Criminologia, feminismo e direitos humanos - A cifra oculta do feminino no Direito Penal

July 25, 2017 | Autor: C. Magalhães Gomes | Categoria: Estudios de Género, Feminismo, Género, Violencia De Género, Criminología Crítica, Lei Maria da Penha
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III Seminário Latino-Americano de Direitos Humanos - Direitos Humanos, Multiculturalismo e Diversidade na América Latina Comissão: 4. Gênero e Direitos Humanos

Criminologia, feminismo e direitos humanos - A cifra oculta do feminino no Direito Penal

Camilla de Magalhães Gomes –FAESA

RESUMO O presente artigo pretende demonstrar a necessidade da inclusão do paradigma de gênero na criminologia crítica como ferramenta de análise do direito penal, com o fim de descobrir como esse é parte de uma estrutura social que nega direitos fundamentais à mulher (como exemplos os direitos sexuais e reprodutivos). A criminologia evoluiu, no século XX, deixando para trás o passado ditado pelo paradigma etiológico. A partir dos estudos da Escola de Chicago, sofreu profunda alteração em seu paradigma, que passou a estar assentado na definição ou reação social. Com isso, abandonado o foco no crime e no criminoso, passou a centrar-se no estudo da criminalização, tendo por objeto o próprio direito penal. A evolução levou ao que se convém denominar criminologia crítica, que, ainda que possa se dividir em diversas formas de pensamento, neste artigo é reconhecida como uma verdadeira sociologia do direito penal. Ocorre, no entanto, que o avanço da criminologia crítica pouco acompanhou o feminismo e seus estudos. A ausência da inclusão do paradigma de gênero na criminologia crítica faz dessa uma análise sociológica parcial de seu objeto. O vácuo assim deixado faz com que a análise criminológica se produza de modo alheio ao fato de que o direito (e o direito penal) tem gênero e é também parte da sociedade patriarcal em que inserido. A criminologia crítica, ao focar na criminalização e no direito penal, não pode se esquecer do paradigma de gênero, sob pena de não observar dois conteúdos específicos: a mulher como autora de crimes e a mulher como vítima da violência de gênero, seja a violência doméstica, seja a institucional. O esquecimento concede à mulher um não-lugar no direito penal e na criminologia. A adoção do paradigma de gênero é necessária e, nesse artigo, será tomada para avaliar como o direito penal ainda hoje contribui para a reprodução das clássicas dicotomias de uma sociedade patriarcal que indica pares de qualidades como: público/privado, produtor/reprodutor, razão/emoção, sujeito/objeto; associando as primeiras dos pares ao masculino e as segundas ao feminino, ao mesmo tempo em que as hierarquiza, qualificando as primeiras de modo superior às últimas. A mudança ou soma de paradigmas aqui defendida fará com que se perceba que o poder desigual na definição e reação da criminalidade, tanto estudado na

criminologia, deve envolver o gênero, para reconhecer que também em razão dele o direito penal promove uma seletividade (positiva e negativa) e reproduz institucionalmente, através da criminalização primária e secundária, a violência de gênero que controla o corpo feminino e a ela concede um único lugar: o doméstico/privado/reprodutor. Percebe-se, então, que o direito penal é parte significativa de uma estrutura social que nega à mulher o exercício pleno dos seus direitos fundamentais, criminalizando condutas com finalidade de mantê-la nesse lugar privado. PALAVRAS-CHAVE – criminologia – feminismo – direitos humanos

1. Como uma introdução – teoria crítica dos Direitos Humanos

O artigo que aqui se apresenta é parte do grupo de trabalho Gênero e Direitos Humanos do III Seminário Latino-Americano de Direitos Humanos - Direitos Humanos, Multiculturalismo e Diversidade na América Latina

e relaciona

criminologia, feminismo e direitos humanos, como forma de demonstrar a necessidade de incluir a crítica feminista

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e o paradigma de gênero na criminologia

crítica como ferramenta de análise do direito penal, com o fim de descobrir como esse é parte de uma estrutura social que nega direitos fundamentais à mulher. Antes, porém, cabem algumas considerações para definir do que se trata quando se fala em Direitos Humanos. A teoria tradicional se assenta em uma ideia estática dos Direito Humanos, considerando que a previsão destes em um diploma legal é suficiente para garantir que eles existam e pertencem a todos, independente de qualquer discriminação2. Ocorre, no entanto, que ao contrário do que a teoria tradicional sempre fez parecer, o direito não cria nada e não garante nada por si só, em matéria de direitos pertencentes a todos os seres humanos. Na verdade, nessa matéria os direitos são um meio, um processo de garantir a todos os bens da vida fundamentais a assegurar a dignidade humana. 3 A ideia dinâmica de direitos humanos como um processo e um meio vem do trabalho de Joaquin Herrera Flores, uma teoria deveras crítica do tradicionalismo na matéria.4 O autor afasta a pretensão de universalidade a priori dos Direitos Humanos, não porque eles não pertençam a todos, mas por reconhecer que tal pretensão pode ser

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Ou a “teoria feminista do direito” como nomeada por Carol Smart. Fala-se, entre esses autores, em gerações ou dimensões dos Direitos Humanos. A primeira expressão, especialmente, relaciona o termo ao momento de reconhecimento dos direitos nos diplomas legais. Assim FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2011, 13 ed., p. 24. 3 FLORES, Herrera Joaquín. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis : Fundação Boiteux. 2009, p. 34. 4 Interessante dizer que Bobbio também tratava da perspectiva cultural dos direitos humanos. Considerava, no entanto, de modo destacado, a importância de se levar a proteção desses direitos como centro das preocupações e apresentava relação dessa proteção com a garantia através de um texto legal. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 24. Herrera Flores critica essa perspectiva, considerando que a previsão em um diploma legal não é suficiente para tornar tais direitos reais. 2

excludente, ao mesmo tempo em que, assim colocados, pressupõem uma realidade já alcançada, o que não se verifica na realidade. 5 Falar, então, de direitos humanos é falar da abertura de processos de luta pela dignidade humana. Falar de compromissos e deveres de Estado e cidadãos. São, então, processo, o resultado sempre provisório das lutas que os seres humanos colocam em prática para ter acesso aos bens necessários da vida. 6 Os direitos humanos são, então, convenções culturais utilizadas para introduzir uma tensão entre os direitos reconhecidos e as práticas sociais que, ao mesmo tempo, necessitam de positivação e procedimentos concretos direcionados a sua efetivação. A concepção crítica dos direitos humanos, com base no autor referido, importa por assegurar uma visão realista do mundo, ao lado de reforçar a preocupação com instrumentos concretos no empoderamento dos grupos mais desfavorecidos, uma vez que, colocando os direitos humanos como processos de luta, como categoria em disputa, reconhece a necessidade de lutar por novas formas mais igualitárias e generalizadoras de acesso aos bens protegidos pelo direito.7 A teoria é inspirada por uma perspectiva integradora, sem hierarquização dos direitos (como o perigo da divisão em gerações ou dimensões).

2. Direito e gênero

Essa forma de pensar ao perceber que o resultado desse processo de luta é sempre provisório e, por isso mesmo, deve ser atividade constante e continuada, que não se resolve com a previsão em texto constitucional (ainda que seja esse, obviamente, um passo importantíssimo). Como convenções culturais que são (os direitos humanos), colocá-los em uma perspectiva crítica permite reforçar a necessidade de ir além e reforçar as garantias formais presentes no texto constitucional, através de ações e práticas direcionadas a garanti-las também e principalmente no plano material.

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FLORES, Herrera Joaquín, 2009, p. 25. Idem, ibidem, p. 34. 7 Idem, ibidem, p. 65. 6

Em teoria, a estrutura social patriarcal estaria superada e garantida a igualdade entre homens e mulheres, igualdade de direitos e deveres em todos os âmbitos. São ambos plenos em sua dignidade e no exercício dos direitos a ela inerentes. Assim o art. 5º que diz que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição". Assim também o art. 226, ao tratar da família, que diz que "Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. (...) § 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações." A realidade, no entanto, mostra que por mais que uma norma positive os direitos, o resultado é diferente para uns e outros. E essa diferença dependerá da situação que cada um ocupe nos processos que facilitam ou dificultem o acesso aos bens materiais e imateriais exigíveis em cada contexto cultural para se alcançar a dignidade. Quer dizer: há uma divisão social, sexual, étnica e territorial do fazer humano e, segundo a posição que ocupe o sujeito em tais marcos de divisão, terá ele maior ou menor facilidade para ter acesso a educação, a moradia, a saúde, a expressão, ao meio ambiente. 8 Faz-se, então, mais do que necessária uma disposição crítica contra a estrutura do mundo e, no que aqui interessa, contra a estrutura patriarcal, a fim de fornecer instrumentos que alterem as posições dos sujeitos na luta pelos bens da vida que aqui são divididos a partir do corte de gênero (ou divisão sexual, como quer o autor citado anteriormente). Daí a necessidade da inclusão do paradigma do gênero no direito. A divisão dos gêneros masculino/feminino produziu a atribuição de qualidades a cada um, como se fossem esses atributos naturais e exclusivos ou próprios de cada um. Assim, foram identificados pares de qualidade, correspondentes a masculino/feminino:

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FLORES, Herrera Joaquín, 2009, p. 43-44.

racional/irracional,

ativo/passivo,

pensamento/sentimento,

razão/emoção9,

público/privado, produtor/reprodutor.10 Não só foram atribuídas qualidades, como essas foram hierarquizadas, alçando as primeiras, supostamente pertencentes ao gênero masculino, a posição de superioridade. E o direito assume para si o gênero e suas divisões, contribuindo para a reprodução do androcentrismo na teoria, na prática forense e na academia.11 Adotar o paradigma de gênero, então, significa, antes de tudo, abandonar os essencialismos acima descritos, próprios de uma sociedade patriarcal. Reconhecer que, conforme aponta Alessandro Baratta, as formas de pensamento, de linguagem e as instituições da nossa civilização possuem uma implicação estrutural com o gênero, ou seja, com a dicotomia masculino-feminino; que os gêneros não são naturais, não dependem do sexo biológico, mas, sim, constituem o resultado de uma construção social e que os pares de qualidades contrapostas atribuídas aos dois sexos são instrumentos simbólicos da distribuição de recursos entre homens e mulheres e das relações de poder existentes entre elas. 12 Em razão da existência dessa divisão do fazer humano e da necessidade de romper com as disposições ou habitus que mantém a mulher em posição desvantajosa diante dos bens, ainda que previstos na forma de normas, é preciso incluir o paradigma de gênero no direito.

3. Criminologia Crítica e Criminologia Feminista

A criminologia evoluiu, no século XX, deixando para trás o passado ditado pelo paradigma etiológico. A partir dos estudos da Escola de Chicago, sofreu profunda alteração em seu paradigma, que passou a estar assentado na definição ou reação

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CAMPOS, Carmen Hein de. "Razão e Sensibilidade: teoria feminista do direito e Lei Maria da Penha". In CAMPOS, Carmen Hein de (Org). Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 2. 10 CHANETON, July. Genero Poder y Discursos Sociales. Buenos Aires: Eudeba, 2007, p. 11. 11 BATISTA, Nilo. Só Carolina não viu. In MELLO, Adriana Ramos de. Comentários à Lei de Violência doméstica e familiar contra a mulher. Rio De Janeiro: Lumen Juris, 2009, 2ª Ed. 12 BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: a questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.) Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999, p. 23.

social. 13 Com isso, abandonado o foco no crime e no criminoso, passou a centrar-se no estudo da criminalização, tendo por objeto o próprio direito penal. A evolução levou ao que se convém denominar criminologia crítica, que, ainda que possa se dividir em diversas formas de pensamento, neste artigo é reconhecida como uma verdadeira sociologia do direito penal.14 Ocorre, no entanto, que o avanço da criminologia crítica pouco acompanhou o feminismo e seus estudos. A ausência da inclusão do paradigma de gênero na criminologia crítica faz dessa uma análise sociológica parcial de seu objeto. O vácuo assim deixado faz com que a análise criminológica se produza de modo alheio ao fato de que o direito (e o direito penal) tem gênero e é também parte da sociedade patriarcal em que inserido. 15 Adotar a perspectiva de gênero na criminologia significa partir da compreensão que “a relação entre homens e mulheres é uma relação desigual e construída socialmente”. Significa retomar o gênero como categoria de análise,

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a fim de

tornar visível o condicionamento dessa análise pelo patriarcado e demonstrar como “o sistema penal é sexista, como reproduz a desigualdade entre homens e mulheres, mesmo quando, aparentemente, suas regras estão formalmente destinadas a proteger as mulheres”. A criminologia crítica, assim, ao focar na criminalização e no direito penal, não pode se esquecer do paradigma de gênero, sob pena de não observar dois conteúdos específicos: a mulher como autora de crimes e a mulher como vítima da violência de gênero, seja a violência doméstica, seja a institucional. O esquecimento concede à mulher um não-lugar no direito penal e na criminologia. Superar de forma efetiva a criminologia etiológica tem que significar superar o patriarcado e suas dicotomias. A aplicação do paradigma de gênero à criminologia pode, contudo, levar a diferentes formas de análise ou soluções. Segundo a postura adotada por Vera Regina Pereira de Andrade a solução é a não utilização do sistema penal.17

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A esse respeito, conferir ANITUA, Gabriel Ignacio, História de los pensamientos criminológicos. Buenos Aires: Del Puerto, 2010. 14 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002. 15 BARATTA, Alessandro, 1999, p. 58-59. 16 CASTILHO, E. W. V. . A criminalização do tráfico de mulheres: proteção das mulheres ou reforço da violência de gênero?. Cadernos Pagu (UNICAMP. Impresso), v. 31, p. 101-124, 2008. 17 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito de construção da cidadania. Palestra proferida no "Seminário Internacional Criminologia

Lembrando as considerações da criminologia crítica a respeito do direito penal, fundada na obra de Alessandro Baratta, a autora lembra que o direito penal não cumpre com nenhuma das promessas a que se propõe. Ao lado disso, o saber penal foi construído a partir de uma “saber masculino onipresente”, na ausência de um sujeito – o feminino. Seria, então, necessário tomar essas duas perspectivas para analisar a relação direito penal e gênero, seja para pensá-lo como forma de proteção das mulheres ou na análise de sua aplicação para condutas criminosas praticadas por mulheres.18 Em sua avaliação, a autora considera que o sistema de justiça criminal é ineficaz para a proteção das mulheres conta a violência, uma vez que não previne novas violências, não contribui para a compreensão da violência sexual nem mesmo para a transformação das relações de gênero. É ao mesmo tempo ineficaz nessa proteção por se constituir como um “sistema de violência institucional”, duplicando a violência exercida sobre elas e tornando a mulher, também aqui, vitima dessa violência institucional. 19 É correto dizer, como pretende a autora referida, que a lei e o saber penal dotam o sistema de “uma ideologia capitalista e patriarcal20. A solução de abandono do direito penal, no entanto, não parece correta. Não parece certo rejeitar a solução penal simplesmente por fazer ela parte de um sistema construído por mentes e mãos masculinas. Adotar essa linha de pensamento carrega em si um perigo que pode levar o pesquisador menos atento a um posicionamento essencialista ou sexista (embora, é preciso dizer, esse não seja estritamente o pensamento da autora em questão. Fala-se apenas dos riscos de sua adoção) como se o masculino carregasse em si algo de ruim. Nilo Batista comenta, ao falar da Lei Maria da Penha – Lei 11340/2006 - que sua publicação teve o “efeito positivo de estimular o debate sobre as opressões privadas

e Feminismo" romovido pela Themis - Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, em 21 de outubro de 1996 na cidade de Porto Alegre- RS. 18 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal. O sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Florianópolis: Seqüência, 2004. v. 50, p. 4. 19 Idem, ibidem, p. 5. 20 Idem, ibidem, p. 8

às quais são submetidas as mulheres”. Ocorre que tal debate ficou e tem ficado “um pouco neutralizado pela ênfase que se conferiu à intervenção punitiva”. 21 A afirmativa é bem correta e apropriada nesse ponto em que se fala da tentativa de construção de uma criminologia feminista (ou de uma forma feminista de se produzir pensamento criminológico). Ao se falar em direito penal e gênero, logo se pensa de modo mais destacado na lei acima citada, grande conquista das mulheres, do movimento feminista e dos juristas em sua produção envolvidos. A abordagem da violência de gênero e da violência doméstica, dada pela teoria e pela prática à lei em questão, parece não ter levado em conta os avanços da criminologia crítica. Há uma dissonância entre essas duas instâncias de produção do pensamento – a criminologia crítica e o feminismo – quase a constituir uma espécie de esquerda punitiva.

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O constante reforço da “opção retributivista-aflitiva da lei

representa uma contribuição para o grande encarceramento em curso”23, utilizandose de um sistema que, como a criminologia crítica já identificou, não cumpre com suas promessas e que opera de acordo com uma nefasta lógica seletiva. Reconhece-se, então, que a opção punitiva não pode representar a solução para a questão do gênero no direito penal. O abandono completo também não se apresenta como solução. Solução mesmo ainda parece ser a dada por Alessandro Baratta, através da demolição do modelo androcêntrico e da reconstrução de um modelo alternativo andrógino. Abandonar a divisão de qualidades, atributos e recursos entre os gêneros e reconhecer que são todas próprias do humano. Trata-se, efetivamente, de uma reconstrução social do gênero, superando o artificialismo que os construiu, com a “construção de uma subjetividade humana integral ou andrógina, portadora ao mesmo tempo das qualidades e valores que foram separados pela construção social dos gêneros”, tomando o humano como gênero. 24

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BATISTA, Nilo. Só Carolina não viu. In MELLO, Adriana Ramos de. Comentários à Lei de Violência doméstica e familiar contra a mulher. Rio De Janeiro: Lumen Juris, 2009, 2ª Ed, p. 15. 22 KARAM, Maria Lúcia. A Esquerda Punitiva. In Discursos Sediciosos: Crime, Direito,. Sociedade ano I, nº 1(jan./jun. 1996), Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996. 23 BATISTA, Nilo, 2009, p. 15. E nessa linha de reforço está o recente entendimento do Supremo Tribunal Federal, na ADI 4424, a declarar constitucional a vedação da aplicação da Lei 9099/95 aos casos de violência doméstica e ao definir como pública incondicionada a ação penal para os casos de prática de crime de lesões corporais leves. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=199853 24 BARATTA, 1999, p 64-68.

Reconstruir o gênero no sentido amplo e no específico, dentro do direito penal, a partir de uma criminologia feminista. Construir essa nova subjetividade dentro do direito penal e adotá-la como categoria de análise e critério de pensamento. Tudo, certamente, dentro de um direito penal mínimo, abandonada a verve de uma esquerda punitiva.

4. Considerações conclusivas

A realidade é que, ainda que considerados os inúmeros avanços sociais e jurídicos, a nossa é uma sociedade primordialmente fundada no patriarcado e alimentada pelo senso comum da cultura patriarcal. E a própria teoria (jurídica e legislativa) é, em parte, também resultado dessa cultura. Aqui se falou em patriarcado ou em cultura patriarcal.

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Isso porque essa estrutura

social ou construção cultural deixou um critério que permeia, inclusive, o modo de fazer e pensar das ciências jurídicas, ao criar uma série de dicotomias, baseada na distinção dos gêneros masculino e feminino. Nesse modo de viver e pensar, reservou-se (e ainda é reservado) à mulher o espaço privado-reprodutor da vida. Na ordem social capitalista e patriarcal, cabe ao homem o espaço público e produtor, espaço em que a objetividade e a razão - nessa lógica considerados atributos próprios desse gênero - são fundamentais. Por ser mais emotiva - consideram -, mais capaz de sentimentos de abnegação e mais sensível, à mulher cabe o cuidado, a proteção e a condução do espaço doméstico e a função reprodutora. Em razão desse modus estar tão enraizado em nossa cultura, a distância entre teoria jurídica e realidade e mesmo a distância entre o discurso da teoria e o conteúdo da teoria são enormes. As dicotomias acima citadas funcionam como critérios e essencializam as características, condições e posições de cada gênero. E por isso é necessário reconhecer que o direito tem gênero por também ser parte da sociedade patriarcal em que inserido. O paradigma de gênero e sua discussão, tão caros ao feminismo, ainda não foram devidamente inseridos na teoria jurídica.

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SANTOS, Boaventura de Sousa, As mulheres não são homens. Disponível em http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4984, acesso em 05 de março de 2012.

Acredita-se que a igualdade garantida na Constituição é reconhecimento suficiente da inexistência de discriminações de gênero e o debate assim e aí se estaciona, esquecendo que o Direito em sua teoria, em sua prática e na constituição de seus órgãos e instituições é a repetição do mesmo modus, afinal é ele (o Direito) também um produto da cultura. O discurso criminológico e jurídico-penal não embarcou no paradigma de gênero (o discurso jurídico como um todo ainda não o fez, basta verificar a ausência de qualquer corte semelhante nos currículos ou ementas de disciplinas dos cursos de Direito) e, ao assim proceder, permitiu que também nessa área fosse confirmado o pertencimento da mulher ao espaço privado-doméstico-reprodutor. Pouco ainda se conhece sobre a criminalidade feminina: que crimes praticam, em que condições, que mulheres são mais criminalizadas. A criminologia tem sido fundamental na avaliação, por exemplo, da seletividade do sistema penal que condena e encarcera a população pobre e negra do país (essa população pobre e masculina que não cumpre com sua função ou papel público-produtor, na lógica capitalista e patriarcal), os mais vulneráveis e suscetíveis ao poder punitivo. A avaliação, no entanto, tem sido constantemente produzida de modo alheio ao recorte de gênero, sem que se identifique de que modo essa seletividade opera a partir dessa categoria. Pouco se percebe que, muitas das vezes, a dicotomia patriarcal é o próprio critério de avaliação judicial: essa mulher, que não cumpriu com seus deveres e papéis, que não assumiu corretamente seu papel de mãe e esposa, que não soube gerir um lar e delinquiu merece o cárcere ( independente de qual seja o crime praticado). Essa mulher, não corretamente disciplinada pelo controle informal social, agora o será pelo controle formal - e só o é por ter falhado em seu papel e por ter fugido ao controle do patriarcado. E assim a sala de audiência reproduz o cotidiano: a mulher condenada por não ser o feminino. Ao mesmo tempo, o próprio texto legal constrói uma criminalidade de gênero que tem por base o controle da sexualidade feminina e/ou a manutenção dos papéis sociais a ela reservados, com a construção e a manutenção de uma "criminalidade de gênero" que ainda tem por conteúdo a imposição - social e moral - do papel de mãe, a ser representado no espaço privado-doméstico a ela reservado, como se percebe da criminalização do aborto provocado ou consentido. Com isso, o direito

penal consagra o controle do corpo feminino e do exercício de sua sexualidade, impondo o papel de mãe. O corpo e a sexualidade femininos, assim quer o senso comum patriarcal e assim quer o direito penal, apenas tem uso e lugar para o cumprimento da função atribuída a essa mulher, nos pares de qualidades expostos anteriormente: a reprodução. Não se reconhece, assim, o direito de escolha. Não se reconhece o direito sobre seu próprio corpo e o direito de exercício livre da sexualidade. A mulher que exerce qualquer desses direitos terá apenas duas escolhas: o cumprimento do papel que nunca escolheu ou o cumprimento da pena que nunca desejou. E, nesse ponto, uma seletividade se produz: os dados mostram que as mulheres que abortam, como revelado por pesquisa recente da Universidade de Brasília 26, são das mais variadas idades, classes sociais, orientações religiosas. Na prática, no entanto, algumas são devidamente cuidadas e atendidas em clínicas particulares, onde realizam o aborto com segurança. Outras, sem dinheiro ou condições semelhantes, morrem, sofrem com as consequências de práticas abortivas irresponsáveis ou clandestinas ou são criminalizadas. Por esses motivos, a introdução definitiva do recorte de gênero na análise jurídica se faz essencial. Só assim a distância entre teoria e realidade será descortinada e diminuída. Só assim se perceberá o quanto o conteúdo dessa teoria nem mesmo é suficiente para garantir a igualdade nos moldes desejados pelo movimento feminista. Só assim para se perceberá que, ainda, são negados direitos fundamentais a mulher, de dentro do próprio sistema jurídico.

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Disponivel em http://www.unb.br/noticias/unbagencia/unbagencia.php?id=3404

REFERÊNCIAS

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In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.) Criminologia e

feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. ______. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujeito de construção da cidadania. Palestra proferida no "Seminário Internacional Criminologia e Feminismo" romovido pela Themis - Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, em 21 de outubro de 1996 na cidade de Porto Alegre- RS ______. Sexo e gênero: a mulher e o feminino na Criminologia e no sistema de justiça criminal. Boletim do IBCCrim. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 12, n. 138, maio 2004. p. 2. ______. Violência sexual e sistema penal: proteção ou duplicação da vitimização feminina? Revista Seqüência: estudos jurídicos e políticos, Florianópolis, v. 33, p. 87-114, 1996. ANITUA, Gabriel Ignacio, História de los pensamientos criminológicos. Buenos Aires: Del Puerto, 2010. AZEVEDO, Rodrigo G. Sistema Penal e Violência de Gênero: análise sóciojurídica da Lei 11.340-06. In: Sociedade e Estado, Brasília, v. 23, n. 1, p. 113-135, jan./abr. 2008c. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002. BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: a questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.) Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. BARSTED, Leila Linhares. Direitos Humanos e Descriminalização do Aborto. In PIOVESAN, Flávia. SARMENTO, Daniel. Nos Limites da Vida: Aborto, Clonagem

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Disponível em

http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4984, acesso em 05 de março de 2012.

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