade, porém, eles eram vestidos como meninas, e isso continuaria até o fim do século XIX: o hábito de efeminar os meninos só desapareceria após a Primeira Guerra Mundial, e seu abandono deve ser relacionado com o abandono do espartilho das mulheres: uma revolução do traje que traduz a mudança dos costumes. É curioso notar também que a preocupação em distinguir a criança se tenha limitado principalmente aos meninos: as meninas só foram distinguidas pelas mangas

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falsas abandonadas no século XVIII, como se a infância separasse menos as meninas dos adultos do que dos meninos. (ÀRIES, 1981, p.78)

Durante a I Guerra Mundial, os tons pastel passaram a ser usados para bebês, antes disso optava-se pelo uso do branco, apenas, fosse para meninos ou meninas. Em alguns casos, como no dos orfanatos franceses, os tons pastel eram os usados comumente para os bebês. Neste caso, rosa para meninas e azul para os meninos. Mas não era a regra, pois na Bélgica, Suíça e em parte da Alemanha, o que valia era o contrário. A associação das cores azul para meninos e rosa para meninas como regra foi ocorrer nos Estados Unidos, na década de 1940, através de um processo alavancado pela publicidade das empresas de vestuário, que tinham interesse em padronizar a produção, visando o lucro em uma escala maior (PAOLETTI, 2012). Estes dados são frutos da pesquisa de Jo B. Paoletti, autora do livro Pink and Blue: Telling the girls from the boys in America, que analisa como as cores rosa e azul se tornaram referenciais para os gêneros. Segundo a autora, nem sempre foi assim. Paoletti (2012) foi buscar em catálogos, publicidade, livros de bebê, blogs para mães, fóruns online, dados que a ajudassem a compreender como estas cores passaram a determinar os gêneros. Ela acabou descobrindo evidências sugerindo que esta seja uma construção recente na História Ocidental, impulsionadas pelo marketing e pela publicidade após a II Guerra Mundial, mesmo período em que o conceito de gênero passou a existir no contexto social, como já vimos no capítulo anterior deste estudo. Antes disso, a associação “rosa para meninas” e “azul para meninos” era inexistente. Inclusive, artigos de datas anteriores, mostram o contrário. É o caso da revista Earnshaw's Infants’ Department, voltada para o varejo, e também na Ladies’ Home Journal que em 1918 indicava a cor rosa para meninos, por se tratar de uma cor “forte e assertiva”, já o azul, por ser “delicado e meigo”, era uma cor indicada para as garotas. Em 1927, a revista Time publica um quadro onde detalhava a oferta preferencial de cores nas lojas de departamento norte-americanas, era possível perceber que não havia uma um critério claro, mas buscava-se um. De acordo com o quadro, cerca de 60% das lojas indicavam a cor rosa para meninos (PAOLETTI, 2012). No Brasil, este padrão possivelmente só ganhou forma a partir da década de 1970, quando a indústria nacional de vestuário passou a investir no mercado infantojuvenil, segmento até então pouco explorado (PINSKY; PEDRO, 2013). A partir destas análises, é possível afirmar que não existem razões ancestrais ou genéticas que

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justifiquem o uso destas cores como determinação de gênero. Uma série da fotógrafa sul-coreana JeongMee Yoon, intitulada The Pink & Blue Project (Figuras 01 e 02), que teve início em 2005 retrata também a influência da publicidade e do marketing no imaginário infantil, quando relacionado aos papeis de gênero na infância. Após observar o interesse de sua filha Seowoo, de 5 anos, por brinquedos e roupas na cor Pink (rosa), ela decidiu fotografar crianças com seus brinquedos e roupas favoritos. O resultado da série é uma fascinante análise sobre a predominância destas cores no imaginário infantil e sua influência na formação dos papeis de gênero durante o período da infância. O azul simbolizando a força e coragem da masculinidade, enquanto a cor rosa simboliza a fragilidade e docilidade da feminilidade.

Figura 1: Kara-Dayeoun and Her Pink Things, da série The Pink Project, 2008.

Fonte: JeongMee Yoon (www.jeongmeeyoon.com)

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Figura 2: Kevin-Donghu and His Blue Things, da série The Blue Project, 2008.

Fonte: JeongMee Yoon (www.jeongmeeyoon.com)

A fotógrafa registrou crianças de diferentes culturas e etnias rodeadas de seus itens favoritos (roupas, acessórios e brinquedos). O trabalho de JeongMee Yoon estabelece uma relação entre gênero/identidade de gênero na infância e os padrões de consumo. Ao fotografar as crianças rodeadas de seus brinquedos, a fotógrafa retrata uma disparidade na maneira que isto reflete na construção da identidade da criança. Não há margem para meninos se identificarem com itens de cor rosa e vice-versa. Ao longo do tempo, JeongMee reeditou algumas destas fotos e percebeu algumas mudanças, como no caso das meninas gêmeas, Lauren e Carolyn. Enquanto uma delas continua gostando apenas de rosa, a outra tende a gostar de roxo. A própria filha da fotógrafa serviu de modelo para o projeto. Ela foi fotografada em três momentos. A primeira em 2005, aos 5 anos de idade. Depois em 2008 e por fim em 2009. As fotos mostram uma evolução da cor rosa para o roxo, no gosto de Seowoo. Em caminho contrário à separação por gênero comum às redes de varejo, em agosto de 2015 a norte-americana Target decidiu abolir a classificação de gênero em suas lojas. O fato ocorreu em junho do mesmo ano, após a reclamação de uma mãe via Twitter, questionando uma sinalização sobre “brinquedos de montar para meninas” e que teve enorme repercussão.

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Na mesma onda, empresas como Amazon e Disney Store UK, também decidiram abolir a segmentação por gênero de seus sites e lojas, respectivamente. No caso da Disney Store UK, o fato também aconteceu após a reclamação de uma consumidora, neste caso, Izzy Cornthwaite (Figura 03), de 8 anos, que ao entrar no site da loja e descobrir que a fantasia de Darth Vader, pela qual se interessava, era descrita como fantasia “para meninos”. Encorajada pela mãe, a garota decidiu escrever à rede de lojas, solicitando a abolição da segmentação por gênero da empresa.

Figura 3: Izzy Cornthwaite e sua fantasia de Darth Vader

Fonte: THE SUN - 08 de Julho de 2015 (www.thesun.co.uk)

Obviamente que a reprodução dos papeis de gênero não ficam restritos às interações relacionadas ao vestuário e brinquedo, porém, estes demarcam uma grande parcela da categoria constitutiva de gênero. As diferenças entre masculinidades e feminilidades são aprendidas dentro do contexto social. Estas separações não são fixas nem constituem uma ontologia, elas são trabalhadas dentro do discurso, das práticas e pedagogias culturais (LOURO, 2013). É também neste contexto que as práticas de dominação e poder são estabelecidas. Segundo Foucault (1987, p. 11), o Outro tem um papel fundamental na construção das diferenças: “[...] questão central a conduta do outro ou dos outros e que

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podem recorrer a técnicas e procedimentos diversos, dependendo dos casos, dos quadros institucionais em que ele se desenvolve dos grupos sociais ou das épocas”. Segundo o mesmo autor, os jogos de verdade são constituídos dentro de instâncias muitas vezes subjetivas. […] existem, na sociedade, ou pelo menos, em nossas sociedades, vários outros lugares onde a verdade se forma, onde um certo número de regras de jogo são definidas – regras de jogo a partir das quais vemos nascer certas formas de subjetividade, certos domínios de objeto, certos tipos de saber – e por conseguinte podemos, a partir daí, fazer uma história externa, exterior, da verdade. (FOUCAULT, 2003, p. 11)

É nesta subjetividade que as diferenças de gênero são trabalhadas. Como lembra Louro (2010), o ambiente escolar é também um espaço onde se aprendem as regras e condutas de gênero. Ali o menino aprende que deve controlar seus sentimentos, que demonstrações de emoção seriam destinadas apenas ao feminino. Estes tabus em relação ao sentimento não ficariam restritos apenas à sociedade ocidental, eles prevalecem em diversas culturas. Neste sentido, as definições de gênero são constantemente atualizadas na expectativa dos adultos. Em relação aos meninos, a demonstração de sentimentos, inseguranças, medo e afeto não são vistos com bons olhos. Garotos que tenham comportamento diferente do esperado serão vistos como diferentes, como o outro. Estes frequentemente irão experimentar práticas de discriminação e subordinação por aqueles que se adequem às normas da masculinidade hegemônica (LOURO, 2010). O mesmo pode-se aplicar para meninas, cujo comportamento fuja do esperado para o ser feminino. Comportamento este que necessita se adequar à candura, fragilidade, meiguice. Ao longo da vida, práticas e linguagens que constituem os sujeitos masculinos e femininos serão gravadas como “marcas”. “Marcas de gênero”, que são alimentadas por diferentes artefatos ao longo do processo de construção das identidades. Estas práticas, ao mesmo tempo em que legitimam determinadas identidades, recusam outras que não se adequam, que são diferentes. Para Butler (2012), as marcas identitárias que irão constituir o sujeito masculino ou feminino são performativas. Performativas, pois se dão através da repetição de atos, práticas e discursos naturalizados e atribuídos ao universo de homens e mulheres em determinada sociedade, que constroem realidades passíveis de serem compreendidas. Ao mesmo tempo em que este processo cria indivíduos compreendidos, abre margem para a exclusão, daqueles que não conseguiram se adequar a estas normas que policiam as identidades de gênero e sexuais.

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(...) a construção do gênero atua através de meios excludentes, de forma que o humano é não apenas produzido sobre e contra o inumano, mas através de um conjunto de exclusões, de apagamentos radicais, os quais, estritamente falando recusam a possibilidade de articulação cultural. Portanto, não é suficiente afirmar que os sujeitos humanos são construídos, pois a construção do humano é uma operação diferencial que produz o mais e o menos “humano”, o inumano, o humanamente impensável. Esses locais excluídos vêm a limitar o “humano” com o seu exterior constitutivo e a assombrar aquelas fronteiras com a persistente possibilidade de sua perturbação e rearticulação. (BUTLER, 2010, p.161)

Porém, como lembra a Louro (2010), os sujeitos, estes não são meros receptores, eles também atuam na construção das identidades. O processo de pedagogia do gênero só é completo na medida em que o sujeito atua através do autodisciplinamento, do autogoverno, o qual exerce sobre si mesmo (ainda que nem sempre este processo suceda de maneira consciente). De forma que não podemos negar o papel do próprio sujeito nas maneiras de viver e determinar seu próprio gênero ou sexualidade.

3.3. DESEJO, SEXUALIDADE E INFÂNCIA

Um dos elementos que envolvem a infância são a suposta inocência e pureza que estes seres vêm ao mundo. As justificativas de amparo, afeto, instrução, que atravessam os corpos infantis, são baseadas em um discurso que de maneira inconsciente viola o direito da criança de experimentar e construir sua identidade (BOHM, 2014). O nascimento é o momento em que a criança é recebida ao mundo e começa a se transformar em um de nós. A partir deste momento, a criança se entrega às nossas mãos, sem receios, para que a ela consigamos transmitir nossos anseios, delírios e sonhos (LAROSSA, 1998). A presença da infância em nosso meio é a personificação da quebra, do desmantelamento de paradigmas, que até então nos pareciam legítimos. A alteridade que o sujeito infantil representa causa desconforto na medida em que não é abarcável pelo nosso poder e não se contenta com o lugar que a ela predestinamos (LARROSA, 1998). A criança representa a renovação. Mas para nós, é a renovação que nos leva ao desconhecido. Ela rompe com uma temporalidade que nos é confortável. O futuro que a criança representa nos dá medo. Utilizamos este medo para justificar atitudes baseadas numa moral estabelecida. Aqui não há espaço para o novo. E este medo é frequentemente ativado quando relacionado a contextos que envolvem a sexualidade. Uma das leis não escritas da nossa moral contemporânea, a mais imperiosa e

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a mais respeitada de todas, exige que diante das crianças os adultos se abstenham de qualquer alusão, sobretudo jocosa, a assuntos sexuais. Esse sentimento era totalmente estranho à sociedade. O leitor moderno do diário em que Heroard, o médico de Henrique IV, anotava os fatos corriqueiros da vida do jovem Luís XIII fica confuso diante da liberdade com que se tratavam as crianças, da grosseria das brincadeiras e da indecência dos gestos cuja publicidade não chocava ninguém e que, ao contrário, pareciam perfeitamente naturais. (ÀRIES, 1981, p.125)

Mas seria então seria possível falar de desejo tendo como foco o sujeito infantil? A criança teria a capacidade de desenvolver uma sexualidade? A psicanálise já se debruçou sobre o tema no intuito de buscar respostas. Pensar sobre sexualidade infantil remete às contribuições de Freud para a sexualidade do século XX e em como o sexo desempenhou um papel de protagonismo no desenvolvimento do ser humano. Freud (1996), em seu trabalho Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, escrito em 1905, surpreendeu a comunidade científica, ao afirmar que as experiências e condutas sexuais infantis contribuíam para a vida e comportamento do sujeito adulto. Ele tratava sobre o período anterior à puberdade, onde a personalidade era desenvolvida em diferentes estágios, dominados pelas tendências sexuais, provenientes de impulsos instintivos, não aprendidos, que tinham como objetivo a obtenção do prazer, em sua maioria, impulsos auto-eróticos, que não estariam dirigidos ao outro, mas sim relacionados ao seu próprio corpo. Freud afirma que o sujeito infantil, traz em seu psiquismo uma disposição perversa e polimorfa, disposição esta que segundo o autor seria “universalmente humana e originária”. A sexualidade infantil estaria fundada no seu caráter de predominância masturbatória, fragmentada em pulsões parciais que vagariam entre objetos e objetivos perversos. Ainda que, segundo Freud, a sexualidade infantil estivesse baseada em desejos e objetivos perversos e tenhamos todos nós esta disposição na vida adulta, estes desejos poderiam se alterar. Para psicanalistas contemporâneos, como Laplanche e Pontalis (1998), esta pré-disposição será explicada da seguinte maneira: Ainda que a disposição perversa polimorfa defina toda a sexualidade infantil, ainda que a maior parte das perversões se detecte no desenvolvimento psicossexual de qualquer indivíduo, ainda que o termo desse desenvolvimento – a organização genital – “não seja óbvio” e dependa de uma estruturação não da natureza, mas da história pessoal, nem por isso é menos verdade que a própria noção de desenvolvimento supõe uma norma (LAPLANCHE; PONTALIS, 1998, p. 342-343).

As descobertas de Freud foram recebidas como revolucionárias, devido a seu caráter desafiador da regra hegemônica, que tratava o sujeito infantil como uma figura pura, inocente. Para muitos, estas descobertas eram chocantes e até mesmo ofensivas

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para a sociedade. Ainda hoje é comum encontrar resquícios deste olhar sobre a infância, resquícios que remetem à herança cultural vitoriana, porém, cada vez mais, percebe-se no sujeito infantil indícios de desejo, experiência e fantasias sexuais (SCHINDHELM, 2011). Analisaremos aqui a infância na qual o desejo e sexualidade se encontra em um paralelo destoante da norma compulsória de sexo/gênero/desejo. Para definir o que é a norma, a sociedade utiliza como espelho o imperativo heterossexual. O sujeito que apresenta algum comportamento “inadequado”, frequentemente se encontrará vítima do próprio desejo. Ruth Sabat (2004) nos lembra de que: Para garantir aos sujeitos modos de conduta socialmente adequados, é necessário potencializar o discurso hegemônico de modo a forçar uma identidade definitiva e, de alguma forma, tentar eliminar as “marcas” da diferença. Toda e qualquer identidade é sempre construída pelo olhar minucioso sobre o outro, é constituída pelo que o outro não é. (SABAT, 2004, p. 104)

Desta forma, deslegitimam-se outras formas de vivenciar e expressar o desejo ou sexualidade. Padrões são criados tendo como crença uma sexualidade e orientação do desejo únicas. O eterno binarismo no qual a sociedade está fundamentada faz-se perceber. Quando são detectadas formas de vivenciar e expressar sexualidade e desejo no sujeito infantil, logo tornam este objeto de controle por parte de teias de poder (BOHM, 2014). Estas teias de poder são as já citadas tecnologias criadas pelas instituições jurídicas, religiosas, escolares, familiares, médicas... Aqui também se deve acrescentar a mídia, que funciona como um espaço educativo. Como salienta Jane Felipe (2006), não é possível negar o importante papel que a mídia ocupa em moldar as identidades infantis: Em relação à infância, a construção das identidades articula-se aos discursos a respeito da criança que são veiculados e sustentados por diversos artefatos culturais. Dentre tais artefatos, a mídia vem ocupando lugar de destaque nos últimos tempos, na medida em que veicula uma gama enorme de informações sobre os mais variados assuntos. Tais informações mostram desde modos de ser criança até do que devem gostar e como devem proceder. (FELIPE, 2006, pgs. 41-54)

As identidades sejam elas sexuais ou de gênero, não deveriam ser consideradas como elemento fixo do sujeito, seja ele adulto ou infantil. Lembremos aqui do processo de construção das identidades, abordado no segundo capítulo deste estudo. Relacionado às identidades na infância, este é o momento em que o sujeito está iniciando um processo de identificação, de experimentação. Em analogia à infância, o binarismo presente nos padrões hegemônicos de

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gênero e sexualidade deveria ser problematizado. Esta polarização limita e impede a percepção das diferenças, afinal, as crianças tendem a utilizar as práticas e comportamentos do adulto como parâmetro do “normal” para legitimar seus próprios universos (LOURO, 1997). Acreditar que o sujeito infantil precise se adequar aos rígidos padrões estabelecidos pela heteronormatividade é contribuir para que no futuro, este sujeito possa se tornar alvo de exclusões e apagamentos em conta da sua não adequação aos padrões hegemônicos de gênero e sexualidade. Pensar dentro do binarismo, é colaborar para a criação de seres abjetos, menos humanos (BUTLER, 2002). Utilizando um exemplo trazido por Haraway (2000), em seu Manifesto Ciborgue, deveríamos desconfiar da matriz reprodutiva e grande parte dos processos de nascimento. Olhar para as salamandras, que ao perder um membro, se regeneram, criando muitas vezes estruturas monstruosas nos locais destas lesões, seria o início do processo de pensar um mundo monstruoso, regenerado e livre de gênero.

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CAPÍTULO 04 - REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA DA INFÂNCIA QUEER Ler politicamente a cultura da mídia significa situá-la em sua conjuntura histórica e analisar o modo como seus códigos genéricos, a posição dos observadores, suas imagens dominantes, seus discursos e elementos estético-formais incorporam certas posições políticas e ideológicas e produzem efeitos políticos. (KELLNER, 2001, p.76)

Ao longo deste capítulo, são delineadas construções midiáticas contemporâneas acerca dos corpos queer infantis, assim como os estereótipos disseminados pelos meios de comunicação sobre estas infâncias. Por meio de análises de matérias veiculadas em sites online, revistas e programas televisivos, são abordados o processo de construção da notícia e também as subjetividades presentes no discurso da mídia na hora de representar este sujeito infantil. Sobre o ato de representar, é importante ressaltar seu aspecto normalizador, quando usado no campo da comunicação. O significado do verbo representar carrega em seu sentido o ato de expressar, dar sentido, simbolizar determinados saberes. Usado no campo midiático, representar estaria associado ao ato de usar variados sistemas significantes disponíveis (texto, imagens, sons) para “falar sobre”, “falar por”, categorias ou grupos sociais no campo simbólico das artes e indústrias da cultura (FILHO, 2005). Segundo Kellner (2001; 2003), analisar as representações midiáticas auxiliam avaliar a maneira que determinados gêneros e artefatos culturais funcionam tanto de maneira para forjar um status quo, como para encorajar determinados estratos sociais a resistir à opressão e contestar ideologias e estruturas de poder conservadoras. Seria uma maneira também de encontrar tensões e ambivalências presentes no interior destas representações e ainda investigar as relações entre mídia, poder e alteridade. Encarar o discurso midiático como um mero reprodutor das realidades sociais é cair numa armadilha que desconsidera o seu papel construtor das verdades que modelam e justificam os mecanismos de dominação e controle presentes no contexto social. A mídia pode ser percebida como um artefato pedagógico, que auxilia no processo construtor das identidades na contemporaneidade. Os Estudos Culturais já nos mostraram, desde a década de 1960, a importância de estar atento à construção do discurso sobre determinadas identidades, especialmente aquelas que estão à margem das hegemonias. A luta dos movimentos sociais, ao longo do século XX, foi decisiva na análise do discurso midiático sobre a maneira como as identidades são construídas e questionadas. Diferentes acontecimentos públicos e acadêmicos despertaram para a importância de

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discutir o papel da comunicação na formulação, reconhecimento e legitimação daquilo que é considerado ser mulher ou homem, moral ou imoral, feio ou bonito, sucesso ou fracasso, entre outros referencias que são pertinentes ao cotidiano da sociedade (KELLNER, 2001). Woodward (2000) chama a atenção para designação de significados produzidos por intermédio da representação, através dos quais damos sentidos à nossa experiência, sobre aquilo que somos, aquilo que podemos nos tornar: A representação, compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser? Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar. Por exemplo, a narrativa das telenovelas e a semiótica da publicidade ajudam a construir certas identidades de gênero. Em momentos particulares, as promoções de marketing podem construir novas identidades como, por exemplo, o “novo homem” das décadas de 1980 e de 1990, identidades das quais podemos nos apropriar e que podemos reconstruir para nosso uso. (WOODWARD, 2000, pgs. 17-18)

Os estereótipos que a mídia ajuda a construir sobre os indivíduos acabam por influenciar a maneira como os mesmos fazem as avaliações sobre si mesmo e seus interesses. Walter Lippmann, escritor e colunista, foi quem introduziu a palavra estereótipo como objeto de estudo das Ciências Sociais, através de seu livro, Opinião Pública, lançado em 1922. Publicação esta que foi a fundadora dos estudos midiáticos norte-americanos. Lipmann (2008) utiliza duas noções distintas do termo. A primeira, com base psicológica, descreve a palavra como uma maneira necessária de processamento de informação, usada, sobretudo em sociedades altamente diferenciadas, como uma forma de criar a sensação de ordem, em meio ao caos da vida social e das cidades modernas. Este sentido contempla o argumento bastante utilizado na psicologia de que representações seletivas, parciais, ultra-simplificadas e instrumentais do Outro, são parte integral do processamento mental dos estímulos (LIPPMANN, 2008). O outro conceito de estereótipo, apresentado por Lippmann, traz em seu significado a construção simbólica enviesada, oposta à pontuação racional e resistente à mudança social. Desta forma, a disseminação de significados estaria condicionada a uma maneira de impor um sentido de organização ao meio social. Este último significado, ambicionaria a criar uma maneira de inflexibilizar o imaginário social sobre determinadas identidades, contribuindo desta forma para a manutenção e reprodução das relações de poder, de modo a subjugar estas identidades e alteridades a desigualdades e exploração. Segundo o autor: (…) quando um sistema de estereótipos é bem fixado, nossa atenção é chamada para aqueles fatos que o apoiam, nos afastando daqueles que o contradizem. (...) O que é estranho será rejeitado, o que é diferente cairá em olhos cegos. Não vemos o que nossos olhos não estão acostumados a levar em conta. (LIPPMAN, 2008, p.115)

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Portanto, é necessário buscar nas frestas dos discursos que constroem as verdades das quais a mídia busca impregnar o imaginário social. É preciso questionar a maneira que este discurso folcloriza, exotiza determinadas identidades e de que forma pode afetar a autoestima destes indivíduos e grupos. Afinal, como pontua Silverstone: Examinar os textos da mídia retoricamente é examinar como os significados são produzidos e arranjados, de modo plausível, agradável e persuasivo. É explorar a relação entre o familiar e o novo; decifrar a estratégia textual. Mas é também investigar a audiência; encontrar onde e como é colocada no texto; compreender como os lugares-comuns se relacionam com o senso comum; como a novidade é construída sobre uma base familiar; e como os truques são criados e os clichês mobilizados em mudanças de gosto e estilo. (...) A retórica pública em palavra e imagem, estruturada pelo ângulo da câmera e pelo tom de voz, pelas formas familiares de representação e reflexibilidade; pelas formas familiares de representação e apelo; pela articulação de uma cultura pública, nunca inocente, adulatória para enganar; misteriosa, mistificante; oferecendo, alegando, desafiando uma realidade. (SILVERSTONE, 2005, p. 76-7)

A tarefa de analisar o discurso midiático não é simples, na medida em que contempla diversos fatores que poderiam muitas vezes passar despercebidos sob nosso olhar. Fatores estes que ajudam a demarcar e manter fronteiras que normalizam as identidades. Que delimitam o simbolismo entre o normal e o anormal, o sadio e o patológico e que nos mostram maneiras de ser e viver sintonizadas com certos mecanismos que classificam e hierarquizam os lugares dos sujeitos. Segundo Kellner (2001) estes mecanismos ajudam a criar identidades e delimitar lugares que estes indivíduos estarão aptos ou não para pertencer. Há uma cultura veiculada pela mídia cujas imagens, sons e espetáculos ajudam a urdir o tecido da vida cotidiana, dominando o tempo de lazer, modelando opiniões políticas e comportamentos sociais, e fornecendo o material com que as pessoas forjam sua identidade. (...) As narrativas e as imagens veiculadas pela mídia fornecem os símbolos, os mitos e os recursos que ajudam a constituir uma cultura comum para a maioria dos indivíduos em muitas regiões do mundo de hoje. A cultura veiculada pela mídia fornece o material que cria as identidades pelas quais os indivíduos se inserem nas sociedades tecnocapitalistas contemporâneas, produzindo uma nova forma de cultura global (KELLNER, 2001, p. 9).

As infâncias analisadas neste capítulo fazem parte de uma pesquisa sobre indivíduos criança que destoam das normas comumente aceitas sobre sexualidade e gênero. Crianças que por algum motivo são consideradas anormais. Meninos cujo comportamento poderia ser enquadrado como afeminado, meninas cujos gostos não se relacionam com a delicadeza do sujeito dito feminino, crianças transgênero, crianças intersexo e a forma que a mídia reproduz os discursos sobre suas vidas e sobre suas realidades. Elas são aqui divididas em três categorias distintas: Monstras, Ciborgues e Estranhas, explicadas nos subcapítulos que seguem, ao mesmo tempo em que são compartilhados os achados midiáticos e observações sobre cada uma destas infâncias.

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4.1. A INFÂNCIA MONSTRA O indivíduo “anormal” que, desde o fim do século XIX, tantas instituições, discursos e saberes levam em conta deriva ao mesmo tempo da exceção jurídiconatural do monstro, da multidão dos incorrigíveis pegos nos aparelhos de disciplinamento e do universal secreto da sexualidade infantil. (FOUCAULT, 2002, p. 418)

Dentre as categorias analisadas neste estudo, trato de iniciar por aquela que apresenta a infância como monstra. Tomo como base as reflexões de Michel Foucault ao longo de seu curso no Collège de France no ano de 1975 e também do conceito de “monstro” a partir da perspectiva de James Donald. O corpo infantil aqui abordado é aquele que se difere dos demais por trazer em sua anatomia, uma espécie de obscenidade orgânica. Algo que não deveria estar ali, mas ali está e por isso, monstro é. Este é o indivíduo que não viola apenas as leis da sociedade, mas também as leis da própria natureza. A análise tem início com uma matéria do site BBC Brasil, intitulada de Guevedoces: o estranho caso das 'meninas' que ganham pênis aos 12 anos, veiculada em 21 de setembro de 2015. Dividida em três partes, a reportagem original foi feita pelo jornalista Michael Mosley para uma série de documentários da BBC, sob o título de Countdown to Life: the Extraordinary Making of You9, o texto foi traduzido para o português, após ser publicado no site da BBC UK e veiculado no site da BBC Brasil. A matéria traz em seu título uma ironia, disfarçada de mero destaque para a palavra “meninas”, como se estivesse questionando o fato destas meninas serem realmente meninas. A começar por este título irônico, que não está presente na construção original do texto, mas trata-se de uma adaptação feita para o português, fica explícita a ironia ao questionar a legitimidade desta feminilidade dos sujeitos abordados. Eni Orlandi, em seu livro Análise do Discurso, nos chama atenção para pequenos fatos do cotidiano que poderiam passar despercebidos, mas que com um olhar mais atento, revelam sua verdadeira intenção: “Não há neutralidade nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos signos” (ORLANDI, 2005, p. 9). É preciso perder a “ingenuidade” ao analisar os discursos midiáticos impregnados de suposições sobre determinadas identidades, que muitas vezes são estranhas, causam medo ou pavor. Sobre o medo, Bauman (2007) nos lembra de que alimentado pela insegurança do presente e a incerteza do futuro, ele é causador de um sentimento de impotência, de perda de 9

“Contagem regressiva para a vida: sua extraordinária criação” em tradução livre feita pelo autor.

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controle. Mas o medo não pode justificar nossas escolhas enquanto profissionais da comunicação, quando relacionado a identidades que já estão à margem nas relações de poder. Obviamente, é preciso levar em conta, diversos fatores que possam moldar nossas escolhas de palavras e signos, fatores que se mostram essenciais na construção e subjetivação das realidades aos quais estamos representando. No funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente transmissão de informação. São processos de identificação do sujeito, de subjetivação, de construção da realidade […] (ORLANDI, 2005, p. 21).

A notícia apresenta casos de crianças da Republica Dominicana que nascem com vagina e ao chegarem à idade aproximada de 12 anos, passam por uma transformação em suas genitálias, que se transforma em um pênis, ainda que isso não defina identidade de gênero das personagens em questão. Visto como raro pela ciência, o caso dos guevedoces passou a ser estudado na década de 1970, por uma cientista norte-americana. A matéria busca uma explicação científica para a “anomalia” e afirma que estas crianças só ganham pênis, pois em sua fase intrauterina, seu organismo “sofre” com a deficiência de uma enzima, que mais tarde se transformaria em testosterona. A reportagem trata dos casos como um “problema” e afirma que em sua maioria, as “novas” genitálias funcionam bem (aqui o “funcionar bem”, traz implícito um bom funcionamento focado na heteronormatividade) e a maioria destas crianças passa a viver como homens, ainda que a orientação sexual não seja algo definido. Categorizar esta reportagem como Infância Monstra foi uma escolha baseada no sentido foucaultiano10 a respeito da monstruosidade. Ideia esta que se baseia no desvio de conduta, na transgressão do “corpo natural”, seriam estas “anomalias corporais”. [...] O contexto de referência do monstro humano é a lei, é claro. A noção de monstro é essencialmente uma noção jurídica – jurídica, claro, no sentido lato do termo, pois o que define o monstro é o fato de que ele constitui, em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza [...] (FOUCAULT, 2010, p. 48).

Os corpos analisados nesta matéria só se tornam motivo de curiosidade devido ao seu fator “anômalo”. Aqui, também é importante observar o dispositivo Natureza sendo utilizado como normalizador da heterossexualidade (PRECIADO, 2014). Para o filósofo espanhol, o que entendemos como natureza, é utilizado como um dispositivo que normaliza e sujeita os corpos uns aos outros. Ele entende a “Natureza Humana” como um dispositivo que atua de maneira a organizar os corpos e as relações de poder. Dispositivo este que sempre parte de um 10

Relativo à obra de Michel Foucault.

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pressuposto heterossexual. Estes artefatos definem a materialidade sexual como “macho” e “fêmea” e todos os outros que porventura se desviem desta regra podem ser enquadrados como anômalos. Não é possível portar outra materialidade corporal, um corpo “macho” não se transformaria em um corpo “fêmea”, um pênis não se converteria em vagina e vice-versa. Se existem apenas duas verdades sobre o sexo, existem apenas duas verdades sobre gênero. Macho/fêmea, homem/mulher, masculino/feminino, pênis/vagina. São estas as dicotomias permitidas. Nada mais. Espera-se que o macho humano performatize aquilo esperado para o homem e a fêmea humana, o esperado para a mulher. Porém, o caso dos guevedoces derruba por terra estas dicotomias todas. E é por isso que é inteligível. Por isso que é tratado como monstro. Aqui a ordem compulsória sexo/gênero/desejo é posta em xeque. E por isso incomoda. Incomoda não poder definir. Incomoda não poder colocar em uma ordem social os corpos que são diferentes da regra. Na mesma matéria, Johnny, um guevedoce, antes conhecido como Felicita, afirma recordar de ir à escola com um vestido vermelho, porém, de nunca ter sido feliz “fazendo coisas de menina”. 'Nunca gostei de me vestir de menina e quando me davam brinquedos de menina eu nem brincava. Quando via um grupo de meninos, ia jogar bola com eles'. Quando ele se tornou claramente uma pessoa do sexo masculino, passaram a implicar com ele na escola. 'Eles diziam que eu era o diabo, coisas ruins, palavrões, e eu não tive escolha a não ser brigar com eles, porque eles estavam passando da linha.' O “passar da linha” eram as agressões verbais e humilhações que grupos que destoam frequentemente são submetidos. São estes os corpos abjetos, os corpos inteligíveis, teorizados por Butler (2002). A abjeção opera na condição de exclusão social, no tornar o sujeito excêntrico e não possível de problematização, na medida em que o expõe através das características da monstruosidade. Para Butler (2002), é a marca do gênero que atribui existência significável para os sujeitos, qualificando-os ou não, para a vida no interior da inteligibilidade dos códigos da cultura. Quando estas marcas não são possíveis de determinar o gênero e inseri-lo num limite inteligível, buscam-se novas formas dentro de classificações como monstros ou anormal, como lembra Foucault (2010). “Tornar-se claramente um sujeito do sexo masculino” para o autor do texto, implicaria em assumir uma identidade que a Johnny não pertencia anteriormente. O problema está justamente em subjetivamente impor um juízo de quem pode ou não ser um sujeito do sexo/gênero masculino nesta sociedade.

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Ainda na categoria Infância Monstra, uma matéria talvez não tão polêmica e controversa como a apresentada no caso dos guevedoces, porém, ainda assim, cabível de análise por seu conteúdo transgressor. Também publicada no site da BBC Brasil sob o título de Alemanha permite registro de bebês com gênero indeterminado (posteriormente reproduzida com a mesma chamada, no site G1). A matéria apresenta uma mudança na lei alemã, que passou a permitir o registro de bebês intersexo sem que estes necessitem passar por cirurgia de redesignação genital. A matéria foi ao ar no dia 1º de novembro de 2013, mostra aspectos que irão facilitar a vida dos pais de bebês intersexo na Alemanha. Estes não precisarão mais tomar no momento do nascimento uma decisão prática, porém complexa, que influenciará toda a vida de seu filho, que é a determinação de gênero. Estas crianças, nascidas com indeterminação genital, antes eram obrigadas a passar por uma cirurgia que dava a elas uma genitália vagina ou pênis, de acordo com sua aparência estética ou quando não era possível determinar, cabia aos pais tomar a decisão. A matéria faz uma associação de “órgãos genitais com características dos dois gêneros”, dando a entender que determinado gênero, tem determinada genitália. A notícia traz o depoimento de uma pessoa intersexo adulta que após ter passado por uma cirurgia de designação genital ao nascimento, passou por uma experiência de infelicidade na vida adulta, ao não se conformar com o gênero ao qual lhe fora imposto socialmente através da genitália construída. "Não sou homem nem mulher. Vou continuar sendo os retalhos criados por médicos, ferido e desfigurado", declarou uma pessoa - submetida à cirurgia porque seus órgãos genitais não tinham uma definição clara - muitos anos depois do procedimento. Agora, os passaportes alemães, além das categorias M (male) e F (female), terão a opção X (intersex) no quesito gênero. A experiência intersexo aqui representada mostra que em termos de identidades e corpos, estes seres são levados para um nível extremo, que fogem às normalizações impostas pela ordem compulsória sexo/gênero/desejo. Novamente, não é possível aplicar sobre estes indivíduos as premissas normalizadoras que tecnologias de poder e dominação facilmente conseguem impor ao receber ao mundo corpos ditos “normais”. A matéria usa a figura do intersexo como sinônimo de “hermafrodita”, palavra que de acordo com as revisões de nomenclatura do Consenso de Chicago11, ocorrido em 2005, seria um termo estigmatizante não mais aplicável no caso das experiências de bebês nascidos com ambiguidade genital. O mesmo Consenso indicaria a substituição do uso do termo 11

Ver “As novas definições e classificações dos estados intersexuais: o que o Consenso de Chicago contribui para o estado da arte?”. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0004-27302007000600018. Acesso em 1º de setembro de 2015.

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“intersexo”, que para as autoridades médicas, seria indiscutivelmente dúbia. Eles sugerem o uso de Anomalia da Diferenciação Sexual (ADS) ou Disorder of Sex Development (DSD) como uma terminologia mais adequada. Neste estudo, continuarei usando o termo intersexo, por se tratar este de mais fácil assimilação, ainda que este denote um sexo intermediário ou ainda um terceiro sexo. Analisemos aqui, a necessidade de adequar estes corpos, utilizada pelas autoridades médicas como uma justificativa para (re) fazer estes corpos em salas cirúrgicas, de modo a adequá-los ao dimorfismo sexual. Os poderes médicos ignoram o fato de que o corpo intersexo não encerra um corpo único, mas representa um conjunto amplo de corporalidades possíveis, de forma que caracterize a intersexualidade como variedade (CABRAL, 2006). Por acreditar que o corpo intersexo é “ambíguo”, significando assim a monstruosidade, não basta (re) criá-los, é preciso ainda socializá-los de acordo com o papel de gênero ao qual este novo corpo foi designado. Agora sim, homens e mulheres perfeitas dentro do padrão heteronormativo. Outra notícia categorizada dentro de Infância Monstra é o caso John/Joan. Também apresentada no site BBC Brasil, sob o título de Documentário conta drama de gêmeo criado como menina após perder pênis (a matéria foi replicada no site G1, com o mesmo título), foi publicada em 24 de novembro de 2010, na editoria Saúde. Das análises que trago neste estudo, esta seria a mais antiga, levando em consideração sua data de publicação e também a época retratada no documentário em questão. A notícia apresenta um caso que ficou famoso entre a comunidade médica na segunda metade do séc. XX. John Money, citado anteriormente no Capítulo II desta pesquisa, um dos primeiros médicos a usar o conceito de gênero para diferenciar seus pacientes, foi procurado pelos pais do bebê Bruce, que em um procedimento de circuncisão, sofreu uma mutilação em sua genitália. Os pais haviam ouvido falar do trabalho de Money em um programa de TV e decidiram procurá-lo. De acordo com a matéria, Money era um psicólogo especializado em “mudança de sexo” e ao ser procurado pelos pais do garoto, viu ali a oportunidade perfeita de colocar em prática sua teoria de que não era a biologia que determinava o gênero, mas sim a maneira pela qual fossemos criados. O fato de Bruce ter um irmão gêmeo, Brian, seria ideal por se tratar de um grupo de controle. Money acreditava que Bruce teria a chance de ter uma vida mais feliz como mulher do que um homem sem pênis. A experiência teve início quando Bruce tinha 17 meses e “transformou-o” em Brenda. De maneira enfática, Money alertou os pais a manter segredo sobre as intervenções

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cirúrgicas pelas quais Brenda passara, caso desejassem que a experiência tivesse sucesso. Money passou a acompanhar anualmente os gêmeos e o caso tornou-se conhecido como John/Joan, para manter a identidade das crianças em sigilo. A matéria cita o fato de Money ter publicado um artigo em 1975, creditando a experiência como “sucesso total”, citando características do comportamento de Brenda que justificariam sua completa adequação ao gênero feminino. O caso teve uma reviravolta quando, ao chegar à puberdade, Brenda passou a ter impulsos suicidas, por não se sentir feliz como menina. Os pais decidiram então parar as visitas ao Dr. Money e abrir para a garota detalhes sobre sua cirurgia e sua “verdadeira” identidade. Brenda decidiu então viver como menino, assumindo a identidade de David e chegando inclusive a passar por uma cirurgia de reconstrução peniana e se casar. Quando passou dos 30 anos, David entrou em depressão, perdeu o emprego e separou de sua esposa. Seu irmão, Brian, teve uma overdose de drogas que causou sua morte. A matéria não especifica se David soube em algum momento das pesquisas que eram divulgadas sobre seu caso, mas conta que em maio de 2004, aos 38 anos, o mesmo também viria a cometer suicídio. Ainda que o texto veiculado se baseie no conteúdo de um documentário, traz alguns termos que já estavam em desuso na época de sua publicação. A começar pelo uso da expressão “mudança de sexo” que dá a entender que o indivíduo que se submete a um procedimento como este, nasça com um determinado sexo ou gênero. Pessoas não nascem com sexo, pessoas tem sexo e gênero imposto desde a vida intrauterina, quando são denominados “meninos” ou “meninas”, pessoas nascem com genitálias. E acreditar que estas genitálias se dividiriam entre “genitália masculina” e “genitália feminina” seria limitador. O correto neste caso seria usar a expressão “Cirurgia de Redesignação Genital” ou ainda “Transgenitalização” para se referir ao procedimento cirúrgico por meio do qual se altera o órgão genital da pessoa para criar uma neovagina ou um neofalo (BENTO, 2006; 2008). Definir que um ser pertencente ao gênero feminino ou masculino nasça com determinada genitália é aprisioná-lo em um corpo. A matéria trata o caso de David/Brenda como Distúrbio do Desenvolvimento Sexual (possivelmente traduzida do Inglês, Disorder of Sex Development ou o quê seria Anomalia da Diferenciação Sexual, em português) e ainda utiliza o termo “hermafrodita”. O texto traz o depoimento de um profissional da medicina, que atua no Hospital Great Ormond Street, em Londres. A médica Polly Carmichael faz uma atualização sobre o processo de tratamento para casos parecidos com o de Brenda/David, que hoje em dia contam com uma participação maior

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de outros profissionais e da família na tomada de decisões, mostrando a surpresa da médica com os resultados positivos alcançados. O detalhe é que em momento algum, estes profissionais e familiares cogitaram deixar esta decisão/escolha para a criança em um momento futuro. A decisão por categorizar esta infância como Monstra e não como Ciborgue é devido ao caráter forçado das intervenções as quais Bruce/Brenda/David foi submetido, sem ter a participação da criança no processo e tratando-se apenas de uma experiência médica. O caso traz uma importante reflexão sobre o processo binário e heterocentrado aos quais os corpos abjetos são submetidos pelo campo da medicina. Ainda que o caso em questão se trate de uma fatalidade, que acabou se desenrolando em um caso muito mais complexo, no nascimento, ao corpo infantil são disponibilizadas apenas duas opções, de acordo com sua genitália (seja ela ambígua ou não). Você deverá se identificar como sujeito masculino ou feminino, não há outra escolha.

4.2. A INFÂNCIA CIBORGUE No final do século XX, nesse nosso tempo, um tempo mítico, somos todos quimeras, híbridos – teóricos e fabricados – de máquina e organismo; somos em suma, ciborgues. O ciborgue é nossa ontologia; ele determina nossa política. O ciborgue é uma imagem condensada tanto da imaginação quanto na realidade material: esses dois centros, conjugados, estruturam qualquer possibilidade de transformação histórica. (HARAWAY, Donna, 2000, p. 41)

As análises feitas a seguir, foram classificadas na categoria Infância Ciborgue, devido ao fato de a abordagem jornalística em questão situá-las em uma possível transformação de seus corpos (via hormonização ou cirurgias de readequação genital) no tempo presente ou futuro. O conceito de ciborgue aqui abordado traz à tona o Manifesto Ciborgue, publicado por Donna Haraway, em 1985. Bióloga e feminista, Haraway é professora na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. A autora usa o ciborgue, recorrente personagem da ficção científica contemporânea, como metáfora para questionar os limites entre Ser Humano e máquina. A metáfora é usada para criar uma imagem condensada das transformações sociais e políticas do mundo contemporâneo, onde os desafios trazidos pela ciência e pela tecnologia transformaram nossas relações com o mundo e com nós mesmos. Os limites que Haraway questiona que vão desde o uso de próteses corporais, até hormônios e microeletrônica. O visível e o não visível, o orgânico e o inorgânico, o físico e o não físico, indagações que nos levam além da pura dicotomia.

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De outra perspectiva, um mundo de ciborgues pode significar realidades sociais e corporais vividas, nas quais as pessoas não temam sua estreita afinidade com animais e máquinas, que não temam identidades permanentemente parciais e posições contraditórias. A luta política consiste em ver a partir de ambas as perspectivas ao mesmo tempo, porque cada uma delas revela tanto de dominações quanto possibilidades que seriam inimagináveis a partir do outro ponto de vista. (HARAWAY, Donna, 2000, p. 51)

O ciborgue trazido por Haraway já está entre nós. Ele se alimenta de energéticos, de alimentos geneticamente modificados, ele transforma seu corpo com o uso de hormônios, de silicone, botox12 ele controla os seus fluxos corporais através do uso de medicamentos. Neste subcapítulo, trataremos deste sujeito infantil. A Infância Ciborgue, através do olhar da mídia. Crianças que adiam a puberdade através do uso de hormônios, crianças que no futuro pretendem se hormonizar, para adequar uma imagem corpórea a sua identidade de gênero. A análise desta infância começa com uma matéria publicada no site BBC Brasil em 14 de janeiro de 2015, intitulada Transgênero de 13 anos recebe tratamento hormonal para frear puberdade e gera debate nos EUA. A notícia conta a história de Zoey, de 13 anos, que faz o uso de tratamento hormonal para adiar as mudanças trazidas pela puberdade. A garota tem total apoio da mãe, Ofelia, que afirma entender o processo pelo qual a filha está passando, não sem antes ter pesquisado muito, até que este entendimento acontecesse de fato. A reportagem traz o depoimento de autoridades médicas, que apontam verem avanços na área nos próximos 10 anos. Assim como apontam a necessidade do uso de bloqueadores hormonais no caso de crianças transgênero, para evitar situações extremas, que podem incluir o suicídio. Um dos pontos que a matéria aborda, é o crescente número de famílias que buscam ajuda profissional a partir de outros relatos encontrados na Internet. Pais que até então não tinham ideia do que estava se passando com seus filhos, que afirmavam com toda força pertencer a um gênero diferente daquele registrado durante a gestação ou no nascimento. A realidade é que a internet é, provavelmente, o maior fator que justifica o aumento de crianças transexuais, com famílias diferentes encontrando outras e compartilhando histórias sobre seus filhos que parecem estar passando por uma fase que, aparentemente, nunca termina. O viés abordado pela matéria, apesar de elucidativo, é patologizante. Para muitas famílias que não tem informação alguma sobre a situação em que seus filhos se encontram, pode ser de grande serventia. Ao mesmo tempo corrobora para patologizar estas identidades e

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Tratamentos estéticos à base da toxina botulínica, produzida por uma bactéria chamada Clostridium botulinum.

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disseminar a ideia de que uma criança transgênero só poderá se sentir completamente satisfeita com sua imagem corporal a partir do uso de bloqueadores hormonais ou no futuro, através do tratamento hormonal. O fato de esta matéria específica estar categorizada junto a Infância Ciborgue, se dá pela questão de trazer à tona identidades que tem como cerne aspectos físico-estéticos de seus corpos. Corpos que fogem à regra e buscam encontrar um equilíbrio, uma maneira que as faça se sentir pertencentes a um grupo social. Nossos corpos são nossos eus; os corpos são mapas de poder e identidade. Os ciborgues não constituem exceção a isso. O corpo do ciborgue não é inocente; ele não nasceu num Paraíso; ele não busca uma identidade unitária, não produzindo, assim, dualismos antagônicos sem fim (ou até que o mundo tenha fim). Ele assume a ironia como natural. Um é muito pouco, dois é apenas uma possibilidade. O intenso prazer na habilidade – na habilidade da máquina – deixa de ser um pecado, para constituir um aspecto do processo de corporificação. A máquina não é uma coisa a ser animada, idolatrada e dominada. A máquina coincide conosco, com nossos processos; ela é um aspecto de nossa corporificação. Podemos ser responsáveis pelas máquinas, elas não nos dominam ou ameaçam. Nós somos responsáveis pelas fronteiras, nós somos essas fronteiras. (HARAWAY, Donna, 2000, p. 106)

Uso este apontamento encontrado no Manifesto Ciborgue de Haraway, para exemplificar a multiplicidade que estes corpos se permitem. Em uma sociedade que diz a todo o momento que elas não pertencem ao gênero com o qual se identificam, lutar para ter este gênero reconhecido é quebrar paradigmas que tendem a normalizá-los. Neste caso em específico, ainda que dependam da dominação da medicina para alcançarem seus objetivos. Esses corpos estão reivindicando para si os limites destas fronteiras que os afastam das identidades das quais julgam pertencer. Outro ponto aqui relevante é o fato de suas identidades terem encontrado por meio da Internet, um meio de existir. Como aponta Sibila (2008), a construção das narrativas em torno de pessoas comuns é parte da construção da subjetividade dos sujeitos. As tecnologias fizeram com que a lógica da velocidade alterasse profundamente as experiências do cotidiano, trazendo a vida íntima cada vez mais perto do mundo virtual. A próxima matéria analisada, intitulada de Os passos da transformação, é escrita pela jornalista Adriana Farias e veiculada na editoria Medicina da revista VEJA SP, de 29 de julho de 2015. A reportagem traz uma abordagem médica da questão. Em seu subtítulo, avisa que se propôs a abordar a rotina do ambulatório do Hospital de Clínicas de São Paulo, onde “cerca de 15 crianças e 36 adolescentes que não se identificam com o gênero de nascimento”, são acompanhadas por profissionais da psicologia e outros profissionais da saúde. Na imagem principal (Figura 04), de costas, em meio a uma sala de brinquedos onde se vê no chão uma casinha de bonecas. Uma garota de cabelos compridos segura em um cabide com um vestido

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de princesa nas cores turquesa, lilás, repleto de babados e brilhos, enquanto com a outra mão, escolhe outro, cor-de-rosa, em uma arara de roupas.

Figura 4: Leandro, de 9 anos, usa o nome social Luiza.

Fonte: Revista Veja SP (Foto: Fernando Moraes)

O subtítulo da matéria, ao dizer que estes adolescentes e crianças nascem com determinado gênero, dá a entender que o gênero é algo inscrito nos corpos ao nascimento, fato que, ao longo deste estudo, colocamos em xeque. A princípio, podemos pensar que possa ser apenas uma falta de cuidado da jornalista que assina o texto, mas talvez seja proposital. Ao longo do texto, novamente a questão de um “gênero com o qual veio ao mundo” salta aos olhos, ao falar da identidade de gênero de Luiza, menina transgênero que faz tratamento na instituição acima mencionada. O fato da mãe de Luiza se referir a ela ora no masculino, ora no feminino, também é um aspecto que chama a atenção. A legenda identifica a menina como “Leandro, de 9 anos” e diz ainda que seu nome social é Luiza. Novamente aqui, o fato de a reportagem trazer o nome de registro de Luiza é posto em xeque. Questionemos a maneira exotizante com que é feita. Seria mesmo necessário expor este detalhe? Ou seria novamente a velha fórmula de exotizar as identidades trans, de modo que numa leitura subjetiva, esteja dizendo que a identidade de Luiza seria uma farsa? Sem citar o fato do constrangimento desnecessário que trazer à tona o nome de registro de Luiza possa causá-la. Além de tratar-se de uma violência emocional, usar o nome de registro

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de uma pessoa trans é ainda acionar no mecanismo da memória um nome que não a representa, que para muitas pessoas trans é motivo de sofrimento. Ao longo da matéria, a autora cita o fato de um número específico de crianças e adolescentes que fazem tratamento no local e comenta, entre parênteses, que “treze [destas crianças] nascidas no sexo masculino”, para logo além completar “25 garotos que se dizem garotas” ou em outro trecho da matéria “nascido mulher”. Estes pequenos detalhes, que em uma leitura menos atenta pode passar despercebido revelam a pouca importância dada pelo gênero com o qual estas crianças e adolescentes se identificam. É também uma maneira de contestar a identidade que reivindicam para si. A própria fala de profissionais, questiona a identidade com a qual estas personagens se identificam. É o caso do seguinte relato: “Imagine uma menina que entende que é menino. Se eu puder evitar que desenvolva mamas ou menstrue, isso vai aliviar o sofrimento”. Espera-se de profissionais que trabalhem com questões de identidade de gênero e sexualidade entendam não se tratar de “meninas que entendem que são meninos”, como o relato afirma. Estes são meninos, cujo sexo e gênero de registro lhes foi imposto ao nascimento ou durante a gestação e que, agora, lutam para reivindicar para si a verdadeira identidade. A matéria apresenta o fato de que tratamentos bloqueadores de puberdade, por serem reversíveis, seria uma maneira de dar tempo destas crianças e adolescentes para que saibam com certeza o gênero ao qual pertencem, evitando assim, caso haja uma mudança, cirurgias invasivas no futuro. Na última página da matéria, uma entrevista com o criador e coordenador do Ambulatório Transdiciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, Alexandre Saadeh, se mostra frágil e inconsistente. O depoimento do entrevistado torna-se problemático pelo fato do profissional misturar diferentes conceitos, como se tratassem da mesma coisa. Quando perguntado sobre os benefícios do acompanhamento, ele responde: Ver de perto como a criança lida consigo mesma e constrói sua personalidade. Evitar que se considere um monstro, uma aberração. Queremos adultos mais integrados e tranquilos para lidar com quem são. É importante dizer, porém, que muitas dessas crianças com disforia de gênero não serão transexuais na idade adulta. Podem se tornar homossexuais, bissexuais ou mesmo heterossexuais. O detalhe da última frase, onde mistura conceitos, pode levar a compreensão de que uma pessoa transexual ou transgênero não possa se identificar como heterossexual. O fato da jornalista não ter questionado o porquê do profissional misturar estes conceitos e publicar uma resposta que pode ser problemática e funcionar no sentido inverso de proporcionar

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conhecimento e informação sobre o tema, mostra o despreparo em abordar estas questões. Outro personagem recorrente em matérias e reportagens sobre crianças queer é Coy Mathis. Analisemos a seguinte reportagem veiculada em rede nacional pelo programa Fantástico, da Rede Globo, no dia 07 de abril de 2013, a reportagem de cerca de cinco minutos e meio, apresenta a história de Coy, então com 6 anos de idade, que vive no estado do Colorado, nos Estados Unidos. Coy foi impedido pela escola de usar o banheiro feminino, por ter nascido “biologicamente” menino. A primeira imagem que a reportagem mostra de Coy é ela brincando com um pônei e seus brinquedos cor-de-rosa, enquanto usa um vestido de princesa, repleto de lantejoulas. A reportagem, assinada por Hélter Duarte, começa com uma narração onde cita o fato de Coy “à primeira vista, ser uma criança como outra qualquer”, dando a entender que não o seja. A criança mal olha para a câmera enquanto fala, contando que não entende o motivo da escola estar sendo “má” com ela, impedindo-a de usar o banheiro feminino. Um advogado relata que a família tentou encontrar uma maneira junto à escola, para que Coy não sofresse, mas esta foi negada. Então decidiram levar o caso à justiça. A mãe, Kathryn, comenta que por volta de um ano e meio, começou a perceber que tinha algo diferente com seu “filho”, que gostava de coisas “de garota”. Porém, perto dos três anos de idade, Coy afirmava enfaticamente que era menina “não que queria ser uma”. Quando contrariada, entrou em uma forte depressão, que não à motivava sair de casa ou brincar com amigos. Um ano depois, os pais buscaram ajuda médica (pediatras, psicólogos, psiquiatras) para entender o quê estava acontecendo com seu filho/filha. Aqui, pode-se perceber uma pequena falha de tradução, pois enquanto o pai da garota, Jeremy, cita o fato de um psicólogo ter diagnosticado Coy como sendo “transgender”, a matéria traduz para “transexual”. Ainda que pareça (novamente) um mero detalhe, é preciso destacar as diferenças entre os dois termos. Segundo Jaqueline de Jesus, pesquisadora da Universidade de Brasília, autora do manual “Orientações sobre identidade de gênero: Conceitos e Termos”, um guia técnico que visa auxiliar profissionais formadores de opinião, a palavra “transgênero” estaria relacionada com uma questão tanto de Identidade como de Funcionalidade. Identidade abarcaria pessoas travestis e transexuais e funcionalidade, crossdressers, drag queens, drag kings e transformistas, pessoas que de alguma maneira, estejam questionando as fronteiras de gênero. Já o termo “transexual” seria, no entanto, a identidade médica. Identidades abarcadas pelos saberes da medicina, que podem (ou não) utilizar de artefatos médicos para perseguirem uma imagem corporal que julgam ser feminina ou masculina.

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Portanto, no caso de Coy, a tradução correta seria “transgênero”, afinal, como no decorrer da matéria é explicitado, a criança não utiliza bloqueadores hormonais ou faz uso de hormonioterapia13. O jornalista levanta o fato de que no futuro, Coy poderá utilizar destes artefatos para se adequar à figura corporal dita como feminina. Eis aqui a razão de enquadrar esta matéria na categoria Infância Ciborgue. A matéria traz o depoimento de uma psiquiatra, explanando sobre as identidades trans na infância e a importância de diferenciar de identidades como homossexuais. A reportagem traz como exemplo o caso de John, filho dos atores Angelina Jolie e Brad Pitt, utilizando pronomes femininos para se referenciar a ele. Cita ainda como exemplo a transexual brasileira Léa T., que realizou a cirurgia de redesignação genital (ainda que na matéria seja utilizada como “cirurgia de mudança de sexo”), como uma possível “saída” para o caso de Coy. A reportagem, encaminhando para um final, cita o fato de nos EUA, 16 estados terem legislação protegendo os direitos das pessoas trans, incluindo o estado do Oregon, onde inclusive, uma escola já tem um banheiro unissex (destinado ao uso de pessoas de todos os gêneros). Enquanto a psiquiatra comenta sobre o preconceito que a criança poderá encontrar fora de casa, Coy brinca com um trenzinho e bonecos, brinquedos que poderiam ser enquadrados na categoria de “brinquedos masculinos”, porém, não é dada muita atenção para este fato. Aqui, ao decidir dar destaque para Coy em suas brincadeiras “femininas” e deixar de escanteio aquelas que poderiam ser apontadas como “masculinas”, a mídia atua subjetivamente no educar sobre os papéis de gêneros. A menina dócil e meiga, que vai gostar de brincar de boneca e casinha (tudo aquilo voltado para a intimidade), enquanto os garotos vão brincar com carrinhos, bonecos de ação (que remetam ao social, ao externo). Sobre os meios de comunicação, Rosa Fischer (2002), salienta que estes espaços da mídia funcionam também como lugares de formação, especialmente para o sujeito infantil, onde se aprendem modos de existência e comportamento: Estes não constituiriam apenas uma das fontes básicas de informação e lazer: tratase bem mais de um lugar extremamente poderoso no que tange à produção e à circulação de uma série de valores, concepções, representações – relacionadas a um aprendizado cotidiano sobre quem nós somos, o que devemos fazer com nosso corpo, como devemos educar nossos filhos, de que modo deve ser feita nossa alimentação diária, como devem ser vistos por nós, os negros, as mulheres, pessoas das camadas populares, portadores de deficiências, grupos religiosos, partidos políticos e assim por diante. Em suma: torna-se impossível fechar os olhos e negarse a ver que os espaços da mídia constituem-se também como lugares de formação – ao lado da escola, da família, das instituições religiosas. (FISCHER, 2002, p. 2) 13

Procedimento usado por pessoas transexuais ao buscar se adequar à imagem corporal do gênero feminino ou masculino.

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Em depoimento ao final da matéria, os pais de Coy afirmam que incentivam os filhos a falarem sobre algo quando pensam que isto precisa mudar e sobre não terem vergonha de suas diferenças, pois isto é o quê as faz especiais. Enquanto isso, Coy brinca com um carrinho de Lego, sobre a mesa. Para os profissionais que pensaram esta reportagem, o mais interessante seria dar destaque no início da matéria para o fato de Coy estar usando seu vestido de princesa, rodeado de brinquedos cor-de-rosa, ao invés de mostrar que ela também gosta de brincar de carrinhos e outros brinquedos ditos “de menino”.

4.3. A INFÂNCIA ESTRANHA Não devemos hesitar, portanto, em tratar representações como construções intelectuais de pensamento, embora relacionando-as às emoções coletivas que as acompanham, ou que elas despertam. Quando fazemos discriminações contra um grupo, expressamos não apenas nossos preconceitos sobre essa categoria, mas também a aversão ou desprezo a que eles estão indissoluvelmente ligados (MOSCOVICI, 2003, p. 184).

A categoria abordada neste subcapítulo é Infância Estranha, aquela cujo comportamento fuja das regras hegemônicas determinadas sobre gênero e sexualidade, mas que, por algum motivo, não poderiam ser enquadradas nas categorias anteriores (Monstra e Ciborgue). Aqui, as infâncias destoam da regra por trazerem em suas vivências padrões de comportamentos desviantes das hegemonias, mas que por alguma razão, sua abordagem pelos veículos midiáticos não às classifica como seres que fujam das regras naturais ou ainda, que não reivindicam para si mudanças corporais. Começo por analisar duas matérias veiculadas nos sites do Estadão e de O Globo, respectivamente, sobre o caso do menino Alex, de 8 anos. Ambas as notícias relatam o caso de um garoto, morador da Vila Kennedy, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, espancado até a morte pelo pai por demonstrar trejeitos e comportamentos ditos como femininos. No primeiro veículo, Estadão, a matéria foi publicada sob o título de Menino de 8 anos é espancado até a morte pelo pai para 'andar como homem', na editoria Brasil, em 05 de março de 2014. A matéria faz o uso de aspas no título para destacar uma característica do comportamento do garoto, citada pelo pai como motivação pelo crime. Ao fazê-lo, também está justificando a morte da criança pelo seu comportamento. Em outros casos, possivelmente, esta justificativa não estaria presente no título da matéria, seria tratada apenas como mais um caso de assassinato infantil, efetuados pelos progenitores. Ao subjetivamente destacar esta característica em seu título, o veículo corrobora para a compreensão de que este

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comportamento “inadequado” seja uma justificativa para o crime. Ao longo do texto, características do comportamento de Alex novamente são usadas entre aspas: “Alegando que o filho era ‘afeminado’, o pai bateu tanto que chegou a perfurar o fígado do menino, que também tinha sinais de desnutrição”. Conforme aponta Ramonet (2002), a mídia com seu “domínio carismático” modela, impõe, forma e deforma os sonhos, os hábitos, os saberes, hábitos e dizeres das massas. Para isso, ela recorre a caixas de ideias e teorias sofisticadas da psicologia, que ao leitor comum não estariam explícitas, visando conquistar e manipular o imaginário social. Os colonizadores e seus opressores sabem que a relação de domínio não está fundada apenas na supremacia da força. Passado o tempo da conquista, soa a hora do controle dos espíritos. E é tanto mais fácil dominar, quando o domínio permanece inconsciente. Daí a importância da persuasão clandestina e da propaganda secreta, pois, a longo prazo, para todo império que deseja durar, a grande aposta consiste em domesticar as almas, torná-las dóceis e depois subjuga-las. (RAMONET, 2002, p.21)

A dimensão e poder que a mídia consegue alcançar não estão restritos a um grupo social determinado. Ela atinge ricos e pobres, porém, com um viés unilateral, que os transforma em criaturas passivas, sem a aptidão de refletir, questionar ou criticar as informações que recebem. Para Guareschi (2004), a mídia compõe um novo personagem que está presente dentro de nossas casas e vidas, personagem este que estamos em contatos horas a fio por dia. Infiltrado em nossos lares, este novo personagem agrega valores, estabelece relações hierárquicas e atrai os receptores para que estes adotem sua mensagem e modos de ser, transformando desta forma, os seres humanos em seus reféns, construindo e modelando novas subjetividades. O autor aponta ainda que “poderíamos argumentar que temos a possibilidade de discordar do que é dito e mesmo criticar o que chega até nós. Mas uma coisa não podemos fazer: é saber o que foi propositadamente ocultado, o não-dito, o silenciado” (GUARESCHI, 2004, p.34). Em outra matéria, sobre o mesmo garoto, desta vez no site do O Globo, sob o título de Menino teve fígado dilacerado pelo pai, que não admitia que criança gostasse de lavar louça, assinada por Maria Elisa Alves, publicada em 05 de março de 2014, novamente o destaque por meio do título, para o comportamento “inadequado” do menino. Ao longo do texto, o uso de aspas será novamente uma recorrência para apontar características do comportamento de Alex que destoam do comum. O subtítulo, “Alex, de 8 anos, era espancado repetidas vezes para aprender a ‘andar como homem’”. A matéria traz o relato da mãe de Alex, que vive no Rio Grande do Norte e teria enviado o menino para viver com o pai no Rio de Janeiro. Faz um relato cronológico que narra desde o envio do menino pela mãe, com quem

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vivia em Mossoró, até a chegada do corpo do menino já sem vida no UPA 14 da Vila Kennedy, no Rio. A repórter utiliza de argumentos que poderiam justificar as surras “corretivas” (usadas com aspas na matéria), que iam desde dança do ventre, até o gosto pelo ato de lavar a louça, atividades tidas como femininas no imaginário popular e aqui reforçadas. Um dos adjetivos usados pela reportagem ao garoto é “afetuoso”, logo seguido pelas afirmações do pai, de que ele deveria ser “homem”. A matéria cita ainda outro filho de 12 anos, que teria sido rejeitado pelo assassino de Alex, motivado por comportamento supostamente homofóbico do pai, que achava o outro filho “pouco másculo”. A reportagem traz ainda depoimentos de vizinhos, da mãe de Alex e do irmão do garoto, que fora rejeitado pelo pai. - Eu cuido da casa, mas ele nem sabia. Não acho nada demais, mas ele não aceitava muita coisa — diz o garoto, que escapou por pouco de ser surrado. - Uma vez, ele tentou, mas meu tio me defendeu. Se poupou o filho mais velho, o mesmo não pode se dizer de outros parentes. A matéria termina no velório de Alex, no qual estavam presentes apenas a mãe do garoto e o conselheiro tutelar, mas que, devido à violência do ato, atraiu pessoas de velórios ao redor para a capela onde o garoto era velado, para darem um abraço de conforto na mãe. O fato do pai já ter demonstrado comportamento homofóbico e ser usuário de drogas, é usado como uma possível justificativa para o assassinato por ele cometido. O cuidado em usar termos que relacionem Alex com o universo feminino entre aspas, sempre usados no depoimento do pai, revelam uma ironia e uma tensão em apontar estes comportamentos na realidade do garoto que fora assassinado. Tensão no sentido de proteger a infância do garoto. O intuito aqui se aproxima de manter a figura infantil numa redoma de inocência, de pureza, que estariam em contradição com uma figura de um menino com trejeitos femininos ou que goste de atividades dadas como pertencentes ao universo das meninas e mulheres. Casos como o de Alex não são únicos. Recentemente, outros dois casos envolvendo assassinatos de crianças efetuados por seus pais, por considerarem seus comportamentos inadequados viraram notícia em portais internacionais. O garoto Zachary Dutro-Boggess, de quatro anos, espancado até a morte na cidade de Oregon, nos Estados Unidos, e de Gabriel Fernandez, 8 anos, em Los Angeles, também nos EUA. Porém o caso de Alex foi o único que ganhou os holofotes no Brasil. É 14

Unidades de Pronto Atendimento (UPA) são estruturas de complexidade intermediária entre as Unidades Básicas de Saúde e as portas de urgência hospitalares, onde em conjunto com estas, compõe uma rede organizada de Atenção às Urgências. Funcionam 24 horas por dia, 7 dias por semana.

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possível imaginar que o número de crianças que passam pelo mesmo tipo de maus tratos motivados por seu comportamento destoante das regras sexuais e de gênero seja superior, afinal, muitos acabam não ganhando atenção da mídia, por não chegar a extremos como a morte. Outra matéria de seis páginas escrita pela jornalista Regina Fiore Ribeiro, para edição impressa da revista Pais & Filhos, de abril de 2015, classificada na editoria Comportamento, tem direito à chamada de capa. O texto intitulado de Eles são quem são traz em sua página de abertura, uma imagem de uma criança de cabelos compridos e claros (Figura 05), olhos azuis, vestindo uma fantasia de super-herói (ou super-heroína), luvas de boxe e máscara.

Figura 5: Criança usando fantasia de super-herói (ou super-heroína).

Fonte: REVISTA PAIS & FILHOS nº 541 - Abril de 2015

O texto começa contando a história de Erik Barbi, homem trans, de 36 anos, que desde os quatro anos, com a aceitação da família, vive de acordo com o gênero pelo qual se identifica. Logo no início, cita o nome de registro de Erik. O fato de trazer o nome de registro, ainda que pareça um mero detalhe da reportagem, esconde por traz uma maneira de exotizar a identidade de Erik, como se esta a ele não pertencesse, como se ele fosse um impostor. A matéria faz uma explanação sobre os termos cisgênero e transgênero, para então adentrar ao universo das crianças trans. O autor cita ainda o fato de que todo transexual é transgênero, mas que a recíproca não é verdadeira. Cuidado este que nem todo jornalista busca ao abordar a temática. Ao longo do texto, o autor explica como os estereótipos de gênero são construídos

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e abraçados pela população. Explica a importância da família no processo de auto aceitação e diminuição do sofrimento que estas crianças passam. Um Box15 complementar, na parte inferior da página, traz casos famosos de crianças trans. Entre eles, o John, o filho de Angelina Jolie e Brad Pitt (ainda que o chame pelo nome registrado ao nascimento), Lulu, primeira criança trans a ser oficialmente reconhecida pelo gênero com o qual se identifica na Argentina e Jazz Jennings, adolescente transgênero que abriu caminho para muitas famílias entenderem o processo pelo qual seus filhos estão passando. Ao trazer a fala de Cecília Zylberstajn, uma psicoterapeuta, a matéria chama atenção para o fato de muitas famílias não entenderem e se chocarem com as escolhas destas crianças. Motivadas frequentemente por uma revelação que lhes foi feita antes mesmo do nascimento, eles se preparam psicologicamente para receber uma criança de determinado gênero, quando estas expectativas não são alcançadas, é natural que haja um susto. “É compreensível que haja um choque inicial para os pais”, explica Cecília. Nessa hora os pais ficam assustados e rejeitam a ideia, muitas vezes porque estavam há muito tempo identificando o filho por meio de um gênero desde o ultrassom. A matéria traz ainda um dado importante, também observado pelo autor deste trabalho ao longo desta pesquisa: as crianças transgênero começam a identificar seu gênero ao mesmo tempo em que as crianças cisgênero, por volta dos dois anos de idade. O dado é parte de um estudo da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, publicado na revista Psychological Science. Apesar de elucidativa, a matéria cai num clichê constante e se contradiz, ao afirmar que fulano “nasceu menina, mas hoje é menino”, como se identidade de gênero fosse uma fantasia, que a qualquer momento, escolhêssemos trocar. Em outro momento, ao usar a fala da psicoterapeuta, a matéria aponta que “a diferença é que a criança não estará fantasiando que é uma menina ou um menino, ela realmente acredita que é. Se os outros aceitam assim, ela sente liberdade para expressar sua identidade. É extremamente angustiante quando ela não tem essa aceitação”. Ainda que oriente os pais a procurarem ajuda profissional, a matéria salienta o fato de que a transexualidade não deve ser considerada uma patologia, mesmo que esteja inscrito no CID-1016. Fato que possivelmente irá mudar ainda no ano de 2015, quando diversos comportamentos relacionados à identidade de gênero devem deixar de ser 15

Material adicional usado em uma matéria. Serve para destacar uma parte do tema ou para dar explicações adicionais ao leitor. 16 Classificação Internacional de Doenças publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

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classificados como transtorno17. A matéria encerra com um quadro de sugestões com filmes, documentários, que abordam a temática de gênero e identidade. Entre as autoridades que o texto busca para embasar seu posicionamento estão medicina e família. Ao final da reportagem, a revista publica, destacada em um olho de página, um claro posicionamento a favor das identidades trans. A Pais & Filhos acredita que só com muito amor no coração a gente pode entender e aceitar o que é diferente e fora do padrão. Pais e mães tem esse amor, né? Portanto... Ao mesmo tempo em que para alguns possa ser questionável a imparcialidade do veículo, faz-se necessário também considerar a importância e produtividade dos veículos de comunicação que se posicionem abertamente favoráveis aos Direitos Humanos e em respeito às cidadanias trans. Categorizo esta matéria em Infância Estranha pelo fato de em nenhum momento apontar para um corpo possível de transformação via métodos cirúrgicos, próteses ou hormonização. Trata simples e abertamente a vivência de crianças cujo comportamento destoa das hegemonias relacionadas a gênero e sexualidade (ainda que o cerne da matéria seja a Identidade de Gênero). A criança aqui abordada é estranha perante o outro, perante as instituições médicas, escolares, familiares. Precisamos falar sobre Romeo... é o título da matéria publicada na revista Nova Escola, edição de fevereiro de 2015. Sob a editoria Gênero, escrita por Wellington Soares é matéria de capa (Figura 06), onde mostra o garoto Romeo Clarke, de 5 anos, usando uma coroa e vestido de princesa, com bastante brilho e babados nos ombros. A chamada de capa convida: “Vamos fala sobre ele?”, seguida pelo subtítulo “Como lidar com um aluno que se veste assim? Uma reflexão sobre sexualidade e gênero”.

17

Revista RADIS, Comunicação em Saúde. Transexualidade fora da lista de doenças mentais da OMS. Nº 137, Fevereiro de 2014.

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Figura 6: Capa Revista Nova Escola (Fevereiro de 2015)

Fonte: REVISTA NOVA ESCOLA nº 279 - Fevereiro de 2015

A matéria faz um apanhado de histórias/relatos de crianças e jovens cujo comportamento destoa das regras de gênero e sexualidade, ao mesmo tempo em que contextualiza as questões de sexualidade e gênero na sociedade contemporânea. Traz depoimentos de representantes de entidades civis e também de pesquisadores da área, como da pesquisadora brasileira Guacira Lopes Louro, uma referência nacional nos estudos de gênero no campo da Educação. Decido enquadrar esta infância na categoria Infância Estranha, pois ela retrata comportamentos que fogem dos padrões estabelecidos sobre gênero e sexualidade, sem patologizar estas identidades ou sugerir possíveis transformações que estes corpos devam sofrer (diferentemente daquelas enquadradas na categoria Infância Ciborgue). Novamente, aqui a infância é categorizada como estranha pelos outros. Seu comportamento por alguma razão não se adequa aquele esperado para meninos e meninas, por isso são apontadas nos ambientes familiares e escolares como diferentes. De todos os materiais analisados, pode-se considerar este o mais completo e com menores descuidos, juízos de valores, sobre os comportamentos apresentados por estas

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infâncias. É possível perceber o cuidado do jornalista em buscar fontes que tragam dados relevantes para o público, que não exotizem (ainda mais) estas identidades e que de alguma forma joguem luz sobre estes comportamentos ditos pela sociedade como “anormais”. No entanto, alguns detalhes não passaram despercebidos sob o olhar do autor deste estudo. Em momentos do texto, é possível identificar frases que indiquem um possível comportamento genuíno de meninas e meninos, é o caso da pergunta “Como se construiu uma sociedade que se choca e entra em pânico ao ver um menino se vestido de menina?”, que o jornalista questiona o leitor em determinado momento. Podemos compreender que esta construção nos aponta que existiria uma maneira correta de meninas e meninos se vestir. O que vai contra tudo aquilo que o texto brilhantemente tenta contestar. Em outro momento, o repórter faz a seguinte colocação: Por enquanto, episódios como o do menino Romeo seguem envoltos pela vergonha. Mesmo em casos de crianças pequenas, em que não há relação entre o comportamento da criança e sua sexualidade (meninos mais sensíveis ou meninas que prefiram futebol às bonecas), o expediente-padrão é convocar os pais para uma conversa sobre o suposto problema e encontrar maneiras de “corrigi-lo”. Aqui é possível identificar uma confusão (ainda que pequena, comparada a outros fatos apontados ao longo desta pesquisa). Ao afirmar que determinados comportamentos não estejam relacionados com a sexualidade da criança, novamente questões de identidade de gênero e sexualidade são colocadas num mesmo saco, como em outras matérias analisadas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O corpo da multidão queer aparece no centro disso que chamei, para retomar uma expressão de Deleuze, de um trabalho de “desterritorialização” da heterossexualidade. Uma desterritorialização que afeta tanto o espaço urbano (é preciso, então, falar de desterritorialização do espaço majoritário, e não do gueto) quanto o espaço corporal. Esse processo de “desterritorialização” do corpo obriga a resistir aos processos do tornar-se “normal”. Que existam tecnologias precisas de produção dos corpos “normais” ou de normalização dos gêneros não resulta um determinismo nem uma impossibilidade de ação política. Pelo contrário, porque porta em si mesma, como fracasso ou resíduo, a história das tecnologias de normalização dos corpos, a multidão queer tem também a possibilidade de intervir nos dispositivos biotecnológicos de produção de subjetividade sexual (PRECIADO, 2011, p.14)

Este trabalho aponta para o surgimento de um novo sujeito, sujeito este que não se encaixa nos padrões predeterminados de identidades sexuais e de gênero e está relacionado aos corpos infantis. Este deve ser analisado de acordo com suas especificidades dentro do imaginário midiático, com o devido cuidado para que não caia em estereótipos pelo jornalismo e pela mídia. Através da pequena amostra de matérias analisadas aqui, foi possível perceber uma grande lacuna na representação desta infância nos veículos de comunicação, que comumente, retratam o sujeito infantil que foge aos estereótipos de gênero e sexualidade de maneira embasada num olhar normalizador, patologizante. Ao afirmar sobre esta lacuna, também é necessário ter o cuidado de não fazer generalizações, pois muitos dos materiais analisados também mostraram certa preocupação por parte dos profissionais que os assinam. Preocupação esta que envolve pesquisa sobre o tema, sobre as terminologias, sobre questões relacionadas aos ambientes familiares e educativos que estas infâncias circulam. Ainda que seja necessário fazer intersecções de classe e etnia, visto que destas, poucas infâncias aqui se viram representadas. Em um trabalho que se dedica analisar a maneira que a mídia brasileira representa esta infância, dar-se conta de que a infância brasileira (imaginamos o Brasil um país miscigenado e plural) é pouco representada através deste olhar mostra também o conservadorismo presente no corpo social brasileiro. Conservadorismo este com o qual os jornalistas sem querer corroboram para manter, ao persistir em deixar esta infância longe do olhar da mídia. Percebo na posição de futuro comunicador, a emergência em trazer para o debate do jornalismo as temáticas de gênero e sexualidade. Como sociedade, estamos em um momento de mudança e estas abarcam as novas identidades que surgem a todo o momento. É preciso olhar para estas emergências de uma posição equalitária, sem esquecer-se das peculiaridades

76

que cada indivíduo ou grupo demanda. A atualização constante que o trabalho de jornalista necessita, deve também incluir temas ditos como tabus e polêmicos dentro do imaginário social. O jornalista deve buscar constantemente estar inteirado das discussões que são importantes para a sociedade, pois é a partir da opinião dele que as ideias também serão moldadas e formuladas no campo social. Reproduzir estereótipos, inverdades e desinformação no intuito de informar pode ter desfechos prejudiciais para determinados grupos. Portanto, fica claro que esta é uma atualização de extrema importância, que as instituições de ensino devem também estar atentas ao formar os futuros comunicadores. Outro aspecto recorrente ao trabalhar neste estudo foi perceber a emergência de pensar a desterritorialização dos corpos queer, especialmente o infantil. A mídia talvez possa deixar de olhar para estas identidades por um viés normalizador. É preciso desteritorializar os corpos queer, os sujeitos que destoem das hegemonias relacionadas a gênero e sexualidade. É necessário se apropriar do discurso das minorias, no intuito de descentrar as identidades sexuais e de gênero de um viés hetero-padrão. Este novo sujeito aqui citado, cada vez mais cedo, reivindica seu papel de protagonista em relação às suas identidades sexuais e de gênero (perceba que aqui identidade sexual, não esteja relacionada com as práticas sexuais, mas sim em relação à orientação do desejo). Este novo sujeito, não necessita mais do aval médico para garantir sua existência, ainda que, caso assim o deseje, intervenções de autoridades médicas não sejam descartadas. Os papeis da família e da instituição escolar são de suma importância para a legitimação destas identidades. O que cabe frisar aqui é que a mídia, assim como a sociedade em geral, precisa estar preparada para lidar com estas novas realidades. Que estejamos atentos e não aceitemos a patologização das identidades como algo natural. Que questionemos o conceito de natural. Que tenhamos em mente que as identidades não devem ser encaradas como fixas. Que cada indivíduo é único. Que nada impede que um indivíduo brinque, transite nas fronteiras de gênero e que isto não seja encarado como sinal de alerta. Uma mudança se faz necessária e ela deve partir da sociedade como um todo, não do comportamento de indivíduos que já são por esta marginalizados. Não são os indivíduos que precisam se adequar à lógica do social, mas é preciso que o social entenda a necessidade de abraçar estas identidades, de respeitá-las. É preciso deixar de pensar a sociedade a partir de um viés binário, pois somos múltiplos e diversos. O Ser Humano é uma máquina incrível, binarismos não conseguiriam abarcá-lo. E aqui as perspectivas pós-estruturalistas podem contribuir, pois a pluralidade

77

apresentada pelo corpo social foge das dicotomias que até então foram fundamentais para a manutenção da ordem social vigente. É preciso repensar os modos de viver e olhar o mundo. As maneiras que nos foram apresentadas até agora não se mostram possíveis de serem continuadas. Uma sociedade baseada no consumo, na liquidez das relações. É preciso olhar o outro como igual. A mídia pode ter um papel decisivo na transformação dos desejos sociais. Este trabalho também me possibilitou pensar a respeito da construção das identidades sexuais e de gênero. Do quão o corpo é aprisionado neste sistema binário de existência. Repensar estas dicotomias, abrir possibilidades que tensionem os limites impostos relacionados a gênero e sexualidade também pode ser um papel da comunicação. É preciso pensar na “condição de emergência do político como possibilidade de transformação da realidade” (PRECIADO, 2008, p. 284). Questionar as fronteiras e os muros que nos separam. Ter em mente que vivemos um momento histórico importante, de transformação, onde “(...) as organizações sociais (...) não podem mais manter sua forma por muito tempo (...), pois se decompõem e se dissolvem mais rápido que o tempo que leva para moldá-las...”. (BAUMAN, 2007, p.07). As instituições sociais precisam se adequar ao novo contexto em que vivemos. Enxergar a infância como o novo que dissolve a solidez da nossa existência (LARROSA, 1998), mas pensar que esta incerteza trazida pode nos ensinar a repensar nossos modos de viver e enxergar o mundo ao nosso redor. O novo que o sujeito infantil representa não deve significar medo, mas uma transformação, uma transformação necessária. Se isto significa imaginar um mundo livre das imposições do gênero, que olhemos para estas mudanças como positivas. Enquanto jornalistas e comunicadores, que o nosso papel seja sim questionar, mas que questionemos os motivos que nos mantém presos às formas de viver atuais e onde elas estão nos levando. E que formas possíveis estas novas infâncias podem nos proporcionar. Utilizar como justificativa o fato de que o jornalismo é feito para as massas e que, por este motivo, a linguagem usada deve ser a mais acessível possível não significa continuar utilizando termos patologizantes ou discriminatórios para se referir às identidades sexuais e de gênero. O papel do jornalismo é justamente propagar ideias e nisto está incluso o ato de abordar questões complexas de maneira menos complicada. O que não significa permanecer utilizando termos discriminatórios e preconceituosos, termos que podem ofender determinados grupos sociais. Que estejamos atentos ao criarmos e propagarmos imagens que disseminem estereótipos.

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A maneira com que estas novas infâncias são representadas pelo jornalismo, frequentemente

reproduzem

estereótipos

de

gênero

vigentes.

Meninas

trans

são

frequentemente apresentadas brincando com bonecas, usando vestidos de princesas, meninos trans são apresentados vestindo fantasias de super-herói, jogando videogame ou futebol. Não existe pluralidade? Não existe um meio termo ou um termo que fuja destas dicotomias?

79

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85

GLOSSÁRIO

Assexual: Pessoa que não sente atração sexual por pessoas de qualquer gênero.

Bissexual: Pessoa que se atrai afetivo-sexualmente por pessoas de qualquer gênero.

Cirurgia de Redesignação Genital/sexual ou de Transgenitalização: Procedimento cirúrgico por meio do qual se altera o órgão genital da pessoa para criar uma neovagina ou um neofalo. Preferível ao termo antiquado “mudança de sexo”. É importante, para quem se relaciona ou trata com pessoas transexuais, não enfatizar exageradamente o papel dessa cirurgia em sua vida ou no seu processo transexualizador, do qual ela é apenas uma etapa, que pode não ocorrer. Cisgênero: Conceito “guarda-chuva” que abrange as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento.

Crossdresser: Pessoa que frequentemente se veste, usa acessórios e/ou se maquia diferentemente do que é socialmente estabelecido para o seu gênero, sem se identificar como travesti ou transexual. Geralmente são homens heterossexuais, casados, que podem ou não ter o apoio de suas companheiras.

Gênero: Classificação pessoal e social das pessoas como homens ou mulheres. Orienta papéis e expressões de gênero. Independe do sexo.

Expressão de gênero: Forma como a pessoa se apresenta, sua aparência e seu comportamento, de acordo com expectativas sociais de aparência e comportamento de um determinado gênero. Depende da cultura em que a pessoa vive.

Heteronormatividade: conceito criado em 1991, por Michael Warner. Visa regular e normatizar modos de ser e de viver os desejos corporais e a sexualidade De acordo com o que está socialmente estabelecido para as pessoas, numa perspectiva biologicista e determinista, há duas possibilidades de locação quanto à anatomia sexual humana, ou seja, feminino/fêmea ou masculino/macho.

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Heterossexual: Pessoa que se atrai afetivo-sexualmente por pessoas de gênero diferente daquele com o qual se identifica.

Hermafrodita: conceito em desuso para se refenciar a seres humanos. Era utilizado anteriormente para designar pessoas intersexo, aquelas que nascem com genitália ambígua.

Homossexual: Pessoa que se atrai afetivo-sexualmente por pessoas de gênero igual àquele com o qual se identifica.

Homem Transexual: Pessoa que reivindica o reconhecimento social e legal como homem. Alguns também se denominam transhomens ou Female-to-Male (FtM). Hormonioterapia: no caso das pessoas transexuais, está relacionado ao tratamento com hormônios que busca induzir o desenvolvimento de características sexuais secundárias compatíveis com a identidade de gênero da pessoa. De forma geral, a hormonioterapia deve ser continuada pela vida toda, sendo interrompida somente para a realização de cirurgias.

Hormonização: ver Hormonioterapia.

Indeterminação Genital: quando um bebê vem ao mundo com uma genitália que impossibilite uma designação de gênero. Ver também Intersexo.

Identidade de gênero: Gênero com o qual uma pessoa se identifica, que pode ou não concordar com o gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento. Diferente da sexualidade da pessoa. Identidade de gênero e orientação sexual são dimensões diferentes e que não se confundem. Pessoas transexuais podem ser heterossexuais, lésbicas, gays ou bissexuais, tanto quanto as pessoas cisgênero.

Intersexo/Intersexual: Pessoa cujo corpo varia do padrão de masculino ou feminino culturalmente estabelecido, no que se refere a configurações dos cromossomos, localização dos órgãos genitais (testículos que não desceram, pênis demasiado pequeno ou clitóris muito grande, final da uretra deslocado da ponta do pênis, vagina ausente), coexistência de tecidos testiculares e de ovários. A intersexualidade se refere a um conjunto amplo de variações dos corpos tidos como masculinos e femininos, que engloba, conforme a denominação médica,

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hermafroditas verdadeiros e pseudo-hermafroditas. O grupo composto por pessoas intersexuais tem-se mobilizado cada vez mais, a nível mundial, para que a intersexualidade não seja entendida como uma patologia, mas como uma variação, e para que não sejam submetidas, após o parto, à cirurgias ditas “reparadoras”, que as mutilam e moldam órgãos genitais que não necessariamente concordam com suas identidades de gênero ou orientações sexuais. LGBT: Acrônimo de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Eventualmente algumas pessoas utilizam a sigla GLBT, ou mesmo LGBTTT, incluindo as pessoas transgênero/queer. No Chile é comum se utilizar TLGB, em Portugal também se tem utilizado a sigla LGBTTQI, incluindo pessoas queer e intersexuais. Nos Estados Unidos se encontram referências a LGBTTTQIA (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Travestis, Transexuais, Queer, Intersexuais e Assexuados). Mulher transexual: Pessoa que reivindica o reconhecimento social e legal como mulher. Algumas também se denominam transmulheres ou Male-to-Female (MtF).

Nome Social: Nome pelo qual as travestis e pessoas transexuais se identificam e preferem ser identificadas, enquanto o seu registro civil não é adequado à sua identidade e expressão de gênero.

Orientação Sexual: Atração afetivo-sexual por alguém. Sexualidade. Diferente do senso pessoal de pertencer a algum gênero.

Orgulho: Antônimo de vergonha. Conceito desenvolvido pelo movimento social LGBT para propagar a ideia de que a forma de ser de cada pessoa é uma dádiva que a aproxima de comunidades com características semelhantes às suas, e deve ser afirmada como diferença que não se altera, não deveria ser reprimida nem recriminada.

Papel de Gênero: Modo de agir em determinadas situações conforme o gênero atribuído, ensinado às pessoas desde o nascimento. Construção de diferenças entre homens e mulheres. É de cunho social, e não biológico.

Transexual: Termo genérico que caracteriza a pessoa que não se identifica com o

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gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento. Evite utilizar o termo isoladamente, pois soa ofensivo para pessoas transexuais, pelo fato de essa ser uma de suas características, entre outras, e não a única. Sempre se refira à pessoa como mulher transexual ou como homem transexual, de acordo com o gênero com o qual ela se identifica. Transgênero: Conceito “guarda-chuva” que abrange o grupo diversificado de pessoas que não se identificam, em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis esperados do gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento.

Travesti: Pessoa que vivencia papéis de gênero feminino, mas não se reconhece como homem ou mulher, entendendo-se como integrante de um terceiro gênero ou de um nãogênero. Referir-se a ela sempre no feminino, o artigo “a” é a forma respeitosa de tratamento.

Transformista ou Drag Queen/Drag King: Artista que se veste, de maneira estereotipada, conforme o gênero masculino ou feminino, para fins artísticos ou de entretenimento. A sua personagem não tem relação com sua identidade de gênero ou orientação sexual.

Processo Transexualizador: Processo pelo qual a pessoa transgênero passa, de forma geral, para que seu corpo adquira características físicas do gênero com o qual se identifica. Pode ou não incluir tratamento hormonal, procedimentos cirúrgicos variados (como mastectomia, para homens transexuais) e cirurgia de redesignação genital/sexual ou de transgenitalização.

Queer, Andrógino ou Transgênero: Termos ainda não consensuais com o qual se denomina a pessoa que não se enquadra em nenhuma identidade ou expressão de gênero.

Sexo: Classificação biológica das pessoas como machos ou fêmeas, baseada em características orgânicas como cromossomos, níveis hormonais, órgãos reprodutivos e genitais.

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ANEXO A - Fichas de Conteúdo

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TÍTULO

VEÍCULO

EDITORIA

DATA / EDIÇÃO

FORMATO

LINK

Transgênero de 13 anos recebe tratamento hormonal para frear puberdade e gera debate nos EUA

BBC Brasil

-

14/1/15

Online

http://ow.ly/UH9hD

Menores transexuais recebem apoio cada vez mais cedo nos EUA

BBC Brasil

-

14/10/14

Online

http://ow.ly/UH6Gx

Alemanha permite registro de bebês com gênero indeterminado

BBC Brasil

-

1/11/13

Online

http://ow.ly/UH6Hl

O que fazer se seu filho quer se vestir de princesa?

BBC Brasil

Mundo

08/07/15

Online

http://ow.ly/UH6Ii

Guevedoces: o estranho caso das 'meninas' que ganham pênis aos 12 anos

BBC Brasil

-

21/7/15

Online

http://ow.ly/UH6Jt

Documentário conta drama de gêmeo criado como menina após perder pênis

BBC Brasil

Saúde

24/11/10

Online

http://ow.ly/UH6Kr

Em blogs e livros, pais se abrem sobre crianças que desafiam padrões de gênero

BBC Brasil

Notícias

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Menino que gosta de se vestir como uma princesa inspira mãe a escrever livro infantil

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Garota de 8 anos dá lição a marca de sapatos que criou tênis “só para meninos”

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um menino transgênero de 6 anos Quem matou o garoto Alex

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Eu não era feliz como menina', diz garoto transgênero de 11 anos

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Edição 279 – Fevereiro de 2015

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Os passos da transformação

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Impresso

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Eles são quem são

Pais & Filhos

Comportamento

Edição 541 – Abril de 2015

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Hospitais brasileiros auxiliam famílias de crianças transgêneros

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Família trava batalha na Justiça por direitos de criança transexual nos EUA

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