CRÍTICA DA RAZÃO TCHÓRICA: LabCEUs, Políticas Públicas e as batalhas da Cultura Ordinária

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CRÍTICA DA RAZÃO TCHÓRICA LabCEUs, Políticas Públicas e as batalhas da Cultura Ordinária Paulo José Olivier Moreira Lara1

INTRODUÇÃO Eu era pesquisador-consultor do Ministério da Cultura quando do anúncio da demissão da Ministra Ana de Holanda. Celebrada por muitos que participaram das políticas culturais da gestão Gilberto Gil / Juca Ferreira, o anúncio da Senadora Marta Suplicy, embora não trouxesse alívio certo e imediato, abria espaços de diálogo e possibilidades até então fechados pela gestão anterior. Além de despertar a atenção de certa camada dentro do eixo politiqueiro com suas mini industrias culturais de oportunismo quase religioso, outras frentes de ativistas culturais, mais enraizados em políticas radicais, verdadeiramente inovadoras e sem ambições institucionais ou corporativas também se movimentavam para oferecer subsídios para a volta da proa da Cultura para questões mais avançadas e ousadas: Lei do Acesso à Informação e Governo Aberto, Gênero, Produção Cultural e Apropriação Tecnológica, Reforma da Lei de Direito Autoral, Cultura, Ciência e Tecnologia nas Comunidades Tradicionais, Hacklabs Rurais e Biotecnologia, Satélites, Residências, Rádio e TV Digital, Hardware Livre, Infraestrutura de rede descentralizada, Acesso à Internet, Comunidades de software livre, Lixo Eletrônico, Economia Solidária, Plataformas digitais de repositórios públicos, Infra-estrutura pública de federação de redes, Licenciamento público de obras. Enfim, um elo inevitável e indissociável entre cultura, comunicação e tecnologiaS. Tais tópicos estão presentes numa carta escrita coletivamente 2 e publicada em Outubro de 2012 por grupos do entorno da lista e do movimento Metareciclagem. Muitos dos tópicos já vinham sendo trabalhados pelas gestões do MinC durante o governo Lula, e pode-se ter a ideia da tamanha carência aparente que se tinha naquele momento, ao ponto de ter que se resumir novamente os pontos importantes de uma política pública de cultura radical e inovadora apenas dois anos após a saída de Juca Ferreira. O presidente Luis Inácio Lula da Silva costumava contar a história do “tchó” para metaforizar sua decepção com o que supostamente gostaria de fazer com as políticas culturais em relação ao que realmente conseguiu implementar. A história relata a intenção de um cidadão de fazer uma espada com um pedaço de metal, que, por incompetência do ferreiro, após o derretimento desastrado daquele, insinuava, por causa da diminuição constante do material, que de espada, a arma viraria na verdade um facão, depois, um punhal, então somente uma faquinha e finalmente, um “tchó”. O cidadão, resignado e decepcionado, aceita por fim o tal do “tchó”, sem saber o que é. O ferreiro joga um balde de água no resto diminuto do ferro e o som que sai do seu esfriamento é o que sobra ao pobre homem: Tchó. Relacionar sua política cultural à metáfora tchórica demonstra no mínimo duas coisas: Um, o presidente desconhece ou tem dificuldade de enxergar a tamanha importância da movimentação cultural que aconteceu em seu governo e, dois, sua visão de cultura privilegia uma perspectiva do acesso, integração, inclusão e instrumentalização perante uma de criação cultural ordinária, amadora, heterogênea e cotidiana.

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Sociólogo, Cientista Político e Mestre em Sociologia da Cultura pela UNICAMP, cursa o PhD pela Goldsmiths, Universidade de Londres e o curso de especialização em Jornalismo Científico pelo LabJor/NUDECRI, UNICAMP Epistola Digital Descentralizada. Mutirão da Gambiarra, Outubro de 2012. Disponível em http://mutgamb.org/descarta/Epistola-Digital-Descentralizada Acessado em 30/10/2015.

CULTURA SMITH DE VASCONCELLOS A política do acesso é tutelar e elitista. Depende do ferreiro e de sua boa vontade e talento. Ela se remente às políticas públicas do pós guerra europeu onde, principalmente na França de Andre Malreaux, estimulava-se a população sem recursos e com poucas oportunidades de lazer e conhecimento a participarem e tomarem parte na “alta-cultura”. O acesso a teatros, museus e casas de espetáculo, a integração do pobre “sem possibilidade” de cultura e sua inclusão no mundo das belas artes era a forma de “democratizar” a produção cultural. Em que pese a fundamental diferença das produções culturais realizadas em Brasil e em França, fica claro que certo colonialismo cultural persevera em muitos dos produtores e detentores dos meios de produção e, mais ainda, nas altas camadas dos gerentes e gestores e formuladores de políticas públicas para a Cultura. É evidente que não se trata de aumentar o abismo entre o produtor de cultura popular e as formas da “alta cultura”. É claro que o acesso a obras, expressões, músicas e artes pode engrandecer o espírito e dilatar o conhecimento, porém, é latente que esta escolha não condiz nem com as necessidades sociais nem com a realidade das expressões, estéticas, paisagens e jogos culturais latino americanos em geral e brasileiros em particular. O projeto dos pontos de cultura, mas, principalmente as movimentações que os orbitavam – os grupos, pessoas, produtores, colaboradores, audiência, admiradores – foram, em qualquer sentido, a mais inovadora e debatida política pública cultural já realizada no Brasil. E isso é dito e ponto quase pacífico entre os pensadores de políticas públicas que têm um mínimo de calor no coração. A esperança na retomada de políticas culturais amadoras, do ser comum que cria cultura enquanto cozinha, fala, bebe, ama, dança e canta foi, no entanto, rapidamente substituída pela mentalidade Smith de Vasconcellos, tripartida em eixos que conotam claramente a opção pelo acesso e inclusão: Soft Power, Vale Cultura e CEUS das Artes eram as vitrines da nova ministra que, quando caiu em si e na sua inaceitável (para ela) desimportância no projeto eleitoral seguinte iniciou sua caminhada à oposição, culminando no patético evento de filiação ao PMDB onde disse que se agrupava à agremiação para juntar-se à luta contra a corrupção e que Vale Cultura, CEUs e Bilhete Único eram agora patrimônios de seu novo partido. O projeto do Soft Power brasileiro, espelhado nas ideias de Hillary Clinton, salvo engano deste pesquisador, gerou algumas viagens de comitivas culturais à Paris e Londres e breves exposições e inaugurações da marca Brasil no velho mundo. O vale cultura caiu na insossa discussão sobre compra de revistas de fofocas e na qualidade e nacionalidade dos filmes escolhidos pelos trabalhadores beneficiados. Nenhuma delas valorizou a produção comum, cotidiana e estética das ricas expressões brasileira. A esperança de que uma senadora da República viesse a trazer mais investimentos para a cultura também terminou maior do que a realidade. Evidentemente, o MinC seguiu trabalhando com pautas importantes, porém, o legado da Ministra Marta foi insípido. Uma das mais decepcionantes atuações da Ministra foi quando, perguntada sobre o projeto do Ministério da Cultura sobre Rádio e democratização dos meios de comunicação, respondeu breve e rudemente que este assunto era para ser tratado com o Ministério das Comunicações, que não havia competência do MinC para com isso. Embora pequena, nossa equipe que desenvolvia uma série de ideias sobre políticas públicas de comunicação e cultura dentro da Secretaria de Políticas Culturais e no marco do programa Comunica Diversidade, se sentiu desaparecida, e, envergonhada, voltou-se a decepção dos preenchimentos de planilhas. O projeto dos CEUS das Artes – e aí o marketing desastrado na tentativa de transpor um projeto importante e bem sucedido na área da educação para a área de cultura – inicialmente baseava-se naquela visão do acesso e da inclusão de uma população e de uma juventude desassistida às

grandezas das artes e de suas linguagens. Projeto que, entre a inovação dos Pontos de Cultura/Cultura Digital e a necessidade dos Centros de Educação Unificados, ficava num limbo provisório, como era o cargo da Ministra, imaginado por ela própria. Já em Outubro de 2012, um mês após sua posse, circulava pelo Ministério um documento sobre o CEUS das Artes enquanto “um espaço integrador e propulsor das iniciativas culturais existentes no território com a realidade escolar, fortalecendo o conceito de território educativo”. No mês seguinte, outros slides circularam sobre “A Praça dos Esportes e da Cultura – PEC” sendo estes “um equipamento público estruturado para integrar atividades e serviços culturais, práticas esportivas e de lazer, formação e qualificação para o mercado de trabalho, serviços socioassistenciais, políticas de prevenção à violência e inclusão digital. Idealizada em conjunto pelos Ministérios da Cultura, Esportes, Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Justiça e Trabalho e Emprego, a Praça integra num mesmo espaço físico programas e ações setoriais destes Ministérios, visando a promoção da cidadania e a redução da pobreza nos territórios onde será implantada.” Este documento já continha as plantas, modelos, tipologias, equipamentos e custo das instalações a serem executados em municípios escolhidos, em parceria com as prefeituras. Embora conceitualizado cuidadosamente, abrangendo áreas importantes das políticas culturais dos 10 anos anteriores, a elaboração de tais “Praças da Cultura” seguia, voluntariosamente tanto o engrandecimento e fortificação de uma política pública personalizada (CEUs) quanto a visão de que a prioridade de tais políticas teriam que residir no acesso instrumentalizado de uma camada de despossuídos à atrações culturais e seus equipamentos. Volto a dizer, não há nada de errado, em minha concepção, em estender tecnologias, sistemas, infraestruturas e conteúdo através do investimento público, porém, fica clara a tendência em se priorizar um projeto pessoal e de perspectiva conservadora, já que uma produção ordinária, territorializada e capilarizada perde a importância dentro do contexto geral das políticas. AMAR COMO UM AMADOR OU GERENCIAR COMO GESTOR Em oposição àquela política cultural do acesso, inclusão, integração e instrumentalização realizada nos anos 40 e 50 do século XX, desenvolveu-se uma perspectiva mais descentralizada, tática, outrocentrada e amadora enquanto concepção de política pública cultural. No centro desta ideia está Michel de Certeau, historiador francês que foi comissionado para realizar um pesquisa sobre práticas cotidianas e elaborar relatórios subsidiando políticas públicas de Cultura para o governo. Diferentemente dos analistas dos Estudos Culturais que visualizavam a entrada de intelectuais no governo como um caso de cumplicidade com um “mundo sujo” da política, e, por vezes achando isso inevitável - já que a ação política faz parte do trabalho intelectual - Certeau elabora relatórios e pesquisas nos quais sua visão sobre políticas públicas segue relativamente o caminho de suas elaborações teóricas. Nas palavras de Highmore, a política de Certeau “não envolve uma retirada da teorização crítica ou de tendências mais avançadas dos Estudos Culturais”. Certeau se esforça em fazer das políticas culturais “espaços mais hospitaleiros para as vozes dos outros”3. Insistindo na valorização e importância dos modos de fazer cotidianos, nas culturas amadoras e ordinárias, Certeau elabora uma política e uma ética que envolvem os contextos estéticos e culturais. Deste seu trabalho, nasce sua mais importante obra, “A Invenção do Cotidiano”, onde, entre outras coisa, elabora a noção de tática como uma “arte do fraco” em oposição à estratégia dos mecanismos dominadores do espaço. O ponto inovador de Certeau, que é igualmente ativo em sua obra teórica é a rejeição aos mecanismo estratégicos de dominação, sendo o Estado Nação um eixo central destes. A centralidade do outro na obra e na ética de Certeau está relacionada à realidade francesa, onde a entrada de imigrantes, o conflito com o diferente e o medo do estrangeiro estão intimamente presente no imaginário. Porém, no caso brasileiro pode-se articular este conceito de 3

Highmore, Ben. (2006) Michel de Certeau - Analysing Culture. London: Continuum pp153.

outro, estrangeiro e refugiado, com os desterrados, os sertanejos, os índios, os ribeirinhos, os caminhantes e até mesmo ao refugiado estrangeiro ele mesmo. Em suma, o outro adquire aspecto central tanto em sua obra quanto em sua epistemologia política para a Cultura. Certeau critica as limitadas noções de “diversidade”, “tolerância” e “integração” para inserir a centralidade de um certo Xenofilismo: a valorização daquele que é alheio a “alta cultura” (pois ela é sempre determinada social, econômica e politicamente), ao idioma (e aqui lembramos da pseudo integração do imigrante latino que, nos EUA, segundo a elite, há que, no mínimo, “aprender nossa língua”), e ao profissionalismo (a obviedade que atesta a incapacidade dos gestores e burocratas poderem servir igualmente ao ministério dos transportes, ao do Turismo e ao da Cultura, variando ao bel prazer da política de ocasião). A centralidade da Cultura em Certeau está em “construir na atividade cultural presente nos grupos sociais”4 onde se entende que uma maneria de cozinhar, limpar ou fazer amor é igualmente importante a um quadro ou uma grande obra de literatura do ponto de vista da produção de expressões e significado. Daí sua grande tendência anti-colonial, em favor de uma heterogeneidade e do abandono de pontos de referencias políticos e culturais familiares. Ademais, Certeau insere na cultura oral, no discurso do outro, no idioma e nas comunicações um eixo fundamental para a tarefa de transformar a ética das políticas culturais e assim, a ordem social dominante. Posta esta questão sobre os diferentes pontos de vista sobre as políticas culturais, presente tanto nas análises e pesquisas quanto em formulações dentro do contexto brasileiro, nos resta perguntar sobre como transformar em tático e político, amador e heterogêneo, comunicativo e descolonizado um conceito e uma prática criados e nascidos justamente enquanto o contrário? O esforço do projeto LabCEUs5, nesta perspectiva, aponta para uma solução. O uso tático do espaço estratégico, as modulações inesperadas do território, o foco no cotidiano amador e simples das formas culturais ordinárias está presente nas ocupações selecionadas para habitar temporariamente os CEUS das Artes. Conhecendo a escassez de recursos, a dificuldade operacional e a falta de motivação do poder público em projetos deste tipo no Brasil, vale apontar o aspecto ousado do programa, sua liberdade de criação e sua atenção ao que é comum em determinado território ao mesmo tempo atento a singularidade local, tanto do proponente quanto do beneficiário. A relativamente grande e infelizmente alienada estrutura montada para abarcar os CEUs das Artes é, destarte, um desafio. Em cidades como Colatina6, no Espírito Santo, raros são os espaços de comungamento e vivência sócio-cultural que vão além das cozinhas, varandas, quintais e bares. Administrar, usufruir e criar sobre um equipamento que instrumentaliza, ou seja, que se coloca maior e mais potente que o próprio sujeito, que requer planejamento e organização que são estranhos à dinâmica cultural ela própria, passa a ser um problema. Tal tarefa, não podendo refletir a ordem com a qual se organiza a cozinha ou a varanda sem transpor o espaço privado (que em muitos momentos se torna comum) para o espaço público, reproduz aquele gerenciamento públicoestatal que, numa triste realidade, acaba sendo organizado como se fosse um espaço de propriedade privada do agente público. Certeau provavelmente apontaria que melhor seria se houvessem muitas cozinhas, varandas, camas 4 5

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Ahearn, Jeremy. Between Cultural Theory and Politics: The Cultural Policy Thinking of Pierre Bourdieu, Michel de Certeau and Régis Debray. Centre for Cultural Policy Studies, Research Papers, n.7. Un, of Warwick, 2004. pp82 “ações de ocupações nos Laboratórios Multimídia dos CEUs para articulá-los com seu entorno, conectando tais espaços com a cidade e promovendo ideias sustentáveis de transformação social. (…) A ação Laboratórios de Cidades Sensitivas – LabCEUs, foca, portanto, nas ocupações artísticas como forma de organizar e gerir estes espaços, junto à comunidade e à região.” - http://culturadigital.br/labceus/, Acessado em 30/10/2015 E aqui noto que este texto e a análise nele empreendida baseia-se na experiência obtida nesta Ocupação específica. Não se pretende, enquanto análise de caso estender as experiências à outras ocupações e cidades, que evidentemente têm dinâmicas, territórios e ordenamentos próprios.

e mesas, pois assim a cultura ordinária tomaria o espaço estratégico, tornando-o extraordinário. O equipamento seria gerenciado como se arruma uma casa para a chegada dos convidados. A realidade funcional é que, designadas as funções burocráticas, o administrador local, a Secretaria de Esporte e Cultura, a biblioteca, e o Laboratório de informática transformam-se em continuidade da firma ou da repartição. A espontaneidade do comum é substituída pela ordem administrativa. Aqui, outro embrólio complexo sobre as políticas públicas de Cultura. De herança jurídico legalista e organizacionais - administrativas, o ordenamento das políticas públicas na América Latina é marcado pela relativa ausência dos “commons” como forma e princípio para se basear o trato daquilo que é patrimônio comum e compartilhado por uma sociedade, o que enfatizou, no nosso caso, a norma administrativa e gerencial que separa e isola certas perspectivas, conhecimentos e acordos daquilo que é regulamentado como regra de gerenciamento das coisas públicas. A Cultura é, prioritariamente, um campo de batalha que não significa só violência ou aniquilamento, mas processos de tréguas, submissões, assimilações, costuras e acomodações do espírito humano, enfim, movimento, energia e vibração. A responsabilidade pois, sobre o seu gerenciamento, financiamento, administração e ordenamento pode encontrar-se, unicamente, em sua lógica interna. Tal lógica entra em conflito tanto com as regras lícitas ou ilícitas do gerenciamento ordenado pelo Estado ao mesmo tempo em que a linha que perpassa a administração da Cultura cruza da mesma maneira a lógica de financiamento do BNDES. Por isso a heterodoxia das ocupações é fundamental. A liberdade de pintar, criar, martelar, escutar ou mesmo procrastinar desafia a ordem construída para oferecer acesso e conteúdo alheio àqueles que supostamente não os detém. O DESAFÍO DA CRÍTICA O que predomina no espaço, como confirmação da extensão da cultura ao equipamento é o futebol, os “cursos” e seus certificados e o acesso à Internet. Não há, na vivência que se poderia amplificar via utilização do equipamento dos CEUs, outras dinâmicas culturais, espaços de descoberta estéticas, abertura de vivências humanas dais quais os CEUs poderiam ser propagadores. Neste sentido, o projeto LabCEUs é o início de uma perspectiva transformadora, desde que seja constante e ativa. A prioridade em selecionar projetos locais não é garantia de envolvimento, mas pode-se ajudar no sentido de uma transformação de e em ares conhecidos. Por outro lado, uma possível estruturação maior, no sentido de um conhecimento, preparação e dedicação, faria com que grupos estrangeiros às localidade, com recursos, tempo e liberdade pudessem cumprir aquele papel de inserção de uma não-familiaridade, uma estética desconhecida e incógnita que eventualmente serviria para um despertar de possibilidades de um cotidiano diverso e ainda assim, possível. Do ponto de vista do cotidiano, o espírito é dominado pelas constantes cargas da vivência conservadora advindas da família, igreja, escola e trabalho. Ao menos no CEU em que participei, em que pese a gigantesca criatividade, boa vontade, alegria e hospitalidade do povo, o peso das expressões que fogem do status de uma sociedade massificada e controlada é virtualmente nula, o que concede mérito ainda maior às características acima. Assim, torna-se mais difícil estabelecer a heterodoxia na relação de produção e na vivência diária no sentido de uma produção criativa. No entanto as práticas ordinárias e cotidianas, como qualquer aspecto da produção de significado são também elas, um campo de batalha. A ética pentecostal das igrejas-mercado, o machismo e paternalismo arraigado, a tradição racista e conservadora se propagam também enquanto vida comum. Neste sentido, as batalhas culturais são iminentemente políticas. E, muito provavelmente sem notar, os equipamentos, instituições e instrumentos que são pensados somente do ponto de vista do acesso da população aos bens culturais colaboram para uma ampliação deste cotidiano conservador que se insere nos meandros e concede espírito à estes equipamentos. O machismo se

mostra na quadra do CEU, o conservadorismo se aplica ao gerenciamento do Laboratório de Informática e a religiosidade cega se apropria da biblioteca, substituindo o conhecimento ampliado. O cuidado a se tomar, quando se trata de construção e ocupação de políticas públicas culturais é o da constância de uma luta política anti-conservadora, pois assim é a cultura. Ao final, trata-se não de confeccionar a espada perfeita para que seu operador conheça o estado da arte do metal e a ele o sirva perfeitamente. Não se trata das escolhas do ferreiro e seus desastres a minar as intenções do gladiador. Mas trata-se sim do inesperado, daquilo que o improviso força a acontecer, da sensação de que com o pouco faz-se muito, se estiver na mão de um guerreiro criativo. Enfim, mal sabia o enorme presidente Lula que, quiçá, nossa produção criativa e expressão estética precise de menos espadas e mais tchós.

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