Criminalidade e drogas: problemas sociais analisados a partir do filme “Cidade de Deus”

September 11, 2017 | Autor: A. Revista Interd... | Categoria: Cinema, Ciencias Sociales, Drogas, Ciencias Sociais
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Criminalidade e drogas: problemas sociais analisados a partir do filme “Cidade de Deus” Everton Samuel dos Santos Melo Universidade do Minho (Portugal)

O cinema cada vez mais tem abordado assuntos relacionados à sociedade quer no âmbito da violência, da miséria, das drogas, da criminalidade, da loucura, de desemprego, quer em outros temas. Um dos géneros que aborda tais temáticas é o drama, que designa uma acção geralmente violenta ou emotiva na qual se confrontam personagens histórica e socialmente inscritas num quadro, retratadas pelas ações do quotidiano. Estes temas permitem que a narrativa fílmica seja reconhecida pelo espectador como parte integrante do fenómeno social. De entre as questões cruciais enfrentadas principalmente nas grandes cidades, estão a criminalidade e as drogas. Neste contexto, torna-se relevante a análise do filme “Cidade de Deus”, pelo fato de este tratar de temas pertinentes a todas classes sociais. Os problemas como as drogas e a criminalidade atravessaram séculos e ainda, configura-se uma realidade, na qual a sociedade não conseguiu solucionar e, certamente, este será um grande desafio para o século XXI, exigindo assim um olhar diferenciado para estas questões. The cinema has increasingly addressed issues related to society either in the context of violence, poverty, drugs, crime, madness, unemployment, among other topics. One of the genres that addresses these themes is the melodrama that caracterizes its narrative that is easily understood, portrayed by the actions of everyday life. These themes allow the film narrative to be recognized by the viewer as part of a social phenomenon. Among the crucial issues faced especially in large cities are crime and drugs. In this context, it becomes relevant the analysis of the film “City of God ", because it addresses relevant topics that are concerned to all social classes. Social problems such as drugs and crime have crossed centuries and still being a cruel reality in which society can not solve yet, and certainly this will be a great challenge for the XXI century, thus requiring a different view to these issues. Palavras-chave: Cinema, Criminalidade, Cidade, Drogas, Problemas sociais. Keywords: Cinema, Crime, City, Drugs, Social Problems.

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1. INTRODUÇÃO Este trabalho tem por objetivo apresentar alguns problemas inseridos em nossa sociedade, nomeadamente a criminalidade e as drogas. Para análise de tais temas, o filme “Cidade de Deus”, produzido em 2002, por Fernando Meirelles e co-direção de Kátia Lund será utilizado como corpus para verificar estes problemas sociais na modernidade, particularmente nos grandes centros urbanos. Torna-se necessário mencionar que o cinema, entendido como arte, evidencia a criatividade do produtor cinematográfico, ao promover a interação do público com a história apresentada. Isto mostra a capacidade de criação do produtor para tornar a linguagem das imagens acessível ao espectador. Neste sentido, a dinâmica das imagens constitui a linguagem cinematográfica, com sintaxe e léxico próprios, que possibilita, muitas vezes, de forma descontraída, a fácil compreensão do enredo em relação aos temas apresentados. Observa-se, assim, que o cinema sugere elevada crítica por conter características quotidianas do sujeito contemporâneo, chegando até a transcender o campo estético, atingindo o social. Desta forma, o cinema torna-se um objeto de estudo para as ciências sociais, por isso, a proposta deste trabalho é analisar apenas os dois aspectos sociais, evidenciados no filme “Cidade de Deus”. Considerando o cinema um meio de crítica e de denúncia sociais, pode-se dizer que os temas no âmbito da violência, da miséria, das drogas, da criminalidade, da loucura e do desemprego são levados a propósito para levantar questões do interesse dos cidadãos. Nesta acepção, temas que fazem parte da realidade do ser humano são projetados no ecrã, sem levar o espectador à reflexão resultando numa aceitação do mesmo ao que vê. Muitos géneros cinematográficos utilizam recursos para “prender” a atenção do espectador. No filme “Cidade de Deus”, a crítica e as denúncias sociais expressas por meio da criminalidade e das drogas são recursos utilizados para comunicar com o espectador.

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De entre os géneros cinematográficos, o drama, assume a estrutura dramática ao colocar em centro a vingança como forma de expressão. Jacques Aumont e Michel Marie (2008:80) afirmam: O drama é quase sempre particularizado: drama burguês, drama histórico, drama romântico (…) Designa uma acção geralmente violenta ou emotiva na qual se confrontam personagens histórica e socialmente inscritas num quadro credível. Embora alguns elementos cómicos possam ser integrados na acção, o caráter dominante deve continuar a ser a seriedade. (Aumont; Marie 2008:80)

Neste sentido, os autores demonstram, que na ação do drama, os personagens assumem confrontos que apresentam características verossímeis no enredo. Massaud Moisés (1985:162) citando Bernard Beckerman (1970:19) assegura que o drama propriamente dito envolve a “(…) atividade de representar, em que um ator retrata o comportamento de uma personagem, o qual, por sua vez, revela a vida profunda da personagem”. Isso indica que a representação do ator revela o papel da personagem inserida em um contexto. Porém, torna-se necessário mencionar que, o cinema, além de descrever a realidade determina a sociedade ao apresentar para o espectador temas relacionados às questões sociais. Assuntos como o crescimento desordenado de grandes centros urbanos e a falta de interesse do poder público com as camadas sociais que necessitam de investimentos sócio-educacional e econômico resultam, muitas vezes, na criminalidade e nas drogas. Tais ações praticadas por traficantes são vistas como forma de “compensação” da miséria por que passa a população marginalizada, para assim, se fazerem percebidas e reconhecidas socialmente. Há filmes que apresentam questões cruciais enfrentadas principalmente nas grandes cidades, a criminalidade e as drogas têm se mostrado como um dos principais temas de interesse nas produções cinematográficas brasileiras. Destacam-se nos últimos anos além do próprio Cidade de Deus, filmes como Carandiru, Tropa de Elite 1 e Tropa de Elite 2, de entre outros que abordam a violência.

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Advirta-se, desde já, que, o principal objetivo do trabalho não é atribuir uma noção artística do cinema a partir do filme escolhido descrevendo os aspectos estéticos ou ressaltando o valor económico da produção, por exemplo, mas visa essencialmente a análise de Cidade de Deus sob o aspecto social inerente à marginalidade deste complexo urbano, na cidade do Rio de Janeiro. Para isso, selecionamos algumas imagens do filme, que tem como protagonistas os temas da criminalidade e das drogas. Tal interesse deve-se ao fato de este abordar temas que estão presentes em todas as classes sociais. Estes temas podem ser considerados o fio condutor do filme em questão, se entendidos como elementos sociais que constituem uma sociedade que cresce sem planejamento e sem estrutura do Estado. É oportuno mencionar que estes temas atravessaram o século XX e ainda, configuramse a realidade, na qual a sociedade não conseguiu solucionar e, certamente, este será um grande desafio para o século XXI, exigindo assim um olhar diferenciado para estas questões. A importância deste trabalho consiste, portanto, na contribuição académica sob o viés social, permitindo redimensionar o olhar dos temas abordados. Trata-se de um trabalho analisado em corpus cinematográfico e também em textos científico e jornalístico, com um foco crítico em assuntos presentes na sociedade contemporânea, pautados na visão de especialistas no assunto, permitindo reafirmar a cientificidade deste artigo, tendo em vista o filme abordado.

2. O FILME CIDADE DE DEUS A cinematografia brasileira tem abordado aspectos comuns da realidade social de comunidades marginalizadas, nos últimos anos. O tráfico e suas vertentes nos grandes centros urbanos, principalmente, têm se tornado uma constante, o que explica o destaque da população periférica em produções cinematográficas, ora em narrativas ficcionais, ora em documentários. (...) o filme é dotado de uma capacidade significante que lhe permite recriar a realidade sob a forma de uma linguagem recorrendo a uma série de processos

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de reelaboração poética que o transformam num gênero técnico-formal mais virado para a expressão (...) (Setaro, 2004).

A importância do filme (figura 1) consiste em apresentar as características que conduzem o espectador a identificar a realidade do ambiente que constitui parte da periferia do Rio de Janeiro e apresenta as mazelas sociais da classe popular inseridas na comunidade que tem o mesmo nome do filme. Os personagens, o figurino e a caracterização da periferia são reconhecidos pelo espectador, que identifica em cada cena a violência explícita na Cidade de Deus.

Figura 1 – Filme Cidade de Deus.

O espectador se depara com situações da criminalidade e das drogas na favela e identifica a lei instaurada pelos traficantes afim deles próprios decidirem quem morrerá e quem sobreviverá. A lei estabelecida pelos traficantes na favela mostra o poder que esses criminosos exercem sobre os moradores do complexo habitacional. Interessante observar que o subúrbio é a representação das mazelas da periferia. Essa representação explícita no quotidiano do complexo habitacional, que leva o nome do filme, indica a visão que a classe média tem sobre a periferia (figura 2).

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Figura 2 – Periferia “Complexo habitacional Cidade de Deus”.

O contexto social da narrativa indica a aproximação da ficção com a nossa sociedade, explícita nos papéis estabelecidos dos atores no filme. Não sendo objeto deste estudo, a discussão sobre os papéis dos personagens relevantes no enredo, ficarão sugeridas para estudos posteriores. No entanto, apresentaremos uma breve descrição de alguns personagens e da história. O filme é baseado em relatos biográficos de moradores, tendo como protagonista o personagem Buscapé, um narrador de histórias da favela. À medida que o protagonista identifica os atores deste subúrbio e descreve a vida dos habitantes de sua comunidade, ele descortina o surgimento da Cidade de Deus, com um alarmante e crescente desenvolvimento do tráfico de drogas. Tal relato garante a permanência construída sobre o que significa estar inserido numa sociedade a qual é produtora e reprodutora da criminalidade. Ao descrever a trajetória de cada integrante do subúrbio, por se tratar de relatos de jovens da favela, Buscapé não só confirma a imagem social coletiva de uma periferia, mas também, incita no espectador a máxima, de que, ao jovem, que nasce no subúrbio está reservado o destino de ser criminoso e traficante. Em contraponto a esta situação, a qual, está reservada a maioria dos outros jovens com quem Buscapé convive, este, vê no trabalho a condição necessária para sair do destino que Cidade de Deus reserva, para quem nasce, em uma verdadeira oficina de AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 6, dez 2013

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marginalizados. Zé Pequeno e Cenoura são a representação do banditismo na periferia porque, ambos detém o controle do crime e do tráfico de drogas na favela. O viés cinematográfico, de Cidade de Deus, revela a guerra pela disputa pelos pontos de venda e comercialização de entorpecentes em uma favela, estando estruturado em três momentos históricos distintos, especificadamente, nas décadas de 1960, de 1970 e de 1980. A criminalidade, na comunidade, inicia-se com pequenos furtos e assaltos (figura 3), que se intensificam trazendo, mais tarde, consigo ainda outros aspectos pertinentes a tal realidade. São também inseridos no enredo o contexto de convivência das quadrilhas de traficantes, a rivalidade e a hostilidade que são o retrato de uma situação evolutiva e que, com o passar do tempo, deixou suas marcas de medo e sangue na favela.

Figura 3 – Início da criminalidade.

A vulnerabilidade do trabalhador frente à arma do bandido, como está explícita na figura 3, proporciona identificar a criminalidade presente em uma sociedade caótica e evidencia a fragilidade do sistema de segurança estatal em um complexo habitacional como o descrito. É importante ressaltar que as organizações criminosas, nas quais, se inserem os “bandidos”, reportados no filme, os incitam a cometer tais atos e crimes, no intuito de, desestabilizar a ordem social. Considerando que a cidade pós-moderna passa por situações como a que acabamos de descrever, é importante ressaltar o carácter excludente e opressor, ao qual estão expostos os moradores destas comunidades, tornando-os de forma significativa, meros

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figurantes de uma estrutura social complexa e, por isto, componentes do que alguns estudiosos denominam de “classe subalterna”. Os tons de realidade contidos e demonstrados, no filme, retratam a violenta e lucrativa atividade do tráfico. A cena em que os jovens enrolam erva em papelotes, supostamente a maconha e cocaína, mostradas na figura 4 e na figura 5 remete-nos para a condição social que está concentrada nos guetos e periferias nos grandes centros urbanos do Brasil.

Figura 4 – Jovem enrola a erva em papel.

Figura 5 – Produção da cocaína.

Tais cenas indicam a evolução da criminalidade, no subúrbio, confirmada na distribuição e na venda das drogas. Essa criação e evolução da criminalidade marcada pelos “Cartéis do Tráfico” demonstram que a favela é o local propício para a AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 6, dez 2013

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comercialização de materiais ilícitos. Tendo na figura do traficante, o prospecto de mantenedor das linhas de distribuição do material e centralização de poder paralelo. A produção das drogas movimenta o tráfico na favela e os traficantes “reconhecem sua condição”, lugar este que reserva o trabalho de distribuição da droga e possibilita a condição prima para a sobrevivência e a manutenção do crime. O lugar que os traficantes ocupam em nossa sociedade indica a importância que estas figuras têm na estrutura desta sociedade. Seu trabalho os torna respeitados e direciona o olhar dos cidadãos comuns para o local em que eles, os traficantes, vivem. Estes fabricantes da criminalidade imprimem uma identidade própria na produção, no uso e na venda de drogas, a organização de cada facção criminosa em uma favela, que se dilata de forma desordenada. Neste sentido, o trabalho do traficante deixa de ser notado apenas na comunidade a qual ele pertence passando, portanto, a ser perceptível em toda a sociedade vigente. O tráfico de cocaína é um crime de altíssima lucratividade. Entre a produção da droga, nos países andinos, e a sua venda nas bocas-defumo cariocas, o quilo da cocaína valoriza-se em 650%. O lucro só não é maior para as quadrilhas porque, para se manter, elas têm de lançar mão de grossas quantias para remunerar policiais corruptos. Há os que chegam a ficar com 80% do lucro em algumas favelas. (França in Veja, 2007).

Isso indica que o comércio do tráfico apresenta-se em um ciclo que pode ser considerado interminável. Neste sentido, ao vislumbrarmos o processo, de produção, desde o início até o consumo da droga, torna-se mais que perceptível o lucro abusivo gerado pelas altas quantias cobradas. No entanto, os traficantes são obrigados a praticálas, no intuito, de garantir a permanência do sistema do tráfico atendendo a mão-de-obra não somente dos trabalhadores que se destinam à produção, mas também dos “atravessadores” e outros distribuidores. As pessoas de outras classes sociais, mais abastadas, e que não fazem parte destas comunidades carentes, são as principais responsáveis pela permanência e manutenção do tráfico. Ao comprarem as drogas, que na maioria das vezes, são comercializadas na

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favela, estas pessoas desencadeiam uma reação, que posteriormente, as atinge através da violência. As cenas apresentadas na figura 6 e na figura 7 ilustram essa afirmação:

Figura 6 – Homem compra droga na mão de traficante.

Figura 7 – Traficante entrega a droga e recebe o dinheiro do comprador.

Em 2000, a Folha de São Paulo Online publicou o relatório apresentado pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que indicia envolvidos no narcotráfico. Na descrição, há pessoas de classes e posições sociais distintas, que deveriam combater a criminalidade e as drogas, mas financiavam o tráfico. A CPI do Narcotráfico aprovou informalmente relatório final indiciando mais de 800 pessoas, entre elas dois deputados federais, 14 estaduais e seis desembargadores. Também entraram na lista prefeitos, delegados de polícia, policiais civis, militares e empresários. (...) Os indiciamentos são fundamentados na acusação de prática de vários crimes, entre eles envolvimento com o crime organizado e

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narcotráfico,

homicídio,

corrupção,

sonegação

fiscal,

tráfico

internacional de drogas, roubo de carga e lavagem de dinheiro. (Oliveira in Folha de S. Paulo Online, 2000).

Neste sentido, torna-se impossível, aos moradores destas comunidades, quebrarem este ciclo que compõe uma esfera social própria, na qual, fazem parte todos os colaboradores deste sistema que, por mero prazer e lucro, matam, roubam e traficam. Este é o reflexo da criminalidade, não somente, na Cidade de Deus mas, da maioria dos centros urbanos e que está evidente em sua essência por tais índices. A situação imposta, pelos traficantes, demonstra que parte dos moradores das comunidades está propensa a se envolverem com quem pratica crimes diversos. A figura 8 esclarece que os jovens, em sua maioria, não conseguem se manter fora da ilegalidade e os que tentam não se envolver, os inocentes, acabam por ser mortos pelos traficantes.

Figura 8 – Moradores são assassinados pelos próprios traficantes.

Buscando entender, de modo mais específico, a natureza da criminalidade e das drogas, ao relacionar tráfico e sociedade é visível que os integrantes do esquema demonstrem o envolvimento do grupo na vida comunitária da favela, sendo eles, os responsáveis pela solução de quaisquer adversidades que possam aparecer. Funcionam assim, como a figura do próprio Estado, mostrando para aquele círculo social quem domina o território e, consequentemente, acabam por intimidar a ação das pessoas que se manifestarem de forma contrária à ação destes que dominam a favela. AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 6, dez 2013

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A condição dos traficantes diante da ameaça do combate ao crime, por policiais, exemplificada na figura 9, mostra que aqueles não temem o perigo e intimidam os que cruzam o caminho.

Figura 9 – Os traficantes ameaçam atirar.

Essas experiências comprovadas por pessoas que vivem em espaços urbanos mostram que a criminalidade deixou de ser um problema local e passou a ser global. Assim, pode-se dizer que a criminalidade e as drogas presentes em Cidade de Deus não são meras representações das mazelas sociais de um subúrbio do Rio de Janeiro, mas de cidades que, como o Rio de Janeiro que cresceu desordenadamente, sem condições sociais adequadas para os moradores. Busca-se, aqui, a exposição do efeito cascata para confirmar a máxima de que a criminalidade em todas as suas vertentes nasce nos morros, porém, cresce na extensão das cidades. Com a modernidade, torna-se mais visível a presença de vários aparatos tecnológicos que dão suporte e logística à prática do tráfico. As pessoas utilizam telemóveis e a internet para comunicar-se, lançando mão comumente destes recursos, que facilitam o encontro entre os usuários e os traficantes, numa sociedade cada mais dinâmica como a evidenciada no filme. Estas negociatas tendem a ser cada vez mais rápidas e imperceptíveis aos olhos da frágil Justiça. Para compreender melhor como a criminalidade e as drogas protagonizadas no cinema eram temas que estavam inseridos na sociedade vigente da época, pode-se verificar, que antes mesmo de o filme ser produzido, em 03 de Setembro de 1995, o Jornal Folha de AGIR - Revista Interdisciplinar de Ciências Sociais e Humanas. Ano 1, Vol. 1, n.º 6, dez 2013

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São Paulo, publicou um artigo intitulado Desigualdade entre ricos e pobres é a causa maior da criminalidade, de Luis Henrique Amaral. Este artigo confirmara, na época, que a violência está associada e atrelada à desigualdade social. Assim, tal edição do Jornal Folha de São Paulo apresentou uma tabela, com alguns dos países que possuíam as mais alarmantes estatísticas sobre homicídios, reconhecendo que “o nível de desigualdade social é uma das poucas causas da criminalidade que podem ser quantificadas.”

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de um presente marcado pela violência urbana, o filme Cidade de Deus se mostra cada vez mais atual, visto que, atinge de forma específica a realidade social da maioria dos centros urbanos, ao demonstrar, de forma subjetiva, uma pseudo-biografia de cada personagem inserido neste ambiente cercado de mazelas. A violência explícita e impregnada, nas cenas, permitem ao espectador visualizar, de forma direta, a transgressão da ordem na sociedade contemporânea. Traçar um comparativo entre o filme e a sociedade posta, torna-se uma ferramenta mais do que útil, pois traz consigo um carácter reflexivo na busca de uma solução que acomete a paz do espaço vivido, quer urbano, quer outro. Este artigo apresentou dois problemas sociais no drama Cidade de Deus: a criminalidade e as drogas, presentes em uma sociedade e que ainda não foram possíveis de serem resolvidos nem pelos moradores do complexo habitacional nem pelo Estado. Entre filme e realidade surgem inúmeras discussões acerca das questões sociais, que, embora locais contêm projeção mundial. O desejo de propor soluções para tais problemas juntamente com o Estado, faz-se, portanto, necessário para que sociedade e poder público possam encontrar uma maneira de diluir a criminalidade e as drogas, por meio de ações mais diretas e efetivas, a fim de implementar o desenvolvimento de projetos que promovam a consciência dos cidadãos para prevenir o surgimento de condições miseráveis que resultam em exclusão social.

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Assim, ao tornar os sobreviventes destas comunidades cidadãos, conscientes de seus direitos e deveres, estes poderão assumir o lugar daqueles que chefiam os ambientes hostis e violentos descritos. Quebrando, portanto, o articulado ciclo que mantém vivos a criminalidade e o tráfico, através de sua principal fonte mantenedora, a desigualdade social. Os que nela vivem, por serem reféns da sua própria situação, necessitam de uma maior assistência do Estado, significa, na prática, que a sociedade contemporânea, como espaço de convivência coletiva, deve ter como premissa básica a isonomia e a humanidade entre seus indivíduos, ao reconhecer que a violência se materializa nas formas mais extremas da pobreza.

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